a questão do puro amor

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  • 7/21/2019 A Questo Do Puro Amor

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    TEXTO BASE

    TERESTCHENKO, Michel.Fnelon e Bossuet: A questo do puro amor,in CAILL, Alain et al. In Histria crtica da filosofia moral e poltica.

    Palavras-chave

    Teologia. Racionalismo. Sculo XVIII. Mstica. Liberalismo.

    O texto de Teretschenko discute a questo conhecida como a Querela doPuro Amor, que envolveu dois telogos cristos no sculo XVIII. De umlado, Franois de Salignac de La Mothe-Fnelon, arcebispo de Cambrai,representante das concepes msticas da Igreja, e de outro, Jacques BnigneBossuet, preceptor de Luis XV e arcebispo de Meaux, defensor da autoridade

    da Igreja e da monarquia absolutista.

    O debate entre Fnelon e Bossuet acerca do amor puro foi em princpioiniciado dentro de uma perspectiva teolgica, de serenidade intelectual, masque posteriormente se acirrou, sendo a causa do dissentimento entre os dois.

    No contexto filosfico, a questo do puro amor se deu em um momento deconsolidao de tendncias identificadas com o racionalismo iluminista,tendo como pano de fundo a luta contra os vcios e pela aquisio de

    virtudes (TAVARES, 1993, p. 188).

    A questo do amor puro, propriamente dita, tem como base a nooagostiniana do amor prprio, que consiste, para cada um, em se colocar nolugar de Deus. Ou seja, a busca do interesse prprio justificada nomascaramento da virtude, segundo La Rochefocauld - citado porTerestchenko.

    Assim, tomando por base a obra de Santo Agostinho e sua influncia na

    psicologia dos homens do sculo XVIII, nela h o entendimento de que, hno corao do homem, malgrado suas vontades e interesses mundanos, umafora que, posta em movimento por Deus, tem o poder de salvar o homem,fora esta que o desejo de felicidade.

    Este querer ser, querer ser mais, ser feliz, a manifestao divina nohomem, uma vez que Deus o Summus bonuno Sumo bem. De acordocom este princpio teolgico agostiniano, o homem unido a Deus em suanatureza, mas dela pode se afastar pela sua ignorncia espiritual. Contudo,

    pela f e pela graa, pelo seu princpio divino o homem tem a possibilidadede superar o amor prprio e aspirar ao bem e felicidade em Deus.

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    Na filosofia de Santo Agostinho, h um amor Dei e um amor sui; um amorcarnis e um amor spiritualis (...). H tambm o amor ao prximo; o amoresuriens, que o amor da viagem mstica para o sumo bem; o amor frens,

    que repousa no objeto amado.

    Para Agostinho, o objeto maior do amor o bem, porque ningum ama omal, j que o amor o prprio Deus. Assim, o destino final de todo o ser oamor, porque ele o vita vitarum, princpio e fim de todas as coisas. Assim,no h pormenor nem aspecto da conscincia humana que escape torrenteavassaladora que o amor.

    Com esta concepo de amor em debate, inicia-se a querela de Fnelon e

    Bossuet.

    A doutrina do amor puro de Fnelon

    Fnelon, na verdade, apresenta em sua doutrina uma antiga tradio msticada Igreja, apoiada principalmente na filosofia antiga (com Agostinho, entreoutros), na filosofia medieval (com So Toms como principal referncia) enos escritos bblicos das epstolas de So Paulo, que sintetizada na mximade que o amor no procura o prprio interesse.

    Nesta concepo de amor, amar a Deus em amor puro am-lo em razo desi mesmo, por ser esse amor de natureza superior; enquanto que, am-lo naesperana de salvao amor mercenrio e egosta, prprio da naturezainferior do homem. O amor puro independe da salvao e do desejo defelicidade. Para alcan-lo, deve o homem aniquilar o eu em Deus.

    O homem deve se desfazer de sua vontade prpria e se entregar vontade deDeus, ou seja, desapropriar-se de si prprio e renunciar condio de senhordo seu ego. Que seja Deus a querer e no nossa prpria vontade. Para serfeliz, o homem deve buscar o amor puro na vontade de Deus, e no nosdesejos de sua natureza humana.

    Para Fnelon, o homem deve abandonar suas vontades, pois que so oriundasde uma natureza imperfeita, e caminhar em direo a querer seno o queDeus quer, indiferente sua prpria felicidade ou infortnio, promessa do

    paraso e ao temor do inferno. Na poca, seus crticos chamavam essadisposio mstica de suposio impossvel, j que o efeito prtico de tal

    pregao seria - segundo Teretschenko - uma aceitao passiva do desespero

    de uma possvel condenao eterna.

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    Assim, a posio de Fnelon fundava-se no postulado de que s puro e

    perfeito o amor desinteressado, que se exerce na realidade da anulao doego.

    A crtica do amor puro por Bossuet

    Bossuet critica a doutrina do amor puro de Fnelon a partir de umaconcepo eudemonista de vontade. O eudemonismo ou eudaimonismo (dogrego eudaimonia) uma doutrina segundo a qual a felicidade o objetivoda vida humana. Assim, querer, querer ser feliz.

    Bossuet entendia que o desejo de felicidade, que nos leva a procurar a

    salvao e os meios de aatingir, no movido por nossa prpria vontade: Deus quem ilumina e sustenta a natureza do nosso querer.

    Para ele, se legtimo distinguir que Deus liberal, essa distino tratadeuma simples distino da razo, pois no est em ns distinguir o que sejaa liberalidade de Deus na realidade. Porque Deus a difuso de si prprio,o diffusun sui, ou seja, a natureza divina do dar-se ao mundo.

    Assim, a concepo de Bossuet a que ele interpreta de Agostinho, Deus

    como o Sumo Bem, perfeito em liberalidade, que se d ao homem a fimde nos fazer felizes.

    Nesta perspectiva conceitual de Deus, que era a concepo oficial da Igreja,Bossuet prega, na contramo de Fnelon, que s com a motivao dointeresse a vontade humana tem como mover-se em direo a Deus.

    O ensinamento de Fnelon, por sua vez, interpreta o mandamento do amorem uma ausncia de razo, j que a salvao um desiderato exclusivo deDeus. Para a Igreja, esta era uma concepo perigosa para o ensinamento dasua doutrina de esperana pela f e da expectativa humana pelo Reino deDeus no final dos tempos. Tanto que condena as suas principais proposies,acolhendo acusaes de Bossuet.

    A posio de Fnelon - da corrente mstica da Igreja, lembremos - era a deque nossa capacidade de querer o bem anulada em ns pelo pecadooriginal. Nesta situao, desejar o bem e realiz-lo s possvel pela aoda graa de Deus. Nessa forma, a f ou a virtude no so reais comoatributos humanos, uma vez que sua existncia em ns , acima de tudo, umsinal da graa de Deus ao dar-se ao homem. Sem este auxlio, a inclinao

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    natural do homem para o mal.

    Assim, a partir destas consideraes, a posio de Fnelon sintetiza-se natese principal de que no resta sada ao homem seno remeter-se a Deus

    pelo abandono do ego e pela indiferena a toda estima de si prprio.

    A tese de Bossuet, ao contrrio, afirma que o verdadeiro amor puro deveresponder liberalidade divina que se nos chama a si, a partir da vontadee do interesse humano.

    Contexto histrico e concluses sobre a querela do puro amor

    interessante buscarmos contextualizar a questo do amor puro e seus

    debatedores com o cenrio histrico, marcado pelo perodo compreendidoentre o final do sculo XVII e o incio da segunda metade do sculo XVIII,poca do grande reinado da Frana, onde se desenrola a querela.

    Bossuet, que prega e defende o absolutismo, serve ao Rei Luiz XIV, sendofigura importante, como mentor espiritual da corte real, responsvel pelo eloentre o Estado francs e a Igreja. Um pensador e uma autoridade da visoracionalista e modernista da Igreja. Ou seja, a situao de Bossuet

    portadora de elementos que permitem ilaes entre sua posio e o contexto

    da poca, de ascenso da burguesia, expanso do capitalismo e secularizaoda Igreja.

    Talvez por isso, se pode abrir suposies de que, questes prticas comoidentidade nacional, de opinio pblica e de progresso cientfico estavamimplicadas na contenda (BRITTO, 2011, p. 205), par com a defesa daliberalidade de Deus e da vontade do homem.

    No contexto histrico-cultural da sociedade da poca, de acordo com ohistoriador e crtico Arnold Hauser (1998, pp. 455-456), A Igreja abandonaa luta contra as exigncias de realidade histrica e esfora-se ao mximo poradaptar-se a elas.

    Neste cenrio, o catolicismo torna-se cada vez mais oficial e corteso, nos tolerando, mas favorecendo o interesse dos fiis pelas questes do mundoe sancionando o prazer nos interesses e alegrias da vida secular. A Igrejaconverte-se num instrumento de governo poltico, ao qual est vinculada a

    prioriuma subordinao importante dos ideais espirituais aos interesses doEstado.

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    Mais do que a querela entre dois bispos pensadores e literatos, a questo doamor puro pode envolver, na verdade, o abandono de um perodo austero,asctico e mstico da Igreja representado em Fnelon -, por um novo, esterepresentado em Bossuet, ao qual permitido aos fiis que sigam um rumo

    mais liberal, em consonncia com os interesses do Estado, representado namonarquia absolutista de Luis XIV.

    Bibliografia auxiliar

    BRITO, Tarsilla Couto de.Fnelon entre antigos e modernos. Letras, Santa Maria, v.21, n. 43, p. 285-304, jul./dez. 2011. Disponvel em:http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs.2.2/index.php/letras/article/download/6906/4181

    ESPRITO SANTO, Arnaldo do.Imagens do amor em Santo Agostinho. Humanitas,

    Vol. LIV, pp. 101-113, Universidade de Lisboa, 2002. Disponvel em:http://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas54/05_Espirito_Santo.

    pdf.

    HAUSER, Arnold.Histria social da arte e da literatura. Traduo de lvaro Cabral.So Paulo: Martins Fontes, 1998.

    TAVARES, Pedro Vilas Boas.A corte portuguesa perante a condenao de MiguelMolinos. Revista da Faculdade de LetrasLnguas e Literatura. Anexo VEspiritualidade e Corte em Portugal, Scs. XVI a XVIII, Porto, 1993. Disponvel em:

    http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs.2.2/index.php/letras/article/download/6906/4181http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs.2.2/index.php/letras/article/download/6906/4181http://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas54/05_Espirito_Santo.pdf.http://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas54/05_Espirito_Santo.pdf.http://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas54/05_Espirito_Santo.pdf.http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo8111.pdfhttp://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo8111.pdfhttp://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas54/05_Espirito_Santo.pdf.http://www.uc.pt/fluc/eclassicos/publicacoes/ficheiros/humanitas54/05_Espirito_Santo.pdf.http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs.2.2/index.php/letras/article/download/6906/4181