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- 1 - Data: 31/05/19 Professor: Ádino Disciplina: Literatura Turma: 1º Ano Tu, só tu, puro amor, com força crua, Que os corações humanos tanto obriga, Deste causa à molesta morte sua, Como se fora pérfida inimiga. Se dizem, fero Amor, que a sede tua Nem com lágrimas tristes se mitiga, É porque queres, áspero e tirano, Tuas aras banhar em sangue humano. (Camões, Os Lusíadas - episódio de Inês de Castro) Molesta = lastimosa; funesta./Pérfida = desleal; traidora./Fero = feroz; sanguinário; cruel. Mitiga = alivia; suaviza; aplaca./Ara = altar; mesa para sacrifícios religiosos. a) Considerando-se a forte presença da cultura da Antiguidade Clássica em Os Lusíadas, a que se pode referir o vocábulo “Amor”, grafado com maiúscula, no 5º verso? b) Explique o verso “Tuas aras banhar em sangue humano”, relacionando-o à história de Inês de Castro. Assinale a alternativa correta sobre Camões. a) Além de usar metros mais populares, utilizou-se da medida nova, especialmente nas redondilhas que recriam, poeticamente, um quadro harmônico da vida e do mundo. b) O tema do desconcerto do mundo é um dos aspectos característicos de sua poesia, presente, por exemplo, nos sonetos de inspiração petrarquiana. c). Introduziu o estilo cultista em Portugal, em 1580, explorando antíteses e paradoxos nos poemas de temática religiosa. d) Autor mais representativo da poesia medieval portuguesa, produziu, além de sonetos satíricos, a obra épica Os lusíadas. e) Influenciado pelo Humanismo português, aderiu ao cânone clássico de composição poética, afastando-se, porém, das inovações métricas e dos modelos greco-romano JACÓ ENCONTRA-SE COM RAQUEL Depois disse Labão a Jacó: Acaso, por seres meu parente, irás servir-me de graça? Dize-me, qual será o teu salário? Ora Labão tinha duas filhas: Lia, a mais velha, e Raquel, a mais moça. Lia tinha olhos baços, porém Raquel era formosa de porte e de semblante. Jacó amava a Raquel, e disse: Sete anos te servirei por tua filha mais moça, Raquel. Respondeu Labão: Melhor é que eu te dê, em vez de dá- la a outro homem; fica, pois, comigo. Assim, por amor a Raquel, serviu Jacó sete anos; e estes lhe pareceram como poucos dias, pelo muito que a amava. Disse Jacó a Labão: Dá-me minha mulher, pois já venceu o prazo, para que me case com ela. Reuniu, pois, Labão todos os homens do lugar, e deu um banquete. À noite, conduziu a Lia, sua filha, e a entregou a Jacó. E coabitaram. (...) Ao amanhecer, viu que era Lia, por isso disse Jacó a Labão: Que é isso que me fizeste? Não te servi por amor a Raquel? Por que, pois, me enganaste? Respondeu Labão: Não se faz assim em nossa terra, dar-se a mais nova antes da primogênita. Decorrida a semana desta, d a r-te-emos também a outra, pelo trabalho de mais sete anos que ainda me servirás. Concordou Jacó, e se passou a semana desta; então Labão lhe deu por mulher Raquel, sua filha. (...) E coabitaram. Mas Jacó amava mais a Raquel do que a Lia; e continuou servindo a Labão por outros sete anos . (Gênesis, 29,15-30) SONETO 88 Sete anos de pastor Jacó servia Labão, pai de Raquel, serrana bela; Mas não servia ao pai, servia a ela, Que a ela só por prêmio pretendia. Os dias, na esperança de um só dia, Passava, contentando-se com vê-la; Porém o pai, usando de cautela, Em lugar de Raquel lhe dava Lia. Vendo o triste pastor que com enganos Lhe fora assi[m] negada a sua pastora, Como se a não tivera merecida, Começa de servir outros sete anos, Dizendo: -Mais servira, se não fora Pera tão longo amor tão curta a vida! O racionalismo é uma das características mais frequentes da literatura clássica portuguesa. A logicidade do quinhentista repercutiu no rigor formal de seus escritores, e no culto à expressão das "verdades eternas", sem que isto implicasse tolhimento da liberdade imaginativa e poética. Com base nestas observações, releia os dois texto s apresentados e: (ver texto) a) aponte um procedimento literário de Camões que comprove o rigor formal do classicismo; b) indique o dado da passagem bíblica que, por ter sido omitido por Camões, revela a prática da liberdade poética e confere maior carga sentimental ao seu modo de focalizar o mesmo episódio. Leia o seguinte soneto de Camões: Oh! Como se me alonga, de ano em ano, a peregrinação cansada minha. Como se encurta, e como ao fim caminha este meu breve e vão discurso humano. Vai-se gastando a idade e cresce o dano; perde-se-me um remédio, que inda tinha. Se por experiência se adivinha, qualquer grande esperança é grande engano. Corro após este bem que não se alcança;

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Page 1: Data: Professor: Ádino Disciplina: Literaturaº-ano.pdf2019/05/31  · Data: Turma: - 1 - 3 1/05 9 Professor: Ádino Disciplina: Literatura 1º Ano Tu, só tu, puro amor, com força

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Data: 31/05/19

Professor: Ádino Disciplina: Literatura

Turma: 1º Ano

Tu, só tu , puro amor, com força crua,

Que os corações humanos tanto obriga , Deste causa à molesta morte sua, Como se fora pérf ida in imiga. Se d izem, fero Amor, que a sede tua

Nem com lágrimas tristes se mitiga , É porque queres, áspero e tirano, Tuas aras banhar em sangue humano.

(Camões, Os Lusíadas - episódio de Inês de Castro) Molesta = lastimosa; funesta./Pérfida = desleal; traidora./Fero = feroz; sanguinário; cruel.

Mitiga = alivia; suaviza; aplaca./Ara = altar; mesa para sacrifícios religiosos. a) Considerando-se a forte presença da cultura da Antiguidade Clássica em Os Lusíadas, a que se pode referir o

vocábulo “Amor”, grafado com maiúscula, no 5º verso? b) Explique o verso “Tuas aras banhar em sangue humano”, relacionando-o à história de Inês de Castro.

Assinale a alternativa correta sobre Camões. a) Além de usar metros mais populares, utilizou-se da medida nova, especialmente nas redondilhas que recriam,

poeticamente, um quadro harmônico da vida e do mundo. b) O tema do desconcerto do mundo é um dos aspectos característicos de sua poesia, presente, por exemplo, nos sonetos de inspiração petrarquiana.

c). Introduziu o estilo cultista em Portugal, em 1580, explorando antíteses e paradoxos nos poemas de temática religiosa.

d) Autor mais representativo da poesia medieval portuguesa, produziu, além de sonetos satíricos, a obra épica Os lusíadas. e) Influenciado pelo Humanismo português, aderiu ao cânone clássico de composição poética, afastando-se, porém, das

inovações métricas e dos modelos greco-romano JACÓ ENCONTRA-SE COM RAQUEL

Depois d isse Labão a Jacó: Acaso, por seres meu parente, irás servir-me de graça? Dize-me, qual será o teu salário? Ora Labão tinha duas filhas: Lia, a mais velha, e Raquel, a mais moça. Lia tinha o lhos baços, porém Raquel era formosa de porte e de

semblante. Jacó amava a Raquel, e d isse: Sete anos te servirei por tua filha mais moça, Raquel. Respondeu Labão: Melhor é que eu te dê, em vez de dá-la a outro homem; f ica , po is, comigo.

Assim, por amor a Raquel, serviu Jacó sete anos; e estes lhe pareceram como poucos dias, pelo muito que a amava. Disse Jacó a Labão: Dá-me minha mulher, pois já venceu o prazo,

para que me case com ela. Reuniu, pois, Labão todos os homens do lugar, e deu um banquete. À noite, conduziu a Lia, sua filha, e a entregou a Jacó. E coabitaram. (...) Ao amanhecer, viu que era Lia, por isso disse Jacó a Labão: Que é isso que me fizeste?

Não te servi por amor a Raquel? Por que, pois, me enganaste? Respondeu Labão: Não se faz assim em nossa terra, dar-se a

mais nova antes da primogênita. Decorrida a semana desta,

dar-te-emos também a outra, pelo trabalho de mais sete anos que a inda me serv irás. Concordou Jacó, e se passou a semana desta; então Labão lhe deu por mulher Raquel, sua filha. (...) E coabitaram. Mas Jacó

amava mais a Raquel do que a Lia; e continuou servindo a Labão por outros sete anos .

(Gênesis, 29,15-30)

SONETO 88 Sete anos de pastor Jacó serv ia Labão, pai de Raquel, serrana bela;

Mas não serv ia ao pai, serv ia a ela, Que a ela só por prêmio pretendia. O s dias, na esperança de um só dia,

Passava, contentando -se com vê-la; Porém o pai, usando de cautela, Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos Lhe fora assi[m] negada a sua pastora, Como se a não tivera merec ida,

Começa de serv ir outros sete anos, Dizendo: -Mais serv ira, se não fora Pera tão longo amor tão curta a v ida!

O racionalismo é uma das características mais frequentes da literatura clássica portuguesa. A logicidade do quinhentista

repercutiu no rigor formal de seus escritores, e no culto à expressão das "verdades eternas", sem que isto implicasse tolhimento da liberdade imaginativa e poética. Com base nestas observações, releia os dois textos

apresentados e: (ver texto) a) aponte um procedimento literário de Camões que comprove o rigor formal do classicismo;

b) indique o dado da passagem bíblica que, por ter sido omitido por Camões, revela a prática da liberdade poética e confere maior carga sentimental ao seu modo de focalizar o mesmo episódio.

Leia o seguinte soneto de Camões: O h! Como se me alonga, de ano em ano, a peregrinação cansada minha.

Como se encurta, e como ao f im caminha este meu breve e vão discurso humano.

Vai-se gastando a idade e c resce o dano; perde-se-me um remédio, que inda tinha. Se por experiênc ia se adiv inha, qualquer grande esperança é grande engano.

Corro após este bem que não se alcança;

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no meio do caminho me falece, mil vezes caio, e perco a confiança.

Quando ele foge, eu tardo; e, na tardança, se os olhos ergo a ver se inda parece, da v ista se me perde e da esperança. a) Na primeira estrofe, há uma contraposição expressa pelos

verbos alongar e encurtar. A qual deles está associado o cansaço da vida e qual deles se associa à proximidade da morte? b) Por que se pode afirmar que existe também uma

contraposição no interior do primeiro verso da segunda estrofe? c) A que termo se refere o pronome “ele” da última estrofe?

Oh! Mald ito o primeiro que, no mundo, Nas ondas vela pôs em seco lenho! Digno da eterna pena do Profundo,

Se é justa a justa Lei que sigo e tenho! Nunca ju ízo a lgum, a lto e profundo, Nem cítara sonora ou v ivo engenho,

Te dê por isso fama nem memória , Mas contigo se acabe o nome e a g lória .

(Camões, Os Lusíadas)

a) Considerando este trecho da fala do velho do Restelo no contexto da obra a que pertence, explique os dois primeiros versos, esclarecendo o motivo da maldição que, neles, é lançada.

b) Nos quatro últimos versos, está implicada uma determinada concepção da função da arte. Identifique essa concepção, explicando-a brevemente.

Quando da bela v ista e doce riso , tomando estão meus o lhos mantimento ,(1) tão en levado sinto o pensamento

que me faz ver na terra o Para íso . Tanto do bem humano estou d iv iso , (2 ) que qua lquer outro bem ju lgo por vento ;

assi , que em caso ta l , segundo sento ,(3) assaz de pouco faz quem perde o siso .

Em vos louvar, Senhora , não me fundo,( 4 ) porque quem vossas cousas claro sente, sentirá que não pode merecê-las.

Que de tanta estranheza so is ao mundo, que não é d 'estranhar, Dama excelente, que quem vos fez, f izesse Céu e estrelas .

1 Tomando mantimento - tomando consciência/2 Estou diviso - estou separado, apartado. 3 Sento – sinto/4 Não me fundo - não me empenho./

a) Caracterize brevemente a concepção de mulher que este soneto apresentava. b) Aponte duas características desse soneto que o filiam ao Classicismo, explicando-as sucintamente.

(Fuvest-2002) Responda às seguintes questões sobre Os Lusíadas, de Camões: a) Identifique o narrador do episódio no qual está inserida a

fala do Velho do Restelo. b) Compare, resumidamente, os principais valores que esse narrador representa, no conjunto de Os Lusíadas, aos valores defendidos pelo Velho do Restelo, em sua fala.

Texto I Tanto d e meu estado me acho incerto que em v ivo ardor tremendo estou de frio ;

sem causa, juntamente choro e rio ; o mundo todo abarco e nada aperto . [ ...]

Se me pergunta a lguém por que assim ando, respondo que não sei; porém suspeito que só porque vos v i , minha Senhora . Camões Texto II

Metassoneto ou o computador irritado abba baab

cdc dcc [...] blablablablablablablablablablablablablablabla José Paulo Paes

Qual a relação possível de se estabelecer entre os textos? Alma minha genti l , que te partiste

Tão cedo desta v ida descontente, Repousa lá no céu eternamente E v iva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo , onde sub iste, Memória desta v ida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente

Que já nos o lhos meus tão puro v iste. E se v ires que pode merecer-te Alguma co isa a dor que me f icou

Da mágoa sem remédio de perder-te Roga a Deus, que teus anos encurtou,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te Quão cedo de meus o lhos te levou. (Lu ís Vaz de Camões) O que separa o poeta de sua amada e qual o desejo do eu lírico

expresso na última estrofe? No segundo verso, o adjetivo “descontente” pode qualificar

dois substantivos. Quais são eles? O tempo acaba o ano, o mês e a hora A força, a arte, a manha, a fortaleza;

O tempo acaba a fama e a riqueza O tempo o mesmo tempo de si chora; O tempo busca e acaba o onde mora

Qualquer ingratidão, qualquer dureza; Mas não pode acabar minha tristeza

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Enquanto não quiserdes vós, Senhora. O tempo o claro dia torna escuro,

E o mais ledo prazer em choro triste; O tempo, a tempestade em grã bonança Mas de abrandar o tempo estou seguro

O peito de diamante, onde consiste A pena e o prazer desta esperança Sabendo que o Maneirismo é considerado a transição entre o Classicismo e o Barroco, uma vez que já apresenta constantes

jogos de oposição de ideias, pode-se dizer que este soneto já apresenta características maneiristas? Justifique sua resposta.

Qual a ideia de amor apresentada pelo poema, que é também uma constante nos poemas líricos de Camões? SONETO 45

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda -se o ser, muda -se a confiança; Todo o Mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qua lidades. Continuamente vemos nov idades, Diferentes em tudo da esperança;

Do mal f icam as mágoas na lembrança, E do bem (se a lgum houve...) as saudades. O tempo cobre o chão de verde manto ,

Que já coberto fo i de neve fria , E em mi[m] converte em choro o doce canto ,

E, a fora este mudar-se cada d ia , Outra mudança faz de mor espanto: Que não se muda já , como so ía*.

Busque Amor novas artes, novo engenho, Para matar-me, e novas esqu ivanças; Que não pode tirar-me as esperanças, Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olha i de que esperanças me mantenho! Vede que perigosas seguranças!

Que não temo contrastes nem mudanças, Andando em bravo mar, perd ido o lenho. Mas, conquanto não pode haver desgosto

Onde esperança fa lta , lá me esconde Amor um mal, que me mata e não se vê;

Que d ias há que na a lma me tem posto Um não sei quê, que nasce não sei onde, Vem não sei como, e dó i não sei por quê.

“Ao desconcerto do Mundo”

O s bons v i sempre passar

no mundo grandes tormentos:

e para mais me espantar,

os maus v i sempre nadar

em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim

o bem tão mal ordenado,

fui mau, mas fui castigado:

assim que, só para mim,

anda o Mundo concertado.

001 Enquanto quis Fortuna que tivesse

esperança de algum contentamento, o gosto de um suave pensamento me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse minha escritura a a lgum juízo isento, escureceu-me o engenho co tormento,

para que seus enganos não dissesse. Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos

a diversas vontades! Quando lerdes num breve l ivro casos tão diversos, verdades puras são, e não defeitos...

E sabei que, segundo o amor tiverdes, tereis o entendimento de meus versos! BRÁS, BEX IGA E BARRA FUNDA

Antôn io de Alcântara Machado Antônio Castilho de Alcântara Machado d'Oliveira nasceu

em 25 de maio de 1901, em São Paulo. Sua família era representante da aristocracia da terra e orgulhosa de exibir em sua linhagem políticos e letrados. De uma frase de seu pai, membro da Academia Brasileira de Letras, teria sido cunhada

a expressão "paulista de quatrocentos anos", até hoje empregada como epíteto enaltecedor da condição de verdadeira brasilidade. Acompanhando a tradição familiar, Alcântara Machado cursou a Faculdade de Direito de São

Paulo, iniciando nesse período, como crítico de literatura, teatro e música, uma intensa atividade jornalística, que nunca abandonaria. Além de colaborador de diversos jornais e

revistas, dirigiu várias publicações ligadas ao Modernismo, todas de vida breve, como Terra Roxa e Outras Terras (1926), Revista de Antropofagia (1928), Revista Nova (193 1), atuando ao lado de escritores que ajudara a vaiar, no Teatro Municipal,

durante a Semana de Arte Moderna de 22. O motivo dessa mudança de atitude talvez se explique na viagem de quase oito meses feita à Europa do pós-guerra, em

1925, durante a qual Alcântara Machado pôde observar com outros olhos o Brasil de sua geração, como registrou numa crônica. Os episódios dessa viagem, publicados no jornal do Comércio, compuseram seu primeiro livro: Pathé-Baby,

Panoramas Internacionais, editado em 1926, com prefácio telegráfico de Oswald de Andrade. Brás, Bexiga e Barra Funda (1927) foi seu segundo livro publicado. No ano seguinte,

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lançou Laranja da China, coletânea cujo título foi extraído de uma paródia dos acordes da introdução do Hino Nacional ( "Laranja da China, Laranja da China, Laranja da China/

Abacate, cambucá e tangerina, conforme o poema 0 Amador, de Mário de Andrade. Nesse período, dirigiu a "Primeira Dentição' da Revista de Antropofagia até se desligar, junto com Mário de Andrade, para formar a "corrente brilhante, a

que vivia nos salões da burguesia paulista e que o milionarismo displicente de Antônio de Alcântara Machado encarnoti, no dizer de Oswald de Andrade, que o acusou de desperdiçar sua "sensibilidade e talento para compreender os

tempos novos" na "suave ilusão de que a Antropofagia era uma piada'. Em 1929, Alcântara Machado publicou sua última obra em

vida: uma monografia premiada pela Sociedade Capistrano de Abreu, Anchieta na Capitania de São Vicente, que forneceu mais munição para os antropófagos radicais o ridicularizarem, desta vez por acreditar "em carpintaria teatral, no padre

Anchieta e no monstrengo (sic) mental que foi Capistrano de Abreu. Pior: Convencido que está tendo influência na prosa brasileira!". Concluído o processo de combate ao passadismo,

que impunha a necessidade de detonar o vício da verbosidade, da eloquência vazia, Alcântara Machado distanciou-se dos modismos que marcaram a fase heroica do Modernismo. Mana Maria (romance inacabado) e Vários

Contos, publicações póstumas (1936), atestam a busca de maior penetração psicológica e uma linguagem mais segura e equilibrada, livre da insistência em certos recursos estilísticos e truques do "fazer moderno". Seus "textos de circunstância',

publicados em jornais e revistas sob o título Cavaquinho e Saxofone (1940), muito esclarecem a respeito de seus pontos de vista sobre as artes, a mentalidade e a política da época,

assim como denunciam a extrema vivacidade e inquietação que, se o levaram a criticar a "barreira de ignorância e de mesmice, de tradição e de pieguice que parecia invencível" na cultura brasileira (o "me-ufanismo' e as "potocas românticas') ,

levaram-no também a incursionar por diferentes gêneros sem se aprofundar em nenhum. Após mais uma longa viagem à Europa (de outubro de 1929 a junho de 1930), envolveu-se também na política, atuando a

favor da Revolução Constitucionalista. de 1932 por meio de um inovador trabalho na Rádio Record. Em 1933, transferiu-se para o Rio de janeiro e lá se elegeu, no ano

seguinte, deputado federal por São Paulo, na Assembleia Nacional Constituinte. Não chegou a assumir o cargo: morreu de repente, aos 34 anos, vítima de uma apendicite diagnosticada tardiamente. Portanto, o amadurecimento

estilístico que começava a se processar não ocorreu. Com isso, Alcântara Machado aparece nos manuais de literatura brasileira, quase sempre, como uma promessa não cumprida

nos rumos da ficção. Assimilou as inovações criadas na prosa, sobretudo por Oswald de Andrade, atenuando-as num estilo mais Palatável, sem ter tido tempo para burilá-lo. Publicado em 1927, o livro reúne histórias que falam da vida

dos imigrantes italianos nos bairros operários da cidade de São Paulo, nas primeiras décadas do século XX. Alcântara. Machado foi um escritor eminentemente paulistano. Com uma capacidade inigualável de captar

detalhes do cotidiano e dono de uma linguagem jornalística, uma das características de sua obra, descobriu o Brasil por

meio de aspectos fugazes do dia-a dia da cidade de São Paulo. Brás, Bexiga e Barra Funda - Notícias de São Paulo compõe-se de onze historietas que vêm sendo publicadas, desde 1961,

junto com as de Laranja da China sob o título Novelas Paulistanas. São elas: 1-Gaetaninho- 2 Carmela- 3. Tiro de Guerra nº 35- 4. Amor e Sangue- 5 A So ciedade- 6. Lisetta- 7. Corínthias(2) vs. Palestra

(1 ) 8. Notas Biográficas do Novo Deputado. 9. O Monstro de Rodas. 10. Armazém Progresso de São Paulo 11. Naciona lidade. Há nessa obra um “Artigo de fundo” que as antecipa:

Vejamos: ARTIGO DE FUNDO

Assim como quem nasce homem de bem deve ter a fronte altiva, quem nasce jornal deve ter artigo de fundo. A fachada explica o resto. Este livro não nasceu livro: nasceu jornal. Estes contos não

nasceram contos: nasceram notícias. E este prefácio, portanto também não nasceu prefácio: nasceu artigo de fundo.

Brás, Bexiga e Barra Funda é o órgão dos ítalo-

brasileiros de São Paulo. Durante muito tempo a nacionalidade viveu da mescla de três raças que os poetas xingaram de tristes: as três raças tristes.

A primeira, as caravelas descobridoras encontraram aqui comendo gente, e desdenhosa de mostrar suas vergonhas. A segunda veio nas caravelas. Logo os machos sacudidos desta se enamoraram das moças bem gentis daquela, que tinham

cabelos mui pretos, compridos pelas espádoas. E nasceram os primeiros mamalucos. A terceira veio nos porões dos navios negreiros trabalhar o

solo e servir a gente. Trazendo outras moças gentis, mucamas, mucambas, mumbandas, macumas. E nasceram os segundos mamalucos. E os mamalucos das duas fornadas deram o empurrão inicial

no Brasil. 0 colosso começou a rolar. Então os transatlânticos trouxeram da Europa outras

raças aventureiras. Entre elas uma alegre que pisou na terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela

planta também imigrante que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira.

Do consórcio da gente imigrante com o ambiente, do consórcio da gente imigrante com a indígena nasceram os novos mamalucos. Nasceram os intalianinhos.

0 Gaetaninho. A Carmela. Brasileiros e paulistas. Até bandeirantes.

E o colosso continuou rolando. No começo a arrogância indígena perguntou meio zangada: Carcamano pé-de-chumbo

Calcanhar de frigideira Quem te deu a confiança De casar com brasileira? 0 pé-de-chumbo poderia responder tirando o cachimbo da

boca e cuspindo de lado: A brasileira, per Bacco!

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Mas não disse nada. Adaptou-se. Trabalhou. Integrou-se. Prosperou. E o negro violeiro cantou assim:

Italiano grita Brasileiro fala Viva o Brasil E a bandeira da Itália!

BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA, como membro da livre imprensa que é, tenta fixar tão-somente a alguns aspectos da vida trabalhadeira, íntima e quotidiana desses novos mestiços

nacionais e nacionalistas. É um jornal. Mais nada. Notícia. Só. Não tem partido nem ideal.. Não comenta. Não discute. Não aprofunda.

Principalmente não aprofunda. Em suas colunas não se encontra uma única linha de doutrina. Tudo são fatos diversos. Acontecimentos de crônica urbana. Episódios de rua. O aspecto étnico-social dessa novíssima raça de gigantes

encontrará amanhã o seu historiador. E será então analisado e pesado num livro BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA não é um livro.

Inscrevendo em sua coluna de honra os nomes de

alguns ítalo-brasileiros ilustres este jornal rende uma homenagem à força e às virtudes da nova fornada mamaluca

São nomes de literatos, jornalistas cientistas, políticos, esportistas, artistas e industriais. Todos eles figuram entre os que impulsionam e nobilitam neste momento a vida espiritual e material de São Paulo.

BRÁS, BEXIGA E BARRA FUNDA não é uma sátira. A REDAÇÃO Nesse artigo de fundo já se encontra várias características do

estilo do autor que veremos detalhadamente a partir de agora. 1 “Alcântara Machado- escritor adotou a linguagem jornalística em sua obra.” De que forma o artigo de fundo

acima prova essa afirmação? 2 De que forma a apresentação da formação do povo brasileiro, nesse texto, se difere da noção tradicional que a História nos proporciona?

3 Por que além da designação de “conto” para essas narrativas eu poderia usar também a designação de crônicas? Justifique a partir do texto.

O título da obra que faz referência a alguns bairros paulistanos pobres, industriais, nos quais os imigrantes italianos se instalaram. Isso acaba por nos mostrar uma

temática comum das histórias e para o tipo de abordagem pretendida por Alcântara Machado. 4 comente a partir do que é expresso no texto “artigo de

fundo” qual seria a abordagem e a temática usada. Nos primeiros anos do século XX, a cidade de São Paulo se via invadida pelos "novos “mamalucos " “italianinhos",

"carcamanos”, ou seja, os italianos em busca de integração e ascensão social. Na década de 1910, eles detinham o maior número de imóveis da zona urbana. Mas na lista de proprietários de imóveis de grande valor eles ocupavam

apenas o oitavo lugar. Isso significa que eram muitos, porém pobres. Atento a isso, Oswald de Andrade fora o pioneiro a

escrever uma crônica de imigração na imprensa paulistana imitando o dialeto ítalo-paulista, o “português "macarrônico". Suas crônicas eram publicadas no periódico humorístico 0

Pirralho. Tanto Alcântara Machado quanto Oswald de Andrade recorreram à paródia, transcrevendo a mistura de calabrês, napolitano e vêneto, na verdade, um novo dialeto, inexistente

na Itália, com o português falado pela população mestiça e negra e pelo caipira. A idéia de usar paródia, adotada pelos dois autores, funcionava como uma espécie de ''máscara' que servia para veicular as opiniões políticas da elite. Alcântara

Machado inclui na linguagem coloquial de suas personagens vocábulos e estruturas de frase da língua italiana Nessa escrita que misturava vários dialetos Oswald de

Andrade fora sucedido por Alexandre Marcondes Machado, que utilizava o pseudônimo Juó Bananere. Alexandre Marcondes foi um poeta paulista que escrevia no patois falado pela colônia italiana do Brás da Bela Vista, do Bom

Retiro e outros cantos da cidade de São Paulo, de 1920, para o periódico 0 Pirralho. Trecho 01

“Conforme aparlê, o Semanigno, aquillo bandito celebro que pregô a faca na rnáia, fui prendido, interrogadimo butado incomunicabile inda a sulitara. Segondaferra o garçeriere fui lá buscá illo pr'a apurtá pr'u

gabinetto di dentificaçó. Pensa che filo stava lá? Una ova!! Fugi chi né uni rojò." (de "Grime rroroso", um dos "Crimos celebros" relatados por Juó Bananere em La Divina Increnca, de 1924).

Trecho 02 “ Embatucou. Tinha qualquer cousa. Tirou o charuto da boca, ficou olhando para a ponta acesa. Deu um balanço no corpo.

Decidiu-se. - Ia dimenticando de dizer. 0 meu filho fará o gerente da sociedade sob a minha direção, si capisce. - Sei, sei. 0 seu filho?

- Si. 0 Adriano. 0 doutor... mi pare... mi pare que conhece ele?" (do conto "A Sociedade", de Brás, Bexiga e Barra Funda, de Alcântara. Machado). “Pela sutileza da ironia, o efeito cômico obtido por Alcântara

Machado ressalta, por contraste, o caráter de documento e c rítica social das histórias, o riso mal mascarando para revelar grande dose de piedade.”

Embora o autor afirme que a obra não é uma sátira, há quem veja, por trás da intenção de fixar o ambiente urbano dos pobres, um elitismo incontornável no lugar da busca de componentes anedóticos da realidade. É como se o autor não

pudesse abandonar o “vasto vício de origem” sua condição de aristocrata, limitando-se aolhar de fora, ou de cima, com uma simpatia irmã do paternalismo

Os ítalo-paulistas de suas relações, aos quais a obra é dedicada, são todos famosos e/ou ricos, não barbeiros ou costureirinhas. Encabeça a lista o nome de Lemmo Lemmi (188411926), popularizado pelo pseudônimo Voltolino,

grande ilustrador e caricaturista politicamente engajado, criador da imagem de Juó Bananere: e de inúmeros outros tipos "da colônia cuja situação real procurava retratar, contra as informações oficiais, convenientemente maquiladas, os

imigrantes.

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As histórias de Brás, Bexiga e Barra Funda são narradas em terceira pessoa, ora por um narrador observador, que anota suas impressões a uma certa distância, como se fora fotógrafo

de situações, ora por um narrador onisciente, que penetra superficialmente no íntimo das personagens. Além das falas em italiano puro ("Evviva il campionissimo!") e daquelas em português "macarrônico" ("scusi, senhora.

Desculpe por favor. A senhora sabe, essas crianças são muito levadas. Scusi. Desculpe."), o autor explora outros recursos, como o uso de tipos em caixa-alta (em letras maiúsculas), que sugerem um aumento no volume da voz da personagem:

"... da Independência o brado re-TUMBAN-te!"; "Solt'o rojão! Fiu! Rebent'a bomba! Pum! CO RINTHIANS!".

Outro recurso é a separação de sílabas, reproduzindo assim o ritmo do discurso: - "CA-VA-LO!"; "Eu que ... ro, o ur .. so! 0 ur ... so!". E um terceiro: o uso de parênteses, indicando o berro

distante: - "(Spegni la luce! Subito! Mi vuole proprio rovinare questa

principessa!)".

0 narrador não privilegia a norma culta: o discurso em tom coloquial, natural, conciso demostra a grande contribuição do Modernismo na briga contra a prolixidade exagerada,

"bacharelesca” outrora valorizada na literatura brasileira. Alcântara Machado tem perfeita noção do ritmo e colorido da linguagem oral. É possível apreciar sua expressividade de

contador de casos nestas passagens do conto "Carmela” “ E - ráatá - uma cusparada daquelas."; "No degrau de cimento ao lado da mulher de Giuseppe Santini torcendo a

belezinha do queixo cospe e cachimba cachimba e cospe.” No mesmo conto, há passagens em que o narrador onisciente formula o discurso indireto em frases curtas: “0 caixa d'óculos não se zanga. Nem se atrapalha. É um

traquejado."; "Depois que os seus olhos cheios de estrabismo e despeito vêem a lanterninha traseira do Buick desaparecer, Bianca resolve dar um giro pelo bairro, Imaginando cousas. Roendo as unhas. Nervosíssima”

0 texto traz apenas o necessário para produzir impressões, d isseminando-se os dados do ambiente nas entrelinhas dos enredos, o que confere às frases um co lorido especial e evita

d igressões d iscursivas que quebrariam seu ritmo 0 narrador vale-se também do discurso indireto livre, modulando sua expressão, ao apropriar-se das frases das personagens, com entonação própria, obtida do vocabulário

e da construção: “Percorre logo as figuras. Umas tetéias. A da capa então é linda mesmo. No fundo o imponente castelo.( ... ) E

atravessada no cachaço do g inete a formosa donzela desmaiada entregando ao vento os cabelos cor de carambola”

Nas várias figuras de discurso utilizadas por Alcântara Machado, citadas anteriormente, nota-se a brevidade e

fragmentação da linguagem coloquial, inclusive pelo uso do presente do indicativo. A correspondência entre o tempo da enunciação e o do enunciado faz com que o leitor perceba os, fatos como se eles estivessem ocorrendo no momento da

leitura.

Todas as histórias se passam no espaço urbano de São Paulo, em particular nos bairros que figuram no título da obra, embora não faltem citações sobre pontos então considerados

"nobres" - como as avenidas Angélica, Higienópolis, Paulista, ou centrais, Rua Barão de Itapetininga ou o Largo Santa Cecília. Com exceção do conto "Lisetta”, todos os demais contêm indicações sobre logradouros, acompanhadas às

vezes do número da casa ou da loja. 0 conto "Carmela” é o que traz mais citações desse tipo, umas dez.

As descrições acerca do espaço físico em que as histórias se passam são raras: cita-se aqui uma "rua suja de negras e

cascas de amendoim (mostra de racismo tributável ao narrador?); ali se comenta que "as bananas na porta da QUITANDA TRIPOLI ITALIANA eram de ouro por causa do sol"

e que "não adiantava nada que o céu estivesse azul porque a alma de Nicolino estava negra acolá se registra a imagem dos "bondes formando cordão", apinhados, com "gente no estribo. E gente na coberta. E gente nas plataformas. E gente

do lado da entrevia.” São especialmente expressivas as onomatopeias:

"dlin-dlin~' (sineta de escola), ,_ uiiiiia - uiiiiia (buzina de

automóvel), "- prrrii!" (apito de juiz de futebol), "pan!" (cobrança de pênalti), "a vaia do saxofone: turururu tuiururum!". 0 efeito, embora pueril, casa bem com a evidente intenção do autor de alcançar a máxima síntese pelo

recurso a elipses, justaposições e metonímias; de plasticidade notável. Os ambientes interiores, raros, são mobiliados com simplicidade: vê-se no quarto de Carmela o mesmo tipo de

caminha de ferro em que dorme o filho de Dona Bianca e Natale, no quarto dos pais, enfeitado por uma imagem de "Santo Antonio di Padova col Gesú Bambino bem no meio da

parede amarela'. No quarto de coronel Juca e de Dona Nequinha também se vê um santo, só que São José, numa redoma; o luxo de despertador e criado-mudo é prerrogativa dos donos da fazenda de café.

0 tempo cronológico da maioria dos contos é bastante breve. Os fatos concentram-se em horas, dias ou semanas, em razão dos próprios enredos. Em "0 Monstro de Rodas", o relato não ultrapassa o período compreendido entre o velório

e o enterro de uma criança; em "Coríntians (2) vs. Palmeiras (1 )", o enredo inicia-se em plena partida de futebol para encerrar-se no momento das comemorações da torcida

vitoriosa. Em "Amor e Sangue” Nicolino passa por Grazia sem a ver, um dia; em outro a aborda quando "As fábricas apitavam' e, por fim, quando mais uma vez “As fábricas apitavam” mata-a com uma punhalada. No conto “Carmela”

em um fim de tarde a protagonista é convidada para um passeio de carro; no dia seguinte o realiza, levando junto a amiga Bianca; no Domingo posterior, passeia de novo, desta

vez sem a acompanhante.

AMOR E SANGUE Sua impressão: a rua é que andava, não ele. Passou

entre o verdureiro de grandes bigodes e a mulher de cabelo despenteado.

- Vá roubar no inferno, Seu Corrado! Vá sofrer no inferno, Seu Nicolino! Foi o que ele ouviu de

si mesmo. - Pronto! Fica por quatrocentão.

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- Mas é tomate podre, Seu Corrado! Ia indo na manhã. A professora pública estranhou

aquele ar tão triste. As bananas na porta da QUITANDA

TRIPOLI ITALIANA eram de ouro por causa do sol. 0 Ford derrapou, maxixou, continuou bamboleando. E as chaminés das fábricas apitavam na Rua Brigadeiro Machado.

Não adiantava nada que o céu estivesse azul porque a

alma de Nicolino estava negra. - -Ei, Nicolino! NICOLINO! - Que é?

- Você está ficando surdo, rapaz! A Grazia passou agorinha - Des-gra-ça-da! - Deixa de fita. Você joga amanhã contra o Esmeralda?

- Não sei ainda. - Não sabe? Deixa de fita, rapaz! Você... - Ciao. - Veja lá, hein! Não vá tirar o corpo na hora. Você é a garantia

da defesa. A desgraçada já havia passado.

Ao BARBEIRO SUBMARINO. BARBA: 300 RÉIS. CABELO RÉIS. SERVIÇO GARANTIDO.

-Bom dia! Nicolino Fior d'Amore nem deu resposta. Foi entrando,

tirando o paletó, enfiando outro branco, se sentando no fundo à espera dos fregueses. Sem dar confiança. Também Seu Salvador nem ligou.

A navalha ia e vinha no couro esticado.

- São Paulo corre hoje! É o cem contos! 0 Temístocles da Prefeitura entrou sem colarinho. - Vamos ver essa barba muito bem feita! Ai, ai! Calor pra

burro. Você leu no ESTADO o crime de ontem, Salvador? Banditismo indecente.

- Mas parece que o moço tinha razão de matar a moça. - Qual tinha razão nada, seu! Bandido! Drama de amor

cousa nenhuma. E amanhã está solto. Privações de sentidos. Júri indecente, meu Deus do céu! Salvador, Salvador... - cuidado aí que tem uma espinha- ... este país está perdido!

- Todos dizem. Nicolino fingia que não estava escutando. E assobiava a SCUGNIZZA.

As fábricas apitavam. Quando Grazia deu com ele na calçada abaixou a cabeça e atravessou a rua.

- Espera aí, sua fingida. - Não quero mais falar com você. - Não faça mais assim pra mim, Grazia. Deixa que eu vá com

você. Estou ficando louco, Grazia. Escuta. Olha, Grazia! Grazia! Se você não falar mais comigo eu me mato mesmo. Escuta. Fala alguma cousa por favor. - Me deixa! Pensa que eu sou aquela fedida da Rua Cruz

Branca? - 0 quê? - É isso mesmo. E foi almoçar correndo. Nicolino apertou o fura-bolos entre os dentes.

As fábricas apitavam. Grazia ria com a Rosa. - Meu irmão foi e deu uma bruta surra na cara dele.

- Bem feito! Você é uma danada, Rosa. Xi!... Nicolino deu um pulo monstro. - Você não quer mesmo mais falar comigo, sua desgraçada? - Desista!

- Mas você me paga, sua desgraçada! - NÃ-Ã-o! A punhalada derrubou-a. - Pega! PEGA! PEGA!

- Eu matei ela porque estava louco, Seu Delegado! - Todos os jornais registraram essa frase que foi dita chorando.

Eu estava louco, Seu Delegado! Bis Matei por isso,

Sou um desgraçado!

0 estribilho do assassinato por amor (Canção da

atualidade para ser cantada com a música do "FUBÁ", letra, de Spartaco Novais; Panini) causou furor na zona.

Parece prioritário para Alcântara Machado sublinhar a contemporaneidade dos textos, tornando-os documentos de época por meio da menção frequente a marcas de produtos, músicas, periódicos ou a estabelecimentos comerciais e de

lazer. Nessa menção do autor a produtos e locais, os veículos,

bondes, automóveis, coches, identificados pela marca, são

especialmente importantes, como motivos desencadeadores de conflito (em "Gaetaninho" e "0 Monstro de Rodas"), como elementos caracterizadores de poder econômico ("A Sociedade" e "Carmela") ou de espaços (em "Lisetta” e trecho

de "Coríntians (2 ) vs. Palestra (1 )", o caráter coletivo é intensificador do conflito central. No conto "Tiro de Guerra no 35", vários dados se atrelam ao bonde: a condição econômica do protagonista, um cobrador, o espaço da cidade, a linha do

bonde, um dado concreto da cultura popular, a ausência do cobrador no bonde inspira a seção de fofocas amorosas da revista “A Cigarra”, o nacionalismo jacobino, o cobrador deixa

o emprego na companhia cujo nome homenageava o escritor italiano Gabrielle d'Annunzio para trabalhar numa similar que homenageava Rui Barbosa. 0 quadro de agitação da metrópole não ficaria completo sem essas referências às

máquinas, índices do progresso, palavra-chave na década de 1920.

0 excesso de referências desse tipo, útil às intenções

documentais, torna-se um dos fatores do anacronismo dos textos, que se tornaram crônicas urbanas

Alguns estudiosos apreciadores das crônicas de Alcântara Machado mencionam a falta de profundidade psicológica de

suas personagens nesta obra "inaugural" de sua ficção. Segundo esses comentários, o autor limitou-se à criação de tipos, operando generalizações superficiais,

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A obra de Antônio de Alcântara Machado, ainda que inconclusa em virtude de sua morte prematura, ilustra adequadamente o fenômeno geracional do Modernismo em

São Paulo, preocupada com os problemas e costumes da cidade grande:1 - É eminentemente paulistana, tendo como núcleo temático aspectos do "presente" histórico. 2 - Revela uma posição política e cultural antipassadista, 3 - 0 autor,

ligado por relações pessoais ao grupo de escritores da "fase heróica" do movimento, participou decididamente do processo de renovação artística que, singularmente, se iniciou em São Paulo.

Mas importa ainda, para que se possa ter ideia do universo que Antônio de Alcântara Machado fixou, situá-lo no quadro, sociológico da grande dicotomia do Modernismo

Antônio de Alcântara Machado, por sua vez, traça no prefácio de Brás, Bexiga e Barra Funda o quadro da formação brasileira ligada a três correntes, imigratórias: a do português, a do negro e finalmente a dos italianos,

espanhóis, sírio-libaneses, etc. A última corresponde à fase de sua realidade histórica "presente":

Posto assim o problema, em sermos de visão sociológica, o

universo histórico e ficcional de Antônio de Alcântara Machado surge perfeitamente delineado. 0 motivo desse universo é a imigração, correlata ao fenômeno da mobilidade social e espacial. Tematicamente a Imigração se insere como

algo novo na ficção brasileira e constitui inegável conquista do Modernismo. A característica predominante de paulistanidade da obra de Antônio de Alcântara Machado encontra aqui plena

justificativa. Dentre os autores que descreveram o fenômeno, através da arte narrativa, foi o nosso autor que soube com maior propriedade documentar o drama da imigração. A par

do fascínio do tema, Antônio de Alcântara Machado indica o tratamento que lhe deve ser dado, como de fato procurou dar-lhe, na medida em que a ficção pode ser objetiva, isto é, em que se pode limitar a natural subjetivação individual do

fenômeno tratado: Sua posição em Brás, Bexiga e Barra Funda é a de um

observador colocado "fora" do espetáculo e a forma de tratamento do tema o documentário - documentário

urbano-social, com preocupações realistas de reprodução fidedigna, ou pelo menos verossímil da realidade, de maneira a emprestar às narrativas indiscutível caráter de

autenticidade. Nos contos da década de 20, o nosso autor alcança os dois grandes movimentos fundamentais da orquestração social paulista: a mobilidade ascendente do imigrante e a descen-

dente dos estratos médios da sociedade tradicional. 0 pro-blema é posto em termos de conflito e acomodação. Os contos "Armazém Progresso de São Paulo" e "Sociedade"

documentam, respectivamente, o fenômeno social. No primeiro conto cujo título se liga ao texto como síntese irônica dos métodos do "progresso" paulista, Natale e sua mulher Bianca Pienotto, proprietários de um armazém no Bexiga

(com jogo de bocce e serviço de restaurante nos fundos), preparam um "golpezinho" por conta da alta da cebola , com a colaboração indispensável de José Esperidião, mulato da Comissão de Abastecimento. 0 "negócio" é acertado

sem-cerimoniosamente, jogando cada qual com astúcia, ambição e servilismo. 0 flash apanha o diálogo ao meio:

“- Mais um copo, Seu Doutor.(...) até - Diga se eu tenho cara de trouxa!”

No final do conto, o objetivo social do casal de imigrantes

define-se através das aspirações de Bianca relacionadas com a criança que dorme (com a perna toda cheia de feridas). Estabelece-se, assim, o nexo entre o menino (compensação e transferência) e o palacete da Avenida Paulista (visão de um

símbolo de prestígio social). Sociologicamente, a observação. implícita do autor parece

perfeita. A mobilidade social ascendente não importa apenas na passagem de uma posição para outra dentro da sociedade,

mediante a conquista exclusiva de prestígio econômico. Os segmentos sociais distanciam-se também pela diferenciação cultural: linguagem, estilo de vida, gosto, símbolos prestígio,

etc. E não é fácil numa só geração conquistar-se prestígio econômico e cultural simultaneamente. 0 prestígio cultural é, no geral, alcançado mais tarde. A integração definitiva da família Pienotto em nova posição social só será realizada com

a geração do menino que dorme naquele momento na caminha de ferro com a boca aberta e a perna feridenta .

Em "Soc iedade", o título conota o sentido de aculturação

do neomundanismo paulista. A narrativa se inicia com uma explosão teatral da mãe de Teresa Rita, delatando a um só tempo os últimos resquícios de resistência e realidade da decadência da família

tradicional: “ Filha minha não casa com filho de carcamano! A esposa do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda disse isso e foi brigar com o italiano das batatas. “

0 epíteto "carcamano" é usado como depreciativo de imigrante italiano, não bastasse a conotação socialmente inferiorizante da palavra imigrante.

0 fenômeno da mobilidade social descendente da família tradicional e ascendente dos novos "mamalucos" surge, ini-cialmente, mencionado através do confronto de vestuário, a estabelecer duas épocas, e do "Lancia Lambda", símbolo mo-

torizado de recente aquisição de prestígio econômico. Em oposição ao vestuário passadista do Conselheiro José Bonifácio de Matos e Arruda (o nome é elemento de caracterização social), Adriano Melli procurava afirmar-se

mediante a vestimenta meticulosa, superfetada, denunciando já pela cor do carro e modelo, pelas luvas e chapéu, sua condição de novo-rico. De relance, o autor

classifica o comportamento de um estrato social. Frente a frente estão dois universos em véspera de fusão,. mas ainda separados por longa distância. 0 título de conselheiro confronta-se com o de Cav. Uff., que o imigrante

Salvador Melli jamais poderia ostentar em sua terra de origem, e que adquirido no Brasil denuncia a sua nova posição social de homem rico. Usa ainda a "bigodeira" dos primeiros

imigrantes das charges de Voltolino e o seu discurso, nos momentos mais significativos, remete à língua de origem. 0 conselheiro possui terrenos herdados e o Cav. Uff. construiu ele mesmo ("o capital sono io") o patrimômio que, enunciado

em algarismos, enfatiza sua importância. Todavia, não está seguro ainda de sua nova posição social, de onde o tratamento humilde de "doutor". Mas, cabe-lhe falar a linguagem convincente da "verdade" econômica, plenamente

a par com a ética da nascente grandeza econômica de São Paulo. E os seus argumentos de antemão estão vitoriosos, já

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que revelam nas suas implicitações a realidade de novo contexto econômico e social, em que o trabalho substitui como símbolo de valor (com sua carga valorativa das

ocupações manuais) os hábitos ociosos das velhas classes e responde em boa parte pela mobilidade social, baseada no acúmulo de riqueza.

LISETTA Quando Lisetta subiu no bonde (o condutor ajudou) viu logo o urso. Felpudo, felpudo, E amarelo. Tão engraçadinho. Dona Mariana sentou-se, colocou a filha em pé diante dela.

Lisetta começou a namorar o bicho. Pôs o pirulito de abacaxi na boca. Pôs mas não chupou. Olhava o urso. 0 urso não ligava. Seus olhinhos de vidro não diziam absolutamente

nada. No colo da menina de pulseira de ouro e meias de seda parecia um urso importante e feliz. - Olha o ursinho que lindo, mamãe! - Stai zitta!

A menina rica viu o enlevo e a inveja da Lisetta. E deu de brincar com o urso. Mexeu-lhe com o toquinho do rabo: e a cabeça do bicho virou para a esquerda, depois para a direita,

olhou para cima, depois para baixo. Lisetta acompanhava a manobra. Sorrindo fascinada. E com um ardor nos olhos! 0 pirulito perdeu definitivamente toda a importância. Agora são as pernas que sobem e descem, cumprimentam,

se cruzam, batem umas nas outras. - As patas também mexem, mamãe. Olha lá! - Stai ferma! Lisetta sentia um desejo louco de tocar no ursinho. Jeito-

samente procurou alcançá-lo. A menina rica percebeu, encarou a coitada com raiva, fez uma careta horrível e apertou contra o peito o bichinho que custara cinqüenta mil

réis na Casa São Nicolau. -Deixa pegar um pouquinho, um pouquinho só nele, deixa? - Ah! - Scusi, senhora. Desculpe por favor. A senhora sabe, essas

crianças são muito levadas. Scusi. Desculpe. A mãe da menina rica não respondeu. Ajeitou o chapeuzinho da filha, sorriu para o bicho, fez uma carícia na cabeça dele, abriu a bolsa e olhou o espelho.

Dona Mariana, escarlate de vergonha, murmurou no ouvido da filha; - In casa me lo pagherai!

E pespegou por conta um beliscão no bracinho magro. Um beliscão daqueles. Lisetta então perdeu toda a compostura de uma vez. chorou. Soluçou. Chorou. Soluçou. Falando sempre.

- Ahn! Ahn! Ahn! Ahn! Eu que ... ro o ur ... so! 0 ur ... so! Ai, mamãe! Ai, mamãe! Eu que ... roo... o... o... Ahn! Ahn! - Stai ferma o ti amazzo parola d'onore!

- Um pou ... qui ... nho só! Ahn! E... ahn! E... ahn! E...hã! Um pou ... qui... - Senti, Lisetta. Non ti porteró piú in cittá! Mai piú! Um escândalo. E logo no banco da frente. O bonde inteiro

testemunhou o feio que Lisetta fez. O urso recomeçou a mexer a cabeça. Da esquerda para a direita, para cima e para baixo.

- Non piangere piú adesso! Impossível.

0 urso lá se fora nos braços da dona. E a dona só de má antes de entrar no palacete estilo empreiteiro português voltou-se e agitou no ar o bichinho. Para Lisetta ver. E Lisetta viu.

Den-den! 0 bonde deu um solavanco, sacudiu os passageiros, deslizou, rolou, seguiu. Den-den! - Olha à direita! Lisetta como compensação quis sentar-se no banco. Dona

Mariana (havia pago uma passagem só) opôs-se com energia e outro beliscão. A entrada de Lisetta em casa marcou época na história

dramática da família Garbone. Logo na porta um safanão. Depois um tabefe. Outro no corredor. Intervalo de dois minutos. Foi então a vez das

chineladas. Para remate. Que não acabava mais. 0 resto da gurizada (narizes escorrendo, pernas arranhadas, suspensórios de barbante) reunido na sala de jantar sapeava de longe.

Mas o Ugo chegou da oficina. - Você assim machuca a menina, mamãe! Coitadinha dela! Também Lisetta já não agüentava mais.

- Toma pra você. Mas não escache. Lisetta deu um pulo contente. Pequerrucho. Pequerrucho e de lata. Do tamanho de um passarinho. Mas urso.

Os irmãos chegaram-se para admirar. 0 Pasqualino quis logo pegar no bichinho. Quis mesmo torná-lo à força. Lisetta berrou como uma desesperada: - Ele é meu! 0 Ugo me deu!

Correu para o quarto. Fechou-se por dentro. CARMELA

Dezoito horas e meia. Nem mais um minuto porque a madama respeita as horas de trabalho. Carmela sai da oficina. Bianca vem ao seu lado. A Rua Barão de ltapetininga é um depósito sarapintado de

automóveis gritadores. As casas de modas (Ao CHIC PARISIENSE, SÃO PAULO - PARIS, PARIS ELEGANTE) despejam nas calçadas as costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris como gangorras.

- Espia se ele está na esquina. - Não está. - Então está na Praça da República. Aqui tem muita gente

mesmo. - Que fiteiro! 0 vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelhos de fora. Sapatinhos verdes. Bago

de uva Marengo maduro para os lábios dos amadores. - Ai que rico corpinho! - Não se enxerga, seu cafajeste? Português sem educação!

Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado que reflete a boca reluzente de carmim primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por último as bolas de metal branco na ponta das orelhas descobertas.

Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira. Olha o automóvel do outro dia. - 0 caixa d`óculos? - Com uma bruta luva vermelha.

0 caixa d`óculos pára o Buick de propósito na esquina da praça.

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- pode passar. - Muito obrigada. Passa na pontinha dos pés. Cabeça baixa. Toda nervosa.

- Não vira para trás, Bianca. Escandalosa! Diante de Álvares de Azevedo (ou Fagundes Varela) o Ângelo Cuoco de sapatos vermelhos de ponta afilada, meias brancas,

gravatinha deste tamanhinho, chapéu à Rodolfo Valentino, paletó de um botão só, espera há muito com os olhos escangalhados de inspecionar a Rua Barão de Itapetininga. - 0 Ângelo!

- Dê o fora. Bianca retarda o passo. Carmela continua no mesmo. Como se não houvesse nada. E

o Ângelo junta-se a ela. Também como se não houvesse nada. Só que sorri. - Já acabou o romance? - A madama não deixa a gente ter na oficina.

- É? Sei. Amanhã tem baile na Sociedade. - Que bruta novidade, Ângelo! Tem todo domingo. Não segura no braço!

- Enjoada! Na Rua do Arouche o Buick de novo. Passa. Repassa. Torna a passar. - Quem é aquele cara?

- Como é que eu hei de saber? - Você dá confiança para qualquer um. Nunca vi, puxa! Não olha pra ele que eu armo já uma encrenca!

- Bianca rói as unhas. Vinte metros atrás. Os freios do Buick guincham nas rodas e os pneumáticos deslizam rente à calça-da. E estacam.

- Boa tarde, belezinha - Quem? Eu? - Por que não? Você mesma... Bianca rói as unhas com apetite.

- Diga uma cousa. Onde mora a sua companheira? - Ao lado de minha casa. - Onde é sua casa? - Não é de sua conta.

O caixa d`óculos não se zanga. Nem se atrapalha. É um traquejado. - Responda direitinho. Não faça assim. Diga onde mora.

- Na Rua Lopes de Oliveira. Numa vila. Vila Margarida nº. 4. Carmela mora com a família dela no 5. - Ah! Chama-se Carmela... Lindo nome. Você é capaz de lhe dar um recado?

Bianca rói as unhas. - Diga a ela que eu a espero amanhã de noite, às oito horas, na rua... não... atrás da Igreja de Santa Cecilia. Mas que ela vá

sozinha, hein? Sem você. 0 barbeirinho também pode ficar em casa. - Barbeirinho nada! Entregador o da Casa Clark! - É a mesma cousa. Não se esqueça do recado. Amanhã, às

oito horas, atrás da igreja. - Vá saindo que pode vir gente conhecida. Também o grilo já havia apitado

- Ele falou com você. pensa que eu não vi? 0 Ângelo também viu. Ficou danado. Que me importa? 0 caixa d'óculos disse que espera você

amanhã de noite, às oito horas, no Largo Santa Cecília. Atrás da igreja. - Que é que ele pensa? Eu não sou dessas. Eu não - Que fita, Nossa Senhora! Ele gosta de você, sua boba.

- Ele disse? - Gosta pra burro. - Não vou na onda. - Que fingida que você é!

- ciao - ciao

Antes de se estender ao lado da irmãzinha na cama de ferro Carmela abre o romance à luz da lâmpada de 16 velas: Joana a DESGRAÇADA ou A ODISSÉIA DE UMA VIRGEM, fascículo 2º

Percorre logo as gravuras. Umas tetéias. A da capa então é linda mesmo. No fundo o imponente castelo. No primeiro plano a íngreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo a

ladeira numa disparada louca o fogoso ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula do castelão inimigo de capacete prateado com plumas brancas. E atravessada no cachaço do ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao vento os

cabelos cor de carambola. Quando Carmela reparando bem começa a verificar que o castelo não é mais um castelo mas uma igreja o tripeiro Giuseppe Santini berra no corredor.

- Spegni la luce! Subito! Mi vuole proprio rovinare questa principessa! E – raatá- uma cusparada daquelas.

- Eu só vou até a esquina na Alameda Glette. Já vou avisando. - Trouxa. Que tem?

No Largo Santa Cecília atrás da igreja o caixa d'óculos sem tirar as mãos do volante insiste pela segunda vez: - Uma voltinha de cinco minutos só... Ninguém nos verá Você

verá. Não seja má Suba aqui. Carmela olha primeiro a ponta do sapato esquerdo, depois a do direito, depois a do esquerdo de novo, depois a do direito

outra vez, levantando e descendo a cinta. Bianca rói as unhas. - Só com a Bianca... - Não. Para quê? Venha você sozinha. - Sem a Bianca não vou.

- Está bem. Não vale a pena brigar por isso. Você vem aqui na frente comigo. A Bianca senta atrás. - Mas cinco minutos só. 0 senhor falou...

- Não precisa me chamar de senhor. Entrem depressa. Depressa o Buick sobe a Rua Veridiana. Só para no Jardim América.

Bianca no domingo seguinte encontra Carmela raspando a penugenzinha que lhe une as sobrancelhas com a navalha denticulada do tripeiro Giuseppe Santini.

- Xi, quanta cousa pra ficar bonita! - Ah! Bianca, eu quero dizer uma cousa pra você.

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- Que é? - Você hoje não vai com a gente no automóvel. Foi ele que disse.

- pirata! - Pirata por que? Você está ficando boba, Bianca. - É. Eu sei porquê. Piratão. E você, Carmela, sim senhora! Por isso é que o Ângelo me disse que é está ficando mesmo uma

vaca ! - Ele disse assim? Eu quebro a cara dele, hein? Não me conhece. - Pode ser, não é? Mas namorado de máquina não dá certo

mesmo Saem à rua suja de negras e cascas de amendoim. No degrau

de cimento ao lado da mulher Giuseppe Santini torcendo a belezinha do queixo cospe e cachimba, cachimba e cospe. - Vamos dar uma volta até a Rua das Palmeiras, Bianca ? - Andiamo.

Depois que os olhos cheios de estrabismo e despeito vêem a lanterninha traseira do Buick desaparecer Bianca resolve dar

um giro pelo bairro. Imaginando coudas. Roendo as unhas. Nervosíssima. Logo encontra a Ernestina. Conta tudo à Ernestina. - E o ângelo, Bianca?

- O Ângelo? O ângelo é outra coisa. É pra casar. Hã!...

GAETANINHO - Xi, Gaetaninho, como é bom! Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. 0 Ford

quase o derrubou e ele não viu o Ford. 0 carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão. - Eh! Gaetaninho! Vem pra dentro. Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão

feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo. - Subito! Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo

parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro.

Era salame de mestre! Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro

ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho. 0 Beppino por exemplo. 0 Beppino naquela tarde atravessara

de carro a cidade. Mas como? Atrás da tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem. Mas se era o único meio? Paciência.

Gaetaninho enfiou a cabeça em baixo do travesseiro. Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a tia Filomena para o cemitério.

Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro.

Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: Encouraçado São Paulo. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe

trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas

e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho. Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. 0 desgraçado do cocheiro não queria

deixar. Nem por um instantinho só. Gaetaninho ia berrar mas a tia Filomena com a mania de cantar o Ahi, Mari! todas as manhãs o acordou.

Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio. Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do

sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu

sonho. Matutou, matutou e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído. Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram

arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.

0 jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando. - Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?

- Meu pai deu uma vez na cara dele. - Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou! - Assim não jogo mais! 0 Gaetaninho está atrapalhando! Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de

responsabilidades. 0 Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a

defesa. - Passa pro Beppino! Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o

muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua. - Vá dar tiro no inferno! - Cala a boca, palestrino!

- Traga a bola! Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.

No bonde vinha o pai do Gaetaninho. A gurizada assustada espalhou a notícia na noite.

- Sabe o Caetaninho? - Que é que tem? - Amassou o bonde! A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.

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Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boléia de nenhum dos carros do acompanhamento. Ia no da frente dentro de um caixão

fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha. Quem na boléia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o

Beppino.