3.agentes, redes e territorialidades urbanas

Upload: nayra-sousa

Post on 05-Mar-2016

8 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Redes e territorialidade urbana em antropologia.

TRANSCRIPT

  • AGENTES, REDES ETERRITORIAL! DADES URBANAS

    SAINT-CLAIR CORDEIRO DA TRINDADE JNIOR'

    Urban Agents, Urban Networks and Urban Territorialities

    The artic/e discusses the role playedby social agents in the production ofurban space. Structured in networks,these agents share similar goals andhave a direct impact on the processof appropriation, control and produc-tion of territories within the city. As a

    result of their action, different urbanterritorialities emerge. Socio-spatialsegregation is viewed as a particularinstance of a network-based poltica Iarticulation, involving real estate com-panies, organized social movementsand public institutions.

    Introduo

    Uma tarefa importante a ser efetivada na busca da compreenso dadinmica social , sem dvida nenhuma, o desvelamento da dialtica que seestabelece entre a sociedade e sua espacialidade. Como sociedade territori-almente organizada, o espao se exterioriza atravs das formas espaciais,ou seja, atravs de objetos ou arranjo ordenado de objetos distribudos noterritrio. So elementos produzidos socialmente, ou que adquirem uma exis-tncia social, a partir do sentido que as relaes lhe atribuem. Dessa manei-ra, as formas espaciais contm a sociedade, no sendo, portanto, simples-mente formas, mas formas-contedos. nesse sentido que o espao nopode ser tido apenas como produto das relaes sociais; sua existncia semostra indispensvel reproduo dessas mesmas relaes.

    Seguindo esse entendimento que buscamos realizar aqui uma apro-ximao terica que procura compreender o espao urbano no apenas comoproduto da sociedade, mas tambm como condio e meio de realizao detoda a dinmica social. Nesse propsito, colocamos no cerne de nossa anli-se dois conceitos de importncia indiscutvel na produo geogrfica: os con-ceitos de territrio e de territorialidade. A discusso busca mostrar, ento,como a existncia de territorialidades urbanas permite que a organizao do

    . Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Par (UFPA).

  • 32 Revista TERRITRIO, ano 111,n(! 5, jul./dez. 1998

    espao se coloque como condio e meio para a dinmica de reproduodas relaes sociais.

    Num primeiro momento, destacam-se as estratgias dos agentes pro-dutores do urbano, quando ento se procura mostrar que suas aes no sedo de maneira isolada, mas atravs de redes de articulao ou coligaesde agentes que objetivam, dessa forma, realizar interesses especficos. Emseguida, ressalta-se a importncia da definio de territrios e de territoriali-dades como condio e meio para a realizao desses interesses, tendo emvista a estrutura do espao socialmente produzido. Por fim, so mencionadosalguns exemplos de territorialidades urbanas que nos ajudam a pensar a im-portncia do espao urbano para a realizao de estratgias e interesses deagentes diferenciados.

    1. Os agentes produtores do urbano e suas redes de ao

    Na literatura sobre o urbano, muito se tem falado a respeito dos agen-tes produtores do urbano. Considerar o papel desses agentes, entretanto,no pressupe trat-los de maneira isolada, como se cada aocorrespondesse nica e exclusivamente realizao de um interesse espe-cfico. Ainda que no desconsideremos os interesses de classes, precisoque no os coloquemos em um bloco monoltico que dificulte o entendimentodas redes de relaes configuradas em torno da apropriao do espao urba-no. nesse sentido que buscamos considerar no presente trabalho o concei-to de redes de agentes, entendidas como articulaes locais de agentes res-ponsveis pela dinmica da cidade e que esto por trs do apropriao daterra urbana.

    Dentre as articulaes mais simples identificadas a partir da ao dosdiversos agentes produtores do urbano, podemos destacar, a ttulo de exem-plo, as coligaes entre: a) o Estado e os agentes sociais excludos; b) osagentes sociais excludos e os candidatos a cargos polticos; c) o Estado e asempresas incorporadoras/construtoras; d) os agentes sociais excludos e osproprietrios fundirios; e) o Estado e os proprietrios fundirios; f) os agen-tes financiadores e as incorporadoras.

    As redes podem se tornar mais complexas, quando ento articulammais que dois agentes. Esse tipo de estratgia est presente seja na produ-o de conjuntos habitacionais pelo poder pblico - em que se juntam inte-resses tanto das construtoras/empreiteiras, como dos proprietrios fundirios-, seja no processo de ocupao de terrenos urbanos - que, muitas vezes,articula uma cadeia complexa de interesses e de aes -, seja, ainda, naproduo de empreendimentos residenciais populares pelo setor privado, cujatrama de relaes envolve uma pluralidade de agentes (incorporadoras, po-der pblico, agente financeiro, proprietrios fundirios) que buscam obter van-tagens tambm diferenciadas.

  • Agentes, redes e territorialidades urbanas 33

    Quando consideramos essa pluralidade de sujeitos convergindo paraum mesmo tipo de ao, baseamo-nos em GOTIDIENER (1993), que usa apalavra rede no sentido de "trama", procurando descrever a confluncia dedeterminaes gerais e de aes locais relacionadas apropriao da terraurbana. Essas redes, por sua vez, configuram-se como linhas de frente dareestrutu rao espaci ai.

    Ao trabalhar tambm com a idia de redes, RAFFESTIN (1993) se apro-xima bastante em termos conceituais de Mark Gottdiener. Para aquele autor,no caso das redes, os "atores no se opem; agem e, em conseqncia,procuram manter relaes, assegurar funes, se influenciar, se controlar, seinterditar, se permitir, se distanciar ou se aproximar e, assim, criar redes entreeles. Uma rede um sistema de linhas que desenham tramas" (RAFFESTIN,1993: 156). Nesse sentido, as redes representam no s uma forma demobilizao, como tambm uma estratgia de organizao e de ao, quedo forma ao urbano.

    Destarte, no se concebe a atuao de um agente isolado na definiodas formas urbanas, mas a articulao e a convergncia de interesses prove-nientes de agentes social e hierarquicamente diferentes. com essa inten-o que destacamos, com base em GOTTDIENER (1993), algumas caracte-rsticas configuradoras dessas redes, a saber:

    a) representam coalizes pblico-privadas que abrangem tambm ele-mentos das classes populares, e que se mantm atravs das burocraciaslocais profundamente dependentes da idia de desenvolvimento e moderni-zao urbana;

    b) sua composio muda de um lugar para outro, sendo que, em al-guns casos, inclui fraes de classes que no so necessariamente capitalis-tas;

    c) as aes capitalistas nessas redes so heterogneas; fraes den-tro da classe capitalista que podem manipular a expanso e a reestruturaourbana articulam aes diferenciadas dentro dessas redes;

    d) em qualquer situao, pode haver mais de uma rede que atue paramanipular aes pblicas e privadas de tomada de deciso face apropria-o da terra urbana;

    e) a manifestao dessas redes pode se dar de maneira no necessa-riamente explcita; em suas estratgias mais amorfas, os agentes muitas ve-zes trabalham nos bastidores, de maneira corrupta, para explorar o cresci-mento urbano rpido, mesmo que no o defendam ativamente.

    Convm mencionar que a forma do ambiente construdo no apenasproduto dessas redes, mas tambm, das tentativas de renegociar as aesdelas decorrentes por parte de outros grupos que suportam os custos da re-estruturao urbana. Por outro lado, os agentes envolvidos no esto, neces-sariamente, num mesmo plano de correlao de foras, mas instrumentalizamseus interesses por meios de coligaes que viabilzam suas aes, isto por-que "toda rede uma imagem do poder ou, mais exatamente, do poder do ou

  • 34 Revista TERRITRIO, ano 111, n 5, jul./dez. 1998

    dos atores dominantes" (RAFFESTIN, 1993:157). No significa tambm queo produto dessas aes tenha o mesmo grau de retorno para esses agentescoligados, mas uma forma de garantir, com maior ou menor grau, a satisfa-o, ainda que parcial, desses interesses.

    Indica, igualmente, uma forma de organizao e de ao, conformeenfatiza SCHERER-WARREN (1995), que merece ser analisada, pois com-porta resultados sociais, polticos, e tambm espaciais, que pressupem es-tratgias, significados e correlaes de fora tanto no plano ideolgico quan-to no plano prtico.

    Por serem as redes instrumentos de ao e, portanto, instrumentosdos agentes, organizados em torno delas, a estruturao urbana uma de-corrncia da dinmica que elas apresentam, ao mesmo tempo em que garan-te, em primeiro plano, a prioridade dos interesses hegemnicos que as mobi-lizam.

    2. O espao urbano: territrio e territorialidades

    o fato de os agentes e suas redes conceberem o espao como ele-mento essencial para suas estratgias coloca a necessidade de se mencio-nar outros dois conceitos que permitem entender tais aes. Esses conceitosso o de territrio e o de territorialidade, que, por sua vez, esto intrinseca-mente relacionados.

    Entendidos como mediao entre a relao dos agentes e o espao, osterritrios configurados no interior do espao urbano registram aes que ocontrolam, garantido a espacial idade dos interesses de um ou de vrios aqen-teso Assim, quando se menciona a existncia de territrios na cidade, fala-sede fraes do urbano, explcita ou implicitamente demarcadas e controladaspor determinadas aes, produtos da correlao de foras ou de diferenasque se estabelecem para com outros agentes.

    Mais que espaos concretos, que so, na verdade, substratos materi-ais das territorialidades, os territrios so, antes, relaes sociais projetadasno espao, configurando-se como espaos definidos e delimitados por rela-es de poder, ou em outros termos, como relaes de poder espacialmentedelimitadas que operam sobre um substrato referencial (SOUZA, 1995:97),

    Diferentemente de outros locais comuns, os territrios requerem esfor-o constante para serem estabelecidos e mantidos. Conforme nos sugereSACK (1986:19), a simples circunscrio de coisas no espao ou num mapa,ou mesmo a identificao de locais, reas ou regies no senso comum, nopressupe, necessariamente, a definio de um dado territrio, posto que aexistncia deste requer ao e controle de um determinado espao e de to-dos os seus atributos,

    Ainda para o autor anteriormente mencionado, o territrio pode ser usadopara conter ou restringir, bem como para excluir. E os indivduos que exercem

  • Agentes, redes e territorialidades urbanas 35

    controle no precisam, por sua vez, estar dentro do territrio ou prximo dele.O controle de uma rea, como um meio de controlar coisas e/ou pessoas,pode ser feito de maneiras diversas, explicita ou implicitamente presentes naorganizao espacial (SACK, 1986:20).

    Estas consideraes invocam uma relao trinitria para entender oconceito de territrio e de territorialidade. A rigor, o territrio pressupe a cor-relao de foras entre agentes diferenciados, no qual o espao exerce umamediao. H, portanto, uma trade a ser considerada, conforme indicaRAFFESTIN (1993): agente-espao-agente.1 A simples relao agente-es-pao, se pudssemos abstrair uma relao isolada desse tipo, no define apriori uma territorialidade, mas simplesmente uma espacial idade, ou seja, adimenso espacial do contedo social.

    Ao discutir o assunto, RONCAYOLO (1990) procura acentuar a ques-to da identidade para compreender o conceito de territrio. Mostra, por exem-plo, que o sentido da territorialidade essencialmente coletivo, dependendomais do tipo de relao que se estabelece entre os indivduos e os grupos,que propriamente a ligao direta aos lugares. Nesse sentido, as territoriali-dades tendem a expressar uma certa coerncia, o estatuto e a expectativa deindivduos ou grupos, definindo-se em funo do outro, que pode ser tambmum indivduo ou um grupo.

    Por isso a territorialidade no deixa de ser um tipo de fenmeno decomportamento que se associa organizao do espao em esferas de influ-ncia ou em territrios nitidamente delimitados; estes, por sua vez, assumemcaractersticas distintas, podendo ser considerados como exclusivos de quemos ocupa e de quem os define (SOJA apud RONCAYOLO, 1986:263).

    Nesse sentido, o territrio pressupe tambm uma relao de poder,na ampla acepo do termo", entre duas categorias de agentes ou coliga-es deles (redes), e destes para com o espao; da ser este uma mediaoentre essas redes, posto que o que est em jogo nessa correlao a apro-priao do espao.

    , A propsito da discusso sobre o conceito de territrio conduzida por ClaudeRaffestin, algumas crticas parecem procedentes, como a que fez SOUZA (1995).Souza mostra, por exemplo, que aquele autor incorre no equvoco de "colsillcar"."reificar' o territrio, ao incorporar ao conceito o prprio substrato material. Ademais,sua abordagem chega mesmo a reduzir o espao ao espao natural, diferentementedo territrio que seria praticamente sinnimo de espao social. Emque pesem essesproblemas de ordem terico-conceitual, existe uma preocupao, da parte deRaffestin, quanto realizao de uma abordagem relacional adequada sua "geo-grafia do poder", que procuramos aqui considerar.2 nessa acepo ampla, que vai alm do aparelho de Estado, que FOUCAULT(1988:160) fala que o exerccio do poder tem um alcance que no limitado. Pas-sando por canais muito sutis, lorna-se muito mais ambguo, porque cada indivduo ,no fundo, titular de um certo poder, tornando-se, por isso, veiculador do mesmo.

  • 36 Revista TERRITRIO, ano 111,n 5, jul./dez. 1998

    Estritamente relacionada apropriao, "a territorialidade aparece entocomo constituda de relaes mediatizadas, simtricas ou dissimtricas coma exterioridade" (RAFFESTIN, 1993:161). Inclui, portanto, elementos comoidentidade, exclusividade e tambm limite:

    "Falar de territrio fazer uma referncia implcita noo delimite que, mesmo no sendo traado, como em geral ocorre,exprime a relao que um grupo mantm com uma poro doespao. A ao desse grupo gera, de imediato, a delimitao.Caso isso no se desse, a ao se dissolveria pura e simples-mente. Sendo a ao sempre comandada por um objetivo, este tambm uma delimitao em relao a outros objetivos poss-veis." (RAFFESTIN, 1993:153)

    por isso que RAFFESTIN (1977: 125) diz que a linguagem subjacentena interpretao das territorialidades no simplesmente uma linguagem deformas e de funes, mas essencialmente de relaes. Isto porque ela in-trnseca ao espao socialmente produzido, como forma de garantir a existn-cia e mesmo a reproduo de relaes sociais. O espao, enquanto meio econdio de reproduo de relaes sociais, ganha expresso na existnciade territrios e na configurao de territorialidades.

    importante, entretanto, dimensionar ainda mais a noo de territrioe de territorialidade para alm da idia de controle e de domnio politicamentedefinido, trabalhando sim com a idia de apropriao, mas que possa incor-porar tambm uma dimenso simblica, identitria e afetiva. Esta parece seruma preocupao dos estudos de GUATTARI (1985 e 1996)3:

    "Os seres existentes se organizam segundo territrios que osdelimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cs-micos. O territrio pode ser relativo tanto a um espao vividoquanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito sesente 'em casa'. O territrio sinnimo de apropriao, desubjetivao fechada sobre si mesma. Ele o conjunto dos pro-jetos e das representaes nos quais vai desembocar, pragmati-camente, toda uma srie de comportamentos, de investimentos,nos tempos e nos espaos sociais, culturais, estticos,cognitivos." (GUATIARI & ROLNIK, 1996:323)

    3Ainda que a proposta de anlise de Flix Guattari seja por demais ampla, com umaproblematizao que enfatiza a dimenso psicolgica da noo de territrio e deterritorialidade, importante considerar alguns elementos dessa anlise, principal-mente no que diz respeito compreenso dos espaos de representao e do vivi-do, temas igualmente importantes para a anlise geogrfica.

  • Agentes, redes e territorialidades urbanas 37

    Essa linha de raciocnio tambm o faz distinguir, e no opor, a noo deterritrio e de espao:

    "Os territrios estariam ligados a uma ordem de subjetivao in-dividuai e coletiva e o espao estando ligado mais s relaesfuncionais de toda espcie. O espao funciona como uma refe-rncia extrnseca em relao aos objetos que ele contm, Aopasso que o territrio funciona em uma relao intrnseca com asubjetividade que o delimita." (GUATTARI, 1985:110)

    Assim que a noo de territrio envolve simultaneamente, mas emdiferentes graus de correspondncia, uma dimenso simblico-cultural e ou-tra de carter poltico-disciplinar. A primeira diz respeito a uma identidadeterritorial atribuda pelos grupos sociais como forma de "controle simblico"do espao onde vivem, sendo, igualmente, uma forma de apropriao; en-quanto que a segunda uma dimenso mais concreta e que tem a ver com adefinio de limites ou fronteiras visando disciplinarizao dos indivduos eo uso/controle dos recursos existentes (HAESBAERT, 1995a:65).

    No espao urbano, podemos falar de territorialidades diversas, assimcomo de processos de desterritorializao e reterritcrlazao+, tendo emvista a importncia dos agentes na produo de localizaes e na busca demelhores acessibilidades. As redes, que convergem interesses desses agen-tes, sem dvida, instrumentalizam tais territorialidades - que comportam pr-ticas e suas expresses materiais e simblicas, de modo a garantir no s aapropriao do espao por parte de um determinado agente social, comotambm sua permanncia (CORRA, 1994:251-2) -, permitindo a reestrutu-rao urbana e tambm a mobilidade da segregao scio-espacial.

    MOURA et aI. (1994), por exemplo, identificam na metrpole a existn-cia de territorialidades subjetivas e formais. No primeiro caso, referem-se ademarcaes de interesses, de carter no formal, colocados entre os agen-tes e o espao concreto. Por meio delas, os agentes definem seus raios deao a partir de limites subjetivos e que no necessitam de demarcaesslidas, ou seja, asseguradas institucionalmente. Em geral surgem a partir deidentidades que expressam, atravs de sua prtica espacial, suas territoria-lidades, fazendo parte das estratgias e dos conflitos desenvolvidos no urba-no e que demarcam sua relao para com ele.

    4 Desterritorializao tem o sentido de perda de territrio apropriado e vivido emdecorrncia de diferentes processos originados de contradies capazes de desfa-zerem territrios; ao passo que reterritorializao refere-se criao de novos terri-trios, seja por meio da reconstruo parcial, in situ, de velhos territrios, seja atra-vs da recriao parcial, em outro lugar, de um novo territrio, que contm caracte-rsticas do antigo (CORRA, 1994:252).

  • 38 Revista TERRIT6RIO, ano 111,n!! 5, jul./dez. 1998

    As territorialidades formais, por sua vez, so aquelas salvaguardadaspor estatutos que definem competncias, atribuies, limites de extenso,garantindo o exerccio do poder a partir da representatividade de suas bases,seja o Executivo ou o Legislativo, ou ainda em estruturas prprias como con-selhos ou comits definidos sob lei. So exemplos de territorialidades formaisque recortam o espao, os municpios, os distritos, as regies metropolita-nas, que possuem um carter poltico-administrativo e institucional.

    Esses dois tipos de territorialidades no so excludentes, podendo seconfundir e se sobrepor:

    "Compem-se e ajustam-se como fragmentos num caleidosc-pio: movimentos contnuos e transitrios, recriados a partir deprocessos sociais que reforam o anacronismo da demarcaode limites externos e de lugares e regies.Nessa dinmica, em determinados momentos, territrios subje-tivos se apropriam dos formais. Cooptam com os poderes ofici-almente institudos apenas como estratgia para garantir a defe-sa de seus interesses.Inversamente, a prtica para o alcance de objetivos de territoria-lidades subjetivas so, muitas vezes, submetidas circunscri-o dos limites do formal" (MOURA et et., 1994:115-6).

    E aqui cabe uma indagao. Como a forma urbana contempornea,especialmente aquela manifesta na urbanizao brasileira, reflete, assimila erecria essas territorialidades atravs dos agentes locais, considerando o pa-dro de segregao residencial inerente ao modelo imposto pelo modelo dedesenvolvimento urbano concebido nas ltimas dcadas? Os exemplos queseguem buscam, ainda que parcialmente, responder a tal questionamento.

    3. Alguns Exemplos de Territorialidades Urbanas

    a) Os territrios das empresas do mercado imobilirioUm aspecto quanto s estratgias dos agentes, que se coloca em ple-

    na sintonia com o padro de segregao residencial urbana capitalista, dizrespeito s empresas imobilirias, que passam a se diferenciar de acordocom seu respectivo poder econmico. Aquilo que ALMEIDA (1982) chama de"escala espacial de atuao" das incorporadoras, ou seja, os espaos ondese realizam as obras e os estoques de terreno de incorporadoras de um de-terminado porte, define um tipo de territorialidade, garantida pelo montantede capital necessrio a ser investido e pelo poder empreendedor das imobi-lirias.

    Neste caso, a promoo imobiliria nas reas melhor equipadas, aexemplo de determinadas reas centrais, fruto, principalmente, da ao das

  • Agentes, redes e territorialidades urbanas 39

    empresas de grande porte, ao passo que a escala espacial de atuao dasempresas menores fica cada vez mais restrita s fronteiras urbano-imobili-rias". Isso ocorre devido aos menores custos de investimentos por parte des-tas ltimas empresas, j que se trata de produzir moradias de baixo padro,financiadas, em geral, pelo Sistema Financeiro da Habitao.

    isto que muitas vezes faz com que haja uma diviso de mercadosentre as prprias empresas com atuao local. O pequeno incorporador, quetrabalha com uma escala reduzida, construindo prdios sem sofisticao paraas classes baixa e mdia baixa, produz empreendimentos que se realizam,na maioria das vezes, nos bairros que se caracterizam por serem de expan-so imobiliria, tendo em vista certas condies que se colocam como maisfavorveis para a ao desses mesmos empreendedores,

    Nesse sentido, h uma relao direta entre empreendedores, deman-da e localizao dos imveis. O que leva a demanda de baixa renda a procu-rar empreendimentos nas reas menos valorizadas no so, evidentemente,as possveis amenidades nelas oferecidas. A razo principal , sem dvida, opreo desses imveis que se contrapem aos altos preos praticados emoutra reas mais seletas.

    O incorporador que dispe de um maior montante de capital, por suavez, tende a produzir prdios de apartamentos de um padro superior, commelhor acabamento e um certo grau de sofisticao. Trata-se de um lucrosuplementar extra, derivado dos preos elevados das habitaes produzidase pela escala de operao desses empreendimentos. Na estratgia de aodas empresas imobilirias, essa espacialidade em relao demanda mos-tra-se claramente definida.

    Diferentemente do pequeno incorporador que depende do financiamentodo agente financeiro, as estratgias do grande incorporador, que tambm tra-balha com capital prprio, pressupem a construo de prdios sofisticadose com um padro de qualidade satisfatrio para atender demanda solvvelque pretende atingir; bem diferente daquela outra estratgia do pequenoincorporador, cuja margem de lucro pressupe a baixa qualidade do imvel eo financiamento por parte de aes diretamente relacionadas polticahabitacional do governo.

    5 Para LAVINAS e RIBEIRO (1991), a fronteira urbano-imobiliria corresponde a de-terminadas fraes do espao urbano nas quais a terra circula sob a gide de umapluralidade de formas de produo (rentista, sob encomenda do usurio, produodomstica, pequena incorporao, incorporao pblica, etc). a transio, no tem-po e no espao, da terra valor de uso para a terra valor de troca mediada pelo capi-tal, configurando o processo de transformao social do significado material e sim-blico da terra; sendo, assim, locus de uma atividade e de povoamento, decorrenteda expanso da dinmica de mercado, com vistas plena utilizao capitalista daterra urbana, atravs da incorporao imobiliria.

  • 40 Revista TERRITRIO, ano 111,n!! 5, jul./dez. 1998

    Essa diviso espacial entre pequenos e grandes empreendedores, es-tabelece, igualmente, uma rede de relaes com o poder pblico local. cujamaior parte dos investimentos converge para zonas onde o poder construtivoest precipuamente sob controle das empresas economicamente melhorestruturadas. A tendncia de canalizar investimentos para as reas cominfra-estrutura j estabelecida o que garante, indubitavelmente, uma margemde lucro para as empresas, que buscam no se preocupar com esse tipo deinvestimento.

    Mais que uma simples diviso de mercados entre as incorporadoras, aproduo social do espao urbano garante tambm uma territorializao dasempresas do mercado imobilirio. A diferencial idade espacial que caracterizaa forma metropolitana dispersa, por exemplo, oferece vantagens e desvanta-gens, na verdade atributos intrnsecos ao espao socialmente produzido.

    Isso nos remete a uma discusso feita por SACK (1986:16), quando serefere territorialidade como uma forma de interao espacial, que, por suavez, influencia outras interaes espaciais e que requer aes no-territoriaispara sustent-Ia. Como aes no-territoriais, entenda-se aquelas estratgi-as que garantem o controle de determinado espao, mas que no esto ne-cessariamente configuradas na organizao espacial. No caso considerado,trata-se principalmente da dinmica do mercado de terras e do poder econ-mico das empresas, que definem, atravs da excluso, os espaos de inves-timentos e de retornos para determinadas fraes do capital imobilirio.

    Ainda segundo o autor acima mencionado, a territorialidade no preci-sa ser explicitamente defendida, j que o territrio pode ser usado tanto paraconter e restringir, como tambm para excluir (SACK, 1986:19-20). Este lti-mo parece ser o caso das grandes empresas que atuam no mercado imobili-rio. S elas podem, atravs do capital de que dispem para investimentos,ter acesso aos terrenos daqueles bairros melhor infra-estruturados, como tam-bm produzir imveis de superior qualidade; o que acaba por majorar o pre-o do imvel, que, por sua vez, vai definir a demanda atingida.

    No se trata de uma territorialidade formal das grandes empresas, massim de uma territorialidade tcita, definida pelo poder empresarial dessasempresas, que tende a se expandir, e para isso precisa da reestruturaourbana. Assemelha-se tambm quilo que MESQUITA (1992 e 1995) deno-mina de territorialidade senhorial. As territorialidades desse tipo

    "atualizam e expressam razes de posse e poder autoritrio oumanipulador manejados ambiguamente, fundamentado no sno entendimento de pertena territorial, como ainda condutasdirecionadas a um uso poltico do territrio. Esta territorialidadesenhorial freqentemente vale-se de uma identidade construdapor contraste, uma identidade contrastiva em que os outros soos diferentes que no pertencem ao nosso territrio" (MESQUI-TA, 1995:86-7).

  • Agentes, redes e territorialidades urbanas 41

    Assim, a realizao de empreendimentos imobilirios em rea de me-lhor infra-estrutura no espao urbano feita pelas empresas mais bemestruturadas no mercado local. Nesse sentido, a um processo de territorial i-zao corresponde tambm um processo de desterritorializao, que acom-panha a reestruturao urbana. Ao falarmos em (des)territorializao, fala-mos de alterao territorial no interior do espao urbano, quando ento agen-tes produtores deste tendem a expandir suas territorialidades retraindo oudeslocando outras, implicando em mudanas scio-espaciais. Com isso, adesterritorialidade gera novos lugares, definidores de novas territorialidades,seja num contnuo processo de expanso, seja na recomposio de um terri-trio perdido total ou parcialmente.

    Isso no impede, todavia, que em determinados momentos as grandesempresas adentrem, em perodos de refluxo de sua demanda, ou diante devantagens de financiamento por parte do Sistema Financeiro da Habitao,nos espaos onde a atuao dos pequenos incorporadores seja mais inten-sa. Assim, os territrios das empresas de menor porte no so apenas resi-duais, como tambm flexveis, comportando incurses espordicas das em-presas de maior porte.

    Poderamos falar, nesse caso, da existncia de uma territorialidadeautodefinida e de uma territorialidade imposta ou residual, que se concretizano exatamente pela simples expanso da cidade, mas pela relao agente-espao-agente, que pressupe a lgica que preside a expanso e a organiza-o espacial urbana. Nesse caso, tais territorialidades, autodefinidas e resi-duais, aparecem como condio e meio para a reproduo das relaes queos agentes imobilirios estabelecem entre si e para com o espao urbano.

    Por conseguinte, os atributos do espao produzido e dos investimen-tos do poder pblico so apropriados desigualmente, inclusive no plano doprprio capital imobilirio, o que define bem o processo de concentrao e decentralizao do capital. Nesse caso, o espao surge como elemento essen-cial, posto que a reproduo do capital imobilirio requer no s a apropria-o de localidades j existentes, como tambm a produo de novas, poispara cada novo ciclo de reproduo, novas localizaes se fazem necessrias.

    Assim, a atuao das empresas na produo do espao urbano temuma lgica que no apenas espacial, mas tambm territorial, permitindoque suas atuaes incidam em determinados espaos e no em outros. Es-tas, por sua vez, ao mesmo tempo atingem, controlam e excluem outros agen-tes, que, mesmo atuando em atividade similar, diferenciam-se hierarquica-mente quanto sua capacidade de barganha, de influncia e de controle.

    Isso indica que, implicitamente, a territorialidade acaba por apresentarimplicaes normativas, posto que no processo de apropriao do espaoevidenciam-se diferentes graus de acesso, o que significa que o poder deindivduos ou grupos acaba por deslocar outros indivduos ou grupos e suasrespectivas atividades de determinados locais, implicando na distino dediferentes graus de acesso aos objetos que compem o arranjo espacial

  • 42 Revista TERRITRIO, ano 111,n!! 5, jul./dez. 1998

    (SACK, 1986:26). A existncia de tais territorialidades por si s acaba pordefinir os elementos, objetos e reas que um determinado agente ou grupodeles pretende ter acesso e controle.

    b) As organizaes populares e suas territorialidadesUm outro tipo de territorialidade urbana pode ser visualizada nas aes

    dos movimentos populares e mais precisamente nas suas organizaes re-presentativas. As territorialidades definidas por esses agentes, a exemplodas empresas do mercado imobilirio, so de carter no formal, o que noimplica afirmar, entretanto, que as mesmas sejam frgeis e ineficientes:

    "mesmo significando limites subjetivos e prescindindo de demar-caes institucionais mais slidas, estas territorialidades esta-belecem o contorno do alcance de seu raio de poder com maisclareza e preciso que 'territrios' definidos a partir de recortesinstitucionais" (MOURA & ULTRAMARI, 1994:108).

    Isto no significa dizer que elas prescindam das territorialidadesinstitucionalizadas. Em determinadas circunstncias, a prtica para a defini-o de territorialidades que so subjetivas esto muitas vezes submetidas acircunscries que passam pelo limite do formal, no havendo, portanto, comodescart-lo, mesmo que se tratem de movimentos populares no institucio-nalizados.

    Ainda que todos postulem o direito cidade e suas demandas sejamparecidas, existem diferenas no interior do prprio movimento popular urba-no que no nos permite vsualiz-los como um bloco politicamente monoltico.Tais diferenas se colocam notadamente no plano das orientaes polticas evo definir, por sua vez, correlaes de fora responsveis, igualmente, pelaconfigurao de territorialidades distintas.

    Os territrios das entidades representativas das organizaes popula-res esto expressos espacialmente atravs dos centros comunitrios, dasassociaes de moradores e das organizaes de bairro de um modo geral.Estes acabam por definir os raios de ao e controle das redes de articulaopoltica que se estruturam em torno deles. A filiao de uma dessas organiza-es a uma entidade geral, por exemplo, e no a uma outra que lhe politica-mente adversa, expressa uma ao scio-espacial que acaba por delimitar oespao em diferentes reas e/ou pontos de influncia poltica.

    Esse tipo de relao nos permite visualizar nitidamente o cartermultidimensional do poder, conforme menciona BECKER (1983), ou seja,manifesta-se em escalas as mais diversas, envolvendo agentes outros queno necessariamente o Estado ou agentes hegemnicos definidos a partir dopoder econmico. Define-se em vrias escalas, dentre elas a escala local,correspondente ao lugar, dimenso do espao vivido, caracterizada pelouso cotidiano do espao.

  • Agentes, redes e territorialidades urbanas 43

    Com isso, cria-se tambm uma multidimensionalidade do espao, quese instrumentaliza atravs do conhecimento, apropriao e gesto de partesdele, sendo uma combinao de poder (atributo de mltiplos atores sociais) eespao (dimenso material das relaes sociais), que define o processo deterritorializao (DORFMAN, 1995:105).

    No se associa, absolutamente, territorialidade senhorial, conformevisto anteriormente para o caso das empresas do mercado imobilirio. Pare-ce estar mais prxima do tipo de territorialidade familiar, conforme a definiode MESQUITA, ou seja, "quando no territrio atualizamos pela nossa identi-dade com ele, antigos sentimentos de emulao, competio ou solidarieda-de vividos no territrio familiar" (1995:86).

    o que percebemos, por exemplo, quando no embate poltico das or-ganizaes populares se estabelecem correlaes de fora nas quais o es-pao entra como uma mediao necessria. Nesse caso no se trata sim-plesmente de luta por territrios; esta apenas uma dimenso do processoque se coloca no cenrio urbano. O espao, nesse caso, aparece como umelemento necessrio reproduo das estratgias de luta e de(des)mobilizao poltica.

    Diferentemente do tipo de ao das empresas imobilirias, que se dem funo do poder econmico, e que gera territorialidades autodefinidas eresiduais, no caso dos movimentos populares urbanos, parece se tratar maisde agentes que definem territorialidades mais em funo de articulaes po-lticas, contribuindo para isso a convergncia de foras que se aglutinam apartir das redes de agentes.

    Nesse caso, os processos de ampliao, retrao e subtrao de reasou pontos de influncia so muito mais marcantes, o que faz com que osprodutos dessas correlaes de fora sejam mais resultados do tipo demobilizao empreendido, que propriamente resduos de imposies de umacoligao de agentes que definem sua relao de poder para com outrosagentes, ainda que o tipo de parceria contribua decisivamente para a exten-so de uma dada territorialidade.

    Talvez por isso os territrios dessas entidades sejam em alguns ca-sos melhor definidos por pontos que propriamente por zonas, marcando,igualmente, um tipo de territorialidade que , ao mesmo tempo, informal efugaz (MACHADO, 1997). tambm uma forma especfica de apropriaodo espao que dinmica e transitria, posto que est, em grande parte,apoiada em estratgias de sobrevivncia e de satisfao de necessidadesimediatas de um segmento de baixo poder aquisitivo e no, necessaria-mente, num projeto poltico mais efetivo que leve esse mesmo segmentosocial a pensar a cidade em sua totalidade. Isso acontece, a despeito daconvico ou atuao poltica de suas lideranas. Essa fragilidade se agra-va principalmente quando as coligaes que as formam esto pautadasem parcerias cujos elos pressupem uma forte ao clientelista em rela-o ao Estado.

  • 44 Revista TERRITRIO, ano 111,n 5, jul./dez. 1998

    Nesse tipo de territorialidade tambm no se percebem delimitaesclaramente definidas, ainda que se possa falar em reas com maior ou menorinfluncia de determinados agentes. Os limites so colocados em outros ter-mos: "sendo a ao sempre comandada por um objetivo, este tambm umade/imitao em relao a outros objetivos possveis" (RAFFESTIN, 1993:153);da comumente se configurarem como territrios descontnuos.

    No se trata tambm de uma forma de territorialidade definida a prioritendo em vista a potencialidade apresentada pelos recursos do espao soci-almente produzido, a exemplo do que se verifica com as empresas imobilirias. Trata-se muito mais de conquistar novos espaos que possam reforaruma dada postura poltico-ideolgica no plano da correlao de foras colo-cadas no cenrio urbano. Vive-se o processo territorial e o produto territorial,simultaneamente, por meio de um sistema de relaes (RAFFESTIN,1993: 158) configurado territorial mente.

    As organizaes de bairros - associaes de moradores, centros co-munitrios, etc, -, no plano da espacial idade, apresentam-se, portanto, comoelementos difusores de uma dada coerncia poltica, contribuindo para defi-nir um verdadeiro sistema territorial que viabiliza aes e objetivos; da ocarter pontual do sistema que configura esse tipo de territorialidade.

    c) Os formatos territoriais institucionalizadosA delimitao das escalas de ao e controle dos agentes produtores

    do urbano no se d apenas no plano informal/subjetivo. Alguns desses raiosde ao, de controle e de sentimento de pertencimento passam a ser institu-cionalizados, delimitando territorialidades formalmente estabelecidas.

    Os recortes territoriais que so institucionalizados no espao urbanoparecem ser, muitas vezes, uma conseqncia da dinmica imprimida a par-tir do processo de reestruturao urbana que define a dinmica da segrega-o. Um exemplo desse processo diz respeito aos movimentos de emancipa-o poltica e de criao de municpios no interior das regies metropolitanas.

    Nesse caso, o que se observa que essas localidades objeto de par-tilhas territoriais esto, em grande parte, situadas nos limites mais avanadosdas reas de expanso urbana e todo o movimento que induz ao processo deemancipao est muitas vezes ligado ao processo de suburbanizao e deexcluso social a que esto sujeitas as periferias distantes dos ncleos me-tropolitanos.

    Alguns elementos parecem justificar esse processo. Primeiramente preciso considerar o grande nmero de pessoas que passa a habitar essasreas de subrbio, definindo o processo de segregao urbana bastante co-mum nas cidades brasileiras e especialmente nas regies metropolitanas.Pelas prprias condies impostas a essas localidades - definidas principal-mente como novos espaos de assentamentos residenciais populares -, oquadro de carncias tende a se agravar de maneira exorbitante, o que, evi-dentemente, faz aflorar as demandas relacionadas ao espao do morar; de-

  • Agentes, redes e territorialidades urbanas 45

    mandas estas que no conseguem ser satisfeitas por parte do poder polticolocal.

    Posteriormente, entretanto, esse movimento que na sua gnese temum fundamento reivindicativo, capturado principalmente pelas lideranaspolticas locais, o que faz com que o uso poltico do territrio tome uma outradimenso. A capturao dessas demandas leva as lideranas polticas a seapropriarem do movimento com vistas promoo poltica eleitoral. Isto acon-tece porque o crescimento do nmero de residentes e de domiclios nessesespaos, traduz-se tambm num maior nmero de eleitores, que acaba porjustificar os esforos das lideranas locais pela idia de emancipao. Emque pese a participao popular no processo de emancipao, enquanto pro-jeto poltico, so as lideranas polticas locais que no s encaminham oprocesso, como tambm dele se apropriam.

    nesse sentido que esses territrios formais so criados muitas vezescom base em um discurso que manipula anseios de uma coletividade, bus-cando concretizar projetos particulares a partir de uma falsa crena de agre-gao de interesses comuns.

    A institucionalizao de nveis de administrao poltica, como o muni-cpio, revela mesmo a eficcia realizao de determinados interesses. Con-forme nos mostra TAVARES (1992), o municpio, enquanto recorte espacial,foi institudo no s como uma forma de administrao, mas tambm comoum instrumento de controle; por isso ele tem um significado poltico ao ex-pressar relaes de poder, materializadas no espao por meio da apropria-o e domnio do territrio por grupos sociais. Nesse sentido, "a criao demunicpios pode se tornar, assim, e ao mesmo tempo, instrumento poltico deorganizao e de dominao" (TAVARES, 1992:3).

    Conforme vimos anteriormente, a territorialidade pode, segundo MES-QUITA (1992 e 1995) expressar-se como uma territorialidade familiar ou comouma territorialidade senhorial. Alm dessas, a mesma autora distingue umaoutra, chamada de territorialidade cultural, sendo esta "uma vivncia coletiva,preservadora de usos, costumes e tradies do passado que reforam o sen-timento de orgulho de pertencer a um territrio" (MESQUITA, 1992:76). Aotratarmos das territorialidades formais em decorrncia do processo de eman-cipao poltica, percebemos que elas renem um pouco da dimenso decada uma dessas expresses de territorialidade.

    Segundo ainda a mesma autora, a territorialidade principalmente umavivncia de carter individual ou mesmo compartilhada que se vincula a umespao tendo em vista a projeo de uma identidade individual ou coletiva.Enquanto projeo de identidade social, a territorialidade nunca deixa de existir,podendo, sim, permanecer escondida, manifestando-se primordialmente atra-vs e quando h confrontos pelo territrio, com outro grupo, sendo, por isso,eminentemente contrastiva (MESQUITA, 1992:76 e 79).

    Nesse caso, para ser considerado como pertencente a determinadogrupo, com dada referncia territorial, h necessidade que o indivduo esteja

  • 46 Revista TERRIT6RIO, ano 111,nO 5, jul./dez. 1998

    localizado nos limites circunscritos do territrio ou do pretenso territrio. Aque-les que no residem dentro desses limites simplesmente so excludos dessaidentidade territorial (SACK, 1986:37). Assim sendo, o componente territorial um elemento de significativa importncia para criar diferentes acessos aosobjetos espaciais. E isso melhor garantido no momento em que seinstitucionaliza, ou formaliza, a instncia territorial, como no caso da criaode um municpio.

    Com base nisso, que podemos compreender que as ansiedades queafloram a partir das necessidades construdas no lugar - permeadas da idiade progresso, desenvolvimento, empregos, justia social, etc. - tm razesnas identidades do grupo social com o lugar que habita, permitindo umaimbricao do poltico com o cultural, do econmico com o social, do internocom o externo (TAVARES, 1992:5).

    Nesse sentido, a gnese do processo de emancipao em aglomera-es urbanas tem a ver inicialmente com um tipo de territorialidade,precipuamente familiar e cultural. mas que se vai amalgamando com umaexpresso senhorial de territorialidade que, por sua vez, caracteriza um tipoespecfico de uso poltico do territrio, que tende a anular diferenas, deslo-car conflitos ou mesmo escond-los.

    em cima da mobilizao induzida por um quadro de carncias que seorganizam as redes de articulao poltica, as quais instrumentalizam a eman-cipao. Tais estratgias tornam-se muito mais fceis de serem concretiza-das quando se tratam de espaos que apresentam um ritmo de crescimentopopulacional significativo, de baixa renda e que mora em reas com umainfra-estrutura precria, o que se traduz num potencial eleitoral de grandesretornos para essas lideranas locais.

    Em torno disso, criam-se representaes do espao expressas comogeografismos6 e/ou territorialisrnos? , com vista ao uso poltico do territrio, muitobem veiculadas por lideranas polticas que buscam se apropriar do movimen-to. Idias de que um lugar explora o outro ou de que o poder municipal noinveste em determinados bairros cria um sentimento de perda, de explorao ede excluso que acaba por definir uma dada identidade territorial que mobilizaaes emancipatrias. Isso porque as aes governamentais ocorrem a partirde territrios formalmente constitudos, ainda que estes no reflitam necessari-amente a complexidade da produo do espao metropolitano.

    O discurso apresentado nesse nvel leva a crer que na instnciaterritorial almejada - no caso, a instncia municipal- que os problemas obje-

    6 Segundo LACOSTE (1988:65), correspondem a metforas por meio das quais ex-pressam-se idias de dominao e explorao de um lugar em relao a outro ou deum espao em relao a outro, omitindo-se os verdadeiros sujeitos ou grupos soci-ais que exercem esses papis.7 Entendido como o mau uso da territorialidade, atravs do qual se sobrevaloriza umterritrio de pertencimento (BRUNET et ai. apud HAESBAERT, 1995b).

  • Agentes, redes e territorialidades urbanas 47

    tos de surgimento da idia de emancipao sero invariavelmente resolvi-dos. Trata-se, como nos diz SACK (1986:39), de designar a soluo dessesproblemas para a escala errada. Na situao apresentada, sabido que naescala metropolitana que eles se constituem.

    Para os usurios da cidade, entretanto, devido a prpria complexidadede produo do espao metropolitano, torna-se obscuro detectar a quem re-correr para encaminhar suas reivindicaes, uma vez que a ingerncia deoutras formas de poder extra-municipal na escala local acaba por gerar sri-os conflitos e aguar a chamada desordem urbana. Os programas habitacionaisdo Governo Federal constituem bons exemplos desse tipo de ingerncia daesfera federal no espao municipal, haja vista que sua atuao sobre o muni-cpio realizada, na maioria das vezes, sem nenhuma consulta aos setoresresponsabilizados pelo crescimento e direcionamento da cidade (SILVA,1992:168).

    Portanto, na situao em referncia, na compreenso dessa escalade organizao do espao - a metrpole - que se deve pensar a gestoterritorial. Do contrrio, o que ocorre um deslocamento da causa dos confli-tos para conflitos entre os prprios territrios, entre a rea central da metr-pole e o subrbio, ou mesmos entre estes ltimos. Esta atitude acaba porobscurecer sensivelmente o impacto espacial dos eventos, dificultando so-bremaneira a visualizao dos verdadeiros processos que os originam.

    Em funo disso, so ratificados e reproduzidos modelos de territoria-lidades que comportam partilhas e remembramenlos:

    "So processos emancipatrios ou agregadores que decorremde interesses especficos de grupos polticos ou econmicos nabusca de definir 'territrios de poder' onde a representatividadeoficial a garantia da defesa desses interesses respaldados pelastradies democrticas. Como artifcio de legitimidade, o discur-so procura identificao com pretensas aspiraes das comuni-dades envolvidas, passando a demarcar territorialidades, ora for-jando uma identidade territorial, ora funcionando como represen-tao de interesses locais e regionais" (MOURA et ai., 1994:114).

    Mu itas vezes, mais que forjar tais identidades, a estratgia principal-mente de apropriar-se delas e ratific-Ias, haja vista que a prpriaheterogeneidade do espao produzido e o padro de excluso existente en-carregam-se de conferir essa aproximao identitria forosamente construda,a partir da forma metropolitana dispersa, por exemplo.

    Num outro plano, significa tambm o controle da arrecadao de im-postos locais, principalmente do Fundo de Participao dos Municpios (FPM)- calculado sobre o total da populao residente - por esses grupos que seinteressam pela idia de emancipao, significando que as territorialidadesformais almejadas circunscrevem limites relacionados gesto do espao, a

  • 48 Revista TERRITRIO, ano 111,n 5, jul./dez. 1998

    decises polticas, a investimentos socioeconmicos e, principalmente, pro-moo poltica.

    Esse tipo de estratgia mostra que as partilhas territoriais, tendo emvista interesses locais especficos, acabam por facilitar que o territrio figurecomo objetivo final do processo e no como de fato ele se insere, ou seja,como meio de controle (SACK, 1986:39).

    O discurso favorvel emancipao, por exemplo, dilui diferenas, numforte sentimento de defesa contra o externo. Iguala-se o que no igual,caracterizando aquilo que MORAES chama de ideologias geogrficas, ge-rando uma espcie de mentalidade corporativa de base espacial: "o estabele-cimento de laos entre os indivduos tendo por referncia os locais de origemou residncia atua no sentido de criar falsas comunidades de interesses, vei-culando uma iluso de identidade" (MORAES, 1988:101 ,.

    Consideraes finais

    Diante do exposto, preciso considerar que o espao nao e apenasproduto ou reflexo das relaes sociais, ele tambm fora capaz de repro-duzir tais relaes. As estratgias em torno das apropriaes diferenciadasdo espao urbano pressupem considerar esses atributos do espao social-mente produzido.

    Na correlao de foras estabelecida entre os agentes, o que est emjogo parece ser o controle das localizaes socialmente produzidas. Em de-terminadas circunstncias algumas aes no se mostram perspicazes quantoa importncia dessa estratgia scio-espacial, ou mesmo se colocam impo-tentes. face a outras aes estrategicamente mais eficazes e melhor organi-zadas em redes de articulao poltica. A forma urbana e o padro de segre-gao scio-espacial da cidade capitalista resulta desse embate, que, porsua vez, fruto de um conjunto de aes que viabilizam as diferentes estrat-gias de apropriao do espao.

    Mas como se garante a manuteno da forma urbana, o seu padro deorganizao interna, e a apropriao diferenciada do urbano?

    As diretrizes do processo de (re)estruturao espacial so definidaspelos agentes hegemnicos da produo social do espao, mas concorrempara essa conformao os demais agentes locais que estabelecem correla-es de foras e redes de ao com vistas apropriao e o controle doespao. Isto facilitado pela transformao do espao social em espaoabstrato, ou seja, do espao precipuamente valor de uso em espao merca-doria. Para isso, a cidade vendida em pedaos, como fragmentos de umimenso mosaico; sendo esta fragmentao uma forma de viabilizar a suatransformao em mercadoria. Isso facilita imensamente a configurao deterritorialidades diversas, atravs das quais a mercadoria espao e o usopoltico~'do territrio so recorrentes. A existncia dessas territorialidades,

  • Agentes, redes e territorialidades urbanas 49

    como vimos, definem o espao como condio e meio de reproduo dasrelaes sociais.

    Os territrios e as territorialidades, sendo expresses espaciais b-sicas da presena do poder em suas mltiplas dimenses, oferecem umaligao essencial entre a sociedade, o espao e o tempo, pois atravs delesque os agentes e suas coligaes, aqui definidas como redes, constroem emantm as organizaes espaciais. Foi esse raciocnio que procuramos per-seguir ao considerar a existncia de territorialidades urbanas e ao selecionaralguns exemplos importantes para esse tipo de reflexo.

    Bibliografia

    ALMEIDA, R. S. (1983): Alternativas da promoo imobiliria em grandes centrosurbanos: o exemplo do Rio de Janeiro. In: VALLAOARES, L. P. (org.) Repen-sando a habitao no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, pp. 169-99 (Cal. DebatesUrbanos, 3).

    BECKER, B. K. (1983): O uso poltico do territrio: questes a partir de uma viso doterceiro mundo. In: BECKER, B. et ai. (orgs). Abordagens polticas daespa cialida de. Rio de Janeiro: UFRJ, pp. 1-21.

    CORRA, R. L (1994): Territorialidade e corporao: um exemplo. In: SANTOS, M. elai. (orgs.). Territrio: globalizao e fragmentao. So Paulo: Hucitec, pp.251-56,

    DORFMAN, A, (1995): As escalas do territrio e sua articulao: uma reviso. In:MESQUITA, Z. & BRANDO, c. R. (Orgs). Territrios do cotidiano: uma intro-duo a novos olhares e experincias. Porto Alegre: Editora da UFRGS, pp.99-108.

    FOUCAULT, M. (1988): Microfsica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 7~ ed.

    GOTTDIENER, M. (1993): A produo social do espao urbano. So Paulo: Edusp.

    GUATTARI, F. (1985): Espao e poder: a criao de territrios na cidade, Espao &Debates, So Paulo, ano V, nQ 16, pp. 109-120,

    GUATI ARI, F. & ROLNIK, S. (1996): Micropoltica: cartografias do desejo. Petrpolis:Vozes, 4. ed.

    HAESBAERT, R. (1995a): Gachos no Nordeste: modernidade, desterritorializaoe identidade. So Paulo. Tese (Doutorado em Geografia Humana). Faculdadede Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo.

    __ (1995b): Desterritorializao: entre as redes e os aglomerados de excluso,In: CASTRO, I. E. et ai. (Orgs). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, pp. 165-206.

    LACOSTE, Y. (1988): A geografia - isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra.Campinas: Papirus.

  • ,50 Revista TERRIT6RIO, ano 111,n 5, jul./dez. 1998

    LAVINAS, L. & RIBEIRO, L. C. (1991): Terra e capital na urbanizao do campo e dacidade. In: PIQUET, R.: RIBEIRO, A. C. Brasil, territrio C1adesigualdade:descaminhos da modernizao. Rio de Janeiro: Zahar, pp. 69-84.

    MACHADO, M. S. (1994): A territorialidade pentecostal: um estudo de caso em Niteri,Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 56, n 1/4, pp. 135-164,jan.ldez.

    MESQUITA, Z. (1992): Antenas, redes e razes da territorialidade. So Paulo. Tese(Doutorado em Geografia Humana) - Faculdade de Filosofia, Letras e Cinci-as Humanas, Universidade de So Paulo.

    __ (1995): Do territrio conscincia territorial. In: MESQUITA, Z.; BRANDO,C. R. (Orgs.). Territrios do cotidiano: uma introduo a novos olhares e ex-perincias. Porto Alegre: Editora da UFRGS, pp.76-92.

    MORAES, A. C. R (1988): Ideologias geogrficas. So Paulo: Hucitec.

    MOURA, R. et ai. (1994): Territorialidades em movimento. In: ULTRAMARI, C. &MOURA, R. (orgs.) Metrpole. Grande Curitiba: teoria e prtica. Curitiba:IPARDES, pp.113-20.

    MOURA, R. & ULTRAMARI, C. (1994): Metrpoles: encruzilhadas de muitos cami-nhos. In: : ULTRAMARI, C. & MOURA, R. (orgs.): Metrpole, Grande Curitiba:teoria e prtica. Curitiba: IPARDES, pp.101-10.

    RAFESTIN, C. (1977): Paysage etterritorialit. Cahiers de Geographie de Quebec.Quebec, v. 21, n 23-24, pp. 123-34, sep./dec.

    __ (1993): Por uma geografia do poder. So Paulo: tica.

    RONCAYOLO, M. (1986): Territrio. In: Enciclopdia Einaudi: regio. Porto: Impren-sa Nacional-Casa da Moeda, v. 8, pp. 262-90.

    __ (1990): La ville et ses territoires. Paris: Gallimard (Collection Folio/Essais).

    SACK, R. D. (1986): Human territoriality: IIs Theory and History. Cambridge: CambridgeUniversity Press.

    SCH ERER-WARREN, I. (1996): Metodologia de redes no estudo das aes coleti-vas e movimentos sociais. In: FARRET, R. (org): Modernidade, excluso e aespacialidade do futuro: VI Encontro Nacional da ANPUR. Anais ... Braslia:ANPUR, pp.1045-52.

    SILVA, J. B. (1992): Quando os incomodados no se retiram. Uma anlise dos movi-mentos sociais em Fortaleza. Fortaleza: Multigraf.

    SOUZA, M. J. L. (1995): O territrio. Sobre espao e poder, autonomia e desenvolvi-mento. In: CASTRO, I. E. et ai. (orgs.). Geografia: conceitos e temas. Rio deJaneiro: Bertrand Brasil, pp. 77-116.

    TAVARES, M. G. C. (1992): O municpio no Par. A dinmica territorial municipal deSo Joo do Araguaia - PA. Rio de Janeiro. Dissertao (Mestrado em Geo-grafia) - Programa de Ps-Graduao em Geografia, Universidade Federaldo Rio de Janeiro.

    Page 1TitlesAGENTES, REDES E

    Page 2Page 3Page 4Page 5Page 6Page 7Page 8Titles3. Alguns Exemplos de Territorialidades Urbanas

    Page 9Page 10Page 11Page 12Page 13Page 14Page 15Page 16Page 17Page 18Page 19TitlesBibliografia

    Page 20Titles,