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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CURSO DE MEDICINA - CAMPUS SOBRAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE DA FAMÍLIA POLLYANNA MARTINS ANÁLISE DO PROCESSO DE TRABALHO DAS EQUIPES DE SAÚDE BUCAL NA MICRORREGIÃO DE SOBRAL E SUA RELAÇÃO COM OS ATRIBUTOS DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE SOBRAL 2012

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEAR

    CURSO DE MEDICINA - CAMPUS SOBRAL

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SADE DA FAMLIA

    POLLYANNA MARTINS

    ANLISE DO PROCESSO DE TRABALHO DAS EQUIPES DE SADE BUCAL

    NA MICRORREGIO DE SOBRAL E SUA RELAO COM OS ATRIBUTOS DA

    ATENO PRIMRIA SADE

    SOBRAL

    2012

  • POLLYANNA MARTINS

    ANLISE DO PROCESSO DE TRABALHO DAS EQUIPES DE SADE BUCAL

    NA MICRORREGIO DE SOBRAL E SUA RELAO COM OS ATRIBUTOS DA

    ATENO PRIMRIA SADE

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sade da Famlia da Universidade Federal do Cear, Campus Sobral, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Sade da Famlia. rea de Concentrao: Gesto em Sade.

    Orientadora: Profa. Dra. Andra Slvia Walter de Aguiar

    SOBRAL

    2012

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao Universidade Federal do Cear

    Biblioteca da Faculdade de Medicina de Sobral

    M345a Martins, Pollyanna.

    Anlise do processo de trabalho das equipes de sade bucal na microrregio de Sobral e sua relao com os atributos da ateno primria sade / Pollyanna Martins. 2012.

    182 f. : il. color., enc. ; 30 cm. Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Cear, Faculdade de Medicina Campus

    Sobral, Programa de Ps-Graduao em Sade da Famlia, Sobral, 2012. rea de Concentrao: Gesto em sade. Orientao: Prof. Dr. Andra Slvia Walter de Aguiar. 1. Sade da famlia. 2. Ateno primria sade. I. Ttulo.

    CDD 616.31

  • POLLYANNA MARTINS

    ANLISE DO PROCESSO DE TRABALHO DAS EQUIPES DE SADE BUCAL

    NA MICRORREGIO DE SOBRAL E SUA RELAO COM OS ATRIBUTOS DA

    ATENO PRIMRIA SADE

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sade da Famlia da Universidade Federal do Cear, Campus Sobral, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Sade da Famlia. Linha de Pesquisa: Gesto em Sade.

    Aprovada em: _______/_________/_________

    BANCA EXAMINADORA

    _________________________________________________

    Prof. Dra. Andra Slvia Walter de Aguiar (Orientadora) Universidade Federal do Cear (UFC)

    ________________________________________________

    Prof. Dra. Maria Socorro de Arajo Dias Universidade Vale do Acara (UVA)

    _________________________________________________

    Prof. Dra. Maria Adelane Monteiro da Silva

    Universidade Vale do Acara (UVA)

  • Dedico esta produo a todos os guerreiros que, assim com eu, militam no campo da sade coletiva em busca de evidncias e caminhos que consolidem a Estratgia Sade da Famlia.

  • AGRADECIMENTOS

    Considero a parte mais difcil da dissertao, pois aqui o nico lugar que temos para

    manifestar nossa gratido a tantas pessoas e instituies que colaboraram na execuo deste

    trabalho cientfico. Em uma das primeiras orientaes que tive coma Profa. Andra, ela disse:

    no se faz pesquisa sozinho, e durante a construo desta dissertao lembrei desta frase

    todos os dias.

    Agradeo a Deus por ter me dado fora para superar todos os obstculos que surgiram

    nesta caminhada. Aos meus pais, que mesmo distantes da vida acadmica, compreenderam a

    importncia da concluso deste trabalho e se deslocaram 550 km nos momentos mais difceis,

    para cuidar do Yan. Ao meu filho, Yan Victor, que, na inocncia dos seus cinco aninhos,

    parava de reclamar minha ausncia quando algum lhe dizia que a mame estava estudando

    no mestrado.

    Aos articuladores dos municpios da 11 CRES, que ajudaram na coleta dos

    questionrios: Ana Raquel, Diego, Osvaldo, Emanuel, Francisca Artelncia, Heber, John,

    Benedita Tatiane, Marcos Vinicius, Aurivan, Shirley, Maria da Conceio, Gessilene, Fco.

    Ronaldo, Olimpio, Jos Osmar, Georgiana, Breno, Elzimar, Luciane, Anita Amorim e

    Ronald.

    Secretaria de Sade de Massap-CE, por a liberao para cursar o mestrado. Dra.

    Lucila Magalhes, coordenadora da 11 CRES que autorizou a realizao desta pesquisa.

    CAPES, pelo apoio financeiro, atravs da concesso da bolsa de auxilio pesquisa.

    Aos professores e colegas do mestrado pelo aprendizado. Aos Professores Edson

    Holanda Teixeira e Socorro Dias, que participaram da qualificao deste projeto. s

    Professoras Socorro Dias e Adelane Monteiro, que aceitaram participar da banca de defesa.

    E, por ltimo, mas no menos importante, quero agradecer a minha Orientadora, a

    Profa. Andrea Silvia Walter de Aguiar, por todo o aprendizado, dedicao, empenho,

    compromisso que dedicou na construo desta dissertao. O processo de orientao foi muito

    cuidadoso e bastante prazeroso, regado com muita responsabilidade e afetividade. Pessoas

    como voc alimentam a paixo que tenho pelo ensino e sade coletiva.

  • RESUMO

    Esta dissertao analisa o processo de trabalho das Equipes de Sade Bucal (ESB), na

    Ateno Primria Sade (APS) da 11 Regio de Sade (RS) de Sobral, Cear, e sua relao

    com os atributos da APS. Utilizou-se questes adaptadas do Instrumento de Avaliao da

    APS (PCATool), verso profissionais, e questes abertas. Anlises de correlao utilizando

    testes estatsticos verificaram associao entre as variveis. O mtodo de anlise de contedo

    temtica foi aplicado nas perguntas abertas. O questionrio foi respondido por 91 Cirurgies-

    Dentistas (CD) e a taxa de no resposta e recusas foi de 12,8%. Os atributos coordenao do

    cuidado e orientao familiar apresentaram alto escore geral (> 6,6) em todos os portes

    populacionais. A orientao comunitria e competncia cultural apresentaram escore prximo

    ao ideal. Os atributos da longitudinalidade e acesso apresentaram baixos escores gerais (<

    6,6). O acesso obteve o menor escore mdio em relao a todos os atributos da APS. Todos os

    tipos de porte populacional apresentaram baixo escore geral para APS. Observou-se

    associao positiva entre o porte populacional dos municpios, a presena de cadastro dos

    pacientes, a realizao de visitas domiciliares e a flexibilidade dos horrios de atendimento

    das ESB. A empregabilidade, atravs de vnculos formais, apresentou-se positivamente

    associada ao tempo de permanncia na mesma equipe, e negativamente associada ao porte

    populacional. A especializao em Sade da Famlia esteve positivamente associada ao tempo

    de trabalho dos CD na APS. A programao da demanda foi mais presente nas ESB de

    municpios acima de 20.000 habitantes. Os grupos mais priorizados entre as ESB, que

    apresentam algum tipo de programao de demanda, foram os de gestantes, crianas, adultos

    e idosos. A maioria das ESB (86%) realiza procedimentos clnicos bsicos, entretanto, a

    realizao de outras atividades, como visitas domiciliares e instalao de prteses totais esto

    em fase inicial de implantao. A garantia de atendimento demanda espontnea e tambm a

    realizao de aes programticas ainda se constituem como desafios para as ESB. A

    mudana das prticas no processo de trabalho das ESB est em processo incipiente,

    entretanto, verificou-se uma maior sistematizao destas aes em municpios de grande

    porte.

    Palavras-Chave: Ateno Primaria Sade. Programa Sade da Famlia. Servios de Sade Bucal.

  • ABSTRACT

    The objective of this study was to analyze the process of work of the Oral Health Teams

    (OHT), at the Primary Health Care (PHC) in 11th Region Health of Sobral city, Cear state,

    Brazil, and OHT in relation to the attributes of the PHC. For data collection, questions

    adapted from the Assessment Instrument PHC (PCATool), professional version and

    subjective questions. Statistical tests analyzed the association between the variables. The

    method of thematic content analysis was applied to the subjective questions. The

    questionnaire was answered by 91 dentists and the non-response rate and refusals was

    12.8%.The coordination of care and family counseling had a high overall score (> 6.6) in all

    population sizes. A community orientation and cultural competence scores were close to

    ideal. The acess and the longitudinality attribute reached low overall score (

  • LISTA DE FIGURAS E GRFICOS

    Figura 1 - Distribuio das Equipes de Sade Bucal (ESB) inseridas na Estratgia em Sade da Famlia (ESF), nos municpios da 11 Regio de Sade, de acordo com o porte populacional, Sobral CE, 2011. .......................................................................................... 97

    Figura 2 Distribuio dos cirurgies-dentistas inseridos na Estratgia em Sade da Famlia (ESF), nos municpios da 11 RS, de acordo com o nvel de ps-graduao, Sobral CE, 2011 ................................................................................................................. 102

    Figura 3- Distribuio de especialistas em Sade Coletiva e da Famlia por porte populacional .......................................................................................................................... 104

    Grfico 1- Evoluo e metas do nmero de Equipes de Sade da Famlia implantadas no Brasil, de 1994 a 2010. ........................................................................................................... 47

    Grfico 2 - Evoluo e metas de implantao do nmero de Equipes de Sade Bucal implantadas no Brasil, de 2001 a 2010. ................................................................................. 47

    Grfico 3- Distribuio das ESB nas Modalidades I e II, no estado do Cear, no perodo de 2001 a 2010. ....................................................................................................................... 63

    Grfico 4 - Presena de programao da demanda nas ESB da 11 RS, por porte populacional. ......................................................................................................................... 128

    Quadro 1- Tipos de Abordagens de Ateno Primria Sade......................................35

    Quadro 2 - Relaes entre processos de trabalho e atribuies das equipes da AB, ESF e Abordagens de APS. ............................................................................................................... 49

    Quadro 3- Atribuies comuns da equipes de Sade da Famlia ....................................... 70

    Quadro 4 - Atribuies especficas da ESB, Cirurgio-dentista, Auxiliar de Consultrio Dentrio e do Tcnico de Higiene Dental. ............................................................................ 71

    Quadro 5 - Descrio dos atributos da APS segundo critrios de anlise e operacionalizao utilizados nesta pesquisa. ........................................................................ 83

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1- Distribuio das ESB segundo tipo de modalidade e cobertura nos municpios da 11 RS, em 2011 ....................................................................................................................... 80

    Tabela 2 - Distribuio das ESB, por porte populacional, dos municpios componentes da 11 RS.2011 ............................................................................................................................. 82

    Tabela 3 - Distribuio dos cirurgies-dentistas (CD) das Equipes de Sade Bucal (ESB) inseridas na Estratgia em Sade da Famlia (ESF), nos municpios da 11 RS, de acordo com sexo, faixa etria, status marital e presena de filhos, Sobral CE, 2011 .................. 98

    Tabela 4 - Distribuio dos cirurgies-dentistas (CD) das Equipes de Sade Bucal (ESB) inseridas na Estratgia em Sade da Famlia (ESF), de acordo com o grau de formao, localizao, tipo de vnculo empregatcio e exerccio da funo nos municpios da 11RS ................................................................................................................................................ 100

    Tabela 5 - Distribuio de especialistas por rea de especialidade, de acordo com o porte populacional, nos municpios da 11 RS ............................................................................. 104

    Tabela 6 - Distribuio dos CD por tempo total de trabalho na ESF e na ESB que atualmente est vinculado ..................................................................................................... 105

    Tabela 7 - Distribuio das caractersticas do atributo acesso/ primeiro contato das Equipes de Sade Bucal (ESB) inseridas na Estratgia em Sade da Famlia (ESF), nos municpios da 11 Regio de Sade, de acordo com o porte populacional, Sobral CE, 2011 ........................................................................................................................................ 110

    Tabela 8 - Distribuio do escore mdio do atributo acesso/primeiro contato das Equipes de Sade Bucal (ESB) inseridas na Estratgia em Sade da Famlia (ESF), nos municpios da 11 Regio de Sade, de acordo com o porte populacional, 2011 ........... 111

    Tabela 9 - Distribuio das caractersticas do atributo longitudinalidade do cuidado das Equipes de Sade Bucal (ESB) inseridas na Estratgia em Sade da Famlia (ESF), nos municpios da 11 Regio de Sade, de acordo com o porte populacional, Sobral ce, 2011 ........................................................................................................................................ 114

    Tabela 10 - Frequncia da presena de cadastro dos pacientes (pronturios) nas ESB, por porte populacional, da 11 Regio de Sade de Sobral - CE. 2011 .................................. 116

    Tabela 12 - Distribuio das caractersticas do atributo coordenao do cuidado das Equipes de Sade Bucal (ESB) inseridas na Estratgia em Sade da Famlia (ESF), nos municpios da 11 Regio de Sade, de acordo com o porte populacional, Sobral CE, 2011 ........................................................................................................................................ 121

    Tabela 13 - Grau de orientao das ESB para a coordenao do cuidado, por porte populacional, da 11 Regio de Sade de Sobral - CE. 2011 ............................................ 123

  • Tabela 14 - Escore essencial dos atributos Acesso, longitudinalidade e coordenao do cuidado. .................................................................................................................................. 125

    Tabela 15- Grupos e faixas etrias priorizados no atendimento atravs de demanda programada, por porte populacional .................................................................................... 130

    Tabela 16 - Atendimento atravs de demanda espontnea, de acordo com o porte populacional, dos municpios da 11RS. ............................................................................. 132

    Tabela 17 - Atividades de preveno e promoo da sade realizadas por ESB, de acordo com o porte populacional, dos municpios da 11 RS ........................................................ 135

    Tabela 18 - Procedimentos clnicos realizados por ESB, de acordo com o porte populacional, dos municpios da 11 RS ............................................................................. 136

    Tabela 19 - Outras atividades ou procedimentos de reabilitao realizados por ESB, de acordo com o porte populacional, dos municpios da 11 RS ............................................ 137

    Tabela 20 - Avanos e desafios do atributo integralidade, relatados por ESB, de acordo com o porte populacional, dos municpios da 11 RS ........................................................ 139

    Tabela 21 - Distribuio das caractersticas do atributo orientao familiar das Equipes de Sade Bucal (ESB) inseridas na Estratgia em Sade da Famlia (ESF), nos municpios da 11 RS, de acordo com o porte populacional, Sobral CE, 2011 ............ 146

    Tabela 22 - Grau de orientao das ESB para a Orientao familiar e comunitria e competncia cultural, por porte populacional, da 11 RS. 2011 ........................................ 155

    Tabela 23 - Escore Geral da APS e dos atributos essenciais e derivativos ..................... 157

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AIS Aes Integradas de Sade

    APS Ateno Primria Sade

    CD Cirurgio-dentista

    CEBES Centro Brasileiro de Estudos em Sade

    CEO Centros de Especialidades Odontolgicas

    CEO-M Centro de Especialidade Odontolgica Municipal

    CEO-R Centro de Especialidade Odontolgica Regional

    CESAU Conselho de Sade

    CFO Conselho Federal de Odontologia

    CNES Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Sade

    CNS Conferncia Nacional de Sade

    CNSB Conferncia Nacional de Sade Bucal

    CONASP Conselho Consultivo de Administrao da Sade Previdenciria

    CRES Coordenadoria Regional de Sade

    CTPS Carteira de Trabalho e Previdncia Social

    ENATESPO Encontro Nacional de Administradores e Tcnicos do Servio Pblico

    Odontolgico

    ESB Equipe de Sade Bucal

    ESF Estratgia Sade da Famlia

    EUA Estados Unidos da Amrica

    Hab. Habitantes

    IAP Instituto de Aposentadoria e Penses

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica

    IPECE Instituto de Pesquisa e Estratgia Econmica do Cear

    MG Minas Gerais

    RS Regio de Sade de Sobral, Cear

    MRS Movimento da Reforma Sanitria

    MS Ministrio da Sade

    NOB Norma Operacional Bsica

    OMS Organizao Mundial de Sade

    OPAS Organizao Pan-Americana de Sade

  • PACS Programa de Agentes Comunitrios de Sade

    PCATool Instrumento de Avaliao da Ateno Primria

    PDR Plano Diretor de Regionalizao

    PIA Programa de Inverso da Ateno

    PIASS Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento

    PNAB Poltica Nacional de Ateno Bsica

    PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios

    PNE Pacientes Portadores de Necessidades Especiais

    PNSB Poltica Nacional de Sade Bucal

    PSC Programa Sade em Casa

    PSF Programa Sade da Famlia

    RJ Rio de Janeiro

    RS Rio Grande do Sul

    SESP Servio Especial de Sade Pblica

    SILOS Sistemas Locais de Sade

    SP So Paulo

    SUS Sistema nico de Sade

    UBS Unidade Bsica de Sade

    UNICEF Fundo das Naes Unidas para a Infncia

    USP Universidade de So Paulo

    VD Visita domiciliar

  • SUMRIO

    1. INTRODUO .............................................................................................................. 15

    2. OBJETIVOS ................................................................................................................... 22

    3. ATENO PRIMRIA SADE .............................................................................. 23

    3.1 Contexto histrico ............................................................................................................ 23

    3.2 Enfoques de Ateno Primria Sade ........................................................................ 34

    3.3 Atributos essenciais e qualificadores da Ateno Primria Sade .......................... 37

    4 ATENO PRIMRIA SADE E ESTRATGIA SADE DA FAMLIA ....... 42

    5 ATENO PRIMRIA SADE E POLTICAS DE SADE BUCAL ............... 51

    5.1 Poltica Nacional de Sade Bucal ................................................................................... 64

    5.2 Organizao do processo de trabalho nas Equipes de Sade Bucal ........................... 68

    6 METODOLOGIA ........................................................................................................... 76

    7 RESULTADOS E DISCUSSO ................................................................................... 96

    7.1 Perfil das Equipes de Sade Bucal e cirurgies-dentistas ........................................... 97

    7.2 Acesso / primeiro contato .............................................................................................. 107

    7.3 Longitudinalidade do cuidado ...................................................................................... 112

    7.4 Coordenao do cuidado ............................................................................................... 118

    7.5 Integralidade .................................................................................................................. 126

    7.6 Orientao Familiar ...................................................................................................... 144

    7.7 Orientao comunitria e competncia cultural ........................................................ 147

    8 CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................... 158

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 161

    APNDICES ......................................................................................................................... 173

    ANEXOS ............................................................................................................................... 179

  • 15 1. INTRODUO

    Os primeiros conceitos de Ateno Primria Sade (APS) surgiram na Inglaterra,

    atravs da divulgao do Relatrio Dawson no incio do sculo XX. O relatrio inaugurou os

    primeiros questionamentos sobre os modelos de ateno centrados na doena e tambm

    apresentou os primeiros conceitos de regionalizao, que influenciaram a configurao dos

    sistemas de sade de muitos pases (MINISTRY OF HEALTH, 1920).

    A partir desse momento histrico, aconteceram vrios marcos terico-conceituais e

    experincias em nvel mundial que fortaleceram os cuidados primrios em sade e ampliaram

    o acesso da populao aos servios de sade.

    No Brasil, at a dcada de 30, as aes de sade desenvolvidas pelo estado eram

    voltadas para as comunidades rurais e combate s doenas pestilenciais, em um modelo de

    ateno que ficou conhecido como Sanitarismo Campanhista (LIMA, FONSECA e

    HOCHMAN, 2005). Com o incio do processo de urbanizao do pas, iniciou-se a formao

    da assistncia mdica privada para os assalariados. A prtica privada em sade bucal tambm

    se consolidou, e era financiada por intermdio do seguro social para os trabalhadores e em

    carter complementar. Neste contexto, o campo da sade bucal iniciou sua institucionalizao

    com a fundao das Clnicas Dentrias Escolares, por Baltazar Vieira de Melo, em So Paulo

    (COSTA; CHAGAS; SILVESTRE, 2006; NARVAI, 2006).

    Na dcada de 50, a criao do Servio Especial de Sade Pblica (SESP), atravs de

    um convnio entre o Brasil e Estados Unidos, permitiu a expanso da ateno bsica e dos

    servios de sade bucal. Os primeiros sistemas de fluoretao da gua de abastecimento

    pblico foram inaugurados no Esprito Santo e Minas Gerais. No mbito da sade bucal, a

    proposta sespiana de organizao da ateno aos escolares, de origem americana, que ficou

    conhecida como Sistema Incremental, inaugurou a programao local na Odontologia e foi o

    modelo hegemnico de ateno por mais de quatro dcadas (ZANETTI; LIMA, 1996).

    Entretanto, a adeso s proposies da APS entrou em pauta na agenda brasileira na

    dcada de 70, com a criao do Programa de Interiorizao das Aes de Sade e

    Saneamento (PIASS), que foi inspirado na experincia de Montes Claros (MG) e possibilitou

    expanso da rede de ateno bsica (GIOVANELLA; MENDONA, 2008; ESCOREL;

    NASCIMENTO; EDLER, 2005).

  • 16

    Nas dcadas de 60 e 70, em plena crise mundial, o Relatrio Lalonde, publicado no

    Canad, fez uma crtica viso tradicional do campo da sade, que apontou suas limitaes

    diante da transio epidemiolgica e demogrfica vivida nos pases industrializados. A

    experncia dos mdicos de ps descalos, na China, novamente colocou em pauta a

    importncia dos cuidados primrios sade (CUETO, 2004). Neste contexto, a Organizao

    Mundial de Sade (OMS) realizou a conferncia de Alma-Ata, considerada o maior marco

    para APS.

    A declarao de Alma-Ata definiu a APS como uma estratgia para organizar os

    sistemas de ateno em sade e promover a sade para a sociedade. Considerou a APS o

    primeiro nvel de ateno, que inclui elementos de participao da comunidade,

    intersetorialidade, acessibilidade e cobertura universal com base nas necessidades da

    populao, educao em sade, e uma tecnologia apropriada e efetiva em relao aos

    recursos disponveis (DECLARAO DE ALMA-ATA, 1978).

    Nesta mesma poca, no Brasil, predominava o modelo hospitalocntrico que

    promoveu a expanso da rede hospitalar atravs de construes financiadas pela previdncia

    social. Com a crise no sistema previdencirio brasileiro, a rearticulao dos movimentos

    sociais e as pssimas condies de vida da populao surgiu a proposta de reformulao do

    sistema de sade atravs de uma reforma sanitria.

    O Movimento da Reforma Sanitria (MRS) teve como campo de prticas a proposta

    da Medicina Comunitria, e como massa crtica o Centro Brasileiro de Estudos em Sade

    (CEBES), que se consolidou como setor intelectual em franca oposio poltico-ideolgica ao

    regime militar brasileiro e, consequentemente, ao modelo de sade predominante

    (DAMASO, 1989).

    A partir de dcada de 80, o agravamento da crise da previdncia e as presses sociais

    e polticas do setor sade determinaram a criao de mecanismos para reordenamento do

    sistema de sade. Entre eles o Prev-Sade, o Plano do Conselho Consultivo da Administrao

    da Sade Previdenciria (CONASP) e o Programa de Aes Integradas de Sade (AIS). A

    sade bucal, pela primeira vez, indicada como uma das prioridades das polticas nacionais,

    com incluso de incentivos financeiros para subsidiar os programas (COSTA; CHAGAS;

    SILVESTRE, 2006). Este foi um importante passo para integrao da APS e sade bucal que

    historicamente desenvolvia suas prticas distncia, nas escolas, entre quatro paredes, restrita

    prtica do cirurgio-dentista com seu equipamento odontolgico.

  • 17

    No final da dcada de 80, com a criao do Programa de Agentes Comunitrios de

    Sade (PACS), no Cear, a 8 Conferncia Nacional de Sade (CNS) e a regulamentao do

    Sistema nico de Sade (SUS) renovou-se, no Brasil, o movimento de APS.

    Enquanto que, no contexto internacional, estava em curso uma contrarreforma que

    valorizava a oferta de um pacote bsico de servios para populaes pobres no mbito da

    APS, com o intuito de diminuir as despesas com sade dos pases. Esta contrarrevoluo foi

    liderada pelo Banco Mundial, Fundao Rockefeller e o Fundo das Naes Unidas para a

    Infncia (UNICEF) (WORLD BANCK, 1993). Nesta direo, os pases passaram a olhar a

    APS como um programa de cuidados de sade que prestava cuidados pobres a pessoas

    pobres. Vrias experincias foram desenvolvidas na America Latina e Caribe, reguladas pelas

    diretrizes do Banco Mundial (OMS, 2008).

    A expanso do PACS, em 1991, para todo o Brasil e a criao do Programa Sade da

    Famlia (PSF), em 1994, para alguns autores foi uma resposta s demandas das agncias

    internacionais. Deve-se reconhecer que, se por um lado, a conjuntura era favorvel para

    discusso de novas formas de organizao de servio, em que o PSF sua base estruturante,

    por outro, a dcada de 90 foi o marco das polticas neoliberais na Amrica Latina e Caribe.

    Esse cenrio fez com que alguns autores considerados importantes no movimento sanitrio

    brasileiro julgassem ser o PSF um programa pontual, pacote bsico de assistncia sade,

    cujas bases se sustentavam em um projeto-piloto centrado no mdico, direcionado clientela

    especfica e focalizado em regies pobres. (SOUSA; HAMANN, 2009).

    Entretanto, a implantao do PACS e PSF em nvel nacional, nesta poca, se em um

    primeiro momento se aproximaram das caractersticas da APS seletiva1, posteriormente, ao

    invs de assumirem a lgica de um pacote bsico de servios de sade tornaram-se

    programas estratgicos para a mudana da prpria lgica do modelo de ateno sade

    vigente no pas, o mdico assistencial privatista (GIOVANELLA; MENDONA, 2008;

    COHN, 2005).

    Vale salientar que vrias experincias capilarizadas por todo o pas, como a proposta

    de Mdico de Famlia de Niteri no Rio de Janeiro (RJ), Modelo em Defesa da Vida de

    Campinas em So Paulo (SP), a Ao Programtica em Sade da Universidade de So Paulo

    1 APS Seletiva definida pela Organizao Pan-Americana da Sade (OPAS) como um nmero limitado de servios de alto impacto para enfrentar alguns dos desafios de sade mais prevalecentes nos pases em desenvolvimento.

  • 18 (USP), os Sistemas Locais de Sade (SILOS) operacionalizado no Cear e Bahia e o Grupo

    Hospitalar Conceio em Porto Alegre, Rio Grande do Sul (RS) inspiraram a formulao da

    proposta Sade da Famlia (BRASIL, 2010a; ANDRADE; BARRETO; BEZERRA, 2006;

    SOUSA, 2001).

    Paralelamente, a sade bucal comeou a desenvolver experincias na tentativa de

    ampliar o acesso da populao aos servios de sade e integrar a Odontologia na APS. Estas

    novas formas de vivenciar a organizao do processo de trabalho da sade bucal se

    concretizaram em experincias municipais e docentes assistenciais, e estavam fundamentadas

    em marcos institucionais e nas evidncias da falta de acesso aos servios de sade bucal. Os

    movimentos mais importantes foram:

    A Beb-Clnica em Londrina, Paran, e o Programa de Inverso da Ateno (PIA) de

    Belo Horizonte, Minas Gerais, na dcada de 80.

    O Programa Sade em Casa (PSC), as atividades docentes assistenciais com foco em

    visitas domiciliares, aes de promoo e preveno da sade do Distrito Federal e a

    formao do Distrito Sanitrio em Curitiba, Paran, na dcada de 90.

    Os relatos de experincias de organizao da sade bucal no contexto da sade

    familiar nos encontros de sade bucal coletiva, como a ENATESPO (Encontro

    Nacional de Administradores e Tcnicos do Servio Pblico Odontolgico) de Cuiab

    (1997) e de Fortaleza (1998).

    As conferncias de Alma-Ata, 7 e 8 CNS, 1 e 2 Conferncia Nacional de Sade

    Bucal (CNSB).

    A incluso de procedimentos coletivos para sade bucal na tabela SUS e alocao de

    recursos financeiros para financiamento das atividades de sade bucal.

    A ampliao da rede de ateno bsica, atravs do AIS e PIASS.

    Os levantamentos epidemiolgicos das condies de sade bucal dos brasileiros.

    Divulgao da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD), 1998, que

    demonstrou que, at ento, 29,6 milhes de brasileiros nunca tinham ido ao

    cirurgio-dentista.

    Todas estas experincias e modelos de ateno sade bucal, inovadores na sua

    poca, os marcos institucionais e as evidncias da falta de acesso aos servios de sade bucal,

    inspiraram e tencionaram a incluso da Equipe de Sade Bucal (ESB) na Estratgia Sade da

    Famlia (ESF).

  • 19

    Em 2003 a cobertura populacional das ESB alcanou 20,5% da populao brasileira, o

    que correspondia a cerca de 35,8 milhes de pessoas. Esta cobertura aumentou para 37% em

    2011 (CNSB, 2011). Entretanto, a oferta de ateno sade bucal expandiu-se nas unidades

    de sade do SUS sem a hegemonizao de um novo paradigma sustentvel de programao

    que refletisse coerncia entre os princpios do SUS e as aes assistenciais concretas

    (ZANETTI, 2001).

    Nesta direo, a publicao da Poltica Nacional de Sade Bucal (PNSB), em 2004; a

    Poltica Nacional de Ateno Bsica (PNAB), em 2006, revisada em 2011; e o Caderno de

    Ateno Bsica, em 2008, definiram as diretrizes e orientaes quanto organizao do

    processo de trabalho das ESB na ESF (BRASIL, 2008, 2006a, 2004a).

    Contudo, apesar da expanso da cobertura das ESB, o acesso universal aos servios de

    sade bucal, o planejamento e a programao a partir das necessidades da populao, a

    ateno integral, a continuidade do cuidado e a coordenao da ateno se constituem como

    grandes desafios para as equipes.

    Algumas iniciativas apontam para modelos mais equnimes e universais, com

    orientao familiar. Entretanto, a precarizao nos vnculos de trabalho identificada como

    um obstculo para o desenvolvimento do sistema pblico de sade. Essa questo compromete

    a relao dos trabalhadores com o sistema, prejudica a qualidade e a continuidade dos

    servios prestados, gera rotatividade dos profissionais nas ESB, o que compromete a

    longitudinalidade. A falta de qualificao, a dificuldade em estabelecer critrios de risco ou

    realizar levantamentos epidemiolgicos para organizao da demanda a partir das

    necessidades da populao, a relao impessoal com as famlias adscritas, a focalizao de

    prticas preventivo-promocionais em escolares e a ausncia de parmetros para avaliao tm

    dificultado o avano do modelo assistencial em sade bucal rumo aos princpios do SUS e da

    ESF. A reduo das disparidades socioeconmicas e medidas de sade pblica dirigidas aos

    grupos mais vulnerveis permanecem como um desafio para todos os que formulam e

    operacionalizam as polticas pblicas de sade bucal no Brasil (ALMEIDA; FERREIRA,

    2008; SOUSA; RONCALLI, 2007; NARVAI et al., 2006; NASCIMENTO et al., 2006;

    LOURENO, 2005; PADILHA et. al., 2005; RODRIGUES; ASSIS, 2005; RONCALLI,

    2000).

    Em contrapartida, os investimentos financeiros so crescentes no setor, e saltaram de

    R$ 56,5 milhes em 2003 para R$ 600 milhes em 2008 com a ampliao da oferta de

  • 20 servios na rede de APS e nos Centros de Especialidades Odontolgicas (CEO). (ANTUNES;

    NARVAI, 2010).

    O Ministrio da Sade, por meio do Departamento de Cincia e Tecnologia e da

    Coordenao Nacional de Sade Bucal/Departamento de Ateno Bsica/Secretaria de

    Assistncia Sade, em conjunto com o Ministrio de Cincia e Tecnologia aumentou

    tambm os investimentos em pesquisa e destinou desde 2002/2003 at 2008 R$ 4.080.403,48

    milhes para pesquisa em sade bucal coletiva. Foram aprovados, no total, 99 Projetos de

    Pesquisa na subagenda da sade bucal. Essa iniciativa tem o objetivo de expandir a produo

    do conhecimento bsico aplicado em sade bucal, contribuindo para o desenvolvimento de

    aes pblicas voltadas para a melhoria das condies de sade e para a superao das

    desigualdades. Tambm atende a uma antiga reivindicao dos pesquisadores odontolgicos

    que, a partir de agora, vm tendo o apoio efetivo do Ministrio da Sade para construir os

    conhecimentos que o Brasil precisa nesta rea (CNSB, 2011).

    Neste cenrio, a produo terica sobre organizao do processo de trabalho das ESB

    e os modelos assistenciais de sade bucal no mbito da APS no SUS foi incrementada e

    experincias locais de implantao das ESB esto sendo divulgadas, descritas e avaliadas.

    A presente pesquisa contextualiza-se no cenrio descrito, apoiado no referencial

    terico e postulados de Starfield (2002), que a partir da reviso de vrios estudos

    avaliativos e evidncias da efetividade da APS, definiu uma estrutura para medio e

    determinou seus conceitos. Para autora, a APS se diferencia dos outros nveis de ateno

    por quatro atributos essenciais - acesso/ateno ao primeiro contato, longitudinalidade,

    integralidade e coordenao do cuidado - e trs atributos derivativos - centralizao na

    famlia, competncia cultural e orientao comunitria.

    Esses atributos podem ser avaliados ou descritos separadamente, apesar de se

    apresentarem intimamente inter-relacionados na prtica assistencial, individual ou coletiva,

    dos servios de APS. Assim, um servio de sade dirigido populao geral pode ser

    considerado provedor de ateno primria quando apresenta os quatro atributos essenciais,

    aumentando seu poder de interao com os indivduos e com a comunidade ao apresentar

    tambm os atributos derivados.

    A identificao rigorosa da presena e extenso dos atributos citados fundamental

    para definir um servio como realmente orientado para a APS. Alm disso, a identificao

  • 21 dos avanos e desafios em relao orientao do processo de trabalho das ESB para os

    atributos da APS permite verificar se ocorreu mudana no modelo assistencial das equipes

    paralelamente ao aumento da cobertura dos servios.

    Nesta perspectiva, as questes que orientam este projeto a ser desenvolvido na 11

    Regio de Sade de Sobral, Cear, so:

    Qual a relao existente entre o processo de trabalho das ESB e os atributos essenciais

    e derivativos da APS?

    Quais fatores dificultam ou favorecem o atendimento dos atributos essenciais da APS

    no processo de trabalho das ESB?

    Existe alguma relao entre o porte populacional dos municpios e a organizao do

    processo de trabalho das ESB?

  • 22 2. OBJETIVOS

    Objetivo Geral

    Analisar o processo de trabalho das Equipes de Sade Bucal (ESB), na Estratgia de

    Sade da Famlia (ESF), na 11 Regio de Sade de Sobral, no estado do Cear, em 2011.

    Objetivos especficos

    Caracterizar e descrever as ESB inseridas na ESF.

    Descrever o processo de trabalho das ESB em relao aos atributos essenciais da

    APS: acesso/primeiro contato, longitudinalidade do cuidado, coordenao da ateno

    e integralidade.

    Analisar as aes das ESB no mbito da APS em relao aos atributos derivativos:

    orientao familiar, orientao comunitria e competncia cultural.

    Relacionar o porte populacional dos municpios pesquisados e a organizao dos

    processos de trabalho das ESB.

  • 23 3. ATENO PRIMRIA SADE

    3.1 Contexto histrico

    Muitas anlises sociais, demogrficas e polticas percorreram a histria da sade

    pblica que, em suas origens, esteve estreitamente vinculada ao contexto histrico e suas

    circunstncias e s polticas de sade que se desenvolveram, tanto nos pases europeus como

    nas Amricas (NUNES, 2006).

    Os conceitos de cuidados primrios em sade originaram-se em 1920, na Inglaterra,

    quando Lord Dawson, presidente do Conselho Consultivo de Servios Mdicos e Famlia,

    apresentou ao parlamento um documento detalhado sobre os servios de sade. O Relatrio

    Dawson recomendou que a distribuio dos servios mdicos deveria considerar as

    necessidades da populao, a preveno no poderia ser separada da medicina curativa e os

    servios de sade deveriam ser coordenados (MINISTRY OF HEALTH, 1920).

    Lord Dawson acreditava que o sistema de sade deveria ser composto por centros de

    sade primrios, centros de sade secundrios, servios domiciliares e hospitais escola. As

    bases do conceito de regionalizao se originaram a partir desse relatrio (Anexo A). Para

    Starfield (2002), um sistema de sade que utiliza a regionalizao como forma de organizar e

    coordenar a ateno deve ser planejado para responder aos vrios nveis de necessidades em

    sade da populao. O conceito de regionalizao, proposto por Dawson, influenciou a

    reorganizao dos servios de muitos pases.

    No contexto internacional, iniciava-se o debate sobre cuidados primrios em sade,

    enquanto no contexto brasileiro, at a dcada de 30, as oligarquias rurais predominavam e as

    polticas de sade encontravam-se voltadas para doenas pestilncias como a varola, febre

    amarela e peste bubnica (LIMA; FONSECA; HOCHMAN, 2005).

    As aes de sade e saneamento eram centralizadas e verticalizadas, voltadas para

    comunidades rurais. Nesse perodo, conhecido como Primeira Repblica, eclodiu um

    movimento sanitrio influenciado pelos modelos de polcia mdica na Alemanha, reforma

    urbana de Paris e o Instituto Pasteur, na Frana, sob a liderana de mdicos formados nestes

    pases, denominado Sanitarismo Campanhista (LIMA; FONSECA; HOCHMAN, 2005).

  • 24

    As duas principais instituies de pesquisa biomdica e sade pblica do pas,

    Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro e Butant no estado de So Paulo, originaram-se nesse

    perodo e passaram a influenciar as aes em sade pblica. criado tambm, em 1926, o

    Departamento Nacional de Sade Pblica. O movimento sanitarista transformou a sade em

    uma questo social e poltica (LIMA; FONSECA; HOCHMAN, 2005).

    Na primeira metade do sculo XX, nos pases europeus, expandiu-se a oferta de

    servios de sade a partir do modelo de seguro social concebido na Alemanha por Otto Von

    Bismarck e da criao, no Reino Unido, do Servio Nacional de Sade, que teve como

    influncia o relatrio escrito por Sir Willian Beveredge. A proposta beveridiana inaugurou

    um novo marco na sade com a garantia de acesso universal. Nesta perspectiva, atualmente,

    os sistemas de sade dos pases que tem como base de financiamento o seguro social

    originam-se da proposta bismarkiana e aqueles que tm como princpio o acesso universal

    fundamentaram-se na proposta beveridiana. (CONIL, 2006).

    Essas duas modalidades de financiamento e organizao de servios da sade

    influenciaram a configurao dos sistemas de sade nas Amricas e Europa.

    No Brasil, no mesmo perodo, um movimento armado liderado pelos estados de

    Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraba culminou no golpe que deps o presidente

    Washington Lus, impediu a posse do presidente eleito Jlio Prestes e ps um fim a

    Repblica Velha (Era caf com leite). Iniciou-se a predominncia da estrutura urbano-

    industrial (DONNANGELO, 1975).

    Este perodo, conhecido como era Vargas (1930-1945), implementou polticas de

    sade que refletiam as alteraes nos campos poltico (diferenas regionais nas atividades

    econmicas), ideolgico (projeto poltico ideolgico da construo do estado nacional) e

    institucional (criao do Ministrio de Educao e Sade Pblica). Estabeleceu-se a

    assistncia mdica previdenciria com a criao dos Institutos de Aposentadoria e Penses

    (IAP), a prestao de servios para populaes pobres, desempregadas por instituies

    filantrpicas e as aes de sade pblica voltadas para controle de vetores e doenas

    especficas como cncer, tuberculose, lepra e doenas mentais (ANDRADE; BARRETO;

    BEZERRA, 2006; LIMA; FONSECA; HOCHMAN, 2005).

    As aes de sade pblica, basicamente resumidas em campanhas verticalizadas,

    foram descentralizadas para os estados e seguiram sob orientao do governo federal. Essas

  • 25 diretrizes adequavam ao contexto brasileiro propostas debatidas em fruns internacionais

    patrocinados pela Organizao Pan Americana de Sade (OPAS) e medidas preconizadas e

    aplicadas nos Estados Unidos da America (EUA) (LIMA, FONSECA e HOCHMAN, 2005).

    Na dcada de 50, o modelo de ateno sade, a partir de aes e campanhas

    verticalizadas, como as abordagens verticalizadas da OMS para erradicao da malria,

    foram foco de crticas. Novas propostas para sade e desenvolvimento foram elaboradas

    pelos pases membros da OMS. Os marcos terico-conceituais que influenciaram esse

    movimento foram: os livros de John Bryant, Health and the Developing World, que

    questionou os sistemas de sade baseados em hospitais e falta de nfase na preveno; de

    Carl Taylor (Universidade de Jonh Hopinks), que sugeriu um modelo de ateno sade para

    pases pobres; e o relatrio Health By the People, da OMS (CUETO, 2004).

    Apesar dos questionamentos sobre as campanhas e aes da OMS, o Brasil adere, em

    1958, campanha de erradicao da malria proposta por esse rgo, que se estende at

    1970. Na interseo entre as reformas na estrutura de sade nacional e o dilogo dessas

    transformaes com as diretrizes internacionais de sade, foi tambm criado, dentro do

    Ministrio da Educao e Sade (MES), o SESP. Resultado de um convnio entre o MES e o

    Instituto de Assuntos Interamericanos (IAIA), o objetivo inicial da nova instituio era

    controlar a malria no Vale do Rio Doce e na Amaznia, regies produtoras de

    matrias-primas como borracha e ferro, as quais, no contexto de guerra, muito interessavam

    aos Estados Unidos (LIMA; FONSECA; HOCHMAN, 2005; PONTE, 2010).

    A OPAS, na segunda metade dos anos 50, discutiu o projeto preventivista e criticou o

    modelo biomdico. Entretanto, essa crtica vinculava-se muito mais ao projeto pedaggico

    dos cursos da rea da sade do que s prticas executadas. No Brasil, so criados os primeiros

    Departamentos de Medicina Preventiva e Social como resultado direto deste debate (NUNES,

    2006). Esse novo campo de especialidade passou a ser o lcus no qual iniciou-se a

    organizao do MRS no Brasil (ESCOREL; NASCIMENTO; EDLER, 2005).

    Com a queda de Vargas, o Brasil iniciou um perodo de 19 anos de democracia (1945

    a 1965). Ocorreu, neste perodo, um intenso debate sobre os custos econmicos das doenas

    como obstculo ao desenvolvimento do pas. Esse dilema entre sade e desenvolvimento

    ficou conhecido como Sanitarismo Desenvolvimentista. Permaneceu a dicotomia entre sade

    pblica e assistncia mdica, com nfase da primeira em aes sobre doenas especficas,

  • 26 combate das doenas tropicais como a malria e centralizao nas comunidades rurais.

    (LIMA; FONSECA; HOCHMAN, 2005).

    No mesmo perodo iniciou-se amplo debate sobre uniformizao e unificao dos

    IAP, devido o recrutamento dos assalariados em diferentes estratos sociais, a origem rural da

    mo de obra, as diferenas de nveis salariais e de riscos profissionais interferiram na

    dinmica de funcionamento interno dos institutos. As necessidades de consumo crescentes e

    os baixos nveis salariais, advindos da insuficincia do desenvolvimento econmico, geraram

    tenses e maior participao dos trabalhadores no processo poltico (greves, reivindicaes),

    e deslocam o estado para a poltica das massas, mais conhecida como populismo, que se

    estende at 1964 (DONNANGELO, 1975).

    Nas dcadas de 60 e 70, ltimas dcadas da Guerra Fria, com a perda da hegemonia

    americana, e o predomnio dos governos social democratas em pases europeus, surgem os

    conceitos de cuidados primrios em sade. Neste contexto, um mdico dinamarqus, Halfdan

    Mahler, que participou das campanhas de combate tuberculose da Cruz Vermelha e OMS

    em pases menos desenvolvidos, assume a direo da OMS, que comeou a desenvolver

    projetos de servios bsicos de sade, precursores da APS (CUETO, 2004).

    No Brasil, o golpe militar de 1964 ps um fim ao perodo democrtico brasileiro e, ao

    mesmo tempo, suprimiu os debates polticos. O comeo da ditadura militar foi marcado por

    uma brutal represso poltica aos inimigos do regime, entretanto, simultaneamente h

    crescimento do pas e controle da inflao, o milagre brasileiro. Contudo, os benefcios do

    crescimento eram distribudos de forma desigual, a alta concentrao de renda, pssimas

    condies de vida e a crescente migrao do campo para as cidades foram fatores que

    condicionaram a estrutura imposta pelo regime militar (ESCOREL; NASCIMENTO;

    EDLER, 2005).

    As necessidades de consumo crescentes e os baixos nveis salariais advindos da

    insuficincia do desenvolvimento econmico, que geraram tenses e maior participao dos

    trabalhadores no processo poltico (greves, reivindicaes), desloca o estado para a poltica

    das massas. No decorrer desse perodo agravaram-se os problemas internos dos institutos

    decorrentes da demanda de servios, sobretudo, da assistncia mdica. A reformulao

    legislativa se desdobra na criao do Instituto Nacional da Previdncia Social (INPS), em

    1966 (DONNANGELO, 1975).

  • 27

    O INPS passou a gerir as aposentadorias, as penses e a assistncia mdica de todos

    os trabalhadores. A rede hospitalar privada foi ampliada atravs do financiamento a fundo

    perdido com dinheiro da previdncia. Nesse perodo, se consolida a hegemonia do modelo

    biomdico ou mdico assistencial privatista no Brasil (ANDRADE; BARRETO; BEZERRA,

    2006).

    Enquanto no Brasil se consolidava a hegemonia do modelo biomdico, o amplo

    debate realizado em vrias partes do mundo, que ressaltou a determinao social da sade,

    procurou extrapolar a orientao do cuidado centrado na doena. Uma das primeiras

    observaes relativas ao cuidado sade que rompeu com a abordagem tradicional foi o

    relatrio das misses da OMS, na China, em 1973 e 1974 (GIOVANELLA; MENDONA,

    2008; FERREIRA; BUSS, 2001).

    O documento mencionava um conjunto de atividades desenvolvidas por lderes

    comunitrios em localidades rurais, os mdicos de ps descalos. As aes combinavam

    cuidados preventivos e curativos, alopatia e medicina tradicional chinesa, e foi um dos

    modelos que inspirou a configurao da proposta da APS (GIOVANELLA; MENDONA,

    2008; FERREIRA; BUSS, 2001).

    As misses, que tambm avaliaram experincias exitosas em cuidados primrios de

    sade em Bangladesh, Cuba, ndia, Nger, Nigria, Tanzania, Venezuela e Iugoslvia,

    identificaram os fatores-chave na organizao dos cuidados primrios em sade e pautaram a

    Assemblia Mundial de Sade, de 1975, da OMS (CUETO, 2004).

    Outro elemento que colaborou nesse debate foi o Relatrio Lalonde, apresentado em

    1974 pelo ento Ministro da Sade e Assistncia Social Marc Lalonde. O documento teve

    como objetivo revelar uma nova perspectiva de sade para os canadenses e estimular a

    discusso sobre os programas de sade do Canad (LALONDE, 1974).

    O relatrio faz uma crtica viso tradicional do campo da sade, identificava suas

    limitaes diante da transio epidemiolgica - aumento da morbi-mortalidade das doenas

    crnico degenerativas e das mortes por causas externas - e demogrficas - envelhecimento da

    populao - no pas que se relacionava com estilo de vida dos canadenses e os riscos

    ambientais.

  • 28

    O documento concluiu que, mesmo com uma cobertura de leitos hospitalares de quase

    100%, crescentes gastos em servios mdicos e odontolgicos, e recursos humanos

    disponveis, porm mal distribudos, os servios no estavam acessveis para todos os

    segmentos da populao, o que comprometia sua efetividade (LALONDE, 1974).

    As discusses no campo da sade e o contexto internacional do final da dcada de 70

    propiciaram um cenrio favorvel para que a OMS, em 1976, na Assembleia Mundial,

    propusesse a meta Sade Para Todos no ano 2000 (CUETO, 2004).

    Na Amrica Latina, as ideias de Juan Csar Garcia penetraram nos meios acadmicos

    brasileiros. Experincias de medicina comunitria foram desenvolvidas nos Departamentos

    de Medicina Preventiva, ao mesmo tempo em que iniciava-se um confronto terico, como o

    movimento preventivista, de matriz americana (ESCOREL; NASCIMENTO; EDLER, 2005).

    Do ponto de vista terico-acadmico destacaram-se as teses O dilema preventivista,

    de Srgio Arouca; e Medicina e Sociedade, de Ceclia Donnangelo (1975); e a criao do

    primeiro curso de ps-graduao em Medicina Social (NUNES, 2006; ESCOREL;

    NASCIMENTO; EDLER, 2005).

    No final da dcada de 70, a delegao chinesa da OMS props a realizao de uma

    conferncia internacional sobre cuidados primrios em sade. A Unio Sovitica se ops

    ideia devido s constantes tenses entre os pases comunistas, entretanto, ao perceber que o

    movimento de cuidados primrios em sade crescia, o delegado da OMS que representava a

    Unio Sovitica tensionou para que a reunio fosse realizada no seu pas. Entre os dias 6 a 12

    de setembro de 1978, foi realizada a Conferncia sobre Cuidados Primrios em Sade em

    Alma-Ata, capital do Cazaquisto, repblica da Unio Sovitica (CUETO, 2004).

    A declarao de Alma-Ata definiu cuidados primrios em sade, como:

    [...] cuidados essenciais de sade baseados em mtodos e tecnologias prticas, cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitveis, colocadas ao alcance universal de indivduos e famlias da comunidade, mediante sua plena participao e a um custo que a comunidade e o pas possam manter em cada fase de seu desenvolvimento, no esprito de autoconfiana e automedicao. Fazem parte integrante tanto do sistema de sade do pas, do qual constituem a funo central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e econmico global da comunidade. Representam o primeiro nvel de contato dos indivduos, da famlia e da comunidade com o sistema nacional de sade, pelo qual os cuidados de sade so levados o mais proximamente possvel aos lugares onde pessoas vivem e trabalham. (Alma-Ata,1978, p.15 ).

  • 29

    A Conferncia de Alma-Ata, considerada o maior marco para APS, definiu como

    componentes fundamentais da APS, educao em sade, saneamento ambiental, programas

    de sade materno-infantis, inclusive imunizaes e planejamento familiar, preveno de

    doenas endmicas locais, fornecimento de medicamentos essenciais, promoo de boa

    nutrio, medicina tradicional, tratamento adequado de doenas e leses comuns

    (STARFIELD, 2002).

    A concepo de ateno primria, expressa na Declarao de Alma-Ata, pressupe

    que esta seja a parte central do sistema de sade, e a parte mais geral do desenvolvimento

    social e econmico das comunidades. Destacou os crescentes custos com assistncia mdica

    em decorrncia do incremento de novas tecnologias que so incorporadas ao cuidado em

    sade sem avaliao do seu custo-benefcio (GIOVANELLA; MENDONA, 2008).

    Esse discurso apoiaria, ao longo das dcadas seguintes, de distintas maneiras e com

    distintos graus de intensidade, processos de reforma em pases com modelos de prestao de

    servios to diversos quanto Cuba, Moambique, Canad, Inglaterra, Espanha, para citar

    alguns exemplos (CONIL, 2008).

    A adeso as proposies da APS entrou em pauta na agenda brasileira na dcada de

    70, com a criao do PIASS. O PIASS fundamentou-se na experincia exitosa de Montes

    Claros, Minas Gerais, e uniu a medicina social ao sanitarismo desenvolvimentista, o que

    possibilitou o avano do movimento sanitrio. (GIOVANELLA; MENDONA, 2008;

    ESCOREL; NASCIMENTO; EDLER, 2005).

    O Projeto Montes Claros (MOC) foi uma experincia que incorporou na sua prtica os conceitos de regionalizao, hierarquizao, administrao democrtica e eficiente, integralidade da assistncia sade, atendimento por auxiliares de sade e participao popular[...] (ESCOREL; NASCIMENTO; EDLER, 2005, p. 69)

    No final da dcada de 70, a crise no sistema previdencirio brasileiro se agravou.

    Neste contexto, surgiu a proposta de reformulao do sistema de sade atravs de uma

    reforma sanitria.

    A implantao da reforma sanitria no Brasil foi resultado de escolhas e decises no

    discurso e na prtica poltica. A Medicina Comunitria, na dcada de 70, surgiu como

    proposta de prtica alternativa organizao dominante. A teoria dos sistemas no nvel de

    planejamento e a Medicina Comunitria ao nvel operacional consolidaram-se como setores

    intelectuais em franca oposio poltico-ideolgica ao regime militar (DAMASO, 1989).

  • 30

    O movimento encontra seu Brao Civil na instituio do CEBES, em 1976, que tinha

    como foco ampliar o debate contra-hegemnico para a sociedade civil e movimentos sociais.

    O Brao Estatal se configura como uma reposta solidria do setor de sade tentativa de

    redemocratizao do pas (DAMASO, 1989). Outra organizao que teve papel protagonista

    na luta do movimento sanitrio foi a Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade

    Coletiva (ABRASCO), criada em 1979. A Igreja tambm teve papel destacado no processo

    de redemocratizao do Brasil e na reforma sanitria (ESCOREL; NASCIMENTO; EDLER,

    2005).

    [...] Reforma Sanitria , na viso de Berlinguer, a sade, certamente do mesmo modo como a redistribuio da terra o fundamento revolucionrio de uma reforma agrria. A Reforma Sanitria privilegiou at aqui o seu momento de reforma, mas tudo indica que o seu destino prximo depende de que ela seja, finalmente, sanitria, sob pena de ser novamente tragada pela burocracia estatal da sade. (DAMASO, 1989, p. 89)

    A partir de 1980, com o agravamento da crise da previdncia e as presses sociais e

    polticas do setor sade surgiram mecanismos para reordenamento do sistema de sade. Entre

    eles destacam-se o Programa Nacional de Servios de Sade (Prev-Sade), o CONASP e as

    AIS (GIOVANELA; MENDONA, 2008).

    Giovanella e Mendona (2008), ao citar Mendona (1992), destacam que o Plano

    Conasp rompeu a tendncia centralizadora na formulao de polticas a partir do nvel federal

    e abriu espao para experincias localizadas, em especial as AIS, uma proposta de

    organizao de servios bsicos municipais com base em convnio entre as trs esferas.

    Contudo, apesar do entusiasmo inicial, era difcil de implementar os cuidados

    primrios em sade aps Alma-Ata. As dcadas de 1980 e 90 se revelaram dramticas para os

    servios pblicos de sade. A segunda crise do petrleo, as dvidas externas dos pases menos

    desenvolvidos ocasionaram restrio dos gastos pblicos e dos sistemas de proteo social,

    predominando as regras do livre mercado. Neste momento de recesso da economia mundial,

    as metas estabelecidas em Alma-Ata Sade para Todos no Ano 2000 e a estratgia de

    cuidados primrios em sade foram criticadas por agncias internacionais. Cerca de um ano

    aps a Conferncia, uma interpretao diferente de cuidados primrios apareceu: ateno

    primria seletiva (CUETO, 2004; BROWN; CUETO; FEE, 2006; OPAS, 2007).

  • 31

    A Fundao Rockefeller, associada ao Banco Mundial, UNICEF e Agncia de

    Desenvolvimento dos Estados Unidos, patrocinou, em 1979, uma pequena conconferncia

    intitulada Health and Population in Development no seu Centro de Conferncias de

    Bellagio, na Itlia. A conferncia foi inspirada no artigo publicado por Julia Walsh e

    Kenneth S. Warren Selective Primary Health Care, an Interim Strategy for Disease Control

    in Developing Countries. Nos anos seguintes essas intervenes foram reduzidas a quatro

    estratgias de interveno conhecidas como GOBI, que incluam monitoramento do

    crescimento, tcnicas de reidratao oral, amamentao, planejamento familiar, em alguns

    pases foram includos tambm suplementos alimentares, alfabetizao para mulheres

    (BROWN; CUETO; FEE, 2006).

    Esta abordagem foi permeada de crticas. Newell (1988) afirmou, em publicao

    cientfica, que os defensores de intervenes seletivas de sade, e os governos que

    implementavam a abordagem seletiva, ignoravam as ideias revolucionrias propostas para os

    cuidados primrios na conferncia de Alma-Ata e, neste sentido, principiavam uma contra

    revoluo.

    No Brasil, entre 1984 e 1987, os Programas de Ateno Integral Sade da Mulher

    (PAISM) e da Criana (PAISC) foram lanados paralelamente s AIS como parte da

    estratgia para consolidar a rede de servios bsicos de sade. Eles serviram de base para a

    ateno voltada para grupos de risco como idosos, adolescentes, portadores de doenas

    crnicas etc (GIOVANELLA; MENDONA, 2008). Esses programas, em suas diretrizes,

    tinham grandes semelhanas com as estratgias de interveno de ateno primria seletiva

    propostas pelas agncias internacionais.

    Em 1985, o regime militar chegou ao fim, com as eleies indiretas, intensa comoo

    social vivida no pas. Em um contexto de redemocratizao do pas com o final do regime

    militar, no final da dcada de 80, o MRS se fortaleceu e reuniu intelectuais, profissionais de

    sade e sociedade civil organizada em um grande marco na reorganizao do sistema de

    sade no Brasil: a 8 Conferncia Nacional de Sade (CNS), que foi presidida pelo professor

    Antnio Srgio da Silva Arouca. A conferncia contou com a participao de mais de 4000

    pessoas, entre as quais 1000 delegados de todo o pas.

    A partir da 8 CNS, a sade passou a ser considerada, antes de tudo, como resultado

    das formas de organizao social da produo, as quais podem gerar grandes desigualdades

    nos nveis de vida, e deve ser entendida no contexto histrico de cada sociedade e no seu

  • 32 estgio de desenvolvimento. Aps a realizao da Conferncia, formou-se uma Comisso

    Nacional para a Reforma Sanitria (CNRS) para apresentao da emenda constituinte na

    Assembleia. A emenda popular apresentada pela plenria da sade foi defendida por Srgio

    Arouca, ento presidente da Fiocruz. Embora o texto constitucional no fosse idntico ao que

    os sanitaristas haviam levado Assembleia, o essencial foi mantido, ou seja, era dever do

    Estado a criao de um sistema universal de sade, gratuito e de qualidade para todos os

    brasileiros, bem como a ordenao da formao dos trabalhadores para esse sistema

    (FALLEIROS et al., 2010). Neste contexto, nasce o SUS.

    A construo das polticas pblicas de sade no Brasil, atravs da participao social,

    foi reconhecida pela OMS (2008), que destacou no Relatrio Mundial de Sade:

    No Brasil, nas sete primeiras Conferncias Nacionais de Sade, as plataformas para o dilogo poltico nacional no setor da sade entre 1941 e 1977, tiveram, distintamente, uma abordagem de cima-para-baixo e para funcionrios pblicos, com uma progresso clssica de planos nacionais para programas, com a expanso da rede de servios de sade primrios. O marco decisivo veio com a 8 conferncia, em 1980: o nmero de participantes aumentou de algumas centenas para 4.000 participantes, dos eleitorados mais diversos. Nesta e em todas as conferncias subseqentes prosseguiram agendas que, mais do que nunca, eram orientadas por valores de democracia na sade, de acesso, de qualidade, de humanizao dos cuidados e de controle social. A 12 conferncia nacional, em 2003, anunciou uma terceira fase de consolidao: 3.000 delegados, 80% deles eleitos; a sade como um direito para todos; e como um dever do Estado. (OMS, 2008, p.92).

    O SUS possui seu marco legal amparado na Constituio Federal de 1988, na qual a

    Sade um dos setores que estruturam a seguridade social, ao lado da Previdncia e

    Assistncia Social, em especial na seo II, artigos 196 a 200. Ampara-se, ainda, nas Leis

    Orgnicas de Sade a 8080/90 e 8142/90, que dispem sobre a organizao e regulao das

    aes e servios de sade em todo o territrio nacional, estabelecem o formato da

    participao popular no SUS e dispem sobre as transferncias intergovernamentais de

    recursos financeiros na rea da sade, respectivamente (FALLEIROS et al., 2010).

    O movimento de construo do SUS renovou a concepo de APS no Brasil atravs

    da regulamentao de um sistema de sade fundamentado na universalidade, equidade e

    integralidade e nas diretrizes organizacionais de descentralizao e participao social.

    (GIOVANELLA et al., 2009). O Sistema de Sade proposto pela CNRS afastou-se da

  • 33 concepo de APS seletiva disseminada pelas agncias internacionais e aproximou-se da

    concepo de APS proposta por Alma-Ata.

    No contexto internacional, no incio da dcada de 90, o Banco Mundial divulgou

    relatrio intitulado Investing in Health, que orientou os pases em desenvolvimento quanto

    aos investimentos em sade e desenvolvimento de programas financiados por esta instituio.

    O documento fez um resumo dos crescentes gastos em sade nos pases em desenvolvimento

    e destacou experincias bem sucedidas. Apontou, ainda, que as polticas de sade deveriam

    ser orientadas para populaes pobres e estabeleceu um pacote de servios bsicos para ser

    desenvolvido pelos pases em desenvolvimento, que inclua: ateno s gestantes,

    planejamento familiar, controle de tuberculose, doenas sexualmente transmissveis, ateno

    a doenas comuns da infncia. (WORLD BANCK, 1993).

    Com o estmulo do Banco Mundial, teve vigncia uma orientao da oferta de cestas

    bsicas constitudas por um pacote de servios essenciais. Os resultados so questionados

    especialmente por crticas de que essa proposta leva a iniquidades. Posteriormente, no bojo

    do movimento de reforma do setor sade, as polticas de sade e da APS orientaram-se por

    critrios alheios sade como descentralizao, reforma da administrao pblica e controle

    de gastos do Estado (MENDES, 2009).

    Gil (2006) destaca que APS, por ter sido implementada num contexto no qual a

    expanso da cobertura, veio acompanhada das propostas de conteno do financiamento, teve

    seus pressupostos estruturantes de um novo modelo (universal, equnime, inclusivo, integral)

    obscurecidos pelo iderio neoliberal racionalizador (focalizao, baixo custo, pacote bsico,

    excludente).

    Como resultado, as autoridades de sade nacional e global passaram, muitas vezes, a

    olhar para a APS no como um conjunto de reformas, como era proposto, mas como mais um

    programa de prestao de cuidados de sade, entre muitos outros, que prestava cuidados a

    pessoas pobres (OMS, 2008)

    Vrias experincias se desenvolveram na Amrica Latina, pautadas nas orientaes

    das agncias internacionais. Entretanto, o PACS e o PSF implantados em nvel nacional nesta

    poca, se em um primeiro momento se aproximaram das caractersticas da APS seletiva,

    posteriormente, ao invs de assumirem a lgica de um pacote bsico de servios de sade

    tornam-se programas estratgicos para a mudana da prpria lgica do modelo de ateno

  • 34 sade vigente no pas, o mdico assistencial privatista (GIOVANELLA; MENDONA,

    2008; COHN, 2005).

    3.2 Enfoques de Ateno Primria Sade

    Em 2003, os Estados Membros da OPAS, em virtude de experincias dos pases

    desenvolvidos e em desenvolvimento demonstrarem igualmente que a APS pode ser

    interpretada e adaptada para diferentes contextos polticos, sociais, culturais e econmicos,

    decidiram realizar uma reviso da APS (ANDRADE; BARRETO; BEZERRA, 2006).

    A reunio realizada em Montevidu, Uruguai, em 2005, discutiu novos rumos para

    APS e contou com presena de especialistas externos e internos a OPAS, entre eles, Barbara

    Starfield, Sarah Escorel, James Macinko, Carmem Teixeira, para citar alguns nomes. Em

    2007, foi publicado o documento Renewing Primary Health Care in the Americas. Ao

    revisitar o relatrio de Alma-Ata, o propsito deste documento foi gerar ideias e

    recomendaes para permitir tal renovao, bem como ajudar a fortalecer e revigorar a APS

    em um conceito que pode nortear o desenvolvimento dos sistemas de sade pelos prximos

    25 anos e mais.

    As percepes de APS so diferentes para pases industrializados e em

    desenvolvimento, e esto na interdependncia do processo de desenvolvimento da sade e

    polticas sociais, da distoro dos princpios da APS pelas agncias internacionais, da

    divergncia entre pontos de vista em relao s metas ambiciosas divulgadas em Alma-Ata.

    Neste contexto, no foi implantada igualmente nos pases. Enquanto na Europa tida como o

    primeiro nvel de ateno, nos pases em desenvolvimento foi primariamente seletiva, salvo

    algumas experincias que adotaram a abordagem mais abrangente de APS (OPAS, 2007). O

    Quadro 1 demonstra os diferentes enfoques da APS.

  • 35 Quadro 1- Tipos de Abordagens de Ateno Primria Sade

    Abordagem Definio ou conceito de Ateno Primria em Sade nfase

    APS

    Seletiva

    Enfocam um nmero limitado de servios de alto impacto para enfrentar

    alguns dos desafios de sade mais prevalecentes nos pases em

    desenvolvimento. Os servios principais tornaram-se conhecidos como

    GOBI (monitoramento de crescimento, tcnicas de re hidratao oral,

    amamentao e imunizao) e algumas vezes incluram complementao

    alimentar, alfabetizao de mulheres e planejamento familiar (GOBI-

    FFF).

    Conjunto especfico de

    atividades de servios

    de sade voltados

    populao pobre

    Ateno

    primria

    Refere-se ao ponto de entrada no sistema de sade e ao local de cuidados

    contnuos de sade para a maioria das pessoas, na maior parte do tempo.

    Trata-se da concepo mais comum dos cuidados primrios de sade em

    pases da Europa e em outros pases industrializados. Em sua definio

    mais estreita, a abordagem diretamente relacionada disponibilidade de

    mdicos atuantes com especializao em clnica geral ou medicina

    familiar.

    Nvel de ateno em um

    sistema de servios de

    sade

    APS

    abrangente

    de Alma-

    Ata

    A declarao de Alma-Ata define a APS como o primeiro nvel de

    ateno integrada e abrangente que inclui elementos de participao da

    comunidade, coordenao intersetorial e apoio em vrios trabalhadores de

    sade e mdicos tradicionais. A definio inclui diversos princpios, a

    saber: a necessidade de enfrentar determinantes de sade mais amplos;

    acessibilidade e cobertura universais com base na necessidade;

    envolvimento comunitrio e individual e auto-confiana; ao

    intersetorial para a sade; e tecnologia apropriada e efetividade de custos

    em relao aos recursos disponveis.

    Uma estratgia para

    organizar os sistemas de

    ateno em sade e para

    a sociedade promover a

    sade

    Abordagem

    de Sade e

    de Direitos

    Humanos

    Enfatiza a compreenso da sade como direito humano e a necessidade de

    abordar os determinantes sociais e polticos mais amplos da sade. Difere

    em sua nfase sobre as implicaes sociais e polticas da declarao de

    Alma-Ata mais do que sobre os prprios princpios. Defende que o

    enfoque social e poltico da APS deixou para trs aspectos especficos de

    doenas e que as polticas de desenvolvimento devem ser mais

    inclusivas, dinmicas, transparentes e apoiadas por compromissos

    financeiros e de legislao, se pretendem alcanar melhoras de equidade

    em sade.

    Uma filosofia que

    permeia os setores

    social e de sade

    Fonte: Adaptado de Vuori, 1985 In: OPAS, 2007.

  • 36

    O mecanismo proposto de renovao da APS orientou que os sistemas de sade

    adotem a APS em sua abordagem abrangente da organizao e da operao de sistemas de

    sade, a qual faz do direito ao mais alto nvel possvel de sade sua principal meta, enquanto

    maximiza a equidade e a solidariedade. Neste sentido, a OPAS recomendou abordagens

    abrangentes de APS e justificou:

    H diversos motivos para adotar uma abordagem renovada da APS, incluindo: o surgimento de novos desafios epidemiolgicos que exigem a evoluo da APS para abord-los; a necessidade de corrigir os pontos fracos e as inconsistncias presentes em algumas das abordagens amplamente divergentes da APS; o desenvolvimento de novas ferramentas e o conhecimento de melhores prticas que a APS pode capitalizar de forma a serem mais eficazes; um crescente reconhecimento de que a APS uma ferramenta para fortalecer a capacidade da sociedade de reduzir as iniqidades na rea da sade; e um crescente consenso de que a APS representa uma abordagem poderosa para combater as causas de sade precria e de iniqidade. (OPAS, 2007, p.2).

    O movimento de fortalecimento e renovao da APS, iniciado pela OPAS nas

    Amricas, recebeu apoio da OMS, que atualmente tem, na diretoria geral, a Dra. Margareth

    Chan, da Repblica Chinesa, mdica, formada na Universidade de Western Ontrio, Canad.

    Em 2008, no 60 aniversrio da OMS e aps trinta anos de Alma-Ata, a OMS publicou o

    relatrio mundial The world health report 2008: primary health care now more than ever,

    que reafirmou e trouxe evidncias das vantagens e resultados em sade de sistemas de sade

    baseados em um enfoque de APS abrangente. Este relatrio citou, inclusive, iniciativas

    brasileiras, como Abordagem Integrada das Doenas Prevalentes da Infncia (AIDPI) e as

    Equipes da ESF como polticas que fortalecem a APS e o papel dos Institutos de Nacionais de

    Sade Pblica, como a Fiocruz no desenvolvimento de polticas e capacitao dos

    profissionais.

    A experincia dos ltimos 27 anos demonstra que os sistemas de sade que aderem

    aos princpios da APS conseguem melhores resultados e aumentam a eficincia do sistema de

    sade, tanto para os indivduos quanto para a sade pblica, bem como para os provedores

    pblicos e privados (OPAS, 2007).

  • 37 3.3 Atributos essenciais e qualificadores da Ateno Primria Sade

    Entre os marcos terico-conceituais da APS destaca-se a publicao do livro Primary

    Care: Balancing Health Needs, Services, and Technology, da Professora Brbara Starfield,

    em 1998. O livro traz evidncias sobre o papel da APS nos sistemas de sade, evidncias

    cientficas dos seus impactos na sade da populao, e compara o custo benefcio entre pases

    com diferentes formas e em diferentes graus de implantao dessa estratgia, alm de propor

    uma estrutura para mensurao da APS e definir seus atributos.

    Historicamente, a APS tem sido caracterizada pelo tipo de profissional que nela atua,

    em que espera-se que haja predominncia de especialistas em APS nas unidades de sade.

    Entretanto, a maior limitao para esse tipo de caracterizao que o perfil de profissionais

    que atuam em servio de APS pode variar de pas para pas. A primeira descrio sobre APS

    que considerou a natureza dos problemas de sade, pelo local da prestao do atendimento,

    pelo padro de encaminhamento, pela durao da responsabilidade, pelas fontes de

    informao, pelo uso de tecnologia, pela orientao do interesse e pela necessidade de

    treinamento foi feita em 1961 por White, Willians e Greenberg. O estudo revelou que em

    uma populao de risco de 1000 pessoas adultas, com 16 anos ou mais, 750 experimentaram

    algum episdio de doena, 250 procuraram mdicos generalistas, destes 9 foram

    hospitalizados, 5 encaminhados para outro especialista, e 1 referenciado para hospital de alta

    complexidade.

    Entretanto, esta abordagem, embora geralmente til para ilustrar a singularidade da

    APS, no oferece uma base apropriada para o estabelecimento de medidas e metas de

    desempenho nos servios de APS (STARFIELD, 2002).

    Em 1978 o Institute of Medicine American (Instituto de Medicina) sugeriu uma

    abordagem para avaliar a APS em que listou seus atributos como: acessibilidade,

    integralidade, coordenao, continuidade e responsabilidade. Este foi um marco importante

    na tentativa de delinear um mtodo normativo para medir a APS. Contudo, a maioria dos

    indicadores e definies sugeridas no eram especficos da APS. Os indicadores selecionados

    exigiam um alto nvel de desempenho e eram difceis de serem atingidos, e centravam-se na

    capacidade instalada de servios e no na sua realizao concreta (STARFIELD, 2002)

  • 38

    Um relatrio de 1996 da mesma instituio, definiu a APS como a oferta de servios

    integrados e acessveis por meio de clnicos que sejam responsveis por atender a uma grande

    maioria de necessidades pessoais de ateno, desenvolvendo uma parceria constante com os

    pacientes e trabalhando no contexto da famlia e da comunidade. Essa definio no inclui o

    primeiro contato e enfoca a ateno individual (DONALDSON et al., 1996 apud

    STARFIELD 2002).

    A Associao Mdica Canadense, em 1996, considerou a APS como porta de entrada

    do sistema de sade e inclui intervenes comunitrias na definio das funes da APS. No

    mesmo ano divulgada a Charter for General Practice/Family Medicine in Europe (Carta

    para Clnica Geral/Medicina de Famlia na Europa), que descreve 12 caractersticas para a

    APS:

    1. Geral: no restrita a faixas etrias ou tipos de problemas ou condies.

    2. Acessvel: em relao ao tempo, lugar, financiamento e cultura.

    3. Integrada: realiza aes de promoo, preveno, cura e reabilitao da sade.

    4. Continuada: longitudinalidade ao longo de grandes perodos de vida.

    5. Equipe: mdico parte de um grupo multidisciplinar.

    6. Holstica: perspectivas fsicas, psicolgicas e sociais dos indivduos, das famlias e das

    comunidades.

    7. Personalizada: ateno centrada na pessoa e no na enfermidade.

    8. Orientada para a famlia: problemas compreendidos no contexto da famlia e das

    redes sociais.

    9. Orientada para comunidade: considera o contexto de vida da comunidade; tem

    conhecimento de necessidades de sade da comunidade; colaborao com outros

    setores para desencadear mudanas positivas na sade.

    10. Coordenada: coordenao de toda a orientao e apoio que a pessoa recebe.

    11. Confidencial.

    12. Defensora: defensora do paciente em questes de sade sempre e em relao a todos os

    outros provedores de ateno sade.

    Donabedian (1978) sistematizou um conjunto de variveis importantes que podem

    avaliar a qualidade de um sistema ou servio de sade e classificou de acordo com suas

    caractersticas em estrutura, processo e resultado. A avaliao do processo inclui a qualidade

    dos servios prestados pelos profissionais de sade individualmente ou em grupo e

  • 39 referem-se qualificao profissional, organizao e coordenao do processo de trabalho

    das equipes. A avaliao da estrutura abrange as condies do ambiente e equipamentos em

    que os servios so prestados e os resultados so avaliados, a partir da verificao de

    mudanas no estado de sade de uma populao que possam ser atribudas ao processo de

    cuidado (Anexo B).

    As vises de APS, centradas no indivduo e na populao, ofereceram a base

    normativa para avaliao da APS dentro de um sistema de sade e colaboraram na construo

    da estrutura de avaliao da APS proposta por Starfield (2002).

    Starfield (2002) props uma estrutura para avaliao da APS que considerou os

    conceitos dos atributos essenciais e derivativos em medidas de estrutura (capacidade) e

    processo (desempenho).

    Os atributos essenciais e exclusivos da APS compreendem: acesso/ateno ao

    primeiro contato, longitudinalidade, integralidade e coordenao do cuidado.

    O Acesso/ateno ao primeiro contato definido como acessibilidade e utilizao do

    servio de sade como fonte de cuidado a cada novo problema ou novo episdio de um

    mesmo problema de sade, com exceo das verdadeiras emergncias e urgncias mdicas. A

    acessibilidade a possibilidade de uma pessoa chegar a um servio de sade, o componente

    estrutural necessrio para a primeira ateno. Para oferec-la, o local dever ser facilmente

    acessvel e disponvel. A acessibilidade pode ser medida em relao ao tempo (horrio de

    disponibilidade dos servios, facilidade da marcao de consulta e tempo de espera pela

    mesma), barreiras geogrficas (adequao de transporte, distncia a ser percorrida at a

    unidade), e psicossocial (barreiras lingusticas ou culturais) (STARFIELD, 2002; BRASIL,

    2010).

    A Longitudinalidade conceituada como existncia de uma fonte continuada de

    ateno, assim como sua utilizao ao longo do tempo, alcanada mediante alguma forma

    de registro do paciente, manuteno de cadastro de pacientes na unidade. a fonte habitual

    onde um paciente procura ateno sade, dependente da relao profissional paciente,

    promovida por meio de vinculao formal da populao com a unidade de APS. A essncia

    da longitudinalidade uma relao ao longo do tempo, seus benefcios no podem ser

    alcanados em perodos inferiores a um ano. (STARFIELD, 2002; BRASIL, 2010).

  • 40

    A Integralidade compreende o leque de servios disponveis e prestados pelo servio

    de ateno primria. Aes que o servio de sade deve oferecer para que os usurios

    recebam ateno integral, tanto do ponto de vista do carter biopsicossocial do processo

    sade-doena, como aes de promoo, preveno, cura e reabilitao adequadas ao

    contexto da APS, mesmo que algumas aes no possam ser oferecidas dentro das unidades

    de APS. Incluem os encaminhamentos para especialidades, hospitais, entre outros.

    Adequao e qualificao dos profissionais, das unidades, dos equipamentos e servios de

    apoio. A APS deve obter um alto nvel de desempenho no reconhecimento das necessidades

    existentes na populao para alcanar a integralidade. O desafio reconhecer as situaes nas

    quais uma interveno necessria e justificada. Inclui a disponibilidade de realizao de

    visitas domicilares pelos profissionais quando necessrio (STARFIELD, 2002; BRASIL,

    2010).

    A Coordenao da ateno pressupe alguma forma de continuidade, seja por parte

    do atendimento pelo mesmo profissional, seja por meio de pronturios mdicos, ou ambos,

    alm do reconhecimento de problemas abordados em outros servios e a integrao deste

    cuidado no cuidado global do paciente. O provedor de ateno primria deve ser capaz de

    integrar todo cuidado que o paciente recebe, atravs da coordenao entre os servios. A

    coordenao ser facilitada por meio de vnculos formais entre os nveis de ateno e linhas

    de comunicao. A essncia da coordenao a disponibilidade de informaes a respeito de

    servios e problemas anteriores, e as relaes com o presente atendimento. A integrao das

    informaes sobre o paciente deve acontecer dentro da prpria equipe e com outros

    especialistas (BRASIL, 2010b; STARFIELD, 2002).

    Um alto nvel de alcance dos atributos essenciais da APS resulta em trs aspectos

    adicionais denominados aspectos derivativos (STARFIELD, 2002). Esses aspectos

    derivativos da APS qualificam as aes e servios deste nvel de ateno. Por isso, nesta

    pesquisa, o termo atributos qualificadores foi utilizado como sinnimo de atributos

    derivativos.

    Os aspectos qualificadores da APS so: centralizao na famlia, competncia cultural

    e orientao comunitria.

    A Centralizao na famlia ou Orientao familiar abrange a avaliao das

    necessidades individuais para a ateno integral e considera o contexto familiar e seu

    potencial de cuidado e, tambm, de ameaa sade, incluindo o uso de ferramentas de

  • 41 abordagem familiar. Um segundo aspecto da centralizao na famlia requer um

    reconhecimento dos problemas de sade dos membros da famlia (BRASIL, 2010b;

    STARFIELD, 2002).

    A Competncia cultural requer o reconhecimento das necessidades das

    subpopulaes que podem no estar em evidncia, como caractersticas ticas, raciais e

    outras. Este aspecto consiste na adaptao do provedor (equipe e profissionais de sade) s

    caractersticas culturais especiais da populao para facilitar a relao e a comunicao com a

    mesma (BRASIL, 2010b; STARFIELD, 2002).

    A Orientao comunitria o reconhecimento por parte do servio de sade das

    necessidades em sade da comunidade atravs de dados epidemiolgicos, distribuio das

    caractersticas de sade e doena da comunidade, e o contato direto com a comunidade; sua

    relao com ela, assim como o planejamento e a avaliao conjunta dos servios. O quanto o

    profissional envolve o paciente em questes relativas a sua prtica (sugestes, para melhoria,

    pesquisa de satisfao) o reconhecimento das necessidades dos pacientes e seu contexto

    social, expressa o quanto os profissionais se envolvem nos problemas da comunidade e o seu

    conhecimento em relao aos equipamentos sociais (BRASIL, 2010b; STARFIELD, 2002).

    Na maioria dos pases nem a centralizao na famlia, nem a orientao para a

    comunidade so um enfoque dos sistemas de APS. A orientao para a comunidade um

    ideal, mais do que uma realidade (STARFIELD, 2002).

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    4 ATENO PRIMRIA SADE E ESTRATGIA SADE DA FAMLIA

    A criao SESP e a implantao dos programas de extenso de cobertura na rede de

    ateno bsica do Brasil como o PIASS, AIS, PAISM e PAISC foram algumas das propostas

    que influenciaram o surgimento PACS e do PSF (CORBO; MOROSONI; PONTES, 2007)

    Criado em 17 de julho de 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, como

    consequncia do convnio firmado entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos, o SESP

    tinha como atribuies centrais o saneamento da regio da Amaznia e do Vale do Rio Doce,

    a preveno e as investigaes sobre a malria, a assistncia mdico-sanitria dos

    trabalhadores inseridos em atividades ligadas ao desenvolvimento econmico. A partir da

    dcada de 50, o SESP expandiu seu campo de atuao e intensificou suas atividades,

    passando a desenvolver aes de assistncia mdica, educao sanitria, saneamento e

    controle de doenas transmissveis em vrias regies do pas. Foi transformado em Fundao

    SESP e vinculado ao Ministrio da Sade. Em 1990, a Fundao SESP e a Superintendncia

    de Campanhas de Sade Pblica (SUCAM) foram integradas e formaram a Fundao

    Nacional de Sade (Funasa) (CORBO; MOROSONI; PONTES, 2007).

    Algumas das principais diretrizes do PACS e PSF, como a oferta organizada de

    servios na unidade, no domiclio e na comunidade, a abordagem familiar, a adscrio de

    clientela, o trabalho com equipes multiprofissionais, o enfoque intersetorial, o tratamento

    supervisionado para o controle de algumas doenas j faziam parte do modelo de assistncia

    desenvolvido pelo SESP (CORBO; MOROSONI; PONTES, 2007). Entretanto, a atuao do

    SESP limitava-se a reas estratgicas e configurava-se como aes centralizadas, com pouca

    ou nenhuma articulao com as demais instituies de sade. (MATTA; FAUSTO, 2007).

    O PACS teve suas origens no interior do Cear, entre 1978 e 1987, quando Carlile

    Lavor e Miria Campos Lavo, voltaram a sua terra natal, Jucs (CE), e, influenciados pela

    experincia vivenciada em Sobradinho e Planaltina, Distrito Federal, onde foi realizada uma

    articulao entre o servio social e sade atravs da capacitao de auxiliares de sade

    comunitrias para orientar as famlias cuidados primrios de sade para gestantes e crianas,

    adaptaram o trabalho das auxiliares de sade para as condies do serto. Em 1987, o

    programa foi expandido para o estado e foram contratadas, durante um ano, seis mil mulheres

    para trabalharem como agentes de sade, novo nome para as auxiliares de sade. O sucesso

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    na reduo da mortalidade infantil, que sempre se agravava em anos de seca como

    aquele de 1987, tornou permanente o programa emergencial (BRASIL, 2010a).

    As avaliaes coordenadas pelas professoras Cecilia Minayo e Csar Victora e as

    observaes do prprio Ministrio da Sade levaram este a adotar o programa para os demais

    estados nordestinos em 1991 e, posteriormente, para todo o pas (BRASIL, 2010a).

    Pode-se afirmar, ento, que o PACS um antecessor do PSF, pois uma das variveis

    importantes que o primeiro introduziu e que se relaciona diretamente com o segundo que,

    pela primeira vez, h um enfoque na famlia e no no indivduo dentro das prticas de sade

    (VIANA; DAL POZ, 2005).

    Entretanto, vale salientar que vrias experincias capilarizadas por todo o pas, como a

    proposta de Mdico de Famlia de Niteri (RJ); Modelo em Defesa da Vida de Campinas

    (SP); a Ao Programtica em Sade (USP); os Sistemas Locais de Sade (SILOS)

    operacionalizada no Cear e Bahia; e o Grupo Hospitalar Conceio em Porto Alegre (RS)

    inspiraram a formulao da proposta Sade da Famlia (BRASIL 2010a; ANDRADE;

    BARRETO; BEZERRA, 2006; SOUSA, 2001).

    Todos esses marcos na APS formaram as linhas guia do modelo de APS brasileiro, a

    Estratgia Sade da Famlia (ESF), que tem caractersticas prprias, embora inspirado em

    vrias experincias exitosas nacionais e internacionais.

    O PSF foi concebido a partir de uma reunio ocorrida nos dias 27 e 28 de dezembro

    de 1993, em Braslia, sobre o tema Sade da Famlia, convocada pelo gabinete do ento