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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA RENATA CARVALHO CAMPOS SINTOMA E FANTASIA COMO FUNDAMENTOS DA CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS FORTALEZA 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

RENATA CARVALHO CAMPOS

SINTOMA E FANTASIA COMO FUNDAMENTOS DA CLÍNICA PSICANALÍTICA

COM CRIANÇAS

FORTALEZA

2015

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RENATA CARVALHO CAMPOS

SINTOMA E FANTASIA COMO FUNDAMENTOS DA CLÍNICA PSICANALÍTICA

COM CRIANÇAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Psicologia do Departamento de

Psicologia da Universidade Federal do Ceará como

requisito parcial para obtenção do título de mestre

em psicologia. Área de concentração: psicanálise.

Orientadora: Prof. Dra. Laéria Bezerra Fontenele

FORTALEZA

2015

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Dados Internacionais de Catalogação na

Publicação Universidade

Federal do Ceará

Biblioteca de Ciências

Humanas

C216s Campos, Renata Carvalho.

Sintoma e fantasia como fundamentos da clínica psicanalítica com crianças /

Renata Carvalho Campos. – 2015.

119 f. , enc. ; 30 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades,

Departamento de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Fortaleza, 2015.

Área de Concentração: Psicologia.

Orientação: Profa. Dra. Laéria Bezerra Fontenele.

1.Lacan,Jacques,1901-1981. 2.Freud,Sigmund,1856-1939. 3.Psicanálise infantil –

Fortaleza(CE). 4.Manifestações psicológicas de doenças – Fortaleza(CE). 5.Fantasia. I.

Título.

CDD 150.195

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RENATA CARVALHO CAMPOS

SINTOMA E FANTASIA COMO FUNDAMENTOS DA CLÍNICA PSICANALÍTICA

COM CRIANÇAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Psicologia do Departamento de

Psicologia da Universidade Federal do Ceará como

requisito parcial para obtenção do título de mestre

em psicologia. Área de concentração: psicanálise.

Aprovada em: ___/___/____

BANCA EXAMINADORA

________________________________________________

Profª. Drª. Laéria Bezerra Fontenele (Orientadora)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

___________________________________________________

Profª. Drª. Caciana Linhares Pereira

Universidade Federal do Ceará (UFC)

__________________________________________________

Profª. Drª. Leônia Cavalcante Teixeira

Universidade de fortaleza (UNIFOR)

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AGRADECIMENTOS

À professora Laéria, pela compreensão e paciência com minhas dificuldades e

impasses ao longo dessa pesquisa.

À minha mãe Helena, pela fortaleza e serenidade nas horas mais difíceis.

À minha irmã Raquel, pelo incentivo e inspiração que me fizeram ir além dos

meus limites.

À querida tia Marta, pela disposição em ajudar ao longo da vida inteira.

À Edite, pelo carinho e ajuda cotidiana com as pequenas coisas, mas não menos

importantes.

À querida amiga Marina, por me incentivar a buscar sempre novos desafios e por

compreender minhas ausências.

À amiga Gardênia, pelo apoio permanente, trocas de ideias e, sobretudo, pelas

palavras cheias de confiança quando tanto precisei.

Ao querido Diego, pelo apoio e presença constante ao longo de todo esse período.

Ás queridas Érika e Emilie, que tanto dividiram comigo a angústia do processo de

construção dessa pesquisa.

Às queridas Lorena, Andreia, Marciana, Shelda, Renata, Carol e Dani pela

paciência, amizade, aprendizado e parceria no trabalho.

À Capes pelo apoio financeiro mediante concessão da bolsa de pesquisa.

Aos pacientes, razão de ser do meu desejo, trabalho e dedicação durante toda a

pesquisa.

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Mudança de Idade

“Para explicar os excessos do meu irmão

a minha mãe dizia:

está na mudança de idade.

Na altura, eu não tinha idade nenhuma

e o tempo era todo meu.

Despontavam borbulhas

no rosto do meu irmão,

eu morria de inveja

enquanto me perguntava:

em que idade a idade muda?

Que vida, escondida de mim, vivia ele?

Em que adiantada estação

o tempo lhe vinha comer à mão?

Na espera de recompensa,

eu à lua pedia uma outra idade.

Respondiam-me batuques

mas vinham de longe, de onde já não chega o

luar.

Antes de dormirmos a mãe vinha esticar os

lençóis que era um modo de beijar o nosso

sono.

Meu anjo, não durmas triste, pedia.

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E eu não sabia se era comigo que ela falava.

A tristeza, dizia, é uma doença envergonhada.

Não aprendas a gostar dessa doença.

As suas palavras soavam mais longe

que os tambores nocturnos.

O que invejas, falava a mãe, não é a idade.

É a vida para além do sonho.

Idades mudaram-me,

calaram-se tambores,

na lua se anichou a materna voz.

E eu já nada reclamo.

Agora sei:

apenas o amor nos rouba o tempo.

E ainda hoje

estico os lençóis

antes de adormecer.”

Do livro “Tradutor de chuvas”

Mia Couto

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RESUMO

É consensual entre os teóricos, a proposição de que a psicanálise é uma só, não havendo

diferenças entre a análise de adultos e de crianças. Esses autores consideram, no entanto, que

existem especificidades no tocante à infância, decorrentes do desenvolvimento e da

linguagem, cujas repercussões comparecem na clínica. Tendo em vista essas divergências,

questiona-se sobre a existência de particularidades na psicanálise com crianças e o que elas

envolvem. Trata-se de uma mera questão de técnica? O que está para além da técnica e que

une sob o termo psicanálise o tratamento de adultos e crianças? O que é comum às duas

formas de psicanalisar? Em síntese, o que fundamenta a clínica psicanalítica? Fundamentar

remete à articulação da teoria a um campo de experiência e é nesse contexto que se insere essa

pesquisa, uma vez que, ela se origina nos impasses da clínica e retorna à teoria numa tentativa

de aprofundar a compreensão do trabalho analítico com a criança. Nesse sentido, objetiva-se

situar as diferenças que envolvem a clínica com crianças dentro da teoria psicanalítica,

segundo as contribuições de Freud e Lacan. Ao investigar a clínica psicanalítica nos seus

fundamentos, pretende-se estabelecer princípios para pensar a psicanálise com crianças,

questionando o discurso em favor das especificidades. Sintoma e fantasia são utilizados como

parâmetros por reunirem as condições necessárias para a presente investigação, a saber:

correspondem à essência do que é desenvolvido num processo de análise e apresentam-se

independente da idade do paciente. Dessa forma, como introdução à pesquisa, aborda-se a

constituição da clínica psicanalítica com crianças, indicando as principais controvérsias acerca

dessa prática. As contribuições de Lacan são contempladas numa discussão centrada na

proposição do sujeito como um conceito que vem dirimir uma perspectiva desenvolvimentista

da psicanálise com crianças, tendo em vista que o estatuto do sujeito em Lacan é ético e não

ôntico, referindo-se ao inconsciente. Nos capítulos seguintes, sintoma e fantasia inauguram

outro momento da pesquisa, ao mesmo tempo em que mantém o diálogo com o anterior. Isso

porque, ao situar esses dois conceitos como parâmetros de trabalho, pretende-se compreender

se a análise realizada com crianças se distancia da proposta originalmente pensada para

adultos. Nesse cenário, considera-se que a presente investigação se insere no campo da

psicanálise com crianças, sem, no entanto, se restringir a ele. Acredita-se que a relevância da

pesquisa consista, justamente, em discutir o singular que a clínica com crianças comporta,

suscitando questionamentos importantes à teoria, para, concomitantemente, localizar essas

diferenças no campo da psicanálise.

Palavras-chave: Sintoma. Fantasia. Clínica psicanalítica. Criança.

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ABSTRACT

There is a consensus between the theoretical proposition that psychoanalysis is one, with no

differences between the analysis of adults and children. These authors believe, however, that

there are specifics regarding the childhood of development and of language, whose

repercussions attend the clinic. Given these differences, it raises questions about the existence

of peculiarities in psychoanalysis with children and what they involve. Is it a matter of

technique? What is beyond the technical and uniting under the term psychoanalysis treatment

of adults and children? What is common to both forms of psychoanalyze? In summary, the

underlying psychoanalytic clinic? Support refers to the articulation of the theory to a field

experience and it is in this context that this research, since it originates in the impasses of the

clinic and returns to the theory in an attempt to deepen the understanding of analytical work

with the child. In this sense, the objective is to locate the differences involving the clinic with

children in psychoanalytic theory, according to the contributions of Freud and Lacan. To

investigate the psychoanalytic clinic in its grounds, is to establish principles for thinking

about psychoanalysis with children, questioning the discourse in favor of the specifics.

Symptom and fantasy are used as parameters to meet the necessary conditions for this

research, namely: match totality of what is developed in a process of analysis and are

presented regardless of the age of the patient. Thus, as an introduction to research, it deals

with the constitution of the psychoanalytic clinic with children, indicating the main

controversies about this practice. The Lacan's contributions are also the subject of a

discussion centered on the proposition of the subject as a concept that comes hear a

developmental perspective of psychoanalysis with children, given that the subject's status in

Lacan is ethical and not ontic, being referred to the unconscious. In the following chapters,

symptom and fantasy inaugurate other time of the survey, while maintaining dialogue with the

former. This is because, by placing these two concepts such as operating parameters, it is

intended to realize analysis-friendly departs from the proposed originally designed for adults.

In this scenario, it is considered that the present investigation is within the field of

psychoanalysis with children, without, however, restricting it. It is believed that the relevance

of the research consists precisely in discussing the singular to the clinic with children behave,

raising important questions to theory, to concomitantly find the differences more precisely in

the field of psychoanalysis.

Keywords: Symptom. Fantasy. Psychoanalytic Clinic. Child.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9

2 A CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS ........................................................ 14

2.1 A infância e o infantil na psicanálise ............................................................................... 14

2.2 O nascimento da clínica com crianças: especificidades de um campo? ...................... 19

2.2.1 Anna Freud e Melanie Klein: a disputa pela criança na psicanálise .......................... 20

2.2.2 Winnicott e o objeto transicional ................................................................................... 28

2.2.3 Contribuições de Dolto e Maud Mannoni ..................................................................... 32

2.2.4 Rosine e Robert Lefort: a unidade da psicanálise ......................................................... 37

2.3 Contribuições de Lacan para a discussão sobre a especificidade da psicanálise com

crianças .................................................................................................................................... 39

2.3.1 A imaturidade da criança e a constituição do sujeito ................................................ 40

3 O SINTOMA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS ............................. 50

3.1 O sintoma como conceito fundamental ........................................................................... 51

3.1.1 Repetição e transferência ............................................................................................... 54

3.2 O sintoma da criança ........................................................................................................ 59

3.3 Transferência e repetição na clínica com crianças ........................................................ 65

3.4 Caso clínico ........................................................................................................................ 71

4 A FANTASIA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS ............................ 79

4.1 A fantasia como conceito fundamental ........................................................................... 80

4.1.1 O inconsciente e a pulsão ............................................................................................... 84

4.2 A fantasia e a direção do tratamento com crianças ....................................................... 90

4.3 O brincar e a construção da fantasia na análise com crianças ..................................... 97

4.4 Caso clínico ...................................................................................................................... 101

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 108

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 113

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1 INTRODUÇÃO

É consensual entre os teóricos a proposição que a psicanálise é uma só, não

existindo diferenças entre a análise de adultos e de crianças. Esses autores consideram, no

entanto, que existem especificidades no tocante à infância, decorrentes do desenvolvimento e

da linguagem, cujas repercussões comparecem na clínica. Rosine e Robert Lefort (1991, p.

13), dentre outros seguidores de Lacan, ao contrário, defendem que “não há especificidade na

psicanálise com crianças. A estrutura, o significante e a relação com o Outro não concernem

de maneira diferente à criança e ao adulto”.

Tendo em vista essas divergências, questiona-se sobre a existência ou não de

especificidades na análise com crianças e no que elas consistiriam. Seria uma questão apenas

de técnica? O que está para além da técnica e que une sob o termo psicanálise o tratamento de

adultos e crianças, sendo ambos tão diferentes? Sim, porque são inegáveis as diferenças entre

um adulto e uma criança. Mas o que é comum às duas formas de psicanalisar? O que não

varia com a idade? Em síntese, o que fundamenta a clínica psicanalítica?

A análise com crianças suscitou, ainda, reflexões acerca da posição do analista e

sua práxis, pois, como afirma Lacan (1964/2008), a psicanálise é o tratamento dispensado por

um psicanalista; o que significa que há uma implicação da formação desse profissional na

própria teoria e, consequentemente, no alcance de sua atuação. A clínica demonstrou a

relevância de se refletir sobre os limites e possibilidades da análise com crianças,

considerando-a segundo os fundamentos da psicanálise estabelecidos para os adultos, e não

como adaptações à técnica original criada por Freud.

Foram abordados os fundamentos da psicanálise, mas antes é preciso definir o que

esse termo abrange. Fundamentação para Carvalho (2002) supõe a articulação de uma teoria a

um campo de experiência, ou seja, é a tentativa de precisar com rigor teórico determinada

atuação sobre a realidade. Ao se questionar e, ao mesmo tempo, apresentar no Seminário 11

os fundamentos da psicanálise, o que Lacan propõe é definir o que ela é. O que funda o

campo analítico? A resposta remete à formação do analista, como sendo aquilo pelo que ele se

autoriza. O que garante que não se está na impostura, contra a qual o psicanalista se protege

por meio de certo número de cerimônias? Perguntará Lacan (1964/2008), numa tentativa de

separar a ritualização da fundamentação. É nesse sentido que se busca, nesta pesquisa, o que

está para além dos ritos: os fundamentos da clínica psicanalítica independente da idade do

paciente.

É pertinente a menção aos ritos em oposição aos fundamentos, pois se pode fazer

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uma analogia com a análise de crianças em que as discussões, muitas vezes, giram mais em

torno das particularidades do tratamento do que dos elementos essenciais à análise. Desse

modo, a ênfase da psicanálise com crianças costuma recair sobre o lugar dos pais, a técnica e

uso dos jogos e desenhos, evidenciando, como afirma Pacheco (2012), a sobreposição do

sujeito pela criança. Esse aspecto é relevante, pois a consideração da criança em detrimento

do sujeito produz consequências na direção do tratamento, tendo em vista que, uma criança

suscita, em razão de sua imaturidade, ações de cuidado ou mesmo pedagógicas que não estão

incluídas dentre as atribuições do analista.

Nesse sentido, objetiva-se nesta pesquisa situar as diferenças que envolvem a

clínica com crianças dentro da teoria psicanalítica, a partir da concepção de uma clínica

pautada na transferência e na escuta do inconsciente. Como afirma Leserre (1993, p. 106,

tradução nossa): “situar as diferenças implica poder localizar os problemas relativos à prática

com crianças em relação à unidade da psicanálise (...). Não se trata de diferenças em torno das

possibilidades da análise, mas de suas condições de possibilidade”.

O início da psicanálise com crianças gerou um discurso de especialidades, que

segundo Leserre (1993) era embasado na argumentação da diferença quanto ao

desenvolvimento, à apresentação e manejo da palavra em relação ao adulto. Em oposição a

essa perspectiva, Lacan (2003b) irá propor a consideração da criança da mesma forma que o

adulto, apontando para sua localização na estrutura.

Maud Mannoni (2003, p. 9) afirma que “a psicanálise de crianças é a psicanálise”,

sendo o campo sobre o qual o analista opera o da linguagem, “mesmo se a criança ainda não

fala”. Para a autora, incidirá na análise um discurso coletivo dos pais, criança e analista sobre

o sintoma apresentado pela criança. O que está representado como sintoma na pessoa da

criança diz respeito à queixa dos pais, mas está também referido à concepção deles de

infância. Esse dado é importante se for pensado com referência ao modo como os adultos em

análise relatam o seu passado, apontando “não para uma realidade vivida, mas para um sonho

não realizado”. (MANNONI, 2003, p. 9).

Esse sonho está situado na ordem de um tempo perdido, não localizável, apesar da

referência à infância. Não se trata dela no sentido cronológico, mas do que Freud assinala

como o infantil da neurose, como sendo aquilo que permanece não desenvolvido no adulto e

que retorna na clínica sob a forma sintomática. O infantil corresponderia ao precipitado do

recalcado que tenta se expressar via consciência, por meio de distorções, estando, referido ao

inconsciente.

Segundo Mannoni (2003), a infância figurava na psicanálise como lembranças

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recalcadas e relativas a um passado real, mas o que interessava, na verdade, era a repercussão

dessas lembranças para o sujeito, que as reconstruía em análise segundo seu desejo. Assim, se

a infância chamou a atenção de Freud num primeiro momento de sua teorização,

posteriormente, ele se deteve mais no infantil enquanto núcleo da neurose, que retornava no

adulto como relativo ao sexual recalcado.

Ao se investigar a clínica psicanalítica nos seus fundamentos, visa-se estabelecer

princípios para pensar a análise com crianças e questionar suas especificidades. A intenção é

precisar o trabalho desenvolvido com crianças para que não se caia nas armadilhas de um

discurso em favor da especialização dentro da psicanálise. Sintoma e fantasia serão utilizados,

nesse sentido, como parâmetros que reúnem as condições necessárias para nossa investigação,

a saber: correspondem à totalidade do que é desenvolvido num processo de análise e

apresentam-se independente da idade do paciente. Nas palavras de Leserre (1993, p. 108):

[...] se trata de localizar com precisão a relação particular da criança (uno) com

respeito ao sintoma e à fantasia. Um compromisso que beneficia a instalação do

dispositivo analítico porque evita os becos sem saída que o conceito de

desenvolvimento implica, e questiona a premissa de um ‘adulto’ supostamente

‘desenvolvido’.

Para evitar os becos sem saída implicados pela noção de desenvolvimento, como

afirma Leserre (1993), é necessário situar a criança com relação ao sintoma e à fantasia, a fim

de precisar o dispositivo analítico segundo critérios gerais aplicáveis a qualquer público. A

ideia de um indivíduo adulto é questionada pelo autor, a partir da concepção de que, por

definição, o sujeito é marcado pelo irrealizável, pelo desamparo relativo à própria condição

humana, que nesta pesquisa associa-se ao infantil, presente em qualquer idade.

Assim, tem-se que o sintoma comporta a queixa do sujeito, constituindo-se na

força motriz do tratamento. A queixa, no entanto, não é condição suficiente, apesar de

necessária, para a entrada em análise. É preciso que ela se transforme em demanda

endereçada ao analista a partir da suposição de saber que o paciente faz neste. Isso quer dizer

que, é preciso que haja o deslocamento do sintoma como significado do Outro, como

resposta, para a dimensão de enigma no qual o desejo do Outro é interrogado.

A fantasia surge, então, como tentativa de interpretação ao enigma do desejo do

Outro. É para tamponar a falta do Outro que o sujeito constrói sua fantasia para não lidar com

a própria castração. Seu papel na formação dos sintomas foi revelado por Freud (1917/1996)

justamente por remeter ao sentido do sintoma, como mensagem a ser decifrada e relativa ao

sexual recalcado.

Dessa forma, como introdução a esta pesquisa, abordar-se-á, num primeiro

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momento, a constituição da clínica psicanalítica com crianças, indicando as principais

controvérsias acerca dessa prática. Posteriormente serão abordados os desenvolvimentos

introduzidos pelos primeiros psicanalistas, no que se refere à sua compreensão sobre os

limites e possibilidades do tratamento analítico com crianças, a técnica utilizada e os objetivos

da análise, a fim de que se possa compreender como se configuraram as ditas especificidades,

alvo de discussão no campo analítico até a atualidade. Será apresentada, ainda, a concepção

de psicanalistas lacanianos que formalizaram um trabalho no qual há equiparação do

tratamento de adultos e crianças, segundo uma perspectiva clínica fundamentada na estrutura

e definida como unidade da psicanálise. As contribuições de Lacan também serão

contempladas ao final do primeiro capítulo, numa discussão centrada na proposição do sujeito

como um conceito que vem dirimir uma perspectiva desenvolvimentista da psicanálise com

crianças, tendo em vista que o estatuto do sujeito em Lacan é ético e não ôntico, referindo-se

ao inconsciente. Logo, não faz sentido pensar na imaturidade da criança como uma

especificidade da análise desses pacientes se a psicanálise visa o sujeito.

Nos capítulos seguintes, sintoma e fantasia inauguraram outro momento da

pesquisa, ao mesmo tempo em que mantém o diálogo com o anterior. Isso porque, ao situar

esses dois conceitos como parâmetros do trabalho analítico realizado com crianças, buscar-se-

á responder a pergunta que move esta pesquisa, a saber: o que fundamenta a clínica

psicanalítica com crianças? Através desse questionamento e da abordagem do sintoma e da

fantasia pretende-se problematizar o que está para além das ditas especificidades dessa

clínica.

Nesse sentido, o sintoma será abordado no segundo capítulo, em associação com

os conceitos de transferência e repetição, propostos por Lacan (1964/2008). O intuito é

demonstrar que esse é um conceito fundamental também no que se refere à clínica com

crianças, tendo em vista que ele evidencia a divisão do sujeito entre o gozo e o sofrimento.

Outras particularidades da psicanálise com crianças também serão discutidas, tais como, a

transferência envolvendo os pais e a relação do sintoma da criança com o casal parental. Ao

final, será apresentado um caso clínico, a fim de corroborar a proposição de que a criança é

um analisando por inteiro, capaz de constituir um sintoma, ainda que relacionado à

subjetividade dos pais, seguindo as trilhas de seu percurso edípico com os impasses relativos

à castração.

No terceiro capítulo, a fantasia será compreendida como outro conceito

fundamental da clínica que, em associação com a pulsão e o inconsciente, vem constituir a

essência do trabalho analítico. Dando continuidade à proposta deste estudo, abordar-se-á a

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fantasia, especificamente no que se refere à clínica com crianças, objetivando evidenciar,

como o trabalho sobre a fantasia pode fomentar a instalação do dispositivo analítico em

termos semelhantes àquele com adultos. O brincar, em associação com a fantasia, foi

enfatizado para estabelecer seu lugar na análise, não como técnica adaptada à mente infantil,

como defendem muitos psicanalistas, e sim, como correlato à estrutura. Logo, acredita-se que

o brincar não se insere no rol das especificidades da análise com crianças, no sentido de não

funcionar como simples técnica, tendo uma função na própria constituição do sujeito. Por fim,

será apresentado um caso clínico que ilustra o modo como a fantasia comparece na análise de

crianças e influencia os destinos do tratamento.

Nesse cenário, considera-se que esta investigação se insere no campo da

psicanálise com crianças, sem, no entanto, se restringir a ele. Acredita-se que a relevância

desta pesquisa consista, justamente, em discutir o singular que a clínica com crianças

comporta, suscitando questionamentos importantes à teoria, para, concomitantemente,

localizar as diferenças de forma mais precisa no campo da psicanálise.

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2 A CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS

A clínica psicanalítica com crianças, desde seu surgimento, constituiu-se como

um campo de polêmicas. Diversas discussões pretendiam fazer da psicanálise com crianças

uma prática especializada e, portanto, detentora de um saber específico que se diferenciava da

análise tradicional feita com adultos. O incipiente desenvolvimento da criança e seu lugar

social pouco estabelecido serviram de justificativa para a confusão entre psicanálise e

educação, gerando discursos que desconsideravam as particularidades infantis e instituíam

uma clínica atrelada ao ideal de adaptação e distante dos preceitos freudianos que a criaram.

Inicia-se esta pesquisa com a explanação do modo como se constituiu a clínica

psicanalítica com esses pacientes, a fim que se possa compreender melhor em que se baseiam

os argumentos em defesa da existência de uma especificidade do tratamento de crianças. Em

seguida, abordar-se-á a contribuição de Lacan para esta discussão, enfatizando como a noção

de sujeito que ele propõe, denota antes, uma aproximação entre o trabalho clínico realizado

com adultos e crianças.

Antes, no entanto, será apresentada uma diferenciação entre infância e infantil

segundo esses conceitos são compreendidos na teoria psicanalítica, pois essa distinção

justifica uma intervenção clínica baseada, não na idade do paciente, mas na estruturação

psíquica. Nesse sentido, observa-se que a infância compreende o tempo de inscrição dos

primeiros traços das experiências no psiquismo, enquanto o infantil está associado à

sexualidade e ao inconsciente, constituindo-se como marca no psiquismo resultante das

experiências da infância, sobretudo relativas ao sexual recalcado.

2.1 A infância e o infantil na psicanálise

Nós pessoas adultas não podemos entender as crianças

porque não mais entendemos a nossa própria infância.

Nossa amnésia infantil prova que nos tornamos

estranhos à nossa infância. (FREUD, 1996u, p. 197).

A infância surge para a psicanalise, desde o início do trabalho com as histéricas,

quando a amnésia infantil era obstáculo às investigações sobre a etiologia da neurose. Na

época, Freud buscava encontrar um evento desencadeador da doença através das recordações

dos pacientes, que o conduziam para um passado cada vez mais remoto. Os primeiros anos de

vida surgiam, assim, carregados de afetos e esquecimentos acessíveis pelo método da hipnose.

Com o desenvolvimento da psicanálise e a inauguração do método da associação

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livre, o objetivo da análise foi redimensionado e deixou de estar vinculado estritamente à

recordação de vivências traumáticas e esquecidas. A rememoração foi substituída pela

repetição e elaboração desses conteúdos pela via da transferência, a partir do momento em

que Freud desloca sua atenção da realidade externa para a psíquica, o que representou um

marco decisivo na sua teoria.

Esse dado fica evidenciado na correspondência trocada com Fliess. Freud

(1996d), a princípio, no Rascunho N da carta 69, descobre que os impulsos hostis

endereçados aos pais constituem um elemento integrante das neuroses e que era comum

encontrar nos pacientes o desejo de morte em relação aos pais. Em seguida, na carta 69, Freud

(1996e) questiona a veracidade dos relatos de suas pacientes sobre a sedução da qual se

diziam ser vítimas, relativizando a teoria do trauma e abrindo caminho para a consideração da

fantasia como elemento privilegiado do psiquismo.

A partir da revelação de que não acreditava mais na sua neurótica, Freud formula

a teoria do complexo de Édipo, termo que surge pela primeira vez na carta 71 de 15 de

outubro de 1897. O desdobramento da teoria do trauma, de um evento externo para o campo

da fantasia e do desejo fez com que Freud redimensiona-se o próprio lugar da infância na sua

teoria. Assim, a ênfase nos acontecimentos foi relegada a segundo plano, igualando-se

verdade e ficção investida de afeto, já que “no inconsciente não há indicação de realidade”.

(FREUD, 1996f, p. 316).

Se o valor da infância não estava no âmbito da experiência vivida, como

compreender a insistência de Freud em buscar nos primeiros anos do indivíduo a origem da

neurose? A resposta para essa questão está precisamente no complexo de Édipo, pois ele

possibilitou a compreensão de uma sexualidade infantil que ao ser recalcada produz o conflito

neurótico no adulto. Pode-se afirmar, portanto, que há uma passagem da infância ao infantil

na psicanálise, a partir do momento em que é priorizada a realidade psíquica. Não se trata

mais dos acontecimentos reais, mas da elaboração psíquica desses eventos da infância.

(ZAVARONI, 2007).

O infantil coaduna-se, portanto, com ideia de realidade psíquica, pois ele refere-se

à mudança de uma compreensão da infância da pura cronologia das experiências vividas para

a sua construção na análise através da rememoração, na qual são acrescidas impressões atuais

às vivências passadas, num processo que não envolve apenas uma recordação, mas também

uma elaboração, como Freud (1996h) aponta em “Lembranças encobridoras”. A infância

cronológica, não pode, portanto, ser confundida com o infantil reconstruído em análise sob

transferência. Enquanto a infância diz respeito à realidade concreta, o infantil é atemporal e

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aponta para um modo peculiar de tomar a infância em análise, ou seja, “como marca mnêmica

recalcada referente aos primeiros anos de vida” (Zavaroni, 2007, p. 66).

O infantil adquire contornos mais precisos em associação com o recalque. Ele

corresponde ao precipitado do recalcado que tenta se expressar via consciência mediante

distorções, o que o aproxima das formações do inconsciente como sonhos, lapsos e sintomas.

Quando Freud (1996i) afirma que os sonhos são realizações de desejos infantis recalcados, ele

estabelece dois pontos centrais a sua teoria: a vinculação entre inconsciente e sexualidade e o

caráter infantil dessa última. Logo, a divisão do aparelho psíquico que define nessa época os

sistemas Ics e Pcpt/Cs ocorre pelo rechaço do representante ideativo da pulsão, enquanto

concernente ao sexual infantil. Desse modo, não é qualquer desejo que é recalcado, pois “o

desejo que é representado num sonho tem de ser um desejo infantil”. (FREUD, 1996i, p. 583).

Freud (1996s, p. 158) apresenta de forma clara a identificação do inconsciente

com o infantil no caso “O homem dos Ratos” onde afirma:

Observei que, aqui, ele havia atingido uma das principais características do

inconsciente, ou seja, a relação deste com o infantil. O inconsciente, expliquei, era o

infantil (grifo do autor); era aquela parte do eu (self) que ficara apartada dele na

infância, que não participara dos estádios posteriores do seu desenvolvimento e que,

em consequência, se tornara recalcada. Os derivados desse inconsciente recalcado

eram os responsáveis pelos pensamentos involuntários que constituíram sua doença.

O inconsciente está identificado com o infantil, tendo em vista suas propriedades,

sobretudo, a atemporalidade - que faz com que a história do sujeito seja construída de modo

não cronológico, mas retroativo, pois não há sucessão temporal de passado, presente e futuro

no âmbito do inconsciente. A expressão utilizada por Freud para marcar esse caráter tardio do

acontecer psíquico foi nachträglich. Esse termo, utilizado nos estudos sobre histeria, ganha

destaque na carta 52 (6 de dezembro de 1896), por referir-se à capacidade do aparelho

psíquico de realizar um movimento constante de transcrição e rearranjo de experiências, que a

princípio são banais, mas podem ser remodeladas pelo sujeito em função de novas

experiências. Dessa forma, Freud (2010b) define uma temporalidade retrospectiva

fundamentada na capacidade do indivíduo recriar permanentemente o passado, construindo

uma memoria não linear e sim possível de ser reeditada a cada novo evento. (LAMBDA,

2014, online).

A identificação do infantil com o inconsciente é redimensionada a partir de 1920,

quando ocorre a reformulação no pensamento freudiano e o estabelecimento da nova tópica

do aparelho psíquico. De acordo com a nova proposição, o princípio do prazer não é a única

tendência dominante no psiquismo, tendo em vista os fenômenos observados na clínica e fora

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dela, que sinalizavam para o cumprimento de outro propósito, situado mais além do princípio

do prazer e, ao mesmo tempo, mais primitivo do que este. Dentre esses fenômenos estão: os

sonhos nas neuroses traumáticas, a compulsão à repetição e as brincadeiras das crianças que

reproduziam situações penosas. (FREUD, 1996ae).

Nesses eventos ficava evidente a tentativa do indivíduo de responder à intensidade

de estímulos que lhe assolavam, quando, frente a uma experiência traumática, não teve a

angústia como recurso de defesa. A partir de então, a vivência era repetida, quer em sonhos,

quer em atuações na clínica, ou mesmo através de brincadeiras, no caso das crianças, com o

objetivo de vincular a energia psíquica livre no interior do aparelho para que, desse modo, a

tensão interna fosse diminuída.

Com efeito, observa-se o predomínio indireto do princípio do prazer, já que a

redução das quantidades de excitação produz prazer, no entanto, o propósito fundamental de

tais fenômenos não era mais a manutenção de uma intensidade energética ótima no aparelho

psíquico (princípio de constância), e sim uma cessação completa do funcionamento mental,

que Freud qualifica como tendência ao inorgânico, marcando a nova dualidade pulsional -

pulsões de vida e de morte.

O princípio do prazer parece, na realidade, servir aos instintos de morte. É verdade

que mantém guarda sobre os estímulos provindos de fora, que são encarados como

perigos por ambos os tipos de instintos, mas se acha mais especialmente em guarda

contra os aumentos de estimulação provindos de dentro, que tornariam mais difícil a

tarefa de viver. (FREUD, 1996ae, p. 71).

Nesta linha argumentativa, pode-se perguntar: o que muda com relação ao

infantil? De que forma a relação com o inconsciente pode ser compreendida, a partir da nova

tópica? Freud indica a resposta através da compulsão à repetição. Já foi dito, anteriormente,

que a repetição na análise denunciava a tentativa de retorno do recalcado expressa na forma

de atuação ao invés da recordação. No entanto, a partir de 1920, os desdobramentos da nova

teoria pulsional promoveram um maior enfoque na repetição, elevando-a ao nível de uma

compulsão. Esse dado revela um novo modo de compreender o funcionamento mental, tendo

em vista a referência ao fator econômico, ao excesso pulsional que ganha destaque, a partir de

então.

Nessa perspectiva, o infantil associa-se à compulsão à repetição, ao que, no

psiquismo permanece como energia livre, não vinculada e obedecendo ao processo primário

que rege o inconsciente. Freud (1996ae) diferencia, assim, uma repetição que pertence ao

campo das experiências agradáveis, como os chistes e brincadeiras de crianças, às quais o

sujeito repete com o intuito de obtenção de satisfação e, portanto, obedecem ao princípio de

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prazer - de uma compulsão à repetição presente na clínica, desvinculada do princípio do

prazer.

No caso de uma pessoa em análise, pelo contrário, a compulsão à repetição na

transferência dos acontecimentos da infância evidentemente despreza o principio de

prazer sob todos os modos. O paciente comporta-se de modo puramente infantil e

assim nos mostra que os traços de memoria reprimidos de suas experiências

primevas não se encontram presentes neles em estado de sujeição, mostrando-se

elas, na verdade, em certo sentido, incapazes de obedecer ao processo secundário.

(FREUD, 1996ae, p. 45-46, grifo nosso).

O infantil pode ser considerado nessa fase do pensamento freudiano como relativo

a esses traços de memória recalcados que não foram submetidos ao processo secundário.

Tem-se, assim, em Freud, um desenvolvimento conceitual onde, inicialmente, havia uma

concepção de infantil atrelada à sexualidade e ao processo primário, que rege o

funcionamento do inconsciente. Separado do registro da reminiscência, como um resto

excluído do campo da memória, o infantil passa a compor a estrutura do inconsciente. Sonhos,

chistes, atos falhos e sintoma presentificariam o infantil atrelado agora ao desejo. Com a

teoria da sexualidade, o infantil foi associado à pulsão. A sexualidade concernida ao

inconsciente apresentava o infantil sob a forma das pulsões perverso-polimorfas, que

exprimiam o desejo, segundo o princípio do prazer. (BIRMAN, 1997).

A partir de 1915, com os artigos metapsicológicos, a pulsão começa a se afastar

de uma identidade estritamente sexual, havendo pulsões sexuais e não sexuais. Freud

diferencia o campo pulsional a partir da sua representabilidade no psiquismo. Assim, as

pulsões sexuais seriam aquelas inseridas no universo da representação, “ao passo que a força

pulsional no sentido estrito não teria qualquer atributo erógeno.” Essa intensidade remeteria

ao infantil. (BIRMAN, 1997, p. 21).

Na segunda tópica, essa força pulsional constituiu o cerne da pulsão de morte,

definida como aquela que o campo da representação não pode conter de início, já que o

representante ideativo da pulsão sempre chega com atraso, o que, inevitavelmente, marca o

psiquismo com um trauma. Nesse desdobramento, o infantil é identificado ao trauma e

permeado pela angústia do real, que não se inscreve no campo da representação, sendo

exterior ao âmbito do desejo. Esse caráter traumático conduz o indivíduo à experiência do

desamparo, evidenciando “a razão pela qual o indivíduo humano seria infantil por vocação e

não por acidente em seu percurso genético-evolutivo”. (BIRMAN, 1997, p. 25).

O infantil comporta, paradoxalmente, a possibilidade de saída desse desamparo,

pois permite ao sujeito construir uma história incluída no tempo do desejo. Se o infantil é

trauma, enquanto presença absoluta do irrepresentável da pulsão, instituindo um eterno

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presente, desvinculado do campo histórico, ao mesmo tempo, é o que impõe o trabalho de

ligação e inclusão desse conteúdo traumático numa temporalidade. Sem o intermédio do

infantil, “o sujeito estaria fadado à imobilidade produzida pela plenitude, sem ter qualquer

fratura no seu ser que lhe impulsionasse para a construção de uma história.” (BIRMAN, 1997,

p. 27).

Pensar como o infantil se apresenta na clínica psicanalítica é tentar definir os

efeitos dessa fratura do ser no sujeito. O modo como ocorre a estruturação subjetiva a partir

dessa falha faz com que o trabalho da psicanálise esteja orientado por uma lógica que não

inclui uma perspectiva desenvolvimentista. Ao contrário, a própria incompletude do sujeito é

sua condição de ser de linguagem e se presentifica no tratamento como apelo para que o

analista atenda a sua demanda e tampone sua falta. Com efeito, o infantil na clínica aponta a

fragilidade do sujeito, quer se trate de adultos ou crianças, pois não há como escapar dessa

condição, “não existe gente grande” (LACAN, 2003c, p. 367).

Em seguida, buscar-se-á compreensão do modo como surgiu dentro da psicanálise

um movimento voltado para a inclusão da criança como paciente, que ao ser ouvido, poderia

se beneficiar do método analítico e como o método se “adaptou” a esses sujeitos.

2.2 O nascimento da clínica com crianças: especificidades de um campo?

Desde Freud (1996r), com o caso do Pequeno Hans, o tratamento psicanalítico

com crianças foi alvo de grandes embates. O incipiente desenvolvimento do psiquismo da

criança, a transferência e método analítico foram alguns pontos discutidos pelos diversos

teóricos das escolas inglesa e francesa. Inicia-se a exposição dos principais pontos de vista a

respeito das especificidades da análise de crianças com uma citação de Freud na Conferência

XXXIV, em que ele resume as particularidades das análises de adultos e crianças:

Não receamos aplicar tratamento analítico a crianças que, ou mostraram inequívocos

sintomas neuróticos, ou estavam a caminho de um desenvolvimento desfavorável de

caráter. (...) O que ganhamos com esses tratamentos foi havermos conseguido

confirmar num ser vivo aquilo que havíamos inferido (de documentos históricos, por

assim dizer) no caso dos adultos. Também para as crianças o ganho foi muito

satisfatório. (...) A técnica de tratamento usada em adultos deve, naturalmente, ser

muito modificada para sua aplicação em crianças. Uma criança é um objeto

psicologicamente muito diferente de um adulto. De vez que não possui superego, o

método da associação livre não tem muita razão de ser, a transferência (porquanto

os pais reais ainda estão em evidência) desempenha um papel diferente. (FREUD,

1996ag, p. 146, grifo nosso).

Pelo exposto, percebe-se que, para Freud, o tratamento psicanalítico pode ser

empreendido com crianças, desde que se façam as devidas adaptações na técnica, situadas

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com relação à transferência, ao supereu e à associação livre. Desse modo, a técnica é

priorizada por Freud como um elemento central, cuja adaptação ao funcionamento da mente

da criança, possibilitaria a aplicação da psicanálise tal qual era realizada com adultos. Ao

mesmo tempo em que aponta as diferenças quanto ao método de tratar crianças e adultos,

Freud também revela uma semelhança entre os dois tipos de análise: trata-se do fator infantil

presente nos adultos. Segundo ele, as diferenças entre os dois tipos de análise são amenizadas

“pela circunstância de que alguns dos nossos pacientes conservam tantas características

infantis que o analista (também aqui se adaptando ao caso), não pode evitar o emprego em tais

pacientes, de determinadas técnicas da análise infantil.” Aqui, vê-se novamente a ênfase

atribuída à técnica, dessa vez aproximando o método usado com adultos daquele empregado

com crianças. No entanto, mais uma vez, Freud (1996ag, p. 146) não esclarece que método

seria esse.

Percebe-se, então, que apesar de assegurar a relevância da psicanálise para o

tratamento do sofrimento infantil, Freud não define com clareza a técnica a ser utilizada com

crianças e quais são as condições de possibilidade da análise. Isto porque ele situa a criança e

seu tratamento pelo que eles não apresentam em relação aos pacientes adultos, e não pelo que

encerram em termos de especificidades. Segundo Freud, caberia à sua filha Anna Freud a

tarefa de desenvolver a psicanálise com crianças, definindo procedimentos e objetivos. Seu

trabalho, no entanto, por ter um caráter pedagógico, foi alvo de fortes críticas e acabou por

produzir uma disputa de saber sobre a criança e discussões acerca da contribuição da

psicanálise para o campo da educação.

2.2.1 Anna Freud e Melanie Klein: a disputa pela criança na psicanálise

Segundo Anna Freud, o papel do analista de crianças seria o de ajudá-las a

conduzir-se na vida “instintual”. À análise caberia, portanto, a função de salvaguardar uma

boa adaptação da criança ao meio social, possibilitando o domínio das pulsões, já que o

supereu infantil ainda encontra-se numa fase de dependência das figuras parentais. O precário

desenvolvimento do supereu seria uma das razões pelas quais a análise de crianças diferiria da

dos adultos, inviabilizando uma equivalência de princípios para os dois tipos de tratamento.

(FREUD, 1971).

Anna Freud é uma das principais defensoras da existência de especificidades na

análise de crianças, pois não haveria, segundo ela, a observância das três condições ideais de

tratamento presentes na análise de adultos, quais sejam: consciência da enfermidade, a

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decisão voluntária e a vontade de curar-se. Logo, para a autora, a análise tal como é realizada

com adultos, não seria possível com a criança, já que ela não possui autonomia para decidir

sobre o tratamento e, tampouco, sofre como uma pessoa adulta, ou seja, não apresenta queixa.

Essas condições revelam o modo como a autora compreende a criança, concebendo-a a partir

de sua incapacidade ou imaturidade em relação ao adulto e não na sua singularidade.

Em relação ao lugar dos pais no tratamento, Anna Freud valorizava a influência

dos pais da realidade em detrimento de sua representação no campo da fantasia. Em

decorrência desse fato, concede a eles o papel de informantes da vida da criança, pois é

necessário “confrontar o histórico da moléstia da criança com as informações fornecidas pela

família, em lugar de nos atermos, exclusivamente, aos dados relacionados pelo paciente.”

(FREUD, 1971, p. 52).

No que se refere à técnica para analisar crianças, Anna Freud caracteriza como

indispensável o método do brincar desenvolvido por Melanie Klein. Segundo a autora, como

as crianças não são capazes de autoexpressão verbal, seria importante usar o brinquedo como

instrumento de acesso ao mundo fantasístico da criança. No entanto, ela faz críticas ao

método Kleiniano por propor uma equivalência entre o brincar e a associação livre do adulto.

Segundo ela, o que Klein faz é traduzir, “à medida que avança nessa metodologia, as ações

executadas pela criança em pensamentos correspondentes; vale dizer, ela procura encontrar

por detrás de cada coisa executada no brinquedo a sua função simbólica subjacente.”

(FREUD, 1971, p. 53).

Anna Freud compara os dois métodos (o brincar e a associação livre) e defende

que, enquanto os adultos falam de forma livre, ou seja, não são influenciados pelo analista,

seguem, ao mesmo tempo, uma motivação interna, que se justifica pela decisão de entrada em

análise e pelo reconhecimento de seus benefícios. Já no caso do brincar, as crianças não

apresentam tal motivação e, tampouco, tem essa consciência sobre a finalidade da análise,

logo não seria correta a comparação de Klein. Em virtude desse fato, o brinquedo poderia não

ser investido de conteúdo simbólico, como defende Klein, mas tratar-se apenas de uma

brincadeira inocente. (FREUD, 1971, p. 53).

A autora traz, ainda, uma compreensão interessante sobre o brincar ao enfatizar

sua relação com o inconsciente. Nas suas palavras:

Como réplica a esta objeção à técnica de Klein, pode-se dizer que o brinquedo da

criança sem dúvida se presta à sugestão inócua que acabamos de apontar, mas

porque motivo a criança reproduz exatamente aquelas duas cenas particulares com o

abajur e com os dois automoveizinhos? Não será exatamente a significação

simbólica que se acha atrás dessas observações que faz com que sejam eleitas e

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reproduzidas, antes que quaisquer outras no contexto no momento analítico? É

verdade, o argumento pode ter a sua procedência, de que a criança carece em suas

ações da atitude intencional da situação analítica que guia o paciente adulto. Mas

talvez ela não necessite disso, de nenhuma maneira. O adulto deve renunciar à

orientação de seus pensamentos, através de um esforço consciente de vontade e

deixar que a direção desses pensamentos fique à cargo dos seus impulsos

inconscientes. Mas a criança pode ser que não necessite de uma tal modificação

deliberada da situação. Talvez ela esteja todo o tempo e em cada detalhe do seu

brinquedo inteiramente sob o domínio de seu inconsciente. (FREUD, 1971, p. 55).

Outro aspecto da técnica de Anna Freud, diz respeito a um período de preparação

do paciente, após o qual, se inicia a análise propriamente dita. Esse momento introdutório visa

à adesão ao tratamento pela sensibilização do indivíduo aos benefícios proporcionados pela

análise. Para a autora, a cooperação com o método analítico é de fundamental importância,

mesmo sendo os pais que em geral decidem pelo atendimento do filho. A fim de obter essa

adesão, Anna Freud utilizava diversos instrumentos, que envolviam desde uma intervenção

educativa, até estratégias pouco convencionais, como ela mesma esclarece a partir de alguns

casos:

Dei a menininha uma positiva promessa de cura, tendo em mente a consideração que

não se pode exigir de uma criança que siga as pegadas de alguém estranho e que vá

com esse estranho rumo a um fim desconhecido [...]. Ofereci-me abertamente como

um aliado e juntei-me à criança na crítica aos pais. Em outro caso, embarquei numa

luta secreta com o ambiente familiar e cortejei as afeições da criança de todas as

maneiras possíveis. A fim de conseguir meu objetivo, exagerei a possível gravidade

de um sintoma e amedrontei o paciente (FREUD, 1971, p. 35).

Apesar da excentricidade, a autora questiona se na análise com adultos não ocorre

situação semelhante, tendo em vista que não utilizou os métodos acima descritos de modo

arbitrário ou inconsequente. Em sua defesa, afirma que agiu de modo deliberado e de acordo

com cada caso, para assegurar a permanência do paciente e a efetivação de sua análise. Como

são muitos os obstáculos ao prosseguimento do tratamento, é preciso garantir que a

transferência possa ser estabelecida, para, só então, ter início a análise quer com crianças ou

com adultos.

Embora apresente seu método como sendo específico para crianças, Anna Freud,

em alguns momentos, procura justificar sua técnica aproximando-a da análise clássica. Dessa

forma, o analista de adultos pode, eventualmente, abandonar a tradicional posição de

neutralidade, prudência e discrição, se o caso assim o exigir, mas apenas em determinadas

situações, isto é, até que tenha início a transferência.

Talvez tenha eu exagerado na minha primeira preleção a diferença entre a situação

inicial da criança e do adulto. Os senhores sabem quão inseguras se mostram nos

primeiros dias de uma análise, a manutenção da resolução tomada e a confiança do

paciente. [...] e apenas sentimos que nosso trabalho se encontra em terreno firme

quando estabelecemos firmemente o cliente no processo da relação de transferência.

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(FREUD, 1971, p. 36).

A questão sobre se há ou não formação de neurose de transferência com crianças

foi um dos principais pontos debatidos entre os psicanalistas da época. Ao contrário de

Melanie Klein, Anna Freud não acreditava ser possível seu desenvolvimento na clínica com

crianças por duas razões. A primeira refere-se ao fato de as figuras paternas estarem atuando

de forma bastante real na vida da criança, de modo que não constituía vantagem alguma trocar

o amor dos pais pelo do analista. “Os pais, são ainda reais e presentes como objetos de amor -

não apenas na fantasia, como ocorre com os neuróticos adultos; entre eles e a criança, todas as

relações da vida cotidiana existem, e (...) dependem, na realidade desses pais.” A segunda diz

respeito à postura do analista com crianças, que não pode ser idêntica àquela mantida com

adultos, pois o analista precisa ser interessante e dotado de qualidades bem definidas para

atrair e envolver a criança no trabalho analítico. Desse modo, a posição do analista dificultaria

o estabelecimento da neurose de transferência, uma vez que ele não se apresenta como uma

“tela em branco” onde se projeta a neurose do paciente (adulto), e sim, como uma pessoa com

características definidas que indicariam para a criança seu desejo e como ela deve se

comportar para corresponder às suas expectativas. (FREUD, 1971, p. 60).

Com efeito, a transferência é compreendida pela autora, notadamente, na vertente

imaginária da relação com o outro, pois a criança é capaz de transferir para o analista,

sentimentos ternos e hostis, sem, no entanto, realizar a neurose de transferência. Essa

consistiria na substituição dos pais pela figura do analista, tal qual ocorre com a análise de

adultos, em que o paciente abandona os objetos investidos na fantasia e centra sua neurose na

pessoa do analista. Ou seja, “substitui os sintomas anteriores, pelo sintoma da transferência”.

(FREUD, 1971, p. 60). No próximo capítulo será vista a contribuição de Lacan para essa

questão da transferência e suas repercussões na psicanálise com crianças.

A não observância da transferência faz com que Anna Freud (1971) considere seu

método de trabalho distante da análise convencional. Para ela, o tratamento concedido às

crianças não pode ser classificado como psicanalítico no sentido estrito, pois são muitas as

alterações empreendidas para adequar o tratamento às necessidades da criança.

Não descrevi todas essas insignificâncias e todos esses métodos infantis e tarefas- o

crochê, o tricô e os vários jogos, todas essas técnicas múltiplas de sedução, porque

as considere importantes para a análise, mas, ao contrário, antes para mostrar quão

intratável como indivíduo, é a criança, e como ela não se mostra manipulável pelos

mais eficazes métodos de terapia científica, mas exige de maneira absoluta, que as

suas particularidades infantis sejam tratadas de modo adequado.(FREUD, 1971, p.

66, grifo nosso).

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O modo adequado de tratar as particularidades da infância seria, para a autora,

intervir dirigindo a criança na análise, a fim de que ela possa saber como deve se conduzir em

relação aos impulsos instituais para, sob a influência educativa, desenvolver-se de acordo com

os ideais sociais. O objetivo da análise consistiria, então, na identificação com o analista, que

ocuparia a posição de eu ideal da criança durante toda a análise.

Pelo que foi exposto, e para além da técnica proposta por Anna Freud, observa-se

a confusão entre os campos educativo e analítico. O papel do analista se mistura ao de

educador, a análise é conduzida por critérios subjetivos e não pautada na transferência, mas

nos ideais de uma sociedade que ignora o discurso e anula o saber da criança. O paciente é

tomado segundo suas limitações, dependência dos pais e fragilidade do eu, e a caracterização

do trabalho analítico, longe de fundamentar-se no inconsciente, tem no comportamento da

criança sua justificativa. Em seguida serão abordadas às contribuições de Melanie Klein para

nossa discussão.

Melanie Klein (1997) considerava que a psicanálise com crianças não deveria

envolver uma função educativa, mas ater-se aos mesmos princípios da análise de adultos:

tratar o sofrimento psíquico, tornando conscientes os conteúdos inconscientes, tal como

recomendou Freud ao longo de sua obra. Entretanto, para ela, a análise com crianças não

deveria se restringir aos quadros graves, pelo contrário, defendia que qualquer criança poderia

se beneficiar do tratamento analítico, não só no presente, mas também na vida adulta, pois ela

aprenderia a lidar melhor com suas ansiedades e seus conflitos neuróticos.

A autora atribui ao supereu um papel fundamental na análise de crianças, pois,

para ela, a agressividade e o sentimento de culpa são indícios de um supereu forte e cruel,

responsável por boa parte das dificuldades enfrentadas pelas crianças nos seus anos iniciais.

Ainda segundo sua teoria, o complexo de Édipo se desenvolve muito precocemente, desde o

primeiro ano de vida, produzindo ansiedades e inibições em virtude de o ego imaturo da

criança não conseguir fazer frente à tirania do superego. Nesse sentido, ela desenvolve uma

teoria centrada na rudimentar organização psíquica da criança em que, desde o nascimento, o

eu infantil é capaz de produzir um enfrentamento das situações ansiogênicas por meio da

fantasia.

O sentimento de culpa, segundo Klein (1997), seria uma precondição para a

análise de crianças, mesmo as muito pequenas. No entanto, ela indica algumas dificuldades,

que constituiriam para muitos as principais objeções ao tratamento com crianças:

Sua relação com a realidade é fraca; aparentemente não há nada que as induziria a

submeter-se aos rigores de uma análise, já que de modo geral elas não se sentem

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doentes; e, finalmente, e o mais importante, elas ainda não podem dar, ou dar em um

grau suficiente, aquelas associações de fala que são o principal instrumento de um

tratamento analítico de adultos. (KLEIN, 1997, p. 27).

Contra esses argumentos, que inviabilizariam a análise desses pequenos pacientes,

Klein (1997) defende que o trabalho de escuta do inconsciente de crianças deve ser realizado

do mesmo modo como é feita a abordagem dos sonhos proposta por Freud. É através dessa

compreensão do funcionamento da mente infantil, que a autora propõe o brincar como método

de trabalho com crianças. Desse modo, o brincar deve ser considerado como expressão

simbólica das fantasias e desejos infantis. Para compreender seu significado e sua relação com

o comportamento da criança como um todo, é importante não apenas “pinçar o significado

dos símbolos isoladamente na brincadeira (...), mas devemos considerar todos os mecanismos

e métodos de representação empregados pelo trabalho do sonho, sem perder de vista a relação

de cada fator com a situação como um todo”. (KLEIN, 1997, p. 27).

Ao comparar os dois tipos de análises, a autora afirma que, se for utilizada com a

criança a técnica de adultos, é quase certo que não se obterá êxito em atingir as camadas mais

profundas da mente - objetivo maior da análise. Entretanto, caso se considere a psicologia da

criança naquilo que ela apresenta de particularidade, ou seja, na estreita aproximação entre

consciente e inconsciente, na existência de impulsos primitivos ao lado de processos mentais

altamente complexos, e caso se dê atenção à forma de expressão da criança, será possível

realizar uma análise tão profunda quanto à de um adulto, ou mais, tendo em vista que algumas

experiências na análise de adultos só podem ser acessadas através da sua reconstrução em

análise.

Para Klein (1997), o que caracterizaria a especificidade da análise com crianças

seria a abordagem realizada através do brincar, ou seja, a técnica deveria ser adaptada à

criança, pois o método da associação livre não poderia ser usado para o acesso aos conteúdos

da mente infantil. A imaturidade da criança não impediria o trabalho da análise, segundo a

autora, desde que houvesse uma adaptação na técnica.

A utilização da técnica do brincar passa a ser uma das maiores contribuições de

Klein para a psicanálise com crianças. Através do brincar, a criança expressa de forma

simbólica seus conflitos que, assim, podem ser abordados pelo analista por meio da

interpretação do material fantasmático inconsciente do paciente.

A criança expressa suas fantasias, desejos e experiências de uma forma simbólica,

através de jogos e brinquedos. Ao fazê-lo, utiliza os mesmos modos arcaicos e

filogenéticos de expressão, a mesma linguagem com que já nos familiarizamos nos

sonhos; a plena compreensão dessa linguagem só será obtida se dela nos acercarmos

da maneira que Freud nos ensinou. O simbolismo constitui apenas uma parte dessa

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linguagem (KLEIN, 1997, p. 30).

O brincar corresponde à linguagem da criança. Não se trata apenas de um modo

de conseguir a adesão ao tratamento, mas de ter acesso ao mundo interno da criança. Daí a

associação constante entre o brincar e as fantasias inconscientes do paciente. O objetivo de

Klein era desvendar através do brincar essas fantasias e, a partir da sua interpretação,

possibilitar um desinvestimento ou uma menor fixação a esses conteúdos que causavam

ansiedade por se relacionarem às vivências edípicas. Pelo fato de defender a existência de um

complexo de Édipo primitivo, Klein compreendia os sintomas infantis como expressão de

angústia suscitada pela culpa decorrente de impasses no Édipo. A comunicação via

interpretação, dessas fantasias produzia o apaziguamento da ansiedade e permitia à criança

um brincar mais livre. (FULGENCIO, 2008).

A teoria kleiniana concede atenção especial à fantasia na direção do tratamento.

Segundo Klein (1997), a criança expressa nas brincadeiras e jogos suas fantasias

masturbatórias e quando essa atividade é reprimida, o brincar é interrompido. Assim, as

brincadeiras são um meio de expressar a atividade fantasística, de encontrar vazão para ela,

além de indicar os destinos da vida sexual futura da criança. Nesse sentido, a análise teria por

função “não apenas promover maior estabilidade e capacidade de sublimação na criança, mas

também, de assegurar um bem-estar mental e perspectivas de felicidade no adulto.” (KLEIN,

1997, p. 131).

Ainda segundo Klein (1997, p. 131), a relação da criança com a realidade é

afetada na neurose, cabendo à análise empreender uma melhor adaptação do paciente à sua

história. A autora comenta a esse respeito que a criança, ao longo do tratamento, começa a

distinguir “entre sua mãe de faz-de-conta e a sua mãe real, ou entre o brinquedo que

representa seu irmão e o seu irmão de verdade.” Segundo ela, só quando as resistências

tiverem sido superadas, a criança será capaz de reconhecer que seus impulsos agressivos eram

dirigidos para os objetos do mundo real. Essa compreensão, entretanto, já indica um avanço

na relação da criança com a realidade.

No que concerne ao fim de análise, a autora considera necessário o esclarecimento

sexual da criança, que tem por objetivo diminuir sua ansiedade em decorrência da vivência

edípica, pois os neuróticos não toleram bem as frustrações. Somente nesses termos uma

análise poderia ser considerada exitosa. Segundo a autora, apesar de a criança expressar os

avanços no tratamento de forma diferente do adulto, pois a superação das resistências só é

percebida a posteriori, a psicanálise é a mesma. “A interpretação consistente, a resolução

gradual das resistências, a referência firme e consistente da transferência, (...) esses princípios

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estabelecem e mantêm uma situação analítica correta não menos com a criança do que com o

dulto.” (KLEIN, 1997, p. 32)

Melanie Klein resume seu método de analisar crianças através do brincar e sua

relação com o método analítico de tratar adultos da seguinte forma:

Por meio da análise do brincar, ganhamos acesso às fixações e experiências mais

profundamente reprimidas da criança e tornamo-nos assim capazes de exercer uma

influencia radical sobre o seu desenvolvimento. A diferença entre esse método de

análise e o método da análise de adultos é, contudo, exclusivamente uma diferença

de técnica e não de princípio. A análise da situação transferencial e da resistência, a

remoção da amnésia infantil e dos efeitos da repressão, bem como o desvelamento

da cena primária – tudo isso a técnica do brincar faz. Pode se ver que todos os

critérios do método psicanalítico se aplicam também a essa técnica. A análise

através do brincar leva aos mesmos resultados que a técnica de adultos, com uma

única diferença, a saber, que o procedimento técnico é adaptado à mente da

criança. (KLEIN, 1997, p. 35, grifo nosso).

A partir do exposto, pode-se perceber que, para Klein, o brincar constitui um

procedimento adaptado à mente da criança, cuja especificidade é definida pelo nível

incipiente de organização psíquica, o que levaria a uma abordagem diferenciada da criança

quanto à técnica, mas não no que concerne aos princípios da análise. Esse posicionamento

reflete uma visão, na qual o psiquismo infantil se diferenciaria do adulto pelo seu estágio

evolutivo 1, o que justificaria, por conseguinte, a introdução de recursos pertinentes ao contato

com a criança, além da fala, tais como jogos e desenhos.

Resumidamente, para a autora, a análise com crianças tem como especificidade a

utilização da técnica do brincar enquanto método de acesso ao inconsciente infantil. A

diferença, portanto, em relação à análise de adultos situa-se apenas na técnica, mas não nos

objetivos e princípios da análise, estes referidos em termos de transferência, interpretação e

levantamento da amnésia infantil. Nota-se, aqui, uma compreensão diferente do brincar se

comparada à visão de Anna Freud, para quem o brincar consistia apenas numa forma de

acesso à criança e não uma parte fundamental do trabalho analítico, assim como a associação

livre do adulto.

Apesar de fazer referência constante ao brincar como expediente fundamental,

sobretudo, no caso de crianças pequenas, Klein (1997) acredita que só se pode falar em fim de

1 Melanie Klein compreende o psiquismo infantil a partir da assunção de duas posições pelo bebê de acordo com

seu nível de maturação. A primeira vai do nascimento aos seis meses e corresponde à posição esquizo-paranóide.

Ela é caracterizada pelos processos de introjeção e projeção que servem ao desenvolvimento do eu. O bebê é

atormentado pela angústia persecutória e sentimentos destrutivos, decorrentes da ausência do seio como objeto

desejado. Há uma clivagem do objeto em bom e mau como mecanismo de defesa, sendo o que é mau expulso do

eu, e o que é bom, introjetado. A segunda posição é a depressiva e ocorre após os seis meses de vida, quando o

bebê já começa a perceber a mãe como objeto total com existência independente e compreende que é ele mesmo

quem ama e odeia a mãe, inaugurando uma fase de sentimentos ambivalentes.

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análise quando a criança desenvolve plenamente a capacidade de se expressar pela fala, pois

para ela a linguagem constitui a ponte para a realidade.

É importante destacar, contudo, que apesar de Klein situar os mesmos parâmetros

como referência para qualquer análise, ela apresenta alguns posicionamentos singulares como,

por exemplo, a excessiva interpretação dos conteúdos das brincadeiras, a ideia de um

complexo de Édipo muito precoce, o que levaria ao desenvolvimento da neurose infantil antes

mesmo do recalque e uma tendência a buscar a causa do conflito psíquico nos estágios mais

primitivos da vida do sujeito. Pode-se observar, portanto, que apesar de deixar clara sua

posição acerca dos princípios gerais da análise, percebe-se que estes vão de encontro a muitos

pressupostos freudianos, o que se insere no nosso campo de discussão sobre os fundamentos

da clínica.

2.2.2 Winnicott e o objeto transicional

Winnicott (1983, p. 158) compartilha da opinião de Klein para quem “a análise da

criança era exatamente como a análise de adultos.” Segundo o autor, a ideia de um período de

preparação anterior à análise propriamente dita, como defendia Anna Freud, dependia de cada

caso e não era exclusivo da técnica com crianças. De acordo com sua visão, a abordagem de

Melanie Klein lhe possibilitou trabalhar sobre “os conflitos e ansiedades infantis e defesas

primitivas, fosse o paciente adulto ou criança.” Os princípios da análise não variavam,

portanto, de acordo com a idade do paciente, apenas a técnica era adaptada à criança através

da introdução do brinquedo (WINNICOTT, 1983, p. 160).

Winnicott (1975) construiu sua teoria enfatizando o lugar do brincar no

desenvolvimento da criança e na análise. Sua concepção preconiza que a criança apresenta

atividade lúdica desde o início da vida, quando brinca com o seio materno e com o próprio

corpo, a fim de conseguir satisfação autoerótica. De acordo com sua teoria, a passagem da

sucção do polegar ao ursinho de pelúcia, como objeto de destacado valor afetivo, envolve o

estabelecimento de fenômenos transicionais.

O objeto transicional corresponde à zona fronteiriça entre a completa dependência

da mãe e uma progressiva independência desta. A criança efetua um investimento libidinal

num objeto que, simultaneamente, comporta propriedades do seu mundo interno e externo. O

valor do objeto transicional consiste em possibilitar um suporte à separação materna. Esse

objeto, que pode ser um urso de pelúcia, um cobertor, dentre outros, tem valor simbólico de

algum objeto parcial, como o seio, mas sua importância reside na relação mantida com a

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realidade. “O fato de ele não ser o seio (ou a mãe), embora real, é tão importante quanto o fato

de representar o seio ou a mãe.” (WINNICOTT, 1975, p. 17).

Winnicott (1975) associa ao objeto transicional a presença de uma mãe

suficientemente boa, capaz de promover a ilusão do bebê com relação à pronta satisfação de

suas necessidades, mas também, de suportar desiludi-lo, na medida em que ele se desenvolve

e ultrapassa a reação dual com ela. É necessário, portanto, que a mãe falte para a criança

desenvolver sua capacidade criativa, inserindo-se no universo simbólico do brincar.

O bebê brinca com o próprio corpo num primeiro momento, para só então, e por

intermédio do objeto transicional, brincar com os objetos da realidade. O autor destaca que

não é propriamente o objeto que é transicional, na verdade, “ele representa a transição do bebê

de um estado em que ele está fundido com a mãe para um estado em que está em relação com

ela como algo externo e separado.” (WINNICOTT, 1975, p. 30).

Ainda segundo o autor, o brincar corresponde a uma evolução do

desenvolvimento da criança dos fenômenos transicionais para uma consideração cada vez

maior da realidade, ao favorecer uma integração do mundo interno e externo. Segundo o

autor, o brincar é uma atividade fundamental para crianças e adultos, pois fomenta a

criatividade e a utilização da personalidade integral. Para Winnicott (1975), o brincar

participa da vida do indivíduo em qualquer idade, apenas sua forma de expressão é

diferenciada.

O que quer que se diga sobre o brincar de crianças, aplica-se também aos adultos;

apenas, a descrição torna-se mais difícil quando o material do paciente aparece,

principalmente, em termos de comunicação verbal. Sugiro que devemos encontrar o

brincar tão em evidencia na análise de adultos quanto o é no caso de nosso trabalho

com crianças. Manifesta-se, por exemplo, na escolha das palavras, nas inflexões de

voz e, na verdade, no senso de humor. (WINNICOTT, 1975, p. 61).

Pelo que foi exposto, em relação à técnica da análise com crianças, observa-se que

Winnicott inclui o brincar como instrumento fundamental do tratamento, definindo o modo

como ele colabora no desenvolvimento do indivíduo. Entretanto, o autor não restringe o

brincar à infância, ao contrário, revela sua forma de incidência no adulto, como mencionado.

Logo, a compreensão do brincar remete, por um lado, à técnica e à necessidade de adaptação

da análise ao funcionamento da criança; por outro, indica o modo como ele (o brincar) está

presente no indivíduo em qualquer idade, promovendo seu desenvolvimento.

Enquanto Melanie Klein destaca, no atendimento de crianças, a técnica de

utilização do brinquedo, Winnicott (1975) introduz com o brincar, não apenas uma

particularidade, mas uma semelhança com a análise de adultos. Assim, para o autor, o brincar

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não se caracteriza como uma técnica específica do tratamento de crianças, ao contrário, cabe

ao analista ser capaz de encontrar no paciente adulto o que faz jogo, o que promove o

descolamento de uma posição cristalizada de maturidade, na qual não há espaço para o novo.

No que se refere ao papel do analista, Winnicott (1975, p. 82) afirma que “se o

terapeuta não pode brincar, ele não se adequa ao trabalho. Se é o paciente quem não pode,

então, algo precisa ser feito para ajudá-lo a tornar-se capaz de brincar; após o que, a

psicoterapia pode começar.” Em conformidade com o pensamento de Klein, ele acredita que a

criança deve ser deixada entre os brinquedos de modo a se sentir relaxada em um estado

semelhante ao de associação livre.

O fim de análise é pensado a partir do que Winnicott (1975) chama de uso do

analista pelo paciente na transferência. O analista precisa suportar a agressividade do paciente

para que ele perceba sua sobrevivência aos seus ataques. Isso permite a aquisição de uma

posição fundamental, que viabiliza o fim de análise, pelo desenvolvimento da capacidade de

usar o analista como um objeto, assegurando sua existência na realidade.

A concepção de transferência na teoria winnicottiana está fundamentada na sua

compreensão acerca do que ele denomina desenvolvimento emocional. De acordo com essa

teoria, o desenvolvimento emocional humano é concebido em termos de ego, da vida

instintiva (id) e de relações de objeto propriamente ditas. Cabe ressaltar, entretanto, que os

impulsos instintuais não participam do desenvolvimento do ego, pois, para o autor, no início

da vida do bebê, os instintos não fazem parte do ego, já que este não existe ainda. Portanto,

estes são percebidos como externos ao indivíduo. Desse modo, à medida que ocorre a

integração desses instintos, é que se pode falar em verdadeiras relações de objeto, a partir das

quais o autor estabelecerá sua noção de transferência, como será visto em seguida (DEUS,

2014).

Segundo Winnicott (1983), devido à imaturidade do recém-nascido, as relações

mantidas com os objetos da realidade não envolvem pessoas inteiras. Nessa fase de

dependência absoluta, o indivíduo sequer é capaz de estabelecer relações entre um “eu” e um

“não-eu”, mantendo relações com um “objeto subjetivo”. Esse objeto detém características

internas e externas, pois não há uma distinção entre uma realidade interna e uma externa,

entre um eu/ não-eu. Somente com os processos de maturação, ocorre o desenvolvimento do

ego de forma gradativa e simultânea, num processo composto por três fases: integração

(tempo e espaço), início das relações objetais e personalização. (DEUS, 2014).

Como o objetivo deste estudo não consiste em um aprofundamento na teoria

winnicottiana, pode-se dizer, resumidamente, que, com o desenvolvimento do ego e a

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passagem de uma fase de total dependência para uma de menor dependência e separação entre

mundo interno e mundo externo, o bebê começa a perceber a mãe como um objeto separado

dele. Essa relação mãe/bebê seria o modelo de relação objetal para a vida adulta, em que há

uma percepção do outro como uma pessoa inteira e não com características da realidade

interna do indivíduo. O objeto passa a ter uma existência externa real, não estando mais

vinculado às fantasias do indivíduo. (DEUS, 2014).

Na sua teorização sobre a transferência, o que Winnicott (1975) propõe é

identificar, a partir do desenvolvimento emocional do sujeito, quais impasses ele teria e em

que fase se encontraria, para, com isso, definir um diagnóstico e pensar no estabelecimento da

transferência que, segundo ele, não seria a mesma, caso se tratasse de um caso de neurose ou

psicose. Na verdade, o que o autor defende é um posicionamento diferente do analista, no

qual ele teria um papel diante de cada paciente, segundo o nível de amadurecimento em que

este se encontrasse. Sua noção de transferência difere, portanto, da concepção freudiana,

como se pode indicar na seguinte comparação:

Freud designa como transferência, as representações inconscientes referentes ao

passado infantil, que se transferem para o presente, em forma de novas

representações, relacionadas à figura do analista, supondo assim que certos

mecanismos se repetem ao longo da existência do sujeito, inclusive na análise.

Contudo, na perspectiva winnicottiana, o analista nem sempre é representante de um

passado que se repete, já que certos conteúdos não vividos na infância são

experimentados pela primeira vez na análise, e por isso, nem sempre os conteúdos

infantis são transferidos para a figura do analista, mas são vividos no presente com

ele (JANUÁRIO, 2008, p. 76).

Se fosse incluída a teoria de Klein nessa comparação, pode-se dizer que, para

Freud, o conceito de transferência refere-se a um deslocamento do passado para o presente,

envolvendo a figura do analista. Para Klein (1997), há um deslocamento do mundo interno

para o externo, enquanto, em Winnicott, a tendência do sujeito a realizar seu self implica

sempre a suposição de um devir. Em Freud e Klein a referência está sempre no vivido e no

recalcado, o que sinaliza a presença do inconsciente, enquanto para Winnicott, o importante é

o vivido, mas também o não vivido como aquilo que busca realizar-se. Logo, para ele, o

analista é aquele que possibilita não só a repetição do passado, mas a realização do novo,

servindo, ainda, de testemunha às necessidades fundamentais do indivíduo. (JANUÁRIO,

2008).

Pelo exposto, percebe-se que Winnicott (1983) desenvolve uma teoria própria e

apresenta posicionamentos singulares na sua clínica. O lugar do brincar não corresponde ao

estabelecido por Klein e o conceito de transferência não pode ser concebido do mesmo modo

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que foi proposto por Freud. A ênfase no ambiente (relação mãe/bebê), como elemento

estruturante do psiquismo, é um ponto central defendido pelo autor, que foge da concepção

até então vigente sobre a constituição psíquica.

A ênfase nos cuidados maternos para o estabelecimento da constituição psíquica

do indivíduo caracteriza sua teoria numa vertente denominada pelos críticos de intersubjetiva,

embora o autor não despreze o conflito psíquico interno. No entanto, o próprio Winnicott

(1975) contradiz essa afirmação, ao argumentar que não há realmente uma intersubjetividade,

pois, do ponto de vista do bebê, não há divisão entre ele e a mãe, são um só.

Por fim, pode-se dizer que Winnicott (1983) defende a equivalência dos

fundamentos que norteiam a psicanálise com adultos e crianças ao afirmar que se trata dos

mesmos princípios. Destaca-se, aqui, como ele privilegia o brincar não apenas enquanto

técnica, mas como instrumento do desenvolvimento infantil, aproximando-o da clínica com

adultos - o que corresponde a um ponto de vista bastante original. Além disso, enfatiza a

importância do ambiente para os processos de maturação, localizando, mesmo no adulto, os

impasses no seu desenvolvimento.

Apesar de apontar sempre semelhanças entre as duas clínicas (adultos e crianças) -

pois o trabalho realizado é fundamentado nos pressupostos psicanalíticos, independente da

idade do paciente – Winnicott (1983) apresenta concepções particulares sobre esses princípios

que regem o tratamento analítico, tais como a técnica e a transferência. Diante disto é válido,

então, o seguinte questionamento: o que é invariável na análise que assegura tratar-se da

mesma práxis? O que está para além das variações da técnica e que serviria de norteador de

um trabalho com adultos e crianças fundamentado, segundo a proposta freudiana, na escuta do

inconsciente? Em seguida será dado prosseguimento a esta discussão com o trabalho realizado

por duas das maiores psicanalistas de crianças: Françoise Dolto e Maud Mannoni.

2.2.3 Contribuições de Dolto e Maud Mannoni

Françoise Dolto, psicanalista da escola francesa e contemporânea de Lacan,

desenvolveu um trabalho muito original. Sua teoria aponta para a consideração da criança

como sujeito capaz de falar em seu nome, o que viabiliza sua escuta e a compreensão do lugar

que ocupa na dinâmica familiar. Os pais também devem ser ouvidos, segundo Dolto (1988),

mas a ênfase do seu trabalho é na criança, tomada no seu lugar de falante. Esse

posicionamento representou um avanço na concepção de criança, até então vigente, com

desdobramentos na clínica.

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Influenciada pela teoria do significante de Lacan, Dolto fundamenta sua técnica

não apenas na fala da criança, mas nos efeitos do discurso parental sobre o sujeito. De acordo

com sua proposição, era preciso introduzir a criança na sua história por meio de uma palavra

verdadeira, pois o adoecimento era resultante dos não ditos que a cercavam de

desconhecimento e angústia. Era função dos pais, portanto, fazer circular um discurso sobre

os acontecimentos familiares que repercutiam no complexo de Édipo e apareciam sob a forma

sintomática nas crianças.

O autor propôs que o primeiro atendimento com os pais deveria ser feito na

presença da criança, para que fossem observadas suas reações ao discurso parental, e

esclarecidos pontos obscuros da sua história pelo analista. Após a escuta e devolutiva aos

pais, ela ficava a sós com a criança, quando, então, tinha início sua análise. Seu método

prescindia de brinquedos, pois atendia em hospital, o que dificultava seu acesso a esses

materiais. Para ela, desenhos e massa de modelar eram aliados da palavra, sempre valorizada

e posta em primeiro plano, tal qual a análise de adultos.

No percurso de nossas consultas hospitalares, não empregamos uma técnica de

brinquedo que requeira uma instalação de que não dispomos. Resta-nos, pois a

conversação, tal como acabamos de defini-la, durante a qual procuramos escutar,

olhar, observar, sem deixar escapar o mínimo detalhe, os gestos, expressões,

mímica, palavras, lapsos, erros e desenhos espontâneos, aos quais pessoalmente

recorremos bastante. Pelos desenhos, com efeito, entramos no âmago das

representações imaginativas do paciente, da sua afetividade, do seu comportamento

interior e de seu simbolismo. (...). Nunca fazemos interpretações diretas nos

desenhos. (DOLTO, 1988, p. 132).

Apesar de não dispor de muitos brinquedos, Dolto (1988) acreditava que era

necessário utilizar esse expediente em substituição à associação livre dos adultos. Defendia,

sobretudo, o uso de desenhos, que nunca eram interpretados diretamente, mas, antes, podiam

representar fantasias, a imagem do corpo2 ou uma projeção. Esses recursos, como desenho e

massa de modelar deveriam estar atrelados à fala, pois o mais importante era permitir à

criança falar livremente sobre sua produção. Para a autora, toda fala e toda ação da criança

devem ser analisados como expressão da transferência, enquanto, “situação de adesão afetiva

ao psicanalista, que se converte num personagem, e dos mais importantes do mundo interior

da criança, durante o período de tratamento” (DOLTO, 1988, p. 133).

2 A imagem do corpo ou imagem inconsciente do corpo é um conceito criado por Dolto que pode ser definido

como a uma percepção que estrutura a imagem do próprio corpo, estando fundamentada nas relações

intersubjetivas tutelares. Ele difere do esquema corporal por este se sustentar na fisiologia corporal. Segundo a

autora, a imagem inconsciente do corpo é constituída ainda no ventre materno, ou seja, é formada por imagens

extremamente arcaicas do corpo. Situa-se em um tempo lógico anterior ao narcisismo primário, no qual ocorre o

estádio do espelho. (DOLTO, 1988).

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A transferência também ocorre com os pais e pode produzir dificuldades no

tratamento, quando um deles não suporta a melhora do filho e acaba, também, precisando de

ajuda. O paciente pode, em resposta a esse mal estar, apresentar resistências e, muitas vezes,

até criar razões no seu comportamento para que os pais suspendam a análise. A interrupção do

tratamento nessas condições, no entanto, não invalida os benefícios promovidos pela análise,

pois, segundo a autora, o paciente fica menos vulnerável às dificuldades que virão, ainda que

nem todas as sequelas dos problemas da primeira infância tenham sido superadas. (DOLTO,

1988).

Em virtude dessas intercorrências que podem suspender o tratamento, Dolto

sempre privilegiou a escuta dos pais, dando-lhes, inclusive, orientações de como proceder

com os filhos. Essa iniciativa, apesar de fugir um pouco da posição clássica do analista, não

fazia, no entanto, com que ela considerasse seu trabalho como inserido no campo pedagógico.

Dizia que o que fazia era psicanálise, mas tentava contribuir com seu conhecimento para

auxiliar na condução do caso, até porque atendia em hospital público, onde a grande demanda

tornava inviável um período prolongado de análise.

Com efeito, a técnica de Dolto (1988) não apresenta nenhuma particularidade que

pudesse ser situada como exclusiva à subjetividade infantil, a não ser a utilização de alguns

recursos como já mencionado, mas sempre associados à fala. A autora indica com seu

trabalho uma equivalência entre os dois tipos de atendimento (crianças e adultos), o que faz

pensar na ética sustentada por ela na escuta do paciente, a partir da valorização do seu saber

sobre seu sofrimento, mesmo em se tratando de crianças.

Sobre o fim da análise, Dolto (s/d), no Seminário de Psicanálise de Crianças,

defende que o momento de concluir o tratamento deve ocorrer antes da puberdade, quando a

criança está prestes a viver novos conflitos. Ela acredita que o complexo de Édipo deve se dar

sobre os pais, cabendo unicamente ao analista, ajudar na superação dessa fase. A autoridade

dos pais precisa ser recuperada no fim da análise, pois, com o tratamento, eles negligenciaram

seu papel de apoio na educação da criança, transferindo essa função para o analista.

Compete ao pai, não ao psicanalista, assumir sobre si mesmo a autoridade. Quando

uma criança esteve fisicamente doente, quando permaneceu frágil ou mesmo

retardada, os pais tem muito medo. Porém é justamente o Édipo que faz mudar a

situação, para a criança e para os próprios pais. Pois a criança, o filho não estará

mais em atraso se ajudarmos os pais a aceitarem o desmame. Desmame de quê? Do

hábito de levar o filho a um terapeuta. Que trazem eles, em realidade? Trazem uma

criança em estado de transferência. [...] É preciso que reassumam seu papel. Num

adulto, a transferência faz-se sobre o analista, mas numa criança, o Édipo se faz com

seus pais; não é transferível sobre o analista. Se a criança não ultrapassou a fase do

Édipo é preciso aguardar que o faça para depois, eventualmente, atendê-la.

(DOLTO, s/d, p. 124-125).

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Maud Mannoni, discípula de Lacan, mantinha constante diálogo com Dolto e fez

um trabalho de grande repercussão com crianças psicóticas e as chamadas deficientes mentais.

Para ela, não havia diferença se os comprometimentos da criança eram ou não orgânicos, pois,

em todo caso, se inseriam na dinâmica familiar, segundo o lugar ocupado pela criança na

fantasia dos pais.

Segundo sua concepção, a adaptação da técnica da análise à abordagem da criança

realizada com materiais lúdicos não representa uma mudança no campo sobre o qual a

psicanálise opera, qual seja, o da linguagem; mesmo se a criança ainda não fala. Para

Mannoni (2003, p. 9), “a psicanálise de crianças é a psicanálise”, desde que Freud (1996r),

com o “Caso Pequeno Hans”, estabeleceu os pressupostos para o atendimento de crianças

pelo método psicanalítico. Freud (1996ag) reconheceu as dificuldades de analisar crianças,

devido às limitações na linguagem que inviabilizavam o uso da associação livre. No entanto,

defendeu que a adaptação da técnica à criança resolveria os problemas com a linguagem.

Diferentemente de Freud, Mannoni (2003) era contrária à concepção de que a

análise precisava ser adequada às necessidades da criança. Por isso dispensava, assim como

Dolto, o uso de uma grande variedade de brinquedos. Se para Freud o jogo era um texto a

decifrar, o que levou muitos psicanalistas a fazerem uso exagerado de sua vertente simbólica,

para ela, era preciso ir além da interpretação, pois o discurso da criança não é formado por

símbolos, mas pelos significantes, assim como ocorre com os adultos.

Para Mannoni (2003), o brincar na psicanálise deve ser tomado não como uma

experiência vivida, tal como acontece no psicodrama com efeitos catárticos, mas como um

dos elementos ou tropeços do discurso que é mantido. É nesse sentido, que ela faz referência

ao texto de Freud (1996n), “Escritores criativos e devaneios” e à experiência do jogo do fort-

da (FREUD, 1996ae). Se em 1908 o brincar é associado ao princípio do prazer e à criação

poética, em 1920, com a descoberta da compulsão à repetição, há um acréscimo na teoria

freudiana. O brincar apresenta, a partir de então, não somente um caráter simbólico, mas

também corresponde a uma tentativa de controle das experiências desagradáveis, estando

submetido ao mais além do princípio do prazer.

O que a autora procura enfatizar em seu retorno à Freud, é, justamente, o mal

entendido acerca da compreensão do brincar representado pelo jogo do fort-da - fato que

produziu equívocos na técnica de utilização do brinquedo, enquanto instrumento que se

prestava à interpretação. Na verdade, o mais importante para Mannoni (2003) era o discurso

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da criança que poderia ser obtido pela sua utilização dos brinquedos como significantes. Nas

suas palavras:

O objeto sobre o qual a criança opera é um objeto indiferenciado: lança todos os

pequenos objetos ao alcance de sua mão, ou os substitui por um carretel. Esses

objetos substitutivos, não são símbolos, mas significantes - ou seja, podem ser, em si

mesmos, qualquer coisa (não são “parecidos”); somente o uso que a criança faz

deles esclarece a relação com a mãe - a experiência não apenas da presença e

ausência materna, mas também, do que intervém como falta na relação com a mãe (o

falo). Não há necessidade alguma, pois, para a criança, de ter um arsenal de

brinquedos. O sentido pode ser criado com qualquer coisa. (MANNONI, 2003, p.

23, grifo da autora).

O valor da palavra para Mannoni (2003) coaduna-se às ideias de Dolto e colabora

para a compreensão do sintoma da criança como referido aos pais. O sintoma, para a autora, é

resultante da ausência de uma palavra justa, ou verdadeira que os pais se recusam a oferecer à

criança, engodando-a nas suas próprias dificuldades. Se em virtude do nascimento de um

irmão ou alguma situação traumática, a criança não recebe do adulto um esclarecimento que

tampone a angústia, ela responde com desordens no seu comportamento.

O fator traumatizante, tal qual possa entrever-se numa neurose não é jamais um

elemento real em si, mas o que foi dito ou silenciado pelo ambiente. São as palavras

ou a ausência delas, associadas à cena penosa que dão ao indivíduo os elementos

que vão ferir-lhe a imaginação. (MANONNI, 2003, p. 38).

O posicionamento de Mannoni sobre o fato de o sintoma da criança ser referido

aos pais levanta algumas discussões e críticas, pois abre espaço para a interpretação de que o

sofrimento da criança é resultante dos impasses do casal parental, não havendo participação

de um conflito interno do sujeito no desencadeamento do sintoma. De acordo com essa visão,

haveria o risco de compreender a criança como sintoma dos pais, em virtude da

sobredeterminação de uma neurose familiar em detrimento de uma individual, na qual o

sujeito também se posiciona, ainda que essa posição seja sintomática em relação aos pais.

(ZORNIG, 2008).

Apesar dessas críticas, o que Mannoni aponta é a importância da relação entre

pais e filhos num âmbito que vai além da simples convivência familiar, pois está referida

(essa relação) ao inconsciente da criança. A autora procura evidenciar, seguindo as indicações

de Lacan (2003b), como a criança encarna, através do seu sintoma, as dificuldades do casal

parental, sendo necessário, portanto, escutar os pais e localizar o lugar que a criança ocupa no

seu desejo.

A influência dos pais na clínica com crianças se faz sentir não só no sintoma, mas

também na transferência com o analista. Mannoni (2003, p. 95) não considera tão importante

saber se a criança faz transferência de seus sentimentos pelos pais para a pessoa do analista,

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pois “isso seria tornar a transferência uma pura experiência afetiva - a questão é conseguir

tirar a criança de certo jogo de equívocos que conduz com a cumplicidade dos pais.” Para a

autora, há um discurso coletivo que sustenta a criança, sendo a transferência realizada entre

todos os personagens envolvidos: pais, analista e criança.

2.2.4 Rosine e Robert Lefort: a unidade da psicanálise

O ensino de Lacan produziu grande impacto sobre os psicanalistas que se

dedicavam à análise de crianças. Rosine e Robert Lefort estão entre os maiores expoentes da

escola francesa, desenvolvendo um trabalho cuja marca foi a concepção da criança como

analisando por inteiro, o que os levou à defesa de uma unidade na psicanálise. Segundo

Robert Lefort (1991, p. 13), “não há especificidade na análise de crianças. A estrutura, o

significante e a relação com o Outro não concernem de maneira diferente à criança e ao

adulto. É isso que faz a unidade da psicanálise.”

Desse modo, não haveria para a psicanálise, adultos ou crianças, apenas sujeito. É

nessa pressuposição que se baseia a defesa dos Lefort de uma unidade na clínica. O

importante é o modo como se apresentam saber, gozo, objeto a e Outro, no que concerne à

estrutura e isso não depende da idade. Por se constituir a partir da linguagem, o sujeito é,

muitas vezes, confundido pela relação que mantém com ela. Assim, alguns psicanalistas

preconizam a especificidade da clínica com crianças, justificando seu ponto de vista na

equiparação “do ‘verbal’ com a linguagem.” (PACHECO, 2012, p. 124).

Com crianças, ter-se-ia, portanto, diferenças no uso da língua, o que não significa

alterações na estrutura da linguagem. “É preciso investigar, portanto, o que significa a

estrutura da linguagem e como seria possível verificar a entrada da criança nessa estrutura,

bem como, a modalidade dessa entrada.” Essa Verificação, segundo Pacheco (2012), ocorre

sob transferência, na qual se pode avaliar a posição do Outro para cada sujeito: Outro

absoluto, Outro indefinido ou excessivamente consistente e, a partir dessa diferenciação,

realizar o diagnóstico acerca das estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão

(PACHECO, 2012, p. 125).

Pelo fato de trabalharem numa instituição de crianças órfãs ou abandonadas, os

Lefort tiveram contato com a particularidade da ausência dos pais no tratamento, o que

repercutiu na forma de conceber a transferência. Segundo Rosine Lefort (1991), era

necessário se afastar do discurso de um dos pais, ou até mesmo dos dois, para compreender o

discurso da criança. Esse método de trabalho rompia drasticamente com o que era

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convencionalmente estabelecido, pois os pais sempre ocuparam um lugar mais ou menos

definido na análise dos filhos, ora priorizando-se sua dimensão real, ora fantasística, mas seu

discurso sempre foi colocado em relevo. O que Rosine e Robert Lefort propõem, no entanto, é

estabelecer a condição da criança de analisando integral, devendo, portanto, sua análise estar

centrada no seu discurso. Nas palavras de Rosine Leford:

É, pois, com o discurso da criança que lidamos. Um discurso que está longe de ser o

dos pais [...]. O ensinamento de Lacan – no qual a referência à criança é quase uma

constante – desprezou essas figuras parentais derrisórias que são postas em

evidência, como todos sabem: o pai omisso, o pai assustador, etc. Não é isso que se

refere nos tratamentos, mas ao Nome-do-Pai, à estrutura, e também à topologia,

pedra angular da transmissão da psicanálise. (LEFORT, 1992, p. 11 apud

PACHECO, 2012, p. 123).

Tendo como referência o ensino de Lacan, Rosine e Robert Lefort em conjunto

com Éric Laurent, Jacques-Alain Miller e Judith Miller fundam o CEREDA (Centro de

pesquisas sobre a criança no discurso analítico) no âmbito do Campo freudiano em 1983. O

objetivo principal do grupo é propor contribuições da psicanálise de crianças ao discurso

analítico. Na carta de intenção de 11 de outubro de 1982 que, em seguida, dá origem ao

CEREDA, Robert Lefort apresenta seu posicionamento a respeito da análise de crianças da

seguinte forma:

Manter a psicanálise com crianças na redução a uma técnica de jogos e desenhos

implicaria uma grande contradição com aquilo de que a criança se mostra capaz,

mesmo ainda muito jovem – mesmo antes de falar -, no sentido de nos esclarecer

sobre um ponto tão essencial quanto a constituição do sujeito no discurso analítico.

[...] Seria preciso retomar a psicanálise com crianças nesse nível mínimo, ali onde o

corpo aparece de maneira privilegiada como um corpo de significante. Significante,

com certeza, mas no qual o real tem todo seu lugar a partir do objeto (a); e, se o

sujeito aparece como um efeito de real é, de fato, na criança (LEFORT, 1982, p. 53).

O posicionamento dos Lefort acerca da utilização de brinquedos demonstra o

quanto sua clínica foi revolucionária. O distanciamento de práticas que apregoavam um

trabalho com crianças baseado em jogos e desenhos foi um ponto bastante defendido pelos

autores, que fugiam de uma proposta psicoeducativa como as de Anna Freud e Melanie Klein.

Mais do que isso, os Lefort empreenderam um trabalho que retirou a criança da posição e

objeto do discurso do outro, tomando-a como sujeito por inteiro.

Desse modo, Rosine e Robert Lefort (1986, p. 45-46) prescindem dos brinquedos,

fazendo uso de objetos que se prestam à projeção e a diversos usos pela criança que, assim, os

utiliza como suporte para seu discurso. Rosine Lefort (1991, p. 32) chega afirmar: “Eu nunca

pensei que eu deveria colocar brinquedos numa sessão. Eu colocava objetos que

representavam simbolicamente, que eram representantes do objeto para fazer uma estrutura.”

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De acordo com o ponto de vista dos Lefort, a análise é centrada no discurso, sendo o

brinquedo um objeto e um representante necessário para a estruturação psíquica da criança.

Rosine Lefort ainda acrescenta:

Para as crianças existem muitas maneiras de falar: seja porque ainda não tem

linguagem ou porque são muito pequenas ou ainda porque sua doença não permitia:

se vocês não colocarem objetos dos quais elas possam fazer algo, exprimir alguma

coisa, nenhuma análise será possível. (LEFORT, 1986, p. 46, apud CALZAVARA,

2012, p. 120).

Pelo exposto, percebe-se que, para os autores, não há uma especificidade na

clínica com crianças, tendo em vista sua idade ou fase de desenvolvimento, o que justificaria

um trabalho analítico adaptado com a utilização de recursos lúdicos. Observa-se com Rosine e

Robert Lefort um posicionamento diferente acerca do uso do brinquedo na análise, se

comparado àqueles dos demais autores abordados anteriormente nesta discussão. De fato, a

proposta dos Lefort é oferecer materiais que sirvam de suporte ao discurso da criança, uma

vez que a análise se dá através da fala, tal como ocorre com adultos. Essa concepção está

amparada na compreensão de uma clínica fundamentada nos pressupostos de Lacan,

sobretudo, com a dimensão de sujeito que este irá propor.

Leserre apresenta um questionamento muito pertinente com relação à análise de

crianças, colocando-a no mesmo patamar que o adulto a partir do ensino de Lacan: “nosso

debate convida a inverter a tão consagrada pergunta e colocar de que maneira se poderia

sustentar que um praticante da psicanálise referido ao ensino de J. Lacan não receba uma

criança.” (LESERRE, 1992, p. 11, apud PACHECO, 2012, p. 121).

2.3 Contribuições de Lacan para a discussão sobre a especificidade da psicanálise com

crianças

Será visto, em seguida, o modo como o ensino de Lacan influenciou a clínica com

crianças. Essa discussão sobre em que se sustenta a defesa de especificidades na clínica com

crianças girou em torno de alguns pontos que podem ser sintetizados da seguinte forma: a

imaturidade da criança, a transferência e o lugar dos pais no tratamento e o brincar na análise.

Desses três fatores, somente o primeiro será abordado a seguir, quando se tratar

dos aspectos relativos ao desenvolvimento da criança na interface com a estruturação

psíquica, a partir das formulações de Lacan acerca da constituição do sujeito, o que levou o

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tratamento de crianças a uma lógica centrada no campo do inconsciente numa proposta que

não se prende à criança real.

No que concerne à transferência e o lugar dos pais, sua incidência na clínica

somente será abordada no próximo capítulo, tendo em vista a articulação que se pretende

estabelecer entre o sintoma e os conceitos fundamentais de transferência e repetição propostos

por Lacan no Seminário 11. Já o brincar na análise será abordado no terceiro capítulo em

associação com a fantasia, tendo em vista que o comparecimento das fantasias inconscientes

no brincar infantil constitui um dado da análise de crianças que merece ser mais bem

precisado.

2.3.1 A imaturidade da criança e a constituição do sujeito

A infância constitui-se numa cronologia como início da vida do indivíduo,

momento no qual são inscritos os primeiros registros de experiência no psiquismo e de

entrada no mundo da linguagem. É bem verdade que a estruturação psíquica não obedece ao

tempo cronológico, mas lógico, como situa Lacan (1998a). No entanto, não se pode

desconsiderar a existência de um período em torno do qual essas inscrições se deem e

produzam um efeito de sujeito.

Em “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada”, Lacan (1998a)

apresenta, através de um sofisma, a formulação do tempo lógico como aquele que rege o

funcionamento do inconsciente. Trata-se de três prisioneiros prestes a alcançar a liberdade;

mas, para isso, terão de solucionar uma questão. A cada um é dado um disco, que pode ser

preto ou branco, sendo cinco no total (três brancos e dois pretos), que são afixados em suas

costas sem que vejam a cor. Dessa forma, eles têm de descobrir de modo lógico qual é a sua

cor a partir da observação dos demais. São instituídas três operações lógicas: ver,

compreender e concluir. São instituídos, ainda, três tempos para se alcançar a asserção sobre

si, a partir de uma antecipação que se faz pela pressa, enquanto tensão temporal que exige um

posicionamento do sujeito. Para ocorrer essa antecipação, no entanto, é necessária a

emergência dos tempos anteriores num movimento lógico, que não se refere apenas a uma

sucessão linear, mas a incorporação no tempo seguinte daquilo que o momento anterior

promove, tal como Lacan (1998a, p.54) estabelece:

Isolam-se no sofisma três momentos da evidência, cujos valores lógicos irão revelar-

se diferentes e de ordem crescente. [...]. Mostrar que a instância do tempo se

apresenta de um modo diferente em cada um desses momentos é preservar-lhes a

hierarquia, revelando neles uma descontinuidade tonal essencial para seu valor. Mas

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captar na modulação do tempo a própria função pela qual cada um desses

momentos, na passagem para o seguinte, é reabsorvido, subsistindo apenas o último

que os absorve, é restabelecer a sucessão real deles e compreender verdadeiramente

sua gênese no movimento lógico. (LACAN, p. 1998a, p. 54).

Segundo essa lógica, o tempo do inconsciente não é marcado pela sucessão de

eventos, estabelecendo passado, presente e futuro, a exemplo do funcionamento consciente.

Na verdade é marcado pela significação retroativa inscrita pelos eventos. Um acontecimento

adquire sentido pela inclusão de um novo que ressignifica o anterior. Dessa forma, o tempo

lógico inscreve, inicialmente, uma noção de futuro antes do passado, a partir da tensão do

presente (MEDEIROS; MARIOTTO, 2006).

Freud (1996b) apresenta no “Projeto para uma psicologia científica” sua

compreensão da gênese dos processos psíquicos, a partir de um modelo neurológico. Nele são

identificados elementos para se pensar a constituição psíquica em relação à temporalidade,

logo, à infância. Tempo de inscrição e transcrição de traços mnemônicos, pois o pensamento,

a memória, a realidade, o juízo, são abordados a partir das sucessivas alterações provocadas

por essas operações de acúmulo e descarga das quantidades de estímulos no sistema nervoso.

É na condição de poder acumular quantidades de excitação e adiar a descarga, que o

pensamento torna-se possível e com ele a delimitação dos processos conscientes e

inconscientes.

Já no artigo “A negativa”, Freud (1996af) aborda o desenvolvimento da função de

julgamento e de pensamento, numa perspectiva metapsicológica. O artigo, num primeiro

momento, dá a impressão de tratar apenas de um fenômeno clínico comum relativo à

resistência do paciente manifesta por uma negativa. Todavia, logo aparecem os

desdobramentos da questão, indicando a relevância do tema no que concerne à estruturação

psíquica.

Com efeito, Freud analisa o modo como algumas resistências comparecem no

tratamento, através da fala do paciente, sendo expressas numa negação, quando, de fato, trata-

se de uma afirmação recalcada que surge na consciência sob a forma negativa. Esse fato é

exemplificado por Freud quando, numa sessão, seu paciente comenta a respeito de um sonho:

“o senhor pergunta quem pode ser essa pessoa no sonho. Não é minha mãe. Emendamos isso

para, então é a mãe dele.” (FREUD, 1996af, p. 267).

A emergência desse conteúdo inconsciente se deve ao efeito do recalque, que

produz uma separação entre as dimensões afetiva e intelectual envolvidas na representação. O

paciente não apresenta dificuldade em falar sobre uma ideia intolerável, permitindo seu acesso

à consciência, mas somente sob a condição de negá-la. A negativa, portanto, “constitui um

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modo de tomar conhecimento do que está reprimido; com efeito, já é uma suspensão da

repressão, embora não, naturalmente, uma aceitação do que está reprimido.” (FREUD,

1996af, p. 267-268).

Há nesse processo de negação ou denegação - como foi traduzido o termo do

alemão “Verneinung”- uma aceitação intelectual do recalcado, sem, contudo, ser suspenso o

essencial do recalque. Segundo Freud (1996af, p. 268), mesmo existindo total conhecimento

por parte do paciente do conteúdo oculto pela negação, e embora haja sua aceitação, ainda

assim, o processo do recalque não é removido. A capacidade de julgamento é associada ao

próprio recalque, pois “negar algo em um julgamento, é no fundo dizer: ‘isso é algo que eu

preferia reprimir’. Um juízo negativo é o substituto intelectual da repressão”.

Ao localizar o que seria a gênese da função subjetiva, Freud (1996af) atribui à

capacidade de julgamento a responsabilidade pela decisão acerca do que entra e do que fica de

fora do campo das representações, ou seja, o que, inicialmente produziu a separação entre o

mundo interno e mundo externo no indivíduo. Mais do que isso, essa função leva a pensar na

própria constituição do sujeito do inconsciente - apesar de Freud não se referir nesses termos -

pois, se ela inaugura um fora e um dentro, define, também, em torno do que essas referências

se estabelecem, como será mostrado em seguida.

A função de julgamento envolve um juízo atributivo e um juízo de existência. O

primeiro diz respeito à capacidade de atribuir a posse em uma coisa, ou um atributo; o

segundo refere-se ao julgamento da existência ou não de uma representação na realidade. O

juízo atributivo segue o modelo da introjeção/projeção, pois o que é bom é introjetado no Eu e

o que é ruim ou prejudicial é expulso dele. Assim, o que é mau, o que é estranho ao Eu será

idêntico ao que é externo a ele. Quanto ao juízo de realidade, segundo Freud (1996af, p. 269),

não se trata de saber se “aquilo que foi percebido será ou não integrado ao ego, mas uma

questão de saber se algo que está no ego como representação pode ser redescoberto também

na percepção (realidade).” Aqui, novamente, a oposição, interno/externo se faz presente.

Aquilo que é irreal, pertence ao campo da representação, é subjetivo e apenas interno, e aquilo

que é real, é objetivo e está fora.

Para Freud, a distinção entre o objetivo e o subjetivo não se dá, portanto, desde o

começo, pois é o pensar que possibilita a reprodução de algo percebido anteriormente,

dispensando a presença do objeto. Além disso, a subjetividade se apresenta no modo como

algo é percebido, sendo função do teste de realidade limitar até onde podem ir as variações

perceptivas, sem que se perca a vinculação com o objeto da percepção. Contudo, Freud

defende uma pré-condição para o estabelecimento do teste de realidade: que o objeto de

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satisfação tenha sido perdido. É somente na condição de ter havido uma perda real desse

objeto, que ele pode ser representado simbolicamente.

Voltando ao “Projeto”, Freud (1996b) já havia desenvolvido sua concepção da

perda do objeto, correlata à primeira experiência de satisfação, enquanto condição de

emergência do campo da representação. Ele utiliza o artifício de localizar num momento

mítico o que seria a primeira experiência de satisfação (da necessidade), cujo protótipo o

sujeito tentaria repetir ao longo da vida sem sucesso, pois o objeto perdido (das Ding) seria

perdido desde sempre, sendo sua perda o que torna possível a representação do objeto, a partir

de um traço.

Após essa primeira experiência, as necessidades da criança aparecem vinculadas

aos restos mnésicos da imagem da primeira satisfação. Dessa forma, o campo pulsional

sobrepõe o do instinto, não se podendo mais falar em satisfação da necessidade, mas da

pulsão. A partir de então, o traço mnésico da primeira satisfação é reinvestido ao ocorrer o

aumento da tensão interna no surgimento de cada nova necessidade. A criança alucinará o

objeto quando houver aumento de tensão e fará uma comparação entre a satisfação alucinada

e a insatisfação real, estabelecendo gradativamente a diferença entre mundo interno e mundo

externo. Essa busca pela satisfação daquilo que está situado além da necessidade - já que não

se trata mais de uma simples necessidade orgânica, após a primeira experiência, e sim de uma

demanda de amor - orienta o sujeito a buscar seus objetos na realidade. (FREUD, 1996b).

Esse modelo mítico de inscrição dos primeiros signos de percepção no

psiquismo foi desenvolvido por Freud (1996af) em “A negativa” segundo uma compreensão

de que, no início, houve uma afirmação primordial atrelada a uma negação primária. Na

verdade, trata-se de um movimento duplo de afirmação-expulsão ou Bejahung-Ausstossung,

que estaria na base do juízo de atribuição, constituindo o que é interno e externo ao sujeito.

Hypollite citado por Lacan (1998f) apresenta em seu comentário do texto de

Freud (1996af)) dois tipos de negação: uma é a denegação, que é composta pelos juízos de

atribuição e de existência e uma negação primária formada pela afirmação e expulsão. Dessa

forma, a partir do juízo de atribuição se forma a primeira diferenciação entre o Eu e o mundo

externo, já que antes disso tudo que existia fora pertencia também ao Eu. Na negação

primária, segundo os mecanismos de afirmação e expulsão, as percepções prazerosas são

introjetadas no Eu, enquanto as desprazerosas são expulsas e excluídas do campo da

representação.

Consideramos, portanto, que esta ‘negação primária’ resulta na divisão entre sujeito

e objeto, formando as primeiras representações como signos. A operação de

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‘afirmação primordial’, então, é a incorporação das primeiras percepções como

representações, que vão estruturar os traços mnêmicos no interior do aparelho

psíquico. Trata-se de uma primeira escrita simbólica, que leva o sujeito a introjetar

os objetos através de signos. (COSTA, 2008, p. 43).

Dessa forma, têm-se dois aspectos da negação primária através dos quais o sujeito

representa um objeto da realidade. A afirmação primordial é a atribuição de uma

determinação por parte do sujeito a si mesmo. Ela determina o que está dentro, compondo o

Eu, ao mesmo tempo em que define o que é da ordem do não-Eu, logo, o que está no exterior.

“Ao formar o interior, através da ‘afirmação primordial’, o sujeito constitui o simbólico a

partir da introjeção de representações.” Quanto à expulsão, (Ausstosung), ela compreende o

processo que designa o que fica de fora da simbolização. Com efeito, pode-se dizer que, a

princípio, ocorreu a afirmação primordial com a introjeção das percepções como

representações, e, em seguida, a expulsão daquilo que não pode ser simbolizado pela

afirmação primordial (COSTA, 2008, p.43).

A afirmação primordial é responsável pela constituição do universo simbólico do

sujeito, fazendo com que dentre as diversas percepções algumas sejam simbolizadas e outras

não. Aquelas que são excluídas compõem o real e são inacessíveis ao sujeito. A afirmação

primordial tem como função, portanto, impedir o acesso direto do sujeito à realidade ou ao

campo do Outro. “As negações propriamente ditas do sujeito, isto é, aquelas que o

determinam como psicose ou neurose, foraclusão ou recalque, respectivamente, vão ocorrer

sobre aqueles conteúdos que foram simbolizados.” (COSTA, 2008, p. 45).

O sujeito propriamente dito para a psicanálise aparece somente “como resultado

da negação que determinará sua estrutura”. Os mecanismos de defesa que originam as

estruturas psíquicas vão atuar cada uma ao seu modo, e de forma diferente sobre as

representações componentes da rede de significantes de cada individuo. A negação primária

atua no sentido de interromper a relação direta do sujeito com o mundo externo - o que é

viabilizado pela construção da fantasia (neurose) e do delírio (psicose) - enquanto as negações

propriamente ditas, ou seja, os processos de defesa (recalque, foraclusão e denegação)

ocorrem sobre as representações inscritas no aparelho psíquico. (COSTA, 2008, p. 46).

A denegação, portanto, permite a suspensão do recalque, na medida em que o

sujeito pode escapar da dominação dos instintos de atração e expulsão, produzindo uma

margem de pensamento “um aparecimento do ser sob a forma do não ser”. (LACAN, 1998g,

p. 901) É essa a contribuição de Freud (1996af) para a formulação do conceito de sujeito que,

se não foi explicitamente proposto por ele, teve nesse texto um de seus principais

fundamentos.

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Foi a partir da inauguração da função de pensamento, decorrente da negação, que

ficou demarcada a posição do inconsciente, na medida em que há um distanciamento entre

uma parte do sujeito que ele reconhece e outra que é puro desconhecimento. A apreensão

desse desconhecido (inconsciente) é realizada pela consciência de modo distorcido através da

negação, que ao mesmo tempo em que atesta sua existência, a recusa, como define Hypollite

apud Lacan (1998f, p. 902):

Eis o resumo: não se encontra na análise nenhum ‘não’ vindo do inconsciente, mas o

reconhecimento do inconsciente, pelo lado do eu, mostra que o eu é sempre

desconhecimento; mesmo no conhecimento, sempre encontramos do lado do eu,

numa fórmula negativa, a marca da possibilidade de deter o inconsciente, ao mesmo

tempo recusando-o.

O sujeito de que trata a psicanálise é, portanto, o sujeito do inconsciente, sujeito

dividido e marcado pela linguagem, já que ele se constitui a partir dos efeitos produzidos nele

pelo campo do Outro, enquanto sede dos significantes. A contribuição de Lacan (1998d)

consistiu em situar o sujeito como sendo originário do inconsciente, efeito do inconsciente.

Por ser esse último estruturado como linguagem, o sujeito é efeito dos significantes.

Paradoxalmente, foi também em decorrência das questões relativas ao sujeito dividido que se

estabeleceu o conceito de inconsciente. É o que será visto em seguida.

Em Subversão do sujeito e dialética do desejo, segundo Lacan (1998d), apresenta

o sujeito da psicanálise como aquele que é subvertido no cogito cartesiano. Apesar de parecer

contraditório, Lacan situa o sujeito da psicanálise como sendo o mesmo da ciência, na medida

em que, o sujeito que a ciência exclui é o mesmo que interessa à psicanálise. Ao diferenciar

ciência e psicanálise, o autor assevera que o método da dúvida metódica de Descartes atinge a

dimensão subjetiva, separando saber e verdade. Embora a ciência tenha se detido nesse ponto,

desprezando o sujeito, a psicanálise vai justamente se interessar por ele. O “penso, logo sou”

de Descartes é subvertido por Freud em “Sou ali onde não penso ser”, indicando que o sujeito

da psicanálise é marcado pelo desconhecimento, por um saber que ele ignora.

Segundo Cabas (2010, p. 217), se a psicanálise se ocupa do sujeito que a ciência

exclui isso não significa dizer que ela seja um complemento dessa última e tampouco “que

faça uma suplência ao saber da ciência”. Nem complementar e nem refutar o saber da ciência

é função da psicanálise, ela apenas atribui relevância ao que é excluído do campo da ciência,

ou seja, ao sujeito. O discurso analítico é, portanto, um saber que opera sobre aquilo que é

excluído do saber científico e é isso o que garante seu estatuto de ciência, ou seja, a exclusão

da dimensão subjetiva.

Dentre as principais definições do sujeito em Lacan, Cabas (2010, p. 218) resume:

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O sujeito é uma função. Adscrita ao simbólico. Portanto, ao significante.

Consequentemente é representável e encontra sua representação no significante. [...].

O sujeito é uma função que carece de substância. Ou de materialidade. Não há nada

no plano da matéria que possa lhe conferir consistência. Seu substrato é vazio. [...].

Assim sendo, é uma função à cujo respeito o importante não é saber de que matéria

é feita – já que substância subjetiva não há – e, sim, qual é seu lugar na estrutura.

Esse lugar é entre-dois. Isso define uma intersecção e, logo, um ponto. Um ponto

entre- dois. Entre pulsão e inconsciente.

A subversão do sujeito proposta por Lacan (1998d) não se refere apenas ao

âmbito da ciência, mas também à psicologia na sua defesa de uma unidade do sujeito. Desde

Freud, o sujeito é caracterizado por sua divisão, não é o sujeito integrado e tampouco é o

sujeito do conhecimento. Cabas (2010) apresenta duas acepções de sujeito no ensino de Lacan

que aparentemente parecem divergentes, mas, na verdade, uma amplia o sentido da outra e

nos ajuda a compreender o alcance da proposta lacaniana ao centrar a clínica psicanalítica na

questão do sujeito.

Lacan (1998d) em “Subversão do sujeito e dialética do desejo” propõe, a

principio, uma definição do sujeito como efeito da linguagem. Aqui o sujeito aparece como

resultante dos deslocamentos da cadeia significante, como decorrência, portanto, do campo do

inconsciente. Já em “Posição do inconsciente”, Lacan (1998e, p. 830) afirma que “o

inconsciente é um conceito forjado na trilha do que opera para constituir o sujeito.” Nessa

obra, há uma inversão nos elementos e o inconsciente aparece como necessidade lógica e

conceitual para dar conta do advento do sujeito. Segundo Cabas (2010), a inversão da ordem

na qual os termos aparecem representa uma correção no sentido de priorizar o sujeito como

aquilo que é mais importante e anterior ao inconsciente. Trata-se de uma ampliação conceitual

e não uma contradição, já que a ênfase é posta no sujeito.

Foi por conta da divisão do sujeito e da emergência de um desejo desconhecido,

que a psicanálise se lançou na tentativa de deciframento dos sintomas naquilo que parecia ser

sem sentido. Era ao desejo inconsciente que Freud visava no trabalho da análise, a fim de

descobrir o verdadeiro protagonista do sofrimento do qual os pacientes tanto se queixavam,

mas pelo qual também eram responsáveis. “Freud perguntava-se pela possibilidade de o

paciente reconhecer essa vontade oculta como a motivação que anima a formação dos

sintomas.” (CABAS, 2010, p. 220).

Tanto que a fórmula de Lacan acaba dizendo que é no esteio desse objetivo clínico –

a assunção pelo paciente das motivações desconhecidas da consciência – que Freud

teria formulado a hipótese do inconsciente, como quem forja um instrumento para

cernir e simbolizar um real que, de outra maneira se furtava ao entendimento.

(CABAS, 2010, p. 220).

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Em virtude disso, não há contradição nas duas afirmativas de Lacan e sim uma

ênfase no sujeito em detrimento do conceito de inconsciente. É porque o sujeito apresenta-se

como uma questão para a psicanálise que foi preciso formular a hipótese do inconsciente. Foi

em virtude da necessidade de articular o campo da pulsão e sua interdição; e de situar a

intersecção entre real e simbólico que foi necessário desenvolver o conceito de inconsciente

“tomando como ponto de apoio o campo da linguagem, tomando como suporte a função da

palavra e tomando como instrumento a materialidade do significante.” (CABAS, 2010, p.

220).

As teorizações concernentes ao sujeito em Lacan são bastante complexas e

excedem a proposta deste estudo que é a de apenas pontuar as contribuições do autor para o

campo da psicanálise com crianças naquilo que ela poderia ou não conter de especificidades.

Ao se definir a relevância do conceito de sujeito em sua articulação com o inconsciente,

pretende-se redimensionar a discussão acerca da clínica com crianças para aquilo sobre o que

a psicanálise opera, isto é, o sujeito do inconsciente.

O trabalho com crianças, portanto, se faz na mesma base daquele realizado com

adultos, tendo em vista que o incipiente desenvolvimento da criança não anula seu

posicionamento como sujeito desejante, afetado pela linguagem que o constitui. As discussões

em torno da imaturidade da criança, de suas limitações em termos de desenvolvimento geram

controvérsias no modo como é desenvolvido o tratamento com elas.

A esse respeito Miller (1993) comenta, a partir do ensino de Lacan, que a

oposição do desenvolvimento versus história evidencia a diferença existente entre uma

concepção biologicista relativa à maturação das espécies e outra fundada na linguagem e nos

processos históricos que caracterizam os seres humanos. “Opor desenvolvimento e história

não quer dizer que não há nada de maturação do organismo, pois há, não vamos negá-la. Mas,

quer dizer que o processo inclui um sujeito, em um sentido que subjetiva, que cada fato

objetivo inclui um sujeito, que dá sentido ao ocorrido.” Dessa forma, não há uma maturação

igual para todos, já que para cada experiência cada sujeito atribui um sentido, havendo, é

claro, inúmeras possibilidades de sentido (MILLER, 1993, p. 7-8, tradução nossa).

Outra oposição comum quando se trata de crianças, refere-se ao par

desenvolvimento versus estrutura. Miller (1993, p. 11) afirma que, com a criança, é possível

perceber a primazia da relação do sujeito com o discurso do Outro e é através da criança que

“podemos quase assistir no real o modo segundo o qual o sujeito surge da massa de

significantes do Outro.” Entretanto, Miller adverte que não é possível advir completamente

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como sujeito, pois um resto sempre permanece; e localiza a criança e, o infantil presente no

adulto, justamente nisso que escapa e que é impossível se desenvolver. (Tradução nossa).

Miller (1993) adverte, no entanto, para o risco de, em nome da estrutura, os

psicanalistas dissolverem o conceito de criança. Segundo o autor, caso se tome ao pé da letra

a formulação freudiana de que no inconsciente não existe incidência do tempo, pode-se

afirmar, também, que tampouco existe criança. Dessa forma, a criança seria uma definição

cronológica e para um estruturalista, fica difícil sustentar que a criança existe, assim como a

mulher.

Para Miller (1993), é preciso não perder de vista a dimensão da criança para que

não se caia em reducionismos. O autor vê uma dificuldade no que diz respeito à criança,

segundo uma visão estruturalista. No entanto, se para os estruturalistas em geral não existe

criança, o próprio Lacan chegou a afirmar que “não existe gente grande” (LACAN, 2003c, p.

367). Logo, acredita-se que a intensão de Lacan era enfatizar o inconsciente, pois, realmente,

nessa perspectiva, não existe criança ou adulto, apenas sujeito. Claro, que não se pretende

com isso negar a singularidade da criança, que é muito diferente de um adulto. Objetiva-se

apenas questionar os discursos que defendem adaptações à análise de crianças com base em

critérios nem sempre muito claros, ou fundamentados na imaturidade desses pacientes, o que

não encontra justificativa nas teorias de Freud e Lacan.

Ainda no que concerne às diferenças entre desenvolvimento e estrutura, para

Leserre (1993), o sujeito é apresentado como invariante na estrutura, enquanto a concepção de

criança apresenta variações com relação aos diversos aspectos do desenvolvimento, em

termos de aquisição da fala, início da escolarização, da aquisição da escrita, etc. A questão,

segundo o autor, é tentar localizar os impasses que se apresentam sob a forma sintomática na

criança, relacionando-os com sua posição subjetiva. Dessa forma, a criança apresenta

variações quanto ao desenvolvimento, enquanto a noção de sujeito é invariante na estrutura.

O autor afirma que, na análise, é fundamental localizar a relação da criança no que

se refere ao sintoma e à fantasia. A referência a esses dois conceitos que constituem o cerne

da análise, segundo o autor, é “um compromisso que beneficia a instalação do dispositivo

analítico, uma vez que evita os becos sem saída que o conceito de desenvolvimento implica, e

questiona a premissa de um adulto supostamente desenvolvido.” (LESSERRE, 1993, p.107-

108, tradução nossa).

A partir do que foi exposto, compreende-se que a perspectiva do desenvolvimento

da criança não está inserida no escopo da psicanálise que se fundamenta na escuta do sujeito

do inconsciente. Não se pretende com isso negar que a criança se desenvolva, mas isso se

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refere apenas ao seu funcionamento biológico e não à dimensão subjetiva com a qual a

psicanálise trabalha.

Nesse sentido, será seguido o caminho sugerido por Leserre (1993), ao situar

sintoma e fantasia como parâmetros do trabalho realizado com crianças, numa tentativa de

responder à pergunta que move esta pesquisa, a saber: o que fundamenta a clínica

psicanalítica com crianças? Através desse questionamento e da abordagem do sintoma e da

fantasia pretende-se problematizar o que está para além das ditas especificidades dessa

clínica, tomadas como a transferência com os pais e a questão do brincar, uma vez que já

foram tratados os aspectos relativos ao desenvolvimento infantil.

Finalmente, busca-se reafirmar que a criança - segundo Rosine Lefort (1991) -

esclarece sobre esse ponto tão essencial que é a constituição do sujeito no discurso analítico.

O que é analisado na clínica psicanalítica é o sujeito, que se apresenta sempre como falta a

ser.

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3 O SINTOMA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS

O sintoma apresentou-se como porta de entrada da experiência analítica, pois

revelava o caminho de acesso ao inconsciente, antes mesmo da interpretação dos sonhos. A

psicanálise, através das noções de inconsciente e sexualidade, revelou um sujeito dividido por

um desejo desconhecido e que se manifestava de forma distorcida através do sintoma.

Encontrar o sentido do sintoma constituiu-se como um dos principais objetivos da

análise, que se deparava, invariavelmente, com as vivências sexuais infantis do paciente.

Esses conteúdos sofriam ação do recalque e sinalizavam a presença de um desejo incestuoso

intolerável ao sujeito. O recalcado, ligado à sexualidade infantil, indicava, assim, o desejo

interdito que incluía os pais sob a forma de fantasias de sedução. Gradativamente, Freud

substituiu sua teoria da sedução pela sexualidade infantil, deslocando a ênfase da psicanálise

da realidade objetiva para a psíquica com a formulação do complexo de Édipo. Percebe-se,

assim, como o sintoma, desde o início, ocupou um lugar fundamental na teoria e clinica

psicanalítica, constituindo-se como um elemento propulsor do tratamento.

O tratamento do sintoma da criança surge na clínica psicanalítica muito

precocemente, com o caso do “Pequeno Hans” (1909/1996). Com esse caso, Freud afirma que

não descobriu nada de novo que a clínica com adultos já não houvesse revelado. Segundo ele,

o atendimento de Hans só confirmou suas teorias sobre a sexualidade infantil, a existência do

complexo de Édipo e de castração, além de deixar claro que o método analítico poderia servir

também para tratar crianças.

Como visto anteriormente, o caso do “Pequeno Hans” inaugurou a possibilidade

de as crianças serem beneficiadas pelo tratamento psicanalítico, ao mesmo tempo em que

produziu muitas controvérsias entre os psicanalistas que se ocuparam desses pacientes,

sobretudo no que diz respeito ao método. O que se pretende discutir é justamente o que

concerne à clínica para além do método.

Os questionamentos que deram origem a essa pesquisa partem do pressuposto de

que se o método psicanalítico por excelência é a associação livre, enquanto via de acesso ao

inconsciente, e se o trabalho com a criança não utiliza esse expediente, necessitando

adaptações, segundo muitos autores; o que para além do método garante que se está seguindo

o caminho traçado por Freud? Se for o trabalho sobre o inconsciente, como se acredita, então,

qual o caminho melhor do que o sintoma para que se comece a definir o que é realizado na

análise com crianças? Por ser o ponto de partida do tratamento, incluindo, simultaneamente,

sofrimento e gozo, o sintoma evidencia a divisão do sujeito de que trata a psicanálise.

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Nesse sentido, objetiva-se nesse capítulo, situar o sintoma como conceito

fundamental também na clinica com crianças, tendo em vista que a constituição psíquica que

funda o inconsciente não se apresenta de forma diferente no adulto e na criança. Outro

objetivo consiste em discutir acerca da participação dos pais no que se refere ao sintoma da

criança. Seria essa influência parental uma singularidade da clínica com crianças ou um modo

de resposta ao desejo do Outro que não exclui a subjetividade infantil na sua produção

sintomática? A transferência envolvendo os pais também é abordada por constituir outro

impasse na querela das especificidades da clinica com crianças. Ao final, será apresentado um

caso clínico, a fim de corroborar a proposição de que a criança é um analisando por inteiro,

capaz de constituir um sintoma, ainda que relacionado à subjetividade dos pais, ao seguir as

trilhas de seu percurso edípico com os impasses relativos à castração.

Dando seguimento a esta proposta de trabalho, e como preâmbulo à discussão

aqui realizada, serão enfatizadas, inicialmente, as contribuições de Lacan acerca do sintoma

na psicanálise, destacando, a partir do Seminário 11, o modo como transferência e repetição,

enquanto conceitos fundamentais se articulam na produção sintomática do sujeito

independente da idade.

3.1 O sintoma como conceito fundamental

Freud (1996x), em “A história do movimento psicanalítico”, apresenta um resumo

da teoria psicanalítica e reafirma os pressupostos do que poderia ser chamado de psicanálise

no sentido estrito. Segundo ele, a contribuição teórica da psicanálise refere-se ao recalque, ao

reconhecimento da sexualidade infantil, e à teoria da interpretação dos sonhos. Lacan (2008)

corrobora o pensamento freudiano e estabelece, sob a forma dos quatro conceitos

fundamentais (repetição, transferência pulsão e inconsciente), o que considera um

desdobramento dos princípios norteadores do trabalho analítico destacados por Freud.

O início da clínica psicanalítica é concebido quando transferência e resistência se

apresentam, o que só se dá mediante o método da associação livre. A história da psicanálise

tem início, portanto, com o novo método que dispensa a hipnose, sendo a resistência ao

tratamento analítico, propiciada pela livre associação do paciente, o que conduz,

indubitavelmente, à atividade mental inconsciente. “A teoria da psicanálise é uma tentativa de

explicar dois fatos surpreendentes e inesperados que se observam sempre que se tentam

remontar os sintomas de um neurótico a suas fontes do passado: a transferência e a

resistência.” (FREUD ,1996x , p. 27). Isso significa dizer que a transferência e a resistência

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caracterizam a clínica psicanalítica e só se manifestam na presença do sintoma. Se Freud

enfatiza o papel da resistência na clínica psicanalítica, no ensino de Lacan praticamente não

há referência a esse conceito, e sim ao de repetição, como será visto mais adiante.

O sintoma no ensino de Lacan assume diversas conotações, à medida que seu

ensino se constitui como uma teoria que parte da obra de Freud, mas vai além, adquirindo

contornos singulares. A primeira acepção considera o sintoma como mensagem, na segunda o

sintoma é gozo e na terceira ele é criação, invenção. A obra de Lacan envolve, portanto, esses

três momentos de apreensão do sintoma (OCARIZ, 2007).

Em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” Lacan (1998b)

formaliza a predominância do simbólico no seu ensino. Com esse texto, o que o autor

tenciona é resgatar o sentido da experiência analítica, a parir da abordagem do campo da

palavra. A obra de Freud é retomada, segundo sua visão de que, desde o início, a questão que

permeou o interesse freudiano foi o inconsciente estruturado como linguagem. Essa é uma

formulação de Lacan (1996i) que a retira a partir de sua análise dos principais textos de Freud

como, “A Interpretação dos sonhos”, “Sobre a Psicopatologia da vida cotidiana” (LACAN,

1996j) e “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (LACAN, 1996i), em que há o

destaque para a vertente da linguagem na explicação dos fenômenos do inconsciente.

O sintoma é concebido de forma semelhante aos chistes, aos atos-falhos e aos

sonhos, como formações do inconsciente, estando, portanto, submetido às leis da linguagem.

Nessa primeira fase do ensino de Lacan, o sintoma é metáfora e “se resolve por inteiro em

uma análise da linguagem, porque ele mesmo está estruturado como linguagem, porque é

linguagem cuja palavra deve ser liberada”. (LACAN, 1996b, p. 270).

O sintoma é construído segundo os processos de metáfora e metonímia, por isso

ele é um significante que vem ocupar o lugar de outro significante recalcado. Ele é um

significante por haver a suposição de que ele signifique algo e por ser metáfora, sempre irá

significar outra coisa. “Deste ponto de vista, o sintoma está no registro do simbólico. O

sintoma histérico é um substituto simbólico de uma fantasia, uma resposta simbólica a uma

falta imaginária no Outro.” (OCARIZ, 2007, p. 112).

Em “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, Lacan (1998b)

ressalta a primazia do simbólico através da consideração do papel da fala plena em oposição à

fala vazia. Como a fala do paciente é o único meio de que a psicanálise dispõe, Lacan aborda

a especificidade do discurso endereçado ao psicanalista, que não pode ser confundido com os

demais ditos da vida do sujeito. De acordo com o autor, a fala que emerge na análise é a fala

plena, marcada pelo advento da verdade. Se num primeiro momento da análise, o paciente

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fala ao analista como a qualquer outra pessoa, com a transferência, há um modo singular de

escuta e de apreensão desse discurso. Há, portanto, a emergência da fala plena, concebida

como aquela que possibilita ao sujeito lidar de modo diferente com seu sintoma e que vem

substituir a fala vazia endereçada ao semelhante.

A fala em análise, portanto, remete à função do analista e à verdade que o sintoma

mascara. Essa verdade pode ser encontrada, segundo Lacan, no próprio corpo do sujeito, em

que o sintoma histérico mostra a estrutura de uma linguagem, que pode ser decifrada como

uma inscrição, nas lembranças impenetráveis da infância, na evolução semântica

correspondente ao vocabulário particular do indivíduo e nas tradições que veiculam a história

de cada um.

O sintoma como indício da verdade é “um significante de um significado

recalcado da consciência do sujeito” e participa da linguagem pela ambiguidade semântica

que detém. Por se revelar na análise da linguagem, o sintoma aponta para o saber inconsciente

como um saber que o sujeito ignora e que se repete. Tendo em vista sua teoria do significante

e a proposição do inconsciente estruturado como linguagem, veremos adiante que Lacan

atribui à repetição o valor de conceito fundamental em detrimento da resistência, como fez

Freud, e afirma que o inconsciente não resiste e sim repete. (LACAN, 1998b, p. 282).

Nos Seminários 1 e 2 de Lacan (1953-1955), o sintoma é considerado como

palavra não reconhecida pelo Outro e que pede para ser reconhecida, sendo que o desejo é o

desejo de reconhecimento. No Seminário 4, a relação de objeto (1956-1957) ocorre uma

passagem da dialética do desejo como reconhecimento, para a inscrição do Nome do Pai,

enquanto significante que vem instaurar o simbólico. A partir desse Seminário, Lacan restitui

a relação do sintoma com o desejo, a pulsão e a sexualidade. O sintoma é apontado como

relativo à castração da mãe, constituindo-se numa resolução para o indivíduo frente ao desejo

materno. (OCARIZ, 2007).

No Seminário 5, nas “formações do inconsciente” Lacan (1999) afirmar que há

uma prevalência da satisfação do sintoma, situada mais além do princípio do prazer. O autor

aborda o real como aquilo que impede o deslizamento da cadeia significante e que retorna

sempre ao mesmo lugar. Por defender a inexistência de uma verdade total, Lacan formaliza na

repetição a tentativa de superação dos obstáculos que impedem o deslizamento significante e

a produção da verdade do sujeito.

O sintoma como gozo surge no ensino de Lacan em decorrência de suas

teorizações sobre a repetição e o real. A pesar de ser sentido como sofrimento, o gozo é um

dos modos de satisfação da pulsão. Freud já havia indicado a relevância clínica dessa

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satisfação às avessas denunciada pela pulsão de morte e como ela era responsável pela

resistência ao tratamento. Em Freud, já imperava uma parcela de satisfação no sintoma que

apontava para a ineficácia da interpretação enquanto produção de sentido sobre ele. Isso que

retornava como obstáculo ao andamento da análise e que impunha limite ao simbólico era,

justamente, o real e a satisfação correlata do sintoma correspondia ao gozo.

Por fim, tem-se o sintoma na última fase do ensino de Lacan como estando

relacionado à criação e à invenção do sujeito. Refere-se ao saber fazer com o sintoma. Por ser

fundamental à estrutura, o sintoma, a partir desse momento, não é mais tomado como

metáfora, ou seja, não é gozo, mas função da letra, esta que não é um significante, pois não

significa nada para além de si mesmo. Essa concepção aponta para o Real, pois o sintoma

nessa fase é esvaziado de sentido. Lacan define o sintoma como signo em oposição à

dimensão significante anterior. Ele tenta eliminar a busca do sentido do sintoma, pois não se

trata aqui de seu deciframento (OCARIZ, 2007).

Essa concepção do sintoma, no entanto, refere-se ao fim da análise, pois quando

alguém inicia o tratamento e apresenta uma queixa que será transformada em sintoma

analítico, busca um sentido para seu sofrimento. É necessário que haja produção de sentido,

pois disso depende a continuidade da análise. É pela via do significante que a análise tem

início, porém, o sintoma é analisado até certo ponto, pois há um limite à significação. Após

esse ponto permanece algo do sintoma da ordem do indizível (OCARIZ, 2007).

A questão do fim de análise está relacionada a esse ponto que Freud já apontava

como núcleo do sintoma, como restos que permanecem. Lacan aponta que, quando o sintoma

é decifrado, o que resta não é um significante. O sintoma no fim da análise não é um

significante, é um signo porque já não se supõe que quer dizer outra coisa. É necessário, no

entanto, que no início da analise o sintoma apareça como significante, como algo a decifrar,

sem o que não é possível a interpretação, pois, se ele aparece como signo logo no início, não

provoca um questionamento no sujeito e não abre espaço para a produção de sentido.

Para diferenciar o sintoma tratável no início, daquele do fim da análise, Lacan

escreve o que, em português, seria sintoma e sinthoma. Do sintoma, no início da análise,

como sinal de conflito, passaria no fim da análise ao sinthoma como identidade do sujeito. O

sintoma é aquilo que incomoda e exige deciframento, já o sinthoma corresponde ao

indecifrável, remete ao real do gozo do qual o sujeito não consegue se livrar e o sujeito tem de

aprender a fazer algo com ele. (OCARIZ, 2007).

3.1.1 Repetição e transferência

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Lacan (2008) praticamente não trata do tema da resistência. Liga a repetição ao

inconsciente e a transferência à pulsão no que seriam os quatro conceitos fundamentais da

psicanálise. O objetivo aqui, no entanto, conduz a uma mudança dessa equivalência, pois

corroborando com a proposta de Jorge (2010), proceder-se-á à associação entre repetição e

transferência, tendo em vista que o sintoma se presentifica na intersecção dos dois termos,

pois “ele se repete na transferência.” No próximo capítulo, prosseguir-se-á com a

aproximação entre inconsciente e pulsão, a fim de abordar o campo da fantasia, enquanto

situado no real que inaugura esses dois conceitos fundamentais (JORGE, 2010, p. 70).

No Seminário 11, a repetição aparece vinculada ao real, definido como aquilo que

sempre retorna ao mesmo lugar. “Toda a história da descoberta por Freud da repetição como

função só se define com mostrar assim a relação do pensamento com o real.” A repetição é

apontada por Lacan como diferente de reprodução, pois, segundo ele, Freud não iguala os dois

termos; wiederholen não é reproduzieren. A reprodução é associada à catarse nos primeiros

casos de histeria, em que o tratamento visava à ab-reação do afeto envolvido na experiência

traumática a ser repetida sob hipnose. Já a repetição surge com o desenvolvimento da própria

psicanálise, quando Freud descobre a importância do trabalho de elaboração

(durcharbeiten) sobre o recalcado que se repete na sua tentativa de expressão (LACAN, 2008,

p. 55).

A repetição foi definida em decorrência da neurose traumática, tendo em vista

que, ela demarcava a divisão entre o princípio do prazer e o princípio de realidade. Lacan

(2008) se pergunta: qual a função da repetição traumática nos sonhos, se no estado de vigília o

indivíduo é indiferente ao que lhe ocorreu? Como situar o trauma que comparece nos sonhos,

se estes, segundo a teoria freudiana, constituíam realização de desejo? A esse respeito Lacan

(2008, p. 56) comenta:

Qual é então essa função de repetição traumática, se nada, muito pelo contrário,

pode parecer justificá-la do ponto de vista do princípio do prazer? Dominar o

acontecimento doloroso, lhes dirão - mas quem domina, onde está aqui o senhor

para dominar? Por que falar tão depressa quando, precisamente não sabemos onde

situar a instância que se entregaria a essa operação de domínio?

A resposta para a função da repetição na neurose traumática é indicada como a

ligação de energia necessária no interior do aparelho psíquico e que não pode ser realizada de

outro modo, senão pela divisão do psiquismo em instâncias. Freud já havia indicado essa

saída e, com isso, estabelecido a nova tópica psíquica, através da qual, justificava a existência

de uma parte do Eu inconsciente que era responsável pelos entraves no tratamento, dentre

outras necessidades que se impunham a sua clínica. A repetição como rememoração, é,

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paulatinamente, substituída na teoria freudiana pela “resistência do sujeito que se torna, nesse

momento, repetição em ato.” (LACAN, 2008, p. 57).

No Seminário 11, Lacan (2008) situa a repetição a partir de dois termos de

Aristóteles que tratam da função da causa. Autômaton é a rede dos significantes que se

repetem, ou seja, corresponde, “ao desdobramento automático no inconsciente da cadeia

significante”. Já tiquê, é o encontro com o real, que está para além do autômaton, constituindo

aquilo sobre o que a experiência freudiana se debruça e que Lacan destaca da seguinte forma:

(LAURENT, 1997, p. 241).

Lembrem-se do desenvolvimento, tão central para nós do Homem dos Lobos, para

compreender qual é a verdadeira ocupação de Freud à medida que se destaca para

ele a função da fantasia. Ele se empenha, e de modo quase angustiado, em interrogar

qual é o encontro primeiro, o real, que podemos afirmar haver por trás da fantasia.

(LACAN, 2008, p. 59).

Nesse sentido, a repetição não está situada como retorno dos signos (autômaton),

como uma reprodução ou rememoração agida. Ela é tiquê, enquanto encontro com o real, que

não deixa de retornar e funciona como causa primeira do psiquismo. Para Lacan, a repetição

não é o retorno do mesmo, mas a tentativa de produção do novo. Ela inaugura a diferença pela

necessidade de inscrição permanente daquilo que nunca se inscreve: o real (LACAN, 2008).

O real aqui é o nível de causalidade, o nível daquilo que interrompe o

funcionamento tranquilo do autômaton, da seriação automática, sujeita à lei regular

dos significantes do sujeito no inconsciente. Ao passo que os pensamentos do

analisando estão destinados a perder sempre o alvo do real, conseguindo apenas

circular ou gravitar em torno dele, a interpretação analítica pode atingir a causa,

levando o analisando a um encontro com o real: tiquê. (LAURENT, 1997, p. 241,

242).

Lacan aponta a confusão de muitos analistas que tomaram a repetição como

equivalente da transferência e situa a diferença entre os dois termos, justamente pela via do

real presente na repetição. Ele define a posição do analista na transferência, como sendo a de

produzir surpresa, a partir da repetição presente na fala do paciente. Logo, na transferência

não se trata, de mera repetição com o analista das experiências vividas com os primeiros

objetos. e sim do que pode ser produzido de novo a partir da repetição com o analista.

Outro ponto relevante levantado por Lacan é o estatuto da realidade na

transferência. De que realidade se fala, quando se trata da transferência? É com essa

indagação que este sustenta a diferença entre real e realidade na sua teoria e situa o campo da

psicanálise como concernente ao real. Para o autor, tique, na sua dimensão de acaso, aparece

na obra freudiana através do trauma. O real, como sendo da ordem do traumático, surge como

o inesperado e o inassimilável nos primeiros casos de histeria e aponta para uma origem de

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aparência acidental. O conflito entre princípio de prazer e princípio de realidade se estabelece

nesse momento, segundo Lacan, pois a realidade não sobrepuja a fantasia, ou mesmo o real

que ela vela, já que, na neurose, a realidade psíquica é a definitiva. O real, portanto, não se

confunde com a realidade e é o que subsiste por trás da fantasia como causa primeira do

inconsciente e como algo essencialmente traumático.

No que se refere à transferência, Lacan retoma no Seminário 11, a concepção

freudiana, contribuindo para esclarecer os impasses da análise decorrentes da má

compreensão da transferência por parte dos pós-freudianos. Se ao longo da teoria freudiana a

transferência se relacionou à repetição, à resistência e à sugestão, para Lacan, o conceito gira

em torno da noção de inconsciente e de sujeito suposto saber.

Lacan apresenta no Seminário 11 a transferência relacionando-a ao inconsciente.

Para ele, os dois conceitos de articulam na medida em que, a presença do analista consiste

numa manifestação do inconsciente. Nesse sentido, a transferência é definida por Lacan

(2008, p. 144) como “a atualização da realidade do inconsciente” uma vez que, o inconsciente

se manifesta na transferência. A proposta aqui defendida está voltada, nesse momento, apenas

para a transferência e não para o inconsciente, mas não se pode deixar de mencionar que, com

Lacan, a transferência é abordada pela sua função na análise e não pelos modos de

manifestação nomeadamente positivos ou negativos, como ocorreu aos pós-freudianos. “Este

conceito (transferência) é determinado pela função que tem numa práxis. Este conceito dirige

o modo de tratar os pacientes. Inversamente, o modo de tratá-los comanda o conceito.”

(LACAN, 2008, p. 124).

As variações do conceito de transferência, tal como aparecem no pensamento

freudiano, são retomados por Lacan para situar o que está para além de suas manifestações.

Lacan pretende localizar o que existe de essencial no conceito de transferência, o pivô em

torno do qual gravitam suas inúmeras formas de apresentação. É pela apreensão desse núcleo

central da transferência que Lacan formula o conceito de sujeito suposto saber.

Lacan (2008, p. 126) afirma que “desde que haja em algum lugar o sujeito suposto

saber (...), há transferência.” Mas o que ele indica com essa proposição é que sempre há,

como condição do trabalho analítico, um endereçamento do paciente ao analista no que se

refere ao saber. Com o sujeito suposto saber, o autor aponta para o que há de estrutural na

transferência, tendo em vista que ela corresponde ao cerne da situação analítica, ou seja, é

consequência imediata do discurso analítico.

O sujeito suposto saber é situado por Lacan, em referência ao próprio Freud,

como aquele que experienciou as descobertas da psicanálise e que funciona como garantidor

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ou testemunha do saber construído em seguida. Essa posição sinaliza que há alguém que sabe

e que, portanto, atestaria o trabalho analítico. Esse apenas um foi Freud. “Ele não foi somente

o sujeito suposto saber. Ele sabia e nos deu esse saber em termos que se podem dizer

indestrutíveis, uma vez que depois que foram emitidos suportam uma interrogação, que até o

presente, jamais foi esgotada.” (LACAN, 2008, p. 126).

Ao situar a transferência relativa ao sujeito suposto saber e em consonância com a

realidade do inconsciente, Lacan pretende enfatizar a estrutura que está para além da relação

paciente analista. O sujeito suposto saber pressupõe a existência de um saber inconsciente no

paciente que é suposto ao Outro pela transferência. Embora o analista não encarne esse lugar

de Outro, é daí que ele é convocado pelo paciente a responder sobre seu desejo.

Vocês veem melhor hoje o que ele é suposto saber. Ele é suposto saber aquilo a que

nenhum poderia escapar, uma vez que a formule – pura e simplesmente, a

significação. Essa significação implica certamente – e é por isso que fiz surgir

primeiro a dimensão do seu desejo – que ele não possa recusar-se a ela. (LACAN,

2008, p. 245).

Pode-se resumir os desdobramentos do conceito de transferência em Freud e

Lacan do seguinte modo: se por um lado, Lacan destaca a função da transferência pela

formulação do sujeito suposto saber, em Freud (1996x, p. 170), pode-se pensá-la como

relativa ao conceito de neurose de transferência, na qual a situação da analise permite a

criação de uma repetição do passado do paciente, numa espécie de “doença artificial”, que

pode, então, ser apreciada pela interpretação e elaboração das resistências. Com isso, os

sintomas do paciente adquirem nova significação e essa significação só é possível através da

transferência. Nas palavras de Miller (1988, p. 90):

Se Freud pode dizer que todos os sintomas adquirem uma nova significação a partir

do começo da cura analítica, é porque o sintoma é um elemento que tem uma

significação que se dirige ao Outro. Trata-se de determinar – e já o podemos

perceber em uma primeira análise – em que lugar o psicanalista se situa na cura;

situa-se no lugar aonde se dirige o sintoma, é o receptor essencial do sintoma e, por

isso, o lugar que deve à transferência lhe permite operar sobre o sintoma.

O psicanalista opera, assim, sobre o sintoma a partir do lugar que ocupa na

transferência. Como o sintoma corresponde ao retorno do recalcado e constitui-se como

mensagem endereçada ao Outro, ele inclui, simultaneamente, a repetição e a transferência, já

que esta última é referida, no ensino de Lacan, pela sua vinculação ao inconsciente, logo, à

dimensão do significante. Assim, torna-se evidente a associação entre sintoma, repetição e

transferência, tal como se procurou demostrar.

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3.2 O sintoma da criança

Pensar no sintoma da criança é considerar seu modo de constituição e sua

abordagem no tratamento analítico. Quando se propõe discutir sobre a existência de

especificidades na clínica psicanalítica com crianças a partir dos modos como sintoma e

fantasia comparecem, optou-se por, na verdade, questionar se realmente há diferenças na

análise de crianças se tomarmos esses dois conceitos como referência, tendo em vista que,

eles se relacionam ao funcionamento do inconsciente.

O sintoma, definido por Freud em algumas fórmulas, dentre as quais estão: o

retorno do recalcado, formação de compromisso entre duas forças em conflito, substituto

distorcido de uma satisfação proibida – é compreendido a partir dos processos intrapsíquicos

que o produzem. Nesse sentido, Freud (1996aa) pretende investigar os mecanismos

envolvidos na formação do sintoma, o papel das instâncias psíquicas, a dinâmica de forças

envolvidas e o aspecto econômico do conflito, o que não varia entre a criança e o adulto.

Essas fórmulas que tentam definir o sintoma também denotam que o interesse de Freud

(1996aa) estava voltado para o saber inconsciente que dava sentido ao sintoma,

transformando-o pela via da interpretação e a partir da transferência.

A interpretação pressupõe uma fala singular do analisante, como já se definiu com

Lacan (1998b) em sua concepção de fala plena em oposição à fala vazia, na qual, através da

associação livre, é produzido um discurso artificial promovido e manejado pela transferência.

Por interpretação, portanto, compreende-se a intervenção do analista quando estão presentes

três condições: a fala, a transferência e um sujeito. É nesses termos que se desenvolve um

trabalho de produção de sentido sobre as formações do inconsciente, e dentre elas, o sintoma,

como afirma Dunker (2003, p. 4):

Dadas tais condições permanece ainda a questão acerca dos pontos significativos do

discurso que constituirão o ponto de partida para a interpretação. Esses pontos

enigmáticos, que de algum modo reclamam sentido, podem ser enumerados entre as

formações do inconsciente: o sonho, o chiste, o ato falho, a fantasia, e o sintoma.

Além destes, comumente citados, poderíamos nos referir a outros como a inibição, a

angústia, o deja recontè, o deja vu, a despersonalização, o sentimento de estranheza

(unheimlich) e assim por diante.

Apesar de recair sobre as formações do inconsciente, a interpretação não consiste

em tradução direta ou explicação acerca dessas manifestações. Na verdade, o que Dunker

(2003) enfatiza é o caráter composto dessas formações em que se evidencia uma associação

delicada entre desejo e defesa, interesses do isso e do supereu, sucesso e fracasso do

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recalcamento, ou seja, é o dado conflitante que denuncia a divisão do sujeito, revelando o

inconsciente.

Com efeito, retomando a discussão, surge, com frequência, o questionamento

sobre a especificidade do sintoma da criança – já que ela ainda está em fase de

desenvolvimento: haveria alguma particularidade na constituição de seu sintoma? Seriam os

sintomas das crianças manifestação de sua estruturação psíquica (incompleta) ou não se pode

falar ainda em neurose infantil? Essas perguntas desvirtuam o foco do tratamento analítico da

realidade psíquica, tão priorizada por Freud (1996e) para a realidade objetiva, enfatizando a

criança da realidade e não o sujeito como Lacan propõe ao longo de seu ensino.

Bernardino (1997) diferencia neurose infantil de neurose da criança. A autora

destaca que essa é uma discussão antiga entre os psicanalistas de crianças. Anna Freud

defendia a inexistência de neurose na criança, pois acreditava que os sintomas não passavam

de crises relacionadas ao desenvolvimento. Para Klein (1986), não haveria diferença entre a

neurose do adulto e da criança. Dentre os psicanalistas não lacanianos (Serge Lebovici),

também há a compreensão que na criança só há sintomas e não estruturação neurótica. Já na

linha dos lacanianos, há um posicionamento alinhado à Klein, no qual, a neurose infantil é

apontada como núcleo estrutural da neurose e a neurose da criança corresponde a uma

organização decorrente dos conflitos inconscientes.

A autora cita Millot (1983), para quem a desconsideração da neurose da criança

provoca o que ela denomina edipianização das análises de crianças, pois introduz uma

“simetria de posições para menino e menina, cada qual com seu objeto”. A opinião de Millot

é justificada pela construção na análise do adulto de sua fantasia fundamental, pois ela (a

fantasia) indica que, “na medida em que pode ser reconstruída a partir da neurose do adulto,

resume a neurose infantil, distinta da neurose da criança.” (MILLOT, 1983, apud

BERNARDINO, 1997, p. 55-56).

Bernardino (1997) define a neurose infantil como uma resposta da criança ao

enigma do desejo do Outro. Essa resposta, no entanto, lhe assegura não ser devorada por esse

Outro, na medida em que a criança pode - ao situar a falta do Outro e o que a completaria -

construir teorizações sobre si mesma através da construção de sua própria fantasia. A

condição para a realização desse feito consiste, segundo a autora, na presença de um terceiro,

o pai, para que possa promover o rompimento da díade mãe e filho, indicando que a mulher é

não-toda mãe, e sim que ela deseja para além do filho, deseja o pai.

Já a neurose da criança é estabelecida por Bernardino (1997, p. 59) nos seguintes

termos:

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O fracasso dessa construção, por sua vez, vai constituir a neurose da criança, onde

os acidentes de percurso em direção a uma verdade sobre o desejo se cristalizam

numa solução parcial, anterior à resolução edípica, obstaculizando qualquer

movimento nessa direção. Onde a organização sintomática vem em defesa de um

mínimo de subjetividade, oscilando entre se fazer objeto imaginário do gozo do

Outro e destituir-se deste lugar através do fracasso dos ideais daqueles que encarnam

o Outro.

A neurose da criança consiste, portanto, num fracasso de uma teorização que a

situe em relação à falta do Outro. Sem saída, a criança desenvolve um sintoma que representa

o modo de lidar com o desejo do Outro. Nesse sentido, a neurose da criança é uma pergunta

que envolve os pais enquanto representantes do Outro, o que leva à seguinte questão: o

sintoma é de quem afinal, da criança ou dos pais?

Lacan (2003), em “Nota sobre a criança”, afirma que a criança responde ao que

existe de sintomático na estrutura familiar de duas maneiras: ou seu sintoma corresponde à

verdade do casal parental ou a pessoa da criança funciona como objeto a para a mãe,

tamponando sua falta. O que sugere essa afirmação é que, de todo modo, o sintoma da criança

está referido aos pais. Dessa forma, ou o sintoma é uma produção da criança enquanto

mensagem endereçada aos pais, denunciando o mal-estar do casal, ou seu próprio ser (da

criança) corresponde a um sintoma da mãe, o que, segundo o autor, é mais problemático.

Caso se considere o sujeito como efeito do discurso e do desejo do Outro, e seu

sintoma como tentativa de responder à falta no Outro, concorda-se com a assertiva de Lacan

(2003b) sobre o sintoma da criança está referido aos pais. Pode-se pensar, ainda, nessa

afirmação, deslocando-a para a clínica com adultos, pois a neurose é sempre infantil e ela

surge de uma angústia infantil. O sujeito, portanto, é sempre marcado pelo campo do Outro, já

que a referência ao sujeito, em Lacan, está no âmbito do inconsciente.

É verdade que uma coisa é atender uma criança cujo sintoma está referido aos pais

reais de quem dependem, e outra, bem diferente, é atender um adulto que faz menção aos pais

na análise de modo fantasístico. Ver-se-á as implicações dessa diferença, embora também na

análise de crianças, se trate da presença dos pais na fantasia, mas não somente nela.

Mas, se a neurose da criança é relativa aos pais, seu desejo não compareceria para

produzir seus próprios conflitos e consequentemente, seus sintomas? Sem dúvida, o sintoma

da criança conserva o que há de singular do seu desejo. Quando Lacan (2003b) afirma que a

criança se insere nos conflitos parentais pelo seu sintoma ou como sintoma, ele não exclui a

possibilidade de escolha, ainda que forçada, que a criança é capaz de fazer quando produz seu

sintoma. O que ele procura destacar é a relevância de distinguir de qual caso se trata, pois se

poderia situar aí a diferença entre o diagnóstico de neurose ou de psicose. Se a criança

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responde com seu sintoma, estaria no campo da neurose, mas se responde com seu ser,

funcionando como objeto a na fantasia da mãe, estaria na psicose e isso implica diferenças na

condução do tratamento.

No primeiro caso, vê-se na criança sua tentativa de decifrar o enigma do desejo do

Outro. Seria o modo de resposta à famosa pergunta “que queres de mim?” A essa pergunta, a

criança responde com seu sintoma que, segundo Lacan, é o representante da verdade do casal

parental. O sintoma da criança comunica uma verdade não-toda sobre aquilo que mantém a

relação dos pais. A verdade para Lacan é sempre uma meia-verdade, pois é inconsciente e só

pode ser parcialmente dita. O sintoma da criança revela algo de insuportável da relação dos

pais, por isso eles procuram tratamento e pelo mesmo motivo é tão difícil o trabalho analítico

com crianças, uma vez que os próprios pais são afetados pelo tratamento.

Define-se o sintoma da criança como representante da verdade e como vindo a

responder ao que existe de sintomático da relação parental, mas isso é diferente de a criança

responder com seu ser. Pensar que o sintoma é repetição e representação do que no casal se

constitui como uma questão é diferente de pensar na criança ocupando com seu corpo, seu ser

o lugar de sintoma dos pais, ou da mãe, que é o que geralmente ocorre.

Nesse segundo caso, da criança como lugar sintomático da mãe, Lacan (2003b, p.

369) afirma que as coisas se complicam, pois “a articulação reduz-se em muito quando o

sintoma que acaba dominando diz respeito à subjetividade da mãe.” Aqui a criança responde

ao desejo materno com seu ser e não com seu sintoma, o que produz consequências difíceis de

serem manobradas na clínica, em termos de separação mãe/criança.

Aqui, é diretamente como correlato de uma fantasia que a criança está interessada. A

distância entre a identificação com o ideal de ego e a parte presa no desejo da mãe, se

ela não tiver medição (aquela que normalmente a função do pai assegura), deixa a

criança aberta a todas as capturas fantasmáticas. Ela se torna o "objeto" da mãe e não

tem outra função que a de revelar a verdade desse objeto. A criança realiza a presença

do que Jacques Lacan designa como objeto a da fantasia. (LACAN, 2003b, p. 369-

370).

Lacan, nesse mesmo texto, salienta que não importa a estrutura da mãe, ela pode

ser neurótica, psicótica ou perversa. Em qualquer caso pode acontecer que ela utilize a criança

para suturar sua falta. A criança impede o acesso da mãe à sua própria verdade, “dando-lhe

corpo, existência e mesmo exigência de ser protegida.” (LACAN, 2003b, p. 370).

Há ainda nesse texto, algumas considerações bastante pertinentes para a clínica

com crianças. Lacan (2003b) define no que para ele consiste o papel da família, bem como, as

funções materna e paterna. A família é fundamentada numa relação conjugal com poder de

transmissão de uma constituição subjetiva, ou seja, a noção de família, para Lacan, não

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implica a satisfação das necessidades biológicas, mas, sobretudo, a possibilidade de formação

de um sujeito. No que diz respeito à função materna, Lacan pontua que é necessário que a

mãe invista no filho um desejo não anônimo, estabelecendo um interesse particularizado pela

criança. Já a função paterna implica em, através do Nome do pai, realizar a encarnação da lei

no desejo, isto é, cabe ao pai operar o corte entre mãe e filho, impondo um limite ao desejo

materno. Nas palavras de Lacan:

É segundo tal necessidade que se julgam as funções da mãe e do pai. Da mãe:

enquanto seus cuidados portam a marca de um interesse particularizado, fosse ele

pela via de suas próprias faltas. Do pai: enquanto seu nome é o vetor de uma

encarnação da Lei no desejo. (LACAN, 2003b, p. 370).

O que Lacan (2003b) salienta nesse texto é a relação entre a estrutura familiar e o

sintoma da criança, em que pode haver uma apropriação das dificuldades do casal parental

sob a forma sintomática ou um assujeitamento ao desejo do Outro, inviabilizando o advento

da criança como sujeito. O foco do trabalho com a criança pode estar voltado para as relações

familiares, numa perspectiva que não se coaduna com os objetivos da psicanálise e sim com

os de uma psicoterapia familiar, ou pode incidir sobre a verdade do sujeito, priorizando uma

“prática de subjetivação”. (ZORNIG, 2008, p. 128).

Mannoni (2003) considera que a discussão que opõe ambiente familiar à criança,

ou o efeito produzido pela presença dos pais na produção do adoecimento infantil é

infrutífera, pois não explica o que está verdadeiramente em questão numa análise. Segundo a

autora, os conflitos ocorridos na infância são necessários, são conflitos identificatórios e não

travados no real. A atribuição que a criança faz ao mundo com sendo ora bom ora mau é de

ordem imaginária, sendo simbolizada à medida que a criança se estrutura no Édipo e se

introduz na linguagem.

Assim, a contribuição de Freud é, inicialmente, indicar-nos que, em uma análise,

não se trata de um sujeito confrontado ao real, nem da sua conduta, mas do

desconhecimento imaginário do eu, isto é, de formas sucessivas de identificações,

engodos e alienações que exprimem uma defesa ao advento da verdade do sujeito.

(MANNONI, 2003, p. 29).

Em virtude da excessiva valorização da realidade objetiva em detrimento da

psíquica, a análise com crianças acaba se tornando alvo de muita polêmica a respeito de sua

singularidade, uma vez que, a criança é tomada segundo seu desenvolvimento e a partir da

concepção que o adulto tem sobre ela. Na visão da autora, os analistas precisam também estar

atentos a esse aspecto contratransferencial, modo como os próprios analistas tomam a

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infância, pois isso pode contribuir para a manutenção de uma posição de assujeitamento da

criança à norma social vigente.

Para Mannoni (2003), a análise promove o desdobramento da história do sujeito,

apontando para um tempo mítico, no qual, impressões muito primitivas ajudam a compor a

fantasia fundamental do indivíduo, aprisionando-o, tal como é possível se observar no caso

Hans (FREUD, 1996r) e no Homem dos Lobos (FREUD, 1996v). “O fantasma, e mesmo o

sintoma, aparecem como uma máscara, cujo papel é esconder o texto original ou o

acontecimento perturbador. Enquanto o sujeito permanece alienado em seu fantasma, a

desordem se faz sentir ao nível do imaginário.” (MANONNI, 2003, p. 37).

O sintoma, como nos mostra Freud, sempre inclui o sujeito e o Outro. Trata-se de

uma situação em que o doente procura fazer escutar, por meio de um fantasma de

castração, a maneira como se situa face ao desejo do Outro. ‘O que ele quer de

mim?’ – é a pergunta que se coloca para além de qualquer perturbação somática. O

médico tem por obrigação fazer ressaltar a interrogação que o sujeito formula sem o

saber, mas para isso é preciso que seja capaz de levar sua escuta para além do ponto

de desencadeamento da crise. (MANONNI, 2003, p. 38).

O sintoma da criança é abordado por Mannoni (2003, p. 47) a partir da sua

vertente de máscara porquanto vela a problemática materna. O sintoma é fala cifrada onde a

mãe é parte envolvida, contribuindo com sua fantasia na manutenção de um enigma a

decifrar. O segredo engendrado no sintoma da criança aponta para a importância da fantasia

compreendida “não como uma experiência vivida, mas como fala perdida.”

A autora se utiliza do ensino de Lacan, sobretudo da sua contribuição acerca dos

três registros, em que distingue real, simbólico e imaginário, para demonstrar que a

psicanálise não está interessada no conflito com a realidade ou o meio ambiente, mas sim no

modo como o sujeito se situa face ao desejo do Outro. Segundo Mannoni (2003, p. 60), Lacan

permite definir o procedimento clínico a partir da compreensão do que se passa na linguagem

e não no ambiente, já que o sujeito precisa situar-se “como sujeito no discurso, de nele se

manifestar como ser”. É interessante notar que Mannoni traz a discussão para outro âmbito ao

tomar o ambiente pelos efeitos discursivos, pois é disso que se trata numa análise. Os pais,

nesse sentido, tem um lugar privilegiado, além das razões óbvias, por conta da linguagem.

Mannoni (2003, p. 59) não subestima a realidade da doença da criança, apenas

procura evidenciar que é preciso ouvir a criança e seus pais a fim de conhecer o modo como

cada um significa as experiências vividas. A história familiar é, assim, forjada a partir dessas

percepções e produções de sentido individuais que se entrelaçam. “Para a criança, são as falas

pronunciadas, pelo seu meio, a respeito de sua doença, que vão adquirir importância. São

essas falas ou a ausência delas que vão criar nela a dimensão da experiência vivida.” Ainda

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segundo a autora, é devido à impossibilidade de uma palavra verdadeira, por parte dos pais,

que a criança fica presa no seu sintoma.

No tratamento, o que vai substituir a demanda ou a angustia dos pais e da criança é a

questão do sujeito, seu desejo mais profundo que, até então, estivera escondido em

um sintoma ou em um tipo particular de relação com o ambiente. O que se

depreende é a maneira pela qual a criança é marcada, não somente pelo modo como

é esperada antes do seu nascimento, como também, pelo que ela irá representar, em

seguida, para um e outro dos pais em função da história de cada um deles.

(MANNONI, 2003, p. 60).

Segundo a autora, o tratamento analítico propicia à criança e a cada um dos pais

se situarem frente ao problema do desejo com relação ao Outro e, assim, é possível obter dos

pais um questionamento deles sobre sua própria história e, mesmo a criança, é capaz de

produzir um discurso surpreendentemente articulado sobre si. Para a autora, isso coloca em

evidência “o problema da linguagem em certo modo de relação com o Outro e consigo

mesmo. A ruptura com um discurso que se pode qualificar de alienado, (...) representa para o

sujeito uma aventura penosa. O papel do analista é ajudá-lo a assumir essa aventura.”

(MANNONI, 2003, p. 60).

3.3 Transferência e repetição na clínica com crianças

Tendo em vista o lugar dos pais na constituição psíquica da criança, não se pode

negar os efeitos advindos pela presença/ausência deles na análise, inclusive no que se refere à

transferência, pois, como afirma Mannoni (2003, p. 9), “o discurso que acontece engloba os

pais, a acriança e o analista: é um discurso coletivo que se constitui em torno do sintoma

apresentado pela criança.” Ainda segundo a autora, a dificuldade na compreensão da

transferência com crianças, se ela ocorre ou não, consiste no mal entendido acerca do próprio

conceito de transferência, tomado como afetividade, comportamento e adaptação. Essas

noções seriam inadequadas para delimitar do que realmente se trata na questão, que é

abordada pela autora, a partir da neurose de transferência, enquanto relativa aos pais, criança e

analista.

A presença dos pais na análise foi alvo de debates entre os principais

psicanalistas, pois o lugar dos pais na análise das crianças ora era considerado imprescindível

(Anna Freud), ora era tomado pelos efeitos fantasmáticos produzidos na criança (Melanie

Klein), sem falar da concepção mais sintonizada com o ensino de Lacan, que considerava os

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efeitos discursivos dos pais sobre a criança – considerada analisanda por inteiro (MANNONI,

2003; Dolto, 1988; MILLER, 1991; LEFORT, 1991; LEFORT, 2014).

Para Mannoni (2003), os pais estão sempre implicados no sintoma da criança.

Logo, é preciso estar atento para a resistência que tem origem no desejo inconsciente de um

dos pais de que nada mude. Segundo a autora, “a criança pode responder pelo desejo de que

‘nada se altere’, identificando assim (ao perpetuar seu sintoma) seus fantasmas de destruição

face à mãe.” A intervenção do analista pela transferência faz com que surja uma situação nova

em que é possível a escuta da mãe e da criança naquilo que constitui seu mundo fantasmático

e onde a criança se insere de modo sintomático (MANNONI, 2003, p. 92-93).

Logo, a transferência, para Mannoni (2003), se dá através da escuta da criança e

dos pais, de modo que o analista possa se situar frente à fantasia e ao sintoma. A autora

indica, a partir de sua leitura da obra de Freud, que a transferência deve ser compreendida,

não como repetição com o analista de um comportamento relativo às figuras parentais, como

fosse o caso de uma substituição no real dos pais pelo analista, mas, antes, compreende a

transferência como efeito produzido no sujeito pelas construções fantasmáticas, segundo o

plano imaginário. Para a autora, o analista ocupa um lugar na fantasia e no sintoma do

paciente que não é fácil localizar. No entanto, ela destaca que é preciso defini-lo para que o

analista possa ajudar o paciente a relançar seu discurso, situando-o segundo seu desejo. Nas

suas palavras:

O que Freud distingue é o efeito produzido no sujeito, no plano imaginário, pelas

construções fantasmáticas. No fantasma, como no sintoma, o analista ocupa um

lugar; defini-lo não é fácil (...). A referência clássica às distorções do eu e a

realidade deixa fora do jogo dialético o lugar em que o analista deve conseguir

situar-se, se quiser ajudar o paciente a relançar o seu discurso e situar-se face a

outras referências além das advindas do julgamento demasiadamente seguro do

médico. A experiência analítica não é uma experiência intersubjetiva. É em relação

ao seu desejo (na dimensão do desejo do Outro) que o sujeito é chamado a situar-se.

(MANNONI, 2003, p. 94-95).

O grande equívoco, segundo Mannoni (2003), é pensar a transferência no campo

afetivo. Saber se a criança transfere ou não para o analista os sentimentos endereçados aos

pais não é o que importa, “a questão é conseguir tirar a criança de certo jogo de equívocos que

conduz com a cumplicidade dos pais. Isso somente pode ser feito se compreendermos que o

discurso que se sustenta é um discurso coletivo. (...) A criança não é uma entidade em si”.

Com essa afirmação, Mannoni (2003, p. 95) destaca que toda compreensão acerca do que é

uma criança repercute sobre o adulto responsável por ela e isso não pode ser desconsiderado.

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Seguindo a influência do ensino de Lacan, mas também com uma teoria própria

acerca do tratamento psicanalítico de crianças tem-se Françoise Dolto (1988, p. 133), para

quem a transferência é “a situação de adesão afetiva ao psicanalista que se converte num

personagem, e dos mais importantes, do mundo interior da criança, durante o período de

tratamento." Para ela, a dimensão afetiva é importante na transferência, pois a confiança que a

criança deposita no analista para falar sobre suas angústias, sonhos e faltas é o que move o

tratamento analítico. Segundo Dolto (1988), através da transferência, o analista pode conhecer

os mecanismos inconscientes do paciente, seu comportamento em relação ao analista,

participando do que o paciente vivencia com outras pessoas, o que vai além da discussão

sobre a dimensão afetiva envolvida na questão.

Ainda segundo a autora, a transferência ocorre com os pais e não apenas com a

criança. É preciso, segundo ela, que o analista esteja atento, pois há tratamentos que

desencadeiam conflitos em um dos pais, que fica, assim, muito abalado com a melhora do

filho. Esses pais que sofrem os efeitos da análise dos filhos também precisam de ajuda, pois,

em muitos casos, as crianças em análise não suportam a aflição dos pais e acabam por

provocar situações para serem retiradas da análise. O analista não pode também desejar que a

análise continue a todo custo, o que não seria positivo para a criança. Para a autora, a

interrupção do tratamento não invalida os progressos obtidos, mesmo que sejam poucos, pois

a criança fica menos vulnerável aos desafios que virão.

Rosine Lefort (1991, p. 12), seguidora de Lacan, situa a transferência a partir do

estatuto do Outro e de suas transformações no processo analítico. Segundo ela, cabe ao

analista questionar os arranjos empreendidos na relação com o Outro, testemunhando as

modificações introduzidas pela criança ao longo de sua análise. Interessa à autora, sobretudo,

“as transformações do Outro no interior do tratamento, sob a condição, é claro, de que o

analista entenda a dimensão da transferência.”

A emergência do Outro e de sua barra depende do objeto a, e a transferência

demonstra que, ou o Outro é afetado pela falta – e então a demanda promove o

significante da falta, o falo [...] ou então, ao Outro nada falta (o que me fez, por um

momento dizer que em casos extremos não haveria Outro na psicose) – o objeto,

nesse caso, não passa de um semblante, retirado não do corpo do Outro, mas do

próprio corpo do psicótico, ao qual só resta, poderíamos dizer de humanidade nesse

momento, enquanto objeto a, o dizer do analista, cujo invólucro é a voz. (LEFORT,

1991, p. 12).

A transferência é compreendida por Flesler (2012) a partir de sua leitura de Freud

e Lacan, como ocorrendo inicialmente com os pais. Para a autora, os pais constituem a

primeira fonte de saber da criança e é para eles que elas transferem sua sede de conhecimento

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sobre a origem dos bebês e a diferença sexual. O nascimento de um irmãozinho ou mesmo a

presença de outra criança que venha sinalizar uma perda de posição em relação ao desejo

materno, agora voltado para outro lugar, produz forte angústia que irá mobilizar as pesquisas

sexuais da criança.

Tamanha descoberta impulsionará a criança, se não estiver assustada demais –

esclarece Freud – a procurar a fonte, e a fonte do saber para a criança são os pais.

Eles são o primeiro emblema tanto da crença quanto da suposição de saber. Com

eles, amarra-se a transferência. Para eles, irá se orientar a pergunta. Não

esqueçamos: se a criança não estiver assustada demais. Ou seja, se o sentido que

recebeu por suas perguntas não ficou plasmado como ideal único, empobrecendo o

jogo do saber inconsciente e produzindo, em lugar de um gosto por saber, uma

inibição na busca do saber. (FLESLER,2012, p. 148)

A pergunta feita pela criança refere-se a uma tentativa de se localizar frente ao

desejo do Outro. Se já não é mais o falo da mãe que julgava ser, onde então se situar? Essa

pergunta da criança, que constitui sua neurose, é simultaneamente, a busca por saber e por um

lugar. “O destino dessa recolocação vai deparar com vicissitudes diversas, se a criança

encontrar ou não respostas e também conforme as respostas que obtiver.” (FLESLER, 2012,

p. 148).

As pesquisas das crianças são parcialmente frustradas, segundo Freud (1996o),

pois os pais vêm com histórias inverossímeis, provocando a descrença das crianças. Antes

fonte de todo o saber, os pais são substituídos por outras figuras que encarnam o saber para a

criança. Assim, está aberto o caminho para a transferência de saber para outras pessoas como,

por exemplo, educadores, tutores, analistas, etc.

Para Flesler (2012) a curiosidade infantil promoverá não só a transferência –

fundamentada no sujeito suposto saber – como também, a construção de teorias sexuais

infantis, que são vertentes da fantasia. Desse modo, as perguntas da criança e suas teorizações

constituem o modo como engendram sua fantasia enquanto artifício de encobrimento do real

sexual. O tipo de resposta dos pais é o que permitirá a produção de distintas vicissitudes para

o saber e, consequentemente, para o posicionamento da criança frente ao Outro.

Seriam três os destinos do saber estabelecidos por Flesler (2012) a partir das

repostas dos pais: se o sujeito recebeu dos pais uma resposta que une saber e castração do

gozo, ou seja, se há transmissão de um saber até o limite do indizível, a criança fará grandes

descobertas, abrindo as portas para a construção de teorias sexuais e articulação de sua

fantasia. No segundo caso, se a criança encontra como resposta a censura, o silêncio ou um

saber pleno de sentido, ocorrerá uma inibição na busca por saber. Por fim, se a criança

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“encontrou como resposta a renegação, ela se inclinará para a angústia”. (FLESLER, 2012, p.

152).

Para Flesler (2012, p. 152), as duas últimas saídas produzem obstáculos para a

construção da fantasia, pois elas inviabilizam a estruturação de alguma resposta por parte do

sujeito, alguma teorização sobre si mesmo e seu sofrimento. Somente através da descoberta da

castração do Outro, como acontece no primeiro caso, é que a pergunta produzirá ressonâncias

no sujeito e haverá desejo de saber. “O sujeito poderá perguntar a outro, poderá perguntar a si

mesmo, poderá interrogar sua condição de sujeito que pergunta, poderá descobrir sua

existência de sujeito na própria pergunta (...).”

A produção de teorias sexuais infantis acarreta importantes consequências para o

posicionamento do sujeito naquilo que constitui sua resposta neurótica frente ao enigma do

desejo do Outro. Os pais em seu modo de responder às solicitações da criança por saber

podem contribuir ou não para a passagem da neurose da criança para a neurose infantil, como

ressalta Flesler (2012, p.156):

[...] a teoria sexual tenta responder com ficções ao enigma que o desejo do Outro

torna presente. Se isso ocorre, o saber que se produz será promotor da própria

neurose e da passagem da neurose da infância para a neurose infantil. É claro que a

verdade dos pais incide sobre esse trânsito.

No que se refere à repetição na clínica com criança, tem-se como principal

referência o fort-da freudiano segundo o qual, a experiência do arremesso do carretel pelo

neto de Freud para simbolizar a ausência materna evidencia a importância dos jogos para a

estruturação psíquica da criança. Apesar de já ter escrito o texto “Escritores criativos e

devaneios” em 1908, onde trata da seriedade do brincar para a criança, comparando-o ao

fantasiar do adulto que dá origem, muitas vezes, às produções artísticas, Freud volta a tratar

dos jogos infantis, em 1920, a partir da via da repetição que o fort-da denuncia.

A repetição na clínica com crianças assume uma importância equivalente à

observada com os adultos, com uma diferença: a criança refaz o que lhe foi feito. Ela repete

na tentativa de controlar as experiências que lhe foram desagradáveis, reproduz a situação

traumática no lugar de sujeito e não mais no de objeto que sofreu a ação.

Esse domínio da criança, representado pelo jogo do fort-da é considerado, no

entanto, algo secundário, segundo Lacan (2008), já que o essencial nessa experiência é a

emergência do sujeito possibilitada pelo exercício de fazer a mãe desaparecer e sobreviver à

sua ausência.

O conjunto da atividade simboliza a repetição, mas não de modo algum, a de uma

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necessidade que pediria o retorno da mãe e que se manifestaria muito simplesmente

pelo grito. É a repetição da saída da mãe como causa de uma Spaltung no sujeito –

superada pelo jogo alternativo, fort-da, que é um aqui ou ali e que só visa em sua

alternância, ser um fort de um da e um da de um fort. O que ele visa é aquilo que,

essencialmente não está lá como representado – pois, é o jogo mesmo que é o

Representanz da Vorstellung. (LACAN, 2008, p. 67).

A experiência do jogo do fort-da indica como nas brincadeiras a criança pode se

exercitar como sujeito, atuando com o objetivo de organizar seu mundo interno e de

representar o que lhe afeta, atribuindo, assim, novos sentidos às experiências vividas. No

entanto, a repetição não aparece na clínica somente através nos jogos e brincadeiras, mas

também de modo sintomático.

Foi o que aconteceu com Suely, uma menina de cinco anos de idade, trazida para

análise pela mãe e avó muito aflitas porque a criança, após sofrer um abuso sexual por parte

de um vizinho, vem cometendo várias tentativas de suicídio. Suely mora com a mãe, que foi

diagnosticada com retardo mental, com o pai, que tem problemas na audição e com um irmão

mais velho de nove anos que chegou a presenciar o abuso. Por conta do retardo da mãe, a avó

sempre acompanha os netos, tomando a iniciativa em nome da filha que não aparenta ter um

comprometimento cognitivo tão grave que não possa se responsabilizar pelos filhos.

Em todo caso, a avó tem um papel importante na família e é ela quem conta junto

com a mãe como o abuso acorreu. Segundo a mãe de Suely, que presenciou o final da cena, a

agressão sexual ocorreu de forma violenta quando a criança tinha três anos de idade. Suely

teve sua boca tapada e seu pescoço apertado, numa ameaça de estrangulamento para evitar

que ela gritasse. Ao serem questionadas sobre como se dão as tentativas de suicídio, mãe e

avó dizem que são sempre da mesma maneira, por enforcamento. Ela pega um lençol ou corda

e amarra no pescoço.

Isso faz pensar o modo como o sintoma de Suely vem repetir a cena traumática

numa atuação que não remete simplesmente a uma tentativa de suicídio, como acreditam os

familiares, apesar desse desejo também existir, mas à própria experiência sexual traumática de

caráter intenso demais para a assimilação da criança e que pode ser associada à vivência de

enforcamento a que foi submetida pelo agressor.

Essas atuações, nomeadas de tentativas de suicídio pelos familiares, revelam –

podemos pensar como hipótese, já que a análise ainda não foi concluída – o modo como a

criança tenta lidar com a experiência de violência sexual, ou seja, via repetição, já que não

encontrava espaço para relembrar e pôr em palavras o que lhe ocorreu. Essa interpretação foi

reforçada pela fala da avó que afirmou que Suely não fez mais nenhuma “tentativa” após o

início da análise, quando ela pode, então, contar o que lhe aconteceu e como se sentiu.

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Desse modo, a repetição na clínica com crianças deve ser compreendida do

mesmo modo como ocorre com adultos, já que ela denuncia a impossibilidade de

rememoração em virtude de sua associação com o recalcado. Embora a criança não tenha

encerrado sua estruturação psíquica, que só ocorre na adolescência, não há diferenças no

trabalho realizado sobre o recalcado (no caso da neurose), pois a análise implica a

possibilidade de acesso pela palavra do que já aconteceu, ou seja, há necessariamente a

inscrição de um “passado esquecido” que, mesmo no caso das crianças pequenas, se apresenta

e diz respeito a sua história e a do desejo de seus pais. A função da repetição, portanto, não

apresenta diferenças significativas, se comparada com a dos adultos, a não ser pela sua

manifestação no brincar, como já mencionado.

A seguir, será feita a exposição de um caso clínico, com o objetivo de evidenciar

que a entrada em análise se dá mediante o estabelecimento da transferência e da constituição

de um sintoma analítico, enquanto prerrogativas válidas para qualquer análise, independente

da idade do paciente. Esse caso evidencia a relevância de diferenciar o sintoma da criança do

sintoma da mãe, de modo que a análise possa ocorrer não encerrada na queixa materna, mas

na escuta do desejo do sujeito. Ele também se insere na proposição aqui defendida de uma

clínica fundamentada nos mesmos pressupostos que deram origem a psicanálise como método

de tratar adultos, ou seja, na articulação entre sintoma e fantasia.

3.4 Caso clínico

Carlos tem atualmente sete anos, mas começou a se tratar no Caps infantil desde

os cinco, por ter apresentado, segundo relato da mãe, agitação, insônia e alucinações visuais.

Na época, a mãe relatou que o filho via homens sem cabeça e, logo em seguida, tinha ataques

epilépticos. O caso me foi encaminhado quando entrei nesse serviço por ter mobilizado a

equipe que já atendia seu irmão Paulo, doze anos, que possui diagnóstico de esquizofrenia e é

bastante agressivo. Quando menor, batia a cabeça na parede até sangrar, se cortava, arrancava

os cabelos e já tentou cortar o próprio pênis com uma faca.

No primeiro contato com a mãe, ela contou que Carlos é inquieto, agitado, vê um

gato preto de olhos vermelhos que atravessa a parede e começa a chorar. Segundo ela, as

visões só ocorrem na casa da avó e, atualmente, não está vendo porque “a medicação tem

ajudado muito”. (sic). Carlos faz uso de risperidona, carbamazepina, fenergan e fenobarbital.

A mãe relatou, ainda, que a criança ri e chora ao mesmo tempo, passa dias muito triste e havia

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falado em se matar na semana passada. A mãe menciona, ainda, ter medo que Carlos imite o

comportamento de Paulo, que agride a si mesmo e quem o contraria.

Na escola, segundo a mãe, Carlos é “inquieto, não se concentra, não para, não

segue regras e atrapalha a aula” (sic). Disse que o comportamento do filho mudou no ano

passado, pois antes não dava trabalho. A mãe se queixou que o filho “não dorme ou dorme

mal, demora a dormir” e tem sono agitado com pesadelos nos quais querem matá-lo. Segundo

a mãe, quando fica irritado diz que vai fugir de casa, é agressivo com os irmãos e com

qualquer pessoa que o contrarie. Esse discurso se assemelha bastante à fala da mãe sobre

Paulo, apesar de ter dito antes que sente medo de Carlos imitar o comportamento do irmão.

No primeiro contato com o paciente, após a escuta da mãe, Carlos foi bastante

amável, aproximou-se de mim para dizer que sabia escrever e o ajudei com algumas letras que

ele havia escrito num papel para me mostrar. Disse que não sabia a letra f e pediu para que eu

o ensinasse, iniciando, assim, uma transferência positiva que vem se mantendo até o

momento. Falou que gostava da escola, que tinha amigos e se mostrou bastante alegre e

comunicativo. Expliquei o motivo de ele estar ali, a partir do que sua mãe me contou e

perguntei se ele gostaria de ser atendido por mim. Após explicar-lhe como seria, ele aceitou.

A mãe, ao final da sessão, disse que se sentia insegura diante dos problemas dos

filhos, pois todos demandavam sua atenção e cuidados. Disse que sentia medo de não

conseguir dar conta, ficou muito nervosa e passou mal após sair da sala, necessitando de

cuidados da enfermagem. Ela tem diagnóstico de esquizofrenia e é tratada em outro CAPS.

O contexto familiar do paciente é, portanto, bastante delicado. Carlos mora com a

mãe (psicótica), o pai e mais dois irmãos: Paulo (12a) é diagnosticado esquizofrênico e Luiz

(15a) diagnosticado com transtorno bipolar, tem alucinações, mas não aceita tratamento, pois,

segundo a mãe, diz que é perfeito. Este fato que a deixa abismada, afirmando que “ninguém é

perfeito. Como ele pode dizer isso?!” (sic). O pai é separado da mãe, tem outro

relacionamento, mas voltou para casa depois que ela teve um acidente vascular cerebral.

Na sessão seguinte, só com o paciente, ele fez uma pintura. No início disse que

não sabia fazer nada, mas depois disse que ia fazer uma caveira. Durante a pintura, contou que

tinha pesadelos com um homem que tentava matá-lo. Perguntei quem seria esse homem e ele

disse que não sabia. Em seguida, riu e disse que “era brincadeira”. Contou também que vê um

gato preto de olhos vermelhos que atravessa as paredes. Perguntei se ele tinha sentido medo e

ele respondeu que só um pouco e que correu para onde o pai estava.

Percebo que os relatos de alucinações do paciente se inserem num contexto

familiar onde todos apresentam essa sintomatologia e, inclusive, há certa confusão entre as

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alucinações de cada um, pois Paulo é quem vê pessoas com a cabeça cortada, mas a mãe

afirma ser Carlos quem vê. Na verdade, trata-se de um sintoma familiar e não seria essa uma

forma de identificação de Carlos com a família? Em virtude dos discursos familiares e dos

tratamentos girarem em torno das alucinações, Carlos já me oferece a sua acreditando ser essa

a minha demanda.

Os pais de Carlos são separados e seus irmãos são fruto de um relacionamento

anterior. Além dos dois meninos, Carlos tem uma irmã mais velha que não mora com ele, já é

casada e não tem nenhum problema mental. O pai, mesmo quando não morava com ele era

bastante presente e, atualmente, costuma levá-lo para passear, o que provoca conflitos com os

irmãos, cujo pai é violento e não procura os filhos. Segundo Carlos, seu pai foi expulso de

casa pelo irmão mais velho, pois não o aceitava.

Nas sessões seguintes, Carlos escolheu jogos de cartas, sendo que, no início,

tentava não me prejudicar, pedindo desculpa se colocava uma carta melhor do que a minha.

Demonstra ser uma criança totalmente diferente daquela descrita pela mãe no nosso primeiro

encontro. Carlos nunca sorriu ou chorou sem motivo, é afetuoso com os profissionais do

serviço e todos afirmam gostar muito dele. É uma criança doce e alegre, não fica agressivo

quando contrariado e também não é inquieto, concentrando-se por bastante tempo em alguns

jogos. Como chama a atenção o discurso tão divergente da mãe sobre o filho com o que é

observado, resolvo marcar mais sessões só com ela, a fim de tentar situar melhor a queixa da

mãe e localizar o lugar que Carlos ocupa em sua fantasia.

No início da sessão, voltou a se queixar de Carlos, que está dando muito trabalho

em casa e na escola. Ela está recebendo reclamações diárias, pois o filho atrapalha a aula e,

em casa, implica com os irmãos. Diz que ele precisa de mais medicamentos, pois o que toma

não está sendo suficiente. Vale ressaltar que, apesar da pouca idade, a criança já toma quatro

tipos de medicamento, o que também preocupa a psiquiatra que pensa em rever sua

medicação, pois também não percebe na criança as atitudes relatadas pela mãe. Outra queixa

constante da mãe é a de que Carlos não dorme e isso a angustia bastante.

Em seguida, a mãe contou sobre seu adoecimento e o de cada um dos filhos. Disse

que é mais apegada ao filho mais velho porque ele foi vítima do pai, seu primeiro marido, que

agia de modo perverso com ela e o filho Luiz. Segundo ela, o pai de Luiz tentou matá-lo

quando ele era criança, saiu da bicicleta e deixou o filho sozinho para colidir com um

caminhão. Por pouco ele não morreu e o pai ficou rindo, segundo ela. Além disso, o pai

também mordia Luiz e, por vezes, até sangrava. Afirmou não saber se ele fazia isso por conta

das drogas que usava ou se era “porque ele não era normal” (sic).

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Com a filha mais velha o pai nunca fez nada, só com Luiz. A mãe contou, ainda,

que seu filho Paulo não conviveu com o pai, pois ela fugiu de casa grávida porque sofria

muitas agressões e estava com medo do marido. Apesar de falar do apego pelo filho mais

velho, foi na gravidez de Paulo que ela teve o maior surto psicótico da sua vida e, atualmente,

é perceptível o grande apego a Paulo.

Em relação á Carlos, contou que a gravidez foi tranquila e até os quatro anos não

teve problemas com o filho mais novo. Somente aos cinco anos é que ele passou a ter

alucinações nas quais ouvia vozes que diziam que ele iria morrer, o que também corresponde

a uma alucinação já referida como sendo de Paulo.

No que concerne ao seu próprio adoecimento, ela relatou que quando tinha doze

ou treze anos estava no pátio do colégio quando viu se aproximar um menino de cabeça baixa.

Disse que ele percorreu todo o local como se estivesse procurando alguém e, ao se aproximar

dela, parou ao seu lado e levantou a cabeça. Ele tinha os olhos brancos o que a impressionou

bastante. No início, achava que era um menino qualquer, só depois percebeu que só ela o via.

Desde então, em sua alucinação, ela sempre vê esse menino que atravessa paredes e aponta

para um local onde está aguardando por ela. Trata-se de um hospital psiquiátrico e é nesse

lugar que ele está e a espera. Somente anos mais tarde, já em tratamento, é que ela associou os

olhos do menino aos de seu pai, que também são brancos, pois ele ficou cego em decorrência

de um glaucoma. Perguntei quando seu pai ficou cego e ela disse que, quando ela nasceu, ele

já era.

Pelo exposto, percebo que a piora dos filhos e seu pedido constante por mais

remédios para Carlos é a garantia de não ir para o hospital psiquiátrico em que o menino cego

de suas alucinações a aguarda. Na sua fantasia, portanto, ela só pode fugir desse destino da

loucura na condição de serem os filhos os loucos. Assim, ora um ora outro é eleito por ela

como aquele que está em crise, não restando a ela outra alternativa senão a de cuidar dos

filhos, pois, se ela pode cuidar deles, ela está bem. Desse modo, suas crises são desencadeadas

quando ela, por alguma razão, se sente impotente em cuidar dos filhos, quando se questiona se

dará conta de cuidar dos três. Além disso, parece haver uma confusão entre as alucinações de

cada um dos filhos e as dela, ou então, seriam as alucinações de Carlos, na verdade, de sua

mãe que as atribui a ele? De quem é o sintoma nesse caso? Qual o sintoma de Carlos?

Mannoni (2003) afirma que, quando os pais falam dos filhos, estão, de fato,

falando deles mesmos e que é preciso que o analista esteja atento para separar os discursos

dos pais e o da criança. O mesmo pode ser observado na queixa contínua da mãe de que os

filhos não dormem. Não será ela quem não está conseguindo dormir?

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Numa sessão na qual a mãe me trouxe um relatório da escola sobre a

aprendizagem e comportamento do filho, leio com ele e pergunto se o que está escrito é

verdade e o que ele acha disso. Carlos responde que é tudo verdade, mas que ele briga com os

colegas porque eles o chamam de ladrão. “Aí eu perco a cabeça” (sic). Pergunto se ele já

roubou alguma coisa. Responde que não. Vale ressaltar que, certa vez, durante a sessão,

Carlos pegou uma liga de dinheiro que estava na sala de atendimento e coloca no bolso,

pensando que eu não estava vendo. Ao surpreendê-lo, pergunto o que ele guardou e ele afirma

que é dele.

Nas sessões seguintes, Carlos continua escolhendo jogos de cartas e diz que vai

ganhar de mim. Nas primeiras vezes em que jogamos, eu ganhei seguidas vezes, ao que ele

retrucou: “sou um perdedor” (sic), Perguntei por que ele dizia isso e ele respondeu que era

porque ele perdia sempre. O “ser um perdedor” configura-se, assim, como o sintoma de

Carlos, pois é isso que o angustia e o faz sofrer.

Nesse sentido, questiono-me: o que, para além do jogo, Carlos perdeu? De que

falta ele se queixa? E o que ele deseja recuperar cometendo pequenos roubos? A respeito da

falta na psicose, Mannoni (2003, p. 118) afirma que o importante é saber “se a falta de que se

trata foi da ordem de uma frustração de objeto no real (criando um dano imaginário) ou se é

na ordem simbólica que a privação se introduziu, provocando na criança uma ruptura com o

real.”

Apesar das alucinações, que indicariam uma ruptura com o real, permanece o

enigma sobre o tipo de falta em questão, e se ele realmente estaria estruturado na psicose, pois

há uma queixa da mãe em relação ao filho, que não tem correspondência na realidade, ou seja,

uma indefinição quanto ao sintoma ser da criança ou da mãe (agressividade, alucinações,

agitação, insônia). O sintoma analítico de Carlos está relacionado como visto, à sua

concepção de que é um perdedor, ao que ele reage roubando aquilo que ele acredita restaurar

sua perda e isso, por sua vez, já remeteria a um dano imaginário.

Ao longo das sessões, Carlos passa a burlar as regras para ganhar o jogo. Ele não

aceita perder e muda as regras de acordo com sua conveniência, ao que intervenho: “ganhar

sem seguir as regras não é ganhar”. Tenta de todas as formas criar outra regras ou anular a

minha jogada para que eu não ganhe. Ao perceber que não cedo, resolve me tapear fingindo

seguir as regras e eu finjo que acredito. Após algumas partidas, nas quais ele ganha de forma

não muito honesta, e vendo que não aceito sua vitória, passa a seguir as regras e aceita perder.

No jogo se situa a própria dimensão da falta. Como Freud (1996n) afirma em

“Escritores criativos e devaneios”, a criança se introduz no jogo, porque o ser humano é

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incapaz de renunciar ao prazer. Quando ela se depara com a ausência materna, se lança no

universo do jogo, tal como fica claro com o fort-da. É devido a essa falta estrutural que a

criança se vê impelida a jogar. (CAZENAVE et al, 1993).

Devido à importância do jogo nesse caso, é interessante pensar seu lugar na

análise, tendo em vista sua relação com a estrutura, pois “o sujeito que joga está em relação a

um Ⱥ que deseja mias além dele. Isso o conduz a uma questão de saber o que ele é para o

Outro. O jogo, então, será um caminho possível para encontrar uma resposta à indeterminação

do sujeito.” (CAZENAVE et al, 1993, p. 52, tradução minha).

Em qualquer jogo sempre há regras e estratégias. As regras possuem uma

estrutura de ficção e as estratégias referem-se às maneiras de conduzi-la. A análise por

obedecer aos mesmos princípios do jogo e por incluir o sujeito, suscita a pergunta por quem

joga. Mas segundo Cazenave et al (1993), esse é um erro no qual se incorre se a essa pergunta

responde-se a criança ao invés do sujeito, portanto, melhor seria perguntar: o que se joga?

Esse questionamento evita a confusão entre uma perspectiva do desenvolvimento e a da

estrutura, tal como foi apresentado no capítulo anterior. “É a partir do abandono da

perspectiva do desenvolvimento que se torna possível mudar a pergunta acerca de quem joga

um jogo, pela que se joga no jogo.” (CAZENAVE et al, 1993, p. 54, tradução minha).

No texto “Mais além do princípio do prazer”, Freud (1996, p. 54) apresenta no

fort-da o modelo de como o jogo tem como principal função constituir-se como uma resposta

ao real do trauma. O jogo é concebido como suporte da repetição, repetição do malogro, em

virtude da sua conexão com o “real condenado a ser errado, mas que o mesmo erro revela”.

Devido a essa articulação, o jogo é equivalente à simbolização, que no fort-na se constitui

como simbolização primordial.

A questão do brincar será mais bem explicitada no próximo capítulo, mas tendo

em vista a necessidade de situar a função do jogo nessa análise, e o que se joga na repetição

da brincadeira, é possível afirmar resumidamente que “no jogo estão as operações de

constituição do sujeito, porque inclui também o objeto para jogar sua perda, e ali, na perda do

objeto emerge o sujeito do desejo”. (CAZENAVE et al, 1993, p. 54).

Nesse sentido, as brincadeiras de Carlos repetem sua tentativa de simbolização da

perda que sofreu em relação ao que acreditava ser para o Outro. À medida que forem se

desenvolvendo seus jogos será possível precisar melhor como Carlos se constitui a partir

dessa perda, em qual registro ela se produz e como ele se posiciona frente ao Outro.

Em um atendimento com a mãe, esta relata que Carlos está chorando para não ir à

escola. Disse que ele apanhou no colégio e que os professores não fizeram nada. Em casa,

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Carlos também sofre muito com os irmãos que, segundo a mãe, também costumam bater nele,

mas ela o defende. Pergunto se ela percebe que o filho chega em casa com materiais de escola

diferentes dos seus, mas ela disse que não, pois observa é que faltam objetos seus e ela tem

que repor. Diante disso, por que, então, os colegas chamariam Carlos de ladrão? Essa questão

será retomada em momento oportuno.

Dando continuidade à escuta da mãe de Carlos, ela falou sobre seu relacionamento

com o pai dele que durou três anos. A separação ocorreu quando Carlos tinha um ano e,

apesar disso, ele sempre foi muito presente na vida do filho. Contou que ainda gosta do ex-

marido e que os filhos mais velhos o expulsaram de casa, mas atualmente ele voltou a morar

com ela para ajudá-la com Carlos. Os outros filhos continuam desaprovando a permanência

dele em casa e perguntam quando ele vai embora. Contudo, ela afirmou que gosta de tê-lo por

perto.

Na sessão seguinte, ofereço massinha de modelar. Como de costume, Carlos diz

que não sabe fazer nada. Incentivo para que ele tente e ele faz alguns animais (jacaré e cobra),

que, segundo ele, eram de um filme que assistiu. Resolvo fazer um boneco na praia e ele me

ajuda. Quando coloco uma sunga rosa no boneco ele intervém e diz que essa cor é de menina

e não de menino, sugerindo a cor azul, o que indicaria certo nível de reconhecimento da

diferença sexual. Pergunta se eu gosto mais dele do que das outras crianças e conta que

ganhou um conceito bom da professora. Ao final, disse ter se divertido muito e que não sabia

que conseguia fazer tanta coisa com massinha.

Na saída do atendimento, a mãe conta que ele pediu à professora para que lhe

desse um “bom”, mas que, na verdade, não estava nada bem na escola e volta a fazer as

queixas habituais (agressividade, insônia, falta de concentração). Intervenho no sentido de

fazê-la compreender que é importante validar as tentativas do filho de agradá-la e que ele não

é só isso que ela diz. Ela concorda comigo e diz que ele é um menino muito bom.

Em virtude de estar sempre procurando agradar, pedindo à professora que mude

seu conceito com relação ao comportamento, e mesmo perguntando se gosto mais dele do que

das outras crianças, compreendo haver nessa posição subjetiva uma demanda de amor que

envolve uma busca de reconhecimento do Outro numa tentativa de corresponder ao seu

desejo. Isso foi reforçado pela mãe que comentou que certo dia o filho havia chorado e pedido

para ela o ajudar a ser uma pessoa melhor, a ficar quieto, sendo esse o desejo constantemente

expresso pela mãe. Como a neurose é uma pergunta: que queres? Endereçada ao Outro, penso

se Carlos seria realmente psicótico como foi inicialmente diagnosticado, já que tenta

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corresponder ao que supõe ser o desejo do Outro e se supõe que o Outro deseja é porque

reconhece a castração do Outro materno.

A análise de Carlos ainda não foi concluída e é cedo para fechar um diagnóstico

diferencial entre neurose e psicose e para conhecer as saídas que o paciente encontrará para se

posicionar frente ao Outro. Será através da identificação com seu irmão Paulo, como teme a

mãe? Ou seu desejo inconsciente apontará numa direção oposta àquela relativa ao irmão –

tomado como objeto privilegiado do desejo da mãe – inaugurando uma posição subjetiva mais

criativa, via análise? Só o tempo de análise dirá, mas, por enquanto, permanecem esses

questionamentos que constituirão a mola propulsora do tratamento.

Apesar dessa indefinição, a escolha do caso se justifica por nele ser possível

ressaltar a importância de diferenciar o sintoma da criança do da mãe. Como afirma Lacan

(2003c), qualquer mãe, independente da estrutura, seja ela, neurótica, psicótica ou perversa

pode tomar a criança como objeto a em sua fantasia. Não parece ser esse o caso de Carlos,

que não responde com seu ser ao desejo da mãe, como ocorre com seu irmão Paulo, mas

tenta, através do seu sintoma, responder ao que julga ser o desejo materno.

Nesse caso, não ficou claro até o momento qual a fantasia presente por trás do

sintoma da criança, apenas pudemos vislumbrar um pouco da fantasia da mãe. O pai não

compareceu à sessão e ainda não foi ouvido, a fim de poder revelar em seu discurso como

toma a criança em seu desejo. No entanto, será abordado no próximo capítulo outro caso no

qual a fantasia comparece, não apenas no que concerne ao desejo parental, mas como

construção da própria criança no seu exercício de sujeito desejante.

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4 A FANTASIA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS

A fantasia surgiu na psicanálise desde os primeiros casos de histeria, segundo

Freud (1996a), mas foi só após o fracasso da teoria da sedução como justificativa para o

adoecimento neurótico, que ela passou a constituir-se como um dos elementos essenciais da

clínica psicanalítica. Sua relevância deve-se à estreita ligação com o complexo de Édipo, pois

é através da consideração da realidade psíquica das histéricas, que Freud abandona a busca

pelo evento real causador da doença e se volta para o campo do desejo expresso pelas

fantasias de suas pacientes.

Analisando-se as publicações freudianas acerca da temática da fantasia, observa-

se que a referência à infância é uma constante. Freud apresenta a fantasia com muitas

articulações, tais como: ligada à sexualidade infantil e ao Édipo (1996e), as teorias sexuais

infantis (1996o) como protótipos de fantasias que buscam desvendar os limites do saber sobre

o sexual, que a criança supõe no adulto. Outras vertentes da fantasia consistem na sua

vinculação ao sintoma (1996p), ao brincar infantil e à criação artística (1996n) e finalmente,

ao mais além do princípio do prazer (1996ad).

Todos esses textos revelam que Freud identificou na infância, não apenas a

origem da vida anímica, mas o momento privilegiado onde se constitui o cenário do desejo

que, posteriormente, influenciará, através da fantasia, toda a vida do indivíduo. Apesar de o

lugar social da infância ser atrelado à imagem de ingenuidade e à inocência, desde a

descoberta da sexualidade infantil promovida nos “Três Ensaios” (FREUD, 1996k) que a

psicanálise frisa a importância de considerar o sexual também no que concerne à criança. O

trabalho centrado na pulsão produz, assim, importantes resultados, caso se apreenda o dado

pulsional como repetição manifesta também no brincar infantil.

Inicia-se, portanto, esta discussão acerca da fantasia na clínica com crianças, a

partir das principais obras de Freud e das contribuições do ensino de Lacan para a temática.

Em seguida, serão abordados - a partir do Seminário 11 - os outros dois conceitos

fundamentais propostos pelo autor, a saber: pulsão e inconsciente, visando com essa

associação, pensar na fantasia em termos de fundamento da clínica.

Em seguida, será analisada a fantasia, especificamente no que se refere à clínica

com crianças, objetivando evidenciar como o trabalho sobre a fantasia pode fomentar a

instalação do dispositivo analítico em termos semelhantes àquele com adultos. O brincar, em

associação com a fantasia, é outro ponto enfatizado, sobretudo para estabelecer seu lugar na

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análise, não como técnica adaptada à mente infantil, como defendem muitos psicanalistas,

mas como correlato à estrutura. Por fim, será apresentado um caso clínico que ilustra o modo

como a fantasia comparece na análise de crianças e influencia os destinos do tratamento.

4.1 A fantasia como conceito fundamental

Freud dedicou especial atenção à questão da fantasia após sua desistência em

encontrar um evento real traumático que explicasse a neurose. Foram diversos artigos escritos

num período que engloba os anos de 1906 a 1908. Assim, serão vistos os principais

desenvolvimentos desse período e analisada a evolução do pensamento freudiano e os

avanços introduzidos por Lacan, que irão conduzir a reflexão aqui realizada acerca da fantasia

como conceito fundamental.

No texto “Escritores criativos e devaneios”, Freud (1996n) apresenta uma

caracterização de uma das vertentes da fantasia, definindo-a como uma produção imaginativa

criada pelo sujeito para obter prazer, através da modificação da realidade sentida como

insatisfatória. Aqui, a fantasia aparece na sua dimensão consciente e subordinada ao princípio

do prazer. Trata-se de uma fuga da realidade e do refúgio num universo particular de prazer.

Há uma equivalência entre o brincar das crianças e os devaneios do adulto e uma

aproximação da fantasia com a criação artística. Freud (1996n) apresenta um paralelo entre o

investimento emocional das crianças em suas brincadeiras com o intenso valor que os adultos

conferem às suas fantasias, destacando o fato de que uma pessoa não abandona com facilidade

uma fonte de prazer, mas, ao contrário, a substitui por outra. Logo, o fantasiar é o substituto

do brincar infantil e a criança quando para de brincar “só abdica do elo com os objetos reais;

em vez de brincar ela agora fantasia” (FREUD, 1996n, p. 136).

O autor ressalta a oposição entre o brincar e a realidade, e não entre o brincar e o

que é sério, pois a criança investe nas suas brincadeiras de modo muito sério. O adulto, do

mesmo modo, confere grande importância às suas fantasias e, por ser capaz de distingui-las da

realidade, se envergonha tanto de suas fantasias, já que dele é esperado atuar no mundo real

de forma adulta.

As fantasias tornaram-se acessíveis à Freud a partir dos casos de neurose. Ao

investigar a origem dos sintomas, este deparava-se sempre com fantasias que haviam se

tornado inconscientes, em virtude do recalcamento da sexualidade infantil. As fantasias

inconscientes apresentam-se intimamente ligadas à sexualidade e constituem um cenário para

a realização de desejos incestuosos que buscam a satisfação.

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Ainda nesse texto, Freud (1996n) apresenta uma compreensão da fantasia como

uma construção em três tempos. Essa concepção indica o caráter estruturante que a fantasia

assume ao longo de toda a teoria psicanalítica, sendo retomada, posteriormente, de forma

mais aprofundada no texto “Uma criança é espancada” (FREUD, 1996ad). A composição da

fantasia promove uma articulação entre diversos tempos de constituição do sujeito por meio

do seu desejo, como o autor assinala na seguinte passagem:

A relação entre a fantasia e o tempo é em geral muito importante. É como se ela

flutuasse entre três tempos – os três momentos abrangidos pela nossa ideação. O

trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no

presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali,

retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual

esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a

realização do desejo. [...] Dessa forma, o passado, o presente e o futuro são

entrelaçados pelo fio do desejo que os une. (FREUD, 1996n, p. 138).

Em “Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade” Freud (1996p)

apresenta sua compreensão do que ficou conhecido como a disposição bissexual dos

indivíduos, responsável pela formação dos sintomas a partir da influência de fantasias

inconscientes de caráter homossexual e heterossexual simultaneamente. Vê-se aqui, a

influência de sua teoria sobre a sexualidade infantil, com a concepção de sexualidade perversa

polimorfa, fundamentada na não existência de um objeto pré-configurado para a satisfação

pulsional.

Nesse texto, Freud (1996p) estabelece que as fantasias inconscientes estão sempre

presentes por trás do sintoma e podem sofrer alterações em seu conteúdo. Elas mantêm uma

relação muito importante com a vida sexual do sujeito, já que representam um desejo

inconsciente. Essa vinculação entre as fantasias e a vida sexual é explicada por Freud através

da prática masturbatória. Ele relaciona a masturbação com a evocação de fantasias

conscientes que contribuiriam para a obtenção da satisfação autoerótica. Desse modo,

inicialmente, o que era só uma prática autoerótica uniu-se a uma ideia carregada de desejo,

constituindo-se a masturbação numa encenação da situação fantasiada. Após o abandono

desse tipo de satisfação, o sujeito detém essas fantasias, que passam, então, a ser

inconscientes, após a incidência do recalque.

Freud (1996p) também relaciona a fantasia à parcela de verdade das lembranças

infantis recalcadas que surgem na forma de teorias sexuais infantis. Nesse texto, as teorias

sexuais infantis, verdadeiras fantasias, embora o autor não utilize esse termo, procuram

explicar a origem dos bebês e a diferença sexual por intermédio de uma construção que

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mistura as explicações dos adultos e um fragmento de verdade da própria criança na sua

tentativa de lidar com o sexual.

Apesar de ter sido bastante evidenciada na obra freudiana, sobretudo pela

associação com o sintoma, a fantasia adquiriu novo status com o ensino de Lacan. Para esse

último, a fantasia comparece na vida do sujeito de modo muito primitivo, desde o recalque

originário, já que ela é criada como uma construção necessária para o sujeito lidar com a

castração do Outro e, consequentemente, com sua própria castração.

A construção da fantasia fundamental é situada no segundo tempo do Édipo,

quando a inscrição do significante Nome-do-Pai vem substituir o desejo da mãe e inaugurar o

campo do desejo para o sujeito, que se vê assim, confrontado à dialética do ter ou não ter o

falo. Ao abandonar a posição de encarnação do próprio falo, a criança entra na significação

fálica por querer ter aquilo que ela supõe completar a falta do Outro, pois ela deseja o desejo

do Outro. Nessa tentativa de reparação da perda sofrida, o sujeito cria sua fantasia como

alternativa para velar o real intolerável concernente à castração.

Diferente de Klein (1997), que prioriza a vertente imaginária da fantasia, Lacan

aponta três dimensões: imaginária, real e simbólica, que devem ser igualmente apreciadas por

lançarem perspectivas diversas sobre a relação do sujeito com sua fantasia. O viés imaginário

consiste no compêndio de imagens que aparecem na fantasia. É a própria cena fantasística

com seus personagens e detalhes relativos ao mundo interno do indivíduo. O registro

imaginário revela, assim, a relação do sujeito com suas imagens. O simbólico apresenta-se na

própria estrutura da fantasia, sintetizada numa frase, “uma pequena história que obedece a

certas regras, certas leis de construção que são as leis da língua”. Finalmente, a dimensão real

da fantasia refere-se ao dado pulsional, à fixidez do gozo que a cristaliza numa forma

imutável. Esse é o principal aspecto da fantasia, pois remete ao real da análise (MILLER,

1988, p. 157).

Dizer que a fantasia é um real na experiência analítica é o mesmo que dizer que se

trata de um resíduo imodificável. No pensamento de Lacan, é um axioma que o real

é o impossível. Aqui, por exemplo, trata-se do impossível de mudar. Por essa razão,

para Lacan, o fim de análise é a conquista de uma modificação da relação do sujeito

com o real da fantasia. (Questão que de resto, é a que produz as variações do

movimento analítico). (MILLER, 1988, p. 158, grifo nosso).

Apesar do autor não aprofundar esse aspecto, acredita-se ser da maior relevância

pensar sobre a relação do sujeito com o real da fantasia. Segundo Miller (1988), a importância

da fantasia para a clínica pode ser compreendida através do matema Ⱥ, que possui duas

significações: tanto representa o desejo do Outro, como aponta uma falta no campo do

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significante. Essa é a razão pela qual a fantasia se apresenta como “um limite e uma

resistência à intervenção do analista.” O que também pode ser evidenciado na obra “Uma

criança é espancada”, onde Freud (1996ad) afirma que a fantasia no neurótico permanece

separada do restante do conteúdo de sua neurose, não encontrando um lugar na sua estrutura.

(MILLER, 1988, p. 153).

Para Miller (1988, p. 155), se há uma dificuldade na clínica no que se refere à

apreensão da fantasia, isso ocorre porque há realmente uma impossibilidade de interpretação

da fantasia fundamental, uma vez que falta significante no Outro. Por isso também que se fala

em interpretação para o sintoma e não para a fantasia, pois se trata de uma construção diante

do real impossível de ser simbolizado. “Daí que se possa dizer que é a questão mais difícil da

direção da cura, bem como a do fim da análise.”

A análise tem início a partir de uma demanda do paciente. Ele demanda livra-se

de seu sintoma através da interpretação do analista. Essa é apenas uma das vertentes do

tratamento, pois ele deve mover-se em direção à fantasia fundamental, não ficando preso

apenas à cura. A terapêutica é importante, mas não concentra todo o trabalho analítico.

Apontar a fantasia não significa que o paciente deva ser curado dela, mas que essa é uma

dimensão que está além do sintoma, diz respeito ao fim da análise como sendo o que

proporciona uma nova posição subjetiva. (MILLER, 1988).

A fantasia, em Freud, apresenta uma vasta gama de configurações, tais como

sonhos, devaneios diurnos, mas a fantasia fundamental é caracterizada como uma decantação

de todas essas formas enquanto relativas ao imaginário do sujeito. Ela é um resíduo da

interpretação do sintoma, formalizada por Lacan (2003a) a partir de uma mudança de

abordagem centrada, a princípio, no registro imaginário, para uma crescente consideração de

seu alcance simbólico e real (MILLER, 1988).

Dentre as três dimensões, a real é a que produz as principais transformações do

sujeito almejadas na análise. “O problema é como conseguir essa modificação subjetiva no

real.” Como empreender o acesso ao inominável, ao que impõe limites à significação através

da palavra, do âmbito do significante, único recurso dos analistas. A essa questão, Miller

(1988, p. 159-160) responde com a necessária diferenciação entre sintoma e fantasia:

Se o sintoma aparece frente aos olhos do próprio sujeito como uma opacidade

subjetiva, como um enigma. O paciente não sabe o que fazer com essa irrupção, e

por isso, demanda interpretação. Se Lacan situa o sujeito suposto saber na entrada

do processo analítico é porque, nesse momento, a demanda fundamental do paciente

é relativa ao enigma, à interrogação que seu próprio sintoma lhe faz. E a dificuldade

(...) é que a fantasia se apresenta ao sujeito de forma transparente, e como se sua

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leitura fosse imediata. Então a mudança que se tenta atingir no analisante é uma

mudança dirigida a que ele se questione o que sua fantasia encobre.

O fato de a ênfase da análise estar situada na fantasia refere-se à relevância de

descobrir a articulação simbólica que ela denuncia a respeito do modo de constituição do

sujeito frente ao Outro. Isto significa esquecer o sintoma, mas situar o limite da análise, seus

objetivos últimos na delimitação da fantasia fundamental.

4.1.1 O inconsciente e a pulsão

Lacan (2008), no seminário 11, apresenta duas operações lógicas de constituição

do sujeito denominadas de alienação e separação, a fim de especificar que quando se fala em

inconsciente no sentido freudiano, este só pode ser compreendido se considerarmos que ele

seja estruturado como uma linguagem. O inconsciente, portanto, é situado no campo do

Outro, definido como “o lugar em que se situa a cadeia significante que comanda tudo que vai

poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer. É do

lado desse vivo, chamado à subjetividade, que se manifesta essencialmente a pulsão”.

(LACAN, 2008, p. 200).

É válido destacar, a partir desse comentário de Lacan, duas questões pertinentes a

aos propósitos deste estudo: a primeira diz respeito ao inconsciente que nesse seminário

aparece como estruturado como uma linguagem e formalizado pela relação entre o sujeito e o

Outro, através das operações de alienação e separação; a segunda refere-se à inserção da

pulsão no campo do sujeito, o que é fundamental para a construção da fantasia, tendo em vista

sua função de articular o real com o simbólico.

Lacan (2008) une sujeito e Outro sob o desígnio da alienação, pois contrariamente

à concepção de Sartre, ele afirma que o sujeito só pode ser conhecido no lugar do Outro. Essa

proposição foi defendida no texto “Tempo lógico e asserção da certeza antecipada” (Lacan,

1998a), como uma resposta à peça de Sartre, na qual, no inferno, encontram-se três indivíduos

condenados que só conhecem os pecados dos outros, não admitindo seus próprios erros. São

capazes de localizar o tormento dos outros, mas não se percebem como igualmente enredados

na mesma trama de culpa e mortificação.

Lacan, ao responder que o sujeito só se reconhece mediante o campo do Outro,

utiliza-se da mesma estrutura que Sartre, dessa vez com três prisioneiros, para afirmar que só

é possível uma antecipação da certeza de si, no caso do desafio para descobrir a cor do disco

que cada um carrega nas costas, se houver a atribuição de uma inclusão no campo do Outro.

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“Não há meios de se definir um sujeito como consciência de si.” Lacan afirma que a verdade

só pode ser alcançada em função dos outros, em oposição à máxima sartreana: “o inferno são

os outros.” (LAURENT, 1997, p. 34).

A história dos três prisioneiros e seus discos revela a própria dinâmica familiar

entre pai, mãe e filho em torno do falo. Quando Lacan (1998a) propõe essa construção em

torno do disco faltoso, a partir do qual os prisioneiros vão se posicionar, ele faz uma alusão ao

posicionamento de cada personagem da família em relação ao falo como significante da falta.

Cada um precisa responder, situando-se nas relações em referência ao falo, como esclarece

Laurent (1997, 1997, p. 35):

A estrutura das três pessoas condenadas e um disco faltoso é exatamente a estrutura

edipiana de pai, mãe e filho capturados em seu inferno particular. Eles só podem

calcular porque um elemento está faltando: o falo. Ninguém o possui, mas todos os

três tem que levar em conta aquele símbolo para definir suas posições como pai,

mãe e filho. Se qualquer um deles cometer um erro, pensando que ele ou ela é

aquele que falta (...) todos ficam presos em seus cálculos. Nenhum irá achar a saída.

Ficarão aprisionados na própria repetição.

Conseguir realizar essa articulação via falo, é o que garante a entrada no campo do

desejo. Por não haver inscrição da diferença sexual no inconsciente, não há uma inscrição de

homem e de mulher, é que se torna evidente a prerrogativa de que só há representação parcial

da sexualidade no campo do Outro. Por isso, a pulsão é parcial, pois “existem apenas

invenções que tentam remediar a falta ou a falha fundamental no inconsciente.” (LAURENT,

1997, p. 35).

Antes de abordar a pulsão, no entanto, cabe mencionar as operações de

constituição do sujeito, que estão intimamente ligadas à mudança do âmbito da necessidade

para a entrada, via demanda do Outro, no campo pulsional. É na articulação de uma função

biológica suprida pelo Outro materno, não só pelo objeto de satisfação, mas pela associação

com a palavra, que se introduz o infans numa condição propriamente humana.

Assim, tem-se que, a partir da experiência de encontro da criança com o Outro,

Lacan (2008) estabelece as condições de entrada no mundo da linguagem. Ao eliminar o

desconforto pela ação específica que reduz a tensão, há, concomitantemente, a oferta de

palavras e a introdução do infans no universo simbólico. A troca de significantes se faz, a

princípio, através do grito da criança, cuja função é a de apelo ao Outro, além de indicar o

objeto hostil que causou a experiência desagradável. No entanto, esse grito só se torna

significante quando o Outro o recebe como mensagem e a ele responde.

É nessa condição que se forma o par mínimo da cadeia significante S1-S2, em que

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S1 representa o grito e S2 a resposta. S1 como primeiro significante depende, no entanto, de

S2, pois é ele que introduz a dimensão significante de S1. Só a partir de S2, portanto, é

inaugurada a função de significação da linguagem. É só na articulação S1-S2 que há produção

de sentido e alienação.

Lacan (2008) situa a alienação como a primeira etapa da constituição do sujeito. O

campo do sujeito é vazio, a princípio, e o do Outro contém todos os significantes. Isso

significa que a condição de existência do sujeito é o próprio encontro com o Outro, na medida

em que o sujeito toma o significante S1 do Outro para se representar junto ao significante S2.

O sujeito é constituído, portanto, a partir da nomeação desse vazio, quando o significante o

recorta do real, delimitando-o. Isso significa que “o campo do ser se inaugura e se instaura

quando barreiras, limites são impostos à indiferenciação do real. Ora, são exatamente os

significantes que vão primeiramente distinguir um “dentro” de um ‘fora’.” (BULCÃO, 2010,

p. 4).

O campo do ser é o campo do discurso, campo do significante e do Outro, ao

passo que o do sujeito é vazio, compreendendo o silêncio e o desaparecimento. Se o

significante S1 produz o sujeito, ao mesmo tempo, ele o apaga. Por isso, Lacan (2008) afirma

que, na alienação, o sujeito aparece de um lado como sentido produzido pelo significante, e

por outro como afânise.

A alienação consiste nesse vel que se a palavra condenado não suscita objeções da

parte de vocês, eu a retomo - condena o sujeito a só aparecer nessa divisão que

venho, me parece, de articular suficientemente ao dizer que se ele aparece de um

lado como sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece como afânise.

(LACAN, 2008, p. 206).

O destino do sujeito é a alienação, porque se ele recusa o sentido atribuído pelo

significante, ele acaba caindo no sem sentido ou no silêncio. Essa é a condição de sujeito

dividido, barrado: “o fato de que o sujeito enquanto tal não se manifesta senão no intervalo de

S1-S2, isto é, antes de o sentido se constituir, mas depois de um significante ter sido

capturado.” (BULCÃO, 2010, p. 4).

Lacan (2008) apresenta, em termos de escolha forçada do sujeito, essa operação

que envolve uma perda, seja qual for a escolha que o sujeito faça. Ele exemplifica com a

escolha entre a bolsa e a vida, na qual, de modo forçado, só há uma escolha possível, pois se o

sujeito escolhe a bolsa, ele perde ambas. Resta, portanto, apenas a escolha da vida, não sem

perda. Do mesmo modo, ocorre na alienação, em que se “escolhemos o ser, o sujeito

desaparece, ele nos escapa, cai no não-senso - escolhemos o sentido, e o sentido só subsiste

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decepado dessa parte de não- senso que é, falando propriamente, o que constitui na realização

do sujeito, o inconsciente.” (LACAN, 2008, p. 206).

O que Lacan destaca na operação de alienação, é que o sujeito ao se unir ao Outro

só pode se reconhecer como perda. Há, necessariamente, um resto dessa operação, que se

refere ao fato de o sujeito ao ficar identificado a um significante-mestre, tenha que perder uma

parte de seu ser. Consentir nessa perda é condição necessária para a consecução do gozo.

Nesse sentido, Laurent (1997) define a alienação como relativa, em ultima instância, a uma

subordinação do sujeito ao Outro, não apenas no campo do simbólico, mas ainda no nível das

pulsões, ou seja, não é só na dimensão significante que se situa o sujeito, mas essa dimensão

só vem mascarar que na essência trata-se do sujeito marcado pelas pulsões, pelo gozo.

A alienação (isto é, o fato de que o sujeito não tendo identidade, tenha de identificar-

se a algo), encobre ou negligencia o fato de que, num sentido mais profundo, o

sujeito se define não apenas na cadeia significante, mas no nível das pulsões em

termos de seu gozo em relação ao Outro. (LAURENT, 1997, p. 43).

Para haver separação, segunda operação de constituição do sujeito, é preciso que

haja o corte do binário S1-S2. É necessário que o sujeito seja capturado pela cadeia discursiva

e apagado no processo de representação, que compõe a alienação, mas também que renuncie a

essa representação significante. Ligado à cadeia (S1-S2), S1 tem valor de mediador do sujeito

com o Outro, o que caracteriza a alienação como a submissão do sujeito ao Outro. Sozinho,

S1 tem outro valor e, ao reduzir o Outro, promove a separação do sujeito, que passa a não

estar mais representado no Outro. Nas palavras de Lacan (2008, p. 216) “será que não basta

que eu responda (...) que só há surgimento do sujeito no nível do sentido por sua afânise no

Outro lugar, que é o do inconsciente?”.

Lacan define a operação de separação utilizando-se da etimologia da palavra

originária do latim separare e faz uma escanção se parare, em que apreende seu sentido como

parir a si mesmo. Com isso, Lacan (2008) demarca que a criança escolhe perder parte de si ao

se submeter ao Outro, ao invés de sacrificar todo seu ser. Por isso, trata-se de uma escolha

forçada, já que uma perda é sempre necessária, pois, caso contrário, o sujeito não chega a

existir, permanecendo na alienação. Na separação, surge uma segunda falta que se instala

tanto no sujeito como no Outro. A parte perdida com a separação corresponde ao objeto “a” e

a outra, que não é sacrificada, será promotora da subjetividade.

Assim, na alienação o sujeito é barrado pelo fato de as pulsões serem parciais,

constituindo-o como faltoso, devido a sua identificação com S1 e deixa outra parte de si de

fora da significação. Por outro lado, na separação, o sujeito recorre ao artifício da fantasia

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para escapar da mortificação decorrente da alienação ao Outro, na qual seu gozo estava

excluído. Neste caso, portanto, “o sujeito tenta inscrever uma representação do gozo no

interior do Outro no texto de sua fantasia, e tenta definir a si mesmo através dessa fantasia

($<> a). Ao tentar definir-se dessa maneira, o sujeito cria outra falta: o fato de que seu gozo

era apenas parcial.” (LAURENT, 1997, p. 38).

A dimensão do gozo indica que o sujeito é marcado fundamentalmente pelo

campo pulsional e não só pelo simbólico. Por esse motivo, Lacan (2008) estabelece a pulsão

como conceito fundamental, diferenciando-a da demanda e do desejo. No seminário 11 a

pulsão é apresentada na sua articulação com a transferência, mas tendo em vista os objetivos

deste estudo, será enfatizada apenas a pulsão na sua associação com o inconsciente. Pelo fato

de a transferência ser definida como atualização da realidade do inconsciente, acredita-se não

se está desvirtuando tanto da teoria lacaniana caso não seja abordada a pulsão pela via da

transferência.

Nesse sentido, há uma aproximação do inconsciente com a pulsão porque Lacan

define a realidade do inconsciente como sexual. A ideia aqui é que, no início, havia apenas a

necessidade e nada mais. O significante se interpõe ao campo da pura necessidade e produz a

pulsão. O que resta dessa operação é o desejo. “A pulsão é definida por Lacan como o

resultado do funcionamento do significante, isto é, da demanda: a demanda do Outro.”

(BROUSSE, 1997 p. 123).

É a demanda do Outro que introduz a pulsão, marcando uma diferença no que se

refere à satisfação da necessidade. A demanda do Outro não equivale à necessidade porque

produz o desejo, na medida em que alguma coisa escapa entre o surgimento da necessidade e

a demanda do Outro. O desejo é, portanto, o elemento central, através do qual se dá a ligação

do inconsciente com a realidade sexual. Apesar de considerar o desejo como essencial, Lacan

pretende se apoiar na descoberta freudiana, já que o desejo foi uma formulação sua. Com isso,

ele retoma o conceito de pulsão, ampliando seu sentido através do que ele chama de circuito

pulsional e montagem da pulsão. (BROUSSE, 1997). É o que será visto a seguir

Corroborando o pensamento freudiano, Lacan (2008) frisa que a pulsão é sempre

parcial em virtude de sua vinculação com as zonas erógenas e demonstra que não há

especificidade de objeto. Ele retoma os quatro componentes da pulsão, impulso, objeto, alvo e

fonte estabelecidos por Freud (2010c) para caracterizar a especificidade desse conceito tão

caro à psicanálise.

Assim, tem-se que, na pulsão, o impulso é sempre constante, diferindo do instinto

que é suspenso após sua satisfação, sendo caraterizado por períodos descontínuos de aumento

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e diminuição da tensão interna. Com a pulsão isso não ocorre, pois ela é uma Konstant Kraft

(força constante). Quanto ao objeto, Freud (2010c) já havia afirmado que pode ser qualquer

um, não haveria um objeto específico para a pulsão. Lacan (2008), no entanto, considera que

Freud se refere ao fato de o objeto da pulsão ser indiferente, posto que a pulsão apenas o

contorna, além de poder ser qualquer um, por tratar-se de um objeto perdido. “Se Freud nos

faz essa observação de que o objeto da pulsão não tem nenhuma importância, é,

provavelmente, porque o seio deve ser revisado por inteiro como quanto à sua função e

objeto.” (LACAN, 2008, p. 166).

Em relação à fonte da pulsão, Lacan (2008) estabelece que, por serem parciais, as

pulsões estão ligadas a diversas zonas erógenas, caracterizando-as pela sua dimensão de

borda, delimitando a superfície do corpo entre o interno e o externo. O alvo da pulsão é a

satisfação e não a busca de prazer, o que é destacado pelo autor em relação à sublimação e à

formação de sintomas, em que ele observa a presença de um tipo diferente de satisfação, mas

que não está necessariamente vinculada ao prazer.

A partir do exposto, é possível definir o circuito pulsional como aquele que

através de um impulso constante, originado numa zona erógena (fonte), contorna um objeto,

já que este é desde sempre perdido, obtendo uma satisfação sempre aquém da esperada, o que

promove a continuação do circuito indefinidamente. A pulsão, por nunca poder ser satisfeita,

faz com que “estejamos sempre envolvidos numa nova fantasia, um novo pedaço de desejo,

que é a definição de objeto ‘a’. E esse pedaço é definido por uma imagem, porque como

Lacan enfatiza, o objeto é a falta.” (BROUSSE, 1997, p. 129).

Em virtude dessas propriedades da pulsão, não há uma conformação com qualquer

tipo de organização. O caráter perverso polimorfo da sexualidade manifesta por meio de

pulsões parciais leva Lacan (2008) a formular que se trata nas pulsões de uma montagem, um

arranjo feito por cada sujeito, segundo o modo como lida com seu desejo. Uma montagem

que, se não é organizada, tampouco é aleatória, pois está condicionada às experiências do

sujeito, tal como ele construiu a demanda do Outro e situou seu gozo.

Por ser uma montagem, no campo da sexualidade não há de modo pré-definido

uma representação do que é ser homem ou mulher. Tudo ocorre por meio da inscrição do falo

como significante da falta. Isso “torna necessário o que foi primeiro esclarecido na

experiência analítica, que as vias do que se deve fazer como homem ou como mulher são

inteiramente abandonadas ao drama, ao roteiro, que se coloca no campo do Outro - o que é

propriamente o Édipo”. (LACAN, 2008, p. 200).

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Em virtude de a sexualidade marcar o vivo com uma falta, já que não há

complementariedade na relação sexual, Lacan (2008) afirma que toda pulsão, sendo parcial, é

pulsão de morte, representando parte da morte no vivo. Ela representa a morte porque marca a

impossibilidade do encontro perfeito conferido à realização amorosa. A experiência analítica

revela, nesse sentido, que o que o sujeito busca é a parte para sempre perdida dele mesmo

decorrente do fato de ele ser sexuado. A dialética da pulsão é, portanto, proposta como

fundamentalmente diferente ao que é da ordem do amor e do bem do sujeito, devido ao fato

de a pulsão buscar a satisfação e não o prazer (LAURENT, 1997).

Pensar na pulsão em sua articulação com o inconsciente na analise de crianças, é

percorrer o caminho, tal como Lacan (2008) propõe no Seminário 11, em termos de direção

do tratamento, da identificação do sujeito com o significante-mestre (S1) até chegar ao objeto

a como resto da operação de separação. Assim como ocorre na análise, “quanto mais se

trabalha a fantasia, mais se desconecta da demanda do Outro. No fim, o objeto surge sem o

véu da demanda do Outro.” (BROUSSE, 1997, p. 131).

Finaliza-se este percurso com um trecho em que Lacan (2008, p. 160) cita o

trabalho analítico com crianças como eminentemente fundamentado na pulsão: “não há

nenhuma necessidade de ir muito longe na análise de um adulto, basta ser alguém que pratica

com crianças para conhecer esse elemento que constitui o peso clínico de cada um dos casos

que temos que manipular e que se chama pulsão.”

4.2 A fantasia e a direção do tratamento com crianças

Lacan (2003c, p. 364) afirma que “o valor da psicanálise está em operar sobre a

fantasia.” Como o tempo da infância constitui o momento no qual se dá a construção

fantasística do sujeito, pode-se pensar, a partir dessa premissa: como se dá essa operação na

psicanálise com crianças? A que ela nos conduz no tratamento? Haveria alguma diferença na

direção do tratamento se, ao invés do adulto, fosse atendida uma criança, cuja fantasia está em

construção? São esses questionamentos que guiarão esta pesquisa a partir de agora, para que

se possa compreender melhor o papel da fantasia na análise e situar a relevância clínica desse

conceito no âmbito da presente discussão sobre as especificidades da psicanálise com

crianças.

Pode-se começar pela afirmativa que situa a fantasia como uma construção da

análise, que se dá sob transferência. Logo, mesmo tratando-se de um adulto, sua fantasia é

desvelada ao longo da análise, não se apresentando ao sujeito antes disso, apesar de já estar

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constituída desde a infância. Esse é um ponto importante, pois, na clínica com crianças, no

que se refere à estruturação da fantasia, não haveria diferenças com respeito aos adultos, já

que a construção ocorre na análise. No entanto, a diferença reside no acesso à fantasia, uma

vez que ela não se apresenta do mesmo modo nas duas clínicas. O modo de comparecimento

da fantasia na análise de crianças se dá mediante o brincar, como será visto mais adiante, a

partir da sua implicação na estrutura e, com os adultos, a fantasia é um produto do fim da

análise. Como o brincar merece uma atenção à parte, o que será feito adiante, nesse momento,

o foco será a questão do papel da fantasia na direção do tratamento de crianças.

Dizer que a fantasia é uma construção da análise traz a necessidade de, antes de

tudo, definir o que é uma construção. Freud (1996ª) é quem primeiro estabelece esse termo,

embora, a princípio, não tenha dado muita ênfase a ele. A construção aparece na obra

freudiana desde os primeiros casos de histeria em associação com a interpretação. Sempre que

uma resistência impedia o avanço da análise, o autor recorria a interpretações baseadas nas

associações anteriores do paciente e nas suas observações sobre o caso, numa técnica de

reconstrução do recalcado. Certamente os tempos eram outros, a psicanálise estava no início,

mas o conceito de construção só foi formulado em um período tardio de sua obra.

No artigo intitulado “Construções em análise” encontram-se a principal referência

sobre o tema. Freud (1996ah) o elaborou devido à necessidade de esclarecer como se dava o

tratamento analítico que, na época, vinha sendo alvo de fortes críticas. Os psicanalistas eram

acusados de estarem sempre corretos, sob o pretexto da apresentação das resistências. Desse

modo, quando o paciente discordava de uma interpretação, isso acontecia em decorrência da

resistência, o que fazia com que os analistas nunca estivessem errados nas suas intervenções,

segundo os críticos.

Freud (1996ah) deixa claro nesse texto, que a análise ocorre mediante o trabalho

do paciente e o do analista. Ao paciente cabe falar livremente, sem reservas, o que lhe vem à

mente, e ao analista cabe a função de construir, a partir dos obstáculos à fala do paciente,

aquilo que ele não pode lembrar. Logo, a construção é realizada pelo analista, em virtude de

um limite à rememoração. Com o passar dos anos e a influência do ensino de Lacan, o método

de interpretação foi modificado, e o termo construção perdeu espaço, cabendo ao paciente

também essa tarefa. Isso posto, a construção permaneceu quase que somente vinculada à

fantasia, sendo agora realizada pelo paciente no fim da análise.

O caráter de construção da fantasia pode ser apreendido desde o caso “História de

uma neurose infantil” (FREUD, 1996ac) e no artigo “Uma criança é espancada” (FREUD,

1996ad), apesar de estarem inseridos em contextos diversos da teoria, cabe mencionar que

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ambos se configuram em termos de fantasias de infância. No primeiro caso, há certa hesitação

em considerar a realidade psíquica, pois Freud oscila entre a realidade dos acontecimentos e a

fantasística. No segundo caso, a fantasia de uma criança sendo espancada assume um caráter

associado à pulsão de morte, ao mais além do princípio do prazer, já sob a influência da

segunda tópica.

No caso “Homem dos lobos” (1918), Freud procura encontrar de modo obstinado

o real do trauma que produziu a doença, numa tentativa de situar cronologicamente o que só

pode ser explicado pela fantasia. Isso fica evidenciado na sua tentativa de reconstrução da

cena primária, na qual as datas são constantemente mudadas, procurando uma maior exatidão

dos fatos associados e, ainda, na reconstrução do sonho com os lobos, quando o paciente teria

cerca de quatro anos.

Apesar de o paciente contar com dezenove anos, quando inicia sua análise, Freud

denomina o caso de neurose infantil, tendo em vista desejar situar a origem da neurose do

paciente adulto na infância. Segundo sua compreensão, portanto, a neurose atual é uma

continuação ou retorno da neurose infantil. Nesse panorama, Freud oscila entre a busca do

dado real da experiência traumática, numa alusão à sua antiga teoria da sedução, e a dimensão

da cena primária (coito dos pais), enquanto fantasia inconsciente. Ao final do caso, há uma

conciliação entre as duas teorias e certa correção do seu ponto de vista original sobre a

supervalorização da realidade objetiva em detrimento da psíquica.

Já no segundo texto, “Uma criança é espancada,” Freud (1996ad) apresenta uma

compilação de alguns casos nos quais há o relato por parte dos pacientes de uma fantasia de

infância de roteiro semelhante e centrada numa cena de espancamento. Esses achados clínicos

servem de indicação para uma revisão da sua teoria sobre o tema, pois, até então, a fantasia

estava submetida ao princípio do prazer. A função da fantasia, a partir desse momento, é

modificada, ou melhor, ampliada, associada ao gozo e não somente ao prazer como defendera

anteriormente.

Observa-se na fantasia “Espanca-se uma criança”, uma construção em três tempos

do seguinte modo: o primeiro é resumido na seguinte frase: “meu pai bate na criança que eu

odeio”, construção que aponta para o ciúme infantil sob a forma “meu pai me ama, pois ele

está batendo na outra criança, ele não a ama”. Esse momento representa a rivalidade com um

irmão ou outra criança conhecida que compete pelo amor dos pais.

Na passagem para a segunda fase, ocorre uma série de mudanças, sendo

espancada, agora, aquela criança que cria a fantasia. O pai, contudo, permanece como aquele

que espanca. A fantasia promove, a partir desse momento, um intenso prazer e é representada

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pela frase: “Estou sendo espancada pelo meu pai”, o que expressa um caráter masoquista. A

segunda fase é a mais importante, segundo Freud, nunca é lembrada, jamais se tornou

consciente, constituindo-se numa construção da análise, mas, nem por isso é uma construção

menos necessária.

A terceira fase assume a forma: “estou olhando vários meninos (no caso de

fantasias femininas) que estão apanhando”. No caso, ocorre uma distorção e substituição

da figura do pai pela de um professor ou um estranho e, ao invés de estar apanhando, o autor

da fantasia assume o lugar de espectador da cena. É uma fase acompanhada de forte excitação

sexual e atividade masturbatória. A fantasia, nessa fase, é caracterizada como sádica pela sua

forma, mas, quanto ao tipo de satisfação que proporciona, é masoquista, já que Freud

identifica os meninos espancados como substitutos da criança que cria a fantasia.

Observa-se nesse trabalho a mudança de pensamento de Freud, que localiza a

fantasia como uma construção à parte da estrutura neurótica, sendo marcada pela pulsão de

morte, tendo em vista o fato de a segunda fase da fantasia concernir ao advento do

masoquismo. Essa forma de compreensão faz com que a direção do tratamento vise à

construção da fantasia fundamental e se aproxime do irredutível da castração.

Mesmo sendo uma construção da análise e não uma lembrança real, a segunda

fase da fantasia atesta o surgimento de um masoquismo que Freud, posteriormente, atribui à

qualidade de ser erógeno. Essa parte da fantasia aponta, assim, para um dado quantitativo da

pulsão que não está ligado à obtenção de prazer, mas apenas à satisfação pulsional, ao gozo.

Duas evidências se impõem, aqui, com as modificações introduzidas por essa

obra. A primeira refere-se à direção do tratamento definida em termos de construção da

fantasia fundamental, como aquela que vela o real da castração, já que a análise culminava

com enfrentamento do paciente do “rochedo da castração,” tal como Freud define o limite da

análise. A segunda evidência aponta para a dimensão do gozo presente na fantasia.

É em termos do gozo que Lacan (1992) define o que é uma criança contrapondo-a

ao adulto que, segundo ele, seria alguém responsável por seu gozo. Ao mesmo tempo, a

questão que ele propõe é se existe algum sujeito que sabe o que faz com seu gozo. Ele situa a

figura do pai ideal como aquele que saberia, pois “teria ido até o fundo de um desejo e

encontrado seus restos”. Segundo Laurent, Lacan (1992) define, a partir de então, o pai não

mais em relação ao falo, mas ao objeto a. (LAURENT, 2003, p. 37).

É por essa via que Lacan vai definir o que é um pai para a psicanálise em termos

não de falo, mas de objeto “a”. Para o autor, a clínica com crianças impõe que se tome o gozo

e o objeto “a” como parâmetros de trabalho a serem observados, já que a criança condensa o

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gozo da mãe e funciona muitas vezes como objeto “a” dela. Dessa forma, a função do pai,

enquanto metáfora que vem substituir o desejo da mãe, envolve nem tanto o brilho fálico que

a mãe prometeu, mas o caráter de resto representado pelo objeto “a”, ao qual a criança se

alinha, introduzindo, dessa forma, a dimensão da perda. Laurent (2003) comenta uma

passagem de Lacan do seminário 17 “O avesso da psicanálise”, que ilustra sua mudança de

perspectiva:

Dizer como Lacan, o objeto a é o que todos vocês são, enquanto estão postos aí –

cada um o aborto do que foi, para quem lhes engendraram, causa do desejo – é

brutal, mas quer dizer que não se trata do brilho fálico, que não estão todos em

posição de ser o falo da mãe. O que quer dizer é: vocês estão sob a rubrica do

pequeno a, resto do desejo, estão na envoltura perdida do desejo que os trouxe ao

mundo; houve um desejo que os fez nascer, depois do nascimento perderam a

placenta, e cada um é mais a placenta que perdeu do que o falo que se lhe promete.

(LAURENT, 2003, p. 37, tradução nossa, grifo do autor).

O pai corresponde, então, não aquele que promete o falo, mas a alguém que faz

com que o sujeito encare sua perda de vivente. Segundo Laurent (2003), essa questão remete

ao fim da análise da criança, pois é a partir do enfrentamento dessa perda que ela constrói sua

fantasia ao se deparar com a falta do Outro. O referido autor cita uma passagem de Silvestre

(1983) de seu artigo “A neurose infantil segundo Freud,” no qual os objetivos da análise com

crianças são definidos no fato de a criança formular uma resposta ao desejo do Outro, ainda

que à custa de uma neurose. “É o que está em jogo na metáfora paterna e é o que se deve

esperar de uma análise com criança: que, de qualquer modo, ela tenha assumido que tenha

dado uma versão ao desejo da mãe.” (LAURENT, 2003, p. 38, tradução nossa).

A pergunta que a criança se formula é: o que deseja minha mãe? Para essa pergunta

há uma resposta, ainda que a criança a encontre ao preço de uma neurose. Ao

contrário, a pergunta que se formula aquele para quem a castração é a condição da

sexualidade, seria melhor a que formula Freud, o que quer a mulher? Aqui,

precisamente, não há resposta: o significante falta. (SILVESTRE, 1983, apud

LAURENT, 2003, p. 38, tradução nossa).

A essa conclusão, Laurent (2003) acrescenta que, embora falte significante no

campo do Outro, há algo que responde a essa pergunta acerca do desejo da mulher: trata-se da

fantasia. É desse modo que a criança vai responder ao desejo materno, capturando a mulher

enquanto mãe e constituindo-se como instrumento de seu gozo. Pela via da fantasia, a criança

se situa frente ao desejo da mãe e este será o modo como ela responde à pergunta sobre o

desejo da mulher. A função da fantasia da criança consiste, portanto, em, concomitantemente,

promover seu posicionamento subjetivo diante do Outro e responder ao que deseja a mulher.

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Em virtude disso, o autor formula, parafraseando Lacan (1998c), que há uma

questão preliminar a todo tratamento de crianças: a sexualidade feminina. A esse respeito,

Laurent (2003) indica que a grande contribuição de Lacan (1992) para a sexualidade feminina

foi sua concepção de que a mulher está dividida entre, de um lado, uma relação direta com o

Ⱥ e, por outro, uma relação com o objeto “a”, o que produz o enigma sobre a feminilidade,

sobre o desejo da mulher. O autor situa a posição da mulher como aquela que busca castrar o

homem, pois o amor feminino tende a castrar o homem. Já este aponta o objeto “a” para

capturar a mulher, “para satisfazer-se, utilizando-a, dando uma versão perversa: se serve de

seu fantasma para capturar a mulher.” (LAURENT, 2003, p. 39, tradução nossa).

É por esse motivo que Lacan no Seminário 5 (1999) formula que a mulher é

menos suscetível à perversão porque tem filhos. A perversão da mulher consiste, justamente,

em ela ter filhos e o par mãe/criança constitui o casal perverso, pois a mulher encontra na

criança a parte perdida dela mesma que surge na realidade, o que segundo Laurent (2003)

torna mais difícil a intervenção do psicanalista. Logo, a forma como a criança é tomada pela

mãe em sua fantasia vai diferir do modo como o pai a toma na fantasia dele.

O autor destaca que, a partir da contribuição do ensino de Lacan, a abordagem da

criança na análise se desloca do falo para o objeto “a”, o que produz efeitos no que concerne

ao fim da análise com crianças. Laurent (2003) situa duas possibilidades para a criança: no

primeiro caso ela pode responder a partir da dimensão fálica e sua resposta determina o fim da

análise. “Quando a criança tem uma versão do falo não vale a pena continuar, já é suficiente,

e, embora tenha, contudo, que pô-la à prova, com isso já basta.” No segundo caso, será

necessário que a criança tenha uma versão do objeto a. (LAURENT, 2003, p. 40, tradução

nossa).

A realização fálica foi o que não vimos ainda aparecer no caso de Carlos, tal como

apresentamos no capítulo anterior. Não houve até o momento, a constituição de uma versão

do falo e tampouco do objeto “a”, pois a criança só reconhece a incidência de uma perda, mas

não formula um substituto simbólico para ela, o que justifica a continuação da análise. No

entanto, esses dois posicionamentos como possibilidades de saída da análise a partir do falo e

da relação de objeto, deixam em aberto uma questão segundo Laurent, que a toma de Lacan:

trata-se da diferença entre a criança e o adulto.

Para demarcar esses lugares de criança e adulto, Lacan não se utiliza da idade, do

desenvolvimento ou da puberdade e sim, do gozo, pois, segundo Laurent (2003), o que separa

a criança do adulto é a ética que cada um faz de seu gozo, já que o adulto é alguém que é

responsável por seu gozo. Por outro lado, há uma aproximação entre criança e adulto pela via

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da fantasia, pois, segundo o autor, nos dois casos, “trata-se de que o sujeito tenha construído

suficientemente a fantasia que o anima, com a versão de objeto de que disponha, segundo a

idade que tenha.” (LAURENT, 2003, p. 41, tradução nossa).

Em relação aos objetos (oral, anal, olhar, voz e nada) que servem de suporte ao

objeto “a”, segundo Laurent (2003), eles não têm a mesma incidência em todas as idades, o

que indica um posicionamento lacaniano em torno do desenvolvimento do sujeito, mas sendo

este fundado na estrutura. À criança caberia percorrer o caminho de separação da mãe,

inviabilizando que seu corpo seja tomado como objeto condensador de gozo materno. É a isso

que Lacan (2003) se refere em “Nota sobre a criança”, como visto, onde ele sustenta que o

mais importante é que a criança não responda com seu corpo como objeto “a”.

O modo de impedir que a criança responda com seu corpo, segundo Laurent

(2003, p. 41) é através do que ele denomina “construções de ficção”. O autor não aprofunda

seu ponto de vista, mas salienta que é preciso que o psicanalista fomente a construção de

ficções reguladoras, o que, acredita-se, se coaduna com a proposição aqui defendida acerca da

relevância clínica da fantasia para se pensar no que, verdadeiramente, consiste o tratamento

analítico.

Trata-se, então de assegurarmos que a criança tenha localizado este gozo em uma

construção fantasmática, já que, afinal, à fantasia no sentido mais profundo, mais

fundamental, não chegamos a colocar a mão em cima; somente chegamos a tocar

versões da fantasia. Assegurar-se de alguma coisa desse tipo, de uma ficção que

permita à criança responder à pergunta sobre o gozo da mãe, sobre o gozo de uma

mulher, sem considerar, por isso que tudo deva apontar par a identificação edípica.

(LAURENT, 2003, p. 42, tradução nossa).

Percebem-se, assim, os efeitos decorrentes de tomar a fantasia como referência na

clínica com crianças. Foi visto como os objetivos da análise com adultos e crianças

assemelham-se, sem que seja necessário apelar-se para as questões relativas ao

desenvolvimento ou à adaptação da técnica pelo uso do brinquedo quando se trata da criança.

A intervenção do analista, segundo essa perspectiva , ocorre no sentido de possibilitar a

construção da fantasia por parte do paciente, independente da idade.

Será visto, em seguida, como o brincar, a partir do ensino de Lacan, pode ser

localizado de modo diferente das abordagens clássicas acerca da psicanálise com crianças. Se

para os psicanalistas de orientação lacaniana ele não se configura como uma técnica,

tampouco pode ser desprezado enquanto atividade sempre presente na análise de crianças.

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4.3 O brincar e a construção da fantasia na análise com crianças

Desde o início da psicanálise com crianças, o brincar apareceu com diversas

conotações. Pode-se destacar sua função como técnica de aproximação do funcionamento da

mente infantil, como equivalente da associação livre e como instrumento do desenvolvimento

da criança. Anna Freud representa a tendência que considera o brincar um instrumento para

estabelecer contato com a criança, sendo este secundário ao trabalho da análise. Com Klein

(1997), proliferam os discursos em favor do uso do brincar como técnica necessária à

adaptação da criança à análise. Já Winnicott (1975), foi defensor de uma concepção do

brincar atrelada ao desenvolvimento, à maturação da criança, pois para o autor, enquanto

brinca a criança se constitui, constrói seu mundo interno e suas relações com os objetos.

A partir do ensino de Lacan e do seu retorno a Freud, o brincar é alçado a um

novo patamar na análise, pois ele é concebido como mediador do acesso da criança ao

universo simbólico e à cultura na qual se encontra inserida. É essa a relevância do brincar que

Freud indica em diversos momentos de sua obra, atribuindo-lhe acepções diversas à medida

que sua teoria avança. Não há, portanto, em Freud ou Lacan uma referência ao brincar como

método de trabalho específico para a análise de crianças (VIDAL, s/d).

Em Escritores criativos e devaneios (FREUD, 1996n) a brincadeira das crianças é

comparada à produção literária, à criação de um universo particular, tal qual o fantasiar do

adulto denuncia. Já em 1920, com “Mais além do princípio do prazer” há a consideração da

brincadeira como estando relacionada à inserção no simbólico e à tentativa de domínio de

situações traumáticas. O que não varia nesses textos e no pensamento freudiano é a

compreensão do brincar como discurso, através do qual o inconsciente se manifesta. Trata-se,

portanto, não de técnica, mas de escutar no discurso da criança as formações do seu

inconsciente.

Em “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos” fica evidente que Freud

(1996r) não pretende criar uma nova especialidade na psicanálise. Ele deixa claro que seu

objetivo é teórico, pois visa confirmar suas teorias sexuais infantis, deduzidas das análises dos

pacientes adultos. Freud faz a análise de Hans por intermédio do pai do menino e o recebe

para um único atendimento, sem, no entanto, modificar sua técnica. É bem verdade que, com

Hans, não é utilizada a associação livre, mas a análise se dá a partir da fala do paciente e de

seus desenhos, num método que envolve o deciframento do inconsciente, não diferindo em

essência da análise de adultos.

A abordagem lacaniana do brincar difere das demais visões por não reduzir essa

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atividade à sua vertente imaginária. Isso fica evidenciado na proposição amplamente

difundida pelas outras teorias acerca da necessidade do analista conhecer bem o universo das

crianças, seus personagens e jogos preferidos. De fato, essa compreensão não diz da função

do brincar na análise e de sua importância na estruturação psíquica do sujeito, apenas

evidencia a dimensão imaginária que envolve essa atividade. Nas teorias apresentadas

anteriormente era esperado que a criança brincasse, e essa demanda está sustentada no desejo

do analista. Já para Lacan, o brincar é efeito da estruturação significante do sujeito. Ele é

abordado como um discurso marcado por uma falta, “mas também enquanto ato da ordem do

tiquê, do mal encontro com o real.” (VIDAL, s/d, p. 46).

Flesler (2012) trabalha com uma perspectiva amparada no ensino de Lacan e

estabelece quatros aspectos relevantes para pensarmos o lugar do brincar na constituição do

sujeito e no tratamento analítico. O primeiro aspecto afirma que o brincar tem um papel

essencial na construção da fantasia, um dos pilares da estruturação do sujeito. O segundo diz

respeito à importância da consideração dos tempos de armação da fantasia, tendo em vista que

as especificidades temporais da infância revelam que a fantasia vai se construindo aos poucos,

assim como a relação com a realidade. Em terceiro lugar, a autora apresenta uma articulação

entre os tempos do sujeito e os tempos da fantasia, enfatizando o que se pode observar no

brincar da criança e o que ele denuncia para o analista. Em quarto lugar, a autora destaca a

importância de compreender o jogo que se passa entre a criança e seus pais, enquanto

modalidades singulares do encontro entre o sujeito e o Outro, pois “elas (as modalidades)

condicionam cada tempo da infância propiciando ou impulsionando suas progressões, mas

também complicando ou paralisando seu devir.” (FLESLER, 2012, p. 91).

O lugar do brincar na estrutura é abordado pela autora como estando vinculado a

uma falta. Para que haja cena lúdica é necessário que esteja sendo engendrada uma falta, que

propicia o jogo com o Outro primordial, detentor das primeiras regras, às quais a criança deve

seguir para ascender à condição de sujeito. No primeiro momento, portanto, é necessária essa

submissão ao campo do Outro, pois dele depende a sua existência e com ele ocorre o primeiro

jogo. (FLESLER, 2012).

Segundo a autora, o primeiro jogo que a criança joga é o de desmamar-se. O bebê

brinca, durante a amamentação, de pegar e depois de soltar o seio materno. Com esse gesto, o

bebê ensaia sua posição de sujeito, numa tentativa de domínio da situação, demarcando uma

alternância que introduz uma dimensão lúdica vital para a criança. É esse gesto que lhe

confere um princípio de humanidade, permitindo-lhe jogar com o Outro ao seu modo. “Por

isso, o fato de a relação do bebê com o peito da mãe fluir numa periodicidade alternante é,

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desde o começo, uma nota maior, um tempo antecipatório do sujeito, uma tomada de posição,

uma resposta ao Outro.” (FLESLER, 2012, p. 93).

Há, no entanto, uma condição para que o bebê seja bem sucedido nesse jogo, essa

diz respeito ao equívoco inerente ao estatuto da demanda. Segundo a autora, é necessário que

haja uma diferença entre a demanda do Outro e a resposta do infans para que ele possa sair da

alienação e assumir uma posição de sujeito. Esse processo não se opera de uma vez só, mas

apresenta avanços e recuos, que vão assegurar pouco a pouco, uma resposta não automática à

demanda do Outro. Assim, é importante a observância dos tempos do sujeito e sua relação

com o brincar, como destaca a autora:

Mesmo quando o brincar tem origem muito cedo por virtude da falta que opera na

relação entre o sujeito e o Outro, a hiância, que inaugura a oportunidade de

existência para o sujeito, ainda não estará assegurada. Durante muito tempo a

criança vai precisar recriar a perda do objeto que ela era para o Outro, assim como

engendrar por essa mesma via o objeto como falta, operação que exigirá pequenos

objetos reais, além de reproduzir na relação com o Outro a impossível

complementariedade. O tempo do sujeito e os recursos simbólicos com os quais

serão redistribuídos os gozos serão essenciais em cada trecho. (FESLER, 2012, p.

96).

A redistribuição de gozo é apontada pela autora a partir do jogo do fort-da, em

que a brincadeira do neto de Freud arremessando o carretel é tomada como uma sequencia de

fases. Na primeira, a criança lança objetos longe do alcance dos adultos, em lugares de difícil

acesso, longe do alcance do Outro. A segunda corresponde à ação em si, ao jogo do fort-da,

no qual o menino lança o carretel dentro do berço e depois puxa-o de volta dizendo ooo-aaa.

O sujeito pode, assim, brincar com a ausência e não se trata apenas da ausência materna, mas

da sua própria. É isso que Lacan afirma quando diz que o sujeito ex-siste (ex: fora, siste:

lugar). O tempo do sujeito consiste, portanto, num momento em que é preciso que ele se situe

fora do lugar onde é colocado pelo Outro. É preciso que ele se destaque do campo do Outro

nesse intervalo de oposição significante ooo-aaa. É nesse instante que o sujeito advém. Esse

tempo é anterior e articulador do jogo do espelho, citado por Freud, no qual seu neto brinca de

aparecer e depois fazer sua imagem sumir do espelho. “A criança que tinha se encontrado

com o vazio do berço, local preciso do qual tinha sido retirada, nomeia significativamente a

sua ausência como objeto do Outro e entra no jogo, o terceiro, de subtrair a imagem do

espelho.” (FLESLER, 2012, p. 100).

Em relação aos tempos da fantasia, a autora apresenta sua leitura do texto

freudiano “Escritores criativos e devaneios” (1996n) e destaca que Freud explicita na sua

compreensão do brincar, tempos diversos da cena lúdica que, ao se sucederem, compõe os

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tempos de estruturação da fantasia. No primeiro tempo tem-se, então, que a criança brinca.

Não oculta a cena ao olhar do outro e, tampouco, atua com o objetivo de oferecer sua

brincadeira ao olhar de espectadores. Ela simplesmente brinca. No segundo momento, a

criança esconde seu brincar do olhar do outro. Nessa fase, a criança passa a fantasiar mais e

não gosta de revelar o conteúdo de suas produções. Freud fala em dique pré-recalque que

produz a vergonha, pois não há ainda aqui, segundo a autora, uma separação bem estabelecida

entre o sujeito e o Outro, daí a presença de alguns fenômenos transitivos que denotam certa

transparência, como se os pensamentos do sujeito fossem compartilhados com o Outro.

Começa-se a deslindar a relação do brincar com a fantasia, uma vez que, é a partir

desse momento, que a tela fantasística passará a velar o olhar do Outro, promovendo a

mudança para o terceiro tempo da cena lúdica. Nesse momento, Freud afirma que a cena é

lembrada pelo adulto em análise, sendo essa recordação uma lembrança encobridora do real

sexual recalcado. A neurose infantil já está constituída e agora o sujeito relata em análise a

cena, com o olhar de quem está assistindo, pois observa de fora o que se passa com ele na

cena. Nesse ponto, a autora situa a fantasia já consolidada, pois a recordação já denota a

incidência do recalque e, portanto, o impedimento de acesso à Outra cena. “Sem a fantasia

que lhe oferece sua cara de realidade, ele jamais poderia recordar. Isto é: ver-se brincando na

infância, num tempo em que a criança que ele era não é mais que uma recordação

acobertadora infantil do adulto”. (FLESLER, 2012, p. 102).

Após esse percurso, quando tratamos do lugar do brincar na estrutura, sua relação

com a fantasia, além de ter perpassado a importância dos pais nesse transcorrer de diversos

tempos, representado pela relação com o Outro, nos resta, ainda, a questão acerca do que

opera no brincar e como o analista deve compreender suas manifestações. A esse respeito, a

autora propõe que é necessário que, no brincar, se processe uma transformação na cena lúdica

que envolve o movimento. É nessa passagem que se localiza a importância do brincar e seu

desenvolvimento. O estágio do espelho serve de suporte para a compreensão do modo como

um sujeito fica preso a uma imagem fixa i’(a) que inviabiliza essas mudanças de cena. Essa

imagem ideal que antecipa uma totalidade jubilatória, apesar de estruturante, pode produzir

dificuldades no que se refere à possibilidade de se desvencilhar de uma identidade fixa e fazer

jogo, como afirma a autora: “é pelo corpo imaginário que tomou forma no narcisismo

especular que os jogos da infância são protagonizados, movendo a imagem da cena lúdica,

cuja primeira encenação poderia se chamar: enganar a demanda do Outro.” Ela chama de

enganar a demanda do Outro a recriação por parte do sujeito do vazio em torno do qual ele se

constitui. (FLESLER, 2012, p. 114).

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A autora utiliza, além do estágio do espelho, o conceito lacaniano de semblante

que define como “uma cobertura imaginária de um pedaço de real amarrado simbolicamente”

(FESLER, 2012, p. 116). Indica, assim, a relevância clínica de trabalhar com o real do objeto,

através da sua presença e ausência, pois o semblante evidencia a presença do objeto como

promotor de gozo e sua ausência como promotora do desejo, daí sua afinidade com o objeto a.

Por fim, a autora resume a operação do brincar a partir do semblante da seguinte forma:

O interesse do semblante para um analista de crianças ganha relevo quando o objeto

é posto em jogo, contribuindo para a passagem de uma cena a outra e desencadeando

uma serie de eficácias. Em primeiro lugar, como já antecipei anteriormente, a

tendência com a brincadeira é produzir um texto renovador: o acervo simbólico com

que o sujeito responde ao Outro. Por sua vez, o sujeito se acrescenta e se enriquece

com esses recursos: ele se efetua, dá resposta à demanda, constrói sua janela

fantasística e abre espaço para redimensionar seu desejo. Nesse caminho, quando se

realiza a progressão temporal, a brincadeira irá variando, graças à renovada pulsação

inconsciente. (FESLER, 2012, p. 116).

Essa pulsação inconsciente opera por meio de uma substituição metafórica, sem o

que haveria pulsão constante. Segundo a autora, é preciso que haja um caráter de

descontinuidade para que a cena lúdica seja histórica e não somente presente tomado pela

continuidade do gozo e emergência da angústia, o que pode desencadear os fenômenos de

perda de realidade. É a movimentação da cena, com as mudanças constantes no brincar que

são promotoras da estruturação do sujeito e da sua relação com a realidade.

O brincar se apresenta, portanto, como promotor de um tempo constituinte.

Quando o recalque não se produz por falta de suporte simbólico do Outro, “o acting chama o

Outro e mostra que a cena está out, fora do Outro”. É importante que a cena se passe dentro

do sujeito por incorporação do Outro, o que permite a substituição do brincar pela fantasia. É

aí que o sujeito pode se posicionar e sua vergonha ao relatar a cena fantasística demonstra que

o recalque operou. (FLESLER, 2012, p. 119).

Será visto, em seguida, um caso clínico que ilustra bem as dificuldades do sujeito

com o Outro e a formação do sintoma como resposta a esse desencontro, bem como, de que

maneira a fantasia se insere e contribui para a direção do tratamento.

4.4 Caso clínico

O caso que iremos apresentar insere-se no contexto da presente discussão por

revelar, concomitantemente, o sintoma da criança e sua fantasia correlata. Apesar de

constituir-se como uma resposta ao desejo do Outro, o sintoma de Luiza carrega a marca de

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sua própria fantasia, denotando, ao mesmo tempo, os impasses na assunção de uma posição

subjetiva desejante frente à mãe.

É importante destacar o contexto no qual se iniciou esse atendimento, pois se trata

de uma instituição pública que oferece atendimentos psicoterápicos individuais e grupais para

a população de Fortaleza em situação de vulnerabilidade social. Essa criança já vinha sendo

atendida durante um ano por outra profissional que, quando saiu da instituição me

encaminhou o caso.

Luiza é uma menina de dez anos que chegou até mim quando tinha nove, trazida

pela mãe com uma queixa de encoprese surgida aos seis anos. A mãe conta, durante as

entrevistas preliminares, que Luiza sofrera um episódio de abuso sexual quando tinha cinco

anos e, após ter reencontrado o abusador, seu primo de quatorze anos, desenvolvera a

encoprese. Luiza costuma esconder a roupa suja embaixo do colchão ou dentro do armário e

fica muito agressiva quando a mãe as encontra e a manda lavar.

A mãe de Luiza relata na presença da filha como ocorrera o abuso sexual. De

acordo com ela, sua filha foi assediada pelo primo de quatorze anos que tentou manter relação

sexual (sexo anal) com a criança. Luiza só contou para a avó o que acontecera um ano após o

ocorrido. A avó contou para a mãe de Luiza que quis tomar providências, mas o pai da criança

não aceitou, pois, segundo a mãe, ele não queria criar problemas com sua família. O caso foi

assim encerrado sem que fosse tomada qualquer medida jurídica.

Luiza mora com a mãe, a avó materna, uma irmã de sete anos e um irmão de dois

anos, filho de seu padrasto, com quem a mãe se casou há pouco tempo. Luiza tem um

relacionamento conturbado com a irmã, com quem briga muito e uma relação bem próxima

com o irmão, tratando-o como filho. Esse fato foi percebido antes e após os atendimentos

quando ela costumava pegar o irmão no colo, mesmo na presença da mãe, ocupando-se deste

e de suas necessidades tal como uma mãe.

Luiza mantém bom relacionamento com o padrasto, bem como com a avó,

depositária da confiança da menina na questão do abuso. Já com a mãe, Luiza tem uma

relação difícil, pois a mãe quer fazer dela sua substituta nos cuidados com os filhos durante

sua ausência, o que gera a agressividade da filha do meio, que não aceita obedecer à irmã, e

muita responsabilidade para Luiza.

Além dos atendimentos da criança, eram realizados encontros com a mãe, tendo

em vista a relevância de conhecer o modo como a filha era localizada no desejo materno. A

mãe sempre falava que na sua ausência deixava a filha encarregada dos irmãos, indicando

para Luiza um lugar como sua substituta, o que produzia grande conflito na criança, por

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ocupar um lugar desejado e temido ao mesmo tempo. Nesse sentido, foram feitas intervenções

junto à mãe a respeito do lugar que delegava à filha, o que gerou dificuldades com a

transferência, oscilando entre a dúvida e o reconhecimento do trabalho que estava iniciando.

A paciente, ao ser questionada se conhece o motivo de estar vindo para os

atendimentos, responde que sim. Peço, então, para que me diga qual seria ao que ela

responde: “porque eu faço cocô nas calças” (sic). Entretanto, ela não faz referência ao abuso

em momento algum. Quando perguntei sobre o momento em que isso começou (encoprese),

diz não se lembrar de nada e tampouco do abuso. Além disso, Luiza reage com indiferença

diante das queixas da mãe que reclama de ter que lavar sua roupa suja e diz não saber mais o

que fazer. Mesmo quando está sozinha e lhe pergunto sobre o que tem a dizer sobre essas

reclamações da mãe, nada responde, parecendo alheia ao que acontece.

Ainda nas entrevistas preliminares, durante um atendimento só com a mãe, ela

relatou que Luiza não queria tomar banho, pentear o cabelo e arrumar o quarto, estava

agressiva em casa, jogando roupas no chão e ignorando as ordens dela. Disse, ainda, que a

filha, antes boa aluna, estava tirando notas baixas e recebendo reclamações dos professores.

Além disso, a encoprese piorou bastante, pois Luiza passou a defecar não só quando chegava

aos lugares, mas também no caminho, dentro do ônibus. Associei a piora da paciente com a

saída da profissional que me encaminhou o caso, pois também foi a que passou mais tempo

atendendo Luiza.

Contei a Luiza sobre a conversa que tive com sua mãe acerca da falta de cuidado

dela consigo e de sua agressividade expressa nas ações descritas pela mãe, ela respondeu

dizendo: “estou cansada, minha irmã caga e eu limpo, meu irmão caga e eu limpo, agora até o

cachorro caga e eu limpo, eu sempre limpo a merda de todo mundo” (sic). Perguntei por que

ela fazia isso e ressaltei o fato de ela ocupar esse lugar que não era dela, já que não era

responsável pelas “merdas” dos outros. Ao mesmo tempo, também demandava que

limpassem a “merda” dela. Ela ficou calada.

Durante uma sessão, quando foi sugerido que fizesse um desenho, ela escreveu o

nome do irmão e chamou-o de “meu bebê” (sic). Intervi demonstrando surpresa e disse que

pensava que ele era seu irmão. Ela, então, disse que gostava dele como se ele fosse um filho.

Lembrando a equivalência estabelecida por Freud (1996k) entre fezes – dinheiro – dádiva –

bebê, percebe-se a partir da fala de Luiza, como em sua fantasia seu irmão aparece como o

filho que ela gostaria de ter. O irmão aparece, ainda, como uma solução para a questão sexual

da paciente, tendo em vista que ela tem uma melhora da encoprese após o nascimento dele,

segundo foi relatado pela mãe.

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Nas sessões, a paciente apresenta-se com um aspecto desleixado, com o cabelo

despenteado e sem asseio, com aparência bastante descuidada. É uma criança um pouco

apática, não interagindo muito nas brincadeiras. Nos primeiros atendimentos, escolhia sempre

quebra-cabeças e falava muito sobre a irmã, considerada pela família muito agressiva e difícil

de lidar, segundo Luiza, “ela só faz o que quer e quando quer” (sic).

Durante as sessões, é comum mudar de assunto quando não quer responder algo

ou mesmo quando faço alguma intervenção para que ela se implique na sua fala. Nos

primeiros atendimentos seu discurso girava em torno da irmã que fazia tudo o que queria,

tentei saber dela como ela agiria diante das mesmas situações, remetendo sua fala ao seu lugar

de sujeito, uma vez que se ela disse que a “irmã podia tudo” (sic), por correspondência, ela

não podia nada.

Certa vez, Luiza relatou dois sonhos que são recorrentes e que, segundo ela, a

impressionaram bastante e que poderíamos considerar também como fantasias. O primeiro

ocorreu, segundo ela, quando tinha quatro anos. Contou que uma ratazana com enormes olhos

vermelhos a perseguia e ela a chutava. A ratazana, com isso, crescia até se tornar maior do

que a paciente, quando, então, ela (ratazana) fura o pé e encolhe até ficar do tamanho de uma

barata. Luiza, então, aproxima-se e a mata com uma pisada. No segundo sonho, Luiza disse

que estava com oito anos e já era atendida por outra psicóloga. Contou que um homem a

perseguia numa moto e era degolado. Sua cabeça caía no seu colo e ficava falando com ela.

Não soube o que o homem disse.

Peço para ela falar sobre os sonhos e o que lhe vem à mente. Responde que não

sabe, que não faz ideia. Pergunto, então sobre alguns elementos do sonho e peço para que ela

associe, como por exemplo, a ratazana, o homem da moto. Volta a dizer que não sabe quem

ele é. Peço para que me diga a primeira coisa que lhe vem à cabeça quando pensa na ratazana

e ela responde que é a irmã. Pergunto o motivo e ela reponde: “porque ela é chata, fica só

implicando comigo”. Então digo, “ah, sua irmã te a-ta-za-na?”, ela confirma e destaco o

deslizamento significante com ratazana. Ela, então, narra episódios ocorridos com a irmã que

costuma agredi-la.

Luiza relata que sua irmã costumava bater nela e arrastá-la pelos cabelos por toda

a casa. Perguntei por que motivo ela permitia isso e ela disse que antigamente deixava a irmã

fazer o que quisesse com ela, não sabia se defender, mas “agora já não é mais assim” (sic),

pois decidiu que não permitiria mais ser mal tratada por ninguém. Passou a revidar as

agressões da irmã e a se defender mais das brincadeiras dos colegas na escola, o que fica

denotado pelo sonho quando pisa na ratazana que virou barata.

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Após algum tempo em atendimento, a mãe de Luiza disse que ela melhorou as

notas, está mais participativa na escola, o relacionamento com a irmã mudou e a encoprese

diminuiu, “está pouca, mas continua” (sic). Apesar dessas mudanças, percebo sua aparência

ainda descuidada, sem muito zelo com o cabelo e a forma de se vestir.

Outra mudança ocorrida nas sessões refere-se aos brinquedos eleitos pela

paciente. Nos primeiros atendimentos, Luiza escolhia sempre jogos de tabuleiro e quebra-

cabeças. Ela apresentava-se muito resistente, perguntando sempre quanto tempo ainda faltava

para o fim da sessão. Só demonstrou maior interesse e maior receptividade quando perguntei

se gostaria de jogar basquete. Ela gostou bastante e, durante algum tempo, quis jogar em todas

as sessões, demonstrando menos ansiedade, mesmo porque, dessa forma, evitava o contato

direto comigo.

Após um mês sem atendimento em virtude de minhas férias, decido chamar a mãe

para saber como Luiza estava, uma vez que já fazia bastante tempo que não conversava com a

mãe. Ela chega para o atendimento com uma barriga de quatro meses de gestação. Começou

falando que Luiza estava muito agressiva em casa, havia apresentado uma piora significativa

da encoprese, atribuída pela mãe ao convite para ir ao aniversário da avó que mora na mesma

casa do primo abusador. Acredito não haver relação entre a piora no quadro e a ida à casa da

avó, e sim com as minhas férias e a dificuldade de separação reforçada pela saída contínua

dos profissionais que atendiam Luiza.

A mãe contou que ficou bastante aflita e decidiu procurar um médico para tentar

fazer com que a filha melhorasse, pois defecava varias vezes por dia na roupa e jogava objetos

na mãe quando ela a mandava tomar banho. Dessa forma, há um mês Luiza vem tomando

medicamentos para regularizar a função intestinal e a mãe relatou na ocasião, que o remédio

tem surtido efeito, pois a filha não sujou mais a roupa. A mãe também contou que Luiza não

está bem na escola e que vem recebendo reclamações dos professores, pois não presta atenção

na aula. Disse estar preocupada, pois a filha sempre foi uma menina calma e boa aluna.

Na sessão seguinte, comentei com Luiza a conversa que tive com sua mãe e o que

ela tinha dito. Perguntei como ela estava e ela foi logo falando que estava “muito, muito bem”

(sic). Disse que o remédio que estava tomando era muito bom e falou sobre um garoto da

escola de quem ela gostava e de quem já tinha me falado outras vezes. Em seguida, contou

que tinha ido para a casa da avó e que tinha gostado bastante. Além disso, sua aparência

estava muito diferente. Luiza estava arrumada, penteada e com maquiagem, já entrando na

pré-adolescência parecia que havia passado muito tempo desde a última sessão, há apenas um

mês.

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Contei a ela sobre a conversa com sua mãe, que acreditava que ela tinha piorado

do seu problema (encoprese) por ter sido convidada para ir à casa da avó paterna, pois ela ia

reencontrar o primo que abusou dela. Perguntei, então, como ela se sentiu. Ela disse que não

sabe quem ele é, pois não se lembra dele e de nada que aconteceu. Disse que tinha sido muito

bom, pois brincou com os primos da sua idade e tinha sido bem divertido.

A análise de Luiza teve que ser interrompida na semana seguinte por questões

institucionais, portanto, não poderemos conhecer o desfecho do caso. Apesar disso, podemos

perceber pela última fala da mãe, como está presente o desejo de apontar a piora do sintoma

de Luiza, reforçando sempre e não deixando a filha esquecer um abuso que foi mais

traumático para ela (mãe). Ainda com relação ao abuso, havia certo mistério ou segredo

familiar, pois o pai, apesar de ter sido chamado, nunca compareceu aos atendimentos e nunca

ficou bem esclarecida a razão da rapidez com que ele abafou o caso para não ter problemas

com sua família.

A melhora atribuída ao remédio deixa dúvidas se este foi realmente a causa da

mudança, pois já haviam sido feitos diversos tratamentos e investigadas questões orgânicas.

Além disso, a mãe está grávida e é nesse momento que a barriga já começa a aparecer. Como

aconteceu com o nascimento do irmão, que já não é mais um bebê, Luiza apresenta uma

melhora e afirma com alegria que está muito bem. Poderíamos pensar que Luiza em sua

fantasia estaria esperando outro bebê? No entanto, a indicação de interesse por um garoto da

escola e sua vaidade aponta para uma mudança de posição subjetiva de Luiza, como já vinha

ocorrendo e sendo percebida pela mãe em casa e na escola, como já dissemos. Luiza não é

mais uma menina passiva que tem dificuldade de separar-se da mãe. Como no sonho, já sabe

se defender e não precisa mais fugir da barata que a perseguia disfarçada de ratazana.

Esse caso evidencia que a psicanálise com crianças envolve os mesmos preceitos

da análise de adultos, que poderiam ser estabelecidos, de modo geral, em termos de fala,

transferência, repetição, interpretação de sonhos, sintoma, e fantasia. Podemos perceber com

esse caso, que não houve qualquer alteração no trabalho clínico se comparado com o que é

realizado com adultos. Mesmo os brinquedos, são utilizados como suporte para a produção

discursiva da paciente, não constituindo, propriamente uma especificidade e sim um

dispositivo da clínica com crianças.

Se a psicanálise com crianças for pensada apenas sob o modo como se apresenta o

paciente na clínica, ou seja, em função do seu desenvolvimento, do uso do brinquedo como

mediador da fala, da necessária presença dos pais, pois carece de autonomia para reconhecer

suas dificuldades e procurar ajuda, podemos considerá-la como detentora de especificidades.

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No entanto, isso não seria reduzir demais o alcance do que pode ser realizado numa análise?

O que é uma análise senão um tratamento, que como definiu Freud (1996aa) se inicia pelo

sintoma e passa à fantasia que lhe é correlata como caminho de acesso ao desejo inconsciente.

É necessário, portanto, que o analista se desvencilhe do discurso social sobre a

infância e fundamente seu trabalho na escuta do inconsciente, tomando sintoma e fantasia

como principais referências. Somente desse modo, o brincar, a imaturidade da criança e a

transferência com os pais – elementos apontados como específicos dessa clínica – podem ser

ressituados, a partir da sua função na análise e do seu lugar na estrutura como procuramos

demonstrar, a partir das contribuições de Freud e Lacan.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A intenção desta pesquisa, ao abordar a psicanálise praticada com crianças,

consistiu em discutir simultaneamente dois aspectos de uma mesma questão. Por um lado, o

que caracteriza as particularidades do tratamento com crianças e como elas se inserem no

escopo da teoria psicanalítica. De outro, verificar na clínica com a criança aquilo que é

comum ou que se aproxima da análise realizada com adultos e permite afirmar que se trata de

psicanálise. Nesse contexto, procurou-se trazer à discussão os fundamentos da clínica

psicanalítica, a fim de precisar o que se apresenta sob a insígnia da psicanálise, reunindo

adultos e crianças como pacientes submetidos aos mesmos princípios de tratamento.

Inicialmente, foi feito um percurso situando o surgimento da criança na

psicanálise, apresentando as contribuições dos principais psicanalistas que se dedicaram a

essa tarefa. Percebe-se que, embora haja consenso entre os autores, quanto ao que se pratica

com crianças ser semelhante ao trabalho analítico realizado com adultos, ainda assim, há

considerações de particularidades que foram estabelecidas em torno de três eixos centrais. A

imaturidade da criança, a transferência com os pais e o brincar como técnica privilegiada da

análise com crianças constituíram, assim, os pontos em torno dos quais gravitaram as

reflexões aqui realizadas sobre as especificidades da clínica psicanalítica com crianças.

Assim, foram reunidos, inicialmente, esses três elementos, extraídos da teoria dos

principais teóricos de crianças, para tentar compreender, a partir do ensino de Lacan, como

essas especificidades justificam uma abordagem diferenciada da criança em análise. Foi

dividida entre os três capítulos dessa dissertação essa discussão sobre o específico que a

clínica com crianças comporta, para, simultaneamente, enfatizar-se a relevância de também

indicar o que não varia com relação à clínica com adultos, a partir da discussão sobre os

fundamentos da psicanálise propostos por Lacan no Seminário 11 e da abordagem do sintoma

e da fantasia na análise de crianças.

Nesse sentido, a discussão se deu tanto no plano da especificidade como no da

universalidade, se é que é possível referir-se dessa forma a uma clínica que se constrói em

cada caso naquilo que surge como singular. No entanto, pretendeu-se com essa nomenclatura

evidenciar que há uma semelhança de propósitos no trabalho realizado com adultos e crianças

que precisa ser mais bem localizada dentro da teoria psicanalítica.

Um elemento apresentou-se como essencial para a determinação desse caráter

semelhante entre as duas clínicas. Trata-se do sujeito, tal como foi formalizado por Lacan, um

conceito que se apoia na compreensão do inconsciente como efeito de linguagem. O sujeito

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comparece num momento de abertura do inconsciente, não apresenta relação com os

processos de maturação, não se desenvolve, pois não tem estatuto ôntico, não tem substância,

sua materialidade diz respeito ao significante. Dessa forma, como é sobre o sujeito que a

psicanálise opera, não faz sentido pensar no trabalho com a criança como sendo uma

adaptação ao que é realizado no tratamento de adultos, pois o que interessa à psicanálise é a

dimensão subjetiva referida ao desejo inconsciente e capturada pela palavra.

Não se pretende com isso, afirmar que não haja particularidades no atendimento

às crianças, apenas procurou-se destacar que não é sem efeito considerar a criança na análise

ou o sujeito, tal como se faz presente a partir da emergência do desejo inconsciente.

Considerar a criança na análise em detrimento do sujeito envolve uma perspectiva na qual o

paciente não é responsável pelo seu sofrimento, não possui saber sobre o que lhe ocorre, logo

não é capaz de construir sua verdade sobre seu desejo, o que descaracterizaria o tratamento

psicanalítico. As particularidades que envolvem a criança não devem, portanto, ser

desprezadas. Se a especificidades clínicas merecem ser questionadas é porque buscou-se

compreender sua implicação para a direção do tratamento, como elas participam do trabalho

com a criança, o que não quer dizer que se deve ignorar que se está diante de uma criança.

Historicamente, a criança ocupou um lugar diferenciado dentro da psicanálise,

suscitando uma abordagem por parte do analista que confundia a infância com o infantil.

Desse modo, a criança foi alvo de disputas ideológicas em que a tentativa de correspondência

ao ideal social produziu distorções, inclusive, no interior do movimento psicanalítico. O que

se pretendeu demonstrar ao longo desta pesquisa foi, justamente, a relevância de tomar o

infantil como conceito referido às inscrições inconscientes que sofreram recalcamento e

sempre buscarão retornar, participando, assim, da formação de sintomas. A infância, ao

contrário, corresponde a uma realidade vivida, está inserida numa cronologia que não serve

para situar aquilo do que a psicanálise se ocupa, isto é, a questão fantasmática do sujeito,

enquanto referida à realidade psíquica, ao infantil como algo da ordem da irrealização.

Apesar de ser necessário para a realização da análise, sobrepor o sujeito à criança,

não se pode desconsiderar que, diferente de um adulto, esses pacientes ainda estão

subordinados a um contexto familiar estruturante e que é responsável, inclusive, pela

manutenção do tratamento. Esse é um dado relevante, pois a participação da família se faz

presente não apenas no discurso da criança, mas, de modo real como presença no processo

analítico. Não há dúvidas, portanto, quanto à necessidade de lidar com os obstáculos, muitas

vezes, colocados pelos pais ao tratamento da criança, já que a cura repercute também neles.

No entanto, é preciso que o analista compreenda, tal como afirma Mannoni (2003) que o

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importante não é tanto a realidade concretamente vivida da relação entre pais e filhos e sim o

modo como a criança constrói sua realidade psíquica, segundo o lugar que se coloca e é

tomada no discurso do Outro representado pelos pais.

O sofrimento da criança refere-se, assim, a uma dificuldade relativa à sua história

e ao modo de lidar com suas vivências, mas também aos efeitos decorrentes do discurso

parental que a inclui. Daí a importância de ouvir os pais, não como informantes, mas, como

estabelece Mannoni (2003), para conhecer a realidade discursiva da qual a criança é efeito. A

palavra dita ou silenciada pelos pais permite ao analista compreender os impasses da criança

relativos à sua história e permite sua análise avançar.

Em virtude do interesse em compreender melhor o percurso da criança em análise,

a fim de situar suas especificidades, bem como, aquilo que é invariante no tratamento, elegeu-

se o sintoma e a fantasia como conceitos que revelam a essência do trabalho analítico. O

sintoma é o motor da análise, denuncia o sofrimento e o gozo presentes do sujeito diante de

seus impasses com o desejo. Já no que se refere à fantasia, é pelo seu desvelamento

subjacente ao sintoma que se tem acesso às determinações inconscientes produtoras de

sofrimento.

No que diz respeito ao sintoma, observou-se que o mesmo está relacionado tanto

ao desejo parental como ao da criança. Se ele se constitui como resposta ao enigma do desejo

do Outro, nem por isso exclui a subjetividade infantil. O sintoma da criança conta com a

participação dos pais, no entanto, pode-se afirmar que não há diferença quanto ao seu

mecanismo de formação, tendo em vista que a defesa atua de modo semelhante a dos adultos

e o conflito entre desejo e realização ocorre também na criança.

Os questionamentos em torno da existência ou não de um sintoma próprio da

criança se baseiam na confusão entre neurose infantil e neurose da criança. A partir das obras

de Freud e Lacan, viu-se como é necessária essa distinção para que não se reduza a criança

aos efeitos do discurso parental. Segundo a visão freudiana, a neurose infantil surge muito

precocemente e é vislumbrada através da fala dos adultos por ser a base na qual se apoia a

neurose posterior. Já a neurose da criança remete a uma impossibilidade de construir

teorizações ou fantasias a respeito do enigma do desejo do Outro, o que deixa a criança numa

posição cristalizada anterior à resolução edípica.

O sintoma da criança surge, portanto, como resposta ao fracasso da pergunta sobre

o desejo do Outro. É devido aos impasses nos seu posicionamento frente ao desejo do Outro,

que a criança produz seus sintomas, oscilando entre a tentativa de corresponder aos ideais

parentais, tornando- se objeto imaginário do gozo do Outro, e a renúncia a essa alienação.

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Nesse cenário, viu-se que o sintoma da criança denota o papel da família no

adoecimento infantil. É necessário destacar, aqui, que não há dúvidas sobre a implicação dos

pais no sintoma da criança, mas é importante destacar, também, que o que está em jogo não é

a realidade objetiva dos conflitos familiares que estariam afetando a criança, mas a realidade

psíquica da criança. A problemática conflituosa está presente e faz parte da infância, no

entanto, a análise visa conhecer o modo como a criança se apropria do vivido e constrói sua

fantasia em referência não ao ambiente, mas aos significantes que a constituem.

A fantasia concentra o final de nossa discussão acerca da psicanálise com

crianças. Identificou-se no brincar uma via privilegiada de construção da fantasia. A criança

que brinca ensaia uma resposta à falta do Outro, torna-se capaz de suportar as perdas

decorrentes do seu crescimento. As castrações são, assim, simbolizadas e ela cria suas teorias

para enfrentar o real que remete à fratura do seu ser.

A fantasia na clínica com crianças foi abordada a partir da sua função na

estruturação do sujeito, através do brincar e na sua relação com a direção do tratamento. Viu-

se como os diversos tempos de construção da cena lúdica coincidem com os tempos de

constituição do sujeito, segundo o modo como ele se separa do Outro, num exercício que

envolve a alienação e progressiva separação do Outro. Em relação à direção do tratamento,

observou-se que esta ocorre em torno da construção da fantasia fundamental, pois já na obra

freudiana fica claro o percurso da análise, ao partir da interpretação do sintoma para

desvendar a fantasia que lhe dá sustentação.

No caso da clínica com crianças, Lacan defende que é necessário para a adequada

condução do tratamento, que sejam tomados em consideração as dimensões do gozo e do

objeto “a”, concepções que derivam da compreensão da relação da criança com a mãe. Para o

autor, a sexualidade feminina impõe à mulher uma condição de ter que se dividir entre o

desejo e a maternidade, o que não se dá sem efeitos para a criança. Daí a relevância como

visto, de ouvir a mãe para localizar o lugar que o filho ocupa em sua fantasia, tendo em vista

que há uma tendência da mulher a tomar a criança como objeto “a”, tamponando sua falta, o

que levou Lacan a afirmar que a relação entre mãe e filho é propensa à perversão, diferente do

que se passa com o pai.

Quanto ao brincar, notou-se que, desde as acepções de Freud e Lacan, não há uma

equivalência deste a uma técnica. O brincar é discurso a decifrar, revelando as formações do

inconsciente do sujeito. Foi isso que se procurou evidenciar com os dois casos clínicos

apresentados, nos quais a criança é tomada em função de sua fala, de suas produções, seja

pela palavra ou pelo brincar enquanto ato, não como método adaptado à mente infantil.

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Longe de se encerrar as possibilidades de trabalho na clínica com crianças, o que

se buscou demonstrar na presente pesquisa, foi a relevância de conhecer os fundamentos da

psicanálise, estabelecidos em termos de sintoma e fantasia, para que se pudesse definir se

realmente há especificidades na abordagem da criança. Acredita-se que essa pesquisa não

esgota as possibilidades de compreensão do trabalho analítico com a criança. Ao contrário,

propõe questionamentos e indica dificuldades que aguardam futuras resoluções.

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