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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA Luiz Carlos Pinto da Costa Júnior REFLEXIVIDADE E ACELERAÇÃO: AS ESTRATÉGIAS RACIONAIS DE SOBREVIVÊNCIA O caso dos profissionais do pólo de informática do Recife Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Sociologia, sob a orientação do Professor Doutor Jonatas Ferreira. Recife 2005

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO …€¦ · Professor Doutor Jonatas Ferreira. ... David Harvey e Anthonny Giddens. ... Paul Virilio (1996, 1994) e Jean Baudrillard (1997)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

Luiz Carlos Pinto da Costa Júnior

REFLEXIVIDADE E ACELERAÇÃO: AS ESTRATÉGIAS RACIONAIS DE SOBREVIVÊNCIA

O caso dos profissionais do pólo de informática do Recife

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Sociologia, sob a orientação do Professor Doutor Jonatas Ferreira.

Recife 2005

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SUMÁRIO RESUMO..............................................................................................................01 1 INTRODUÇÃO.................................................................................................05 2 MARCO TEÓRICO......................................................................................11 2.1 CENÁRIO TEÓRICO.....................................................................................13 2.2 O PROTÓTIPO DO TRABALHADOR PÓS-INDUSTRIAL........................23 2.3 SOCIEDADE DE RISCO E FLUIDEZ..........................................................32 2.3.1 SOCIEDADE DE RISCO..........................................................................32 2.3.2 MIDIATIZAÇÃO, DERRELIÇÃO E DESAMPARO..............................38 2.4 A REFLEXIVIDADE E SEUS DUPLOS.......................................................45 2.4.1 O ESPELHO RADICAL............................................................................45 2.4.2 DESENCAIXE..........................................................................................47 2.4.3 CONHECIMENTO E INFORMAÇÃO DESENCAIXADOS.................50 2.4.4 SISTEMAS ESPECIALISTAS.................................................................54 2.4.5 REFLEXIVIDADE COGNITIVA E REFLEXIVIDADE ESTÉTICA....59 3 METODOLOGIA..........................................................................................61 3.1 A FENOMENOLOGIA DE ALFRED SCHUTZ – CONCEITOS BÁSICOS....................................................................................62 3.1.1 EXPERIÊNCIA VIVIDA E CONSCIÊNCIA..........................................62 3.1.2 CONDUTA, AÇÃO CONSCIENTE E MOTIVAÇÃO............................65 3.1.3 CORRENTE DE CONSCIÊNCIA............................................................70 3.1.4 ATRIBUINDO SIGNIFICADO À CONDUTA.......................................73 3.2 A CONTRIBUIÇÃO DE MAX WEBER.......................................................74 3.2.1 CONDUTA SUBJETIVAMENTE SIGNIFICADA.................................74 3.2.2 TIPOS DE RACIONALIDADE E DE AÇÃO..........................................76 3.3 O TRABALHO DE DESENVOLVIMENTO DE SOFTWARES E A ATRIBUIÇÃO DE SENTIDO À AÇÃO – A RAZÃO DE ESCOLHER A FENOMENOLOGIA......................................................................................82 3.4 A ESCOLHA DAS EMPRESAS....................................................................87 3.5 ENTREVISTA.................................................................................................89 4 CAMPO DE ESTUDO..................................................................................93 4.1 CARACTERIZAÇÃO DO PÓLO DE INFORMÁTICA...............................93 4.2 CARACTERIZAÇÃO DOS PROFISSIONAIS ENTREVISTADOS............97 4.2.1 DESENVOLVEDORES...........................................................................98 4.2.2 GERENTES..............................................................................................102 4.2.3 DIRETORES E EXECUTIVOS................................................................103 4.3 RESULTADOS DE CAMPO..........................................................................104 4.3.1 OS DESENVOLVEDORES, A OBSOLESCÊNCIA E A INSEGURANÇA............................................................................................105 4.3.2 SOLUÇÕES...............................................................................................115 4.3.3 OS GERENTES E A BUSCA PELA SERENIDADE CONCRETA........123 4.3.4 SOLUÇÕES................................................................................................130 4.3.5 OS EXECUTIVOS E O PRAGMATISMO ACELERADO......................135

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4.3.6 SOLUÇÕES................................................................................................139 4.3.7 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................140 5 CONCLUSÃO.....................................................................................................145 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................152 ANEXOS ................................................................................................................158

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AGRADECIMENTOS

Quero agradecer a todos os que acreditaram nesse trabalho e que de alguma

forma contribuíram para que ele fosse realizado.

Minha família, que me deu o apoio necessário

A meu orientador, Jonatas Ferreira

Aos amigos inestimáveis

A Deus.

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Resumo

Este trabalho é resultante de uma pesquisa que busca identificar estratégias de

reflexividade em oposição a processos de desorientação, ansiedade e descentramento

provocados por intensa carga de trabalho, por aceleração e por problemas contingentes

de ordem técnica entre profissionais envolvidos com a criação de programas de

computador na cidade do Recife. Esse é o conjunto de desafios aos quais são

submetidos homens e mulheres que desenvolvem softwares. Quisemos saber como

essas pessoas pautam suas ações, projetos e expectativas pessoais e profissionais no

sentido de estabelecer padrões de vida mais harmoniosos entre demandas de ordem

privada e obrigações vinculadas à ordem do trabalho. Nosso objetivo mais específico,

ao identificar tais estratégias de reflexão, é analisar a maneira como demandas de

ordem subjetiva se relacionam com prioridades de ordem técnica, estabelecendo tipos

de ação e associações com diferentes tipos de racionalidade.

O contexto em que os profissionais do software (engenheiros, programadores,

analistas de sistemas, designers, administradores) atuam é caracterizado pelo

capitalismo globalizado, extensamente discutido por autores como Daniel Bell, Manuel

Castells, David Harvey e Anthonny Giddens. A existência de redes de relacionamento

que ajudam a caracterizar essa sociedade é de importância vital para compreender o

relacionamento entre empresas, instituições públicas, mercado consumidor de bens e

serviços, instituições de ensino e pesquisa. O ambiente de trabalho – as fábricas de

software – são instituições que concorrem em iguais condições com empresas do

mundo inteiro. Por isso mesmo, os processos de trabalho nas fábricas de software são

marcados pela forte necessidade de atualização do conhecimento usado na execução de

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tarefas, o que força a busca incessante por atualização desse conhecimento, de forma

acelerada, contingente e ininterrupta.

No fim da análise, verificamos que fatores de ordem subjetiva se associam a

fatores de ordem prática e funcional na composição de processos de auto-reflexão, de

onde evoluem críticas ao sistema de aprendizado, de execução do ofício de

desenvolvimento de softwares, além de valores pessoais e profissionais. O resultado é

que as prioridades pessoais e profissionais são realinhadas em função de vivências

subjetivas e valores, determinando soluções para ansiedade, perda de capacidade de

autodeterminação e risco. As soluções são baseadas na busca por experiências pessoais

e formas de trabalho nas fábricas de software que se oponham à condição de

insegurança vivida pontualmente no trabalho de desenvolvimento, nas atribuições dos

gerentes e nas responsabilidades dos executivos e empresários das empresas focadas.

A sistematização desse resultado foi colocada em tabelas que podem ser encontradas

no apêndice desse trabalho.

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Abstract

This study aims at identifying reflexivity strategies in contrast to disorientation,

anxiety and descentring processes made for intense workdays, acceleration and

contingent problems of technical order among professional working with compute

programs in the city of Recife.

This is a set of challenges to which are submitted men and women who develop

software. We intended to know how these people plan their action, projects and private

and professional expectations in order to establish more harmonious standard of life

considering personal and working demands.

Thus, our objective, once identified reflexivity strategies, is to analyze how

subjective demands are interrelated with technical priorities, establishing types of

action and association with different kinds of rationality.

The context where the software professional (engineers, programmers, system

analysts, designers, business administrators) work is characterized by the globalized

capitalism is extensively discussed by authors like Daniel Bell, Manuel Castells, David

Harvey, Anthonny Giddens, among others. The existence of a relationship network

which helps to characterize this society is of great importance to understand the

relation among firms, public institutions, consumer market of goods and services,

educational and research institutions. The working environment – the software plants –

are institutions which compete in equal conditions with firms worldwide. The work

process in software plants has the strong necessity of knowledge actualization applied

to accomplish jobs. This demands a nonstop knowledge actualization, in an

accelerated, contingent and continuous fashion.

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We have found out that subjective features interrelate with practical and

functional ones in the auto-reflexivity process composition, from which develop

criticism to the learning system, of execution of the developing software job, apart

from private and professional values.

As a result, the private and professional priorities are rearranged in relation

with subjective experiences and values, determining solutions to anxiety, auto-

determination capability loss and risk. The solutions are based on personal experiences

and ways of working in software plants which are in opposition to insecure conditions

experienced in the development work, in the manager obligations and in the executive

and employer responsibilities in the focused firms.

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1. Introdução e justificativa

O aumento da participação das tecnologias de informação e comunicação (TIC)

na oferta de produtos e serviços a vários segmentos da sociedade fez surgir nos últimos

anos uma categoria profissional muito especial. São os chamados profissionais do

software – analistas de sistemas, programadores, especialistas em segurança de dados,

webdesigners, engenheiros de software, cientistas da computação, administradores de

empresas especializados no setor, entre outros. Tais profissionais trabalham sob o peso

da obsolescência de informação e mesmo de formação – a mudança das competências

que lhes garante empregabilidade. Essa característica marca a dinâmica tecnológica e

as relações de trabalho na sociedade contemporânea. Mais que isso, o trabalho requer a

revisão constante de processos e de conhecimento gerados por esses próprios processos

e conhecimentos.

Em Pernambuco, todavia, os números indicam que, em 2003, as empresas de

tecnologia da informação e comunicação representaram 3,49% do Produto Interno

Bruto total do Estado. Isso representou uma taxa de crescimento em relação ao ano

anterior de 5,23%. Em termos financeiros, esse crescimento representou um valor

global de R$ 1,367 bilhão. O PIB de Pernambuco, nesse mesmo ano de 2003, foi de

R$ 36,5 bilhões, com um crescimento de 4% em relação ao ano anterior (2002).

O PIB devido somente às atividades de tecnologia da informação no ano de

2003 foi estimado em R$ 408,21 milhões – com taxa de crescimento de 6,83%. O

somatório de riquezas produzidas pelas empresas de tecnologia da informação

participa com 29,85% no setor (que inclui ainda as empresas de comunicação). A

participação das empresas de TI é de 1,04% no PIB do Estado. Se levarmos em conta

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as empresas do setor de tecnologia da informação e comunicação (portanto, incluindo

as empresas de telefonia), a participação do setor de TIC no PIB sobe para 3,49%.

A participação da produção de riquezas devida ao setor de tecnologia da

informação e comunicação na economia do Estado é, portanto, pequena. O que é

consistente é o fato de a taxa de crescimento ser mais elevada que os índices de

crescimento do Estado, revelando a dinâmica desse segmento. Esses dados foram

mostrados no estudo Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado de

Pernambuco, coordenado pela Agência Estadual de Planejamento e Pesquisas de

Pernambuco (Condepe/Fidem) e divulgado no mês de abril de 2005.

A importância da investigação realizada neste trabalho está ligada à forte

influência das TICs, nos últimos 40 a 50 anos, não obstante a relativamente pequena

relevância que esse conjunto de atividades produtivas tem atualmente na economia

pernambucana. A TIC está, hoje, na base dos setores de serviços, indústrias e

comércio. Pode-se dizer que o exercício competitivo dessas atividades depende da

utilização de novas tecnologias da informação e da necessidade de um profissional

adequado para operar tais mecanismos produtivos. Além disso, os profissionais do

software representam paradigmaticamente o trabalhador da sociedade contemporânea

cujo trabalho está cada vez mais vinculado à tecnologia. Este estudo, portanto, se

propõe também a contribuir para a compreensão de uma importante partição do

mercado de trabalho atual.

Os profissionais do software fornecem os recursos que permitem a conexão

entre pessoas, criam produtos e prestam serviços em que a tecnologia da informação e

comunicação é o principal suporte, desenvolvendo, enfim, soluções e programas que

melhoraram a vida no dia-a-dia das cidades contemporâneas – sistemas de pagamento

a distância, redes de compensação bancária, estruturas de comutação de dados

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aplicáveis dos sistemas de semáforos às redes de comunicação das operadoras de

telefonia, aplicações de pagamento usadas pelo comércio, estruturas de segurança

virtual para dados de empresas e crédito e bancos virtuais, e muitas outras. Tudo

parece demandar a expertise desses profissionais.

A procura por tais serviços e produtos, a forte concorrência entre vários centros

de excelência mundial, a flexibilização da produção que potencializa essa concorrência

(já que o trabalho pode ser realizado de qualquer ponto do globo) e a obsolescência de

tecnologias, de ramos do setor e de conhecimento criam instabilidade, ansiedade e

risco associados ao trabalho. Esse quadro é ainda pontuado por aceleração, velocidade

e descentramento do sujeito. Perguntamo-nos se é possível desenvolver estratégias de

ação e de pensamento que permitam a superação dessa condição de fragilidade e de

que forma elas eventualmente acontecem.

As ações dos sujeitos nessas situações vêm sendo discutidas por autores como

Paul Virilio (1996, 1994) e Jean Baudrillard (1997). A perspectiva desses autores é de

impossibilidade do desenvolvimento de mecanismos que permitam o controle da vida.

Virilio traça um panorama em que a vivência baseada na velocidade e na aceleração é

uma inevitabilidade típica das sociedades contemporâneas e, sob o signo do

deslocamento, esboça um quadro em que o aparato técnico-racional e a lógica da

aceleração exercem um assalto permanente ao mundo natural e à natureza do homem.

Virilio (1996) acredita na impossibilidade da intervenção consciente sobre o

fluxo de acontecimentos ao longo da vida pelo sujeito contemporâneo. As ações dos

indivíduos, para Virilio, não são amparadas por reflexão. O homem está abandonado às

pressões para responder ao imediatismo pontual, longe da dúvida e da hesitação. Para o

autor, o horizonte da experiência humana perde seu limite diante da virtualidade

maquínica, a informação constantemente em movimento se sobrepõe à realidade do

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acontecimento. As regras da política, de desenvolvimento, da ação ordinária são

fundamentadas na superação do tempo, na velocidade, e na superação do espaço, na

técnica.

Uma forma diferenciada de analisar a modernidade vem sendo construída por

Anthony Giddens, Scott Lash e Ulrich Beck, na qual estratégias de ação consciente do

indivíduo sobre o mundo podem ser pautadas por auto-reflexão. Auto-reflexão que está

a serviço do controle do indivíduo sobre sua vida, da redução de riscos e de

insegurança oferecidas pelo trabalho, pelas regras sociais e políticas, pelo desequilíbrio

ecológico, pela aceleração e obsolescência da informação. A reflexividade, nesse

sentido, é vista como uma categoria de autodeterminação individual, pela qual o

sujeito enfrenta as ameaças psíquicas e sociais, mantendo níveis razoáveis de ordem e

estabilidade. A auto-reflexividade acontece quando a ação reflete-se sobre si mesma:

os indivíduos, baseados em informações a respeito de suas ações e em sua vivência,

desenvolvem sentidos sobre essa ação, que sofre novas alterações em virtude desses

novos sentidos atribuídos. Esse processo acontece de forma crônica e contínua.

Para Giddens (1991), os processos de auto-reflexão são influenciados por

amplos campos de conhecimento técnico – os indivíduos passam a confiar nos

chamados sistemas especialistas como a psicologia, a psicanálise, e mesmo a

sociologia, para organizar narrativas de vida na busca por equilíbrio e felicidade. Scott

Lash (apud BECK, 1997) salienta a existência de outra ordem de auto-reflexão, não

cognitiva, mas que pode ser influenciada pela estética, por um momento estético ou

uma fonte estética. Lash indica que essa dimensão da auto-reflexividade é a base para

uma nova ética, situada e contingente, que comanda o ajuste do indivíduo descentrado

à aceleração.

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Nossa atenção esteve voltada aos processos de auto-reflexividade dos

profissionais do software e à sua relação com as atribuições desenvolvidas nas fábricas

de software. Fizemos uma verificação empírica da aplicabilidade dos pressupostos da

teoria da modernização reflexiva. Perguntamo-nos em que medida as categorias

estanques e opostas de auto-reflexividade são suficientes para a compreensão da ação

dos indivíduos analisados e das demandas afetivas e técnico-racionais que os

envolvem.

Esta não é exatamente uma dissertação focada na área de sociologia do

trabalho, mas uma tentativa de analisar os efeitos da tecnologia da informação sobre a

ação dos indivíduos e as ordens de relevâncias que afetam as prioridades profissionais

e subjetivas desses indivíduos. Além disso, procuraremos entender como se opera a

relação entre um campo e outro da vida dos profissionais do software. A investigação

realizada procurou identificar estratégias de ação e ordenamento de prioridades que

pudessem superar essa ordem de risco e de instabilidade vivenciada. Procuramos ainda

descrever os mecanismos cognitivos e subjetivos envolvidos nas assim chamadas

estratégias de reflexividade.

No primeiro capítulo, é feita uma análise do contexto teórico formado pela

teoria pós-industrial segundo Daniel Bell, David Harvey e Krishan Kumar, bem como

as críticas de Manuel Castells. Revisitamos os conceitos de sociedade da informação e

sociedade em rede desse mesmo pensador. Consideramos nesse capítulo também o

trabalho de Jean Baudrillard e Paul Virilio acerca da sociedade contemporânea e

apresentamos a teoria da modernização reflexiva segundo Anthony Giddens, Ulrich

Beck e Scott Lash. O capítulo ainda contém uma abordagem sobre o modelo do

trabalhador pós-industrial tal como visto por Eliot Freidson.

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O segundo capítulo foi reservado para a explanação dos fundamentos

metodológicos que pautaram as entrevistas e a análise das informações qualitativas

recolhidas. São apresentadas a fenomenologia desenvolvida por Alfred Schutz e a

tipologia da ação sistematizada por Max Weber, bem como a maneira pela qual essas

duas contribuições foram úteis na análise dos resultados. Como o nosso problema

central diz respeito à compreensão da maneira pela qual o indivíduo descentrado pela

aceleração tecnológica produz sentido e age reflexivamente diante de transformações

constantes em seu “ambiente”, essa escolha metodológica pareceu natural. O capítulo

também detalha os critérios de escolha das empresas onde trabalham os profissionais

do software entrevistados e a entrevista semi-estruturada aplicada.

No terceiro capítulo analisamos as informações recolhidas com três estratos de

profissionais das fábricas de software da cidade do Recife. Foram entrevistados

engenheiros, analistas de sistemas, designers e programadores envolvidos diretamente

com o trabalho de codificação de programas computacionais. Chamamos os

profissionais desse estrato de desenvolvedores. O segundo estrato, os gerentes, é

formado por analistas de negócios, administradores de empresas, economistas, que

comandam equipes e projetos. O terceiro estrato é formado por executivos e

empresários do setor. O último capítulo sintetiza análises realizadas ao logo de todo o

trabalho.

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2. Marco teórico

A principal base teórica utilizada para nos guiar na investigação realizada é

formada pela teoria da modernização reflexiva, desenvolvida por Anthony Giddens,

mas que também recebeu importantes colaborações de Scott Lash e Ulrich Beck. A

razão da escolha dessa teoria ficará clara mais à frente. Antes, porém, de mostrar como

a teoria da modernização reflexiva tornou possível a análise do trabalho dos

profissionais do software – assim como permitiu ampliar as hipóteses previamente

consideradas –, é necessário dar alguns passos iniciais.

Precisamos considerar o contexto de transformações sociais que impactaram e

continuam tendo reflexos na estrutura ocupacional e do emprego. Essas transformações

vêm sendo analisadas por diversos autores nas últimas décadas, e a contribuição desses

pensadores criou um contexto teórico e sociológico que tem de ser levado em

consideração. Tais mudanças são verificadas nas formas de produção de riquezas e nos

modelos de produtividade, em particular, e na economia de uma forma geral; na

posição que o conhecimento adquiriu na sociedade e na relação das pessoas com a

ciência.

Esse contexto amplo de transformações pode ser visto na passagem de uma

sociedade industrial para uma sociedade pós-industrial (BELL). Também faz parte do

contexto teórico que tenta explicar o mundo contemporâneo a idéia de que vivemos em

uma sociedade pós-fordista, para uns (PIORE e SABEL), e pós-moderna (BAUMAN;

LASH; HARVEY), para outros. E há as abordagens teóricas nas quais se vê a

passagem de uma sociedade da modernidade simples para a modernidade reflexiva

(GIDDENS, BECK). Ou ainda as teorias que salientam a existência de uma sociedade

da informação (NAISBITT; VIRILIO; BAUDRILLARD; LEVY; CASTELLS).

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A consideração desse amplo espectro teórico é necessária porque ela prepara o

entendimento dos impactos no trabalho, das dificuldades de autodeterminação pessoal

e de ação crítica na vida. Muitas dessas transformações sociais são colocadas numa

perspectiva de crise social e de valores que permeiam a ação dos indivíduos. Elas são

vistas como fatores de perda da capacidade que os sujeitos têm para controlar o

ambiente social em que vivem e ainda colocam em risco as possibilidades dessa

autodeterminação dos indivíduos, a perda de segurança, do controle da vida, de

colonização do futuro.

É nesse sentido que a teoria da modernização reflexiva revela que as

possibilidades de autodeterminação e mesmo da crítica a esse sistema são possíveis,

como também a forma como essa capacidade se expressa. A reflexividade apontada

por Anthony Giddens é uma categoria moderna da autodeterminação individual e

também institucional, fruto do próprio desenvolvimento da modernidade.

O que propomos com este trabalho é investigar em que medida e de que forma

os trabalhadores envolvidos no desenvolvimento de softwares desenvolvem estratégias

de autodeterminação, de crítica ao sistema, de separação do ambiente produtivo das

demandas privadas – ou seja, em que medida e por quais meios as estratégias de

reflexividade são desenvolvidas.

O contexto social já foi apontado. O contexto teórico, multifacetado e por vezes

contraditório, que será exposto em seguida, é formado por maneiras diferenciadas de

tentar compreender a sociedade contemporânea. É dessa constatação que surge a

necessidade de abordarmos a teoria pós-industrial, a teoria da sociedade da

informação, a teoria pós-fordista e a escola de pensadores que classificam como pós-

moderna a contemporaneidade.

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2.1 Cenário teórico

O lugar central da informação e do conhecimento no funcionamento das

fábricas de software, as relações de produção envolvidas, o formato de tarefas e a

flexibilidade dos processos de trabalho aproximam os profissionais do software, e seu

ofício, dos modelos teóricos que tentam descrever e interpretar o mundo

contemporâneo a partir da perspectiva pós-industrialista. O trabalho do

desenvolvimento de softwares é classificado, dentro da teoria pós-industrial, como

pertencendo ao setor de serviços.

Daniel Bell (1977) é a referência mais básica e fonte inevitável de análise e

interpretação daquilo que se convencionou chamar de sociedade pós-industrial.

Essencialmente, a teoria pós-industrial clássica prevista e analisada por Bell prevê três

grandes mudanças na ordem econômica mundial: 1) a principal atividade econômica

da sociedade industrial, caracterizada pela produção de bens, perderia sua hegemonia e

migraria para outro modelo, de prestação e serviços. O setor de serviços se constituiria

como a maioria esmagadora da oferta de emprego. O declínio do emprego industrial

viria depois do fim do emprego rural. Assim, uma economia seria tanto mais avançada

se sua produção e oferta de emprego estivessem vinculadas ao setor de serviços; 2) a

origem do crescimento e da produtividade da economia é o conhecimento; 3) as

profissões especializadas, que gerenciam grande conteúdo de informação, vinculadas a

conhecimento técnico, ganham uma importância jamais obtida anteriormente. Tais

profissões administrativas, especializadas e técnicas redefinem a estrutura social dessa

nova economia (BELL, 1977, 35).

Vale a pena examinar mais de perto cada um desses três aspectos. Os fatores

essenciais da teoria de Bell, articulados, resumem a idéia de que o nível mais

fundamental da sociedade é alterado: inicia-se um novo modo de produção, a fonte de

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criação de riqueza e os fatores determinantes deixam de ser a indústria de bens e a

agricultura. O trabalho e o capital, as variáveis básicas da sociedade industrial, são

substituídos pela informação e pelo conhecimento como fontes de produção de

riqueza.

A queda do trabalho industrial seria acompanhada pelo aumento do peso dos

serviços no conjunto dos ocupados. Principalmente dos serviços nos novos setores –

com uma concentração especial em atividades ligadas a conhecimento. Para Bell,

existem várias classes de serviço. A classe de serviços pessoais é formada por lojas

varejistas, lavanderias, garagens, salões de beleza, entre outros. Os serviços de

negócios são aqueles oferecidos por bancos, área de finanças, negócios com imóveis e

seguros. Há ainda toda a classe de serviços de transportes, comunicações e empresas

de utilidade pública. Os serviços de saúde, educação, pesquisa e aqueles oferecidos

pelos governos determinam o desenvolvimento da sociedade pós-industrial, além de

criar uma nova “intelligentsia”.

Essa seria a razão pela qual o número de trabalhadores dedicados ao trabalho

em escritórios e com nível superior de formação teria aumentado nos últimos anos.

Essa é outra forma de caracterizar a sociedade pós-industrial. O trabalho exige uma

capacitação técnica inédita e se verifica um crescimento do número de cientistas e

engenheiros maior que o crescimento de trabalhadores industriais. Em termos práticos,

esse fenômeno geraria a primazia do conhecimento teórico (BELL, 1977, p. 66).

Acontece a primazia da teoria sobre o empirismo e a codificação do conhecimento em sistemas abstratos de símbolos que, a exemplo de todo sistema axiomático, podem ser utilizados para esclarecer muitas áreas de experiência diferentes (BELL, 1977, p. 87).

A união da ciência, da tecnologia e da economia pode ser resumida com o

termo “pesquisa e desenvolvimento”: “A sociedade pós-industrial é uma sociedade de

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informação, como a sociedade industrial é uma sociedade produtora de bens” (BELL,

1977, p. 467). Foi desse amálgama que resultaram as indústrias calcadas na ciência que

dominam cada vez mais o setor industrial da sociedade e que indicam o rumo das

sociedades pós-industriais. Os progressos num determinado campo, assim, dependem

cada vez mais da primazia do trabalho teórico, que codifica o que já é conhecido e

aponta o caminho para a confirmação empírica. As universidades, organizações

destinadas à pesquisa e as instituições intelectuais, onde o conhecimento teórico é

codificado, se transformam em estruturas axiais da sociedade pós-industrial.

A teoria da sociedade pós-industrial foi formulada nas décadas de 1960 e 1970.

Kumar (1997) explica que, naquele momento, ela foi reflexo de um estado de crise e

de necessária mudança na estrutura do emprego e da oferta de serviços. Bell deixa isso

claro ao explicar que a sociedade industrial exigiu o desenvolvimento de transportes e

de utilidades públicas que tornassem possível a veiculação de bens produzidos. Esse é

um dos componentes do aumento da categoria de serviços para operacionalizar essa

veiculação. A conseqüência imediata é o aumento da força de trabalho que não está nas

fábricas, mas que cuida de todo arranjo burocrático da infra-estrutura de transportes e

de utilidades públicas existentes nas cidades contemporâneas.

Há ainda outros fatores para o crescimento da massa de trabalhadores no setor

de serviços. O consumo de massa, consolidado na era industrial, criou a demanda por

seguros e modalidades de aplicações e outros produtos financeiros – todos

caracterizados como serviços. Foi também o consumo de massa na sociedade industrial

que levou ao interesse por artigos pessoais, produtos de luxo e lazer. Assim, aparecem

os serviços ligados a hotéis, restaurantes, centros de beleza e de compras, cuidados

com o corpo (cosméticos), viagens de turismo e centros de diversão.

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Bell considera que o surgimento da sociedade pós-industrial também é marcado

por cobranças, realizadas pela sociedade, daquilo que a modernidade prometeu:

educação e saúde. No que se refere à saúde, as tentativas de eliminação de doenças, o

desenvolvimento de técnicas que aumentem a longevidade das pessoas e os

investimentos em serviços sanitários e em escolas de saúde teriam contribuído também

para a consolidação do setor de serviços técnicos. No que se refere à educação, as

exigências de habilidades técnicas são cada vez maiores, pois condicionam a entrada

de pessoas, instituições, empresas, países, na sociedade pós-industrial. Daí o reforço,

também nessa área do setor de serviços, com a oferta de serviços educacionais. O

aumento do número de trabalhadores no comércio, finanças, educação, saúde e

governos reflete e explicita o quadro de uma sociedade em que a produção de riquezas

não é mais guiada pela produção de bens na indústria.

As conclusões de Bell são tomadas com base em pesquisas realizadas por

Solow e Kendrick relativas à primeira metade do século XX nos Estados Unidos, no

auge da era industrial. Esse detalhe terá importância adiante, quando discutiremos as

críticas que recebeu a teoria do pós-industrialismo. Basicamente, a questão que se

discutirá é se a produtividade baseada em conhecimentos é específica da economia

informacional ou poderia ser verificada também na economia industrial clássica.

Por enquanto, precisamos nos deter mais um pouco nas conseqüências teóricas

do conceito de sociedade pós-industrial. Tal conceito se desdobrou, a partir do estudo

de Bell, em diversos outros, que buscam caracterizar a natureza das sociedades

contemporâneas. A continuidade mais evidente em relação à teoria pós-industrial é a

interpretação da sociedade moderna como uma sociedade da informação – Daniel Bell

é, também, seu expositor mais importante (KUMAR, 1997).

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Kumar, aliás, identifica as teorias da sociedade da informação, do pós-fordismo

e do pós-modernismo como originadas na concepção pós-industrialista de sociedade.

Essa interpretação, no entanto, não é completamente aceita e recebe importantes

críticas de pensadores como Manuel Castells, como se verá mais adiante.

Nesse caminho de interpretação da sociedade, a informação designa a

sociedade pós-industrial (KUMAR, 1997). A premissa básica é que o conhecimento e

a informação estão se tornando os recursos estratégicos e os agentes transformadores

da sociedade pós-industrial. Em sintonia com esses pensadores, Bell (1980) afirma que

na sociedade pós-industrial o conhecimento é fonte de valor e ganha mais força com o

desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação. A chamada revolução

informacional da produção é considerada, por seus teóricos, como a terceira revolução

industrial. Revolução que coloca a informação no centro da produção, como recurso

estratégico e agente transformador dessa sociedade pós-industrial: a geração de

riquezas passa a ser baseada na capacidade de produção, gerenciamento e transmissão

de informação e conhecimento necessários para as pessoas, fábricas, economias e

países inteiros funcionarem, se comunicarem e produzirem.

O conceito de sociedade de informação ajusta-se bem à tradição liberal, progressivista, do pensamento ocidental. Mantém a fé do Iluminismo na racionalidade e no progresso. Na medida em que o conhecimento e seu acúmulo são equiparados a maior eficiência e maior liberdade, essa opinião, a despeito de seus pronunciamentos favoráveis a uma mudança radical na organização social, dá prosseguimento à linha de pensamento iniciada por Saint-Simon, Comte e os positivistas (KUMAR, 1997, p. 15).

A analogia com os tipos de energia e os recursos mecânicos que impulsionaram

o modo de produção industrial é corrente entre os teóricos da sociedade da informação:

a tecnologia do computador é para a era da informação o que a mecanização foi para a

revolução industrial. O que teria gerado a sociedade da informação seria a

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convergência entre o computador e as telecomunicações. Segundo Bell (1980), foi essa

união que tornou possíveis satélites, televisão, telefone, cabos de fibra ótica e o

conseqüente sistema global de conhecimento e informação disponível (BELL, 1980, p.

513).

O acesso à informação, bem como o seu controle, aliados a uma forte capacidade de análise instantânea de dados, tornou-se essencial à coordenação centralizada de interesses corporativos descentralizados. A capacidade de resposta instantânea a variações das taxas de câmbio, mudanças das modas e dos gostos e iniciativas dos competidores tem hoje um caráter mais crucial para a sobrevivência corporativa do que teve sobre o fordismo. A ênfase na informação também gerou um amplo conjunto de consultorias e serviços altamente especializados capazes de fornecer informações quase minuto a minuto sobre tendências de mercado e o tipo de análise instantânea de dados útil para as decisões corporativas. Ela também criou uma situação em que vastos lucros podem ser realizados com base no acesso privilegiado às informações, em particular nos mercados monetários e financeiros (HARVEY, 2004, p. 151).

Essa nova esfera de informação que se estabelece e caracteriza a sociedade da

informação opera em um contexto global, tanto para indivíduos como para instituições,

empresas, governos: uma rede eletrônica mundial de bibliotecas, arquivos e bancos de

dados surgiu e pode ser, pelo menos teoricamente, acessada de qualquer ponto da

Terra. O próprio Daniel Bell mostrou que as sociedades do passado foram basicamente

limitadas pelo espaço ou pelo tempo. Eram mantidas coesas por autoridade burocrática

e política, que tinha por base um território, e/ou pela história e pelas tradições.

O industrialismo legitimou o espaço na nação-estado, ao mesmo tempo em que substituía os ritmos e movimentos da natureza pelo ritmo da máquina. O relógio e os horários das estradas de ferro constituíam os símbolos da era industrial. Expressavam o tempo em horas, minutos, segundos. O computador, símbolo da era da informação, pensa em nanossegundos, em milhares de microssegundos. Junto à nova tecnologia das comunicações, ele introduz um marco espaço-tempo radicalmente novo na sociedade moderna (KUMAR, 1997, p. 23).

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O conhecimento se tornou, rapidamente, a atividade-técnica da economia e o

principal determinante da mudança ocupacional. David Harvey mostra que o

capitalismo encontrou novas formas de organização com a dispersão, a mobilidade

geográfica e as respostas flexíveis nos mercados de trabalho, nos processos de trabalho

e nos mercados de consumo, que são acompanhados por inovação tecnológica,

inovação dos produtos e inovação das instituições (HARVEY, 2004). E, nesse novo

quadro do capitalismo, a dupla articulação entre informação e conhecimento com

trabalho é fundamental.

O acesso ao conhecimento científico e técnico sempre teve importância na luta competitiva; mas também aqui, podemos ver uma renovação de interesse e de ênfase, já que, num mundo de rápidas mudanças de gostos e necessidades e de sistemas de produção flexíveis (em oposição ao mundo relativamente estável do fordismo padronizado), o conhecimento da última técnica, do mais novo produto, da mais recente descoberta científica, implica a possibilidade de alcançar uma importante vantagem competitiva. O próprio saber se torna uma mercadoria-chave, a ser produzida e vendida a quem pagar mais, sob condições que são elas mesmas cada vez mais organizadas em bases competitivas (HARVEY, 2004, p. 151).

Não é por acaso que vem crescendo, como já comentado acima, o número de

profissionais cujas atividades estão baseadas na informação – em sua manipulação,

tratamento, veiculação – e no conhecimento mais e mais efêmero. Para comprovar

isso, Bell utiliza os estudos de Marc Porat (1977) sobre o “setor primário da

informação” (indústrias de bens e serviços de informação comercializáveis). Ele

compara esses dados com os cálculos sobre o “setor secundário de informação”

(atividades de informação na estrutura técnica de empresas públicas e privadas que

contribuem de forma indireta para o produto, mas que não são consideradas serviços

de informação nos cálculos nacionais).

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Ele conclui nessa comparação que a economia da informação nos Estados

Unidos equivale a 46% do Produto Nacional Bruto (PNB) daquele país. E corresponde

a mais de 50% dos salários pagos – ou seja, mais da metade da renda nacional advém,

pela interpretação de Bell, do trabalho vinculado à informação. O estudo da situação

nos Estados Unidos feito por Bell é tomado como paradigmático do mesmo fenômeno

em uma escala global.

Mas as teorias pós-industriais baseiam-se em afirmações e previsões que,

segundo Castells (1999, p. 225), devem ser reexaminadas. Sua principal crítica se

refere à idéia de que as três concepções básicas dos pós-industrialismo sejam

homogêneas, a despeito da evolução histórica, e que essa evolução tenha-se dado de

forma única e generalizada, ocasionando a sociedade da informação. Nesse sentido,

Castells segue argumentando contra os pressupostos do modo de produção tomado por

pós-industrial. Sobre o pressuposto de que a fonte de produtividade e crescimento

reside na geração e administração de conhecimentos, escreve:

A distinção apropriada não é entre uma economia industrial e uma pós-industrial, mas entre duas formas de produção industrial, rural e de serviços baseadas em conhecimento [...]. Proponho mudar a ênfase analítica do pós-industrialismo [...] para informacionalismo. Nesta perspectiva, as sociedades serão informacionais, não porque se encaixem em um modelo específico de estrutura social, mas porque organizam seu sistema produtivo em torno de princípios de maximização da produtividade baseada em conhecimentos, por intermédio do desenvolvimento e da difusão de tecnologias da informação e pelo atendimento dos pré-requisitos para sua utilização (principalmente recursos humanos e infra-estrutura de comunicação) (CASTELLS, 1999, p. 226).

Ou seja, não existe uma economia pós-industrial, e sim um tipo diferenciado de

economia industrial baseada na produtividade máxima, dependente do conhecimento,

pela expansão e difusão das novas tecnologias de informação, atrelada à capacitação e

especialização da mão-de-obra e baseada numa infra-estrutura comunicacional. No que

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se refere à previsão de que a atividade econômica mudaria da produção de bens para a

prestação de serviços, de fato, o setor de serviços é responsável pela maior oferta de

empregos nas economias de primeiro mundo. No entanto, isso não deve ser

compreendido como indicativo de que o setor industrial esteja desaparecendo ou que o

vigor da atividade industrial não influencie o setor de serviços.

Castells lembra o trabalho de Cohen e Zysman (1987), no qual os autores

apregoam que, apesar da redução do peso da indústria no conjunto do emprego dos

países desenvolvidos (em favor das atividades de serviços), as atividades industriais

ainda comandam parcela bastante expressiva dos respectivos Produtos Internos Brutos

dos países industrializados, pois parte importante dos serviços criados está relacionada

às atividades industriais e depende diretamente delas.

O terceiro pressuposto da teoria do pós-industrialismo analisado por Castells se

refere ao aumento de profissionais com alto grau e domínio de informações, como

administradores profissionais especializados e técnicos, que representariam a elite na

nova configuração da estrutura do emprego. Castells afirma que, na realidade, o

crescimento da economia informacional também possibilitou a expansão de profissões

simples, sem qualificação especial requerida (1999, p. 227).

Mas a principal crítica de Castells se refere mesmo à idéia, presente na teoria

pós-industrial de Bell e de outros pensadores, de que essas três concepções alimentem

um caminho inexorável de todas as sociedades rumo ao modelo de sociedade pós-

industrial. Essa idéia implica que um mesmo processo histórico acontecerá de forma

generalizada em países diferentes, gerando globalmente essa sociedade informacional,

que é identificada com a teoria pós-industrial.

A revolução das novas tecnologias de informação e comunicação, cujo ápice se

deu na década de 1990, provocou grandes transformações nos processos de trabalho,

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introduzindo novas técnicas, alterando as relações de trabalho e fazendo emergir ao

mesmo tempo a organização de empresas conectadas em redes. Ao forte determinismo

inerente à teoria pós-industrial, Castells (1999) contrapõe o novo paradigma

informacional de trabalho e mão-de-obra, que, segundo ele, não é um modelo simples

e recebe influência da interação histórica entre as transformações tecnológicas, da

política das relações industriais e da ação social.

As novas tecnologias de informação e comunicação permeiam todas as teorias

que tentam interpretar a sociedade contemporânea. Aceite-se ou não a noção de uma

era pós-industrial, é correto afirmar que as novas tecnologias de informação e

comunicação determinam de forma mais ou menos regular, e em toda parte, novas

formas de vida. Trabalho, diversão, educação, relações familiares, aceleração e

estruturas de opiniões adaptam-se de forma gradual ou sucumbem às pressões, às

oportunidades das novas forças técnicas e às exigências por adaptação a um mundo em

alta velocidade (KUMAR, 1997, p. 49). E se a teoria da sociedade da informação

enfatiza as forças de produção, a teoria pós-fordista tenta analisar o mundo

contemporâneo em termos das relações de produção. A teoria pós-fordista também se

refere ao contexto de transformações.

O âmago da teoria pós-fordista é a idéia de especialização flexível, pois ela

combina as possibilidades abertas pelas novas tecnologias da informação e

comunicação com as mudanças na natureza do mercado consumidor. A velocidade das

mudanças na moda e nos estilos de vida, associada à inovação tecnológica, exige

alterações muito rápidas na produção, que só podem ser exercidas em função das

tecnologias utilizadas e com pessoal cada vez mais especializado para exercê-las.

O contexto econômico das teorias pós-fordistas é formado por um mercado de

massa fragmentado em uma grande diversidade de grupos de consumidores, que

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descartam padrões de consumo em busca de outros padrões de forma muito rápida. Por

outro lado, essa situação se ajusta aos interesses das empresas capitalistas no sentido

de procurar e encontrar novas maneiras de explorar e expandir mercados.

A tecnologia flexível dá origem à especialização flexível. Novas idéias podem ser de imediato transformadas em novos produtos, idéias mais novas em produtos ainda mais novos. A produção é feita segundo o gosto do freguês, adaptada a desejos e necessidades muito específicos, em um estado de mudança constante (KUMAR, 1997, p. 56).

Para atender às exigências do cliente em curto prazo, a produção não requer

fábricas de grande porte nem pode ser conduzida por trabalhador sem especialização –

típico da produção fordista. Essa especialização da produção e do consumo exige

perícia e flexibilidade tanto da máquina quanto do operador. A teoria pós-fordista

contribui com o perfil de um trabalhador que precisa atualizar suas especializações de

acordo com as relações de produção em que está imerso – relações essas que

dependem, progressivamente, das novas tecnologias de informação e comunicação. A

idéia geral desse trabalhador flexível será mais explorada no tópico seguinte.

2.2 O protótipo do trabalhador pós-industrial

O trabalhador típico da era industrial começou a ser conhecido com a

consolidação do modo de produção industrial. A organização das fábricas ampliou o

controle do empresário sobre o trabalhador. Criaram-se nas unidades fabris uma

hierarquia e uma ordem inexistentes no sistema doméstico e nas oficinas. A

observância dessa ordem estava ligada, principalmente, à autoridade financeira.

A noção de vinculação a um emprego é muito forte no modo de produção

industrial. Quanto mais tempo o trabalhador ficar em uma empresa, maiores são suas

chances de “fazer carreira” e menor a possibilidade de ser rompido o vínculo

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trabalhista. Os atributos técnicos básicos necessários à efetuação das tarefas diárias não

sofrem mudanças ao longo de toda a vida do profissional típico da economia industrial.

O perfil do trabalhador médio é constituído por indivíduos do sexo masculino, de baixa

escolaridade, formado ‘no chão de fábrica’, que trabalhava nas indústrias, diretamente

nas linhas de produção.

As mudanças nas relações de produção, que se aprofundaram na década de

1970, vêm alterando gradativamente esse quadro sucinto do perfil do trabalhador. Eliot

Freidson, observando o declínio do trabalho industrial e a ascensão dos trabalhadores

engajados principalmente nas atividades de escritório, de vendas e de serviços, se

propõe a responder à questão que nos interessa aqui: qual o arquétipo do trabalhador

na sociedade pós-industrial?

Salientando que, mesmo sem saber se o arquétipo do trabalhador da sociedade

pós-industrial existe de fato, Freidson cita as respostas de Bell (1968), Lane (1966) e

Etzioni (1968) a essas perguntas. Em uníssono, esses pensadores consideram que os

trabalhadores pós-industriais, em geral, praticam ofícios complexos, para os quais a

educação superior é considerada necessária.

Freidson cita o trabalho de John Kenneth Galbraith, que salienta o papel do

especialista que planeja e toma decisões – a palavra “tecnocrata” é muito utilizada por

esse pensador: são os engenheiros, economistas, analistas de sistema, administradores

com treinamento especial. Freidson chama a atenção para o papel do trabalhador de

serviços pessoais. São professores, médicos, assistentes pessoais, enfermeiras,

consultores ligados aos serviços assistenciais, psicológicos, médicos e funcionários do

welfare state (Estado de bem-estar social). Mas Freidson e nós ainda continuamos com

a mesma pergunta: qual o protótipo do profissional pós-industrial?

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Cada autor, quando trata da sociedade pós-industrial, tem em mente uma questão particular e por isso enfatiza um tipo de trabalhador e não outro. Embora todos os trabalhadores possam ser iguais no fato de possuírem uma educação superior, eles são educados em temas muito diferentes e por métodos bastante diferentes, realizam tipos de trabalho muito diversos e possuem tipos de responsabilidade muito distintos. A educação superior como tal, independentemente do seu currículo ou do trabalho para o qual ela prepara, não discrimina numa função diferenças analíticas tão básicas quanto as existentes entre administrador e trabalhador. Essa diferença é a chave para a compreensão da maneira como se organiza o trabalho (na sociedade contemporânea). E é a chave também para discernir como a sociedade pós-industrial pode diferir da sociedade industrial de maneira não reconhecida pelos que ressaltam o papel do conhecimento em abstrato, sem indagar como o conhecimento se organiza como trabalho (FREIDSON, 1998, p. 136. Grifo nosso).

Assim, Freidson diferencia o gerente e o trabalhador como meio de

compreender o protótipo do trabalhador que procuramos. Percebemos que a distância

entre essas duas categorias de cargo, na sociedade industrial, era delimitada pela

“autoridade”, que determina tarefas, emprega, treina, designa e supervisiona o

trabalhador. E este realiza as tarefas.

Freidson mostra que, na sociedade pós-industrial, essa relação clássica entre o

gerente e o trabalhador produtivo é posta em xeque no dia-a-dia das mais variadas

profissões. A autoridade é realinhada para facilitar as tarefas e a comunicação entre as

pessoas. Esse trabalhador pós-industrial adquiriu condições de opor-se a grande parte

da autoridade e do controle do administrador. Por um lado, isso acontece porque a sua

formação também é superior e, por outro, porque as tarefas desempenhadas não

dependem nem são criadas pelos administradores. São demandas do complexo que

forma o próprio trabalho.

Da mesma forma, as qualificações para realizar as tarefas não são definidas

exclusivamente pela administração. E, por fim, a avaliação da realização das tarefas

também não cabe exclusivamente à administração. Se antes a autoridade vinha da

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diferença de formação e do poder de conferir emprego, treinamento,

supervisionamento total e designação de tarefas de maneira unívoca, agora essa relação

se modifica. A autonomia se constitui como um elemento (e mesmo uma qualidade

necessária) do trabalhador pós-industrial e grande parte dessa relação antes

estabelecida com administrador/patrão/chefe/empresa se transfere para outras esferas.

No que se refere à capacitação, essas novas esferas estão ligadas ao treinamento

realizado fora da empresa, em áreas que não são, necessariamente, prioritárias para a

instituição empregadora. A escolha de um tipo de especialização acontece, para o

trabalhador pós-industrial desenhado por Freidson, também em função de seus

interesses individualmente definidos ou de suas expectativas de futuro – e não

necessariamente nascem do interesse em consolidar uma carreira na empresa em que

atua.

O sistema de treinamento e capacitação oferecido por outras instituições

adquire relevância tão grande, que talvez possa ser comparado aos sistemas formais de

certificação. A qualificação, assim, não é mais uma dádiva do empregador nem é

encontrada somente nas fontes tradicionais de formação da modernidade: as

universidades. Os centros de treinamento e capacitação específicos começam a ocupar

espaço.

Nesse sentido, o caso dos desenvolvedores de software é emblemático: o

desenvolvimento de habilidades para a criação de softwares está ligado a um sistema

que está além do administrador e de suas prioridades. Esse sistema se refere a novos

paradigmas computacionais, a novas linguagens ou ferramentas computacionais, a

requisitos técnicos do mercado empregador.

É daí que surge a necessidade de esses profissionais se adaptarem, treinarem, se

formarem e se reciclarem de forma mais autônoma e independente dos objetivos

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imediatos do empregador – embora essa independência não seja total, ela é relevante e

nova em relação ao trabalhador típico da produção industrial clássica.

Nem as tarefas nem o status desses trabalhadores pós-industriais parecem

sujeitos ao tipo de racionalização que foi aplicado pela administração ao trabalhador da

linha fabril na sociedade industrial. Na verdade, segundo Freidson, há uma crise na

racionalização e no controle administrativos. As competências estratégicas são de tal

natureza que resistem a essa racionalização administrativa. Todo esse contexto é o

pano de fundo em que se encontram os engenheiros de software e as fábricas onde

estes trabalham. Isso será tratado mais adiante.

A educação vocacional superior não apenas introduz “conhecimento” nas cabeças das pessoas, mas também constrói expectativas e compromissos que não são facilmente dominados pela racionalização política ou administrativa. Constroem-se identidades ocupacionais especializadas e organizadas. O conhecimento se institucionaliza como expertise. A estrutura de significados e compromissos pode sobrepujar as metas ou compromissos organizacionais (FREIDSON, 1998, p. 138).

Freidson chama a atenção para o fato de que o treinamento em competências

complexas e abstratas – competências baseadas em conhecimento – faz os

profissionais que recebem tal treinamento desenvolver compromissos

institucionalizados. Ocorre identificação com sua competência e com os companheiros

que receberam o mesmo treinamento. Essa identificação geraria uma solidariedade de

massa – parecida com a que se verificava entre os trabalhadores industriais em

sindicatos – e também uma solidariedade disciplinar (ocupacional).

Essa categoria de trabalhadores solidariamente vinculados não aceita ser tratada

como simples trabalhadores manuais para realizar quaisquer tarefas que a

administração possa inventar e depois treiná-los para exercê-las. Isso porque tais

profissionais pós-industriais são um tipo de mão-de-obra com competências

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preexistentes que podem ser necessárias à administração, mas que a administração

deve aceitar mais ou menos como dadas – já que elas não são, necessariamente,

fornecidas por essa administração. É daí que vem a resistência à simplificação, à

fragmentação, à mecanização ou a “algum outro modo de racionalização

administrativa do trabalho” (FREIDSON, 1998, p. 138).

Portanto, o que temos até agora é a convicção de que um novo tipo de trabalho

altamente instruído com competências especializadas se tornou importante nessa

sociedade pós-industrial. E essas competências se opõem a um tipo particular de

racionalização administrativa – que por sua vez delimitava o caráter da autoridade e da

estrutura corporativa formal.

A questão que se coloca, então, é especificar a natureza e a fonte de controle e

coordenação dos diversos tipos de trabalho especializado. Ou seja, o que organiza o

trabalho e como ele é coordenado. Freidson explica que, historicamente, a organização

social da divisão do trabalho se constituiu de duas maneiras: pela burocratização e pela

profissionalização.

O primeiro caso é típico da sociedade industrial de produção: o caráter da

tarefa, o sujeito a desempenhá-la, a própria tarefa e a capacitação são fornecidos pela

administração. O trabalhador e suas atividades são moldados à imagem e semelhança

da necessidade das concepções gerenciais para a produção de bens ou da oferta de

serviços. O recrutamento do sujeito acontece dentro da lógica de divisão do trabalho,

que é função da autoridade burocrática ou administrativa. A autoridade está na

administração, que coordena as relações entre as tarefas produtivas.

No segundo caso de organização social da divisão do trabalho, o sujeito que

realizará as tarefas, a maneira como isso acontecerá e os procedimentos de avaliação

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são controlados por quem efetivamente faz o trabalho produtivo. O trabalho é

organizado em ocupações especializadas que controlam suas próprias tarefas.

A autoridade necessária para a definição e organização de tarefas deriva dos

próprios trabalhadores. “A técnica sempre cria um tipo de sociedade secreta, uma

fraternidade fechada de seus praticantes”, afirma Ellul (1964, p. 162). Isso significa,

como o próprio Freidson aponta, que a autoridade é reivindicada e se realinha com a

posse de competência – em última análise, com capacitação, conhecimento.

Assim, Freidson explica seu ponto de vista: as fronteiras entre as tarefas

institucionalizadas, na sociedade pós-industrial, bem como a autoridade para coordenar

tarefas inter-relacionadas, são estabelecidas por jurisdições ocupacionais. Autoridade

essa que é fundada mais na expertise institucionalizada (reconhecida) que na

experiência do cargo burocrático – isso explicaria o fato de existirem tantos jovens

chefes envolvidos no trabalho de desenvolvimento de software aqui investigado. Mas

isso também é assunto para adiante.

Outra característica do trabalhador, na sociedade contemporânea, além dessa

dimensão da autoridade, é que o desempenho profissional é cada vez menos pautado

pelo cumprimento de tarefas prescritas. A performance profissional desses indivíduos

passa a ser associada ao cumprimento de “missões”. O critério de avaliação é a

capacidade de produzir mais, em menos tempo, maximizando os recursos disponíveis

para a realização do trabalho.

Os trabalhadores, assim, são chamados a intervir no processo, corrigindo erros,

resolvendo problemas que aparecem, negociando com colegas, superiores,

fornecedores e clientes. Novas habilidades são exigidas. Uma delas é justamente lidar

com as tecnologias de informação e comunicação, que pedem o domínio de códigos

abstratos e novas linguagens.

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Com relação aos conteúdos, entre estes novos requisitos estão não apenas conhecimentos técnicos, mas também – e talvez principalmente, como enfatiza boa parte da literatura – amplas habilidades cognitivas e certas características comportamentais e atitudinais, tais como: capacidade de abstração, de raciocínio, de domínio de símbolos e de linguagem matemática para a leitura de modelos e antecipação de problemas, aleatórios e imprevistos; iniciativa, responsabilidade, compromisso, cooperação, interesse, criatividade, capacidade de decisão, para o trabalho em equipe, para a visualização das regras de organização, das relações de mercado, etc. As qualificações dos trabalhadores não deveriam responder tanto ao trabalho prescrito, mas sim à imprevisibilidade. Nesse sentido, o saber construído no cotidiano do trabalho, a chamada “qualificação tácita” (Wood e Jones, 1984), que era negada pelo taylorismo, passa a ser então requisitado e valorizado (TARTUCE, 2002, p. 27).

Disposição para “aprender a aprender” em temporalidade contínua, ao longo da

vida, também passou a fazer parte do conjunto mínimo de qualidades desse

trabalhador, caracterizando-o. As mudanças nas prioridades institucionais e nas

relações de produção forçam a disposição para a flexibilidade. O trabalhador da

indústria e do setor de serviços é, necessariamente, mais escolarizado. Ele não tem a

garantia do emprego para toda a vida, tem menos interesse pela associação aos

sindicatos tradicionais. Além da pressão para aumentar a própria produtividade, sofre a

pressão por se capacitar e atualizar conhecimentos. Essas exigências ganham um

colorido a mais: a velocidade. A atualização de conhecimento necessariamente precisa

ser feita de forma rápida, dinâmica e não somente contínua. Da mesma forma, a

velocidade com que novas práticas do trabalho são geradas colabora com o clima de

incerteza e insegurança.

Em outras palavras, as noções de trabalho/emprego/segurança social, tratadas

quase como sinônimas, mudaram com o passar do tempo, em sintonia com a evolução

da sociedade e das condições da produção. O trabalhador contemporâneo convive com

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a ameaça do desemprego, da concorrência, de ser superado tecnicamente por outros

profissionais ou por novos processos de produção mecanizados.

O exercício dessas novas competências tem resultado, também, numa crescente

individualização das relações de trabalho, nas quais cada profissional passa a ser

remunerado pela quantidade de valor que agrega aos produtos e aos processos. O apelo

à aprendizagem contínua segue uma lógica em que as capacidades técnicas são

atualizadas a cada dia, em confronto com situações-problema apresentadas pela

realidade do trabalho (ADLER, 1987, p. 298). Desse modo, a noção de educação

concluída é substituída pela educação permanente, como estratégia de renovação e

aquisição dos novos conhecimentos e atributos. Esse aspecto contribui com a

caracterização desse trabalhador contemporâneo, bem como a necessidade de

flexibilidade, a capacidade de adaptação.

Hoje parece haver um certo consenso no sentido de reconhecer que o imperativo das pressões de concorrência, na medida em que tende a exigir participação e envolvimento de uma mão-de-obra bem formada e em aperfeiçoamento constante, contribui para a elevação geral da qualificação. Esta, por sua vez, apresentaria alterações de conteúdo: por exemplo, a responsabilidade, que anteriormente se baseava no comportamento (esforço, disciplina), hoje se manifesta pela tomada de iniciativa (assegurar a continuidade do processo); a expertise, anteriormente baseada em experiência, hoje residiria no conhecimento (identificar e resolver problemas); a interdependência, anteriormente seqüencial (postos precedentes e subseqüentes), hoje seria sistêmica (trabalho em equipe, interdependência de funções e de níveis); a formação, anteriormente adquirida de uma só vez, hoje seria permanente, com atualização freqüente (LARANJEIRA, 1997, p. 80).

Poderíamos dizer, antecipando o próximo tópico, que a formação do

profissional típico da sociedade pós-industrial de Daniel Bell é fluida. Fluida em

oposição à solidez e à inércia da formação do trabalhador industrial, que se realizava

em um determinado tempo e espaço estabelecidos: começava e terminava na

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universidade ou em algum curso técnico, em um determinado momento da vida do

indivíduo.

2.3 Sociedade de risco e fluidez

2.3.1 Sociedade de risco

Para Ulrich Beck, a sociedade industrial passou por um processo de

obsolescência que resultou nas estruturas que caracterizam a sociedade pós-industrial.

O outro lado dessa condição é a emergência da chamada sociedade de risco (BECK,

GIDDENS, LASH, 1997). Essa sociedade de risco é a sociedade onde cada vez mais se

vive numa fronteira tecnológica que ninguém compreende inteiramente – mesmo os

especialistas – e que gera uma diversidade de futuros possíveis.

Para Beck, o conceito de sociedade de risco designa um estágio da

modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no

caminho da sociedade industrial. Não se pode, segundo Beck, escolher ou rejeitar a

sociedade de risco e sua condição de insegurança. Ela surge na continuidade dos

processos de modernização autônoma, sem que fiquem claros os perigos e ameaças

que podem revelar. Tais processos conduzem às ameaças que questionam e destroem

as bases da sociedade industrial (BECK, GIDDENS, LASH, 1997). Para Giddens, a

sociedade de risco, ou o risco na sociedade, é originária de duas transformações

básicas ocorridas ainda na chamada sociedade moderna: o fim da natureza e o fim da

tradição.

O fim da natureza não significa um mundo onde o meio natural tenha desaparecido. Significa que atualmente são raríssimos os aspectos do mundo físico que não sofreram intervenção humana. O fim da natureza é relativamente recente. Data dos últimos 40 ou 50 anos e resulta sobretudo da intensificação das mudanças tecnológicas observadas anteriormente. (GIDDENS, 1998, p. 141).

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Nesse sentido, o ingresso na sociedade de risco é marcado por uma mudança no

tipo de preocupação que a humanidade tem em relação à natureza. Até cerca de 60

anos atrás, a humanidade se preocupava com o que a natureza podia nos fazer, como

ela podia nos eliminar da face da terra. A preocupação com o que a humanidade está

fazendo com a natureza, como a está destruindo, é um dos aspectos que marcam a

entrada na sociedade de risco (GIDDENS, 1991).

O outro fator salientado acima é a tradição, ou viver após a tradição, o que

significa viver sem um destino que é determinado de forma prévia. Para muitas

pessoas, diversos aspectos da vida foram estabelecidos dessa maneira. A tradição,

nesse sentido, inclui também a ciência e a técnica, porque na sociedade ocidental,

durante uns dois séculos, a ciência funcionou tal como uma. Se originariamente a

ciência se propunha a superar a autoridade e o conhecimento antigo, acabou ela mesma

se convertendo noutra espécie de tradição, que as pessoas acatavam e na qual os leigos

assumiam a opinião dos especialistas.

Para compreender melhor isso, é necessário considerar o tipo de risco mais

característico da sociedade de risco: é o risco fabricado, conceito formulado por

Giddens. O autor explica que risco fabricado é aquele criado pelo próprio progresso do

desenvolvimento humano, especialmente pelo progresso da ciência e da tecnologia.

São novas configurações e dilemas para os quais a história tem a oferecer-nos

pouquíssima experiência prévia (GIDDENS, 1991).

O risco fabricado é a surpresa fundamental para os primeiros ideólogos da

sociedade industrial, porque com o tempo se verificou que a ciência e a tecnologia

criam incertezas da mesma maneira que as eliminam. O mais interessante é verificar

que as incertezas que aparecem não são, necessariamente, resolvidas com mais

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progresso científico. Esse novo fator penetra cada sombra da vida pessoal e social e se

aloja no próprio coração da modernidade. E como a tradição perdeu a força que tinha

anteriormente de determinar o que fazer em cada situação nova de ameaça, as pessoas

são forçadas a atribuir às suas relações uma orientação mais ativa e imbuída de risco.

Essa é a base do comportamento individualista, no sentido de criar soluções

para problemas contingentes, pontuais, que não encontram respostas satisfatórias no

conjunto de experiências tradicionais. Como ficará mais claro adiante, a orientação

imbuída de risco citada é a própria essência da condição de reflexividade.

Ulrich Beck penetra ainda mais nessa caracterização da sociedade de risco. Ele

apresenta três níveis de transformações que surgem por ocasião de seu aparecimento.

Um deles é o relacionamento da sociedade industrial moderna com os recursos da

natureza física e da cultura humana. A natureza e a cultura, nesse sentido, são as bases

da sociedade industrial. Mas Beck afirma também que elas estão sendo dissipadas pelo

surgimento de uma modernização amplamente estabelecida, em que tais dimensões

perdem força. “Isso se aplica à natureza não humana e à cultura humana em geral,

assim como aos modos de vida culturais específicos (por exemplo, a família nuclear e

a ordem baseada na diferença entre os sexos) e aos recursos de trabalho social (por

exemplo, o trabalho doméstico da esposa, que convencionalmente não tem sido

reconhecido como trabalho, ainda que tenha sido ele, em primeiro lugar, o que

possibilitou o trabalho assalariado do marido)” (BECK, GIDDENS, LASH, 1997, p.

18 e 19).

O segundo nível de transformação se refere ao relacionamento da sociedade

com as ameaças e os problemas criados por ela mesma. Quando as pessoas tomam

consciência desses problemas e ameaças, podem abalar as suposições fundamentais

que mantinham a ordem social convencional – moderna, industrial. Beck afirma que

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isso é verificável nos modelos de negócios, que se renovam e inovam, no direito e na

ciência.

A terceira ordem de transformação está vinculada a uma crise de significados

coletivos e específicos de grupo (consciência de classe ou crença no progresso) que

sofrem de exaustão, desencantamento. Esses significados foram responsáveis pelo

apoio às democracias e sociedades ocidentais até o século XX. Sua perda conduz, nas

palavras de Beck, “à imposição de todo esforço de definição sobre os indivíduos”. Esse

é o significado do processo de individualização.

Essa individualização é bem diversa daquela em que as pessoas precisavam ser

“libertadas” das certezas feudais e religiosas/transcendentais. As pessoas agora se

vêem na transição da sociedade industrial para a turbulência cognitiva, subjetiva,

estética e política inerente à sociedade de risco. É forçoso conviver e se relacionar com

uma quantidade muito variada de riscos globais e pessoais diferentes e mutuamente

contraditórios.

Esse processo de individualização e os processos de transformações citados

formam um contexto da imprevisibilidade das ameaças. As ameaças, como já dito, se

apresentam em variadas formas: em termos da crise ecológica, na impossibilidade de a

ciência garantir certeza e felicidade ao mundo, em termos de moralidade política, entre

muitos outros aspectos. A esses níveis de incerteza e risco se contrapõe a tentativa de,

pelo acúmulo de informação, se obter orientação para a ação no mundo. Esse novo

processo reforça o quadro social já traçado por Bell e outros pensadores sobre a

sociedade contemporânea e sobre seu trabalhador típico. Nessa perspectiva, o acúmulo

de informação segue a necessidade de tentar compensar as incertezas e, por meio de

múltiplas referências, guiar as ações no mundo social. Esse é um processo de

autodeterminação que pode ser verificado em vários contextos sociais.

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Aqui nos interessa o ambiente do trabalho de desenvolvimento de softwares. Os

níveis de incerteza e risco vinculados à obsolescência tecnológica, à concorrência, à

aceleração precisam ser superados pelos profissionais do software. E o acúmulo de

informação é uma estratégia, entre outras, que serve a esse propósito. Assim, são os

riscos pessoais ligados à ação contingente na esfera do trabalho de desenvolvimento de

softwares que nos interessam e que também fazem parte desse quadro.

Na sociedade de risco, o reconhecimento da imprevisibilidade das ameaças provocadas pelo desenvolvimento técnico-industrial exige a auto-reflexão em relação às bases da coesão social e o exame das convenções e dos fundamentos predominantes da “racionalidade” (BECK, GIDDENS, LASH, 1997, p. 19).

De forma geral, esses três níveis de transformações realimentam o retorno da

incerteza e da ambivalência, o que significa, segundo Ulrich Beck, um número cada

vez maior de conflitos sociais caracterizados pelo risco. São diferenciados por

implicarem uma ambivalência fundamental, que pode ser compreendida por cálculos

de probabilidade, mas que não podem ser resolvidos dessa maneira. Os problemas de

risco (típicos da sociedade de risco) se diferenciam dos problemas de ordem da

sociedade industrial porque estes estão voltados para a clareza e a faculdade de decisão

e as questões de risco necessitam do reconhecimento da ambivalência.

Os problemas de ordem, explica Beck, são aqueles enfrentados por princípios e

categorias éticos e legais (responsabilidade, culpa e o princípio de punir o poluidor).

Tais problemas também são enfrentados pelos tradicionais procedimentos de decisão

política, como o princípio da maioria. Os valores que guiam a solução desses

problemas são claros, ao passo que as questões de risco demandam valores que não são

tão claros. É o necessário reconhecimento da ambivalência dos desafios e das soluções.

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Um dos principais reflexos disso, pelo menos em relação ao que nos interessa

aqui, é perceber, com Beck, que a categoria do risco está vinculada a um tipo de

pensamento e de ação social que não foi percebido por Max Weber. Que é pós-

tradicional e, em certo sentido, pós-racional, pelo menos no sentido de não ser mais

instrumentalmente racional (post-zweckrational).

Acontece que, como deixa claro Ulrich Beck, a sociedade industrial, a ordem

social civil, o welfare state e o Estado previdenciário foram sujeitos à exigência de se

fazer com que a experiência humana seja controlável pela racionalidade instrumental,

manufaturável, disponível e contabilizável. Desde a ocasião da modernidade, enfatiza-

se a noção de ordem (BAUMAN, 1991). Esse ciclo moderno passou a exorcizar,

sobretudo na “ordem” social, tudo aquilo que contém ou leva à ambigüidade, à

ambivalência, à polissemia.

É interessante observar que a oposição ordem/caos, em sua versão tipicamente

moderna, pode ser tomada como foco de muitas dicotomias que se exacerbam de lá

para cá – cultura/natureza, homem/mulher, eu/outro (estrangeiro, inimigo, bárbaro,

primitivo), corpo/alma, normal/anormal, opressor/oprimido, público/privado,

homo/hetero.

Na sociedade de risco, o lado imprevisível e os efeitos colaterais da busca cega

pelo controle conduzem justamente a essa constelação que parecia superada, para

sempre encerrada na noite escura do passado incerto. Estamos de volta ao reino das

incertezas, ou de uma incerteza, da ambivalência, ou de ambivalências.

Bauman lembra que um dos pressupostos da modernidade é o projeto de

universalização e um intenso combate à ambivalência em todos os níveis (político,

social e mental). A modernidade se realizou, sobretudo no campo intelectual e

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científico, mas gerou também o contexto para a total impossibilidade de eliminação

das ambivalências.

Um dado importante do ponto de vista teórico e metodológico deste trabalho é

observar a consciência dessa impossibilidade: o quadro geral da agência humana é

fundamentalmente o da contingência que ameaça as tentativas de supressão da

diversidade e de redução do risco (BAUMAN, 1991). Esse contexto geral ganha, na

obra de alguns pensadores, uma interpretação na qual o mundo humano é dominado

pelo aspecto midiático, como se verá no próximo tópico.

2.3.2 Midiatização, derrelição e desamparo

Paul Virilio acredita na explosão do mundo visível – o domínio da opinião

pública – provocada pelas técnicas de representação teleinformática. Esse processo

também provocaria a midiatização política em que grupos cada vez menores detêm

mais privilégios. Para Virilio, tais grupos são “detentores de um último amálgama da

velocidade da luz”; a midiatização política seria caracterizada pela “abusiva eloqüência

dos números, das mensagens, das imagens (a informação)” (VIRILIO, 1996, p. 36).

O termo midiatização usado por Virilio significa o novo contexto de controle e

de confisco dos direitos imediatos do indivíduo. Para esse autor, um número grande de

pessoas tem a impressão do efeito do real, mas essas pessoas estão imersas no caos

geopolítico que é resultante desse processo. O autor acredita num golpe de Estado

informacional por meio do qual acontece uma usurpação informacional da diferença

entre o aqui e o ali, do próximo e do distante, do presente e do futuro, do real e do

irreal. Ou seja, os sujeitos seriam jogados num tempo único e homogêneo. E isso

aconteceria, segundo Virilio, através das tecnologias da informação.

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Submetidos à tirania do tempo real, os meios de comunicação não combatem mais somente tudo o que dura, a paz como o resto, são eles (os meios de comunicação) agora que não têm mais tempo, mais prazos. Extremidades territoriais e proximidade midiática formam uma mistura explosiva (VIRILIO, 1996, p. 54).

Paul Virilio acredita numa ausência da defesa diante da técnica e não vê

possibilidades de que os indivíduos definam estratégias de análise de suas experiências

ou de autodeterminação:

“O mundo que vemos está em plena passagem” e digamos: nós não vemos o mundo que está em plena passagem... nós não percebemos mais naturalmente suas lentidões do que suas acelerações, não percebemos o que seria a realidade do próprio tempo em que o movimento se dá. O movimento é cegamento (VIRILIO, 1996, p. 64).

A velocidade como categoria é fundamental na obra de Virilio. O autor vê, no

desenvolvimento das técnicas de deslocamento, os primeiros instrumentos de uma

realidade que hoje é inevitável e totalizante: a extinção do tempo por intermédio da

velocidade. Produzir velocidade, assim, é suprimir a espera e a duração. Virilio

acredita que o homem esteja entregue, sem volta, à produção (e consumo) de

velocidade, à ociosidade que decorre da aceleração, o que se expressaria, segundo ele,

na prática dos esportes radicais.

Assim, o confronto com os limites do próprio corpo é uma tentativa de revelar,

ou materializar, o desejo de domínio do destino pessoal. Para ele, existe, entretanto,

uma dificuldade inerente de retorno à comunicação e ao logos numa sociedade

(caracterizada pela aceleração tecnológica) em que a partida e a chegada se confundem

ao extremo. Da força dos meios de comunicação e do complexo técnico-informacional

resultam freqüentes e brutais tentativas de interrupção da vida consciente.

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Em A Máquina de Visão (1994), essa configuração é ainda mais clara e

assustadora. Escrevendo sobre a industrialização da visão, sobre a máquina de visão,

Virilio sugere uma automação da percepção por meio da delegação, a uma máquina, da

análise da realidade objetiva. Para Virilio, depois das imagens de síntese, depois do

tratamento de imagens numéricas nas concepções auxiliadas por computador, chega o

tempo da visão sintética, o tempo dessa automação da percepção. Ele se pergunta quais

seriam as conseqüências teóricas e práticas das “coisas que observam o sujeito”.

O paradoxo lógico é finalmente o desta imagem em tempo real que domina a coisa representada, este tempo que a partir de então se impõe ao espaço real. Essa virtualidade que domina a atualidade, subvertendo a própria noção de realidade (VIRILIO, 1994, p. 91).

O aspecto dromológico, de obsolescência e de derrelição está, na obra de

Virilio, vinculado aos meios de comunicação que se constituem como canais de

obtenção de informação e conhecimento – máquinas de visão do indivíduo. Máquinas

de visão que operam uma automação da percepção, estabelecem a artificialidade da

visão, que, segundo o autor, se reflete na “delegação a uma máquina da análise da

realidade objetiva” (VIRILIO, 1994, p. 86).

Essa industrialização da visão, por um lado, vincula-se ao trabalho

desencaixado, descentrado, que prescinde de tempo e espaço conectados – o que será

mais bem explorado adiante. E que, por sua vez, estende seus braços ao desencaixe de

relações sociais. Por outro lado, é a contraparte do domínio do trabalho sobre o mundo

da vida, uma vez que compras, diversão, comunicação, aprendizado, movimentação de

contas bancárias e outros aspectos da vida fora do trabalho são fortemente

intermediados pelos mesmos mecanismos de conexão ao trabalho. Nesse mundo, onde

a velocidade e o movimento destroem o tempo e onde acontece essa subjugação “à

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vertigem da aceleração”, Virilio propõe a criação de uma dromologia, uma espécie de

ciência da velocidade e da aceleração. “O cúmulo da velocidade é o extermínio do

espaço. O fim do tempo é absoluta desterritorialização” (VIRILIO, 1996, p. 40). Isso

nos leva a considerar que a aceleração reduz o contato com o “real concreto”, já que o

sujeito parece estar sempre em movimento: seja esse movimento físico ou associado à

necessidade de rápida atualização de conhecimentos, da realização de trabalho, de

consumo. O domínio sobre os processos de aceleração passaria a ser a grande

commoditie atual, controlada por uma aristocracia de velocidade responsável por

dominar a velocidade e a aceleração. Quando a velocidade passa a ser uma das

principais commodities modernas, passa a ser identificada como um elemento

civilizador.

Nesse sentido, a categoria de velocidade assume, para Virilio, a configuração

fundamental que a categoria da produção teve para a modernidade. O que interessa não

é mais o que e quanto produzir, mas em que velocidade. Assim, a lógica da corrida

toma como referência absoluta, como equivalente geral, não mais a riqueza, e sim a

velocidade.

O homem não sai impune desse processo de aceleração, já que sua própria

natureza sofre os efeitos do processo contínuo de aceleração. Virilio insiste em uma

polaridade que será causada pelo domínio desse mundo da velocidade.

O progresso dromológico impõe a idéia de dois tipos de alma, umas fracas, indecisas e vulneráveis porque tributárias do seu hábitat, outras poderosas porque colocaram seu ‘mana’, sua vontade, fora de alcance, graças a sua desterritorialização, à sofisticação da sua economia e de seu ponto de vista (VIRILIO, 1996, p. 69).

Esse estado de aceleração, velocidade e deslocamento nos leva a considerar a

condição do indivíduo cercado de risco, desprovido de segurança, impossibilitado de

refletir sobre essa condição, o que levaria à desmontagem da realidade perceptiva

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tradicional e ao surgimento de uma nova ordem de visibilidade marcada pela

transmissão e representação de dados.

Como principal conseqüência desse tempo contínuo imposto pela tecnologia,

pelas máquinas de visão contemporâneas e pela aceleração, teríamos a suplantação do

espaço das aparências sensíveis, a ausência da percepção imediata da realidade

concreta, a contração das experiências em tempo intensivo e, além disso, a ameaça à

reflexão sobre as experiências do indivíduo. O quadro de aceleração visto por Virilio

pode ser observado na velocidade de giro de produção de bens e de serviços; no

consumo desses mesmos bens e consumos; e ainda nos fluxos de informações em

diversas mídias; nas possibilidades simultâneas de trabalhar, aprender, se informar e

consumir que foram abertas pelas novas tecnologias da informação e comunicação.

Como conseqüência, teríamos o envelhecimento de tudo aquilo que surge no

horizonte, a acentuada volatilidade e efemeridade das modas, produtos, processos de

trabalho, idéias e ideologias, valores e práticas estabelecidas (HARVEY, 2004, p. 258).

A aceleração prognosticada parece obrigar as pessoas a lidar com a obsolescência

instantânea. O que por sua vez também colabora com a condição de instabilidade,

insegurança e risco. Para pensadores como Postman e Baudrillard, a sociedade atual

vive uma inflação de informação que efetivamente contribui para uma “deflação de

sentido” (BAULDRILLARD, 1997).

Segundo Postman, essa deflação do sentido é resultado de uma explosão da

informação que tornou o mundo cada vez mais improvável – um mundo em que

verdades, valores e normas se multiplicam até ao infinito, tornando impossível qualquer

escolha fundada. O resultado mais evidente é uma desorientação existencial mais e mais

acentuada.

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Bauldrillard diz que essa deflação está baseada na mudança da natureza dos

meios de representação para um regime de simulação do real. Existe uma falta de

distinção entre o representante, o representado e o meio. Nesse sentido, quanto maior

for a informação sobre o "referente" ou o "real", mais nos afastamos dele (e, assim, do

próprio "sentido") (BAULDRILLARD, 1997). As estruturas informacionais

ameaçariam a memória do homem, como se a perfeição (mnemotécnica) dos sistemas

informacionais – que encontra na internet a sua descrição mais típica – pudesse

"implodir" no seu contrário. No que se refere à memória, por exemplo, a garantia

prometida pelas máquinas de que nada será esquecido (porque estará registrado) é a

melhor garantia de que nada – ou pelo menos nada de importante – será lembrado (pelo

homem). Escrevendo sobre a televisão, Baudrillard afirma que, "hoje em dia, por toda

parte, são as memórias artificiais que apagam a memória dos homens, que apagam os

homens da sua própria memória" (BAULDRILLARD, 1997).

Essas análises representam uma forma de ver a contemporaneidade, em que o

sujeito consciente está – ironicamente – preso a um destino: o de sua impotência diante

da estrutura técnico-racional do trabalho, da diversão, do consumo e, principalmente,

dos recursos de representação do hiper-real. Para Baudrillard, a representação já não é

a do mapa, do duplo, do espelho ou do conceito:

A simulação já não é a simulação de um território, de um ser referencial, de uma substância. É a geração pelos modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real. O território já não precede o mapa, nem lhe sobrevive. É agora o mapa que precede o território – precessão dos simulacros (1997, p. 8).

A origem desse contexto teria sido criada com a proliferação de imagens

publicitárias na sociedade capitalista atual. A economia, a guerra, as próprias mídias, o

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terror político, a violência costumeira e a internet tenderiam à forma publicitária de

expressão. Haveria então um assassinato do real produzido pela imposição da

linguagem publicitária a todas as outras formas de linguagem. É (ou seria) a

superioridade da simulação do mapa frente ao território – o real palpável e

fenomenologicamente perceptível (BAULDRILLARD, 1997).

A filosofia de Baudrillard fala-nos da perda de referencial trazida pelas

imagens simuladas no contexto da sociedade atual. Se a imagem técnica tem por

função emancipar a sociedade da necessidade de pensar conceitualmente, essa

emancipação tornou-se escravidão de simulações. A velocidade entre a produção do

fato e a sua percepção não permite o entendimento desse fato. Estaríamos, assim,

vivendo o assassinato do real.

Isso não significa o mesmo que significa o extermínio nos campos nazistas. Lá ele era físico e radial. Aqui ele é ao mesmo tempo mais literal e mais metafórico. Ex terminis: isso não quer dizer que todas as coisas (e todos os seres) ultrapassam seu próprio fim, sua própria finalidade, para onde não existe mais realidade, nem motivo para existir, nem qualquer determinação (é por isso que o chamo de “ex-termínio”). Extermínio significa que nada resta, nenhum traço, nem mesmo um cadáver. O cadáver do real – se existe algum – não foi descoberto, e não será encontrado em parte alguma. E isto porque o real não está apenas morto (como Deus está); ele pura e simplesmente desapareceu. Em nosso próprio mundo virtual, a questão do real, do referente, do sujeito e seu objeto, não pode mais ser apresentada (BAUDRILLARD, 2001, p. 68).

Essa interpretação de nosso mundo contemporâneo parece identificar a

experiência virtual como a principal, a mais importante. E pior: impossível de ser

evitada ou de se criar estratégias que contornem essa situação. O homem descrito pela

crítica de Baudrillard e Virilio parece viver uma fragilidade como nunca antes homem

nenhum viveu ao longo da história, e sem mecanismos de reação.

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A subjetividade do homem torna-se um conjunto de funções inúteis, tão inúteis quanto é a sexualidade para os clones. Em termos mais gerais, todas as funções tradicionais – a crítica, a política, a sexual, as funções sociais – tornam-se inúteis num mundo virtual. Ou elas sobrevivem apenas numa simulação, como na musculação ou numa cultura desencarnada, como funções falsas ou álibis (BAUDRILLARD, 2001, p. 68).

Derrelição é uma palavra rara, que significa desamparo, abandono. A escritora

Hilda Hilst a utiliza para indicar um estado em que a alma está vazia. O contexto social

teoricamente descrito por Baudrillard e Virilio é de derrelição, da vaziez crítica

condicionada pela falta de condições para reflexão. Essa condição de reflexividade

será explorada no tópico seguinte.

2.4 A reflexividade e seus os duplos

2.4.1 O espelho radical

O que vem a ser modernidade reflexiva e como essa se articula com a lógica

pós-industrial em que o trabalho dos profissionais do software se enquadra? A

modernização reflexiva significa uma autodestruição criativa para toda a era da

sociedade industrial. O sujeito dessa destruição não é uma revolução, nem mesmo uma

crise. A modernização reflexiva é resultado do próprio processo de modernização

ocidental – seu espelho radical. Uma de suas características é a sociedade de risco, já

comentada no início deste capítulo.

Na modernização do século XIX e de parte do século XX, tivemos a

desincorporação e depois a reincorporação das formas sociais tradicionais pelas formas

sociais industriais. A modernização reflexiva é um novo processo de desincorporação e

reincorporação das formas industriais por outra modernidade.

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É uma etapa da história na qual acontece a destruição da modernidade pela

radicalização dessa mesma modernização, que varre do mapa formações de classe,

camadas sociais, papéis de gênero, família nuclear, o relacionamento com o

conhecimento, os pré-requisitos para o progresso técnico-científico.

A instalação desse estágio histórico é silenciosa, pois a modernização reflexiva

também é um processo autônomo. A sociedade da modernidade reflexiva é a sociedade

de risco, em que existe a autoconfrontação com os efeitos desse desenvolvimento

industrial. A sociedade de risco é chamada a decidir como controlar e gerenciar os

efeitos da manipulação genética, como evitar acidentes nucleares, como controlar ou

evitar a devastação de florestas.

Giddens afirma, explicando a principal característica da modernização

reflexiva, que a razão voltou-se para si mesma, depois de quebrar os cânones do pré-

modernismo, do áncien regime, com a livre expressão, a democracia popular e a

liberdade de mercados. O caráter da reflexividade, com o advento da modernidade,

consiste em que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz

de informação renovada sobre essas próprias práticas, alternando assim

constitutivamente seu caráter.

Somente na modernidade esse aspecto da revisão da convenção é tomado de

forma radical. Giddens afirma que essa revisão acontece “a todos os aspectos da vida

humana, inclusive à intervenção tecnológica no mundo material” (1990, p. 45). A

modernização reflexiva não implica a superação da modernidade, a direção de uma

pós-modernidade. As sementes do niilismo estavam no pensamento iluminista desde o

início. Se a esfera da razão está inteiramente desagrilhoada, nenhum conhecimento

pode se basear sobre um fundamento inquestionado, porque mesmo as noções mais

firmemente apoiadas só podem ser vistas como válidas “em princípio” ou “até ulterior

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consideração”. De outro modo, elas reincidiriam no dogma e se separariam da própria

esfera da razão que determina qual validez está em primeiro lugar (GIDDENS, 1990).

Essa ruptura assemelha-se mais à modernidade vindo a entender a si mesma, em vez de

sua superação; ela nos permite o entendimento mais completo da própria modernidade.

A ruptura com as concepções providenciais da história, a dissolução da aceitação de fundamentos, junto com a emergência do pensamento contrafatual orientado para o futuro e o “esvaziamento” do progresso pela mudança contínua, são tão diferentes das perspectivas centrais do Iluminismo que chegam a justificar a concepção de que ocorreram transições de longo alcance. Referir-se a estas, no entanto, como pós-modernidade, é um equívoco que impede uma compreensão mais precisa de sua natureza e implicações. As disjunções que tomaram lugar devem, ao contrário, ser revistas como resultantes da auto-elucidação do pensamento moderno, conforme os remanescentes da tradição e das perspectivas providenciais são descartados. Nós não nos deslocamos para além da modernidade, porém estamos vivendo precisamente através de uma fase de sua radicalização (GIDDENS, 1990, p. 57).

A revisão constante das práticas sociais à luz de informação renovada sobre

essas práticas, como já afirmado, toma um ritmo crônico, radical, em todos os aspectos

da vida humana. O que temos é a reflexividade indiscriminada. Giddens afirma que

vivemos num mundo que é inteiramente constituído de conhecimento reflexivamente

aplicado e que, por se basear na razão livre, poderá vir a ser revisado.

2.4.2 Desencaixe

O dinamismo da modernidade deriva da separação entre o tempo e o espaço e

de sua recombinação em formas que permitem o zoneamento espaciotemporal preciso

da vida social. Deriva ainda do desencaixe dos sistemas sociais e da ordenação e

reordenação reflexiva das relações sociais (GIDDENS, 1991). As culturas pré-

modernas tinham formas particulares de demarcar o tempo. Nessas sociedades, o

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cálculo do tempo vinculava-se ao lugar, de forma imprecisa e variável. A modernidade

estabeleceu a medição unívoca do tempo, o que levou à uniformização da organização

social do tempo pela adoção do relógio. Esse processo conduziu a uma organização do

tempo desligado do espaço.

Dito de outra forma, levou à adoção de um calendário universal que se

sobrepõe aos demais e à padronização dos instrumentos de medição pelas regiões: o

efeito mais imediato é o esvaziamento do espaço. Nas sociedades pré-modernas,

espaço e tempo coincidem amplamente, na medida em que as dimensões espaciais da

vida social são, para a maioria da população, dominadas pela presença. A modernidade

retira o espaço do tempo e permite que “ausentes” estabeleçam relações de todo tipo.

A separação entre o tempo e o espaço não deve ser vista como um desenvolvimento unilinear, no qual não há reversões ou que é todo abrangente. Pelo contrário, como todas as tendências de desenvolvimento, ela tem traços dialéticos provocando características opostas. Além do mais, o rompimento entre tempo e espaço fornece uma base para sua recombinação em relação à atividade social (GIDDENS, 1991, p. 46)

Por que a separação entre tempo e espaço é tão crucial para o dinamismo da

modernidade? Pela condição de desencaixe que essa separação ocasiona. O desencaixe

interfere na separação e no abandono dos hábitos e práticas locais. O desencaixe é o

deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação

por meio de extensões indefinidas de tempo-espaço.

O resultado é que as relações prescindem, cada vez mais, da presença física.

Elas acontecem desencaixadas, dispersas, desligadas de um tempo e espaço colados,

para acontecer dispersamente num tempo único (padronizado) em espaços vazios.

Existem dois mecanismos de desencaixe: as fichas simbólicas e os sistemas

peritos. As fichas simbólicas são bem explicadas por Pierre Bordieu ao citar o mito, a

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língua, a arte e a ciência como instrumentos de conhecimento e de construção do

mundo dos objetos. Nesse sentido, os sistemas simbólicos são estruturas estruturantes.

Para apreender a lógica específica de cada uma das formas simbólicas, é necessário

recorrer à análise estrutural.

Por ora, basta nos concentramos no fato de que os sistemas simbólicos são

instrumentos de conhecimento e de comunicação, de construção da realidade que

supõe uma concepção homogênea do tempo, do espaço, do número da causa e que

torna possível a concordância entre as inteligências (BOURDIEU, 1989, p. 9).

Já os sistemas peritos são sistemas de excelência técnica ou competência

profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que

vivemos hoje. São os sistemas nos quais está integrado o conhecimento dos peritos e

que influencia muitos aspectos do que fazemos de uma maneira contínua. Os sistemas

peritos são mecanismos de desencaixe das relações sociais de contextos locais de

interação porque eles removem as relações sociais das imediações do contexto.

Na prática, tais sistemas peritos são formados por amplos campos de

conhecimento, como a arquitetura, a engenharia industrial e civil, e tudo o que se

constrói sob suas designações deverá funcionar em qualquer tempo e em qualquer

lugar, pois tais mecanismos não estão vinculados a um tempo ou a um lugar para

serem válidos.

É por meio dos sistemas peritos que os indivíduos exercem suas possibilidades

de reencaixe, de reflexão crítica de suas vivências contingentes. Essas possibilidades

estão diretamente relacionadas à reflexividade – às estratégias de revisão das práticas

sociais à luz de informação gerada a partir dessas mesmas práticas. Os sistemas peritos

alimentam e direcionam essas práticas, que por sua vez geram os contextos para a

reflexão e para a produção de mais experiência, conhecimento e informação. O ciclo

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então é ativado, porque essa experiência, esse conhecimento e a informação

realimentam a base do sistema especialista.

2.4.3 Conhecimento e informação desencaixados

A importância do desencaixe está na maneira como essa característica da

modernidade mudou a forma de se encarar o conhecimento científico. Ele está

vinculado aos padrões de formação de especialistas e do relacionamento destes com o

conhecimento (e sua renovação). O desencaixe ainda se relaciona com a legitimidade

dos sistemas de autoridade. É importante deixar claro esse quadro porque ele está

essencialmente na base dos processos de reflexividade investigados neste trabalho,

como será mostrado a seguir. Anthony Giddens faz uma distinção entre o que ele

chama de governantes ou funcionários (que dão ordens) e guardiões (os que fornecem

interpretações). Na análise weberiana, a autoridade está onde os mestres são

designados segundo regras tradicionais, e eles são obedecidos e seguidos em função do

status alcançado. As regras tradicionais, que raramente são claramente especificadas, e

a lealdade pessoal geram confiança. Os servos são ligados ao governante, ao detentor

de autoridade, de uma maneira patrimonial, como escravos ou dependentes.

A autoridade, nas sociedades tradicionais, é algo mais amplo – é o território

daqueles indivíduos que fornecem interpretações, dos que agem dessa maneira em

virtude de seu acesso especial aos poderes causais da verdade formular – da sabedoria.

Essa pessoa – guardião, no vocabulário de Giddens – é o repositório da tradição, e a

autoridade é um fenômeno produzido. O contraste dessa autoridade tradicional com

formas mais modernas de autoridade revela a autoridade racional-legal típica da

burocracia. A autoridade racional-legal apóia-se em “crença na legalidade das normas

em vigor e no direito daqueles que foram alçados à autoridade sob essas normas, para

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formular as ordens” (WEBER, 1978, p. 215). A lealdade é reduzida, ou minimizada. A

disciplina e o controle são característicos da conduta do funcionário especializado e da

organização em que ele trabalha.

Devemos nos perguntar sobre a necessidade dessa comparação entre a tradição

(e a autoridade a ela vinculada) e a especialização. As diferenças entre uma e outra

revelam o local do desencaixe na nossa análise sobre o conhecimento. A

especialização que verificamos no funcionário sob a ordem racional-legal é

desincorporadora – se comparada com a tradição, ela não depende de um local certo

para acontecer, ela é descentralizada. A especialização não está ligada a nenhuma

verdade formular. Ao contrário, a especialização se vincula a uma crença na

possibilidade de correção do conhecimento que lhe sustenta. E esse acúmulo de

conhecimento especializado envolve processos intrínsecos que criam mais

especialização. Essa análise está de acordo com as suposições de Freidson sobre o

caráter da autoridade numa sociedade pós-industrial: descentralizada, desincorporadora

e vinculada a conhecimento técnico e especializado. A especialização interage com a

reflexividade institucional – o que gera perda e reapropriação de habilidades e

conhecimentos do dia-a-dia (BECK, U., GIDDENS, A., LASH, S., 1997).

Pelo menos em seu aspecto moderno, a especialização está, em princípio, desprovida de vinculações locais. De uma maneira típica ideal, poderia ser dito que todas as formas de “conhecimento local” sobre a regra da especialização tornam-se recombinações locais de conhecimento derivado de outros lugares. Obviamente, na prática, as coisas são mais complicadas, em razão da importância continuada dos hábitos, costumes ou tradições locais (GIDDENS, A.; BECK, U.; LASH, S., 1995, p. 105).

Giddens afirma que os mecanismos de desincorporação dependem do abandono

do conteúdo tradicional dos contextos locais e da reorganização das relações sociais

com faixas de tempo e espaço. Como conseqüência do caráter impessoal e contingente

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das regras de aquisição de conhecimento, os sistemas de especialização são mais e

mais descontextualizados. Assim, tais sistemas abrem-se a qualquer pessoa que tenha

tempo, recursos e talento para se especializar. A validade do conhecimento e da

expertise não depende do local.

A retirada dos locais da produção de conhecimento despoja o conhecimento

produzido na modernidade de sua áurea de certeza infalível e tradicional. Os modos

modernos de investigação são caracterizados pela combinação entre ceticismo e

universalismo – isso é o que assegura ao especialista e ao leigo que a tradição do

pensamento é relativamente arbitrária. Não é somente a investigação intelectual que é

aberta à dúvida – isso é fundamental também, na modernidade, para a vida cotidiana.

Essa condição básica da modernidade gera desconforto porque produz insegurança.

Por um lado, o desconforto tanto para os leigos quanto para especialistas está

ligado à forma como a ciência perdeu a aura de autoridade que um dia possuiu –

resultado da desilusão com os benefícios de controle e de colonização do futuro que os

avanços tecnológicos prometiam. Guerras, invenção de armas altamente destrutivas e

crise ecológica arrefeceram a crença no progresso baseado em conhecimento

científico. Antes disso, a ciência desfrutou de um status de distinção que se parecia

com uma certa tradição inquestionável. Por outro lado, a tradição e os costumes na

vida cotidiana também foram enfraquecidos.

Para os pensadores do Iluminismo – e muitos de seus sucessores –, pareceu que a crescente informação sobre os mundos social e natural traria um controle cada vez maior sobre eles. Para muitos, esse controle era a chave para a felicidade humana; quanto mais estivermos – como humanidade coletiva – em uma posição ativa para fazer história, mais podemos orientar a história rumo aos nossos ideais. Mesmo os observadores mais pessimistas relacionaram conhecimento e controle. A “jaula de ferro” de Max Weber – em que, segundo suas reflexões, a humanidade estaria condenada a viver no futuro previsível – é uma prisão domiciliar de conhecimento técnico; alterando a metáfora, todos nós devemos ser pequenas engrenagens na gigantesca máquina da razão técnica e

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burocrática. Mas nenhuma imagem chega a capturar o mundo da alta modernidade, que é muito mais aberto e contingente do que sugere qualquer uma dessas imagens, e isso acontece exatamente por causa – não apesar – do conhecimento que acumulamos sobre nós mesmos e sobre o ambiente material. É um mundo em que a oportunidade e o perigo estão equilibrados em igual medida (BECK, U., GIDDENS, A., LASH, S., 1997).

De forma geral, a possibilidade de correções ou mesmo de abandono das

reivindicações do conhecimento deixou de ser uma questão meramente intelectual e se

converteu em uma condição existencial nas sociedades modernas. O indivíduo leigo e

mesmo o especialista se vêem livres das autoridades opressivas e de sua monocórdica

verdade basilar; mas se vê também diante da incerteza provocada pela falta de

segurança, de fundamentos concretos e de certezas. Se a ciência é construída sobre

areia movediça, como metaforiza Karl Popper, isso não é menos verdade quando se

fala sobre a vida cotidiana.

Viver em um mundo de autoridades múltiplas, uma circunstância às vezes erroneamente referida como pós-modernidade, teve muitas conseqüências para todas as tentativas de confinar o risco à concepção estreita já mencionada, seja com respeito ao curso de vida do indivíduo, seja em relação às tentativas coletivas de colonizar o futuro. Como não há (mais) superespecialistas a quem recorrer, a margem de risco tem de incluir o risco de quais especialistas consultar, ou cuja autoridade deve ser considerada como unificadora (BECK, U., GIDDENS, A., LASH, S., 1997, p. 108 e 109).

O desamparo (derrelição) cognitivo que essa descrição suscita parece justificar

o mundo sombrio e sem esperanças desenhado por Paul Virilio, Jean Baudrillard e

outros. Descrição essa em que o indivíduo parece subsumido e impotente diante dos

riscos, da impossibilidade de organizar e lidar com uma grande massa de informação

disponível, coma a invasão evidente da tecnologia, sufocando o mundo da vida, com a

evasão das certezas e diante da impossibilidade de estabelecer estratégias de

autodeterminação.

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Mas a teoria da modernidade reflexiva tem outras respostas menos simples.

Giddens nos mostra que várias reflexividades revelam estratégias de autonomia e de

centramento do sujeito. Ao mesmo tempo, tais mecanismos não rompem

completamente com a modernidade nem com o modelo industrial. Um dos principais

mecanismos por meio do qual, segundo Giddens , a reflexividade se torna possível será

tratado no próximo tópico.

2.4.4 Sistemas especialistas

Na modernidade reflexiva, nós indivíduos nos tornamos cada vez mais livres da

estrutura social – na verdade temos de redefinir a estrutura ou, como afirma Giddens, a

própria tradição. Isso significa reinventar a sociedade e a política. Não está previsto

pela teoria, entretanto, que isso aconteça de maneira não intencional, não vista.

Segundo Ulrich Beck, a modernização reflexiva ignora que a transição para outra

época da modernidade possa acontecer superando as categorias e teorias dominantes da

sociedade industrial.

É nesse sentido que, para Giddens, é possível afirmar que a teoria da

modernização reflexiva é, em seu âmago, otimista, e, como defende Beck (1997, p.

210), mais reflexão, mais especialistas, mais ciência, mais esfera pública, mais

autoconsciência e autocrítica abrem novas e melhores possibilidades para a ação em

um mundo desarticulado. O que Anthony Giddens, Ulrich Beck e Scott Lash mostram

é que a modernidade reflexiva não é uma condição de autodestruição, e sim de auto-

alteração das bases da modernização industrial – de auto-reflexividade. E mais: se o

mundo vai perecer ou não, como parece escrito nas entrelinhas dos teóricos pós-

modernos, é uma questão sem respostas e sem interesse do ponto de vista sociológico.

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Essa (teoria da modernização reflexiva) não é uma teoria da crise ou de classe, não é uma teoria do declínio, mas uma teoria da desincorporação e da reincorporação não intencional e latente da sociedade industrial, em virtude do sucesso da modernização ocidental (BECK, U., GIDDENS, A., LASH, S., 1997, p. 211).

Giddens afirma que a reflexividade que está germinando pode ser

emancipatória. Como ela germina, ou, dito de outra forma, como acontece a

reflexividade? A reflexividade acontece por intermédio dos sistemas especialistas.

Essa afirmação é verdade do ponto de vista institucional – ou seja, da reflexividade das

instituições sociais – e do ponto de vista pessoal, ou seja, da auto-reflexividade dos

sujeitos na modernidade tardia. Vamos no deter na reflexividade individual.

Na reflexividade pensada por Giddens, uma proporção crescente da população

tem acesso a conceitos científicos como um meio de reflexão das regras e dos recursos

da estrutura social – o que inclui, é claro, grupos dos quais faz parte, como a escola, a

família, o trabalho – e também de suas próprias ações. O contato, ainda que de forma

mais ou menos diluída, com grandes áreas do conhecimento, como a própria

sociologia, a psicanálise, a engenharia, redimensiona as relações de confiança. Esta

deixa de ser uma questão de envolvimento face a face e passa a ser uma questão de

confiança nesses sistemas especialistas. A reflexividade tem como objetivo a

minimização de uma “insegurança ontológica”.

O problema é precisamente como podemos enfrentar não tanto as ameaças ambientais, mas as psíquicas e as sociais; é manter níveis razoáveis de ordem e estabilidade em nossas personalidades e na sociedade. Sua resposta é através da mediação dos sistemas especialistas (BECK, U., GIDDENS, A., LASH, S., 1997, p. 143).

Giddens se pergunta como o indivíduo, conscientemente, chega (conquista?) a

segurança ontológica e consegue sobreviver na sociedade de risco. E a resposta é que

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essa “terra conquistada” é alcançada com a ajuda dos sistemas especialistas. Os

sistemas especialistas constituem um conceito muito amplo. Lash esclarece (BECK,

U., GIDDENS, A., LASH, S., 1997) que tal conceito se refere ao mesmo tempo às

práticas dos chamados profissionais e de outros especialistas, tem um forte aspecto

institucional e pode também se referir à especialização objetivada em máquinas, como

aeroplanos e computadores, ou em outros sistemas objetivos, como os mecanismos

monetários. Essa forma de interpretar a relação do sujeito com os sistemas

especialistas, sua razão de ser e suas conseqüências têm um forte apoio na realidade

empírica da modernidade tardia. Não é outra a razão de observarmos a necessária

aplicabilidade da teoria da modernização reflexiva à investigação proposta neste

trabalho.

Os sistemas especialistas (também chamados sistemas peritos) são resultado do

desenvolvimento científico, do aumento do conhecimento técnico e do conseqüente

aumento da especialização em várias áreas. Os sistemas especialistas têm sua raiz

formativa na ciência e se propõem ser universais – válidos em qualquer tempo e

espaço. Ou seja, não são dependentes de um contexto e podem, a partir disso,

estabelecer relações sociais em grandes períodos de tempo e espaço. A esses sistemas

especialistas estão associados grupos de experts. Além disso, surge uma forte

tendência ao aumento do profissionalismo dos praticantes e dos seus grupos de

clientes.

As sociedades modernas passaram a confiar nesses sistemas peritos. A

“confiança” é, com uma certeza cada vez maior, a chave do relacionamento entre o

indivíduo e esses sistemas peritos. Essa confiança funciona como o “cimento”

responsável por manter as sociedades modernas juntas (GIDDENS, 1991). Essa

confiança é o contraponto à insegurança ontológica mencionada acima.

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Também é correto afirmar, porque efetivamente é o que acontece, que os

sistemas especialistas surgem como conseqüência da sensação de desconforto,

ansiedade ou mesmo perigo ocasionada pela ruptura espaciotemporal e seu ritmo mais

acelerado de mudanças – ou desencaixe. Aqui fica clara a necessidade inicial de

descrição da sociedade de risco que forma o contexto dos sistemas peritos.

As pessoas não podem sentir-se em constante estado de risco. Para ganhar

segurança, desenvolvem, então, mecanismos de confiança nos sistemas peritos.

Giddens exemplifica esse fenômeno citando o caso da confiabilidade existente na

tecnologia de fabricação de aviões e controle de vôos. Outro exemplo clássico que

pode ser mencionado é a transformação do sistema bancário: de atendimento

atualizado, nominal, para totalmente automatizado. Entretanto, mesclada à confiança

encontra-se subjacente certa sensação de ansiedade, e esse movimento oscilante, quase

“neurótico”, que tende a ser camuflado, necessita ser neutralizado.

Dessa maneira, os sujeitos, de tempos em tempos, aproximam-se de outras

pessoas na tentativa de amainar, apaziguar essa inquietação, ação esta denominada de

mecanismo de reencaixe (GIDDENS, 1991). É nesse sentido que a teoria da

modernização reflexiva, em que os sistemas especialistas desempenham papel tão

importante, é tomada como uma forma otimista de interpretar o mundo contemporâneo

e com ele se relacionar. A teoria diz que existem, sim, estratégias possíveis de atuação

que reduzem os efeitos negativos da sociedade de risco. Um bom exemplo de tais

sistemas especialistas é o “sistema médico moderno” de cuidado à saúde. Ele é um

modelo que se baseia em pressupostos universais da ciência, que se estende através do

globo. Os conhecimentos de arquitetura e de engenharia se associam da mesma forma

a essa idéia: assim, a maioria das pessoas é compelida a confiar em práticas e

mecanismos sociais sobre os quais pouco ou nada conhece.

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Em todos esses casos, os sistemas especialistas funcionam, claro, como

mecanismos de desencaixe. Mas também é por seu intermédio que acontece a auto-

reflexividade individual: as ações das pessoas em sociedade, com ímpeto para a

mudança social, ou não, são determinadas ou interpretadas por fragmentos de

conhecimento científico – geografia humana, sociologia, psicanálise – apreendido.

Nunca o conhecimento sobre as ações pessoais foi tão acessado e usado na pauta das

ações individuais. Essa é a marca da reflexividade como teoria.

A reflexividade da vida moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alternando assim constitutivamente seu caráter (GIDDENS, 1991, p. 27).

Ou seja: os atores sociais já intervinham ou simplesmente vivem suas vidas

com conhecimento sobre suas atividades, seus contextos de vida. A modernidade

radicaliza isso ao aplicar informação renovada a todos os níveis sociais como elemento

renovador. Há mais exemplos: as ações dos empregados numa fábrica são tomadas em

função do conhecimento que eles têm de seus direitos trabalhistas. Com base na

psicologia e na psiquiatria, os sujeitos definem as suas ações no meio social e também

se voltam para suas próprias ações.

2.4.5 Reflexividade cognitiva e reflexividade estética

A reflexividade esboçada no tópico anterior é basicamente o que Scott Lash

chama de reflexividade cognitiva – baseada no sentido das coisas. Giddens leva em

consideração a reflexividade nos mundos sociais e psíquicos naturais da vida cotidiana,

nas formas de mercantilização, na burocratização e em outras operações pelas quais o

sistema coloniza os mundos da vida.

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Scott Lash desenvolve outro modelo de reflexividade baseado na estética. Ele

se pergunta como podem a estética, um momento estético ou uma fonte estética por si

própria ser reflexivos. Para Lash, a reflexividade estética na vida cotidiana não ocorre

com uma mediação conceitual (como mostrado no outro tópico), mas com uma

mediação mimética. Ele inicia seu raciocínio afirmando que o conhecimento, os

símbolos conceituais e os fluxos de informação servem, por um lado, à dominação

capitalista – dominação essa baseada no complexo poder/conhecimento. Lash afirma

que esse fluxos e acumulações dos símbolos conceituais também podem constituir

condições de reflexividade e de crítica ao sistema. Para Lash, o mesmo acontece em

relação aos símbolos miméticos: as imagens, os sons e as narrativas que compõem o

outro lado da organização (subjetiva) de sinais.

Por um lado, do mesmo modo que a propriedade intelectual, de tipo mercantil, dos setores culturais, eles pertencem à montagem caracteristicamente pós-industrial do poder. Por outro, eles abrem espaços virtuais e reais para a popularização da crítica estética desse mesmo complexo poder/conhecimento (BECK, U., GIDDENS, A., LASH, S., 1997, p.164).

Segundo Lash, esse momento da reflexividade estética se insere na tradição do

modernismo nas artes. Expressões artísticas e afinidades culturais, assim, parecem

poder servir como instrumentos de auto-reflexividade e de construção de narrativas de

vida.

Lash enfatiza que a reflexividade estética não é conceitual, mas mimética. Ela é

reflexiva quando opera mimeticamente na experiência do cotidiano, e torna-se crítica

quando seu alvo, seu ponto de referência mimética, é o sistema de mercadorias,

burocracia ou reificação das formas de vida do sujeito ou de seus pares.

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3. Metodologia

Queremos saber se existem estratégias ou fatores que evocam processos de

reflexividade entre desenvolvedores, gerentes e executivos das fábricas de software

relacionados ao trabalho realizado por cada um desses estratos profissionais estudados.

E, em seguida, queremos identificar tais estratégias. Esses processos são vinculados à

atribuição de sentido que os profissionais do software fornecem às suas ações, no que

se refere à relação entre o trabalho e as demandas privadas (de ordem física, moral,

ética, existenciais). O pressuposto metodológico que possibilita a investigação a que

nos propusemos é a fenomenologia desenvolvida por Alfred Schutz.

Para a compreensão e justificativa dessa escolha, é necessária a exposição de

alguns conceitos importantes do sistema de Schutz, para em seguida ser feita uma

síntese de sua utilização como elementos do método desenvolvido. A fenomenologia

busca a descrição de atos aos quais foi atribuído algum sentido pela consciência. É

nesse fato que reside a importância da fenomenologia para a análise dos resultados de

nossa investigação.

A fenomenologia elaborada por Alfred Schutz constitui uma síntese da filosofia

de Edmund Husserl – na qual se podem identificar contribuições de Henri Bergson,

William James, Max Scheler, George Herbert Mead – e da sociologia interpretativa da

ação social de Max Weber. Schutz criou as estruturas de uma sociologia baseada em

considerações fenomenológicas. Ou seja, em considerações que levam em conta o

modo como os sujeitos vivenciam o mundo que os cerca, atribuindo-lhes sentido.

Os conceitos de consciência, experiência, conduta, ação, corrente de

consciência, relevância, motivação, intencionalidade e significado são imprescindíveis

para a compreensão e utilização da fenomenologia como ferramenta metodológica de

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investigação e análise. Assim como também é fundamental a compreensão da tipologia

da racionalidade e da ação desenvolvida por Max Weber. Essas são as razões pelas

quais tais conceitos são revisitados e discutidos abaixo, antes de apresentar sua

utilidade integrada, como ferramenta metodológica.

3.1 A fenomenologia de Alfred Schutz – conceitos básicos

3.1.1 Experiência vivida e consciência

A análise fenomenológica estabelecida por Schutz busca a descrição dos atos

intencionais da consciência. A consciência é sempre consciência de alguma coisa, está

ligada ao conteúdo das experiências humanas. É por isso que se diz que,

fenomenologicamente, a consciência é intencional. Ela é dirigida a objetos, reais ou

imaginários, materiais ou ideais. A consciência intencional significa a atribuição de

sentido a algo, seja o trabalho, a família, a vivência cultural. Por isso, é constituída por

atos de significar, perceber, imaginar, pensar, desejar, querer, agir sobre algo. O ato

intencional da consciência é como a consciência abre-se para o mundo em vivências

intencionais, subjetivas. E toda experiência é determinada não somente por uma

consciência, mas por uma abertura particular para o mundo objetivo, circundante.

Para a fenomenologia, uma atitude é uma ação somente à medida que o autor

da ação lhe atribui um sentido e lhe aponta uma direção, que pode ser compreendida

como significante. Temos então a ação intencionada e intencional, o que equivale dizer

que é uma ação dotada de significado pelo ator.

A ação à qual nos referimos neste trabalho é a ação dirigida às demandas

operativas nas fábricas de software, à família dos sujeitos, ao próprio corpo físico de

desenvolvedores, gerentes e executivos, às vivências culturais de cada um deles, a

pulsões de transcendência e o reflexo desses contextos em suas vidas subjetivas. Como

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atribuir sentido ao mundo cambiante das transformações tecnológicas? Como atribuir

sentido ao mundo da vida afetado por essas transformações?

Como ficará claro adiante, o processo de atribuir sentido à ação

necessariamente precisa passar por um processo de reflexividade associada a tipos de

ação que se relacionam.

A experiência vivida, em sua essência, é privada e inalcançável – mas o seu

sentido, a sua significação, tornam-se públicos através da fala. Quando a descrição é

feita, dá-se, então, a tentativa de romper, pela comunicação, a impossibilidade da

apreensão total dessa experiência subjetiva. As pessoas ou o grupo de pessoas deixam

um conjunto de traços verbais dos pensamentos que devem ser decifrados, tanto quanto

possível, na sua vivacidade representativa. Essa é a razão pela qual escolhemos o

modelo de entrevistas para tentar compreender o fenômeno por nós estudado.

No caso dos profissionais do software, o aparecimento da reflexividade é um

fenômeno da consciência intencional por excelência na medida em que atribui sentido

ao fluxo de informações a que essas pessoas são submetidas, ao seu próprio trabalho, à

vida fora do trabalho. Essa consciência que atribui significados é, em fenomenologia,

uma consciência transcendental. Ela permite a separação entre o sistema da

racionalidade técnica do trabalho e o mundo da vida, entre o trabalho e a durée através

de um mecanismo de reflexividade.

Dentro de cada consciência pessoal, o pensamento é sensivelmente contínuo e mutável e, como tal, comparável a um rio ou corrente. “Corrente de pensamento”, “corrente de experiências ou cogitações”, “corrente de vida pessoal consciente”, são esses os termos usados por Husserl e James para caracterizar a essência da vida pessoal interior (SCHUTZ, 1979, p. 57).

Durante o curso da vida, vivemos nossas experiências e perdemos os atos da

experiência subjetiva em si. Para revelar tais atos subjetivos, é necessário primeiro, diz

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Schutz, “mudar a atitude ingênua com a qual nos dirigimos aos objetos e temos de nos

voltar para nossas próprias experiências, num ato específico de reflexão...” (SCHUTZ,

1970, p. 58). Nosso trabalho foi identificar como os profissionais do software passam

por esse processo de se voltar para as próprias experiências através da reflexão.

Em seguida, Schutz afirma a necessidade da descrição dos tipos e formas de

intencionalidade, que pode ser feita em dois níveis: dentro da atitude natural e através

da redução fenomenológica. A descrição da intencionalidade do ponto de vista natural

aceita sem questionamentos a existência do mundo exterior, o mundo de fato que nos

cerca. Ou seja, existe a crença ingênua na existência de um mundo exterior e de que

essa existência determina nossa percepção e o sentido passível de ser atribuído ao

conjunto dessas experiências. A redução fenomenológica suspende essa crença,

impede julgamentos com relação à existência espacial e temporal, coloca entre

parênteses os julgamentos do senso comum da vida cotidiana sobre o mundo exterior.

O que sobra desse processo é a totalidade concreta da corrente de nossa

experiência – percepções, reflexões e cogitações –, a identificação do modo como a

consciência se abre para o mundo circundante, o mundo das experiências sensíveis.

Tais cogitações são intencionais – elas dão sentido aos objetos. No nosso caso, o maior

interesse está voltado para as intencionalidades (os sentidos) atribuídos a um objeto

específico, que é a ação dos indivíduos. O método da redução fenomenológica dá

acesso à corrente de consciência em si. A psicologia fenomenológica tem justamente a

tarefa de descrição da corrente da consciência em si.

A redução transcendental é importante para a Psicologia Descritiva Fenomenológica porque revela a corrente da consciência e suas características no seu estado puro e, acima de tudo, porque certas importantes estruturas da consciência somente se tornam visíveis através dessa redução. Como cada determinação empírica da

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redução fenomenológica corresponde, necessariamente, a uma característica paralela na esfera natural, e vice-versa, podemos sempre voltar à “atitude natural” e nela utilizar o discernimento que ganhamos dentro da esfera da redução (SCHUTZ, 1979, p. 59).

Neste trabalho não utilizamos a psicologia descritiva fenomenológica. Mas foi

importante para a realização da análise dos resultados o conceito de corrente de

consciência e a noção de que os elementos subjetivos nela só podem ser observados

pelo indivíduo de forma reflexiva, através de um ato de atenção própria.

3.1.2 Conduta, Ação Consciente e Motivação

Na fenomenologia de Alfred Schutz, a conduta se refere às experiências de

significado subjetivo na vida interior do sujeito ou que afetam o mundo exterior. A

conduta pode ser “aberta” ou “encoberta”. Schutz chama a conduta “aberta” de “mero

fazer” e a conduta “encoberta” de “mero pensar”. Essa diferenciação é importante

porque a ferramenta metodológica que usamos leva em consideração que todos os

tipos de atividades chamadas automáticas de nossa vida interior e exterior – habituais,

tradicionais, afetivas - situam-se nessa classe.

Nesse sentido, a ação é uma conduta prevista, baseada num projeto

preconcebido. A ação pode ser encoberta ou aberta. Se nesse tipo de conduta

encoberta projetada há uma intenção de realização, de desenvolvimento, para acarretar

o estado de coisas planejado, a intenção se transforma em objetivo e o projeto, em

propósito. Se falta essa intenção, a ação projetada é um devaneio, uma fantasia.

A ação encoberta projetada também é chamada de desempenho quando existe

intenção de realização. Um exemplo é o processo de pensar projetado como tentativa

de solução mental de um problema científico. Qualquer ação aberta, por outro lado,

por acontecer no mundo concreto, é desempenho, trabalho. Trabalho é, então, a ação

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no mundo exterior. Mas devemos nos perguntar também o que move a ação. As ações

também podem ser consideradas como comportamento motivado. O termo motivação

se relaciona a dois conceitos que, por sua utilidade na análise metodológica dos dados

coletados, precisam ser mais bem explicados. Schutz afirma que existem duas classes

de motivos (SCHUTZ, 1970). Uma se projeta para o passado, e a outra se refere ao

futuro.

A classe de motivos “a fim de” constitui o próprio ato projetado, ou seja, é o

resultado da ação concluída, a finalidade da ação. Como já dito, essa classe de

motivos, do ponto de vista do ator, se refere ao futuro. A outra classe de motivos, que

se opõe a essa primeira, são os motivos “por que”. Eles explicam a ação, são a causa

da ação e se projetam para o passado, para experiências já vividas. É a determinação

pessoal, a situação pessoal e contingente que gera (que motiva) a ação, a história de

vida do sujeito consciente.

Na medida em que o ator vive em sua ação em curso, ele não tem em vista os seus “motivos por que”. Somente quando a ação é realizada, quando, na terminologia que propusemos, ela se torna um ato, é que ele pode voltar-se para sua ação passada, como um observador de si próprio e investigar em que circunstâncias foi determinado que fizesse o que fez (SCHUTZ, 1970, p. 125).

O “motivo a fim de” só é revelado quando perguntamos ao autor da ação qual o

significado que ele dá à sua ação. Está relacionado à atitude em curso e é subjetivo. O

“motivo por que” é uma categoria objetiva, que é acessível ao observador por meio da

reconstrução da ação a partir do ato realizado. O ator capta os “motivos por que” a

partir de um ato de reflexão. Schutz considera a ação consciente como aquela em que

se tem em mente a figura do que será realizado, do seu resultado, do ato concreto

finalizado. Aliás, a palavra “ato” tem essa característica: ela se refere ao resultado

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final, concreto, do processo da ação. Pois bem, conforme prosseguimos para a ação,

continuamente retemos a figura diante de nosso olho interior (retenção) ou de vez em

quando a relembramos (reprodução).

A experiência total da ação é complexa: ela contém as experiências da

atividade em si à medida que ocorre; vários tipos de atenção no que concerne àquela

atividade; retenção do ato projetado – todas esses fatores são consultas ao mapa

idealizado, à situação ou ao contexto que se quer alcançar. Essa consulta é constante e

se constitui na própria essência da reflexão. Como conhecemos a ação consciente, ou

seja, como ela se apresenta, como se evidencia?

Quando ainda em fase de projeto, o ato pode ser claro, cheio de detalhes, ou

vago. A fenomenologia de Schutz nos diz que o esboço do ato é cheio de lacunas ou

variáveis. À medida que a ação progride e se concretiza, as lacunas são preenchidas e

as variáveis recebem valores e acontece uma comparação, a cada passo do caminho,

com o esboço feito no início do projeto. Só quando a ação é completada é que temos

consciência integral da ação (SCHUTZ, 1967).

O significado de uma ação é o seu ato correspondente. Ou seja, o que dá

significado à ação é o resultado pretendido dessa ação, pois sabemos que ela é

comportamento orientado em relação a um plano ou projeto anteriormente elaborado.

É importante atentar para o fato de que nossas experiências presentes se relacionam

também com o futuro, da mesma forma que se relacionam com as experiências do

passado através de retenções e lembranças (SCHUTZ, 1967). Esses dois elementos

também são usados no relacionamento do sujeito consciente com o seu futuro.

Na vida diária, o senso comum trabalha e usa dois tipos de idealizações, que

penetram no senso comum (lebenswelt). Uma dessas idealizações são as do tipo “e

assim por diante” (und so weiter) – suposição de que o que provou ser válido até agora

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continuará válido até que se prove o contrário. O correlato subjetivo dessa idealização

é o tipo “posso fazer isso de novo” (ich kann immer wieder) - são suposições de que

em condições semelhantes pode-se provocar resultados semelhantes a partir de ações

semelhantes.

Noutras palavras, essas fórmulas ideais implicam a suposição de que a estrutura básica do mundo como o conheço e, conseqüentemente, o tipo e estilo da minha experiência dele e do meu agir dentro dele permanecerão inalterados até segunda ordem (SCHUTZ, 1979, p. 135).

As duas classes de suposição encerram certo nível de indeterminação no

horizonte e “podem ser preenchidas pelas ocorrências futuras ou podem explodir”

(SCHUTZ, 1979, p. 135). A razão dessa indeterminação está ligada, em parte, à

mudança constante no estoque de conhecimento disponível à mão e ao fato de que as

antecipações e expectativas que fazemos do ato se referem a ocorrências situadas numa

constelação de tipos possíveis. Não se imagina que as ocorrências futuras, as

planejadas, aconteçam num cenário único, dentro de um contexto único, mas

vinculadas a múltiplas possibilidades e formas de se concretizarem. A questão do

estoque de conhecimento, por outro lado, traz outros complicadores.

Na verdade, existe um duplo relacionamento entre o estoque de conhecimento à

mão (e sua dinâmica) e os projetos a que se entrega o indivíduo. Por um lado, existe a

referência às experiências de atos anteriormente praticados, que podem ser repetidos;

por outro, a referência do projeto ao sistema de interesses (relevâncias) que são

hierarquicamente organizados. O estoque de conhecimento determina as antecipações

da ação concluída em termos de tipos. Novas experiências, que se adicionam ao

estoque de conhecimento, alteram os interesses principais do sujeito e com isso o seu

sistema de relevâncias. Acontece que o sistema de relevâncias determina o sistema de

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tipos. Assim sendo, as alterações no sistema de relevâncias, em razão de novos

conhecimentos e experiências, alteram os tipos que existiam no momento da

antecipação. Outros serão os tipos quando o evento antecipado realmente ocorrer –

quando se fizer ato e assim se tornar elemento do presente vivido desse sujeito

consciente. O acúmulo crônico de informação e de conhecimento, característica do

trabalho de desenvolvimento de softwares, altera o mapa que guia o indivíduo. Esse

fator tem um poder de desorientação e de descentramento do sujeito que parece

encontrar respostas nas estratégicas de auto-reflexão, as quais tentamos identificar

nesse trabalho.

Pode-se dizer que um evento que ocorre foi esperado se o que acontece realmente corresponde, na sua tipicidade, às tipicidades à mão em nosso estoque de conhecimento na ocasião de nossa antecipação de sua ocorrência. No entanto, o ponto importante a ser salientado é o fato de que somente em retrospectiva é que uma ocorrência acaba tendo sido esperada ou inesperada (SCHUTZ, 1979, p. 137).

O estoque de conhecimento ainda interfere no processo de projeto da ação. Isso

significa que a possibilidade prática de desenvolver uma ação depende do estoque de

conhecimento disponível pelo indivíduo. É como se a possibilidade de praticar a ação

projetada significasse que, de acordo com o meu conhecimento atual, a ação projetada,

pelo menos com relação ao seu tipo, teria sido viável se tivesse ocorrido no passado.

O projeto do ato é realizado com base em experiências passadas, em andamento

e no estoque de conhecimento disponível. Na verdade, tanto as experiências passadas

quanto as que são vividas no processo em andamento se incorporam ao bojo de

conhecimento. É a referência a esse estoque de conhecimento o que diferencia o

projeto em sua acepção do mero fantasiar. Ou, por outras palavras, o projeto de

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desempenho ou de ações em aberto é um fantasiar motivado, restrito à intenção

posterior. A viabilidade ou não do projeto condiciona o ato de projetar, que sofre a

imposição da realidade dada. O projeto é um pensamento em potencial. Essa

potencialidade – sua esperança e possibilidade de se realizar – obriga o indivíduo a

levar em consideração somente os meios e fins que permanecem compatíveis e

consistentes em relação aos elementos típicos da situação que garantiram a viabilidade

prática do projeto em ações semelhantes no passado: os meios e fins considerados são

aqueles que provaram ser tipicamente relacionados à viabilidade do projeto.

Depois de o projeto ter sido concebido, ele sofre modificações em sua estrutura

no processo de busca do objetivo, de tentativa de solução para o problema, de

campanha pela realização do ato. Essas modificações determinam, ou realinham, a

ordem de relevâncias do indivíduo e, em decorrência, o estoque de conhecimento que é

montado. O projeto, assim, unifica passado e futuro. No que se refere ao passado, ele

resgata a mais remota experiência que se relaciona com o projeto. E, no que se refere

ao futuro, ele determina o próprio limite do presente vivido através da antecipação dos

projetos concebidos, como se eles fossem vistos no tempo futuro perfeito.

3.1.3 Corrente de consciência

A corrente interior de duração – durée – se opõe ao tempo que se espacializou,

o tempo descontínuo, delimitado. Na duração de tempo pura, não existe delimitação de

vivências, e sim uma transição constante de estados; não existe divisibilidade ou

paralelismo (SCHUTZ, 1967). Os atos humanos são vistos como processos conscientes

duradouros, contínuos, um fluxo de experiências alocado em um tempo fixo, imóvel.

Assim sendo, imerso na corrente de consciência, o indivíduo não encontra nenhuma

experiência nitidamente diferenciada. Em que um estado desses pode nos ajudar? A

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corrente de consciência ainda não foi alcançada pela reflexão, que pertence ao mundo

do tempo e espaço delimitados da vida cotidiana. A estrutura da experiência vai variar

conforme nos entregamos ao fluxo da “duração” ou paramos para refletir sobre ela,

tentando classificá-la com conceitos espaciotemporais.

Podemos vivenciar os atos humanos como um processo constante, contínuo –

como fenômenos da vida interior. Podemos também analisar os atos humanos como

eventos distintos, divididos e distribuídos no espaço, tais quais atos congelados,

medidos e completos. Os dois aspectos aparecem, nos diz Schutz, em toda a

experiência em geral.

O fluxo de experiências na duração pura e as imagens e experiências

descontínuas, delimitadas no mundo do tempo e do espaço, diferem e se afastam,

essencialmente, pela percepção do tempo. A diferença entre os dois contextos é uma

diferença de nível de consciência. Na vida cotidiana, a ação do ego é marcada pelo

tempo e pelo espaço. O ego vive uma atenção à vida contingente que o impede de

mergulhar na duração pura da consciência. E a duração pura da consciência é marcada

pela impossibilidade de diferenciação do tempo em que as experiências individuais

ocorrem. Entre os dois momentos não há lembrança.

De fato, quando estou imerso na minha corrente de experiência, na minha durée, não encontro nenhuma experiência nitidamente diferenciada. Num dado momento, uma experiência “se acende”, e logo “se apaga”. Enquanto isso, alguma coisa nova surge do que era alguma coisa velha e cede então lugar a alguma outra coisa ainda mais nova. Não posso distinguir entre o Agora e o Antes, entre o Agora mais recente e Agora que acaba de passar, exceto porque sei que o que acaba de passar é diferente do que se passa agora. Pois eu vivencio a minha duração como uma corrente irreversível, unidirecional, e vejo que de há um momento atrás a agora mesmo eu envelheci. Mas não posso estar atento a isso enquanto ainda estou imerso na corrente. Na medida em que toda a minha consciência permanece temporariamente unidirecional e irreversível, estou inconsciente tanto do meu próprio

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envelhecimento quanto de qualquer diferença entre presente e passado (SCHUTZ, 1979, p. 61).

Para perceber essa diferença é necessário um tipo especial de atitude reflexiva.

É essa atitude especial que permite que a consciência da experiência na corrente de

duração pura seja transformada em lembrança. É a capacidade de diferenciar tempos

diferentes pela lembrança – resultado da atitude reflexiva – que transforma as

experiências individuais dentro da corrente de consciência em experiências

intencionais. As ações intencionais que estamos perseguindo são atitudes tomadas com

relação às experiências intencionais. Por essa razão, a necessidade de aprofundar o

entendimento do surgimento da experiência intencional.

A experiência intencional surge na percepção de que cada instante é diferente

do instante anterior por conter o instante anterior na forma de “modificação por

retenção”. Mas, para perceber isso, é necessário sair do fluxo de duração, que também

pode ser compreendido como um continuum de instantes e respectivas experiências.

Essa saída acontece por intermédio de um ato de reflexão sobre a experiência de viver.

As experiências então são apreendidas, distintas, acentuadas, marcadas, uma com

relação à outra – as experiências que foram constituídas como fases de um fluxo de

duração tornam-se agora objeto da atenção como experiências constituídas. A atenção

acontece sobre uma experiência passada, o que delimita a experiência em sua

temporalidade.

Pelo fato de que o conceito de experiência significativa sempre pressupõe que a experiência cujo significado é predicado é uma experiência delimitada, fica agora bastante claro que somente uma experiência passada, isto é, uma experiência que é vista em retrospectiva, como já acabada, terminada, pode ser chamada de significativa (SCHUTZ, 1979, p. 63).

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Só olhando para trás, retrospectivamente, se percebem experiências delimitadas

e significativas. Essa operação de reflexão atribui intencionalidade à experiência.

3.1.4 Atribuindo significado à conduta

O comportamento (a ação) é uma experiência da consciência atribuidora de

significado, de sentido. É necessário diferenciar esse tipo de experiência das outras

experiências. Nem todas as experiências são atribuidoras de sentido. As experiências

passivas, as associações, as experiências que ocorrem dentro da consciência de tempo

original, a experiência da constituição da temporalidade imanente, não podem atribuir

significado.

Só podem atribuir significado as experiências que são ato do ego

(comportamento) ou modificações desse ato de forma passiva ou por julgamento

passivo.

É possível, se assim se desejar, definir os atos relativos a ‘tomar atitudes’ como atos relativos à atividade criadora primária, desde que, como fez Husserl, incluam-se aqui os sentimentos e a constituição de valores através de sentimentos, sejam esses valores vistos como fins ou como meios (SCHUTZ, 1979, p. 66).

Ou seja, a experiência atribuidora de significado pode ser o ato do ego, o

comportamento – atitude – a atividade espontânea ou suas formas secundárias

modificadas: a retenção e a reprodução, das quais já falamos. A diferença básica entre

essas experiências conscientes é que o comportamento tem uma intencionalidade

primordial (uma atribuição de significado ao objeto sobre o qual age), e essa

intencionalidade primordial permanece a mesma nas modificações intencionais e nas

atividades espontâneas. Isso significa que a ação com atitude consciente que atribui

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sentido é um ato primordial sobre o qual acontece modificação em termos de retenção

ou lembrança, o que só pode ocorrer de forma reflexiva.

A ação (acontece em fases) como atitude consciente que atribui sentido tem

uma resposta, um reflexo no mundo concreto. A reflexão sobre essa ação acontece por

intermédio de retenção – no caso da ação que ocorre em fases - e memória

(lembrança). A essência do que é apreendido reflexivamente é a mesma do ato em si,

remete à atitude espontânea. Uma intencionalidade básica/primordial vinculada à

atividade espontânea diferencia o comportamento (que é constituído de uma série de

experiências) de outras experiências da vida.

3.2 A contribuição de Max Weber

3.2.1 Conduta subjetivamente significada

Para Weber, a conduta humana só é considerada ação quando esta é dotada,

pelo autor, de significado e de direção – direção essa que pode ser compreendida como

significante. Ou, em outras palavras, a conduta é considerada ação quando é dirigida a

um objeto. Quando se aciona o estabilizador de um computador e em seguida se aciona

o botão que liga o computador, estas são ações com significado, com sentido. Até aqui,

não há um referencial social necessário.

Existe uma diferença específica quando a conduta é direcionada a outro ser

humano. Neste caso, a ação adquire um novo peso significativo porque é direcionado

para outro “eu”. Nesse novo contexto, a ação só pode ser compreendida pressupondo a

existência desse outro “eu”. Mas, segundo Weber, não é suficiente que uma ação

estabeleça o contato com outra pessoa para que ela seja qualificada como ação social.

É necessário que a conduta direcionada a outra pessoa seja orientada

significativamente. Ou seja, uma trombada entre dois ciclistas pode ser comparada a

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um evento natural. Mas a tentativa de evitar o choque e, quando isso for impossível, os

insultos, a discussão, os pedidos de desculpas, constituem ações sociais por estarem

impregnadas de sentido e significação.

Assim, a ação social implica não somente a consciência da existência do outro,

mas também do significado da ação do outro – é um terceiro e mais profundo nível de

significação. A ação social ainda é orientada, em alguns casos, pela conduta do outro.

Todas essas estruturas de significado são compreendidas pelo ator social, o que só

pode significar que este baseia sua ação na compreensão que tem da conduta dos

outros. Todos esses níveis de significação da ação (condução direcionada) atribuem

sentido e significado ao mundo em que o ator social está imerso por se referir a

objetos, a pessoas e a relações sociais.

Para Weber, é preciso notar, a conduta significativa é conduta racional, e mais:

é conduta orientada por um sistema de fins individuais discretos (zweckrational). Em

sua sociologia compreensiva, essa conduta é o arquétipo da ação. Essa orientação da

ação é, em Weber, o modelo de construção significativa. Essa conduta intencionada e

intencional torna-se social quando é dirigida à conduta dos outros – essa é a ponte

existente entre a sociologia compreensiva de Max Weber e a fenomenologia,

aproveitada na sociologia fenomenológica de Alfred Schutz.

Assim, a subjetividade é um critério imprescindível para a compreensão da

ação humana, no sentido de significado atribuído, utilizando-se recursos da sociologia

compreensiva de Max Weber. Procuramos, assim, construir um tipo extremo ou ideal

para as condutas identificadas entre os profissionais do software, no que se refere às

demandas do trabalho e à relação dessas demandas com processos de reflexividade.

Esse objetivo requer a utilização da tipologia de racionalidade e de ação social criada

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por Max Weber. O objetivo é, usando os tipos de racionalidade por ele desenhadas,

identificar as estratégias de reflexividade associadas à ação racional desses indivíduos.

3.2.2 Tipos de racionalidade e de ação

As formas como os processos de racionalização avançam e acontecem são

múltiplas e se espalham em fenômenos e contextos externos e internos. A

racionalização ocorre em diversas esferas da vida. A importância da utilização dos

tipos de racionalidade estabelecidos por Max Weber está, como mostrou Kalberg

(1980), no fato de que as quatro categorias de racionalidade manifestam-se em uma

multiplicidade de processos, orquestrados em todos os níveis do processo social e

civilizacional.

Processos qualitativamente diferentes de racionalização potencialmente avançam e tomam lugar em vários níveis socioculturais em diferentes esferas da vida, naqueles relacionados à organização externa da vida (lei, política, economia, dominação, conhecimento) e esferas internas (religião, ética) (KALBERG, 1980, p. 25).

Assim, cada campo (de conhecimento, de atividade, de profissão, de

preconceitos...) tem associado a ele vários processos de racionalidade, em maior ou

menor grau. É necessário lembrar que os conceitos desenvolvidos por Weber são

válidos em termos daquilo que eles são de fato: conceitos. São classificações criadas

pelo homem que servem para a investigação sistemática de determinado fenômeno.

Não representam de modo ideal a realidade, mas apontam para a compreensão de sua

essência em termos de tipos.

A racionalidade substantiva estabelece padrões de ação baseados em

experiências do passado, do presente ou em postulados de valor (na verdade, conjunto

de valores que variam em consistência interna e conteúdo). Essa é a razão pela qual se

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diz que esse tipo de racionalidade existe como uma manifestação da inerente

capacidade do homem para ações orientadas racionalmente por valores. Exemplos de

racionalidade substantiva podem ser circunscritos a certas áreas da vida. É o caso da

amizade, e das idéias que movem o comunismo, o feudalismo, o hedonismo e mesmo

as noções de estética. Diferem na forma de organizar as ações e diferem em conteúdo.

Mas os postulados de valor orientam a ação no mundo da vida quando articulam a

racionalidade substantiva. Tais postulados são múltiplos, variados, infinitos e, em

princípio, transmitem tal característica para os meios de vida dos indivíduos.

Pequenos grupos, organizações, instituições, entidades políticas, culturas e civilizações, são, em cada era, ordenados em termos de postulados de valor específicos, mesmo que isso não seja identificável pelos seus participantes e possa ser tão fundamentalmente estranho para os valores do pesquisador social que só muito raramente ele possa imaginar situações nas quais elas adquirem validade (KALBERG, 1980, p. 1155).

Weber entendeu que a racionalidade substantiva é a expressão de pontos de

vista supremos. Cada ponto de vista implica uma configuração identificável de valores

que determinam a direção de um processo de racionalização. Não existem, entretanto,

valores absolutos que sirvam como padrões perenes para os processos de

racionalização. Kalberg afirma que a racionalidade substantiva está associada a uma

abrangência radical em que a existência de um processo de racionalização difere da

preferência por outros valores. Tais valores podem ser sugeridos ou já estabelecidos na

vivência do indivíduo, são conscientes ou inconscientes. Formas de ver o mundo

pautadas pela racionalidade substantiva podem diferir entre si dentro de certa esfera.

Kalberg chama a atenção para o caso da religião, em que pontos de vista baseados em

valores se autoproclamam processos de racionalidade.

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De forma geral, a racionalidade substantiva não tem como base somente o

cálculo de fins. A ação do indivíduo pautada pela racionalidade substantiva é

determinada também pelo contexto. Pode-se dizer também que a ação, nesse caso,

manifesta-se sobre elevado conteúdo ético, orientada por um caráter de transcendência.

Essa racionalidade está, como já apontado, vinculada a valores humano-sociais que

privilegiam a cooperação e a compreensão entre pessoas, a emancipação da

consciência pessoal, a preocupação com o bem-estar.

Também no campo da moral, como ainda frisa Kalberg, o proponente da ética

da convicção sempre proclama que a adesão à ética da responsabilidade é uma posição

irracional. E, da mesma forma, os defensores de valores universais têm a mesma

posição em relação aos proponentes de valores particularistas. A preocupação de

Kalberg é apontar para as múltiplas dimensões dos processos de racionalidade. A

conseqüência mais evidente dessa forma de encarar os valores é que não pode a ciência

provar que esse ou aquele valor é superior a outro.

Por seu lado, a racionalidade formal geralmente se relaciona com esferas da

vida e estruturas de dominação que vieram a adquirir fronteiras somente com a

industrialização nas esferas da economia, da lei e da ciência, além da própria

burocracia. A racionalidade formal legitima as ações e cálculos de meios-fim ao se

referir a regras, leis e regulações gerais. A racionalidade formal, portanto, rejeita todo

tipo de arbitrariedade. O universalismo de regulação e de cálculos é oposto, por esse

tipo de racionalidade, à decisão tomada em referência a qualidades pessoais ou

individuais. Personalidades distintas e diferenças em relação a status são submetidas a

cálculos e procedimentos pautados pela racionalidade formal.

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Kalberg argumenta que, do ponto de vista técnico, a burocracia, um tipo de

racionalidade formal, é o tipo de dominação mais racional, porque ela executa não

mais que cálculos, do modo mais preciso e eficiente, para a solução de problemas, ao

ordená-los sob regulações universais e abstratas. Os procedimentos de ciência

experimental são também tomados por Weber como racionalidade formal. O cálculo

procede nesse caso, em relação a regras comuns (conhecidas e divididas entre os

pesquisadores) de experimentação.

Essa é uma forma de regulação racional mais sofisticada do que aquela

verificada nas formas de dominação burocrática ou econômica e legal. A observação

empírica, a quantificação e a medição sistemáticas são responsáveis por controle

metódico, especialmente no laboratório. É possível perceber, pois, que a consecução de

cálculos tecnicamente viáveis baseados em fins acontece sem que se dê prioridade a

interesses pessoais.

A racionalidade prática pautas as ações por interesses pragmáticos e egoístas.

Esse tipo de racionalidade aceita como dadas as realidades vivenciadas pelo sujeito e

calcula as melhores formas de se relacionar com as dificuldades que elas apresentam,

em vez de guiar as ações em função de um sistema maior de valores. A racionalidade

prática parece viver a plena contingência. São a experiência e os interesses do dia-a-dia

que pautam a ação pragmática vinculada à racionalidade prática. Os fins práticos são

cuidadosamente buscados em termos de cálculos precisos dos meios mais adequados

para isso. Kalberg afirma que esse tipo de racionalidade existe como uma manifestação

da capacidade do homem para a ação racional orientada por fins. Kalberg ainda

salienta que, como resultado de suas atividades típicas, o estrato civil formado por

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mercadores, artistas, comerciantes, mostra uma tendência para ordenar seus meios de

vida através da racionalidade prática.

A predisposição pragmática dos padrões de ação racional prático implica uma subordinação dos indivíduos a dadas realidades e uma concomitante inclinação a se opor a todas as orientações baseadas em transcendência da rotina diária. Tais pessoas geralmente desconfiam não somente de todo esforço no sentido de vivência para além da contingência, seja ela uma utopia religiosa ou secular, assim como também racionalidade teórica abstrata de todo estrato intelectual (KALBERG, 1980, p. 1152).

Enfim, a racionalidade prática está relacionada com a visão e juízo do

indivíduo sobre uma prática qualquer assumida por ele. As ações no cotidiano

(moldadas pela contingência) fornecem a direção do comportamento adotado. Nesse

tipo de racionalidade, o indivíduo está subordinado às vicissitudes do dia-a-dia. Esse

tipo de racionalidade parece estar vinculado de forma muito próxima a um tipo de

reflexão operativa, técnica, pouco analítica do contexto geral que delimita a

racionalidade prática e sua ação respectiva. Ela se estabelece e é guiada pela

contingência do dia-a-dia.

Já a racionalidade teórica envolve a construção de conceitos abstratos precisos

no processo de construção/apreensão/domínio da realidade, em detrimento da ação.

Esse tipo de racionalidade acontece quando ocorrem julgamentos internos que

determinam o freio do comportamento. A concretude da racionalidade formal está na

formação típica de um significado simbólico. O que há de comum às racionalidades

tipificadas por Weber? O denominador comum parece ser formado pelos processos

mentais que conscientemente ajudam a controlar a realidade. Todos os processos de

racionalidade e as ações a cada uma delas associadas confrontam, sistematicamente, a

realidade de ocorrências concretas, eventos desconectados ou acontecimentos pontuais.

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Todas as racionalidades, para Weber, tentam eliminar as percepções particularizadas

ao ordená-las em regularidades compreensivas e significativas.

Na análise weberiana, o potencial para controlar conscientemente essa

realidade, comum às racionalidades por ele identificadas, se consolida como um fator

central. Fatores históricos e sociológicos determinam se certa realidade terá expressão

como um processo mental isolado ou se terá uma “reverberação”, uma contraparte de

ação. Na verdade, existem afinidades eletivas entre certas ordens e tipos particulares de

ação. Tais ordens institucionalizam um particular tipo de ação formal ou substantiva e

podem gerar vários tipos de racionalidades.

Kalberg chama a atenção para a racionalidade substantiva produzida por

profetas, padres e teólogos em doutrinas de salvação ética que são institucionalizadas

em organizações – igrejas, seitas, irmandades. Tipicamente, os fiéis são obrigados a

vivenciar esta racionalidade substantiva devido a uma constelação de valores. Há,

entretanto, pessoas que não padronizam suas ações consistentemente por essa

constelação de valores de forma absoluta. Nesses casos, os princípios éticos dentro da

religião funcionam como guias gerais para a ação, aos quais se adere ou se despreza,

dependendo da demanda momentânea. Há ainda os casos de pessoas que aderem a esse

tipo de racionalidade ética institucionalizada em função de seus próprios interesses.

Kalberg ilustra esse caso como os homens de negócios que aderiram ao calvinismo

para adquirir reputação de honestidade impecável. Nesse caso específico, os padrões

de racionalidade substantiva não são guiados por valores, e sim em função de um

objetivo-fim de tornar o negócio bem-sucedido.

Kalberg dá outro exemplo de como certas ordens legítimas de tipos de ação

estabelecem afinidades eletivas: o caso dos servos prussianos do século XIX, para

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quem a realização de tarefas de forma eficiente e a pontualidade no início do trabalho

diário seguiam uma constelação de valores baseada em uma ética burocrática na qual

as tarefas requeriam dependência, precisão, eficiência, pontualidade, disciplina e

estabilidade.

O que temos nesse exemplo é que um conjunto de valores se torna o meio mais

apropriado para a execução de padrões de ação relacionados a uma estrutura racional

formal e burocrática de servilismo. O que Kalberg tenta mostrar nesse exemplo é que a

burocracia como uma ordem legítima caracterizada por regulações abstratas pode ser

mantida por um número de diferentes razões, vinculada a determinada época. Em outro

contexto, a execução de tarefas pode ser determinada pelo simples medo de se perder o

emprego ou por adesão ao comportamento tradicional.

3.3 O trabalho de desenvolvimento de softwares e a atribuição de sentido à ação –

a razão de escolher a fenomenologia

Estamos agora em condições de deixar clara a razão da escolha da

fenomenologia desenvolvida por Alfred Schutz para investigar o problema a que nos

propusemos analisar. Os conceitos previamente apresentados se encaixam na realidade

concretamente identificada entre os profissionais do software. Isso porque parece

evidente que a possibilidade de reflexividade deve estar associada à capacidade de

atribuir sentido às experiências vividas. Essa disposição humana de procurar uma

unidade significativa à experiência, de associar a possibilidade de experiência a essa

atitude, é o ponto em que associamos fenomenologia e neokantismo.

A conduta do profissional pode facilmente ser enquadrada no esquema de

Schutz. As atitudes basicamente operativas de codificação, características do trabalho

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de desenvolvedores e gerentes, são condutas previstas, baseadas em projetos práticos

preconcebidos. Da mesma forma, as atitudes que se projetam para o futuro, que

buscam mudança do estado de coisas atual, são associadas a uma intenção que se

transforma em objetivo ou propósito.

O que move a ação desses profissionais? Todas as ações dos profissionais do

software – sejam elas de cunho puramente racional, vinculadas a aspectos operativos;

sejam elas pautadas por valores e associadas à busca por transcendência; sejam elas

controladas por pressupostos legais ou guiadas por pressupostos teóricos – preparam o

contexto, contingente ou estrutural, que articula as ações concretas dos sujeitos.

O trabalho de desenvolvimento de softwares é eminentemente reflexivo porque

se ancora na necessidade constante de atualização do conhecimento necessário para

sua performance, e requer a transformação das condições anteriormente dadas e a

antecipação de resultados. Desse modo, os recursos conceituais da fenomenologia nos

permitem classificar as ações operativas e sua posição na vida privada dos indivíduos.

A reflexividade assim associada à ação é circunscrita às atividades do trabalho.

Entretanto também precisamos considerar aspectos subjetivos da intenção e da ação

dos estratos profissionais analisados, pois ocorrem reflexividades associadas a outras

vivências dos sujeitos.

Seguindo esse caminho, vemos que as classes de motivos que se associam às

ações estão para além do círculo formado somente pelas demandas profissionais e elas

se instalam em interesses privados, pessoais, subjetivos. As reflexividades associadas à

ação tipicamente prática e à racionalidade prática não são suficientes para nos ajudar a

compreender a interação do indivíduo com as demandas representadas pelo próprio

corpo, pela família, por interesses subjetivos, por interesses e afinidades culturais –

nem mesmo suficientes para entender a interação com o trabalho.

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É preciso, assim, atentar para o cruzamento das várias racionalidades no

exercício reflexivo exigido pela profissão. E preciso também considerar que a

interação das racionalidades e as reflexividades associadas operam em círculos mais

amplos, para além do trabalho ou dos projetos profissionais dos indivíduos. Ao mesmo

tempo, essas vivências e prioridades externas às atividades nas fábricas de software

interferem no ofício e são por elas mesmas modificadas. Esses cruzamentos de

prioridades racionalmente delimitadas formam um leque complexo de interações.

Leque esse cerzido por mecanismos de auto-reflexão que se tocam, como a

malha de um tecido. Mecanismos e estratégias reflexivas associadas a racionalidades

substantivas e práticas convivem, e mais que isso: se interferem, se realimentam.

Precisamos, para compreender um pouco melhor a malha desse tecido, recorrer

novamente à análise das interações e relações entre os tipos de racionalidade feita por

Stephen Kalberg. Esse autor salienta, baseado na obra de Weber, que somente valores

e, particularmente, uma configuração unificada de valores são analiticamente capazes

de introduzir meios de vida racionais metódicos.

De forma mais explícita, Kalberg conclui que é somente a racionalidade

substantiva que possui o potencial analítico para introduzir meios de vida racionais

metódicos. As racionalidades teórica e formal são capazes de controlar aspectos da

vivência prática e contingente dos sujeitos, mas nenhuma das duas consegue

estabelecer atitudes consistentes ao longo da vida. Embora seja dotada da capacidade

de estabelecer atitudes consistentes ao longo da vida, a racionalidade prática

permanece simplesmente como reações a realidades heterogêneas e pontuais. Essa

racionalidade apenas ordena a reação a situações mutáveis, em vez de agir de forma

determinante sobre tais situações.

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Kalberg explica que os vários processos característicos da racionalidade teórica

confrontam a realidade e procuram manipulá-la abstratamente. Assim, o poder para

introduzir um meio de vida ou para suprimir a racionalidade pratica é restrito. Já a

racionalidade formal determina a ação de forma limitada a círculos burocráticos. É

assim que empregados públicos, advogados, cientistas executam as tarefas típicas de

suas profissões sob orientação de regras e leis. Segundo Weber, esse padrão de

racionalização não é suficiente para caracterizar a ação dessas pessoas em seus

relacionamentos pessoais, em sua capacidade como pais, nas horas de folgas do

trabalho ou na escolha de hobbies.

É por essa razão que Kalberg salienta que somente a ação orientada pela

racionalidade substantiva tem o potencial para introduzir meios de vida metódicos que

superem a racionalidade prática, baseada em interesses, e a orientação racional formal,

baseada em regras. Kalberg explica que isso acontece mais efetivamente depois que os

valores são racionalizados, através de um processo de racionalização teórica. E

enquadrados em um conjunto unificado de valores que compreensivamente se dirigem

a todos os aspectos da vida e os categorizam.

O conteúdo de valor dessas racionalidades substantivas varia ao longo de um

extenso espectro secular e religioso. A atribuição de valor é fundamental no processo

reflexivo de longo prazo, na crítica ao sistema, na mudança de postura diante do

trabalho. Os sujeitos atribuem novos valores a experiências e bens intangíveis,

subjetivos, o que interfere na ordem de relevâncias e prioridades ao longo do tempo.

A racionalidade operativa, de hegemônica, cede espaço à manifestação de

racionalidade substantiva e teórica. Isso é resultado de processos de auto-reflexão, mas

também interfere nos processos de reflexão, em um ciclo de interferência virtuoso. É

nesse quadro que as instâncias aparentemente opostas das várias racionalidades

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convivem e se cruzam na ação humana dos indivíduos. A racionalidade substantiva

atribui, segundo Kalberg, prêmios psicológicos à ação ética no mundo. Elevam-se os

padrões éticos ao status de uma racionalidade substantiva ética. Essa racionalidade

ética não envolve somente memorização de regras de conduta. Ela implica um

imperativo para a conformidade a uma boa moral interna e também uma disjunção

entre um cânone que reivindica status ético e o fluxo empiricamente dado de realidades

fragmentadas. Weber considera que a ação diária pode ser influenciada por

racionalidade ética, apesar de forças sociais opostas.

Somente racionalidades éticas – fundamentadas em valores - são capazes de

permanentemente suprimir as regularidades racionais práticas de ação ou intensificá-

las, transformando-as em ação ética prática. Esse movimento se assemelha ao de uma

reflexividade que age sobre as atividades práticas.

Vimos que o conhecimento interfere na ordem de relevâncias da razão, mas é

necessário acrescentar que outras experiências, além do conhecimento técnico, guiam a

ordem de interesses, vindo daí a ação. Vimos também que a compreensão tanto do ato

concluído quanto da ação em curso é acompanhada por atos de atenção. No primeiro

caso, somente com a ação concluída tem-se a noção exata de seu significado. No

segundo, a atenção, o ato reflexivo, funciona através da consulta ao mapa, à intenção

primeira que movia a ação.

Tanto do ponto de vista do ato - ou seja, do resultado da ação, da finalidade da

ação, do motivo “a fim de” - quanto da história anterior que explica a ação em termos

de passado, o motivo “por que”, os motivos só são conhecidos, ou reconhecidos em

termos de ações reflexivas. Assim, quando passamos a considerar outros tipos de ação

e de motivação na vida dos profissionais do software, precisamos também,

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necessariamente, identificar tais processos reflexivos, e a forma como eles interferem

no curso dessas ações.

3.4 A escolha das empresas

A escolha das empresas e dos profissionais a serem entrevistados obedeceu a

critérios cujo objetivo era representar o pólo de desenvolvimento de softwares da

cidade do Recife. As empresas procuradas são conhecidas como fábricas de software.

Elas desenvolvem programas, soluções gerenciais, de administração ou de execução de

tarefas baseadas em tecnologia da informação. Esses são os principais produtos

oferecidos pelas empresas que forneceram profissionais para as entrevistas.

Assim, a escolha das empresas seguiu a preocupação de selecionar instituições

que preenchem as exigências a seguir.

Presença nacional, com clientes em outros Estados

Essas empresas enfrentam concorrência acirrada e, por isso, têm a necessidade

de seguir modelos de produção nos quais se incluem a requalificação técnica constante

do corpo de profissionais, a utilização de processos de desenvolvimento de software

baseados em normas internacionais de qualidade, o uso de instrumentos (computadores

e softwares) de última geração e a contratação de profissionais com formação

universitária.

Esses critérios permitem compreender o campo em que se encontra o nosso

problema. Eles caracterizam empresas que concorrem internacionalmente com outras

instituições do segmento de TIC em termos de qualidade de desenvolvimento de

softwares. Por causa disso, desenvolvedores, gerentes e executivos vivem a

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necessidade de atualização constante de conhecimentos para se enquadrar num modelo

de trabalho específico.

Além do modelo de trabalho, a concorrência em si é um componente que se

reflete na pressão pelo cumprimento de prazos, por soluções contingentes efetivas, por

dedicação e flexibilidade de horários, por disponibilidade para o trabalho. Elementos

esses que influenciam a ação reflexiva que investigamos.

Mais de 50% do corpo técnico de profissionais formado em universidades

Essa delimitação buscou estabelecer o contato com profissionais do software

que receberam, através da formação universitária, a orientação para renovação do

conhecimento no setor de Tecnologia da Informação e Conhecimento. O objetivo

dessa delimitação foi evitar as empresas em que a formação precária dos trabalhadores

força não a reincorporação reflexiva de informação e conhecimento, mas a apreensão

irregular de informação para a solução precária de problemas pontuais, o que

prejudicaria a compreensão do sentido atribuído à qualificação crônica entre os

profissionais do software.

Por esse critério também procuramos selecionar, de forma indireta, um estrato

de pessoas com acesso maior a bens culturais. Esse recorte está de acordo com as

características gerais do profissional pós-industrial compreendido por Eliot Freidson:

flexibilidade, formação continuada e bem realizada. A importância desse fator está na

necessidade de se avaliar a influência de outros tipos de informações, além dos

técnico-operativos, nas ações dos sujeitos.

Com relação aos entrevistados, a escolha também seguiu critérios que

colaborassem com a investigação a que nos propusemos. Assim, por uma questão

operacional, todos os profissionais entrevistados trabalham em unidades de negócios

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ou empresas localizadas na cidade do Recife. Também foi dada preferência àqueles

com formação superior completa e atuação em um dos estratos escolhidos:

desenvolvimento de software, gerenciamento de projetos e outras atividades, além dos

cargos de executivos.

Ou seja, todos os entrevistados estão envolvidos no processo de

desenvolvimento de softwares, implantação, teste e ajuste de soluções computacionais.

E também na prospecção de demandas por programas no mercado formado por

empresas e órgãos públicos e instituições privadas, além de comercialização da

produção efetiva das fábricas de software.

O envolvimento em todas essas áreas do trabalho da fábrica de software exige

dos profissionais não somente o domínio da técnica, mas a disponibilidade para

incorporar novos conhecimentos e novas formas de realizar o trabalho para o qual se

foi treinado. A disponibilidade em reordenar a base do conhecimento necessária para a

realização de tarefas operativas não é exigida de todos os profissionais que trabalham

nas fábricas de software. Esses profissionais não estão envolvidos nos processos de

desenvolvimento de programas e, por isso, não precisaram ser entrevistados. É o caso

dos jornalistas que trabalham nas assessorias de imprensa das empresas, secretárias,

seguranças, entre outros. A faixa etária dos entrevistados não foi determinante para a

escolha de quem deveria ser entrevistado.

3.5 Entrevista

O modelo de entrevista, aplicado a 22 profissionais, serviu como um roteiro de

perguntas e respostas cuja principal finalidade era mesmo servir como um guia básico.

As perguntas foram elaboradas considerando-se um pré-teste realizado em janeiro de

2004, cujo objetivo era testar alguma das hipóteses e obter informações para as

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questões a serem realizadas. A entrevista foi semi-estruturada. Além da gravação

realizada durante a sessão de perguntas e respostas, foram feitas anotações.

As sessões de entrevista foram programadas para durar cerca de 30 minutos.

Embora algumas delas tenham durado bem menos ou bem mais que isso, a média geral

ficou em 30 minutos de conversação. As perguntas foram elaboradas com a intenção

de que surgissem novos temas ou questionamentos ao longo da entrevista.

As transcrições estão disponíveis no volume anexo a esta dissertação. É

necessário observar que o nome dos entrevistados, bem como o das empresas nas quais

eles trabalham, foi omitido. A razão desse procedimento está em evitar que eventuais

críticas realizadas ao modelo de trabalho possam prejudicar os entrevistados no

ambiente da empresa. Os cargos dos entrevistados foram mantidos.

Modelo da entrevista

Formação

1 – Qual seu nome e em que você é formado?

2 - Como você chegou a trabalhar neste lugar?

Trabalho atual

3 – Em que constituem suas atividades na empresa atualmente?

4 – Quanto tempo de trabalho é realizado no ambiente da empresa?

5 – Você prefere realizar seu trabalho na empresa ou noutro lugar? Por quê?

6 – Você tem idéia de quanto tempo durante a semana você trabalha na empresa ou em

casa?

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Atualização de conhecimento

7 - Que maneiras você encontra para renovar ou atualizar seu conhecimento?

8 - Com que freqüência você checa newsletters e fóruns durante um dia normal de

trabalho?

9 – Se essa checagem não acontecer, sua performance no trabalho pode ser de alguma

forma prejudicada?

10 – O que você sente quando não verifica e-mails, ou as newsletters ou fóruns que

utiliza?

11 - Qual a importância das rotinas de avaliação e atualização de conhecimento?

12 - Você participa de outro tipo de fórum ou assina algum tipo de newsletter?

13 – A internet é útil para obter conhecimentos para seu trabalho?

Futuro

14 - Como e onde você vê seu futuro profissional?

15 - Quais as perspectivas futuras de sua profissão e como ela vem se modificando?

Diversão e hobbies

16 - Fora do trabalho, o que faz para se divertir?

17 - Qual a importância dessas atividades para a realização de seu trabalho?

18 - Você já teve vontade de participar de alguma atividade cultural? Qual? Por quê?

Qual a importância de uma atividade como essa?

19 - Essa atividade que você tem hoje ajuda a refletir sobre sua vida e/ou trabalho? De

que forma?

20 - As atividades que reduzem a tensão das pessoas na sua empresa são parecidas?

21 - Você vê alguma razão para isso?

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22 - Você sente que o trabalho é mais bem realizado se as pessoas estiverem

envolvidas por essas outras atividades?

23 - Em que medida o trabalho exige que as pessoas se envolvam em atividades

culturais ou físicas?

24 - Como você divide o tempo entre trabalho e lazer?

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4. Campo de estudo

4.1 Caracterização do pólo de informática

O pólo de informática de Pernambuco é formado por cerca de 200 empresas,

que juntas são responsáveis por aproximadamente R$ 200 milhões da arrecadação de

Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). A face mais importante

desse pólo é constituída pelo sistema local de inovação chamado Porto Digital, que se

estende por 100 hectares da ilha do Recife, no Bairro do Recife. O Porto Digital é um

projeto de desenvolvimento econômico que envolve investimentos públicos e privados,

instituições de ensino e fomento, além de núcleos de pesquisa. Esse sistema local tem

por principal finalidade desenvolver e consolidar a infra-estrutura e as condições

necessárias para inserir a produção de softwares local no cenário tecnológico mundial.

Os últimos dados da participação desse setor na riqueza do Estado de

Pernambuco indicam que, em 2003, as empresas de tecnologia da informação e

comunicação representaram 3,49% do Produto Interno Bruto total do Estado. A taxa de

crescimento em relação ao ano anterior (2002) foi de 5,23%, o que em termos

financeiros representou um valor global de R$ 1,367 bilhão. O PIB do Estado, nesse

mesmo ano, foi de R$ 36,5 bilhões, com um crescimento de 4% em relação ao ano

anterior.

O PIB devido somente às atividades de tecnologia da informação no ano de

2003 foi estimado em R$ 408,21 milhões – com taxa de crescimento de 6,83%. Com

esse resultado, o PIB produzido pelas empresas de tecnologia da informação tem

participação de 29,85% no setor todo (que inclui ainda as empresas de comunicação).

A participação das empresas de TI é de 1,04% no PIB do Estado.

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Se levarmos em conta as empresas do setor de tecnologia da informação e

comunicação (portanto, incluindo as empresas de telefonia), a participação do setor de

TIC no PIB sobe para 3,49%.

Embora a participação da produção de riquezas devida ao setor de tecnologia

da informação e comunicação na economia do Estado ainda seja singela, a taxa de

crescimento é mais elevada que as taxas de crescimento do Estado, o que revela a

dinâmica desse segmento. Esses dados fazem parte do estudo Tecnologia da

Informação e Comunicação do Estado de Pernambuco, coordenado pela Agência

Estadual de Planejamento e Pesquisas de Pernambuco (Condepe/Fidem) e divulgado

no mês de abril de 2005.

Há dois anos, 10% da participação no PIB estadual era devido às atividades

comerciais no Porto Digital. Hoje, estima-se que metade da riqueza produzida pelo

pólo de informática nasça no Porto Digital. A projeção é que em 2007 esse percentual

suba para 70%. O Porto Digital foi criado em julho de 2000. Desde então, concentra as

principais iniciativas na área de tecnologia da informação e comunicação. Atualmente,

86 instituições, entre empresas, serviços especializados e órgãos de fomento, fazem

parte da iniciativa ou, como é comum dizer, estão embarcadas – 75% desse total estão

envolvidas com o trabalho e tecnologia da informação e comunicação.

Existem diversos segmentos de TIC no Porto Digital. Alguns deles se destacam

pelo alto faturamento que geram, pelo alto nível técnico que requerem ou ainda pela

presença em múltiplos aspectos da vida cotidiana.

Assim, destacam-se no Porto Digital as produções de games para celulares,

softwares para gestão, softwares para o setor de segurança, sistemas para

gerenciamento de tráfego e transporte, sistemas financeiros, sistemas para análises de

crédito, usabilidade de software e soluções integradas para desenvolvimento de portais,

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extranet e intranet. Do total de empresas instaladas no Porto Digital, 46 migraram de

outros locais da Região Metropolitana do Recife.

Mas também há presença de empresas de fora do Estado de Pernambuco e do

país com presença no Porto Digital e no pólo de informática de Pernambuco. Empresas

de outros Estados, como Impacta (SP), Telematic (Bahia) e Conecta (Brasília),

instalaram filiais no Porto Digital ainda em 2003.

Entre as empresas de outros países, a lista inclui IBM, Motorola e Microsoft. A

primeira transferiu para o Bairro do Recife sua sede regional. A Motorola desenvolve,

em parceria com o Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar),

softwares para celulares. A Microsoft instalou um centro de pesquisas XML

(Extensible Markup Language, linguagem de programação para internet), em parceria

com a Hewlett-Packard e a Fundação de Amparo à Ciência do Estado de Pernambuco

(Facepe).

A importância do pólo de informática está na possibilidade de ele se constituir

num meio de inserção da produção de softwares e soluções de informática de

Pernambuco na economia mundial. Essa possibilidade por si só já representa uma nova

via de desenvolvimento da economia estadual que aumente as opções de produção de

riqueza localmente. O objetivo dessa inserção prima por acontecer justamente numa

área estratégica – a produção de software –, base para funcionamento diário de boa

parte da economia atual.

O pólo de informática também está diretamente vinculado a iniciativas de

empreendedorismo – criação de negócios que gerem empregos para pessoas

capacitadas, serviços desenvolvidos e consumidos localmente, além de tributos para o

Estado.

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A importância do pólo está também na formação e no aproveitamento de uma

mão-de-obra muito especial, preparada nas escolas de nível superior e técnico do

Estado. Criar condições para que essa mão-de-obra continue em Pernambuco é uma

orientação governamental – a própria iniciativa do Porto Digital faz parte dessa

política. A criação do Cesar, anos antes, também segue essa orientação de criar

oportunidades para que esse pessoal possa continuar a trabalhar no Estado.

Existe um amplo leque de profissionais que direta ou indiretamente estão

envolvidos no desenvolvimento de softwares. Programadores, analistas de sistemas,

engenheiros de software, designers, músicos, administradores de empresas,

contabilistas, matemáticos, jornalistas e até psicólogos e professores podem,

eventualmente, estar envolvidos, de forma direta ou tangencial, no projeto de criação

de um programa de computador. Mas nem todos se relacionam diretamente com o

processo ou participam de todas as etapas. Por isso, resolvemos nos dedicar à

investigação do trabalho de uma parcela importante desses profissionais, formada por

programadores, analistas de sistemas, engenheiros, designers e administradores de

empresas. As razões são simples: essas são as categorias profissionais que interferem

de forma direta e mais constante no trabalho de identificação das necessidades do

cliente por um software, na modelagem e no desenvolvimento propriamente dito de

programas ou conjuntos de programas.

Esses profissionais também sentem a necessidade de atualização do

conhecimento básico necessário para a realização de suas tarefas cotidianas. A

vivência da obsolescência técnica e os tipos de ameaça que ela oferece foram, portanto,

critérios utilizados para a escolha de que tipos de profissionais entrevistar e comparar.

É importante observar que todos os tipos profissionais entrevistados também vivem a

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realidade da aceleração contínua de processos, de aprendizagem, de adaptação e

readaptação a processos de trabalho e de novos conhecimentos.

4.2 Caracterização dos profissionais entrevistados

A escolha das profissões neste trabalho foi guiada pela relação de proximidade

desses profissionais com o trabalho de criação de software propriamente dito. São

programadores, engenheiros de software, analistas, designers, webdesigners,

webmasters, profissionais diretamente envolvidos na identificação de necessidades de

clientes, no planejamento, desenvolvimento, nos testes e na implantação de softwares,

sistemas computacionais os mais variados, redes de computador e outras aplicações

computacionais possíveis.

Esta dissertação se propõe a investigar as estratégias de reflexividade do

trabalho de criação computacional nas fábricas de software. Tais processos são

encontrados, por excelência, na atuação pessoal e profissional dessas pessoas. Ao

mesmo tempo, as reflexividades estão relacionadas à necessidade de atualização

acelerada do conhecimento necessário para a realização do trabalho. A reflexividade

nas fábricas de software, assim, está vinculada à obsolescência de processos de

trabalho e desenvolvimento, de ferramentas de trabalho, de linguagens de codificação e

de serviços requisitados.

E são os programadores, engenheiros de software, analistas, designers,

webdesigners, webmasters e os gerentes os que se encontram imersos na luta contra a

obsolescência, que é analisada mais adiante. A necessidade de atualização parece ser

mais evidente e restrita aos desenvolvedores listados acima. Mas também é um desafio

aos gerentes e executivos das empresas investigadas.

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É claro que, como em toda empresa, outros profissionais participam das

equipes: secretários, contabilistas, administradores de empresas, relações-públicas,

jornalistas, entre outros. Mas, na vida profissional dessas pessoas, a exposição e a

necessidade de atualização técnica não desempenham papel central, ao contrário dos

profissionais do software. Além disso, eles só se relacionam com o desenvolvimento

de soluções computacionais de maneira muito remota e distante.

O conceito de algumas profissões ainda não é preciso entre os próprios

profissionais. Essa é a razão pela qual as caracterizações que seguem abaixo foram

extraídas das experiências concretas expostas nas entrevistas realizadas.

4.2.1 Desenvolvedores

Em computação, o termo programador se refere de forma muito geral ao

sujeito que faz programas de computador. Os engenheiros de software em geral

planejam como sistemas computacionais ou softwares vão funcionar. É comum essas

duas funções serem realizadas numa empresa pela mesma pessoa. Por isso, esses

profissionais são conhecidos como engenheiros de software/programadores e as duas

funções são confundidas. Mas existem diferenças claras entre elas, que serão

explicadas a seguir. Outro aspecto em comum é que a formação do programador e do

engenheiro de software é a mesma: engenharia da computação. Da mesma forma, os

analistas de software, os analistas de sistemas e os analistas de segurança

entrevistados têm formação ou em engenharia da computação ou em ciência da

computação. O que difere é a função de cada um.

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Engenheiro de software

A profissão do engenheiro de software é relativa especificamente ao desenho,

desenvolvimento e manutenção de aplicações de software utilizando tecnologias e

práticas da ciência da computação. Sua função também é criar, manter e auditar

metodologias de desenvolvimento de sistemas em uma empresa. Os engenheiros de

software também planejam e desenham o funcionamento de servidores e outros

equipamentos de internet, além de se assegurar de que todos os recursos de internet de

uma determinada empresa estão funcionando corretamente.

Essas tecnologias e práticas usadas pelos engenheiros – e demais

desenvolvedores também – são constituídas de linguagens de programação e

ferramentas, paradigmas e regras gerais de codificação, bases de dados, interfaces

gráficas, linguagens de design, além de processos e metodologias para utilizar todos

esses recursos – de gerenciamento de projetos e de outros campos do conhecimento.

Os engenheiros de software planejam o funcionamento de sistemas de

software – qualquer programa que ajuda um sistema computacional a funcionar. Eles

são responsáveis por controlar, integrar e gerenciar os componentes de um hardware

individual ou de um sistema computacional mais complexo. Os engenheiros de

software se relacionam diretamente com sistemas de software na construção de

programas ou no gerenciamento de serviços baseados em computação. Os sistemas

operacionais (Windows, Linux, BSE, entre outros), as ferramentas de programação e

os compiladores são exemplos de sistemas de software.

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Programador

O programador redige a seqüência de instruções codificadas que fazem o

programa de computador funcionar. Ele é o responsável pela codificação do software,

ou seja, é ele quem implementa (instala, associa com outros trechos do código, faz

testes de eficiência) a arquitetura lógica que faz os softwares funcionar. Nessa

atribuição, o profissional de TI também coloca para funcionar e acompanha o

funcionamento de servidores e outros equipamentos necessários para o funcionamento

de um site de um cliente, por exemplo.

As aplicações de software são uma subclasse de programas para computador

que empregam as capacidades da máquina diretamente para determinada tarefa que o

usuário deseja realizar. O desktop, os processadores de texto e os media players

(programa para tocar música ou vídeo no computador) são aplicações usadas em um

amplo campo de atividades, da indústria pesada à indústria de entretenimento. As

aplicações de software melhoram a produtividade e a qualidade de vida do usuário,

pois servem diretamente a ele. Também são exemplos de aplicações de softwares os

pacotes de programas para escritório (Office suítes), os videogames e a World Wide

Web (www).

Webdesigner

É o profissional responsável pela concepção e produção visual de websites.

Geralmente, a formação recomendada e verificada nas fábricas de softwares visitadas é

curso superior em desenho industrial/comunicação visual. Esses profissionais detêm

conhecimentos em HTML (linguagem de criação de sites), animação, arquitetura da

informação, digitalização e tratamento de imagens, paleta segura de cores. As

ferramentas mais usadas são Photoshop, FreeHand, Illustrator, Fireworks, GIF

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Animator, CorelDraw e DeBabelizer. As principais atividades são criação e adaptação

de identidade visual, manutenção de páginas, digitalização e tratamento de imagens,

diagramação, animações e confecção de banners.

Analista de software

O analista de software também é um programador. Ele desenha – ou seja, diz

como será a arquitetura do software, como a codificação deverá ser realizada, o que é

necessário para que ela funcione com eficiência – e acompanha o desenvolvimento das

aplicações.

É um profissional que está mais envolvido na tarefa de planejamento e desenho do

software do que com o trabalho diário de codificação. Essa é uma caracterização

genérica e de certa forma arbitrária. Diferentes empresas e diferentes companhia

definem de maneira diferente as atribuições de um e outro profissional. O analista de

software é responsável por desenvolver e implementar sistemas de automação em

tempo real, assim como sistemas embutidos, utilizando aplicações de baixo nível

(aplicações cuja codificação é realizada em linguagem de máquina) e de

conhecimentos sobre sistemas de redes.

Analista de Sistemas

É o profissional responsável pelo levantamento das necessidades do cliente e

pela elaboração de um modelo conceitual do sistema a ser desenvolvido. Ele faz

levantamento de requisitos do sistema, definição de cronogramas, eventualmente cria

um protótipo de testes ou demonstração do serviço ou produto a ser vendido, faz

modelagem de dados, testes e também pode coordenar a implementação dos projetos.

Geralmente é formado em engenharia da computação. É um profissional que domina

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tecnologias relacionadas a bancos de dados, computação gráfica, orientação a objetos e

redes, modelos matemáticos, programação, técnicas de fluxo de trabalho.

4.2.2 Gerentes

Gerente de projetos

É responsável pela condução de projetos de desenvolvimento. A formação

recomendada e requisitada pelas empresas é algum curso superior na área de

tecnologia da informação e comunicação. Esse profissional coordena os profissionais

envolvidos em projetos, faz o controle de qualidade dos serviços ou produtos em

desenvolvimento, bem como dos processos utilizados, elabora relatórios de

desempenho e cumprimento de tarefas, faz a previsão e cobrança de prazos e é

responsável também pela interação entre diversos profissionais do estrato de

desenvolvimento. Ou seja, ele faz a ponte entre webdesigners e webmasters (quando o

projeto envolve internet) com programadores, engenheiros, analistas. Entre as

principais atividades, estão: controle do desenvolvimento e estruturação de projetos de

alta complexidade, com arquiteturas distintas, busca de parcerias que consigam

suportar as necessidades do mercado, capacitação de profissionais das áreas de vendas

e implementação de projetos.

Gerente de negócios

Profissional responsável por analisar as condições do mercado para a aceitação

de produtos. Também é responsável por identificar clientes em potencial e torná-los

clientes efetivos. Em alguns casos, esse profissional pode fazer uma análise financeira

geral do mercado. A formação recomendada é em ciências da computação, engenharia

de telecomunicações ou outra na área de TI. Matemática financeira, microinformática,

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contabilidade e marketing são alguns dos conhecimentos úteis para o desempenho

dessa função. A principal atividade é lidar com compradores de software em potencial,

realizar análises financeiras e saber o que o mercado está comprando, ou seja, ser

capaz de identificar demandas por produtos e serviços em tecnologia da informação e

comunicação.

Gerentes de incubação

As incubadoras são instituições que oferecem suporte operacional, consultorias

técnica e de marketing, estrutura de trabalho com computadores, sala, telefone, para

empresas que ainda não entraram no mercado. As incubadoras preparam essas

empresas para concorrer. A atividade do gerente de incubação engloba as áreas de

gestão de empresas incubadas (empresas que recebem apoio logístico e empresarial

para desenvolver seus produtos antes de serem efetivamente colocadas no mercado) e

planejamento e investimento. O foco da área é o acompanhamento e suporte em todos

os aspectos relativos a formação, capacitação e gestão das incubadas. Por meio desse

acompanhamento, o gerente verifica o momento mais acertado para o processo de spin

off, ou seja, de lançamento da empresa no mercado de forma autônoma.

4.2.3 Diretores e executivos

Essa categoria de profissionais do software é formada por pessoas formadas

em diversas áreas, não somente nas faculdades de computação ou engenharias. Em

geral, os diretores e executivos já atuaram em diversas empresas de desenvolvimento

de software, embora entre os entrevistados haja quem tenha trabalhado em instituições

de outros setores da economia.

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Os cargos de diretores e executivos não são, necessariamente, ocupados por

pessoas que tenham criado as empresas. É comum esses cargos serem exercidos por

profissionais contratados.

A formação é muito variada. Economistas, administradores de empresas,

engenheiros elétricos, cientistas da computação e publicitários exercem os cargos de

diretores e executivos das empresas investigadas neste trabalho. É comum, entretanto,

a obtenção de títulos de mestrado, doutorado ou especialização em áreas como

administração e computação.

Os gerentes ou executivos com formação em computação também já atuaram

na linha de frente de codificação, como desenvolvedores, e como gerentes. Assim

sendo, conhecem de perto o processo de criação de softwares, de consultorias técnicas

a clientes e de implantação de serviços e produtos computacionais de uma forma geral.

A faixa etária também varia muito. Encontram-se diretores e executivos de meia-idade,

como também profissionais na casa dos 30 anos. O mais comum é a faixa etária entre

esses dois pólos.

4.3 Resultados de campo

As entrevistas realizadas tiveram como alvos principais os três níveis

hierárquicos nas fábricas de software: um deles é aquele formado pelos profissionais

que trabalham diretamente com codificação, implantação de softwares e sistemas para

clientes e desenvolvimento de soluções computacionais, descrito acima. São

programadores, engenheiros de software, analistas de sistema, designers,

webdesigners, e webmasters, chamados aqui de profissionais de desenvolvimento.

Outro nível focalizado é o de administradores de negócios e gerentes. São

responsáveis, na maioria das vezes, pela coordenação dos processos de

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desenvolvimento e acompanhamento da execução dos projetos de criação e/ou

implantação de programas computacionais. Também são responsáveis por prospecção

de negócios, divulgação dos serviços e produtos da fábrica de software onde trabalham

e negociação de preços e condições de pagamentos ou prestação de serviços. Esses

serão chamados de profissionais de gerência. Muitos deles são originados do setor de

desenvolvimento e, embora trabalhem como administradores, são formados na área de

computação.

O terceiro e último estrato explorado é formado por gerentes de maior patente

ou donos dos negócios. São os diretores, empresários e executivos à frente das

empresas. Alguns são formados em computação, mas essa não é uma regra geral.

A principal característica comum aos três níveis hierárquicos estudados é a

necessidade de atualização e de renovação do conhecimento necessário à execução de

tarefas. Tal atualização é sempre acompanhada de aceleração, da necessidade de

mudança rápida – seja com fins operativos, seja com fins estratégicos ou gerenciais.

Pode ainda acontecer para suprir as necessidades dos clientes. Essa necessidade não é

exatamente a mesma de um estrato para o outro, mas produz efeitos análogos para

quem trabalha com desenvolvimento, gerenciamento e entre os executivos. Como ela

se verifica para cada um dos estratos profissionais estudados? Como esses indivíduos

estão expostos à obsolescência da informação e do conhecimento? Quais soluções são

encontradas para as situações problemáticas decorrentes desse contexto?

4.3.1 Os desenvolvedores, a obsolescência e a insegurança

A prática do desenvolvimento do software requer – para que se tenha chances

de competir num mercado globalizado, de competir em regime de classe mundial – que

ele seja realizado dentro de padrões os mais atuais. Isso significa o uso dos mais atuais

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softwares e processos de desenvolvimento. Requer, principalmente, que o

conhecimento necessário, que atribui classe mundial não somente aos softwares

desenvolvidos, mas também às soluções tecnológicas para empresas, seja contínuo e

sempre renovado.

Os profissionais de desenvolvimento vivem essa realidade em suas tarefas

operativas, com a necessidade constante de verificar novas informações que possam

colaborar com a excelência do produto final. Essa realidade é particularmente crítica

para o desenvolvimento de ferramentas de segurança, por exemplo, porque essas

ferramentas permitem que transações bancárias sejam realizadas sem oferecer riscos

aos clientes comuns e às instituições bancárias.

A aceleração da renovação de conhecimento, de atualização técnica do

profissional de desenvolvimento, é uma obrigação formal da qual depende a

continuidade dele no mercado de trabalho. O profissional desatualizado é

desnecessário, descartável. E aquele atualizado é disputado. E essa atualização de

conhecimento técnico do profissional de desenvolvimento acontece no próprio

ambiente de trabalho, durante o ofício, determinada, na maioria das vezes, pelas

contingências e demandas pontuais encontradas no trabalho. Ao mesmo tempo, se

instaura como uma regra que perpassa toda a carreira do profissional desse setor da

economia, seja nos cargos de desenvolvimento, gerente ou executivo.

Não é por outra razão que é por meio da própria estrutura do trabalho, das

ferramentas das fábricas de software, que essa atualização ocorre. O profissional de

desenvolvimento utiliza-se do acesso à internet e dos computadores das empresas para

atualizar-se. As entrevistas mostraram que a assinatura de listas de discussão (fóruns) e

de newsletters são dois dos meios mais usados para a verificação de novas informações

e atualização de informação. É comum, entre os entrevistados, o acompanhamento de

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mais de dez fóruns de discussão e newsletters. A verificação de boletins é uma das

primeiras atitudes tomadas ao se chegar aos escritórios. Nesses casos, os entrevistados

se sentem inseguros quando não fazem a checagem.

A fuga do acompanhamento desses boletins, entretanto, não é fácil. Por um

lado, em virtude da própria pressão exercida pelo receio de não saber de alguma

novidade técnica descoberta de um dia para o outro, e da possibilidade de que aquilo

interfira no trabalho a ser realizado naquele dia ou no projeto em que se está

envolvido. Por outro, os boletins são enviados para a caixa de mensagem de e-mail de

quem os assina – não há como escapar.

A gente trabalha com tecnologia de ponta e velocidade. Às vezes, por causa de uma vulnerabilidade de um programa (mantido ou desenvolvido pela empresa), você precisa consertar seu funcionamento imediatamente. A importância da verificação de newsletters não é psicológica. É uma realidade da empresa, é necessário ter acesso às informações o mais rápido possível. Celso, desenvolvedor

O mesmo entrevistado afirma:

Eu trabalho com tecnologias que eventualmente podem ter sofrido alguma mudança no funcionamento ou aplicação e eu preciso saber quando isso ocorre... A analogia é com o médico de UTI e o médico de emergência. O médico de UTI está monitorando o instrumento e, se houver uma mudança em seu funcionamento ou no quadro do paciente, ele precisará da informação para reagir rápido. A checagem das listas funciona como um alarme para o médico da UTI. A informação serve para que se proceda a ações rápidas e eficientes.

A idéia de emergência e de ansiedade está ligada aos problemas de insegurança

e risco enfrentados pelos profissionais do software. As pressões e o estresse por prazos

e qualidades se associam à obsolescência de informação e conhecimentos técnicos,

bem como à necessidade de atualização crônica operativa.

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Durante as entrevistas também foi possível verificar que nem todas essas

mensagens são úteis ou mesmo lidas. Muitos boletins são guardados “para serem lidos

depois, quando forem necessários”. Esses profissionais que trabalham com

desenvolvimento assinam as listas e fazem uma varredura diária em tópicos de

interesse que, selecionados, acumulam como que uma memória ainda não utilizada –

disponível para quando necessário for. Também é comum, entre os entrevistados, o

armazenamento de 3 mil, 5 mil tópicos interessantes enviados por esses serviços de

atualização e que ainda não foram lidos, mas estão guardados nas caixas de mensagem.

A informação contida nesse material é recuperada segundo a contingência,

segundo a demanda específica dos problemas encontrados no trabalho. Nesses casos, o

profissional lembra-se de que já recebeu um boletim sobre determinado assunto e que

assim poderá esclarecer a dúvida técnica que ele tem diante de si. Essa é uma

atualização que se lança para o presente. E cuja principal característica é a adequação à

realidade que se apresenta no trabalho.

Minha caixa postal está com cerca de 5 mil mensagens não lidas enviadas pelas listas de discussão ou pelos serviços de newsletters que eu assinei. Eu guardei essas informações porque achei interessantes. Cláudio, desenvolvedor

Há outro tipo de atualização de conhecimento que é ainda mais efêmero e

revela a própria essência da aceleração e da contingência do trabalho de

desenvolvimento, bem como a obsolescência do conhecimento: é a atualização de

informação técnica determinada por problemas pontuais, específicos e contingentes e

que é realizada com informações obtidas por meio de mecanismos de busca na

internet. Se o programador, analista de sistema, webdesigner ou engenheiro de

software não sabem como resolver determinado problema técnico, é comum a procura

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pela solução usando-se ferramentas de busca como Google, Alta Vista ou Yahoo.

Essas ferramentas procuram soluções em listas de discussão ou em tutoriais

disponíveis na rede de informações. Esse tipo de solução contingente é não somente

muito utilizada, mas também fortemente recomendada.

E ela é recomendada por ser rápida, por permitir que aquele problema não tome

tempo em demasia do profissional de desenvolvimento, como atesta Arnaldo, gerente e

desenvolvedor de projetos da unidade Wireless do Centro de Estudos e Sistemas do

Recife. A unidade Wireless desenvolve softwares para funcionarem nos celulares da

Motorola, fabricante mundial de celulares.

O uso da internet e principalmente de mecanismos de buscas é uma ferramenta útil (às vezes imprescindível) para a solução de problemas técnicos pontuais. Usar a internet permite aplicar soluções desenvolvidas por outros programadores em questões semelhantes às que encontramos no nosso dia-a-dia. Arnaldo, desenvolvedor e gerente

Tem-se a crença, entre os entrevistados, de que a maior parte dos possíveis

desafios técnicos, problemas de ordem lógica ou defeitos e nuances de programação, já

foi tratada em alguma lista de discussão sobre o tema. Daí ser tão corrente a orientação

para que não se tente “inventar a roda”, ou seja, não se perder tempo na tentativa de

criar uma solução que já está descrita em algum “canto na rede”. Mais uma vez fica

clara a adaptação da prática do profissional às exigências do trabalho cotidiano.

Esse recurso é tão utilizado, que a procura de respostas a tais problemas

acontece várias vezes ao dia – aliás, muitos dos profissionais que trabalham com

desenvolvimento não podem prescindir da internet justamente por esse motivo. Esse

tipo de procedimento é virtualmente disponível para qualquer pessoa que trabalhe com

desenvolvimento e que tenha acesso à internet. Isso significa que os profissionais que

trabalham com desenvolvimento sabem que atuam em pé de igualdade – pelo menos

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do ponto de vista do acesso a informação e conhecimento – com profissionais de

qualquer parte do mundo.

Eu hoje não vejo muita necessidade de se assinar listas de discussão ou newsletters. Hoje você tem o Google, que procura as eventuais dúvidas nas listas de discussão. Cláudio, desenvolvedor

Nunca tive problemas em lidar com grande quantidade de informação. É necessário somente separar e classificar se aquela informação é necessária, útil, ou não, naquele momento. Isso envolve vários critérios, um deles é o aspecto da relevância daquela informação naquele momento. O outro é a confiabilidade da informação. Davi, desenvolvedor

A formação do profissional, assim, além de ser contínua, realiza-se de forma

fragmentada. Ela é pautada em grande parte pela contingência e pela demanda. Ela se

associa e se sobrepõe à formação formal obtida nas salas de aulas das escolas de

computação – notadamente da Universidade Federal de Pernambuco (Centro de

Informática), da Universidade Católica de Pernambuco (Departamento de

Computação) e da Faculdade Unibratec – Ensino Superior e Técnico em Informática.

Esses dois tipos de atualização mencionados são menos sistematizados do que

aquelas atualizações realizadas com cursos de certificação em tecnologias bem

específicas em linguagens de programação, bancos de dados, ambientes de

desenvolvimento, entre outros. Nesses casos, a busca por atualização é menos

contingente e se lança para o futuro, para a capacitação que possa colaborar com o

“valor de mercado” do profissional.

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Os fóruns e newsletters são ideais para a retirada de dúvidas, embora ajudem no acúmulo de informação que o programador detém. Mas essas ferramentas não permitem analisar o mercado, compreender ou antecipar tendências tecnológicas. Para essas outras necessidade, são mais utilizados os congressos, as feiras, a assinatura de revistas. Arnaldo, gerente

Existe um enorme mercado de formação e atualização por meio de cursos

rápidos. Esses cursos atribuem certificados que são requeridos por várias empresas do

mercado. Mas eles não atendem somente a requisitos técnicos. Atendem também à

necessidade de o profissional se mostrar, para o mercado, inteirado das últimas

tendências, processos e linguagens de programação. A busca da atualização, assim,

também está associada à obtenção de certificados de especialização. Nesse sentido, a

preocupação em se capacitar está vinculada a uma norma claramente objetivada de

renovação de conhecimento.

O custo para obtenção de um certificado desses é alto. Além disso, existe um

variado leque de ofertas. É comum as empresas onde determinado profissional trabalha

custear parte da certificação, ou toda ela. A escolha do curso a ser feito depende de um

variado conjunto de fatores. Depende das demandas encontradas na empresa onde o

programador, analista de sistemas ou engenheiro de software trabalha. Depende

também do tipo de especialização desejada pelo profissional.

A pressão por atualização em requisitos operativos gera, entre os profissionais

de desenvolvimento, ansiedade e uma insegurança pontual, diária. O receio de não

estar informado do que é necessário para a realização do trabalho ou de não conseguir

encontrar a informação necessária produz ansiedade e tensão diárias. Tal estresse não

está relacionado somente à necessidade de resolver pontualmente os problemas

técnicos – está vinculado à necessidade de se consolidar como profissional que

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consegue resolver, dar conta do recado. Esse quadro geral é um problema que os

profissionais precisam resolver, sob pena de serem descartados do mercado.

As mudanças em linguagens de programação e em outros mecanismos de

desenvolvimento contribuem com esse estresse na medida em que atribuem incerteza à

longevidade das tecnologias escolhidas pelo profissional para nelas se especializar.

Durante as entrevistas, os profissionais se ressentiram da ameaça que as tecnologias

em que se especializam e investem tempo, energia e dinheiro se tornem ultrapassadas

em pouco tempo – e aí surge a ameaça de serem desnecessários para o mercado de

trabalho. Esse dilema envolve praticamente todos os profissionais de desenvolvimento

entrevistados.

O que a gente quer na vida, o que o profissional quer é trabalhar naquilo por que ele optou, ser muito bom naquilo e crescer em experiência e em mercado. A área da gente é muito solta. Digamos que eu queira ser um grande desenvolvedor Java [linguagem de programação]. E se daqui a dois anos o Java decair, aparecer alguma coisa muito melhor? Eu sei que o investimento é válido, nada é jogado fora. Há pessoas que há pouco tempo eram mestras em Cobol e essas pessoas foram demitidas com a chegada avassaladora do Java, do Delphi [linguagens recentes de desenvolvimento de software], depois de passar décadas programando em Cobol. Essas pessoas se perderam, tiveram que estudar. Agora você imagina a pessoa com 50 anos tendo que estudar tudo de novo. Mauro, gerente

Assim sendo, a necessária aceleração do tipo de informação requisitada para as

operações contingentes do setor de desenvolvimento provoca a busca incessante,

crônica, da atualização técnica. O problema que se estabelece é de insegurança em

relação ao conhecimento que se detém e mesmo em relação às perspectivas de futuro,

na medida em que a adoção de uma determinada linha de especialização vive à sombra

da obsolescência. Esses fatores, articulados, se realimentam – a insegurança leva à

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procura por atualização constante, que sugere novas possíveis linhas de especialização,

que gera insegurança quanto ao futuro... As conseqüências desse quadro serão

mostradas mais adiante.

As entrevistas revelaram que, por causa dessa aceleração, os profissionais de

desenvolvimento acabam se vinculando à máquina por uma hiperatenção às novidades

técnicas, por terem que acompanhar os lançamentos de novos produtos e

complementos aos principais recursos de que eles lançam mão para realizar seu

trabalho: o conhecimento. A focalização na codificação não é apenas um aspecto

operativo. Pode ser melhor resumida nas palavras de um dos entrevistados:

Quem trabalha com internet e programação geralmente está sobrecarregado de informação. Se você não selecionar, você acaba não fazendo nada de sua vida. Paulo, desenvolvedor

É justamente a orientação dessa seleção que nos interessa. É comum a todos os

desenvolvedores entrevistados a impressão de que eles vivem em uma inflação de

informação inevitável. E, da mesma forma, parece ser inevitável a necessidade de criar

estratégias de seleção e de controle do excesso de dados.

Outro ponto importante a ser salientado é a noção de risco. A dependência das

informações pinçadas na internet para a solução problemas contingentes e particulares

do trabalho é um fator de desconforto. Depende-se de uma infra-estrutura externa, cujo

funcionamento correto não está sob o controle de quem precisa dela – os profissionais

de desenvolvimento aqui mencionados. “E se a internet cair?” Essa é uma pergunta

que pode ser lida de outra forma: “O que faço, como resolvo problemas contingentes

do trabalho sem o acesso às informações necessárias para isso ou o acesso ao sistema

onde supostamente estão as perguntas para a contingência problemática?” Esse receio,

esse risco iminente e possível, os profissionais tentam compensar, por exemplo,

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acumulando os tais boletins de 3 mil, 5 mil mensagens em seus computadores, fazendo

cópias dos trabalhos, investindo em segurança, assinando mais listas de discussão e

newslleters do que são capazes de acompanhar. O risco ligado à credibilidade da

informação que servirá para a solução do eventual problema contingente também está

em jogo e também é um problema a ser superado, ou pelo menos com o qual se deve

conviver. É por essa razão também que o número de listas, de fóruns de discussão e de

assinaturas de revistas é numeroso. O raciocínio para driblar esse problema, ou reduzir

as possibilidades de utilização de informação técnica precária, é o excesso, a

quantidade. O excesso, o supérfluo, no entanto, é parte do problema.

Do pessoal que trabalha aqui, eu sou o mais neurótico. Eu assino 12 listas. Há umas 4 ou 5 que eu leio com mais freqüência, porque se algum cliente ligar pra mim agora com algum vírus novo ou vulnerabilidade eu já vou estar sabendo. Então antes de eu ler o e-mail dele [do cliente] pedindo ajuda eu já preciso ter lido as listas para saber o que está acontecendo (e novo em termos de novas vulnerabilidades em programas ou vírus circulando na internet).

Aluízio, desenvolvedor e gerente

O mesmo entrevistado diz:

Eu fico neurótico se eu não verificar a cada meia hora as novidades nas listas e newsletters. Eu fico com a preocupação de estar acontecendo alguma coisa e eu não estar sabendo, de alguém ter enviando um e-mail importante ou estar acontecendo alguma coisa bombástica, algum tipo novo de ataque (atividade hacker)... Se eu não fizer a checagem das newsletters, vai me fazer falta efetivamente.

Do ponto de vista operativo, então, os profissionais de desenvolvimento

enfrentam as cobranças por cumprimento de prazos, as dificuldades para gerenciar

uma grande massa de informação (muitas vezes não muito confiável) de forma

racionalizada e eficiente sob a obrigação de se manter tecnicamente atualizado.

Esses elementos articulados provocam a necessidade de uma dedicação ao

trabalho que em muitos casos extrapola os limites do horário de atividade nas fábricas

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de software. Muitos profissionais, sobretudo nos primeiros anos de desenvolvimento,

levam trabalho para casa. A atividade do trabalho parece colonizar outras esferas da

atividade pessoal. Há relatos do pouco tempo dedicado à família e a atividades físicas.

Essas duas esferas da vida pessoal parecem ser suspensas, ou sacrificadas, em virtude

de uma necessária capacitação técnica e da obtenção de segurança operacional.

A partir de determinado momento na carreira dos desenvolvedores, todo esse

clima de estresse, insegurança pontual e incerteza parece chegar a um limite. Foi

comum identificar entre os entrevistados a intenção de realizar uma migração para o

setor de gerenciamento com o objetivo de reduzir essa insegurança, como é mostrado

no tópico seguinte. Até este momento, entretanto, as entrevistas revelaram que o

questionamento sobre o sentido do trabalho, os limites de bem-estar e mal-estar com a

dedicação e a sensação de insegurança, o pouco tempo para a família, a prática de levar

trabalho para casa ou a falta de exercícios não são colocados sob reflexão até

determinado momento. Mas esse quadro muda, como é comentado mais à frente.

4.3.2 Soluções

Como mostrado, os desenvolvedores são expostos a problemas em suas

atribuições específicas que seguem certo padrão: risco em lidar com elementos

necessários à realização do trabalho que não dependem inteiramente de seu controle;

elementos cuja materialidade às vezes não podem nem mesmo ser medida e que têm

por maior característica a inconstância, a incerteza – são informações em que não se

pode depositar inteira confiança de eficácia ou de que continuará a ser útil por muito

tempo. Também há o risco de se apostar em linhas tecnológicas que podem se tornar

inviáveis e toda a insegurança que advém desse contexto. A necessidade de dedicação

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e de alerta à renovação de conhecimento, como os outros fatores mencionados,

constitui contextos problemáticos a serem resolvidos.

Nas entrevistas, de forma geral, o desenvolvedor apontou esse risco nas fontes

que fornecem a informação contingente para a solução de problemas contingentes. Isto

é, os dados técnicos obtidos em listas de discussão ou em mecanismos de busca nem

sempre são considerados plenamente confiáveis pelos entrevistados, o que estabelece

um risco na utilização dos dados garimpados. Não é por acaso a prática de se assinar

várias listas de discussão – esse é um recurso que permite aumentar o número de fontes

sobre uma mesma área de conhecimento e eventuais soluções técnicas. A escolha das

soluções é feita por intermédio de um histórico de acertos de cada fonte – o que

constrói com o tempo a confiança no serviço oferecido por determinado site

especializado ou lista de discussão – além da referência fornecida por outros usuários.

De uma forma ou de outra, os entrevistados se referem à necessidade de verificar em

variadas fontes a informação obtida, uma vez que ela será usada, sob sua

responsabilidade, na implementação de serviços, mecanismos ou projetos em que está

envolvida a empresa onde trabalha.

Esse é um risco que na verdade não é considerado sério pelos entrevistados.

Quando perguntamos por quê, a resposta indica que o próprio sistema técnico racional

abre as possibilidades para se ter a certeza da veracidade e eficiência dos dados

técnicos obtidos de forma contingente. A comprovada origem das informações é

importante e por isso é procurada. Mas, para reduzir a margem desse risco, os

profissionais lançam mão da quantidade – assinam maior número de listas, participam

de mais fóruns, fazem mais cursos, viajam a mais congressos.

Outra solução encontrada é a capacitação formal em cursos de curta duração. A

intensa e numerosa oferta e aceitação de cursos de certificação ratifica essa busca pela

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redução dos riscos da não-atualização, da perda de informação ou treinamento que

venha a ser requisitado no futuro, ou a qualquer hora do dia. A superação da ameaça de

desatualização é obtida com os mesmos mecanismos que geram essa ameaça: a falta de

informação precisa.

Esse quadro descrito acima é familiar aos três estratos estudados. Mas é no

trabalho dos desenvolvedores que ele é mais evidente – entre gerentes e executivos

acontece também, com aspectos diferenciados, como será mostrado a seguir.

A noção de risco também é presente no funcionamento da infra-estrutura

maquínica, que o permite trabalhar e eventualmente atualizar pontualmente a base de

conhecimento necessária para seu trabalho: o bom funcionamento dessa infra-estrutura

não depende do profissional que a utiliza, é um fator externo. Assim como é um fator

externo a qualidade da informação necessária para a implementação de soluções. A

estabilidade do complexo material que permite o trabalho – estabilidade de rede de

dados da empresa, velocidade de processamento, acesso ao banco de dados, acesso em

banda larga à internet, estabilidade da grande rede – é um elemento que só pode ser

conhecido e controlado (monitorados) em parte. Novamente é o relacionamento com o

que está para além do controle imediato e material do indivíduo – um aspecto comum

aos três estratos dos profissionais de software. O trabalho na fábrica de software

depende, nos três níveis estudados, dessa infra-estrutura básica. A busca da solução do

problema representado por esse risco, nesse aspecto, está no reforço dessa estrutura.

Novamente, os próprios mecanismos que geram esse risco de indisponibilidade do

serviço geram seu reforço.

Há, finalmente, o problema representado pelo risco das escolhas feitas por

especialização em determinadas tecnologias – escolhas realizadas ainda durante os

anos de graduação. Nesse último sentido, as escolhas empregadas na criação de

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softwares são sempre passíveis de se tornar obsoletas em pouco tempo – o que

acarretaria a perda não somente de tempo, mas de energia e investimento financeiro,

além de ser uma ameaça à manutenção no mercado de trabalho. Esse aspecto do risco

com o qual se relacionam profissionais do software acontece não somente com o

desenvolvedor, mas também com as instituições, que apostam em certas linhas de

desenvolvimento tecnológico. Individualmente, entretanto, esse risco concretamente se

estabelece na escolha por especialização em determinadas linguagens de programação

ou em áreas específicas do setor de desenvolvimento de software – segurança,

educação, jogos, telefonia móvel, administração, entre outros. Como saber se

determinada linguagem continuará a ser usada e evoluirá? Como determinar que área

poderá ter mais chances de gerar empregos e bons salários? Como escolher o melhor

curso e a certificação adequada para obter os melhores resultados pontuais e de

projeção profissional? São questões relacionadas ao risco e que se projetam para o

futuro.

Esse talvez seja o único problema com o qual os desenvolvedores se deparam

que não tem uma resposta, ou uma solução definida, clara. As apostas de

especialização passam pelo gosto pessoal de cada um, pela preferência em trabalhar

em determinada área. Informações sobre tendências de mercado ou de serviços que

demandarão conhecimento de determinada tecnologia também interferem na escolha –

escolha essa que viverá sempre sob a ameaça de obsolescência. Por não ter uma

resposta clara e sugerir uma contínua incerteza na profissão, a obsolescência aponta

uma solução radical: a migração do setor de desenvolvimento de software para a área

de gerência. A sombra da obsolescência técnica parece disparar um processo que se

acumula em virtude do estresse do trabalho de desenvolvimento, do pouco tempo

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dedicado à família e a si próprio. A migração significa a busca por relacionamento

mais direto com outras pessoas.

Eu quero com o tempo tratar mais com gente e menos com a máquina. Mauro, gerente

Os desenvolvedores e gerentes entrevistados esclarecem que essa migração

representa a tentativa de obtenção de maior estabilidade em oposição à aceleração; da

permanência em oposição à obsolescência; do tempo em oposição à derrelição; da

certeza em oposição à incerteza. Ainda que o trabalho de gerenciamento seja carregado

de pressões por atualização de conhecimento, ela acontece de forma mais difusa no

tempo. Esse é um aspecto diametralmente diferente do trabalho feito pelo

desenvolvedor, cuja necessidade de atualização, de verificação de novidades, de carga

de informação nova ou que virá a ser útil é concentrada no dia-a-dia e se expressa na

obsolescência constante e muitas vezes inevitável – devido à grande quantidade de

informação disponível para apreensão .

A mudança do círculo de desenvolvimento de software para a área de gerência

acontece por meio de mais capacitação – cursos específicos, pós-graduações, MBAs,

obtenção de certificações, treinamentos, seminários e congressos. Essa migração se

mostrou uma das principais expectativas de parcela importante dos profissionais de

desenvolvimento entrevistados com relação ao futuro – parcela formada por

desenvolvedores maduros e que já obtiveram certo reconhecimento no meio.

É fundamental ressaltar que o desenvolvedor interessado nessa migração, em

“abandonar” a codificação, delineia um plano estratégico racionalmente montado a

partir de determinado momento de sua carreira e que se desenvolve ao longo de certo

tempo de maturação e aprendizagem. Essa pretensão foi identificada em engenheiros

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de software, analistas de sistemas e programadores com já algum tempo de trabalho na

linha de codificação, de desenvolvimento – não foi identificada entre os muitos jovens

profissionais recém-formados ou entre os que ainda estão na universidade. A

expectativa de futuro para jovens desenvolvedores, em geral, é continuar trabalhando

com codificação e sujeitos às pressões típicas desse setor de trabalho da fábrica de

software, à contingência de problemas e soluções e à adaptação a esse contexto. Entre

jovens desenvolvedores, é rara ou inexistente a perspectiva de um trabalho diferente do

que eles realizam ainda nos anos da faculdade e depois de formados.

A importância do interesse em investir em formação gerencial, aparentemente,

é fruto de insatisfação em conviver com o risco pontual e diário e com a ameaça de se

tornar descartável porque está obsoleto. Mas também está relacionada, segundo os

relatos colhidos, ao enorme desgaste que a ligação com a máquina exige – os

instrumentos físicos de desenvolvimento, os softwares adequados para esse trabalho, a

estrutura técnico-racional que exige atualização e estado de alerta e a crônica

implementação de novos recursos técnicos à prática cotidiana. Essa ligação parece

forçar uma dedicação que acaba restringindo o convívio com outros setores da vida e

que se reflete no pouco tempo dedicado à família, em problemas de saúde ligados à

estrutura óssea e muscular, à irritabilidade, ao cansaço e ao estresse. A conexão com a

máquina, para alguns dos jovens desenvolvedores, chega a ser identificada, por sua

necessidade, quase como uma segunda natureza. Um dos entrevistados verbaliza que o

estado natural de sua vida é a conexão constante com a internet, seja em casa, onde há

uma célula de trabalho semelhante à que ele tem no escritório, seja no ambiente do

trabalho, seja num bar ou no trânsito, pelo aparelho celular.

Eu passo 24 horas conectado [à internet]. Hoje eu me acostumei tanto a isso que não consigo trabalhar sem estar conectado. Eu não consigo viver, chega a ser até um pouco de vício... Por exemplo,

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sempre gostei de jogar, hoje eu não consigo me ver jogando sem estar online [conectado]. Quando eu estou em casa, onde eu não estou conectado com a internet, com a infra-estrutura que eu tenho no trabalho, eu me sinto estranho. E isso me faz refletir sobre um mundo que ainda não é natural para as pessoas. O natural é estar conectado, é uma tendência e hoje é minha realidade. Celso, desenvolvedor

As entrevistas mostraram que essas exigências de dedicação à máquina, depois

de alguns anos, acaba desgastando a relação indivíduo-máquina. Isso leva à

insatisfação e ao desgaste físico, a problemas de saúde e tensão. A expressão mais

forte desse contexto é o tempo dedicado, num dia normal de semana, ao que pode ser

considerado atividade de trabalho de desenvolvimento. A maior parte dos entrevistados

trabalha efetivamente entre 10 e 12 horas diárias. Um aspecto, entretanto, precisa ser

considerado. Durante as sessões de entrevistas, os muitos desenvolvedores mencionam

uma carga horária formal de oito horas diárias.

Essa carga horária formal se projeta para outros ambientes – a casa, a

universidade (para os que ainda estudam), os cursos de certificação e atualização.

Esses outros tempos também são considerados horário de trabalho pelos entrevistados.

Esse tempo dilatado de trabalho foi muito mencionado na entrevistas como um dos

fatores problemáticos na profissão. A maior parte das atribuições do desenvolvedor, ao

longo desse tempo, é realizada na interface computacional, ou seja, no relacionamento

com a máquina, com o computador. Uma solução encontrada para alcançar desconexão

do trabalho é a prática de esportes e atividades ligadas à música. As duas atividades se

colocam como opostas à prática diária de codificação, de incerteza das bases

cognitivas necessárias para a realização do trabalho de criação de softwares.

Quando eu pratico kung fu eu me desligo completamente, como se eu voltasse a séculos passados. É como se a vida fosse mais simples. Antigamente as pessoas não tinham essa corrida por informação. As artes marciais são praticadas da mesma forma há séculos e têm influência no corpo e na mente. O reflexo dessa

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prática no meu trabalho, no relacionamento com a máquina, é o mesmo em relação à minha vida inteira e me ajuda a ser uma pessoa mais calma e que aceita mais as coisas. Davi, desenvolvedor

O trabalho de gerenciamento, ao contrário, está baseado majoritariamente na

relação com pessoas e com valores individuais – sejam eles técnicos ou não. A

administração de uma gama humanizada de qualidades é um contraponto à solitária

prática de construção das linhas de código de um software. Essa condição de solidão

diante da interface onde dançam os algoritmos é ressaltada em várias entrevistas

realizadas com desenvolvedores, assim como são citados por gerentes o gosto e o

interesse pelo relacionamento com pessoas.

Entre os desenvolvedores, esse interesse na migração para atribuições de

gerência é acompanhada por mudanças de outros tipos também. Ela coincide, muitas

vezes, com uma mudança na forma de encarar a posição que o trabalho ocupa na vida

do indivíduo, ou que deveria ocupar, coincide com novas prioridades profissionais e

pessoais escolhidas em função do convívio familiar e de interesses relacionados a

afinidades culturais.

Se por um lado a migração para áreas de gerência representa uma tentativa de

redução do risco com o qual se convive, por outro ela representa a possibilidade de

materialização dessas novas prioridades, que não se restringem ao contexto

profissional. A busca por elementos e vivências subjetivas e a valorização desses

aspectos em determinado momento da carreira obtêm maior força e determinam novos

comportamentos, novos pontos de vistas, novas escolhas e prioridades. A definição de

novos aspectos de relevância se amplia e se projeta para além do amadurecimento

técnico-profissional. Novos aspectos subjetivos, ligados a valores culturais, éticos e/ou

religiosos ganham maior espaço com o tempo.

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4.3.3 Os gerentes e a busca pela serenidade concreta

Entre os profissionais dos cargos de gerência, a situação é, não por acaso,

semelhante. Ou análoga. Os problemas a serem solucionados no dia-a-dia são menos

de ordem técnica (o caso dos profissionais de desenvolvimento) e mais de ordem de

gestão. Gestão de pessoas, gestão de processos, gestão de custos, gestão do tempo e

gestão técnica também, que se concentra principalmente na busca por compreender a

necessidade do cliente – esse cliente em geral é uma empresa privada ou uma

instituição pública que solicita a criação ou instalação de um software, um conjunto de

programas ou qualquer sistema computacional. É em função da necessidade desse

cliente que são definidas as pessoas, os processos, os custos e a técnica (as técnicas)

para o desenvolvimento de determinado software ou solução computacional.

O gerente, então, precisa definir o pessoal adequado à execução de tarefas,

planejar e controlar os gastos necessários para a materialização de projetos. É dele

também a responsabilidade de eventualmente definir as tecnologias mais adequadas às

necessidades do cliente. E isso exige atualização de conhecimento.

Os gerentes são chamados a compreender em pouco tempo as demandas dos

clientes. A compreensão do que o cliente precisa, ou quer, segue a mesma lógica,

verificada nas entrevistas, da necessidade de atualização técnica entre os profissionais

de desenvolvimento: aceleração é a palavra de ordem. Essa compreensão envolve

também vastos campos de conhecimento para os quais o gerente não foi treinado e

efetivamente não conhece. Essas obrigações são, para o cliente, desafios problemáticos

a serem resolvidos no trabalho.

Além da necessidade de se informar sobre essas áreas, é necessário observar e

acompanhar as tendências que se verificam nesses mercados em termos de tecnologias

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e de serviços, as técnicas mais adaptáveis às necessidades, o comportamento da

concorrência e o que espera o consumidor final. Essas demandas constituem desafios e

problemas que operam sob o signo da velocidade e da aceleração. Ou seja, atender a

essas demandas requer antecipação, disponibilidade e flexibilidade, além de

disponibilidade para aprender de forma rápida e eficiente.

O gerente é chamado a compreender as nuances de mercado e atividades tão

díspares como contabilidade bancária, administração hospitalar, mercado de aplicações

financeiras, locação de automóveis, gestão de recursos hídricos – só para citar alguns

exemplos de negócios e empresas clientes dos serviços oferecidos pelas fábricas de

software. Essas são algumas das áreas para as quais o trabalho dos profissionais do

software em geral (e do gerente em particular) cria soluções computacionais em

projetos de administração de recursos, automação, controle de processos.

Decorrente desse contexto, a necessidade de apreender campos de

conhecimento para os quais não houve treinamento formal se torna um desafio e

também um problema a ser enfrentado. O espectro de incerteza também ronda essa

necessidade.

E vinculada a essa necessidade está a cobrança permanente pelo cumprimento

de prazos de conclusão e entrega de protótipos de serviços ou produtos baseados em

desenvolvimento de softwares coordenados pelos gerentes.

Existe muita pressão não somente feita pelo cliente, mas também pela concorrência. Se você demora muito para entregar o projeto, você já fica imaginando que o cliente pode ficar insatisfeito e achando que a execução do projeto vai ser complicada e aí pode procurar a concorrência. Você fica pressionado por isso. Mas às vezes a pressa vem de seu próprio diretor, que diz “a gente vai entregar isso em x tempo”. E é esse x tempo que faz você trabalhar fora do contexto porque não é suficiente. Quando o tempo comercial não bate com o tempo técnico, criam-se sobrecarga de trabalho e estresse. André, gerente

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Os gerentes, em geral, não têm formação específica para administrar um

banco, uma loja de departamentos, uma escola. Mas, via de regra, detêm os

mecanismos para a administração do projeto de desenvolvimento de software ou da

solução computacional requerida pelo cliente. Um dos entrevistados, aliás, explica que

este é precisamente um dos pré-requisitos para ser um bom analista de sistemas: a

capacidade de entender o negócio do cliente e, em função dela, desenvolver

mecanismos computacionais para que esse negócio se desenvolva.

Esse raciocínio não é gratuito. É que a maior parte dos gerentes de negócios

não vem de áreas de administração. Em sua maioria são programadores, analistas de

sistemas ou engenheiros de software que comandam equipes de desenvolvimento.

Como os profissionais de desenvolvimento, os gerentes são submetidos a pressões e

cobranças, à falta de tempo, à necessidade de atualizar, cronicamente, novo

conhecimento.

Também é comum a dificuldade em separar as atribuições do trabalho das

atividades cotidianas: é comum levar trabalho para ser concluído em casa; assim como

também é comum trabalhar até depois do horário-padrão estabelecido, principalmente

quando se está envolvido em projetos mais complexos. Nesses casos, foram

constatadas queixas quanto à quantidade de atribuições dadas aos gerentes, durante as

entrevistas.

O meu trabalho se expande para outros tempos além daquele delimitado comercialmente. Principalmente porque o meu ciclo de amizades é no setor de tecnologia da informação. É muito natural que eu encontre essas mesmas pessoas em saídas que eu faça, happy hours, aniversários, e em alguns desses momentos é inevitável que a gente aproveite para acertar algum detalhe, acertar algum negócio. [...] 40% do meu tempo livre é direcionado para coisas do trabalho. Ivone, gerente

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Um dos fatores que diferenciam os gerentes dos profissionais que trabalham

diretamente com desenvolvimento é que as pressões e cobranças são pelo cumprimento

de prazos e para respeitar limites dos custos dos projetos. Outro fator que diferencia a

atividade da gerência das atividades de outras áreas é justamente o que as aproxima e

identifica com o trabalho de desenvolvimento de software: a constante atualização do

conhecimento necessária ao trabalho, sem a qual se é expulso desse competitivo

mercado – ainda que esse conhecimento atualizado e reatualizado seja de outra ordem

técnica e envolva a noção de tendências de mercado, de modelos de gerenciamento e

administração de negócios, de formas para tornar o negócio do cliente mais rentável,

entre outras.

De fato, essa atualização acontece em um nível diferente do que é verificado

entre os desenvolvedores de software. Ela acontece menos em relação à lógica e às

ferramentas inerentes aos processos de codificação; menos por intermédio da máquina,

dos sistemas de busca na internet por soluções pontuais; ela se lança para o futuro e

pouco para a contingência operativa, embora seja aplicada a esta também.

Nesse sentido, a contingência enfrentada no trabalho pelo gerente tem um

caráter diferenciado daquela com a qual se depara o profissional de desenvolvimento,

porque ela não é somente operativa, relacionada a tarefas e dificuldades enfrentadas

num dia de trabalho. Ela aparece ao longo de um período de tempo mais longo e

difuso.

Pode-se dizer que o campo de atualização de conhecimento desse profissional é

mais amplo, porque inclui a necessidade de conhecer novos mecanismos e processos

de desenvolvimento de software, o acompanhamento de novas áreas de negócios que

eventualmente possam fornecer clientes, o acúmulo de dados que possam sugerir a

exploração de novos serviços e o monitoramento das preferências e necessidades do

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homem comum, além dos casos de serviços e produtos fornecidos no mercado de

tecnologia. É também necessário ressaltar que, ao lado dessa necessidade de

atualização, o profissional gerente está imerso em atividades burocráticas de

acompanhamento de custos, compra de materiais, acompanhamento do rendimento de

seus funcionários, contratações e desligamentos de outros profissionais, etc.

É assim que, de certa maneira, os gerentes estão próximos de uma atividade

que se assemelha a um tipo de prospecção de futuro.

A quantidade de informação que serve a esse processo contínuo de atualização,

e que os gerentes administram, é multifacetada e fragmentada. A escolha de qual faceta

de conhecimento usar, diferentemente do que ocorre entre os desenvolvedores, não

segue uma regra de contingência pontual, de urgência. Ela se instaura em prazos mais

dilatados, embora a compreensão de novas informações sofra intensa pressão de

prazos. As entrevistas mostraram que a necessidade de antecipar ou conhecer

tendências de mercado, a capacidade de compreensão do negócio e das necessidades

dos clientes e a capacidade de transferir conhecimento e comando às equipes que o

gerente coordena são desafios enfrentados com diversos recursos. Entre eles, os cursos

já mencionados, as ferramentas de atualização como listas e fóruns de discussão, o

envolvimento com as áreas gerenciais das empresas clientes e o uso intensivo de redes

de relacionamento pessoais.

As listas e os fóruns de discussão usados pela maior parte dos gerentes

entrevistados são de uma categoria diferente das usadas pelos desenvolvedores. Se

estes fazem uso de listas técnicas, com amplo vocabulário computacional, os gerentes

preferem listas mais generalistas sobre economia, segmentos específicos de atuação

das empresas de tecnologia da informação, gerenciamento e administração de recursos,

ao lado de informações sobre conhecimento computacional. Mas os gerentes não

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acessam essas informações com a mesma assiduidade e emergência verificadas entre

os gerentes.

Os fóruns e os serviços de newsletters são bons em geral para tirar dúvidas técnico-operativas, ver o que as pessoas estão fazendo e verificar dúvidas similares. Mas essas ferramentas não ajudam a fazer análises de mercados ou de tendências tecnológicas. Arnaldo, gerente

As entrevistas revelaram ainda que a necessidade de renovação de

conhecimento é acompanhada pela necessidade de apresentar resultados para a

empresa, o que leva esses profissionais a associar a sua própria performance à da

instituição onde trabalham. São os casos dos gerentes que “vestem a camisa”.

Ainda assim, apesar do tempo dilatado de demandas e efetivo trabalho, o nível

de tensão entre essa parcela dos entrevistados é alto. Parte disso se credita às

responsabilidades inerentes à atividade de gerenciamento de custos, orientação do

trabalho de programação e atendimento aos requerimentos dos clientes. E parte se

refere à dificuldade de se administrar a necessidade constante e crônica de atualização,

monitoramento e acompanhamento de tendências e tecnologias. A constância não é um

estado muito experimentado; sua contraparte é um estado de alerta, que, vinculado às

ameaças da concorrência, gera um contexto de contínua insegurança. Esse contexto é

mais claro entre os gerentes (e também entre executivos) porque são eles que encarnam

as metas e tarefas a que se impõem as empresas.

Os relatos dos gerentes apontam, ainda, para uma outra dificuldade: a de

separar o trabalho das demandas privadas. É comum que, em oposição aos

desenvolvedores, os gerentes sejam casados e tenham filhos. A necessidade de dividir

o tempo entre as demandas profissionais e as de ordem familiar ganha uma

importância maior, que precisa ser administrada – resolvida – da melhor forma

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possível. Ou seja, não é possível deixar de fazer e atender bem às necessidades

operacionais do trabalho; como também a dedicação às necessidades familiares ganha

uma dimensão nova e imprescindível, como se verá mais adiante.

O trabalho de gerenciamento permite que os profissionais dessa categoria

estejam mais confortáveis que os seus colegas de desenvolvimento porque a ameaça

que lhes ronda a cabeça também se projeta num ritmo mais lento, e por isso pode,

constantemente, ser superada com o tempo. As entrevistas de campo revelaram que,

apesar da insegurança e das ameaças oferecidas pela forte concorrência, pela

necessidade de administrar grande fluxo de informação e pessoas e pelas cobranças

inerentes ao cargo, a gerência é um cargo que oferece maior nível de estabilidade e

segurança.

As prioridades pessoais e mesmo profissionais declaradas nas entrevistas pelo

pessoal de gerência são diferentes das reveladas nas entrevistas dos desenvolvedores.

Se entre os primeiros as prioridades de vida são tomadas no sentido de identificação

pessoal com a carreira, entre os gerentes essa identificação parece sofrer um

relaxamento; se entre os desenvolvedores a atenção aos processos-fim de

aprendizagem, prática e renovação de conhecimento ocupam um lugar central no

mundo da vida, entre os gerentes são valores (morais, estéticos, culturais) que guiam

normas operativas, prioridades profissionais e mesmo o tempo dedicado às tarefas

objetivas do trabalho.

Foi no segmento dos gerentes que foram identificados de forma mais evidente

aspectos de crítica ao trabalho, de insatisfação com anos de dedicação e da forçosa

tarefa de renovar o conhecimento básico para a execução das tarefas cotidianas.

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4.3.4 Soluções

A atualização de conhecimento dos gerentes acontece em relação à lógica e às

ferramentas do negócio de seus clientes – vale dizer, em função de áreas de

conhecimento não totalmente por eles conhecidos. E acontece pelo contato direto com

pessoas, em capacitação extensiva, em visitas e viagens, no reposicionamento do

indivíduo no meio de ambientes e diante de tarefas para as quais não recebeu o

treinamento específico. E também em cursos mais longos do que as certificações da

área de desenvolvimento: os gerentes lançam mão de mestrados e doutorados, MBAs,

seminários e congressos. O contato pessoal é ingrediente importante na obtenção de

segurança, o que se configura, pelo menos em parte, como solução para o velho

problema da incerteza do setor. A consolidação de saberes (técnicos e gerenciais)

também se processa com listas de discussão, newsletters, sites e revistas

especializadas.

O longo contato com os processos (e as práticas de desenvolvimento), as

bruscas mudanças de tendências tecnológicas e o fracasso de modelos de negócios que

pareciam certeza de sucesso, entretanto, não calam uma certa tentativa de afastar os

pontos de incerteza e ameaça. Os gerentes do mundo da tecnologia da informação se

recolhem também em aspectos, ambientes e vivências que são antíteses da incerteza.

É assim que uma surpreendente quantidade de profissionais em cargos de

gerência salienta que procura ter uma rotina de horários tradicional com a família.

Muitos deles se referem, por exemplo, à preocupação em fazer com que filhos e

parceiros almocem juntos mesmo durante uma semana normal de trabalho. Mais do

que isso, os relatos ressaltam um ritual no qual os integrantes almoçam sem assistir à

televisão, sentados à mesa. Os relatos mencionam a dificuldade que é enfrentar o

trânsito no deslocamento de ida e volta para casa no horário de almoço, mas também a

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importância do esforço: estar próximo a uma rotina em que certeza e estabilidade de

laços pessoais é o bem mais valioso.

Eu tenho um relacionamento com a família à moda antiga. Nós tomamos café, almoçamos e jantamos juntos. Nós sentamos à mesa, não tem esse negócio de comer vendo TV ou no sofá. André, gerente

Só uma emergência me faz não almoçar com minhas filhas, porque é a única refeição em que a família se encontra inteira. As terças à noite também são reservadas para esse convívio. [...] Se eu não trabalhasse à tarde, no horário em que minhas filhas estão em casa, eu não teria tanto rigor em que almoçássemos juntas. É o trabalho que cria essa situação. É importante ter alguma rotina com os filhos, mas o tipo de rotina é orientado pelo tipo de trabalho que você tem. Ivone, gerente

A família é algo absolutamente fundamental no processo de separação entre trabalho e vida privada. Ela é um ponto de inflexão na minha carreira. Eu costumo brincar com meus amigos que estão cheios de muito trabalho, dizendo que eles devem casar. E se já for casado, eu sugiro que tenha um filho, porque aí você consegue parar para fazer outras coisas e, quando volta ao trabalho, volta mais disposto para encarar os desafios. Não fossem esses fatores, eu sairia do trabalho todo dia à meia noite, porque trabalho não falta. Lúcio, gerente

Alguns desses depoimentos foram tomados de gerentes que já se envolveram,

durante certo período de tempo, com projetos que os afastaram do convívio familiar. É

comum, nesses casos, que na época o trabalho realizado fosse justamente o de

programação, análise de sistemas e engenharia de software.

Da mesma forma, vêm dos gerentes os depoimentos mais contundentes no que

se refere à disposição de não levar trabalho para casa e, de forma geral, à busca por

separar claramente o que são atribuições e ações a serem assumidas e tomadas no

ambiente de trabalho e no ambiente familiar. A regulação de horários e de dias de

trabalho também faz parte dessa disposição.

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Nesse sentido, o convívio familiar não é o único meio e a única razão de

ruptura, de desconexão com o trabalho. Outras práticas se revelaram entre os gerentes.

Uma delas foram as vivências e reflexões de fundo religioso. A idéia parece ser a

mesma que guia a busca pela certeza obtida no contato com a família: contato com o

que se crê ser oposto à incerteza, à insegurança, à dubiedade.

A leitura religiosa me ajuda a cair mais no chão, na realidade. Especialmente nos ajuda a pensar... Por exemplo, nós somos acostumados a pensar que o celular é importante. Mas se você pensar que está virando a noite para fazer um programinha para o celular, vai perceber que pode se estressar sem necessidade. E isso é só trabalho, não é minha vida. Arnaldo, gerente

Nos últimos 10 anos uma série de ações me conduziram de volta à minha religiosidade. Pessoas inteligentes, padres inteligentes, a leitura, colocam a gente para refletir. A própria discussão com essas pessoas também. Por essas razões eu comecei a me aproximar de Deus com muito mais força do que eu era há 10 anos. [...] Na minha religiosidade tem uma coisa que eu sempre peço a Deus para conseguir. É ter serenidade para aceitar aquilo que a gente não pode mudar. Serenidade é uma palavra bonita. Mas ao mesmo tempo pedir coragem e tranqüilidade para mudar aquilo que a gente pode. Mais ainda, e isso eu peço com mais intensidade ainda, é poder discernir uma coisa da outra. Isso é importante na definição de minha visão de mundo e na forma como a gente encara as situações em que a vida coloca a gente. Edson, gerente

Quando eu não tenho nada para ler, eu leio a Bíblia, porque não é uma coisa que eu leio como uma história. Todos os dias eu faço pelo menos 40 minutos de exercício e todos os dias eu rezo. O reflexo disso no trabalho é o fim do estresse. Até 1998 meu desejo era ficar milionário, hoje não. Hoje eu quero pagar minhas contas e viver. O trabalho já foi o eixo principal de minha vida, mas hoje não é mais. Clóvis, Gerente

O trabalho nos fins de semana ou em horários fora do estipulado

comercialmente é uma exceção a uma rotina regulada e previsível. A permanência no

ambiente da fábrica de software em geral não ultrapassa oito horas diárias. Por causa

disso, muitos gerentes conseguem estabelecer um dia na semana de lazer com a

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família. Somente por exceções o trabalho extrapola esse horário comercial previamente

e previsivelmente estabelecido.

Foi possível identificar, nas entrevistas com os gerentes originários do setor de

desenvolvimento, uma visão crítica do trabalho de codificação em particular e do

próprio processo de formação profissional e do funcionamento da fábrica de software

de forma mais geral. Essa crítica ressalta os danos pessoais causados pela dedicação

quase exclusiva ao trabalho: há profissionais se queixando de que não viram os filhos

crescer ou não os acompanharam em momentos cruciais do crescimento; há também os

que ressaltam problemas de saúde obtidos durante os anos de intenso trabalho ligado à

máquina; e há a crítica geral de que a própria essência do desenvolvimento de software

é algo para ser feito enquanto se é jovem, ou pelo menos é algo que deve ser feito

durante pouco tempo da carreira pelos desgastes que gera.

Atualmente eu estou com vários problemas de coluna por ter passado muito tempo em posição de trabalho, vida sedentária: estou com duas hérnias de disco na coluna lombar e uma degeneração na coluna cervical. Então eu resolvi fazer acupuntura e exercícios físicos numa academia. Esses problemas físicos são outro ponto de inflexão na minha carreira, porque eu nunca mais vou voltar a ter um ritmo de trabalho como o de antes. Lúcio, gerente

Muitos desses indivíduos em particular também praticam artes marciais,

apreciam a música ou fazem alguma outra atividade artística e refletem sobre o

trabalho a partir dessas vivências. A seguir, um depoimento de praticantes de niten,

arte da batalha com espadas de aço, legado do conhecimento dos samurais e muito

praticada também no Ocidente:

O niten tem algo de arte e de combate. O samurai, ao escolher entre viver e morrer, escolheria morrer. Isso significa que é preferível não ir à batalha com medo, porque nesse caso ele já teria perdido a batalha. Ele tem que ir livre, para, morrendo ou vivendo, fazer o melhor. No negócio é assim também. Se você pensa em investir R$ 1 mil ou R$ 100 mil, você está indo para a batalha, está investindo

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esse dinheiro e vai fazer um negócio. Se antes de fazer isso você está estressado porque não pode perder, não vai conseguir fazer a coisa da melhor forma. Não é uma questão de desapego. A prática do niten também me convenceu de que eu não vou morrer de trabalhar. Se precisar trabalhar à noite eu trabalho, não perco a combatividade. Clóvis, gerente

Existe uma associação total entre o niten e o meu trabalho. É um treinamento de guerra, você é treinado como um soldado, não se faz nada andando, você corre o tempo todo. Esse treinamento motiva você a superar seu limite físico, a vender seus limites de cansaço de poder lutar com uma armadura pesada, e também a superar seu limite psicológico. Eu sou a única mulher desse grupo que treina niten em Pernambuco e isso é um motivo a mais para vencer os homens. E no fim do treino ainda tem que meditar um pouquinho. É um tipo de desafio que se assemelha ao trabalho e à vida como um todo. Cecília, gerente

Essa prática esportiva, como relatada pelos entrevistados, se aplica às

atividades operativas no trabalho. As entrevistas mostram também que o niten serve de

estratégia de desligamento e sublimação do ofício desempenhado nas empresas na

medida em que valores éticos e morais também são incorporados à vivência privada

dos sujeitos. E, por sua vez, realinha a ordem de relevâncias pessoais, em que se inclui

o trabalho. O testemunho desses dois profissionais mostrou que a incorporação de

certos valores pode ampliar ou ressaltar ordens de relevância para além do circuito

técnico-operativo da rotina na fábrica de software. Há ainda as práticas ligadas à

música, que da mesma forma têm seu reflexo no trabalho.

Eu sou músico. Eu passei muitos anos tocando violão durante várias horas por dia. Hoje eu toco pouco. E isso tem uma reflexão total no meu trabalho. Eu trabalho com tecnologias musicais. E eu tenho absoluta convicção de que a minha sensibilidade artística foi fundamental para começar uma área de desenvolvimento novo aqui no Recife, que é a área de jogos. Se eu não tivesse convivido muito tempo com artistas eu não teria entrado nessa área, que é um setor interdisciplinar. Lúcio, gerente

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A necessidade de constante renovação de conhecimento obtida principalmente

pelas certificações formais – cursos de curta duração – também recebe crítica. Embora

as certificações sejam tidas como necessárias, muitos dos gerentes entrevistados

colocam sob questionamento a busca pelas certificações como um fim em si. Essa

crítica feita por gerentes se refere ainda a um certo alheamento do mundo social a que

se chega por causa da ligação intensiva com o trabalho, com as demandas técnicas,

com as pressões por renovação de conhecimento e com a falta de tempo.

4.3.5 Os executivos e o pragmatismo acelerado

Aos executivos se impõe um tipo de trabalho bem diferente do que é realizado

pelos desenvolvedores e gerentes. Embora seja comum haver executivos oriundos da

área técnica – engenheiros, programadores, analistas –, a maior parte de suas

atribuições está vinculada à prospecção de negócios, à representação da empresa e à

consolidação de contratos. Aos executivos é atribuída também a tarefa de negociação

com eventuais empresas-cliente do poder público e da área privada. São os executivos

também que, em virtude dos contratos estabelecidos, fazem as cobranças por prazos

aos respectivos gerentes ligados ao trabalho de desenvolvimento nas fábricas de

software.

E os executivos são responsáveis por muitas das visitas a clientes ou possíveis

clientes, estabelecem, junto com os gerentes, as perspectivas de evolução da empresa

para os anos futuros e, em função disso, determinam os profissionais que serão

necessários ao trabalho de desenvolvimento de softwares. Do ponto de vista pessoal, as

entrevistas com os executivos chamaram a atenção no que se refere à luta por espaços

de decisão na empresa. Esse espaço é conquistado e mantido à medida que o indivíduo,

em qualquer atividade, detém e sabe aplicar conhecimento. Ora, como vimos, o

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conhecimento necessário para a execução do trabalho no setor de tecnologia da

informação e comunicação é mutável, recondicionado por demandas dos clientes ou

por avanços tecnológicos. Estar atualizado do ponto de vista técnico-operacional e do

ponto de vista gerencial, assim, é uma exigência que adquire novos contornos quando

abordamos os executivos do setor de tecnologia da informação e comunicação.

O conhecimento é a moeda com a qual o desenvolvedor abre espaço e se

consolida como profissional requisitado, e com a qual o gerente adquire respeito e

confiança das equipes que comanda e de suas chefias, além do próprio cargo e das

atribuições. É com o conhecimento que os executivos compram um espaço de decisões

na empresa, que permite o diálogo com clientes, a definição de metas internas, a

participação na escolha dos investimentos em pessoal ou em equipamentos mais

adequados, os ramos de especialização e o tipo de serviço ou produto mais interessante

ao qual a empresa deve se dedicar. As entrevistas mostraram a preocupação dos

executivos em ter uma base de conhecimentos em linguagens de programação e em

modelos atuais de negócios.

A necessidade de acompanhar e dominar essa vasta coletânea de informações –

e, em virtude disso, determinar os rumos da empresa – é o principal desafio técnico-

operacional dos executivos. O objetivo é não somente atender às exigências do

trabalho, mas também controlar uma margem de influência e participação executiva na

instituição.

Os executivos se ancoram ainda em equipes e profissionais de sua confiança,

motivo pelo qual precisam conhecer os bons profissionais do ramo para delegar

funções e responsabilidades. É por isso que ter espaço para decisões e se manter útil ao

trabalho na empresa são aspectos definidos pelo grau de conhecimento atual que o

executivo domina e pela quantidade de conhecimento útil acumulada em sua carreira.

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O que diferencia esse quadro de outros profissionais, em outras áreas, é a necessidade

constante de renovação do conhecimento. Assim como desenvolvedores e gerentes, os

executivos são compelidos pelo espírito da obsolescência que rege boa parte do

trabalho em tecnologia da informação e comunicação.

Os prazos para essa atualização de conhecimento são ainda mais dilatados do

que os verificados entre os gerentes. Os entrevistados observaram, entretanto, saber

que não podem deixar de renovar seus conhecimentos de mercado, sob o risco de

perderem espaço de decisão na agenda executiva da empresa para executivos mais

jovens, com bagagem teórica e prática mais atual.

As entrevistas revelaram também o quanto as exigências do trabalho forçam a

dedicação de boa parte do tempo às atividades da empresa, com eventual perda da

convivência familiar ou da dedicação a outras atividades não relacionadas ao trabalho.

São esforços que implicam, muitas vezes, o comprometimento de horários privados, a

extensão do tempo do trabalho e reuniões no fim de semana.

Implica também, e principalmente, a conexão constante com os elementos do

trabalho, que nesse caso não são necessariamente a estrutura de codificação formada

por computadores na fábrica de software, nem a grande rede de computadores.

Essencialmente, as atividades do executivo de uma fábrica de software são: formação

de redes de colaboração, troca de informações e contatos para negócios. Ou seja, ele

trabalha diretamente com pessoas. A constituição e manutenção de redes de

informação estratégica e de mercado, que permitem decisões empresariais, é um

desafio e um problema operativo constante dos executivos.

Ainda que a separação entre o tempo dedicado ao trabalho e o tempo dedicado

a outros contextos da vida desses indivíduos seja mais clara, os executivos continuam

ligados às suas atividades profissionais. A condição de “executivo”, aliás, permite a

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administração de problemas contingentes e de projetos de forma distante, de forma não

presencial. Esse aspecto é mais evidente nas ocasiões em que os executivos viajam a

trabalho. Telefones celulares, programas de comunicação instantânea, e-mail e

videoconferências (serviço oferecido por empresas de telecomunicações que permite

reuniões com áudio e vídeo transmitidos por satélite) suprem essa necessidade de

ausência e permitem que o tempo dedicado ao trabalho extrapole o espaço do

escritório. Adequar essas vivências às necessidades privadas e muitas vezes familiares

é uma questão problemática a ser resolvida.

As entrevistas mostraram que o receio de ser considerado desatualizado, entre

os executivos, também está vinculado a uma questão de idade. Alguns dos

entrevistados revelaram que a diferença de idade em relação a novos profissionais do

mercado é um fator negativo e que essa diferença concorre para que sua condição seja

de ameaça de desatualização. Apesar do esforço para manter atualizada a sua carga de

conhecimento profissional, os executivos entrevistados deixaram transparecer a

impressão de que estar desatualizado, portanto, descartável, é uma condição inevitável,

como se fosse um imperativo e uma característica própria de sua atividade e de toda a

lógica do obsoleto que rege o trabalho no setor de tecnologia da informação e

comunicação: em algum momento você cairá diante da desatualização, do desuso de

sua carga de conhecimento e da impossibilidade de contornar essa condição.

Até lá, predomina o esforço para a manutenção do espaço de decisão com a

atualização de conhecimento em cursos, instrumentos de informação, como fóruns de

discussão, seminários e encontros especializados. É importante observar que essa

necessária atualização de informação e conhecimento não se restringe aos

procedimentos técnicos de codificação e de linguagens de programação. Na verdade, o

executivo é o estrato de profissionais investigado que mais distante está do trabalho

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lógico de codificação – são privilegiados conhecimentos com outras características,

como aquelas que permitem a administração rentável da empresa; a identificação de

serviços e produtos; a antecipação da oferta desses produtos e serviços a possíveis

interessados; a percepção de linhas de investimento necessário na empresa, entre

outros. Assim, basicamente a relação de acréscimo e de atualização dos

conhecimentos necessários ao trabalho é alimentada por elementos circunscritos ao

ambiente do trabalho. Nenhum dos executivos citou, nas entrevistas, outras fontes.

Eu participo dos fóruns de discussão para me atualizar, não participo diretamente dos debates. As informações mais preciosas são captadas por gente de minha empresa. Alguém tem que fazer esse trabalho sujo. Júlio

Eu atualizo minha bagagem de conhecimento necessária ao trabalho através da internet e principalmente em revistas e na conversa com fornecedores de equipamentos e tecnologias para a empresa. Miguel

4.3.6 Soluções

As formas identificadas de atualização passam pelos cursos de curta duração,

como especializações e MBAs, pelo acompanhamento intensivo da mídia

especializada, pela assinatura de fóruns de discussão e também pelo contato direto com

outros executivos, com fornecedores de serviços e equipamentos, com clientela ou

possíveis clientes em congressos, feiras, seminários.

Mas a manutenção do espaço de decisão no ambiente de trabalho não está

somente condicionada à manutenção de um certo nível técnico de conhecimento. Está

vinculada à rede pessoal criada em anos anteriores da carreira do executivo.

Essa rede de contatos com outros profissionais permite saber estratégias de

empresas concorrentes, movimentação de contratos com outras empresas ou órgãos

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públicos, o que outros grupos privados estão desenvolvendo ou que tipo de tecnologias

outras empresas estão usando. É essa rede de relacionamento que faz os profissionais

obterem, eventualmente, informações sobre a satisfação dos clientes das empresas

concorrentes, a quebra de contratos ou a ocasião mais propícia para a apresentação da

cartela de serviços e produtos disponíveis. É à atualização dessa gama de informações

que os executivos dedicam grande parte de seus esforços.

Uma solução encontrada para a manutenção dessa rede é a dedicação a laços

profissionais antigos, formados durante os anos de trabalho com estudantes,

desenvolvedores ou gerentes, quando é o caso. As soluções encontradas ainda passam

pela manutenção de uma agenda profissional e pessoal de visita a clientes, de

comparecimento a eventos públicos onde estão representados clientes e possíveis

clientes privados e públicos.

As soluções encontradas para o atendimento das demandas técnicas, do

trabalho, e privadas, relacionadas à família, por exemplo, passam principalmente pela

ordenação de valores numa escala de relevâncias. As possibilidades de envolvimento

com o trabalho sem a necessidade de presença, em vez de representar ameaça à

satisfação e atendimento de prioridades particulares, indicam a capacidade de utilizar o

deslocamento, a velocidade e a tecnologia em benefício da vida fora do trabalho.

4.4 Considerações finais

As estratégias de reduzir os elementos de risco e insegurança acontecem nos

três estratos de profissionais entrevistados. Esses mecanismos ocorrem pela busca de

experiências que se oponham à incerteza vivenciada nas fábricas de software. Incerteza

essa que, como vimos, se projeta para o imediato contingente: a segurança da infra-

estrutura técnica que suporta as atividades do trabalho, a validade de informações

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necessárias para a solução de problemas técnico-operativos, a urgência da aplicação

dessas soluções, experimentadas principalmente pelos desenvolvedores. A incerteza se

projeta ainda na necessidade de guiar as opções tecnológicas adotadas pelas empresas,

que é experimentada por gerentes e executivos. Esse mesmo tipo de incerteza se

instaura ainda na carreira do desenvolvedor, ao escolher áreas de especialização.

Esse quadro aparentemente inadiável e incontrolável é pautado por aceleração,

além de gerar ansiedades, tensão e frustração nos profissionais do software.

Verificamos o exercício de vários tipos de reflexividade em confronto com esse estado,

na busca por equilíbrio e na tentativa de enfrentar as ameaças psíquicas, técnicas e

profissionais. Essa tipologia é apresentada nas tabelas 1, 2 e 3 que podem ser

verificadas no apêndice desse trabalho. A essas reflexividades associamos tipos de

ação e de racionalidade sistematizados por Max Weber, que respondem às demandas

ao que é mais relevante em determinado momento da carreira dos profissionais do

software. De fato, mais de um tipo de racionalidade é associado a cada uma das

reflexividades identificadas e aqui sistematizadas. E mais ainda: a ordem de

relevâncias, que inclui fatores de caráter subjetivo e também de caráter técnico, define

a importância que cada tipo de auto-reflexão tem ao longo da vida profissional e

pessoal dos entrevistados.

Assim, a ordem de relevâncias que pauta a ação dos desenvolvedores é

marcada principalmente pela atividade operativa: o pleno e eficiente exercício de

atribuições na fábrica de software, a reciclagem diária e pontual de conhecimento e a

consolidação da expertise por meio de cursos de curta duração servem ao objetivo de

continuar na linha de frente do desenvolvimento de softwares, no trabalho de

codificação. A reflexão operativa, nesse momento, é a mais determinante da ação

racional. A busca por soluções, a auto-reflexão, acontece por meio do sistema

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especialista com o qual os desenvolvedores mais se relacionam: a infraestrutura

técnico-racional formada pela internet, pelos sistemas de e-mail, por newsletters,

sistemas de busca e grupos virtuais de discussão.

Mas essa relação não é biunívoca, ou seja, a associação entre a reflexividade

operativa e a ação não é excludente de outras. A ação recebe a influência de outros

mecanismos de auto-reflexão, como também é mostrado na tabela 1 – verificar

apêndice. A reflexão estratégica e política serve às preocupações por ajustamento

pessoal e ascensão profissional, seja nos quadros da empresa onde se trabalha

atualmente, seja em termos de capacitação técnica individual. É nessa categoria que se

incluem, por exemplo, os planos para se fazer pós-graduação em computação e

administração de empresas revelados nas entrevistas. Especulações mais subjetivas

sobre o sentido do trabalho, sobre o espaço que as atribuições profissionais ocupam na

vida pessoal, não foram verificadas entre a maior parte dos desenvolvedores, o que não

significa que não existam.

A dinâmica entre estratégias reflexivas, racionalidades e ação se torna mais

complexa à medida que os profissionais do software estabelecem novas relações

sociais e vivências. Os desenvolvedores com mais experiência confirmam isso. A

ampliação do exercício da auto-reflexão entre os entrevistados pôde ser verificada nos

projetos de migração dos cargos de desenvolvimento para os cargos de gerência. Na

busca por redução de risco, tensão e insegurança no exercício ordinário de tarefas, a

reflexividade estratégica e política ocupa um espaço fundamental, ao se estruturar um

projeto para isso. O que acontece, então, é que a reflexividade operativa deixa de

operar apenas com as demandas pontuais e contingentes. Pautada por um projeto que

se projeta para o futuro, a ação incorpora, além dos afazeres diários, outras atividades.

Assim, os desenvolvedores interessados em se converter em gerentes continuam a

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exercer suas atividades normais de codificação, mas seguem projetos previamente

estabelecidos, fazendo cursos para poder ocupar cargos de gerência. A reflexividade

estratégica está associada, nesse exemplo, a uma racionalidade prática e também a uma

racionalidade formal: o exercício de cargos de gerência requer a comprovada

capacitação técnica para isso, o que é obtido com a certificação atribuída por

instituições legalmente reconhecidas. Essa norma faz parte da racionalidade formal do

setor de tecnologia da informação e comunicação.

E a reflexividade existencial nos desenvolvedores amadurecidos parece

completar o quadro ao motivar o questionamento da necessidade de se viver em

contínuo estado de alerta e insegurança. Ainda nesse exemplo, a reflexividade

existencial está fortemente associada à racionalidade substantiva, embora tenha

vínculos com a racionalidade prática. Nenhuma reflexividade está associada de forma

única e excludente a uma única forma de racionalidade. A classificação nas tabelas 1, 2

e 3 – disponível no apêndice desse trabalho - é um modelo sugerido para melhor

exprimir a ação tomada pelos indivíduos, porque parece-nos que os processos de auto-

reflexão abarcam diferentes aspectos da vida dos sujeitos, mas não se separam: elas

operam integradas, atribuindo novos sentidos à experiência individual.

Entre os gerentes, a reflexividade operativa não ocupa posição central,

diferentemente dos desenvolvedores, mas não deixa de existir. A ordem de relevâncias

é realinhada em função de experiências que alimentam o conjunto de conhecimentos

do indivíduo. Assim, a experiência da maternidade e da paternidade entre os gerentes

tira, em geral, a prioridade do trabalho. O contato com os filhos no universo familiar se

coloca como experiência oposta à incerteza, ao risco, à obsolescência e à aceleração

vivenciados no trabalho. Da mesma maneira, doenças físicas decorrentes do esforço

realinham a ordem de prioridades e, portanto, de dedicação integral ao trabalho.

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Estar em casa a maior parte do tempo possível com a família, acompanhar o

crescimento dos filhos, cuidar da saúde e dar atenção a demandas subjetivas – estéticas

e até mesmo religiosas – ocupam mais espaço no mundo da vida dos profissionais do

software a partir de determinado momento da carreira. Novas experiências se juntam

aos conhecimentos acumulados, alteram a ordem de relevância e fortalecem o

exercício de outras reflexividades para além da meramente operativa. Esse ciclo,

virtuoso, se realimenta de forma reflexiva.

Fica clara, então, a limitação da caracterização dada por Anthonny Giddens e

Scott Lash ao conceito de reflexividade. Ela não pode ser considerada um movimento

da consciência apenas cognitiva ou apenas estética. Em vez disso, deve-se considerar

os mecanismos de auto-reflexão em diferentes contextos da vida objetiva e subjetiva

dos sujeitos, conectando interesses e ações em função de ordens de relevância pessoal

que são alteradas por novas informações e conhecimentos apreendidos. A construção

de narrativas de vida que atribuem sentido às ações e às experiências vivenciadas é

permeada pelo cruzamento de diferentes reflexividades associadas a variadas

racionalidades.

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5. Conclusão

Partindo das entrevistas realizadas, verificamos que o trabalho realizado pelos

profissionais de software é marcado pela necessidade de se atualizar constantemente o

conhecimento necessário à execução de suas tarefas técnico-operativas. Essa

atualização precisa ser realizada de forma contingente e acelerada, porque as demandas

por prazos e qualidade são pautadas pela velocidade. A obsolescência de processos e

dos conhecimentos necessários ao ofício nas fábricas de software condiciona

desenvolvedores, gerentes e executivos a conviver com insegurança, risco e ansiedade.

A insegurança se projeta para o presente, na medida em que a atualização de

informação para a solução de problemas contingentes precisa ser testada e comprovada

em mais de uma fonte, antes de ser usada na solução de problemas técnico-operativos.

As condições para a realização das tarefas pontuais e de funcionamento das fábricas de

software não podem ser completamente controladas pelos profissionais, o que aumenta

o conjunto de riscos e inseguranças vivenciados.

A evolução de diferentes tecnologias pode tornar obsoletas expertises formadas

ao longo de anos de trabalho, dedicação e atualização constantes, abrindo espaço para

perda de empregabilidade. Essa é uma categoria de risco que se projeta para o futuro e

também força os profissionais do software a tentar antecipar as tendências de mercado

e de linhas de desenvolvimento tecnológico. As entrevistas mostraram ainda que os

três estratos dos profissionais do software precisam lidar e aplicar em pouco tempo

grande quantidade de informações de sua área de conhecimento – e também de fora de

sua especialidade, relacionadas às especificidade dos clientes – em soluções

computacionais.

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Esses fatores articulados provocam ansiedade, tensão e incertezas, além de

problemas de ordem física causados pelo excesso de trabalho, como as lesões por

esforço repetitivo. Os danos envolvem ainda perda de autonomia e principalmente do

controle das prioridades pessoais em virtude da alta carga de trabalho e da necessidade

de se manter em condições perfeitas de empregabilidade.

Mas o que verificamos é que esses fatores articulados não são suficientes para

anular a reflexão dos indivíduos sobre o estar no mundo. Verificamos que os

profissionais do software conseguem desenvolver estratégias de auto-reflexividade que

redefinem suas relações com o trabalho e com o mundo que os cerca. Essas estratégias

operam em relação ao trabalho de variadas maneiras e geram caminhos de

autodeterminação pessoal.

Para atender às demandas de ordem operativa e prática que formam esse

contexto problemático, os profissionais do software aplicam o que chamamos

reflexividade operativa. Com a reflexividade operativa, eles executam mudanças em

suas próprias tarefas com informações obtidas na prática profissional diária. Os

mecanismos usados são ferramentas técnicas ou procedimentos burocráticos que

compõem o modus operandi nas fábricas de software.

Quando utilizada pelos desenvolvedores, a reflexividade operativa é vinculada

às operações de codificação, resolução de problemas pontuais e otimização de

resultados técnicos. Esses profissionais executam essa reflexividade para melhorar

resultados de projetos em andamento com listas de discussão, assinatura de newsletters

e de revistas especializadas. A busca de soluções de problemas técnicos na internet é

uma forma de reflexividade operativa.

Os gerentes também exercitam a reflexividade operativa buscando informações

sobre o controle de custos e prazos, acompanhando desempenhos individuais e

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distribuindo tarefas. Essas atribuições geram informação e também a necessidade de

novas decisões que são reavaliadas e acionadas em função desse conhecimento

vivenciado anteriormente. Os gerentes se alimentam de informações geradas no

próprio trabalho para executar a reflexividade operativa.

A reflexividade operativa executada pelos executivos e diretores das fábricas de

software está a serviço da imagem da empresa e dos resultados obtidos. Os executivos

pautam suas ações práticas, operacionais, pelas informações que apontam o que a

empresa precisa para funcionar bem e crescer. No campo de trabalho do executivo,

essas informações são geradas por variados setores da empresa e também por clientes,

pelo mercado financeiro, pelo movimento de empresas concorrentes. A reflexividade

operativa dos empresários ocorre na atenção a essa série de informações que

alimentam a ação individual voltada para a solução de problemas em nível executivo.

A ação gera novas informações e o ciclo, assim, recomeça.

Associada à reflexividade operativa, temos de forma mais clara um tipo de

racionalidade: a racionalidade prática. Mas essa associação não é excludente. Outras

racionalidades interferem nas ações reflexivas técnico-operacionais diárias. Sobretudo

quando a ordem de relevância e de prioridades pessoais e profissionais é alterada.

À reflexividade operativa são adicionadas, na prática dos indivíduos, a

reflexividade estratégica e política e a reflexividade existencial. A reflexividade

operativa é constituída por estratégias de adequação ao ambiente técnico e cultural das

fábricas de software e alimenta também práticas para crescimento nos quadros da

empresa. A reflexividade existencial está vinculada de forma mais forte a valores e

experiências subjetivas, que também alimentam ações no âmbito do trabalho.

A sistematização dessas reflexividades nos permitiu verificar que sua

articulação orienta as ações no sentido de reduzir a carga de tensão, de insegurança e

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de risco vivenciada pelos profissionais do software. Esse movimento acontece por

meio de sistemas especialistas, como afirma Giddens, os amplos campos de

conhecimento que servem como fontes de referência e respostas a questões técnicas e

operativas. Mas também responde a questionamentos éticos, estéticos e transcendentes.

Nesse aspecto, os sistemas especialistas envolvidos incluem também conjuntos de

valores, afinidades culturais e experiências subjetivas que se adicionam ao

conhecimento pessoal.

Mais explicitamente, os sistemas especialistas são formados por conhecimentos

sobre cultura, história local e música nos casos em que esses campos de conhecimento

interferem em movimentos de reflexividade. Podem ser formados por experiências

religiosas e éticas que pautam a ação ao atribuir sentido a relacionamentos pessoais e

profissionais. A própria experiência familiar se alinha à idéia de sistema especialista,

na media em que adiciona conhecimento à formação do indivíduo. Articulados, esses

campos de interesse também formam sistemas especialistas, ao lado de outras áreas de

conhecimento.

A atenção à atividade do trabalho deixa de acontecer somente no plano

operativo, e a reflexão também. A atenção à estratégia da ação para além do

contingente decorre de ter sido acionada a reflexividade estratégica e política. Os

profissionais, nesse estágio, planejam e agem a fim de manter o trabalho operativo e

também se capacitar. As informações geradas e os conhecimentos obtidos, bem com a

imagem guardada e eventualmente recuperada, realimentam a estratégia: os

desenvolvedores, por exemplo, moldam o interesse por um ou vários tipos de gerência

a partir de determinado momento de suas carreiras.

A redução do tempo dedicado ao trabalho, seja nas fábricas de software, seja

em casa ou em outros ambientes, e o empenho em não levar trabalho para casa e não

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trabalhar no fim de semana, por exemplo, abrem espaços, em todos os estratos dos

profissionais do software, que precisam ser preenchidos no mundo da vida.

E, com efeito, são preenchidos com a atenção dada à família e aos cuidados

com a saúde do corpo. Também são preenchidos com atividades culturais, esportes

radicais, música e artes marciais. Essas ações não só interferem na separação das

vivências privadas e pessoais do mundo do trabalho, mas também colaboram com a

construção de autodeterminação e com o sentimento de pertencimento a um lugar, em

oposição ao modelo de trabalho que é realizado de forma muito parecida nos melhores

pólos de tecnologia do mundo.

Assim, ao ampliar as prioridades e a ordem de relevâncias, o indivíduo

modifica a forma como sua consciência se abre para o mundo. Os interesses subjetivos

ganham mais volume, ao ocupar mais espaço na vida dessas pessoas. E ganham mais

peso também, ao adquirir mais importância na orientação da ação. Essa é a

fundamentação da reflexividade existencial. É dela que partem as especulações críticas

sobre o espaço que o trabalho ocupa na vida particular dos profissionais de software e

a necessidade de se criar formas de controle do rumo da própria vida. É com a

reflexividade existencial que os profissionais do software indagam-se sobre a

experiência da incerteza e do risco, que perpassa toda a sua vida profissional, bem

como o setor de tecnologia da informação e comunicação. A reflexividade existencial

opera ainda as considerações de ordem transcendente. É nessa ordem de auto-reflexão

que os profissionais se perguntam sobre o sentido do mundo, vivenciam suas crenças

religiosas e praticam seus pressupostos éticos, o que tem reflexo direto na contingência

e no risco: as condições que oferecem insegurança ganham menos espaço e

importância à medida que a orientação religiosa e os valores se configuram como

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âmbito de certeza, em oposição à fluidez das mudanças técnicas e processuais no

mundo das fábricas de software.

Assim sendo, a ordem operativa dos sujeitos, suas tarefas diárias, passa a ser

pontuada por vários tipos de reflexividade. As reflexividades foram separadas e

classificadas aqui por necessidade metodológica: compreender a relação entre ação e o

trabalho de desenvolvimento de softwares.

As reflexividades se articulam, se cruzam. Elas não se opõem, como indica a

idéia de uma reflexividade cognitiva, cujo maior representante é Anthonny Giddens,

versus uma reflexividade estética, sugerida por Scott Lash (BECK, 1995). Essa

conceituação é estanque e ofereceria sérias dificuldades para a compreensão das ações

dos indivíduos, de forma geral, e para o caso particular aqui analisado. No mundo da

vida dos profissionais do software, interesses de ordem estética se alimentam ou são

motivados por prioridades de ordem cognitiva. Ordens de relevância cognitivas são

alteradas em função de prioridades subjetivas, transcendentes.

Nesse sentido, as racionalidades associadas à ação no mundo da vida também

se cruzam, funcionam em paralelo, o que confirma as múltiplas dimensões dos

processos de racionalidade. É por esse meio que os profissionais de software

encontram soluções para ansiedade e saídas para a condição de insegurança associadas

à prática operativa e ao horizonte profissional. É por esse caminho de associação entre

as múltiplas dimensões da racionalidade que se efetivam as estratégias de combate à

derrelição e de desenvolvimento de autodeterminação.

Da mesma forma, respostas a problemas de ordem existencial passam pelo uso

da racionalidade prática, a partir do exercício da racionalidade substantiva, assim como

a racionalidade formal está presente, delimitando o enquadramento da ação

profissional a um conjunto de normas e preceitos do setor.

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O interesse em encontrar uma condição de trabalho e de vivências menos

marcada pelo risco, pela insegurança e pela contingência é acionado por demandas de

ordem subjetiva, como vimos. É a presença da racionalidade substantiva como

expressão da emancipação pessoal. A mudança na ordem de relevâncias altera o

sentido da racionalidade prática, da ordem de ação operativa contingente. Assim, os

profissionais do software passam a recondicionar sua ação e sua capacitação em

função de valores.

Nesse processo, também fazem uso da racionalidade teórica, tendo em vista

que a capacitação continua como norma do setor e pré-requisito básico. O interesse dos

desenvolvedores em migrar para o estrato de gerentes, a necessidade dos gerentes em

coordenar o trabalho de forma produtiva e a tentativa dos executivos em manter os

espaços de decisão estratégica ocorrem sob as normas de desenvolvimento de

softwares e de outros sistemas computacionais nas fábricas de software. Da mesma

forma, a necessidade de atualização dos conhecimentos necessários ao exercício do

trabalho também se constitui numa norma geral. Assim, nenhum dos tipos de reflexão

e de racionalidade acontece de forma isolada. Eles se articulam em processos

contínuos e virtuosos.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

Luiz Carlos Pinto da Costa Júnior

REFLEXIVIDADE E ACELERAÇÃO: AS ESTRATÉGIAS RACIONAIS DE SOBREVIVÊNCIA

O caso dos profissionais do pólo de informática do Recife

ANEXOS

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ENTREVISTAS

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DESENVOLVEDORES

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Cláudio - Desenvolvedor

Qual tua profissão e como você chegou a trabalhar atualmente nessa fábrica de

software? “Eu sou engenheiro de software, eu trabalho justamente nessa parte de

desenvolvimento de software, eu ainda to cursando o superior na Católica, o curso

de Ciência da Computação, to no quinto período, agora, e eu comecei a trabalhar

aqui por indicação; eu trabalhava no ITECI e me chamaram pra cá”.

O que exatamente você faz aqui? Quais são suas atividades?

“A gente tá com um projeto que é grande, bastante robusto, e todos os desenvolvedores

do projeto ficam responsável por um aspecto completo que vai desde a interface com o

usuário até banco de dados; então, cada um tem uma responsabilidade. Ou seja, você

tem a parte de design e tem uma parte de estrutura, de lógica do negócio até o

armazenamento de dados”.

Como você faz pra dividir o que é tempo do seu trabalho, aqui na Provile e o que é

tempo pra você estudar? O tempo que você dedica pra Católica, o tempo pra

namorada, família?

“Veja bem, felizmente o computador lá de casa não tá funcionando; o meu

computador já não funciona há mais de dois anos. Então, chega final de semana

eu não toco em computadores; geralmente eu dedico final de semana à namorada,

eu a vejo durante a semana porque ela mora longe, ela mora em Boa Viagem e eu

moro em Olinda. Mas, durante a semana, o dia todo é dedicado ao trabalho. À

noite vou à faculdade e o que tiver de trabalho de faculdade vai ter que competir

com a namorada, nos sábados e nos domingos”.

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Você disse que não pega no computador final de semana e durante a semana, quanto

tempo você dedica ao computador?

“Aqui no trabalho são oito horas fechadas. Na faculdade duas ou três vezes por

semana, depende das cadeiras que você tem que ir pra laboratório, eu evito

laboratório. Geralmente se eu quiser fazer algum trabalho no computador, eu

procuro fazer na hora do almoço tenho; aí, ao invés de ir pra casa almoçar, eu fico

aqui, dou uma esticada e passo a hora do almoço fazendo trabalho pra faculdade

ou o que tiver”.

Você está na metade do curso, já tem idéia de como vai ser a evolução da

tua profissão? Como você se vê nela?

“Olha, em termos do que eu to fazendo agora, não vai mudar muito, não. Talvez o

retorno financeiro seja melhor no futuro, até porque eu vou ter uma base melhor,

um conhecimento maior, mais experiência. Mas, em termos do que eu to fazendo

agora, eu acho que pouca coisa vai mudar”.

Em termos de linguagem, de ferramentas?

“Exatamente”.

Você não tem uma noção muito clara, de quanto tempo exato tá dedicado

ao trabalho e quanto tempo tá dedicado ao estudo por semana?

“Eu acho que em torno de 25 a 30 horas por semana de faculdade”.

E você leva algum trabalho do trabalho pra casa, pra fazer?

“Não. Eu poderia levar, mas aí eu prefiro sacrificar um almoço ou prolongar meu

trabalho aqui e continuar”.

Então, você prefere sempre trabalhar na empresa?

“Exato”.

Por uma questão de produtividade?

“É mais produtivo e também porque eu não tenho as ferramentas em casa. Mas,

mesmo se eu tivesse, acho que ia optar mais por trabalhar aqui porque não se

deve misturar as coisas de família e trabalho. Da mesma forma que você tem a

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política de deixar as coisas de casa em casa, eu procuro fazer a mesma coisa pra o

trabalho”.

Essa prática você já tem há muito tempo? É recente? É uma orientação da

empresa?

“Não, não é. Eu preferi assim porque eu não tenho tempo pra me dedicar

exclusivamente pro trabalho; eu tenho outras coisas pra fazer, eu tenho

namorada, tenho faculdade e tudo mais. Então, se eu for me dedicar única e

exclusivamente pro trabalho, eu não vou ter tempo pra fazer outras coisas. Então

eu estabeleci essa regra já pra facilitar o que já não tá tão fácil. Também daqui há

dois anos, quando terminar a faculdade, deve melhorar um pouquinho e pode ser

que as coisas mudem”.

Você participa de listas de discussão sobre o teu trabalho?

“Sobre o meu trabalho, não necessariamente; mas sobre ferramentas que eu

uso”.

Linguagens de programação?

“Exatamente”.

E quantas listas são?

“Eu estou em duas listas, uma de Java e a outra, sobre uma modalidade de

programação que usamos no trabalho na fábrica de software”.

Você já teve um número maior de listas assinadas?

“Não porque eu não vejo muita necessidade de você ficar em listas. Hoje em dia

você tem um Google e qualquer dúvida que você tiver, em vez de ficar discutindo

lista, você coloca lá no Google. Ele procura o que você quer nas listas! Se você tá

com uma dúvida em alguma coisa, você coloca lá no Google, tem uma opção que

é Grupos, você clica lá e ele já varre todas as listas”.

Com que freqüência você faz esse tipo de atualização e informação?

Acontece muito durante o dia?

“Três vezes por hora. É muito constante a necessidade de atualizar e como a

gente ta trabalhando com software livre, que tem esse conceito de não

proprietário, então há uma mudança constante e você não tem uma

documentação apropriada pras coisas. Então você economiza por um lado, mas

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você tem a contra partida porque você tem que ter um investimento muito maior

porque você tem que gastar mais tempo pra poder assimilar aquela ferramenta,

você não tem a quem recorrer, vai pro Google e sai procurando”.

Você tem a necessidade o tempo todo de tá atualizando sua base de

conhecimentos. Isso causa alguma insegurança de você não conseguir

encontra?

“Causa. Esse é um grande problema, você não ter certeza absoluta de que no

outro dia você vai colocar aquilo como o cliente quer. Talvez se trabalhasse com

plataforma de documento, tivesse um pouquinho mais de segurança. Mas, isso é

mais no começo, depois que você pega o experiência da coisa, você tem mais ou

menos uma idéia de como resolver as coisas, você já sabe quais são os melhores

sites pra procurar informações, até o tipo de pesquisa que você faz, as palavras

chave que coloca. A gente até brinca com o pessoal dizendo que se tirar a internet

a gente para de programar porque a gente é bastante dependente da internet”.

Isso é bom ou ruim? Causa alguma ansiedade?

“Por um lado sim e por outro não, Todo mundo que trabalha na área de

informática gosta do tal do desafio; acha que uma coisa que você tem que fazer

que os outros tiveram dificuldade, eles acham isso super legal e tal. Então, eu não

me incomodo de forma alguma de tá trocando informações até porque às vezes

em debate eu encontro coisas que eu não tava procurando, ou que me ajudam na

faculdade, e outras informações que apesar de não me interessar no momento e

mais pra frente, a próxima vez que eu encontrar com aquela dificuldade, eu já vou

saber solucionar”.

Esse tipo de informação que você pega no Google e as informações que

você tem nas tuas listas são diferentes?

“As listas, elas geralmente são mais atualizadas. Nessas de banco eu recebo cerca

de 20, 30 mensagens diárias. Mas, geralmente você recebe os e-mails, olha o que

te interessa e apaga o resto porque se não... Minha caixa postal agora tá com

cinco mil mensagens, não lidas! Que eu falava que era interessante e ia guardar,

fora as que eu li e deixei lá pra se futuramente eu precisar”.

No dia que você não vê uma lista dessa, ao acha informação ou fica com

uma pulga atrás da orelha? Nem que seja só por psicológico, com

segurança?

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“Olha, eu não sei. Geralmente eu tenho já o hábito de chegar aqui e a primeira

coisa que eu faço é abrir a caixa de e-mail, abrir o jornal do Commercio e me

atualizar. Se um dia eu não puder fazer isso eu vou deixar pra fazer mais tarde,

todo dia eu tenho que checar meu e-mail”.

Não vai ter um impacto?

“Não, não vai ter um impacto tremendo. Mas, o e-mail, não só por causa da lista,

a gente usa pra comunicação entre a equipe; então, a gente tem que tá sempre

abrindo pra qualauer novidade a gente tá por dentro”.

Você participa de algum outro tipo de fórum que ao te a ver com teu

trabalho, tua profissão?

“Participo, um hobbie, digamos assim. É um videogamezinho da Microsoft e eu

participo desses fóruns”.

Essas outras listas que tu participa tem a ver com tua profissão, né?

“Indiretamente, talvez, porque é informática. Mas não é algo que eu requeira pro

meu trabalho, eu nunca que vou precisar comprar uma placa de vídeo; é o tipo de

coisa que eu gosto de ver”.

Fora futebol, o que faz parte da tua listinha de diversão?

“Rapaz, a gente já tentou montar uma equipe de windsurf. “.

Você é surfista ou já foi?

“Surfista de passagem, digamos assim, tenho uma prancha e já surfei há muito

tempo. Eu curto muito o mar, então, passeio de lança kitesurf eu já fiz. Então,

tem uma galerinha aqui do trabalho, mesmo, que quando quiser passar fim de

semana na praia, cada um leva o seu, pega uma onda lá e tal”.

Tem alguma dessas atividades que você ainda tem hoje?

“Não. É só namorar, trabalho e faculdade; mais nada”.

Você está o tempo todo com muita facilidade de acesso à informação;

você trabalha conectado o dia todo e esse tipo de informação eu suponho

que além de necessária pra o seu trabalho você tem acesso às informação

em geral. Você acompanha esse tipo de informação ou não dá?

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“Olha, se eu tivesse condições de acompanhar lá em casa eu acompanharia até

porque eu tenho interesse em mercado de ações, de investimentos em bolso e tal.

Mas, infelizmente ocorre que lá em casa a conexão é péssima, é conexão discada

e conecta em 14 e 400, quando é muito é em 20 e alguma coisa; aí você perde a

vontade de ver, eu deixo tudo pra ver no trabalho, seja na hora do almoço ou no

final do expediente”.

Esse tipo de informação ajuda você a refletir sobre teu trabalho, sobre tua

profissão?

“Ajuda porque você, justamente nessa área de Java, vê como o pessoal está se

guiando no mercado. Você tem uma noção melhor do todo, de quais são as

demandas. Tem vários sites que são de emprego pro exterior, aí: não, o pessoal

ta pedindo certificado, o pessoal ta pedindo PHD de não sei o quê. Então, você

tem a noção de quais são os requisitos do mercado pra você ser um bom

profissional. Eu tenho interesse de ir pra Inglaterra, eu já morei fora, então se um

dia eu quiser ir pra fora eu já to me atualizando, sabendo quais são os requisitos

lá fora e já programando pra mais na frente tirar certificado, fazer esse curso e

aquele outro pra chegar lá já ter oportunidade de emprego”.

Você já teve algum tipo de reflexão sobre como tua vida está dentro do

teu trabalho ou como teu trabalho está dentro da tua vida? O que é maior,

o teu trabalho ou a tua vida? Um controla o outro? Quem controla quem?

“Um único problema é a faculdade que está no meio dos dois, é o enxerido da

história; mas, tem que está lá até eu me formar. Pensando mais pra frente,

quando terminar a faculdade, eu acho que eu vou continuar às oito horas no

trabalho, vou ter mais tempo livre mais pra noite e possivelmente eu vou fazer um

curso já visando meu emprego mais pra frente. Eu vou me dedicar mais pensando

pra frente e vou continuar dedicando os finais à família, aos amigos, à namorada.

Eu acho que em momento nenhum um influencia o outro; são raras as vezes que

eu preciso vir aqui no sábado, acontece, mas são raras as vezes. Às vezes a gente

tem que vir no sábado porque tem um prazo, que é pra entregar segunda-feira e

sexta-feira não deu, aí tem que fazer de todo jeito. Então, acontece da gente vir

no sábado. Mas, aí nunca fiz tanta questão”.

Então eles têm participação igual na sua vida?

“Exato. Eu não dou nenhuma prioridade específica. Eu tenho que enganchar a

faculdade no meio; faculdade é o que tem menos prioridade”.

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Arnaldo – Desenvolvedor

Qual a atividade você tem no C.E.S.A.R.? Como você chegou a trabalhar na

empresa?

“Eu trabalho como arquiteto de softwares no C.E.S.A.R. desde 2000 e estou no projeto

(de criação de softwares para celulares) da Motorola desde 2001. O trabalho da gente é

bem focado para o desenvolvimento de aplicações (softwares) e serviços associados

aos celulares dessa empresa”

Desde o início você trabalha com desenvolvimento de software para celular?

“Sempre com desenvolvimento, não necessariamente para celulares. Somente há

quatro anos é que eu estou focado mais na área de celular.”

Chegou a fazer doutourado?

“Não. Eu fiz graduação na Paraíba, na UFPB em João Pessoa, e mestrado aqui na

UFPE mesmo.”

Quais são as estratégias que você utiliza para atualizar os conhecimentos

que você utiliza no trabalho? Você participa de fóruns?

“Os fóruns na Internet são a fonte mais comum de atualização de informação”

Newsletters também?

“Exatamente. Outro mecanismo que a gente usa bastante são os congressos, onde em

geral você consegue ter um panorama muito grande sobre o que está acontecendo de

mais atual.”

Em termos de fóruns, de newsletters, quantas você assina?

“Três fóruns, eu acho. Mais associados às coisas que eu faço. O mais utilizado é o

sobre J2NE, linguagem de desenvolvimento de softwares.

E newsletters?

“Faço uso de umas três.”

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É o suficiente?

“É. Não tenho grandes dificuldades não. Os fóruns em geral são bons porque você

pode tirar dúvidas ver o que o pessoal está fazendo, vê algumas perguntas de pessoas

que estão tendo dificuldades similares. Eu acho que não é o suficiente para você ficar

sabendo o que está acontecendo na ponta, o objetivo do fórum na verdade é um pouco

diferente disso. Nos fóruns de discussão normalmente você vê coisas bem pontuais.

Você tem o trabalho tal, está com o problema tal e quer resolver. Mas é bom porque

você consegue saber o que os outros estão fazendo e se estão tendo problemas

similares. São coisas relacionadas especificamente com tecnologia. Neles, você não vai

identificar quais são as tendências de mercado, que tecnologia está sendo mais ou

menos utilizada. Para isso aí, o ideal seria um congresso, em que a gente vê mais essa

coisa de tendências.”

Em um dia normal de trabalho, a falta de consulta a um fórum destes faz

falta? Você encontra problemas nisso?

“Às vezes o que acontece é que a gente fica muito preso no nosso problema e a se

esquece de verificar – principalmente quem que trabalha com tecnologia aberta como

Java, ou o que for – a gente sempre tem alguém que já passou por problemas similares,

é muito comum. Então às vezes você fica preso lá no seu problema o tempo inteiro ao

invés de parar um pouquinho, ir ao Google, ou verificar no newsletter o que há de

novo, e você encontra a resposta que você estava precisando. Problemas com banco de

dados, com servidor, o que for, tem sempre na Internet. Sempre tem alguém que já teve

o problema pelo qual você está passando. Mas é bem comum o cara ficar lá, rodando e

remoendo sobre o seu problema, ao invés de ir ao Google (sistema de buscas na

internet), fazer uma pergunta. E não vai dar 10 ou 15 minutos até você achar uma

solução.”

Você fica preocupado quando não entra no fórum?

“Não, eu relaxo com isso. Eu particularmente não fico preocupado, mas tem gente que

fica. O pessoal que trabalha com segurança de dados tem que ficar vendo mais os

fóruns. Eu fico mais preocupado em identificar as tendências. Nesse sentido, eu

preciso freqüentar congressos e me informar através de revistas especializadas. Eu

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tenho que saber o que está acontecendo porque como eu trabalho com muitas

tecnologias de ponta, eu preciso muitas vezes ficar discutindo com o pessoal da

Motorola. Então, eu preciso estar sabendo destas coisas para poder discutir. Isso agrega

conhecimento a mim, e agrega conhecimento para a empresa na hora em que a gente

vai discutir. Então eu não ligo muito para o fórum, porque é muito específico. Para os

que trabalham com segurança da informação, já é diferente, porque nos fóruns técnicos

é justamente aonde o pessoal descobre as falhas de sistema. Então o cara tem que estar

lendo as listas do Linux todo dia para saber se alguma coisa aconteceu em algum lugar,

um protocolo também quebrou, alguma coisa do tipo. Por isso o foco deles é um pouco

diferente. Já os técnicos da gente usam os fóruns para resolver problemas pontuais.”

E quanto tempo você trabalha em uma semana normal?

“Normalmente, 40 horas. A empresa sempre busca manter esse tempo. Não

necessariamente acontece o tempo todo.”

Você prefere trabalhar dentro da empresa ou chega a levar trabalho para casa?

“Não, eu não levo trabalho para casa nunca. Minha cabeça não deixa eu levar.”

O que é que tem na sua cabeça que não deixa você levar?

“Eu acho que não vale a pena. É difícil ficar trabalhando aqui e em casa ao invés de

dormir, no outro dia eu já acordaria mais cansado ainda. Então eu acho que isso é

improdutivo para mim, no final das contas.”

Então é uma questão de produção?

“Tanto em termos de produção como de qualidade de vida, também. Não quero chegar

em casa e ficar fazendo a mesma coisa que eu faço no trabalho. Não vale a pena.”

Sempre foi assim?

“Eu acho que o mestrado nem era tanto assim. Era muito mais difícil chegar em casa e

desligar. Você sempre quer ler mais alguma coisa, ver mais alguma coisa. Os horários

de mestrado são estranhos, tem hora que você pára de ter aula e fica só com a tese, e aí

qual o horário de fazer a tese? Para fazer a tese é todo o horário, né?”

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Ainda mais porque você trabalha.

“Aí é pior ainda, porque o horário de fazer a tese é exatamente o horário em que você

está em casa, então é domingo, final de semana, feriado. E nos dias de semana eu estou

sempre trabalhando, então eram 24 horas pensando no mestrado. Tem dia que eu ia

trabalhar e não conseguia fazer nada, só conseguia começar a escrever alguma coisa às

10 horas da noite. Com trabalho é um pouco diferente, porque você tem suas

atividades claras, que precisam ser realizadas em um determinado horário. O que

acontece às vezes é que esse horário não dá, e você tem que alongar um pouco o

horário, mas eu alongo o horário aqui. Quando eu vou para casa, eu vou para casa.”

Você consegue desligar?

“Depende um pouco da época. Nos últimos dois meses, por exemplo, eu estou numa

pilha enorme. Tem projetos que estão com um estresse muito grande, muita coisa para

fazer. A gente está estourando todas as horas de trabalho durante a semana. Eu chego

em casa ligado ainda. Eu demoro muito para desligar, e até na hora de acordar eu já

acordo pensando nas coisas que eu tenho que fazer durante o dia.”

O que você faz para desligar? Tem alguma estratégia, um hobby?

“Não é bem um hobby, mas eu tento fazer exercícios, ir para academia malhar, em

geral eu consigo desligar um pouco. Isso ajuda bastante. E como eu tenho família em

João Pessoa eu vou para lá, visito meus pais, esse tipo de coisa. Consigo dar uma

desligada boa.”

A família é importante?

“É importante. Mas a minha família trabalha muito também. A minha forma de me

desligar é essa. Tem que ter alguma coisa de fora. Antigamente eu tinha mais, hoje eu

não consigo ter tanto. Antes eu trabalhava com uma comunidade religiosa, esse tipo de

coisa. Hoje eu não consigo mais fazer isso, até porque no trabalho tem muita viagem,

fica mais complicado.”

Até nos finais de semana, eventualmente?

“Sim, com certeza. Não que isso seja ruim, de certa forma é bom. Como eu estou

fazendo o que eu gosto, é sem problemas.”

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Você assina alguma newsletter de outra área?

“No computador não. Em geral eu só uso o computador para coisas de trabalho

mesmo. Tanto que eu nem tenho computador em casa. Então eu faço outras coisas. Eu

leio livros, eu não pego em nada que tenha a ver com trabalho.”

Tem alguma área de leitura específica?

“Leitura religiosa, livros de filosofia, tudo o que tem a ver com História eu gosto

bastante. Eu não gosto muito de romance, eu acho meio babaca. Quando é romance

que tem a ver com essa parte histórica eu acho interessante. Mas leitura religiosa eu

gosto bastante mesmo. São leituras bem diferentes das que eu faço durante o trabalho.

Você faz alguma ligação da religião com o trabalho?

“Não. É mais um interesse pessoal mesmo.”

Te ajuda a quebrar essa ligação com a máquina?

“Ajuda muito. Ajuda até a colocar os pés no chão, a encarar a realidade. Porque o

trabalho da gente tem uma tendência a nos fazer achar que celular é importante. Você

trabalha a semana toda, às vezes final de semana, fazendo um programa para celular e

começa a pensar se isso realmente é importante. Se você não se distanciar um pouco

você pode se estressar sem necessidade. Porque na realidade é um trabalho só, não é a

minha vida. E é diferente até, em termos de importância, na minha opinião de, de se

construir uma ponte. Se a ponte cair vão morrer duzentas pessoas só naquele

momento. Na minha opinião, é diferente. O nível de responsabilidade é diferente. No

trabalho da gente, se tiver alguma coisa errada, o máximo que vai acontecer é o celular

quebrar na mão de alguém, o cara vai reclamar e vai querer o dinheiro de volta.

Essa é uma reflexão sobre o seu trabalho, bem perspectiva. Você

consegue fazer uma reflexão quase distanciada.

“É uma característica pessoal.”

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As tuas leituras são responsável por refletir sobre a importância do

trabalho e sobre sua vida?

“A parte religiosa me ajuda. Mas é muito uma questão pessoal também. Minha esposa,

que é médica, não consegue desligar. Ela não consegue ler nada que seja outro tipo de

leitura. Todos os livros que têm lá em casa, que são dela, são sobre Medicina. Tudo o

que ela lê, tudo o que ela faz na vida tem a ver com Medicina. Eu já evito isso ao

máximo. Não quer dizer que eu não gosto do trabalho. Não seria mais feliz se estivesse

fazendo outra coisa, nunca. Eu tenho um ambiente de trabalho bom, a gente é pago

para fazer um trabalho interessante, divertido, isso é fundamental. Eu tenho

possibilidade de viajar, conhecer pessoas legais. Vale muito a pena, mas isso não é o

total da minha vida. É uma parte fundamental dela, mas eu tenho outras coisas

também. Se eu passo 10 horas do dia no meu trabalho, eu tenho que me sentir bem, né?

Você pretende fazer esse trabalho sempre?

“Eu não consigo pensar em parar de trabalhar.”

Mas você acha que vai continuar fazendo durante muito tempo?

“Eu gosto bastante, não tenho o que reclamar do trabalho não. Uma das dificuldades

que a gente tem aqui no mercado local é que você trabalha muito tempo e depois o

negócio estagna um pouco. Então a tendência é mudar para uma área gerencial,

administrativa, depois de um tempo.

É interessante fazer essa mudança?

“É, tem gente que nasceu para fazer isso. Eu não me vejo nunca como gerente,

trabalhando com dinheiro. Eu gosto de trabalhar produzindo as coisas, softwares, e

trabalhar com a parte técnica, com computador, discutir com as pessoas. Eu até poderia

ser um gerente, mas eu não seria um gerente feliz. Mas aqui não, eu acordo de manhã

todos os dias com vontade de trabalhar.

Como você trabalha com a possibilidade de que a tecnologia com a qual

você trabalha hoje se tornar obsoleta?

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“Isso é um problema. Por isso a gente sempre tenta estar por dentro do que está

acontecendo, para ir pegando as tecnologias que estão chegando mais para frente. Não

necessariamente como um jogo de gato e rato, você pode estar fazendo isso e não

conseguir.”

Isso te incomoda muito?

“Eu penso sobre isso algumas vezes, mas no geral não. Mas eu tenho consciência de

que é um problema sério. Desde a época da graduação – a gente tinha um professor

que era horroroso, mas ele falou uma coisa de que eu nunca esqueci: “Desde que eu

comecei a trabalhar com informática, com computador, há 20 anos atrás em João

Pessoa, todos os melhores que tinham na minha época já mudaram de área”.

Isso é comum por aqui, pensar em mudança de área?

“Algumas pessoas sim. Mas não necessariamente para sair da área da computação, mas

mudar de uma área técnica para uma mais gerencial, administrativa, mas continuando a

trabalhar com informática.”

É medo do que?

“Algumas vezes o medo do obsoleto, em outras tem a questão do estresse, e às vezes

não conseguir acompanhar o cara que acabou de sair da faculdade, com o gás de sair

programando. Então eu não quero nem pensar no estresse que a gente tem passado. Eu

quero ficar sempre acompanhando o que está acontecendo de novo e continuar dando

conta do trabalho que eu estou fazendo agora. A minha sorte é que o trabalho ajuda.

Parece que é complicado, mas na realidade não é. Se você gostar do que está fazendo,

dá para seguir na boa. A gente está sempre trabalhando com coisas novas. Na verdade,

quando tem um projeto novo, é mais uma coisa de ponta que a gente está aprendendo.

Numa empresa mais restrita, na qual você fica sempre fazendo o mesmo tipo de coisa,

chega uma hora em que você fica ultrapassado. É comum que nesses casos, os

profissionais usem tecnologias que ninguém usa mais. Eles ficam anos fazendo só isso

na mesma empresa. Eles não conseguem mudar de empresa, por exemplo. Tem que

ficar usando o mesmo sistema, com a mesma tecnologia, na mesma empresa.

Até enquanto a empresa quiser continuar com ele.

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“Se ele for demitido, vai ter uma enorme dificuldade de conseguir emprego em outro

lugar. Mesmo que ele tenha experiência e seja muito competente, mas ficava só

naquela mesma linha. Quando a empresa tem clientes muito diferentes, com projetos

totalmente diferentes, evita-se ficar desatualizado. Eu posso fazer um projeto agora e

daqui a três meses entrar em outro que não tem nada a ver com o primeiro. A gente

fica calejado, fazendo coisas às quais a gente não está acostumado. Imagina você

jornalista, sempre cobrindo informática e de repente tem que fazer medicina, tem que

mudar tudo. A gente passa por isso direto. Neste ano, eu já passei por isso pela terceira

vez. Já usei três tipos de tecnologia diferentes. Mas se você gosta, é uma coisa

desafiadora. Você tem que mudar de área, com clientes novos, demandas novas,

tecnologias novas, problemas novos. Você tem que correr atrás.

Tem que se adaptar rápido?

“Tem que se adaptar rápido. E tem que ter um certo nível de cara de pau para aceitar as

loucuras que o pessoal manda a gente fazer.”

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Celso - Desenvolvedor

Você tem uma noção clara de quanto tempo você trabalha durante a semana?

“Por volta de oito horas, diariamente.”

Quanto tempo esse trabalho é realizado na empresa, quanto tempo

acontece em casa ou em outro ambiente?

“Só na empresa, uma média de oito horas, de trabalho mesmo. Se contar os dias em

que eu estiver estudando ou fazendo alguma coisa com o trabalho, acho que chega a

umas 12 horas.”

Você tem uma idéia de quanto tempo aqui, quanto tempo em casa, ou em

outro ambiente?

“Seis horas, definitivamente, no escritório.”

E o que você prefere? Trabalhar na empresa ou em casa?

“Eu não sei se isso é muito aplicado à gente, porque nesse setor se tem muita

liberdade. Normalmente eu hajo de acordo com a demanda. Se eu tiver algum

compromisso com a empresa e estiver chovendo, tanto faz trabalhar aqui como ficar

em casa. E aí como conectividade hoje em dia é uma coisa barata, é rápida e funciona,

então eu posso trabalhar em casa. Mas quando eu tenho reunião ou algum

compromisso coletivo, tenho que vir até a empresa.

E quais os tipos de fóruns de discussão, newsletters você usa para atualizar suas

informações durante o dia? Ou você não usa?

“Eu assino três revistas de Informática, fora alguns sites da área de segurança.”

E a freqüência de verificação das listas durante o dia, seria de quanto? É

toda vez que você olha o seu e-mail?

“É. Porque acontece o seguinte: você cria dentro do seu e-mail um dispositivo para

direcionar as mensagens de acordo com o conteúdo das listas. Você automaticamente

checa logo uma coisa que é relacionada às suas demandas. Faz parte do processo. É

complicado você gerenciar muito essa questão da produção de TI com a vida de quem

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gosta de tecnologia, porque o trabalho de TI não é muito claro. Você não tem ainda

papéis claros. Normalmente o pessoal dessa área – e isso deve ser verdade até 2010 –

são pessoas que se interessaram por tecnologia independente da existência da

profissão.

E o efeito da verificação destes e-mails, é efetivo no trabalho, você utiliza

todas as informações que você pega na lista, ou o efeito é mais

psicológico?

“O efeito não é psicológico não. Existem dois lados. Tem um lado pessoal e um lado

profissional. Muita gente gosta de receber e-mails porque aquilo faz parte da vida da

pessoa, é comunicação. Sente falta, e está o dia todo esperando uma novidade ou coisa

parecida. No nosso caso, a gente trabalha com tecnologia de ponta e velocidade. Então

às vezes sai uma vulnerabilidade de um programa ou de um software, você precisa

estar acompanhando isso imediatamente. Então, não é psicológico. É uma realidade

porque você precisa ter acesso às informações o mais rápido possível. Porque quando a

revista sai, a informação dela já está ultrapassada. Então, no meu caso, eu trabalho com

uma tecnologia onde eu necessito saber de uma mudança do quadro no momento em

que ela ocorre. É como um médico de UTI, que é diferente de um médico que está

atendendo na emergência. O médico da UTI está monitorando os instrumentos do

paciente e, se houver uma mudança, ele precisa daquela informação para agir rápido.

Esta seria uma analogia interessante. No nosso caso, a checagem destas pistas funciona

quase como o trabalho de um médico da UTI. Ele pode até dormir, mas se o alarme

toca, se um instrumento dispara alguma coisa, é essencial uma tomada de decisão

rápida para que o estado do paciente não fique complicado.”

Você trabalha com mercado de todo tipo, com várias pessoas, ou prestando

atendimento a algum cliente. Tem essa verificação constante das listas, que é

extremamente necessária. Essa infra-estrutura ao seu redor, que permite você

realizar o seu trabalho, permite também ou desperta em você uma reflexão sobre

o seu trabalho? Ela te ajuda a ter informações sobre outras coisas não

relacionadas diretamente com o seu trabalho?

“Isso é uma barreira para as empresas enfrentarem. Tem algumas empresas aqui no

Porto Digital em que a Internet é bloqueada. Porque as pessoas têm que decidir entre

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estar pesquisando uma informação consciente ou inconsciente. Eu me disperso e isso

vai influir na minha produção no local de trabalho. Aqui a gente tem um lado pessoal e

um lado profissional coexistindo. Então você tem que ter disciplina para desligar. Eu

praticamente passo 24 horas on-line, porque eu tenho Internet aqui em casa ligada a

noite toda, e quando eu chego aqui também. Sempre que eu estou em um ambiente que

não tem conectividade, como num barzinho, ou um canto parecido, sempre tem o

celular. Então eu posso considerar que eu estou 24 horas conectado. As informações

todas lhe alcançam de todo jeito. Isso faz com que você dilate mais o que você pode

chamar tempo de trabalho. Quando eu digo 12 horas de trabalho, normalmente são de

seis a oito horas oficiais de trabalho e você chega a ter quase 50% disso com uma

quantidade de informação que contribui de maneira secundária para o seu trabalho e

uma que não contribui para ele de maneira nenhuma.”

Em que medida essa estrutura em que você está imerso te ajuda a refletir

sobre o trabalho?

“Hoje eu já me acostumei tanto a isso que eu não consigo trabalhar sem esta estrutura.

Eu não consigo viver, chega a ser até um pouco de vício. Por exemplo, eu sempre

gostei muito de jogar. Quando eu comecei a jogar, com nove anos de idade não existia

nada sobre Internet, nada sobre entretenimento digital que existe hoje. E eu gostei

daquilo. E hoje eu não me vejo jogando nada que não seja on-line. Quando eu estou

num lugar que não tem Internet, num computador que não tem a infra-estrutura que eu

tenho no trabalho ou em casa, eu me sinto estranho. Isso me provoca uma percepção de

o quanto eu estou vivendo num mundo e que a conexão em tempo integral ainda não é

o natural das pessoas. Se eu estou trabalhando com Informática onde não tenha essa

estrutura isso me deixa mal.”

O natural, então, seria estar conectado?

“Eu acho. É uma tendência que eu sigo, que hoje é a minha realidade.“

O natural seria também estar conectado mesmo quando não se está trabalhando?

“Pra mim não é possível não estar conectado. Isso não tem um cunho de escravidão,

embora eu tenha até um pouco de vício, de necessidade. É necessidade da sensação de

controle. Você tem a sensação de controle, você tem a idéia de que você pode

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pesquisar qualquer informação quando você precisar, acessar pessoas quando você

precisar, e isso dá segurança. Talvez o próximo passo para isso seja o celular ficar 24

horas conectado, você não ter que ligar, vai ficar tudo on-line como um ICQ, ou MSN

(programas de comunicação instantânea). E naquele ponto você vai poder ter acesso a

qualquer coisa que você precise ou queira. Isso dá segurança no trabalho, é um

diferencial. Se eu precisar de alguma coisa agora eu sei que eu posso procurar e

pesquisar e encontrar.”

Essa segurança no trabalho também te dá segurança no restante da tua vida?

“Sim. Esse é o ponto. Porque o mesmo modus operandi que eu tenho no trabalho é o

que eu tenho na minha vida. A maneira com que eu faço as coisas ou a tecnologia que

eu utilizo para trabalhar é a mesma que eu utilizo para não trabalhar. Até por uma

questão acadêmica, das pessoas que se formam em Ciências da Computação, que é

meio-filósofo, meio-homem, meio-máquina. Você acaba considerando isso como a sua

maneira de viver: se eu for fazer pesquisa, se eu for estudar, se eu for agir, se eu for

pintar, eu devo consultar a Internet para ver qual é a melhor técnica, quais são as

melhores tintas, as melhores telas. E isso é para lazer, é para tudo. Se eu vou trabalhar

e vou ter que descobrir como usar o programa X, eu vou fazer o mesmo tipo roteiro, é

a mesma estrutura. Não que você não viva sem, mas é que sem usar a Internet, surge

um desconforto muito grande. Demoraria muito até eu me acostumar de novo a não ter

essa sensação de poder, de que está tudo sob controle.

Você recebe outras listas, newsletters sobre esportes?

“Sobre esportes? Várias. De vôlei, pára-quedismo.”

Você pratica?

“Sim.“

E cultura?

“Sim. Eu gosto muito de cultura japonesa, de mangá, anime, culinária japonesa.”

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Você cozinha?

“Sim. Eu gosto de cozinhar por arte, não é hobby. Atingir um certo sabor, conseguir

um tempero diferente, combinar sabores. É interessante, mas não é hobby. É uma

experiência: não é nem hobby, nem é cozinhar só para se alimentar.”

Tem um aspecto de desafio também?

“Sim. Eu penso que tem esse componente de desafio, porque sempre que você sempre

vai fazer alguma coisa que poderia ter sido melhor acabada em todas as áreas. Então,

normalmente se você vai comprar um aparelho, vai querer fazer uma comida ou vai

querer realizar qualquer coisa, a tendência é encarar aquilo como um desafio - procurar

tomar a melhor decisão ou fazer o melhor possível. Qualquer pessoa normal iria

pensar: ‘sashimi de salmão é o que? Pega um filé de peixe, corta e pronto’. Só que não

é. A primeira idéia é que é simples. Aí você vai pesquisar, e vai descobrir que,

primeiro, não é qualquer salmão, não é qualquer faca, não se corta de qualquer jeito.

Eu já descobri que mulher não faz sashimi, tem que ser o homem. Você vai começar a

pesquisar sobre a cultura e acaba combinando informações. Quando você vai

descobrir, já entendeu como é a origem do prato, a cultura e aí você começa a procurar

aquela visão mais holística, mais global.

Por que a associação com arte?

“Porque você começa a entender porque alguém está combinando aquilo com aquele

determinado sabor, ou a maneira como ele preparou o prato para que você possa

agradar todos os seus sentidos. Olfato, paladar, visual, auditivo. E aí você começa a

entender a arte que existe nesta distribuição dos alimentos e no equilíbrio nas cores. O

chef colocou um matinho ali do lado, cortou um tomate, para desenhar aquilo ali. Só

que ela está combinando as cores do prato para que aquilo agrade a um sentido seu,

que é a visão. Ninguém se alimenta porque está olhando alguma coisa. Mas aquilo vai

proporcionar uma experiência e isso já começa a ser arte. Você começa a entender a

culinária como arte. Você passa a perceber que isso é arte. Buscar novos sabores,

tentar um novo equilíbrio, para fazer a mesma coisa – que é se alimentar, mas de

maneira diferente. E com esse tipo de coisa você começa a entender sozinho.

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Os saltos de pára-quedas, algum mergulho que você dá, a prática de cozinhas te

ajudam no afastamento do contexto do trabalho?

“Sim. Você encontra seus amigos, as pessoas que estão ali têm diversas origens do seu

trabalho social, cultural, praticam esportes. E aquilo faz com que você tenha uma outra

visão. Você é obrigado, se coloca em outra posição e você passa a discernir tudo aquilo

que você faz de maneira totalmente diferente. De uma ótica de pessoas que não estão

ali porque estão valorizando o seu trabalho.”

Você sente liberdade para pesquisar sobre muitos assuntos no horário de

trabalho?

“Sim. É uma liberdade que o trabalho da gente dá. Eu posso agora passar duas horas

sem fazer nada. Mas eu tenho que produzir, eu tenho prazos, deadline. Mas se hoje eu

quiser chegar ao meio-dia e sair às oito da noite, não tem problema. Isso vai ser uma

tendência, uma verdade mundial para todas as profissões contemporâneas de serviços.

Isso porque você começa a ter um equilíbrio de cultura entre as pessoas. Antigamente

havia um abismo muito grande entre o chefe e empregado. Há hoje um estilo de vida

ligado ao trabalho que não é mais o aquele de há 30 anos. Hoje esta mudança foi

brutal.

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Paulo - Desenvolvedor

Quais suas atribuições na fábrica de software?

“Sou engenheiro de software e desenvolvo aqui um sistema na área de micro-finanças

e microcrédito.”

Como é que você chegou aqui? Você estuda ainda?

“Estou me graduando na Universidade Católica, já passei pela Finacap e pelo Ipespe

também.”

Em que constitui a sua atividade?

“Minha atividade é desenvolver elementos lógicos necessários ao funcionamento do

sistema e fazer levantamento de que instruções lógicas o programa vai necessitar.”

Há quanto tempo você trabalha nessa fábrica de software?

“Desde novembro de 2003.”

E como você faz para distribuir o tempo para as atividades dedicadas ao teu

trabalho e as atividades ligadas ao lazer?

“Meu lazer é mais no final de semana, ir para um cinema, sair com amigos, viajar.”

Você tem alguma regra, tipo de só trabalhar oito horas?

“Meu trabalho aqui é de oito horas, só que é claro que, como eu gosto da área e tenho

interesse, às vezes levo trabalho para casa e acabo misturando um pouco. Mas é

também uma questão de prazer, você quer conhecer as novidades, as tecnologias mais

novas. É uma questão de interesse, e também acabo sempre puxando um pouco para a

faculdade, que também está dentro do meu trabalho.”

Como você faz para atualizar seus conhecimentos, você participa de fóruns de

discussão, assina newsletters?

“Acho que na área de informática todo mundo assina alguma coisa. Mas a maioria das

coisas que recebo, não presto muita atenção. Eu leio somente os tópicos e se não me

interessam, eu vou logo apagando.”

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Você tem idéia de quantas newsletter recebe diariamente?

“Acho que entre 10 e 20. Tem as newsletters e os grupos de discussão. Eu participo de

uns dois ou três grupos. Tem um deles em que eu presto muita atenção.”

E sobre o que?

“Sobre uma nova tecnologia chamada ‘structure’. Permite que você desenvolva

projetos dentro da web.”

É nova essa tecnologia?

“Tem uns dois anos e já está sendo muito usada.”

Com que freqüência durante o dia você costuma dar uma olhada nesses grupos de

discussão ou abre o e-mail para ler as newsletters?“Pela manhã gasto uns 10 ou 15

minutos lendo os tópicos. “

Se você não fizer isso, o que acontece? Se você chegar um pouco atrasado,

esquecer, faz falta?

“De qualquer jeito vai estar lá no meu e-mail e eu vou ver depois. Mas dizer que vai

fazer falta, vai atrapalhar minha vida, não.”

Nem atrapalha o que você vai fazer durante o dia?

“Não.”

E por que você assina 10?

“Às vezes você entra num site para assistir a uma entrevista on-line, aí

automaticamente é cadastrado. Mas não necessariamente todas que recebo são

importantes.”

Tem a questão também de você não conseguir acompanhar porque não tem

tempo?

“Acho que é muita informação. Sites na internet, televisão, jornal. Você não tem como

acompanhar tudo. Independente de trabalhar com informática ou não, mas quem

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trabalha com internet normalmente está sobrecarregado de informações. Se você não

selecionar, você acaba não fazendo nada na sua vida.”

E que critérios você usa para selecionar o que é interessante para o teu trabalho,

o que é legal para tua informação?

“Tem que ver o que é interessante de lazer, o que interessa para o trabalho, para a

faculdade, tem coisas que você separa para enviar para alguém. No meu caso eu gosto

de cinema, de viajar, então tudo que eu pego de e-mail de viagem eu separo. Se eu

trabalho com a tecnologia Java e sai alguma coisa eu separo. Se eu tiver um tempinho

eu vou lá e leio.”

Depende dos seus interesses?

“Do meu interesse pessoal, interesse para o trabalho.”

O que é interessante para o seu trabalho, você separa. Mas tem outro critério,

mais ligado à cultura, que te leve a separar uma informação ou outra?

“Busco informações para o meu lazer e meu trabalho. No lazer, dou prioridade a

viagens e cinema para buscar informações. Também procuro informações para a minha

namorada, que trabalha com biologia.”

Tem algum tipo de cinema que você gosta mais, algum tipo de filme que você

prefere?

“O que eu não gosto é de filme de terror. O resto eu vejo tudo, seja no cinema ou

pegando em locadora.”

Você tem alguma outra atividade?

“Eu quero voltar a fazer musculação, que eu parei. Mas quero ver se volto agora, no

máximo em janeiro, que é quando eu vou estar saindo da universidade. Aí eu vou ter

mais tempo livre para mim.”

Você, como outros profissionais de TI, funciona muito à base de pressão, pela

questão de tempo, dos prazos para entregar determinado módulo de um projeto

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etc. Como é que isso funciona, como você lida com isso? Mexe com a cabeça?

Você tem que levar trabalho para casa?

“Mexe com a cabeça por causa da pressão, os trabalhos têm que estar prontos no prazo.

É agüentar a pressão e fazer a sua parte. Normalmente eu não levo para casa, fico mais

tempo aqui.”

Como é que você vê seu futuro nessa profissão? Tem alguma expectativa de fazer

pós-graduação? O que você faz hoje vai mudar?

“Eu penso muito sobre isso. Todo mundo quer crescer. Tem a questão do emprego no

Exterior. Tenho um amigo que está indo trabalhar fora. Mexe com a cabeça, é uma

oportunidade.”

Nessa quantidade enorme de informação que você tem à sua disposição, tem

muita informação técnica, necessária para o teu trabalho? Ou tem mais

informação geral – cinema, política, noticiário?

“Eu diria que de 50% e 70% é lixo, vai direto para a lata do lixo.”

E como é que você consegue identificar e destacar?

“Eu vou direto no título. Se o título me pegar, eu vou ler a matéria.”

Isso vale para o geral, para as newsletters?

“Vale para qualquer coisa. Eu vou pelo título, pela primeira impressão.”

Já aconteceu de você gostar de um título, ir lendo e depois ver que não serve?

“Às vezes acontece. Quando eu vejo que não serve para mim, mando pro lixo. Nem

toda newsletter tem um subtítulo. Você tem que clicar no link para poder ver o

conteúdo.”

Como é que você identifica que aquela informação é lixo?

“Acho que é uma questão de experiência. Você está lá mexendo todo dia e acaba se

acostumando.”

Você acompanha o noticiário nacional?

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“Acompanho. Leio revistas toda semana e assisto ao Jornal Nacional, quase todo dia.”

Você acompanha o noticiário pela internet?

“Não, acompanho mais pela revista Veja.”

E no dia-a-dia? “No dia-a-dia eu pego mais informação sobre o meu lazer e trabalho. Mas no

conhecimento geral é a revista Veja.”

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Jorge - Desenvolvedor

Qual a sua formação, há quanto tempo você trabalha nessa fábrica de software?

“Eu me formei em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Campina

Grande, terminei o curso em maio e em junho de 2004 vim aqui para o C.E.S.A.R e faz

pouco mais de três meses que eu estou aqui. Tem esse projeto novo da Motorola

(desenvolvimento de software para celulares), estão contratando muita gente da área,

então eu vim e estou trabalhando aqui agora há mais de três meses.”

A tua formação é em Ciência da Computação?

“Sou engenheiro de software.”

Como você faz para separar as suas atividades de trabalho, atividades ligadas a

hobby, atividades que não são trabalho? Você define horários, costuma levar

trabalho para casa?

“Não , eu não costumo levar trabalho para casa, fiz isso durante muito tempo durante a

graduação, porque o curso era muito puxado, então a gente ficava o tempo todo

trabalhando. Agora aqui eu procuro trabalhar as minhas oito horas diárias no Cesar e

encerrado esse tempo aí eu passo a me dedicar ao meu lazer.”

Quantas horas mais ou menos você trabalha por semana?

“Quarenta horas semanais.”

Mas isso é certinho ou extrapola?

“Raramente extrapola. Apenas quando ocorre uma necessidade do projeto é que eu

tenho que fazer alguma hora extra, alguma coisa desse tipo. Mas no mais é isso

mesmo.”

Quando extrapola você prefere levar o trabalho para casa ou prefere estender

mais aqui?

“Geralmente eu estendo mais aqui. Porque geralmente quando o trabalho extrapola

assim envolve também outras pessoas, então a gente tem que trabalhar aqui. Como eu

me mudei há pouco tempo, eu ainda não tenho computador...”

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Você está morando aqui no Recife?

“Estou morando no Recife desde que eu vim trabalhar no Cesar, aí não trouxe

computador ainda, por isso não dá muito certo levar trabalho pra casa não.”

Você trabalha integralmente conectado, todo o tempo que você está trabalhando

está conectado?

“Isso.”

Eu imagino que você faça atualização de conhecimento, dê uma verificada em

newsletters... Você assina newslewtters, fóruns de discussão?

“Participo de alguns fóruns e newsletters.”

Quantos?

“Fóruns, assim, eu consulto eventualmente, com as necessidades. Agora newsletter eu

acho que assino umas três relacionadas com Java, com a tecnologia do programa.“

E a freqüência de verificação é muito grande durante um dia normal de

trabalho?

“Não. Digamos que cada uma delas eu veja uma vez por semana, mais ou menos.”

Você verifica uma vez por semana?

“Isso. Dessas newsletters eu recebo um e-mail semanal”.

E existe muita pressão para você atualizar conhecimento e aplicar no trabalho?

“Existe. Eu mesmo tenho esse objetivo de estar sempre atualizando o meu

conhecimento. Então eu gosto de estudar, sempre gostei muito de estudar, e eu estudo

tecnologia fora do trabalho e no próprio trabalho, se eu tenho demanda de aplicar, eu

estou estudando.”

Como você se atualiza? Revista, Internet?

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“Internet, basicamente materiais na Internet. Eu procuro tutoriais e procuro praticar

tudo aquilo que eu estou vendo para absorver melhor o conhecimento.”

É muita informação, não é? Como você faz para administrar, para saber o que é

mais relevante?

“Eu acho que a idéia principal é focar em algo que você quer estudar e em todo o

material disponível, que é grande, ver o que se enquadra melhor com aquilo que você

quer, com aquilo que você está usando na hora, com seu objetivo do estudo. Assim

como tem muito material, tem muito material de boa qualidade e muito material que

não tem qualidade.”

E como você faz pra separar?

“Dou uma olhada rápida, procuro dar uma olhada rápida, geral no material. E aí já dá

pra fazer alguma coisa. E tem agora umas revistas boas na área também, de uma ano

pra cá, voltadas para Java, que é a área que eu gosto de trabalhar, que a Java Magazine

e o Mundo Java, que são brasileiras e têm reportagens muito boas. Algumas

tecnologias dessa área, eu dou uma lida nessas matérias, acho legais, e elas muitas

vezes elas têm referências para outros sites, e eu procuro estudar por eles. Listas de

discussões também, às vezes o pessoal sugere materiais sobre determinados assuntos e

costumam classificar – “esse material aqui é bom” – então a gente corre atrás desse

tipo de coisa também.”

Em termos de relevância, às vezes você vê que não tem toda essa relevância, não é

tão importante assim... Como você faz para saber se é interessante aquele tipo de

informação? O senso crítico mesmo?

“O senso crítico com certeza ajuda bastante nisso aí, mas a gente procura referências,

de onde está baseada aquela informação, às vezes até a quantidade de lugares que estão

falando sobre aquilo importa. Mas no final das contas, não essa parte relacionada a

material de estudo sobre tecnologia, mas tudo que é notícia que circula pela Internet

sempre deixa aquela dúvida se aquela informação é verdadeira ou se é apenas mais

uma das brincadeiras da internet.”

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Além desses fóruns e grupos de discussão da área técnica, você participa de algum

outro fórum de discussão, alguma outra newsletter sobre algum tipo de atividade

que te interessa?

“Geralmente eu trabalho nessas listas assim apenas como consumidor, eu gosto muito

de ler as informações que tem lá. Acho que tem umas duas listas de discussão que eu

escrevo mais, que são do Java Users Group. Tem uma aqui no Recife e tem outra lá na

cidade onde eu morava, Campina Grande. Aí a gente troca e-mails, o pessoal manda e-

mail com dúvidas, e eu gosto de responder.”

Além desse tipo de newsletters, fóruns de discussão, tem alguma outra newsletter

em outra área que te interessa também, que você participe?

“Não, eu não participo de nenhuma não.”

O fato de você estar o tempo todo conectado pela Internet com outras pessoas,

outras instituições, ao mesmo tempo que ajuda a realizar o teu trabalho, eu

imagino que às vezes também dificulta você saber o que está rolando no mundo...

Ou não? Isso acontece contigo por conta da quantidade de informação que chega

para você? Para se informar, para conseguir se manter atualizado sobre as

informações do mundo, isso acontece contigo?

“Em relação ao trabalho, especificamente, a gente está o tempo todo conectado por

necessidade, às vezes precisa de alguma coisa e entra na rede, então a gente vai atrás

disso, a informação não chega. Mas no meu tempo livre eu uso bastante a Internet

também, e aí sim, quando eu vou olhar os meus e-mails e que chegam muitas coisas

das newsletters que eu participo, e chega muita informação, e muitas vezes eu não dou

conta de ver toda aquela informação e simplesmente eu vou deixando pra lá pra ver se

algum dia eu vejo aquilo tudo.”

Você consegue ter alguma reflexão sobre o seu trabalho? Porque eu imagino que

seja muita informação que você tem que administrar, absorver, deixar pra lá...

“É complicado lidar com isso, mas a Computação, além de ter muita informação, é um

mercado que está se expandindo ainda e tem muita gente interessada nisso. Então do

mesmo jeito que tem muita informação tem muito mais gente atrás dessa informação

também, e acaba que vai disseminando o conhecimento e um olha uma coisa aqui, o

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outro lê outra coisa ali, e depois troca experiência um com o outro, vai um passando

pro outro. Mas ao mesmo tempo em que chega mais gente também vai gerando mais

informações. Mas eu nunca parei para fazer uma reflexão assim, para onde isso vão

levar, essa quantidade de informação.”

Você diria que seu trabalho é sua vida?

“É, o que eu gosto de fazer é isso, então é a minha vida, é o que eu tenho como

perspectiva para o meu futuro.”

Você pretende fazer isso para o resto da vida?

“Não necessariamente trabalhando do mesmo jeito, como programador, mas sempre

nessa área de computação.”

Já te passou pela cabeça mudar desse trabalho direto com a máquina, com

códigos, para uma perspectiva mais de gerenciamento talvez?

“Já sim, passou.”

Você acabou de se formar, não é?

“Exato, mas já passou (pela minha cabeça) trabalhar com gerenciamento, só que eu

não tenho tanta facilidade de trabalhar com outras pessoas. Eu gosto de trabalhar em

grupo, mas não no sentido de gerenciar. Mas existem várias outras possibilidades de

trabalho nessa área, ainda com a máquina mas não necessariamente só com código,

com programação. Trabalho com redes, eu gosto. No fundo ainda vai ter um pouco de

programação, mas eu gosto de redes, de arquitetura de sistemas, que eu não preciso

necessariamente estar codificando, eu posso fazer o design de um sistema, o que eu

acho interessante.”

Você tem alguma atividade cultural ligada à música ou outra coisa?

“Eu gosto muito de música mas como ouvinte. Eu já tentei algumas vezes tocar alguns

instrumentos, mas eu não tenho muito talento para isso não. Mas eu gosto muito de

música, gosto muito de filmes... as atividades culturais que eu participo são filmes,

shows...”

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Você já se ambientou no Recife? O Recife é um pólo cultural bem intenso...

“Eu estou conhecendo aos poucos, estou procurando sair, conhecer gente nova, lugares

novos, e estou me acostumando, conhecendo aos poucos.”

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Davi - Desenvolvedor

Qual é a sua profissão?

“Minha formação é Ciência da Computação, sou formado desde o ano passado.

Quando eu entrei na fábrica de software que trabalho agora, era nem formado ainda.

Me formei trabalhando aqui. E aqui eu trabalho com infra-estrutura e desenvolvimento.

Eu estou alocado no Projeto Simbiose em que eu faço desenvolvimento de software e

planejamento..

Como é que você faz, ou que instrumentos ou procedimentos você utiliza para

separar o que é trabalho e o que não é trabalho, as tuas atividades na vida da

empresa e aquilo que você não considera trabalho?

“Eu separo bem esse tipo de coisa, separo por meio de disciplina mesmo, não tenho

nenhum instrumento em particular não. Sei o que o trabalho e sei o que é que eu não

devo considerar trabalho.”

Você sempre soube diferenciar?

“Sim, sempre soube.”

E o que é que faz diferenciar o que é trabalho e o que não é trabalho?

“Eu acredito que o próprio estar no lugar de trabalho e o não estar já dá uma

diferenciação: a localidade.”

Significa dizer que você não leva trabalho para casa?

“Às vezes eu tenho que levar, mas eu tento não levar, tento me disciplinar para não

levar.”

E a questão do prazer, também tem a ver com o que é trabalho e o que não é

trabalho?

“Eu tenho prazer trabalhando aqui, senão eu não estaria trabalhando. Mas precisa

diferenciar bem do que é o prazer relacionado ao trabalho e prazer relacionado à

atividade extra que eu estiver fazendo.”

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São prazeres diferentes?

“É, completamente diferentes.”

E o fato de você trabalhar o dia todo conectado, ou MSN, ou pegando

informações na Internet, ou eventualmente trabalhando em conjunto com um

grupo de pessoas? A quantidade de informações técnicas a que você é submetido é

bem grande.

“Essa coisa que você falou aí do MSN, eu tenho uma coisa de ficar bastante. E aí é a

questão de separação de trabalho e diversão. Eu tenho um MSN no trabalho e tenho

um MSN que eu uso em casa. Contas de MSN diferentes.

A sua conta do MSN do trabalho está mais cheia do que a do não trabalho?

“Está, está mais cheia.”

Você consegue lidar bem com essa quantidade de informação que chega para

você?

“Eu nunca tive problema em lidar com a quantidade de informação. Você deve separar,

classificar que tipo de informação é e se ele é importante ou não naquele momento.”

Essa situação envolve também confiabilidade da informação?

“Envolve vários fatores, não só confiabilidade. Envolve qual a relevância daquela

informação naquele momento. Se ela não tem relevância naquele momento, eu não vou

ler ela agora, eu não vou trabalhar come ela agora. Se é uma informação que, por

exemplo, tem que ser gerida e entregue logo, como resultado, aí eu vou ter que pegar

ela com mais prioridade.”

E a confiabilidade entra também? Do ponto de vista técnico, se por exemplo você

precisa fazer a atualização de uma informação para resolver um bug, ou para

resolver uma ocasionalidade qualquer, você busca numa lista de discussão, ou em

algum tutorial disponível e tal?

“Normalmente, quando isso acontece, eu procuro buscar mais fontes de informação

para solucionar o problema.”

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E aí é o cruzamento disso que dirime as dúvidas?

“É, quando eu tenho alguma dúvida sobre a confiabilidade de alguma coisa eu tento

ver se tem várias fontes falando sobre isso.”

E isso é comum?

“Não, eu quase nunca tenho dúvidas... se alguém coloca alguma coisa no fórum e eu

acho que é relevante, eu acho que é por ali mesmo que ela tem que ir, então eu sequer

procuro mais fontes.”

Você assina fóruns de discussão na Internet?

“Não, normalmente eu procuro na Internet, em algum sistema de busca.”

E é muito comum isso acontecer em um dia?

“É muito comum.”

Quantas vezes por dia?

“Procurar por informação? Acho que de cinco a oito vezes por dia, até dez.”

E entre essas cinco a dez, costuma haver problemas de confiabilidade nessas

informações?

“Não, eu nunca tive problemas. Não é muito comum não esse problema com

confiabilidade.”

Existe algum tipo de ferramenta como fórum ou newsletter que não tenha

necessariamente a ver com o seu trabalho mas com a qual você está envolvido,

você assina também? Alguma coisa que tenha a ver com cultura, por exemplo?

“Fórum que eu assino e que não esteja relacionado com o meu trabalho... Por exemplo

não sei se você já ouviu falar em RPG. Tem fóruns que eu assino sobre RPG e que não

têm a ver com o meu trabalho, e de vez em quando eu leio aqui.”

Você se importa com a informação sobre a política? Quais são as fontes que você

consulta?

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“Normalmente eu vejo a Folha Online, vejo algumas coisas no UOL, estou tentando

ver informações naquele jornal, Valor Econômico que tem na Internet também, mas

tem que fazer um cadastro lá. Fora trabalho, eu também sou interessado na área de

Economia e Política.”

E Cultura?

“Cultura não, não costumo consultar nada na área de Cultura não.”

A maior parte dos teus amigos não é da área?

“A maior parte dos meus amigos é da área de Design. Tem muitos na área de

Tecnologia também. Por exemplo, a minha namorada é de Design.”

Como é que eles interferem no teu relacionamento com o trabalho? Como você

acha que a presença deles na sua vida faz você ver essa diferença?

“O tipo de ambiente é diferente, o tipo de conversa também... O comportamento é

totalmente diferente, você fica mais à vontade com os seus amigos do que aqui. Aqui

você tem que se comportar de uma forma mais formal. Se eu fosse sair com alguém

daqui do trabalho eu não iria beber bastante, eu iria moderar mais. Com meus amigos,

a gente vai para a casa de um e acaba apagando lá. É bastante diferente, o

comportamento muda bastante.”

Algumas pessoas tentam identificar fora do trabalho coisas com as quais elas têm

mais proximidade, meio que com o fim de se afastar da máquina. Isso acontece

com você também?”

“Acontece. Eu estou meio sem conseguir fazer isso porque eu estou trabalhando

bastante. Mas eu gosto muito de sair, por exemplo, sábado praticamente eu não estou

em casa. Eu gosto muito de artes marciais, eu fazia Aikido, só que quando eu comecei

a trabalhar bastante – eu estou dando aulas também – eu estou sem a possibilidade de

voltar a fazer. “

Você fez Aikido por quanto tempo?

“Fiz um ano e meio. Eu tentei fazer outras artes marciais também e não deu certo, era

fora do meu horário. Mas é uma coisa que eu gostaria muito de voltar a fazer.”

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Qual é a relação disso com o trabalho? É uma coisa que serve para se afastar,

desligar do trabalho?

“É uma coisa que naquele momento eu me desligo totalmente, até de Computação, que

eu gosto muito. Mas eu me desligo totalmente. É como se eu voltasse ao século

passado. Eu me sinto assim quando eu faço artes marciais.”

Fala um pouquinho mais disso... É como se fosse uma oposição à máquina?

“É como se a vida fosse mais simples. Antigamente as pessoas não tinham essa

correria de informações, de saber várias coisas o mais rápido possível.”

É como se você praticamente estivesse experimentando um ambiente diferente?

“É como se eu estivesse me desligando desse mundo.”

E isso é dentro de um tempo, de uma temporalidade diferente? É mais ou menos

isso?

“É, eu sinto assim. Quando a gente vê as pessoas praticando artes marciais... elas

praticam artes marciais dessa mesma forma há séculos. A forma é mais ou menos a

mesma, mudam por exemplo alguns estilos, mas a forma é a mesma. Você se sente

como se você estivesse naquela época ainda, praticando naquela época ainda.”

Há quanto tempo você não está conseguindo praticar?

“Acho que vai fazer um ano. Eu já tentei voltar algumas vezes mas não consegui. Por

exemplo, no meio do ano passado eu tentei voltar, só que pela falta de tempo eu

começava a faltar as aulas e terminava me desligando.”

A prática do Aikido ela interfere de alguma forma na sua forma de ver o mundo e

ver as pessoas?

“Acho que interfere.”

Como?

“É difícil dizer, porque como toda arte marcial toca tanto no corpo quanto na mente.

Sempre passa os ensinamentos na forma de movimentos e também na forma de lições

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que ele viu na vida. E ele diz que na prática do Aikido a pessoa vai se aprimorando

tanto fisicamente quanto mentalmente, vai se tornando uma pessoa mais completa,

talvez.”

Mais simples?

“Mais simples. Não sei se mais simples, mas mais sábia. Quando você vê a

personalidade do meu professor... ele é uma pessoa que, segundo me contaram a

história dele, ele já foi autônomo do Porto, já foi alcoólatra, e hoje em dia é uma

pessoa totalmente zen, não se estressa com nada, procura não fazer confusão com

outras pessoas.”

Embora seja um cara que provavelmente saiba se defender muito bem...

“É, embora saiba se defender muito bem. Mas ele sempre diz que se você quiser

aprender a se defender, compre uma arma. Porque Aikido não é pra você se defender, é

pra você crescer como pessoa.”

Você traz isso para o seu trabalho, tem um reflexo disso no seu trabalho, na sua

forma de lidar com a máquina?

“Como lidar com a máquina? Talvez como a forma de lidar com a vida inteira? Nesses

momentos em que eu fiz o Aikido, eu achei que eu fui me tornando uma pessoa mais

calma, que aceita mais as coisas que vêm.”

Essa sua falta de tempo atual, você de certa maneira está aceitando ela. Mas você

acha que vai chagar um limite de não estar praticando alguma coisa ou é uma

coisa que dá pra agüentar mais tempo?

“Eu defini que até o fim do ano eu vou voltar a fazer, porque essas aulas que eu estou

dando depois do horário de trabalho, pra mim tá sendo mais como um desafio meu,

como eu aprender a dar aula. Só que eu acho que se continuar nesse mesmo ritmo até o

fim do ano, eu não vou voltar a dar no outro semestre, a não ser que alguma coisa

mude aqui, eu passe a trabalhar menos.”

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E o seu futuro no trabalho? Você pretende continuar trabalhando fazendo o que

você faz hoje ou você vê a possibilidade fazer uma mudança ou de nível, ou do

tipo de coisa que você faz hoje?

“Mudança de tecnologia eu acredito que não, acredito que eu vou continuar sempre na

área de TI. Mas eu vejo mudanças na área que eu estou fazendo, por exemplo. Não

vejo que eu vou continuar fazendo a mesma coisa até eu ficar velhinho, até me

aposentar.”

E essa mudança é uma mudança do tipo de tecnologia, da linguagem?

“Não, acho que é uma mudança do tipo de trabalho. Por exemplo, eu antigamente era

da área de infra-estrutura, de suporte. Trabalhava lá em cima com os meninos, aqui (no

Cesar). Só que eu me aloquei num projeto em que eu comecei a ficar tanto na área de

infra-estrutura desse projeto quanto na área de desenvolvimento também,

desenvolvimento e planejamento. Essa já foi uma mudança bem significativa.”

A questão de pressão, por prazos corretos, como você lida com isso? É uma

questão com a qual você se debate muito?

“Não, é uma coisa que acontece, faz parte do trabalho. Tem pressão em todo lugar, não

adianta se desesperar por isso porque você sabe que vai ter pressão. Se nãp tiver

pressão... tem dois problemas, né? Tem pressão de mais e pouca pressão. Com pouca

pressão o negócio não avança, porque a pessoa não está motivada pra isso. E muita

pressão às vezes a pessoa se desespera, mas é uma coisa que sempre acontece, não dá

pra se desesperar, o cara não pode se desesperar por isso.”

Numa semana típica quanto tempo você trabalha aqui ou em casa?

“Numa semana típica aqui eu acho que oito horas diárias. Agora juntando o trabalho

com o trabalho que eu faço depois dá bem mais de oito horas. Porque por exemplo, eu

pego o horário do almoço aqui para preparar o material de aula. E quando eu chego em

casa ainda não está pronto ainda, e eu vou continuar a fazer.”

Você leva trabalho para casa?

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“Eu estou evitando fazer isso. Antigamente eu até poderia levar trabalho para casa,

mas hoje em dia eu estou evitando para não interferir com o pouco tempo livre que me

restou.”

Nesse tempo livre você sai com os seus amigos? O que você faz para se divertir,

para se desligar?

“Olha... assistir filme, sair... ver televisão. Hoje em dia eu estou com pouco tempo para

fazer qualquer coisa. O máximo de exercício físico que eu estou fazendo é esteira em

casa, quando dá eu faço.”

Alguma atividade cultural? Violão, alguma coisa assim?

“Eu até tenho um baixo em casa, só que estou sem tempo...”

Você já tocou baixo?

“Já tentei começar a tocar, comecei a formar uma bandinha, fui fazendo as músicas, só

que não foi para a frente.”

Com o pessoal que trabalhava em TI?

“Não, com os meus amigos mesmo.”

E não foi para a frente porquê?

“Porque o pessoal não tinha tempo mesmo”

Mas você leva jeito para música?

“Tive umas aulas de baixo com um professor muito bom, só que tava muito no

princípio ainda. Mas era uma coisa que eu gostaria de voltar a praticar também, é

muito importante.”

Por que?

“Eu gosto muito de música, e gosto principalmente do próprio baixo?”

E isso daí tem alguma relação com o trabalho?

“Não, acho que isso é uma coisa totalmente oposta.“

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No sentido de fazer desligar da máquina, como o Aikido?

“No sentido de me fazer desligar também.”

Engraçado que a música e qualquer outro tipo de envolvimento com arte é um

processo sistêmico também... Prepara, passa por um processo de preparação e

tem um resultado final. Você vê alguma relação com esse processo sistêmico?

“Eu nunca encarei a música dessa forma. Encarei mais como uma coisa livre

assim. Às vezes eu pegava um violão e ficava tentando tirar músicas na hora, só de me

lembrar. Eu não vejo isso como algo sistêmico, não vejo um processo não. Eu não vejo

algo que foi produzido no final. Porque nunca tem final, fica sempre tentando

aprimorar mais aquela música.”

Numa ordem de prioridade viria o Aikido ou a volta à música?

“O Aikido.”

Você também não vê esse processo sistêmico no Aikido?

“Não, não vejo também não. É um processo de aprimoramento.”

De talvez elevação, para colocar uma palavra correta?

“Não, eu acho que aprimoramento é melhor. Elevação dá idéia de que é uma coisa de

que você vai ficar maior que os outros, e aprimoramento você está sempre se

aprimorando, não tem um limite. Elevação talvez você chegue num determinado

limite.”

É correto fazer uma associação com a necessidade constante de atualização que

você tem no seu trabalho? Porque da mesma forma que você tem que estar o

tempo todo atualizado em algum tipo de linguagem, ficar prestando atenção em

alguma novidade do mercado, a par de tudo... É um aprimoramento também

constante.

“Se você parar de fazer Aikido você fica desatualizado, embora você possa voltar

rapidamente.”

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GERENTES

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José – Gerente e executivo

Qual sua formação, como você chegou nessa empresa e o que faz aqui

dentro? Qual a sua evolução aqui, o que você fazia e como isso foi

mudando?

“Eu sou formado em Ciência da Computação pela UFPE, sou um dos sócios

fundadores da empresa. A empresa surgiu de uma idéia de trabalhar criando jogos, não

existia essa possibilidade aqui em Pernambuco. Desde o tempo de colegas de

graduação que a gente fez um projeto pra uma disciplina da universidade e nesse

projeto a gente resolveu criar especificações de um jogo. Resolvemos levar em frente

essa história e chamar um outro colega para elaborar um plano de negócios; então, a

gente passou as férias de final de ano todinha montando um plano de negócios pra criar

a empresa e submeter isso a um edital do Recifebeat que é uma pré-incubadora da

Universidade. Isso foi no final de 99 e começo de 2000, vai fazer 5 anos agora. Éramos

cinco, em determinado momento, algo como seis meses depois, todo mundo já tinha

largado os empresgos que tinha. Pra mim tava até sendo difícil porque eu estudava;

tinha um emprego, um estágio de quatro horas; depois disso ainda tinha de estudar e

assistir aula. Então, foi um período bem complicado, até que tive que largar o emprego

e foi muito bom porque começou a progredir à medida que todo mundo passou a se

dedicar integralmente. Naquela época, meu tempo de trabalho durava 16 hora. No

primeiro ano na empresa, a gente fez basicamente duas coisas: procuramos um

investidor, e essa procura de investidor significava escrever plano de negócios, fazer

viagens pra São Paulo, fazer apresentações. E também procuramos especificar o que

seria nosso primeiro jogo. No começo a empresa não gerava renda, recebíamos uma

bolsa, depois passamos um ano sem receber nada e gastando as economias e no final

do ano a gente conseguiu um investimento. No primeiro ano a minha atribuição era

basicamente escrever, escrever plano de negócio e escrever especificação do jogo”.

Especificação é o que vocês vão querer ter no jogo?

“É. Descrever as funcionalidades do jogo. É um programa muito complexo. Não é um

produto simples e haviam muitas decisões a serem tomadas, funcionalidade, se a gente

vai querer desse jeito ou daquele. A gente tinha jogado uns 40 jogos e a gente

precisava fazer um que se destacasse, o elemento diferente é que ele seria jogado pela

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internet. Quando a gente começou ainda não existia nenhum jogo desse tipo que você

pudesse jogar na internet contra outras pessoas, você jogava sozinho contra o

computador. Era bem limitado”.

Então, o trabalho nessa fase já implicava em codificação?

“Não, ainda não. Ficou acertado que a gente não tinha recursos pra construir aquele

jogo; não ia adiantar a gente começar a se envolver sem ter recursos pra pagar. Aí a

gente começou a idealizar, a escrever todos os requisitos do jogo e isso foi bom porque

quando a gente começou a codificar idéia já tava bem madura”.

Hoje em dia, operativamente, o que você faz em dia normal?

“Bom, ao longo de cinco anos muita coisa muda. Então, eu já fiz vários e vários

trabalhos porque quando você é dono de uma empresa e é uma empresa pequena,

então você faz cafezinho e tem reuniões de sócios. Então, de tudo um pouco você

acaba fazendo. Mas, num dia normal de trabalho eu geralmente chego entre umas

oito e meia, saiu daqui mais ou menos umas sete, sete e meia da noite; esse é meu

dia padrão, eu tenho duas horas pra almoço. A gente estipulou que não ia mexer

nessas duas horas, se você quiser, você pode trabalhar na hora do almoço; mas,

oficialmente a gente não vai reduzir porque e um período que a gente utiliza pra

poder integrar a equipe porque como é uma empresa de jogos, então na hora do

almoço fica todo mundo jogando, jogando em grupo. Isso não só deixa todo

mundo mais leve pra segunda parte do dia, como integra as pessoas. Quando eu

chego de manhã, a primeira coisa que eu faço é olhar o dia, olhar minha agenda,

quando não aparece alguma coisa surpresa pra fazer. Hoje eu sou gerente de

projetos dentro da empresa, então eu sou encarregado dos projetos da gente.

Também estamos desenvolvendo um jogo junto com o SEBRAE no segmento de

restaurantes. Então eu tenho que manter o cronograma atualizado. Então, o

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trabalho de gerente de projeto envolve recursos humanos, administração de

pessoas, administração de tempo, de custos, de cronograma, de riscos. Então, tem

uma serie de técnicas pra manter o projeto sob controle, pra manter ele dentro do

custo, pra manter o padrão de qualidade dentro do padrão desejado pra que os

prazos não estourem, pra que todo mundo saiba o que vai fazer em cada

momento, não só hoje, mas pelo menos na semana toda. Que todo mundo tenha a

mesma visão pra onde o projeto vai, todo mundo entenda quais são os problemas

que a gente ta sofrendo hoje; manter uma visão unificada do projeto. Essa é a

minha principal atribuição que envolve uma série de atividades, como: prestar

atenção se as pessoas estão motivadas no jeito de falar, uma forma de se

posicionar na cadeira, se bota a mão no queixo; prestar atenção no que motiva as

pessoas, prestar atenção se a carga de trabalho de determinada pessoa está muito

alta ou muito baixa e as tarefas chatas se estão sendo distribuídas igualmente, se

as pessoas estão chegando dentro de um horário razoável. A gente tem vários

estagiários aqui, então eu tenho que ficar muito perto deles e acompanhar o

desempenho deles na faculdade; saber quando eles vão ter prova, quando eles vão

precisar faltar pra estudar pra prova, quando eles pretendem se formar, fazer um

planejamento da carreira deles aqui dentro, na medida do possível porque com é

uma empresa pequena é muito difícil fazer um plano com cargo e salário”.

Então, são basicamente atribuições de gerenciamento de pessoas e processos?

“Exato. Eu converso também com clientes, onde está o estágio do projeto, entendo

o que eles querem. Então, gerenciamento de pessoas e processos também”.

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Em termos de planejamento e estratégia, você lida também com isso a longo e médio

prazo pra empresa?

“Esse é um outro chapéu que eu coloco, que é o chapéu de sócio que eu assumo. A

gente tem reuniões periódicas, no mínimo uma vez por mês, entre os sócios; a

empresa é dividida hoje em uma estrutura hierárquica, é uma hierarquia, mas ao

mesmo tempo é uma hierarquia bem democrática. Então, tem o chefe, que pensa

estrategicamente o futuro da empresa, logo abaixo vem o gerente de projetos e os

gerentes funcionais: os gerentes funcionais são os gerentes voltados a áreas, a área

de gestão, a área de negócios, a área de produção, criação; isso descendo

verticalmente porque horizontalmente encontramos com essas pessoas o gerente

de projetos e ele recruta pessoas dessas áreas funcionais pra trabalharem com

projeto e aí ele garante que as pessoas que teoricamente teria apenas uma visão

da função que tava fazendo, elas pensem no projeto como um todo e não apenas

na parte delas; ele é um aglutinador. Então, como gerente da empresa eu faço

todas essas atribuições que comentei e como sócio da empresa, como

administrador, eu tenho que me preocupar em como vai estar a empresa daqui a

cinco anos, daqui a dez anos”.

E como você faz pra pensar isso? Que tipo de fonte você usa?

“Tudo começa como que você quer, o que você quer pra empresa, que tipo de

lugar você quer trabalhar, que tipo de coisa você quer fazer. Então, a idéia é que

a gente tem que colocar essa vontade da gente dentro do planejamento da

empresa; direcionar as atividades. Claro que o mercado dita muito o que você vai

fazer, às vezes você quer fazer uma coisa e o mercado não está pronto ou não

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existe mercado pra fazer. Nisso, o mercado tem levado os rumos da empresa pra

alguns lugares que a gente não tinha se planejado pra isso. Hoje, por exemplo, a

gente trabalha muito numa linha de jogos sérios, são jogos de treinamento, jogos

publicitários, jogos políticos e a gente quando montou a empresa não

imaginávamos que íamos trabalhar com isso; mas, era um mercado que tava

aberto e a gente avançou no mercado e está cavalgando muito bem nele”.

O que você faz para atualizar sua base de conhecimentos?

“Uso a internet e a gente sempre está presente nos principais eventos de jogos, do

Brasil e do mundo. A gente ajudou a fundar o Congresso de Jogos Brasileiro; a

gente participou agora da EGS, uma exposição de jogos, que a maior da América

Latina, uma das mais importantes; a gente está presente nas principais feiras de

jogos do mundo desde 2001. Então, todos esses eventos, onde serão discutidas as

tendências do mercado, o que é que tá acontecendo, a gente sempre está

presente”.

O que você quer pro seu futuro como profissional?

“Eu acho que cada pessoa tem que ter um planejamento de carreira, que é

independente de onde você trabalha, é um planejamento como pessoa e um dos

fatores de sucesso desse planejamento, como conseqüência de sua carreia, é a

quantidade de conexões que você forma e a quantidade de informações que você

tem. Então, você tem que estar sempre atualizado; uma pessoa que não lê um

jornal, que não entende o que é que está acontecendo, ela começa em

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desvantagem e se ela não entender também do mercado onde ela trabalha, quais

são as novidades, ela vai ficar pra trás”.

Então, esse acompanhamento do mercado é pessoal?

“É, eu acho que é iniciativa pessoal. As pessoas que são mais antenadas, elas se

dedicam a isso, passam parte do seu tempo se atualizando”.

Eu pressuponho que você tenha que gerenciar uma quantidade de informação muito

grande.

“Tenho. Realmente o volume de informação pra qualquer pessoa é imenso e pra

quem trabalha com tecnologia é maior ainda porque a tecnologia evolui demais.

A primeira turma de Java no Brasil foi a minha turma, então o que eu aprendi de

Java, se eu tivesse parado ali, hoje em dia eu não saberia mais nada”.

Dessa malha de informação que você precisa, como é que você faz pra separar o que é

tua vida pessoal do que é trabalho? Como você faz pra identificar o que é relevante do

que não é relevante? Que mecanismos você utiliza?

“Eu sempre procuro quando eu to na internet buscar informações de lugares

onde eu já sei que as coisas que tão ali são relevantes pra mim e isso já é uma

seleção. E quando eu vou ver coisas mais genéricas, não necessariamente de

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tecnologia, aí eu dou uma olhada no geral o que é que tem e alguns pontos

específicos, que eu acho mais interessantes, eu me aprofundo”.

Que recursos técnicos você usa para encontrar soluções para problema de ordem

operativa?

“Se você tem um problema específico você sabe o que procurar. Quando isso

acontece eu faço uma busca no Google e vejo... Às vezes eu quero estudar um

tema, por exemplo, eu tô estudando pro APlication agora, e é um negócio super

difícil, é uma prova que dura 4 horas, são 200 questões, o livro pra se estudar é

300 páginas. Mas não dá pra estudar só por ele, você tem que estudar mais dois,

três livros, tem pessoas que estudam esse livro normalmente três, quatro vezes

pra fazer a prova. Então, eu fiz uma busca na internet pra pegar assunto

relacionado a esse tema e aí descobri um lugar não muito ortodoxo, eu diria

assim, um artigo que só nesse artigo tinha 72 livros; obviamente que eu não abri

nenhum. É impossível, é um volume de informação que é impossível. Aí eu

comecei a começar a conversar com as pessoas, a procurar na internet revistas e

aí peguei os três principais que normalmente as pessoas estudavam por ele e eu

comecei e ler por ele. Eu leio muitas revistas, o que as pessoas escrevem sobre

determinado tema é de fundamental importância; a opinião do usuário pra mim é

a mais importante de todas”.

Uma das coisas que me fez procurar você é o fato de vocês trabalharem numa empresa

de jogos. Eu suponho que seja uma coisa muito interessante, diferente o fato de vocês

trabalharem com jogos e ao mesmo tempo se divertirem jogando. Existe uma diferença

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entre o seu trabalho, quando você tá trabalhando, ou é trabalho e um pouco de diversão

também e em que medida isso acontece?

“Primeiro, pra você trabalhar com prazer e conseguir trabalhar com jogos, você

tem que gostar de jogos. Não necessariamente todo mundo que gosta de jogos vai

se dá bem numa empresa de jogos. Agora, é verdade que se você não gostar, você

não consegue. O trabalho é difícil, envolve uma série de conhecimentos que torna

difícil a tarefa e você tem desafios extras porque não basta o softwear fazer aquilo

que você planejou; aquilo que você planejou ser feito tem que ser engraçado, tem

que ser divertido. Não basta a sua especificação ta correta e você fazer bem,

aquilo que você pensou tem que ser um negócio que vá agradar a todo mundo. E

aí é a fase inicial muito interessante, tentar colocar, tornar a realidade aquele

jogo que você sempre quis e nunca foi possível você jogar. Existe um glamour

também porque tem pessoas que realmente adoram determinados jogos, gostam

muito e então eles ficam, assim, muito agradecidas às pessoas que fizeram os

jogos, às vezes parte até um pouco pra idolatria e aí isso dá um certo glamour pra

profissão de gamedesign”.

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Antônio - Gerente

Qual sua profissão e o que você faz exatamente nessa fábrica de software

em que você trabalha atualmente?

“Eu sou gerente de design aqui da empresa eu tenho responsabilidade tanto do

acompanhamento dos projetos com foco na usabilidade de software, seja pra web,

ou dispositivos móveis. Tenho uma responsabilidade de política de segurança da

produção da empresa e tenho que tentar descobrir quais são as novas

possibilidades encontradas na interação do homem com a máquina que possa

facilitar a vida das pessoas”.

Eu imagino que você tenha que estar o tempo todo entendendo, compreendendo

qual são os objetivos dos softwares e como ele vai ajudar o cliente; eu imagino que

isso você deve fazer em pouco tempo. Isso é verdade?

“De fato, sim. Mas, na verdade você tem dois níveis, aí. Você tem que ter um

entendimento de qual é o negócio do cliente, qual é o objetivo do cliente e no caso da

gente, mais ainda, qual é o objetivo do usuário do cliente. Variavelmente, 70% das

vezes o cliente não entende exatamente o que é que o usuário dele realmente precisa.

Pra isso, dentro da metodologia de trabalho por nós desenvolvido, seguimos uma série

de procedimentos para avaliar o uso das dos produtos e serviços criados”.

E essas metodologias consistem em você acompanhar a necessidade do cliente

final? Ou seja, há interação direta com esse cliente ou não necessariamente?

“Depende de uma série de fatores, depende desde do nível de conhecimento que a

gente já tem sobre determinado sistema até qual é a possibilidade técnica de existir um

acompanhamento desses, passando inclusive pela viabilidade de orçamento, por

exemplo. Você tem situações que é impossível ter contato direto com o usuário final.

Por exemplo, se a gente faz um software de acompanhamento do fluxo de energia, que

seja feito através de um site pra indústria de geração hidrelétrica, a possibilidade de

acompanhamento disso é pequena.”

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Como você faz pra se atualizar? Existe alguma preocupação, estratégias ou

ferramentas pra você atualizar o teu conhecimento hoje?

“Tem as ferramentas que auxiliam nesse sentido, como chats, grupo de discussão. Tem

um ponto específico, com um técnico que trabalhava aqui, que é criar, fortalecer uma

comunidade de design gráfico, design de aplicação, design de arquitetura e formação.

Sentimos necessidade de fazer com que a informação produzida no Porto Digital

circule, seja distribuída e compartilhada. Por enquanto, o conhecimento que está se

produzido está parado. Precisamos de um convívio entre profissionais dentro dessa

mesma área de design gráfico, de interface, mas com formações diferentes e que

tenham visões multidisciplinares; isso enriquece consideravelmente. Na equipe da

empresa, hoje, a gente tem gente que foi formada em artes plásticas, design de produto

e não design gráfico e aí, essa amálgama que está se formando enriquece muito. Não

existe propriamente uma disciplina pra você ir atrás do conhecimento, mas existe uma

questão de bom senso. Um exemplo é o Orkut. Todo mundo da minha equipe tem

interesse em entrar num sistema desses pra saber como ele funciona com o usuário;

isso é uma coisa que é meio natural, não tem nenhuma regra, não tem nenhum tempo

definido no cronograma do trabalho, eles têm interesse natural. É aí que as coisas se

misturam muito e talvez seja a chave pra o que você está procurando entender, a gente

tem um instrumento de trabalho que cada vem mais se transforma em instrumento de

lazer e o limite entre uma coisa e outra é muito tênue. Há a quebra do limite geográfico

também. Hoje eu converso muito mais com um amigo meu que mora na Alemanha do

que na época que ele tava aqui, morando em Brasília Teimosa; eu encontrava com ele

aqui uma vez por semana, a gente tomava uma cachaça. Eu acho que isso chega a um

extremo com o pessoal que desenvolve games. Eles passam às vezes mais de 8 horas

por dia jogando game e no final do expediente, pra relaxar, eles vão jogar um

pouquinho! Ao mesmo tempo, eu tenho uma relação muito forte com música, arte

digital. Isso acaba enriquecendo muito uma instituição em que eu trabalho, que

consegue enxergar o lado positivo desse quadro todo. O contrário é aquele tipo de

empresa que trabalha de forma dura, que impede o uso do MSN, sei lá o quê, vigia o

acesso à internet, restringe ao máximo e investe numa produtividade alucinada.

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Em que medida é interessante que esses limites sejam claros? Esses limites entre

trabalho e prazer ou hobbie? Até que ponto é importante que ele seja claro e que

instrumento você lançaria mão pra deixa-lo claro?

“Tem um limite que eu acho que tem que ser claro. Mas esse limite não é linear. Um

exemplo é o Re:combo. O grupo apareceu, começou com um monte de gente que hoje

de Pernambuco e de gente de fora do estado, de fora do país com o interesse de

produzir mídias de forma colaborativa e isso no início era uma forma de discutir as

bases da propriedade intelectual e direito autoral de obras de arte; a gente recebeu

apoio de infra-estrutura, mas agora o Re:combo assumiu um projeto para gerar um

produto através do tratamento das mensagens de texto via telefone (SMS) de forma

gráfica. É um negócio bem bonito que está envolvendo 4 engenheiros de software, um

deles com perfil de analítico, e uns três designers, além de envolver operadora... ; o

Re:combo nasceu de interesses pessoais. Normalmente quando você coloca muita

paixão da sua vida pessoal dentro do trabalho, uma forma de se concretizar seus

objetivos, com muito prazer, é através de arte. Isso é engraçado porque em vários

níveis, nada disso é por acaso, mas quando você faz com vontade, por prazer, é porque

tem interesse anterior de tudo. Então, é assim: como é que a gente consegue separar as

coisas? É complicado!”.

Vocês trabalham hegemonicamente conectados, vocês tão o tempo todo cercados de

um aparato pra que o trabalho seja efetuado e através desse aparato vocês têm acesso à

informação. Inclusive a informação é variada...

“É a profissão da informação”.

Esse aparato acaba ajudando a você perceber o próprio aparato?

“É engraçado porque eu vejo esse aparato todo como abstração. A única coisa que me

incomoda mais é basicamente eu ter que ficar sentado numa posição que normalmente

eu tô no trabalho; mas, se eu tivesse trabalhando com um notebook, deitado na rede, eu

praticamente não perceberia. Eu acho que ao contrário! Mas é uma questão

complicada. Você fala se ele ajuda a perceber ou a entender melhor o aparato?”.

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As duas coisas. Esse aparato lhe permite ter uma reflexão sobre seu próprio

trabalho, você observa e percebe que está cercado por uma certa racionalidade.

Pelo que eu percebo vocês sofrem uma demanda muito forte por conta dos

projetos e estão sempre submetidos a uma carga de informação muito grande pra

gerenciar, pra permitir, reproduzir, etc. Eu imagino que chega o momento em

que essa demanda toda impede você de ter uma reflexão sobre seu trabalho, sobre

sua vida. Mas, eu imagino também que existe em certa medida uma possibilidade

desse aparato...

“Fortalecer essa visão crítica”.

É.

“Eu acho que sim. Inclusive a partir do momento que você considerar que esse aparato

é útil na vida da gente, pelo menos 50% da produção de conhecimento, não só pra você

receber informação, mas você produzir e entrar em discussões, ele é um instrumento de

crítica muito forte. Tem um exemplo, que eu acho engraçado, talvez esse instrumento

de crítica seja num extremo, tanto que você chega a um ponto, tem um limite que ele

começa a ser um instrumento de crítica, a partir desse limite”.

Mas, isso acontece?

“Eu acho que acontece. Por exemplo, vou dar um exemplo bem prático, eu

participo de uma lista de discussão de um evento que vai se realizado em São

Paulo, o evento tem todo um arcabouço teórico, e discutirá muito mídia tática e

uso de software aberto. Ninguém tinha pensado, em quatro dias de debate da

necessidade de uma redonda questionando a validade pra sociedade brasileira de

software livre. Tipo: a própria tecnologia virou um fetiche tão grande que confia

em si, não se questiona; se você for ver objetivamente, se for pegar o jornal e for

ler, nos últimos seis meses o que você vai ler de software livre... 90% dos casos é

irrelevante, só se fala em software livre num nível que não passa do Linux

(sistema operacional concorrente do Windows, da Microsoft, baseado em

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plataforma aberta). No máximo se menciona a existência Open Office (pacote de

programa concorrente do Office, da mesma Microsoft). O debate se dá sempre

sobre o que representa em termos de economia na compra de um outro tipo de

software. Agora, qual o impacto dessas coisas? O que ta acontecendo? Ninguém

tinha parado nessa discussão pra se questionar. Talvez eu tenha essa visão

inclusive por trabalhar direto com software; por exemplo, eu uso um software

que eu acho maravilhoso da Alemanha pra composição, ele é feito pra tocar. Eu

não sei se alguém tenha que pagar alguma coisa pra ele ser tão bem desenvolvido

do jeito que ele é; é isso o que sustenta os caras lá. É a mesma questão da

propriedade intelectual. Tudo o que a gente produz no Re:combo é aberto e

aberto dentro de uma licença que você pode fazer que quiser; você pode pegar as

músicas todas que tão lá, gravar um cd e vender na rua por 5 reais e você estará

ganhando dinheiro honesto, você tem todo direito, ou uma gravadora pode

chegar, fazer 15 mil cópias, vender e não precisa dar nada pra gente. Nesse caso a

gente está abrindo pra ter um impacto na sociedade que já começou a ter algumas

discussões em cima disso. O que isso significa? A partir do momento que você

consegue ter tantas redes formatadas fisicamente, você consegue formar nós que

estão fora das redes ideológicas. Só pra citar exemplo: rede de trabalho, rede de

grupos de discussão sobre uma linguagem específica, sobre um evento. Se essa

tecnologia não existisse esses grupos continuariam extremamente fechados, seria

mais difícil pra esses grupos, nesses aparatos ideológicos, receberem influência de

fora”.

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Então, é como se a conexão via tecnologia permitisse que esses grupos trocassem

afinidades para além do plano ideológico?

“Exatamente. Tem um negócio que é bem interessante que é o protocolo que se

usa na Internet. No protocolo de comunicação da internet, o básico, geral, se você

cria uma censura pra algum tipo de informação, algum nó na rede, o protocolo

entende aquilo como um erro. Isso talvez seja meio a gênese dessa historia toda;

por mais que ideologicamente aquilo seja censura, o aparato tecnológico entende

isso como erro e a ordem é procurar outro caminho pra chegar no mesmo ponto.

É isso o que o protocolo faz. Por isso que é extremamente difícil você censurar

hoje na rede, por isso que tem que entrar aí um outro aparato. Esse exemplo

mostra como a regra básica de funcionamento de uma coisa tão comum como a

Internet está sendo aplicada à vida das pessoas no sentido de crítica possível ao

sistema e de resistência a valores impostos.”

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Ivone - Gerente

Diga sua profissão, como você chegou a trabalhar no C.E.S.A.R. e o que

você faz hoje aqui.

“Minha formação é em Ciências da Computação, fiz graduação e mestrado nesta área.

Meu relacionamento com o C.E.S.A.R. vem, indiretamente, desde a época da

fundação. Quando o C.E.S.A.R. começou eu já tinha concluído meu mestrado fora, já

tinha voltado para a equipe e trabalhava em um projeto de pesquisa lá na UFPE. E

trabalhar com inovação colaborou muito com o meu histórico, não só por ter estudado

fora, mas também de ter trabalhado em empresas estrangeiras. Isso dá uma visão mais

ampla de contexto de mercado. Também ajudou muito a experiência com institutos

tecnológicos, que eu tive contato no Exterior, porque aí eu deixei de ver só o lado da

inovação e da tecnologia da informação pra ver inovação como algo mais amplo. A

pessoa começa a colocar a coisa em perspectiva, no contexto de como é que a

tecnologia, de modo amplo, pode trazer inovação, qualidade e melhoria. Muitas vezes

a inovação de que a gente está falando não é inovação só tecnológica, mas também

inovação de negócio, inovação do modelo de gestão da empresa – e é isso que faz a

diferença. Esse tipo de visão se adquire quando se distancia levemente do mundo de TI

pura. Quando a pessoa não está só focada em TI, tem uma visão de outras tecnologias

que podem agregar valor a esse mundo.”

E hoje, no C.E.S.A.R., quais são exatamente as suas atividades?

“A área de inovação do C.E.S.A.R., na qual eu estou inserida, é responsável por pensar

a visão de futuro, do ponto de vista da inovação. E para isso existe um conjunto de

ações que a gente tem que desenvolver. A gente faz a prospecção junto aos institutos

de pesquisa, junto aos outros institutos de inovação, e junto ao mercado, incluindo

empresas consolidadas, tanto locais quanto de grande porte, que têm uma demanda

específica ou que atuam no mercado globalizado. Toda essa prospecção nos dá um

norte, de uma demanda mais ampla e não só de uma coisa pontual. O processo de

prospecção é continuo. O que a gente tenta fazer depois é trazer isso para perto da

academia. Hoje em dia a academia está um pouco mais próxima, mas historicamente

ela tinha um papel muito distante da visão mercadológica. A gente tenta formar um elo

no qual tentamos buscar, dentro das linhas de pesquisa, as soluções que apóiem os

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projetos que estão sendo desenvolvidos aqui, que vão rebater em melhor

produtividade, melhor qualidade para as empresas que são clientes.“

E esse trabalho é desenvolvido aqui no C.E.S.A.R. ou na Universidade?

Existe um lugar central aonde você trabalha ou você trabalha se

deslocando?

“Não, do ponto de vista da gestão do processo de inovação, o trabalho é realizado aqui.

Mas tudo é desenvolvido onde for mais interessante para o projeto em questão. Às

vezes o projeto tem uma demanda por um laboratório, por exemplo, ou por um grupo

de pesquisadores e de repente é mais conveniente que ele seja desenvolvido no âmbito

da universidade. Dentro da parceria que se estrutura, talvez seja mais interessante que

ele seja desenvolvido lá, fisicamente – ou às vezes é mais interessante que ele seja

desenvolvido aqui (na empresa). Depende muito de como é que o projeto é formatado.

Depende às vezes da exigência da empresa que fez a encomenda. Algumas solicitam

que o projeto seja desenvolvido em um local exclusivo, hermeticamente fechado.”

O horário de seu trabalho se expande para outros horários de sua vida

privada ou ele é restrito ao tempo dedicado à empresa?

“Ele se expande para outros tempos. Ele acontece majoritariamente aqui (na empresa),

mas ele se expande para outros tempos. Isso porque, inegavelmente, o meu ciclo

principal de amizades é da área de TI, e eu tenho um vínculo muito forte com o Centro

de Informática. Eu tenho um relacionamento de muito longo tempo com os

professores, com os pesquisadores, então, é muito natural que eu encontre essas

mesmas pessoas em momentos de lazer, em happy hours, em aniversários, em coisas

do gênero. E em alguns destes momentos a coisa também cai para o lado profissional,

porque, inevitavelmente, a gente comenta alguma coisa, aproveita para acertar algum

detalhe, marcar algo. Logicamente a gente não se encontra para isso, mas é inevitável

que, uma vez ou outra, no meio da conversa, isso (o trabalho) também apareça.”

Você tem como estabelecer percentualmente quanto do seu trabalho é

realizado efetivamente no tempo do C.E.S.A.R., no tempo de trabalho

oficial, e quanto acontece em casa, em campo, ou nestes encontros?

“Quando você fala trabalho, você está incluindo a questão de pensar o trabalho? “

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Em tudo.

“Às vezes se desligar do trabalho é algo meio complicado, independentemente de você

estar fazendo alguma coisa (não relacionada a ele). Porque grande parte do tempo fora

do ambiente de trabalho, você está voltado para alguma coisa a respeito dele. Você

está lendo o e-mail que te lembra alguma coisa, está acessando o site, está falando com

alguém pelo telefone. Eu nunca fiz essa avaliação com exatidão, mas eu diria que pelo

menos alguma coisa como 40% do meu tempo livre, fora dos horários convencionais

de trabalho, é direcionado indiretamente ou diretamente para as atividades do trabalho.

Quer eu esteja no sábado trabalhando, fazendo algum relatório ou preparando um novo

projeto, ou quer eu esteja no telefone com alguém, avaliando alguma coisa.”

Quando é que você estabelece que acaba o trabalho e agora vai cuidar da

saúde, do lazer, família?

“Há eventos que você obviamente tem que priorizar, como atividades familiares, jogos

que as minhas filhas competem... Eu não vou marcar nada naquele sábado ou naquele

domingo porque é claro que eu não vou deixar de estar lá, de forma alguma. Existem

questões de saúde que a gente também tem que priorizar, mas eu acho que a gente

tende a se sobrecarregar. É uma tendência natural, de temperamento até. De dizer ‘eu

faço, deixa que eu resolvo’. E eu acho que a mulher, de uma forma geral tem mais isso

do que o homem, até pela natureza de querer ser mãe, esposa, profissional. Então, essa

coisa de você querer resolver as coisas da família inteira e achar que você é o ponto

central. A gente tem essa ilusão. Normalmente, eu tento separar as coisas. Tentar estar

presente em eventos da minha família, como reuniões de escola, jogos, provas das

minhas filhas, quando eu tento dar um apoio maior e me programo para não marcar

nada naquelas noites em que elas vão estudar. Tem outras datas e horários que eu tento

estar com elas (as filhas). Por exemplo, eu tento sempre almoçar em casa, com elas. É

difícil isso não acontecer, a não ser quando há uma emergência que me obrigue a ficar

direto no trabalho. Mas sempre que eu posso eu tento almoçar com elas, já que é uma

das únicas refeições que a gente pode fazer juntas. O café da manhã é aquela correria

para sair de casa, à noite elas treinam e cada uma tem seu horário, então fica difícil. O

esforço que a gente faz, meu esposo e eu, é de sempre estar lá no horário de almoço. A

gente não deixa de pegá-las no colégio todos os dias, para ter este contato também. E

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nas terças à noite a gente tem uma saída com elas, nas quais a gente vai para um

rodízio de pizza, alguma coisa diferente, para começar a semana legal.”

Essa separação ou priorização, ela é estabelecida por vocês, ou de alguma

forma é o trabalho que impõe e estabelece as prioridades?

“Se eu não trabalhasse à tarde, no horário em que elas estão em casa, talvez eu não

tivesse tanto rigor em almoçar com elas todos os dias. Mas como o trabalho tem

horário, tem compromissos a serem agendados, então eu me obrigo, naquele horário

que não é o do trabalho, a criar uma rotina. Para mim seria muito mais cômodo não ter

que dirigir para cima e para baixo. Mas a hora que eu passo lá (em casa) é uma hora de

qualidade. A gente senta, conversa, elas me contam o que aconteceu na escola. Tem

essa troca. A gente orienta sobre o que elas devem fazer à tarde. Elas não ficam soltas

o dia inteiro. Talvez se eu ficasse em casa à tarde talvez não fosse tão complicado. É

importante ter alguma rotina com elas, mas o tipo da rotina muitas vezes é bem

orientado pelo tipo de trabalho que você tem.”

De que recursos você lança mão para atualizar conhecimentos e

informações necessárias ao seu trabalho?

“Às vezes você tem que ver a informação e fazer a interpretação do impacto dela. É

diferente de você ter simplesmente uma atualização apenas técnica, em cima de um

novo paradigma, uma nova linguagem. Às vezes você vê uma notícia na Imprensa,

mas isso vai ter um impacto sobre alguma coisa. Um negócio entre duas empresas

pode fazer com que uma nova tecnologia seja descartada, uma tecnologia na qual você

achava que deveria ter apostado. Existe um conjunto de coisas. Um fator importante é

o network que se mantém. A gente está sempre trocando mensagens, se comunicando,

isso gera uma troca interessante de informação, uma atualização de conhecimento. Eu

estou sempre recebendo e-mails, links, de profissionais com os quais eu me relaciono,

e estou sempre mandando notícias, artigos, coisas que vêm a somar. E, por outro lado,

existem algumas atualizações mais técnicas. Eu participo também de congressos,

conferências, tanto de encontros que falam de tecnologia de um ponto de vista mais

geral quanto política, para trabalhar um alinhamento com as políticas estaduais,

federais, de Governo. No meu caso particular, já que gerencio um projeto da

Microsoft, também participo de eventos da empresa, inclusive dos eventos técnicos

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que ela realiza mesmo em São Paulo. Eu tento participar de todos eles para poder

continuar mantendo esse network.”

Em que fonte exatamente você obtém essas informações, além das palestras,

eventos?

“Tem muitas fontes on-line. Além disso tem revistas especializadas. É importante ter

essa visão, sobre a situação do mercado nacional das empresas de TI, é preciso correr

atrás, ver como elas estão se impondo.”

Você está sempre alerta para verificar tendências de mercado, de novas

tecnologias?

“E tendências de empresas também, de linhas de investimentos que grandes empresas

estão fazendo. Isso é importante para deixar a gente com base consistente de

conhecimento sobre o mercado está apontando. Logicamente não é o único fator, você

não pode se orientar só por isso porque a empresa pode estar fazendo uma aposta

errada, mas a gente precisa ficar antenado com o que está acontecendo. Como é que as

empresas como um todo estão vendo o mercado – não uma, mas o grupo.”

E essa tensão, este estado de alerta, em algum momento do ano, ou de

algum projeto em que você está envolvida, chega a ser sufocante?

“Dependendo da época eu certamente não tenho tempo para ler todos os livros que eu

gostaria. Como eu te falei, a gente faz a prospecção do projeto com as empresas, e a

partir da prospecção a gente encaminha a proposta para submissão, ou ao órgão

financiador, ou à própria empresa. Se a gente está numa fase de conclusão de proposta

ou submissão de projeto, às vezes é difícil se manter atualizado e ler tudo. Às vezes (a

informação) se acumula e alguma coisa você descarta. Quando passa aquele período

você volta a ter um tempo maior para ler. De qualquer forma, eu sempre leio antes de

dormir.

Há outro tipo de informação que não tenha ligação direta com o trabalho,

mas que você está sempre freqüentando? Que tenha a ver com cultura,

arte, alguma coisa deste tipo?

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“Eu sou extremamente curiosa, então gosto muito de ler revistas de divulgação

científica, que trazem novidades científicas de pesquisa. Isso supre o meu lado de

curiosidade. Além disso, eu gosto muito de filmes. E eu tento ir, realmente, a cada

duas semanas, para assistir alguma coisa com a minha família. É uma outra fonte de

informação que eu tenho e da qual eu gosto. De outro ponto de vista, eu entrei no

Orkut (plataforma de relacionamento na internet). A princípio eu relutei um pouco,

pensei ‘mais um, eu não agüento mais, já tenho MSN (software de comunicação

instantânea), já tenho Skype (software para telefonia via internet), agora vou entrar no

Orkut?’. Mas aí começou a chegar tanto convite pelo e-mail, e aí você começa a ver

que todo mundo com que você se relaciona está entrando também e acaba indo na

onda. Eu ainda não uso com uma freqüência rígida, ainda estou me habituando a entrar

nas comunidades. Eu ainda não entro no intuito de buscar informação técnica ou

alguma coisa ligada ao trabalho. É mais como uma diversão, para ver o que está

acontecendo. E tem uma curiosidade do ponto de vista da tecnologia, de entender isso

como uma ferramenta de comunicação da rede e das comunidades de relacionamento,

de ver como a Internet está evoluindo. “

Você já disse que fazia bordado. Isso evoluiu, você continua fazendo?

“Eu faço, mas com menos freqüência, por falta de tempo. É algo do qual eu me lembro

com muita freqüência, eu tenho o meu material todo ainda. É algo que eu gosto de

fazer para mim mesma, só como terapia. É algo que eu gostaria de voltar a fazer com

maior regularidade. Sempre foi algo para eu me desconectar por algumas horas do

exterior. Era uma forma de entrar num processo quase meditativo. Foi o mais próximo

que eu consegui chegar da ioga. Mas nunca foi uma coisa séria, de tomar horas,

pensando em levar aquilo para uma escala maior. Começou como uma brincadeira,

sempre ficou uma brincadeira.”

De alguma forma, serviu para você se afastar do trabalho? Isso te ajudava a pensar

sobre o trabalho, a fazer uma crítica sobre o trabalho, sobre o regime em que você está

engolfada?

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“Aquele momento era mais um relax, não era muito um momento de crítica. A minha

busca era mesmo de barrar o trabalho, de desconectar a mente daquele tipo de estresse,

de ansiedade, para gerar um alfa.”

Você conseguia?

“Conseguia. Era engraçado, porque até as pessoas que convivem comigo, quando me

viam bordando, brincavam dizendo que a minha expressão mudava. Porque realmente

eu ligava o piloto automático e fazia bem. Acho que tudo o que você faz que normaliza

a sua expressão, que te desconecta do exterior, é legal, dá uma tranqüilidade, você

volta renovada.”

Você substitui essa atividade por alguma outra?

“Eu acho que eu tenho visto mais filmes, talvez lido um pouco mais.”

E chega no alfa, também?

“Eu tenho um poder de concentração muito grande e isso me ajuda. Apesar de eu estar

escutando as coisas ao meu redor, eu tenho uma capacidade de me concentrar a ponto

de outras pessoas não interferirem na atividade a qual eu estou direcionando minha

atenção. Isso ajuda sim. É um período de recarga do organismo. É como se eu desse

uma chance para a mente se recuperar de outras coisas. Eu me sinto assim: é como se

uma parte do meu corpo estivesse focada naquela atividade, mas é como se todo o

resto estivesse se reconstruindo de alguma forma. Tendo a chance de receber um

benefício, de não estar sendo agredido.”

Isso de alguma forma tem reflexo no seu trabalho? Você se sente mais disposta?

“Eu acho que recarrega as energias, sim.”

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Cecília - Gerente

Em que você é formada e o que você faz atualmente no C.E.S.A.R.?, Como você

chegou nesse lugar?

“Eu sou tecnóloga de processamento de dados. Formada em Belém, porque eu sou

paraense. Fiz especializações lá, em análise de sistemas, e vim para cá por causa do

mestrado. Como eu não consegui bolsa, comecei a procurar lugar para trabalhar. Vim

parar aqui no C.E.S.A.R. por indicação do próprio Sílvio Meira, que foi meu professor

de uma das disciplinas. Eu estou aqui como analista de negócios, que é no que eu

espero me formar nesta disciplina.

Quais são as suas atribuições? Há quanto tempo você trabalha no C.E.S.A. R.?

“Eu entrei aqui em final de abril. Minha atribuição é justificar recursos para projetos,

verificar as necessidades do cliente, e fazer a implantação, basicamente. Verificar os

requisitos, acompanhar os programadores para o resultado ser da forma que o cliente

queria, e no final fazer a implantação no ambiente do cliente.

E ao lado desta atividade você faz o mestrado?

Isso. E além disso eu agora comecei a dar aula também, na Fapesp, uma faculdade

pequena. Vou ver se eu consigo dar aula até o final do ano, pelo menos, até para pegar

experiência, porque eu nunca dei aula. Nem sei como conseguiu que me aceitassem no

mestrado, porque eu não tenho nenhuma experiência acadêmica, embora minha

experiência prática fosse bem grande. Eu trabalhei três anos com desenvolvimento de

softwares.

E como é que está sendo a experiência do ensino?

“Está bacana até agora. Já tinha dado uns cursos de um produto Microsoft, por

exemplo, lá em Belém. Eu gosto, acho legal. Não sei meus alunos, se eles estão

gostando...

Como você faz para separar, quando é possível separar, trabalho no C.E.S.A.R.,

as obrigações do mestrado e da sala de aula?

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“É complicado você separar. Quando eu tinha aula na faculdade – agora eu estou de

férias – eu faltava um dia aqui no C.E.S.A.R., e nos outros dias eu trabalhava 10 horas

por dia, para cumprir a carga horária. Na época de trabalho (do mestrado) era uma

loucura. E eu ainda tinha que cuidar de casa, porque eu moro com uma colega que veio

de Belém também, e aí tinha que fazer comida, lavar roupa...”

Você usa alguma estratégia para delimitar, por exemplo, o tempo do trabalho?

“Não, pelo contrário, eu sou extremamente indisciplinada. Eu acho que eu sou o alvo

da sua pesquisa, depois quero até ver o resultado. Eu não consigo fazer nada com dois

dias de antecedência, é impressionante. Nos trabalhos da faculdade, para entregar

amanhã, eu passo a madrugada produzindo, sai tudo uma beleza. Mas eu não consigo

fazer um dia antes. Não sei até quando vão funcionar esses meus insights noturnos.”

Então a questão de tempo, o que é tempo de trabalho, é muito relativo?

“Sim, e ainda mais porque eu estou sempre correndo atrás do relógio, com relação às

aulas. Eu sempre ficava achando que estava devendo tempo no C.E.S.A.R., então,

sempre que aparecia uma coisa para fazer eu fazia, mas com a consciência pesada.”

Então você ficava com a impressão de que estava devendo tempo? “Por causa do mestrado. Eu passava um dia na semana sem vir para cá. Não sei

como vai ficar agora o segundo semestre. Eu me matriculei em só uma disciplina

com aula, a outra vai ser um trabalho que a gente vai ter que fazer.”

Você é analista de negócios. Eu imagino que você precise, eventualmente, entender em

pouco tempo quais são as demandas do seu cliente, para adaptar o produto que ele está

querendo às expectativas dele. Que instrumentos você utiliza para entender o negócio

dele? É somente o contato direto com ele ou você tem uma estratégia de avaliar

tendências de mercado, tendências de produto, tendências de linguagem?

“Faço uso do auxílio dos colegas e de entrevistas. Basicamente entrevistas mesmo, via

internet, via telefone (quando o cliente não é aqui do Recife), ou até de forma

presencial, como já aconteceu algumas vezes. Mas, é como eu já falei, depende das

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características do projeto. Quando eu entrei ele já estava iniciado, então já tinha

diretrizes definidas. Mas o refinamento é feito basicamente com entrevistas.

Você utiliza muito newsletters, newsgroups?

“Eu entrei em alguns grupos, mas relativos mais ao meu mestrado, nada com relação

aos projetos.”

Quantos, em geral?

“Quatro.”

E a freqüência de verificação deles? É diária?

“É diária, às vezes eu apago logo. Eu vejo o que existe, leio os resumos.”

Você dá uma olhada no resumo, se lhe interessar...

“Se me interessar eu uso.”

E você sente falta das informações atualizadas que você não observar o que foi

enviado para o seu e-mail?

“Não, não percebo, só quando você está esperando aquele material interessante.”

Você prefere fazer seu trabalho aqui ou prefere levá-lo para casa?

“Eu prefiro fazer aqui. Em casa já tem muita coisa para fazer. Tem que me concentrar

e estudar.”

Nestes casos, quando você precisa trabalhar um pouco mais?

“Eu fico aqui. Saio à noite, ou então chego mais cedo. O horário de almoço é bem

reduzido, eu tenho só meia-hora.”

Você, como outros colegas de sua profissão, é uma das pessoas que trabalha

conectada, o tempo todo numa sala de trabalho. E é justamente nessa infra-estrutura de

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conexão que faz você ter acesso às informações que saem do seu grupo de trabalho. No

meio destas informações, que eu imagino que tenha muita coisa, tem muita

informação do Mundo, não? Você presta atenção nisso, é uma coisa que lhe interessa,

você vai atrás, ou não necessariamente, você fica mais focada no trabalho?

“Durante o trabalho realmente não. Não é por frescura nem nada, mas é que a gente

acaba tão envolvido com aquilo, como eu te falei, correndo atrás do tempo, que acaba

não tendo como ver isso. Em casa eu só abro a página do Uol, pelo menos dá para dar

uma lida, mesmo quando eu não leio jornal, pelo Uol eu fico sabendo das coisas.”

E essa mesma infra-estrutura de trabalho, ela permite você pensar sobre o seu trabalho,

analisar a sua presença dentro trabalho? Algumas pessoas falaram que, às vezes essas

coisas todas ao mesmo tempo em que as colocam em contato com o Mundo, as

impedem de ter uma visão do que está rolando no Mundo.

“Eu não acho que impede, pelo contrário. Quando eu estou na universidade eu estou

em contato direto com as pessoas que eu gosto e eu acho que atrapalha um pouco o

rendimento. Eu perco a noção do tempo e fica comentando alguma coisa do meu dia

com meu noivo que mora lá, minha mãe que mora lá, e você poderia estar produzindo

alguma coisa nesse tempo. Não que isso impeça a gente de ter uma visão, mas

atrapalha um pouco a produção do trabalho.

Você faz alguma atividade cultural, alguma coisa ligada à música, ou esportiva?

“Sim. É uma arte marcial, o Nitten, a arte da guerra dos samurais. Comecei a praticar

quando cheguei aqui no Recife. É minha única atividade.

E qual a relação disso com o trabalho? Você vê alguma associação?

“É total. É superinteressante. É um treinamento de guerra, né? Você é treinado como

um soldado. Você não faz nada andando, você corre o tempo todo. E te leva a

extremos. Muitas pessoas da are de informática também pratica. O Nitten te motiva ao

extremo para superar os limites físicos. Você está cansado ali e tem que fazer o

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exercício, eu até estou toda dolorida, toda roxa. Eu sou a única menina, e é até mais

motivante tentar ganhar dos meninos. E tudo é de igual para igual lá. É motivante em

termos de vencer desafios. Vencer seus limites tanto físico – eu te falei do cansaço,

você luta com uma armadura pesada, capacete, luvas, é quente, fede - e psicológico. Eu

sou a única menina, todo mundo querendo fazer melhor. No final do treino ainda tem

que meditar um pouquinho.

Isso de vencer desafio no treino é algo análogo ao ambiente de trabalho?

“Não é só trabalho, é vida como um todo eu já fico levando assim. Chega ao final do

dia e eu estou acabada, acho que não consigo fazer mais nada, e penso “vai lá, você

consegue, ainda tem roupa para lavar, tem prova amanhã e você tem que estudar para a

prova amanhã”. Eu acho interessante você conversar com o pessoal. Por coincidência,

a maioria é da área de Informática.”

Você acha que é coincidência?

“De repente, pode ser, né? Pode ser um reflexo. Muita gente faz escalada, rapel, pára-

quedas. Eu até tenho um colega que quebrou o pé todinho nessa brincadeira com pára-

quedas.”

Parece que esse tipo de atividade lhes coloca diante de uma coisa bem real, bem difícil.

Não somente real por causa da questão do toque. É um real confiável, que você sabe

que está ali. Você tem uma impressão oposta no seu trabalho? A distância que essa

tecnologia te dá, te coloca?

Pelo contrário, eu vejo proximidade. Eu saio com o pessoal da universidade, converso

com outros colegas, até sobre oportunidades, sobre cursos, que eu não falaria se não

tivesse toda esta infra-estrutura. Voltei por causa do bendito Orkut – ou do maldito

Orkut, porque é uma coisa que rouba o nosso tempo - mas por causa dele eu já

encontrei pelo menos 10 colegas que eu não falava há pelo menos cinco anos. A

maioria também está na área. Eu tenho colegas em São Paulo, em Belém. Você vai

aumentando o seu leque de opções, também não fica só preso, bitolado aqui no

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trabalho. De repente preciso viajar para São Paulo e tenho algum contato. Pelo

contrário, não acho que barra não, até melhora.

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Aluízio - Gerente

Você tem idéia de quanto tempo você trabalha durante a semana?

“Pelo menos dez horas por dia. E, dependendo do projeto em que eu estiver, eu posso

trabalhar no fim de semana ou virando noite. Já virei na madrugada do sábado para o

domingo. Pior se eu estiver viajando, porque você trabalha o dia todo com o cliente e,

quando chega ao hotel, ainda vai fazer relatório, vai documentar o que você fez

durante o dia todo.”

E você leva trabalho para casa também?

“Com certeza, quase sempre. É muito comum sair daqui e chegar em casa para checar

o e-mail de novo, ver o que está acontecendo, acertar uma pendência. É muito

comum.”

Você tem uma idéia de quanto, destas dez horas, você passa aqui na

empresa ou em casa?

“Eu diria que oito ou nove aqui, e pelo menos uma hora por dia em casa.”

E qual dos ambientes você prefere?

“Eu prefiro em casa. Inclusive aqui na empresa a gente tem uma política de, às vezes,

dependendo do que a gente está fazendo – escrevendo relatório, por exemplo –, ir para

casa para fugir do barulho. Todo mundo daqui tem uma infra-estrutura em casa. Eu

montei meu escritório, com banda larga, cadeira, mesa, tudo direitinho, para poder

fazer lá tudo o que eu faria aqui. E, como a gente trabalha com segurança, montou uma

infra-estrutura para isso. Então, você trabalha em casa como se estivesse aqui. É

completo. O bom é porque lá é calmo. Você trabalha sozinho, sem ninguém

atrapalhando ou interrompendo no telefone. Mas a estrutura no escritório, com certeza,

é mais sofisticada.”

Você atualiza o seu banco de conhecimento através de fóruns, newsletters?

“Especialmente por segurança, eu assino 12 listas. Tem umas quatro ou cinco que eu

leio com mais freqüência. Estas eu leio o tempo todo mesmo. Se algum cliente ligar

para mim agora com algum problema, com vírus novo, alguma vulnerabilidade, a

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gente já está sabendo. Então, antes de eu ler o meu e-mail, eu checo as listas para saber

o que está acontecendo. Na área da gente, de um dia para outro podem acontecer mil

coisas. Então eu uso listas principalmente de sites especializados. Fóruns nem tanto, eu

não gosto muito.”

E quantas vezes você lê essas listas? Duas vezes por dia?

“Não, não. A cada meia hora, ou uma hora, eu estou lendo as listas. E à medida que vai

chegando e-mail, eu já vou lendo. Se juntar as listas e os e-mails, acho que dá uma

freqüência de meia em meia hora. Se eu ler de manhã e só deixar para ler de novo à

noite, e acontece alguma coisa à tarde, eu já fico sem saber.”

Você consegue analisar em que medida esta checagem é realmente necessária? É

importante de fato ou apenas cria uma sensação psicológica?

“Eu fico neurótico se passar muito tempo sem ler e-mail. Fico com a sensação de que

está acontecendo alguma coisa e eu não estou sabendo. Você fica pensando se alguém

não mandou um e-mail importante, com alguma notícia bombástica, aconteceu algo

novo de ataque com relação ao trabalho. É “neura” mesmo, eu penso que está

acontecendo alguma coisa que eu não estou sabendo. É pura “neura”. Mas ao mesmo

tempo é extremamente necessário estar lendo, porque a gente recebe muita solicitação

e conversa muito via e-mail. O cliente também, quando está viajando, por exemplo. Às

vezes está com um problema e não liga, manda um e-mail. A gente presta todo tipo de

suporte através do e-mail.”

Diga se eu estiver equivocado. Você trabalha conectado a outras pessoas,

fazendo esse tipo de atualização de informação. Eu suponho que

eventualmente você compre pela internet também...

“Eu nunca gostei. Em todo esse tempo, eu só comprei pela internet três vezes, uma na

semana passada. Eu só faço isso por um motivo: quando a coisa que eu estou querendo

não vende aqui. Uma vez eu comprei um livro que só tinha lá fora. Mas eu não gosto.

Como eu trabalho com segurança, eu sei exatamente como as coisas funcionam. Então

eu aprendi a ter um cartão de crédito com limite baixo e comprar só com ele. Eu não

gosto e não estimulo muito.”

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Isso é comum para quem trabalha com segurança?

“Não, não, isso aí é relativo. Tem quem compra tudo no Mercado Livre (site de

compra e venda de artigos pela internet), todo tipo de bugiganga, acessório, álbum,

software, tudo. Eu já sou mais neurótico. Para outros amigos, tanto faz. Eu só comecei

a acessar internet banking depois de uns três anos. Achavam até engraçado, mas eu não

usava de jeito nenhum. Aí depois eu fui perdendo um pouco da “neura”. Quando você

trabalha com segurança, sabe como funciona e como é fácil invadir, então não

consegue relaxar. Você sabe que aquilo ali é vulnerável e vai comprar naquela loja?”

Essa infra-estrutura que permite o seu trabalho também coloca você em

contato com informações de todo o mundo que não têm nada a ver com

segurança...

“Mas eu procuro separar. Procuro evitar porque geralmente você perde o foco e para

voltar dá muito trabalho. Às vezes você começa vendo alguma coisa na internet que

não é relacionada ao trabalho e quando você percebe já perdeu meia hora vendo uma

besteira. Porque é muita informação interessante e uma puxa a outra. Eu procuro evitar

mesmo.”

Você se concentra no trabalho, então?

“Só no trabalho. Procuro até separar as tarefas. Se preciso pesquisar, então eu vou só

para pesquisar. Se eu estou fazendo um relatório agora e começo a pesquisar, eu saio

do foco e dá problema.”

Quais são as formas que você utiliza para se informar sobre política,

economia, entretenimento, ou outro assunto que te interessa?

“TV, jornal. Só uso internet quando é uma coisa que eu sei que não vai ter em outro

meio, quando é uma coisa muito específica, sobre segurança ou informática. Ou então

coisas em que a internet tem uma velocidade maior. No dia em que aconteceu o ataque

do 11 de setembro, pela internet eu ficava sabendo das coisas mais rápido do que pela

televisão. Eu via o passo-a-passo, a explosão, tudo pela internet. Mas geralmente eu

prefiro jornal e televisão.“

E fora essas listas que você assina, existem outras que não tenham a ver

com trabalho? Tenham a ver com diversão, cultura?

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“Eu já entrei em lista de webdesign. Dava um trabalho danado, mas eu encarava como

um hobby, mas isso foi em 1998, 1999. Eu já assinei uma lista de bike, de trilhas. Mas

hoje em dia não. Eu já tenho muitas listas, se eu fosse assinar outras, ia complicar

demais. Se você deixa de ver certas listas acumula muita mensagem, você perde o

gosto, acaba saindo.”

Você tem algum mecanismo para se afastar do trabalho, para evitar estresse?

“Para desligar é complicado. Eu fico pensando que tenho de cobrar dos integrantes da

equipe que coordeno, tenho que ocupá-los, se eu não der as tarefas, eles ficam ociosos.

Então, para desligar mesmo, acho só quando eu não estou perto de um computador

com acesso. Se eu estiver na casa de alguém, no interior, qualquer lugar, se existir

computador perto, com acesso, eu vou lá. Vejo o e-mail em 15 minutos, para ver as

mensagens mais novas. É muito difícil desligar. E e-mail é trabalho. Para mim, não é

algo muito pessoal não. Acho que os meus e-mails pessoais não chegam a 10% ou

15%, o resto é tudo trabalho. Mas eu gosto. É “neura”, eu sei, mas para desligar é

difícil.”

Toda essa infra-estrutura que você tem, todo esse acesso à informação,

ajuda a refletir sobre o trabalho ou não interfere?

“É estranho. Exatamente porque eu trabalho com rede, com segurança... Eu trabalho

com um negócio que há dez anos não existia. Meu trabalho surgiu por uma demanda

criada pelo próprio computador, para resolver um problema do computador. Estou

aqui para resolver um caos criado pelas pessoas e pelas máquinas. É estranho saber que

a gente tem que resolver um caos que a gente mesmo criou.“

E esse seu interesse por bike, nasceu quando, por quê?

“Primeiro porque estou sedentário há muito tempo mesmo. Sei lá, eu acho que a última

vez que eu fiz exercício foi no tempo de colégio, há uns dez anos. Estava engordando,

e tal. E eu sempre quis fazer alguma atividade. Oitenta por cento das pessoas da

empresa fazem pára-quedismo, virou uma coqueluche aqui, coisa de um ano para cá.

Minha chefe já tinha feito um ou dois saltos. Todo mundo procurou alguma coisa para

fazer. Rapel, pára-quedismo, alguma coisa. Todo mundo tinha essa necessidade, de se

agarrar a algum esporte. Aí começou essa mania de pára-quedismo. Tem gente aqui

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que tem uns 12 saltos. Só eu e outro aqui não saltam. É porque não dá para mim

mesmo, é um brinquedinho muito caro. O cara deixa de fazer outras coisas para pagar

o salto, porque é uma coisa muito apaixonante. Eu sou meio medroso e prefiro uma

coisa mais no chão. E eu escolhi bike porque eu gosto. Eu conheço a galera que faz, eu

vejo as fotos das trilhas do pessoal. Inclusive eu nem comecei, eu estou querendo

começar. Ainda estou esperando bicicleta, sei que não tenho condições ainda de fazer

trilha. Mas foi pela vontade de ter um esporte, uma paixão, alguma coisa pessoal.”

Você tem algum contato com cultura, com música?

“Eu já tive muita vontade de entrar no maracatu. Mas eu não sei se tenho pique para

ficar no carnaval, batendo não sei quanto tempo. Eu não sei tocar nenhum instrumento

e pensei que percussão teoricamente seria mais fácil. Você precisa de um pouco mais

de ritmo, mas você consegue. Mas também não é muito fácil, não. Isso está vinculado

à preparação física mesmo. Ficou na vontade.”

O interesse pela bicicleta é uma coisa só de momento? O maracatu ainda

está na vontade?

“Está na vontade. Porque também tem que ter dedicação. A bike eu vou quando quiser,

em qualquer sábado. Mas o maracatu, a bronca é que tem que ir aos ensaios, que são

no meio da semana e estou na faculdade, não posso. É mais complicado por causa

disso. Eu não encaro o maracatu mais por causa dos horários. E tem também fim de

semana que eu não posso porque estou viajando a trabalho. Para deixar de ir, não vale

a pena. Com a bike eu acho que vou ter muito mais liberdade. Quando eu não puder ir,

não vou. O maracatu tem que ter uma certa regularidade. Mas eu não estou nem

afirmando, eu estou imaginando já. Ainda nem procurei saber os horários, se tem no

fim de semana.”

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Mauro - Gerente

Qual sua profissão, o que você faz está aqui no C.E.S.A.R.?

“Faz três anos que eu estou aqui no C.E.S.A.R.. Hoje eu trabalho na numa empresa

incubada. Eu sou gerente de produto da empresa. Eu já trabalhei como engenheiro de

software, fazendo criação. Hoje eu trabalho na área um pouco mais comercial, mais no

contato com os clientes.

Mas você já trabalhou no planejamento de sistemas?

“Até bem pouco tempo. Eu trabalhei dois anos e pouco como engenheiro de software e

como gerente de operação, que fica responsável pelo controle de todos os artefatos que

são gerados pelo projeto. Eu trabalhei na Petrobras e no projeto da Fapesp. Depois eu

saí e vim para cá, para esta nova atividade. “

Essa atividade tem uma conotação mais comercial mesmo?

“Nem tanto. A gente faz os dois lados do trabalho. A gente faz o controle na área de

gerência de projeto, mas também um pouco de contato comercial, de saber como anda

o produto, o que o cliente está achando.”

Como é que você faz para dividir o tempo de trabalho e o tempo de lazer?

“Tem um complicador, que é o fato de que a gente precisa estar sempre aprendendo. É

impressionante como a gente se preocupa muito em estudar, em estar sempre

atualizado. Mas eu também procuro sempre sair com os amigos. Eu sou músico e

procuro tocar sempre que eu posso.”

Têm importância estas formas de relaxamento para o seu trabalho?

“Demais, porque o trabalho com tecnologia é uma coisa muito solitária. Trabalhar com

a máquina em si... ela não tem olhar, ela não tem um gesto, não há troca de idéias, não

dá um feed back – que seria uma atitude humana. Então às vezes você fica muito só. A

tecnologia traz um pouco de solidão para a gente. Quando a gente brinca com os

amigos, a gente consegue suportar um pouco mais. “

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Vocês são profissionais que trabalham conectados. Praticamente todo o tempo

em que você está trabalhando você está conectado, ou em MSN, ICQ, ou

newsletters. E o pressuposto de se estar conectado é de que você não está só.

“Exatamente, é um paradoxo. Porque ao mesmo tempo em que a pessoa está conectada

com o mundo inteiro, também está sozinha. Eu digo que a tecnologia e o avanço da

Internet trouxeram essa coisa estranha. Você é capaz de ficar em casa, sentado no seu

quarto, passar um dia e não estar só. E o que é estar só? Eu gosto muito de estar num

lugar com as pessoas, conversando, de observar a expressão, o olhar, de tocar. E tem

gente que não, que gosta de ficar no seu cantinho, no computador. No começo eu tive

até uma resistência a essa coisa de MSN, mas eu já estou me acostumando. Eu acho

que isso é estar só, por mais pessoas com quem você possa falar.”

Essa solidão é cercada por uma infra-estrutura que permite você

trabalhar. Isso permite que você tenha acesso a um monte de

informações do mundo todo. Isso fez com que você refletisse sobre o seu

trabalho?

“Muito.“

Isso já mudou a sua visão de trabalho?

“Já e eu decidi isso há um tempo atrás – hoje esse cargo que eu estou já tem um

planejamento de dois anos. Já foi um limite, porque eu já não agüentava mais aquela

coisa de diariamente desenvolver, passar o dia fazendo aquilo. Então eu fiz um curso.

Eu sou formado em Ciências da Computação e sou pós-graduado em planejamento e

gestão de empresas. Eu quis partir para uma área mais humana, em que eu pudesse

trabalhar mais com as pessoas. Eu converso muito com os amigos sobre essa coisa de

estar conectado ao mundo e ao mesmo tempo estar só. É meio estranho isso. A gente

convive com uma pressão muito grande diariamente. O jornalista, com 40 anos, vai ter

uma bagagem que qualquer empresa da área vai querer. Eu não sei, se eu passar dois

anos fora da minha área se alguém vai me querer. Se quando eu estiver com 40 anos,

alguma empresa vai me querer.”

Essa sua reflexão sobre o trabalho acontece por causa do desconforto de

demanda, de pressão, ou é por causa das informações e das pessoas a

que você tem acesso?

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“De certa forma nós somos privilegiados. Trabalhamos aqui no C.E.S.A.R., estamos

interligados à universidade, temos muito incentivo ao estudo e temos um vasto acesso

à informação. Essa avaliação sobre o trabalho, eu acho que tem mais a ver com meu

perfil. Eu conheço pessoas que vêm, sentam perto de mim, para elas não tem

problema, mas são minoria. O grande desafio para as empresas é desenvolver um

trabalho de gestão de pessoas em cima da área tecnologia. Porque as pessoas estão lá

quietinhas e você acha que elas estão felizes da vida. E se entrar no mundo delas, vai

ver que precisa motivá-las.”

Profissionalmente, você está feliz, se sente realizado?

“Estou.”

Apesar desta necessidade de atualização o tempo todo?

“ Tem a parte ruim, profissional, mas tem a parte boa. Essa ansiedade, quando você a

leva para a sua vida pessoal, lhe faz estar muito mais ligado no mundo. Quando você

trabalha na área tecnologia, a tendência é chegar em casa, querer ler mais um pouco. É

como se fosse um vício, mas é um vício gostoso. Um vício do aprender sempre. Isso é

uma coisa boa. Aprender não apenas sobre a máquina, sobre tudo. Você começa a ter

uma necessidade de estar sempre estudando, lendo. Quando você trabalha numa coisa

mais técnica, sempre tem vontade de chegar em casa e ler algo diferente. Isso lhe torna

uma pessoa mais aberta para o mundo, com uma visão mais ampla. A área de

negócios, principalmente, associada com tecnologia, traz uma visão muito boa. A

gente percebe que o desenvolvimento de software é uma rede de trabalho e o que podia

ser melhor. Eu procuro levar isso para o dia-a-dia.

Em uma semana normal, você trabalha quanto tempo, levando em

consideração o trabalho na empresa, planejamento fora, reunião,

trabalhos em casa?

“Às vezes eu preciso mesmo levar trabalho para casa. Quanto ao tempo, eu não sei se

eu posso precisar, porque tem semanas que são mais puxadas. Aqui, muita gente não

tem horário. Mas tem gente que chega às oito, almoça às 12h, sai às seis da noite. Aqui

na empresa a gente tem horário livre. Eu posso chegar, trabalhar duas horas pela

manhã, seis horas à tarde ou posso chegar mais cedo e sair mais cedo. É uma liberdade

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que a gente tem na área de tecnologia que é muito boa. Respondendo à sua pergunta

com relação à semana, eu diria que varia muito. Pode ter semana em que eu trabalhe

12 horas por dia, porque tinha relatório para entregar. Mas já teve semana que deu para

segurar um pouquinho, eu trabalhava só seis horas, às vezes chegava um pouco mais

tarde. O sistema pelo qual a empresa funciona também ajuda muito.“

É comum você levar trabalho para casa?

“Quando tem alguma coisa para fazer aqui normalmente eu fico até mais tarde, saio às

oito, nove horas da noite. Não tem nem tempo, se você leva alguma coisa para casa, só

vai dormir e voltar no outro dia. Mas se houver uma necessidade, a gente leva.”

Você prefere trabalhar no ambiente da empresa?

“De preferência aqui. Por causa da estrutura, né? A estrutura que a gente tem por trás é

melhor aqui. Às vezes você precisa de alguma coisa, quer acessar um site, falar com

alguém da empresa, é melhor ficar.“

Você participa de fóruns de discussão, newsletters? Como você faz para atualizar

seus conhecimentos?

“Depende muito. Eu hoje estou muito mais focado em ler sobre negócios mesmo.

Então, eu leio revistas, uso sites específicos, para estar atualizado sobre o que está

acontecendo no mundo em geral, mas principalmente sobre empresas, essa coisa toda

envolvendo mercado. Cada um na sua área. O pessoal de desenvolvimento de software

vai estar sempre ocupado em usar um plug-in novo, alguma coisa nova de Java

(linguagem de programação), de protocolo, que possa aproveitar.”

Há quanto tempo você é músico?

“Eu comecei em 1995, já vai fazer 10 anos. Comecei na banda Pagunça. Eu era

menino mesmo, com uns 20 anos, já fazia faculdade. Tocando em alguns eventos,

algumas festas. Foi uma coisa muito boa, hoje somos muito amigos, ainda tocamos

juntos de vez em quando, mas não de maneira profissional. A gente vai em barzinho,

faz o da gente, sempre brincando, se divertindo.”

Você toca o que?

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“ Percussão.“

Isso tem alguma relação com o trabalho?

“Meus amigos morrem de inveja. Dizem “como é que pode? Você tem um hobby e

ainda ganha dinheiro com isso?” Eu me divirto. É fantástico. Tem gente aqui com

outras bandas:. É maravilhoso, é uma forma de desopilar. Tocar é um hobby

maravilhoso.”

Ajuda a desligar do trabalho?

“Demais. A idéia, não só na área de tecnologia, mas em toda área, é que você tenha

uma forma de relaxamento fora do seu trabalho. Eu sou um cara esportista, por

exemplo. São muito comuns os grupos d corrida de aventura e de mountain bike nas

empresas de software. A corrida de aventura inclui correr, nadar, fazer escalada, bike,

geralmente. Como a faixa etária do pessoal é jovem, a gente procura se encontrar fora

do trabalho para relaxar mesmo. E isso ajuda você a dar uma quebrada e voltar

renovado.”

Todos esses elementos, a música, o esporte, ajudam você a separar o que

é trabalho do resto da sua vida particular?

“Ajuda a ter uma visão melhor as coisas. Hoje eu sou um cara muito mais preocupado

em ser feliz do que em me matar de trabalhar. Eu acho o trabalho importante, acho que

a gente precisa, a sociedade exige isso. Não adianta você abandonar tudo e resolver

viver numa praia – não dá. Se você quer ter uma família, quer construir algo, precisa

trabalhar. Mas a minha visão hoje é mais de que é melhor ser uma pessoa boa para as

outras pessoas do que me fechar no meu trabalho e deixar o tempo passar.”

Você já se chegou a se concentrar totalmente no trabalho?

“Eu já vivi épocas de pensar muito no trabalho. Logo no comecinho.”

O que foi que mudou?

“A questão de fazer música me ajudou muito. Eu nunca imaginei que ia fazer o

sucesso que a gente fez na época. E você vê que as coisas passam muito rápido na vida

e aí eu imaginei que não podia viver só daquilo.

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Quantos anos você tinha na época em que começou com a banda?

Eu tinha faculdade e tocava. Eu era louco pela minha banda mas eu deixei de viver

muita coisa. Porque eu trabalhava nela. Não era só tocar. A gente montou uma

empresa, era uma coisa muito séria. Eu dizia que ali eu perdi algumas coisas. Hoje em

dia eu não me arrependo de nada, mas há uma grande diferença de rumo. Hoje eu estou

preocupado em fazer um bom trabalho na empresa mas também eu estou preocupado

em sair para almoçar com os amigos, marcar finais de semana para a gente se

encontrar.”

Você percebe que isso acontece com seus amigos que trabalham com TI

também? É comum essa mudança de atitude com relação ao trabalho?

“Não sei se é comum. Eu acho que posso dizer que eu tive uma experiência ímpar.

Tem pessoas que têm outras esferas de vida. Mas eu tenho muitos amigos aqui dentro

que querem mudar, querem viajar, sair um pouco da área. Tem uns que querem ficar

aqui até os 35 anos, depois querem ir pro seu cantinho montar alguma coisa fora da

área. A pergunta-chave é essa: você pretende trabalhar com TI até quando?”

Você pretende ficar até quando?

“Eu? Já quero entrar em outra coisa, já estou até trabalhando para isso. É uma área no

começo muito boa, desenvolver trabalhar com uma linguagem, é uma fase boa que

você passa. Geralmente tem uma fase mais nobre, você sai da faculdade programando,

mas depois, você não quer ficar eternamente assim.”

E essa renovação de que você fala?

“Sim, aí é que está. O novo tem muita coisa boa, mas tem coisa ruim.

Profissionalmente, comparando um homem de quarenta anos e um menino de vinte

anos que trabalham com Java (linguagem de programação), o garoto leva vantagem

porque não está cansado.

Você gosta de seu trabalho?

“Eu gosto do conhecimento que eu tenho, acho que é importante me manter atualizado.

Mas eu quero uma coisa mais...”

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Mais tranqüila?

“Não, mais... Como eu diria? Quando eu vi para a área de negócios eu queria tratar

mais com gente, diariamente. Deixar um pouco de tratar com a máquina. Eu queria

negociar, conversar, trocar uma idéia. Às vezes as pessoas estão lá chateadas mas

chegam, fazem o trabalho delas e depois vão para casa. Mesmo que não suportem

aquilo. Eu tenho essa visão de muita gente que eu conheço, que falam sobre isso.”

Mas quanto tempo você acha que vai ficar na área?

“Eu gosto da área que eu estou hoje, uma área em que eu estou construindo uma coisa

nova para mim. Mas em desenvolvimento, na área técnica mesmo, não quero mais

ficar. Há três anos eu tinha 29 anos e eu já estava tentando partir para uma coisa nova.

Quando eu coloquei na cabeça no ano passado que ia fazer especialização em uma área

na qual eu sempre tive interesse, comecei a batalhar para ter a oportunidade para

trabalhar com outras áreas e consegui. Se eu tivesse que voltar para a área de

desenvolvimento, por necessidade, eu voltaria. Mas não é o que eu quero para mim.

Daqui para frente eu pretendo continuar tentando trabalhar mais com as pessoas, não

com máquinas.

Você é feliz?

“Sou feliz, mas há controvérsias. Esse trabalho te deixa isolado no mundo. O mercado

no qual a gente trabalha é muito amplo, mas joga sobre a gente uma cobrança muito

grande. O cara manda eu fazer uma coisa, tenho que sair correndo para casa, para

estudar. Chega uma hora que você começa a questionar. O que um profissional quer na

vida é trabalhar naquilo em que ele se formou, ser muito bom naquilo e ter experiência

e se dar bem no mercado. A área da gente é muito solta. Você pode se dar muito bem e

daqui a dois anos aparecer uma nova linha de programação, uma nova tecnologia que

praticamente anula o investimento dos anos passados. Nada é jogado fora. Eu conheço

gente que era mestre em Cobol, esse pessoal hoje está desesperado, perderam o bonde

com trinta anos. E aí? Por isso que as pessoas correm hoje. Um cara de TI consegue

sair daqui para o Rio para ganhar hoje seis mil reais. Tem um amigo meu que está nos

Estados Unidos, trabalhando na Microsoft. Tudo bem, não vai ficar lá o resto da vida,

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vai para ganhar dinheiro. A gente sofre, mas também goza. É necessário ter uma

estratégia de andar e ganhar dinheiro. O meu tempo com desenvolvimento já passou.

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André – Gerente

Qual sua profissão e como você começou a trabalhar nessa empresa em que

atua hoje? “Eu sou formado em Ciência da Computação, na minha época Informática.

Comecei minha vida profissional através de uma empresa chamada Dek Sistemas,

onde estagiei na época. Antes disso eu tinha feito um estágio no próprio núcleo da

Universidade Federal de Pernambuco. Na Dek Sistemas eu entrei como

programador, fui analista e depois fui convidado para o Bandepe, para ser o

analista responsável pela parte de previdência privada. Logo em seguida fui

chamado para ser o gerente de Sistemas do Bandepe. Fiquei lá 11 anos como

gerente. Depois eu saí para o Diario de Pernambuco. Fui gerente de Informática lá

durante pouco mais de um ano. Depois do Diario de Pernambuco, eu fui para uma

empresa chamada Politec, que na época prestava serviços para o Governo do

Estado. Passei a coordenar o Projeto Nordeste, da Secretaria de Educação. Passei

quase cinco anos. Depois a Politec teve um problema com o Governo e saiu – o

serviço passou a ser feito pela empresa na qual eu atuo hoje. Aí eu fui contratado

por essa empresa para poder continuar prestando serviços ao Governo. Assumi a

gerência de Projetos da empresa. Hoje eu acumulo as gerências de Projetos e

Tecnologia.

O que você exatamente você faz?

“Na área de projetos, como o nome já diz, eu desenvolvo projetos. Obviamente,

projetos novos. Um exemplo. Projetos de telemarketing político, projetos para

órgão estatal ou privado. Trabalho para divulgar o nome na praça, montar call

center dentro das empresas. Desenvolvo projetos completos, tanto na parte de

recursos humanos, como a parte de infra-estrutura. Na área de Tecnologia, a

gente cuida da infra-estrutura interna da nossa empresa e de nossos clientes, com

os quais temos contratos de infra-estrutura de tecnologia. A gente faz toda a

gestão. Tanto mantém a Provider, enquanto sede, em pleno funcionamento,

porque nós trabalhamos com modelos de 24 horas por sete dias, sem interrupção.

Então a gente tem que manter todas essas estruturas, tanto de telefonia, quanto

de computação.”

Vocês têm call center também?

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“Internamente aqui nós temos um grande call center. Aqui do lado tem um galpão

enorme com aproximadamente 140 composições. Cheguei aqui através do

Governo e a empresa resolveu me absorver nesse aspecto.”

Você tem uma idéia clara de quanto tempo se dedica ao trabalho durante

a semana?

“Eu procuro fazer meu trabalho dentro do horário comercial. Mas, como trabalho

com projetos, às vezes temos clientes que pedem projetos com uma complexidade

maior e aí você tem que se submeter, senão você perde o trabalho, o cliente. Aí

você às vezes dá uma esticadinha, trabalha no final de semana. Mas no normal eu

procuro exatamente fazer meu horário dentro do contexto comercial, gosto de

marcar minhas reuniões dentro do horário comercial. Só extrapolo quando

realmente há necessidade, quando tem uma coisa muito fora do contexto.

Trabalhamos raramente nos finais de semana, só quando o projeto requer mesmo.

Trabalhamos mesmo é de segunda a sexta, é uma regra da casa. Só se trabalha

fora do expediente e final de semana quando for necessário. Não é um costume

trabalhar no sábado aqui. Eu, como gerente, às vezes venho aqui para ver como

está o pessoal da escala no final de semana. Ou então quando tem um projeto que

requer um tempo mais enxuto, a gente trabalha no final de semana, à noite, de

madrugada. Mas isso não é o normal.”

Hoje em dia, a maior parte das empresas tem uma área dedicada a

projetos desse tipo ou profissionais que são preparados e estão

esperando a definição para entrar em projetos desse tipo. Isso é comum,

vem se modificando muito, esse núcleo de criação nas empresas?

“Normalmente, uma área específica de projetos só tem um sentido quando a

empresa passa a ter um espaço razoável no mercado. Normalmente as empresas

têm seu foco e os projetos, que já são pré-definidos. Quando a empresa cresce

muito e absorve outros nichos de mercado, começam a aparecer projetos

diferenciados. Aí é que é necessário ter uma área de projetos, porque esse pacote,

vamos dizer assim, tem que ser muito bem elaborado, já que você tem nichos de

mercado novos. Tem que ter técnicas de projeto, fazer avaliação de nichos,

avaliação de custos. Dificilmente você encontra empresas pequenas com áreas de

projeto estruturadas, em organogramas, que tem um gerente e pessoal de

projetos. Normalmente você tem uma pessoa que faz projetos, normalmente uma

pessoa de tecnologia, de O&M.”

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Em termos percentuais, quanto tempo de trabalho você dedica no

ambiente da empresa, e quanto você tem que se dedicar em casa?

“Normalmente eu trabalho 40 horas semanas, 8 horas por dia. Às vezes eu chego

um pouco mais tarde, mas aí só tiro uma hora pra almoço. Eu tenho um

relacionamento familiar à moda antiga. Lá em casa tomamos café, almoçamos e

jantamos juntos, sempre. Na empresa, temos 40 horas semanais de trabalho e

extrapolamos pouco – quatro horas na semana, uma hora a mais por dia. A gente

procura fazer tudo dentro do horário. Quando você trabalha muito fora do horário,

é porque tem alguma coisa está errada. Ou você está com sobrecarga de trabalho

ou não está sabendo administrar seu tempo. Então se você está com sobrecarga

de trabalho tem que colocar alguém para lhe ajudar, ou delegar funções. Aqui na

empresa, como eu sou da área de projetos, quando tem alguma tarefa que não

está no dia-a-dia da empresa, normalmente quem assume sou eu. Quem faz todas

as apresentações da empresa, da parte institucional, de folders, sou eu. Aqui a

gente tem assessor de Imprensa, que cuida da parte mais jornalística, mas no

restante quem faz tudo sou eu.”

Você trabalha com projetos, se relaciona com clientes, tem as mais

variadas atividades. Eu imagino que com isso você tenha que, em pouco

tempo, compreender o negócio do cliente para poder formatar um serviço,

um projeto. Imagino que isso seja uma pressão. Como é que você faz?

“Isso é uma aptidão que a pessoa de Informática – minha formação é em análise

de sistemas – tem que ter. Um analista de sistemas o ferramental dele é para

compreender o negócio de um cliente qualquer. Se ele chega aqui com um

problema, eu tenho que me transportar para entender o negócio e fazer com que

a ferramenta que será desenvolvida atenda às prerrogativas dele. Se ele não tiver

essa habilidade, é melhor fazer outra coisa.“

Mesmo hoje tendo um cargo de gerente, você continua sendo esse

analista de sistemas?

“Antigamente você especificava o sistema. Mas hoje em dia, o analista de

sistemas faz o projeto de um negócio. Um exemplo. Fomos convidados pela Viação

Progresso para fazer um trabalho sobre venda de carga, via telemarketing. É uma

coisa que não é do dia-a-dia da gente. Então eu tive que ir lá, levantar,

compreender, conversar com um diretor ou gerente com visão estratégica da

empresa. Porque ele tem que passar essa estratégia, o que ele quer fazer com

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aquilo, os resultados que precisam ser alcançados. Não adianta fazer uma coisa

bonita, bem desenhada, mas que não vai trazer os resultados que o cliente quer.

Se ele quer implantar a venda por telefone é porque ele quer aumentar seu poder

de venda, quer trazer mais recursos para a empresa. Primeiro tem que ver qual é

a estratégia da pessoa, sua posição de mercado, qual é o nível de cliente que ele

quer atingir. Então, você compreendendo isso já é meio caminho andado porque

você já tem o direcionamento da estratégia. Depois você parte para a parte tática,

a parte gerencial, para ver como é que o pessoal faz hoje. Em cima da situação

atual você tem que fazer a parte de análise, para saber se aquilo realmente está

bom para a empresa ou se você precisa melhorar algum processo. Por trás sempre

de um trabalho desses vem a otimização de processos. Depois é que você parte

para o terceiro nível, que é o operacional. Vai ver como é no dia-a-dia, como o

vendedor visita as pessoas, para poder adequar o projeto ao que o cliente

realmente quer. Normalmente, quando é uma coisa muito diferenciada, a gente

propõe um piloto e vai ajustando.”

O tempo que você tem para fazer esse levantamento e o tempo que o

cliente lhe dá são compatíveis?

“Normalmente isso é negociável. Tem cliente que tem pressa, mas o que a gente

tem que enfocar mais é no levantamento. Porque se for um projeto urgente a

trabalha à noite, final de semana. O que não pode eu sentar aqui sem os dados

para fazer o projeto, porque aí vou ter que toda hora ficar interrompendo as

pessoas para levantar os dados. Se você tem os dados bem especificados, senta e

faz o projeto numa boa. O tempo depende da abrangência do projeto, do

conhecimento da empresa daquele negócio. Projetos mais complexos, que

envolvem muitos custos, tem que passar pela área comercial, pela área financeira.

Mas se for um projeto que a gente tenha o custo levantado dentro da empresa,

flui mais rápido.”

Em geral existe pressão do cliente?

“Às vezes não é só a pressão do cliente e sim da concorrência. Se você demora

muito com um projeto, o cliente começa a querer procurar a concorrência. E a

pressão às vezes vem do seu próprio diretor comercial, seu diretor-presidente,

que diz ao cliente que a gente vai entregar o projeto com X tempo. Esse X tempo

às vezes faz você trabalhar na pressão, no estresse, porque o tempo comercial

pode não estar ajustado com o tempo técnico.”

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Em geral está ajustado ou não?

“Em alguns casos sim, em outros não. A gente até compreende qual é a angústia

do vendedor, do diretor comercial ou até do presidente da empresa para entregar

o projeto naquele tempo, porque se demorar muito a concorrência chega perto do

cliente e oferece um projeto parecido. Mas aí é administrável.”

Existem negócios específicos que recorrem a você com mais freqüência,

que você conhece um pouco mais ou que você procura se atualizar mais?

“Existe. Porque a nossa empresa tem duas vertentes. Uma é a parte de call

center, contact center, e outra é a parte de terceirização de mão-de-obra. Nessa

parte de call center, a gente tem pleno conhecimento do negócio, cada um na sua

área. Como a gente é uma empresa que também faz integração de soluções,

temos muitos parceiros que nos fornecem o software para que a gente implante,

dê treinamento e seja responsável pela manutenção.”

Você participa de algum tipo de fórum ou newsletter relativo a seu

trabalho?

“Atualmente, não. A gente está sempre participando de palestras. Somos

associados ao Softex, à Assespro, somos bem relacionados com esses órgãos e

recebemos diariamente comunicação via texto. Participamos de congressos. Então

o nosso fórum de participação está mais voltado para as palestras e órgãos de

classe. Nosso diretor-presidente é diretor também da Assespro e do Softex. “

Você tem alguma atividade cultural, que tenha a ver com diversão?

“Não. Gosto demais de lazer, de me divertir, tenho uma casa em Aldeia, gosto de

estar lá com meus amigos. Mas não participo de nenhum grupo ou associação.

Meu lazer é muito diversificado.”

Você tem alguma atividade própria, que envolva música, cultura?

“Não. Meu lazer é, como eu falei, é altamente abrangente. Eu gosto de uma casa

de campo, de uma praia, de um barzinho com amigos. Toda quinta-feira me reúno

com um grupo de amigos, um tipo de confraria, a gente faz happy hour. Nada que

se estenda até tarde. Gosto de esportes, como futebol, e pratico quando posso.

Faço caminhadas, faço trilha. Topo o que aparecer, mas não tenho um hobby

específico.”

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Inácio - Gerente

Qual sua formação, como chegou a trabalhar nessa empresa em que atua hoje e o

que você faz? “Sou gerente nacional de tecnologia da empresa. Estou há 25 anos na área de

Tecnologia da Informação, sou graduado pela Universidade Federal da Paraíba e já

trabalhei em várias empresas multinacionais, tanto nacionais quanto no Exterior.

Por uma questão de logística, sou pernambucano e acho que chegou a hora de

voltar para casa. Já trabalhei em várias empresas, em todos os segmentos

praticamente e em várias instituições financeiras do País. Estou voltando ao Recife

para abraçar esse desafio, na WPD, para gerir e encontrar um melhor resultado

para a empresa.“

Qual a sua formação?

“Sou graduado bacharel em Ciência da Computação.”

Você passou muito tempo trabalhando diretamente com a máquina, com

programação ou implantação de sistemas?

“Isso foi na velha guarda. Formei-me em 1979 na Paraíba, ingressei na Empresa de

Processamento de Dados Estadual do Piauí e lá nós fazíamos tudo. Iniciei como

programador, logo depois fui analista, mas naquela época não tinha os papéis tão

definidos. A gente fazia tudo. Operador de sistemas, programador, tudo. Já passei por

todos os cargos possíveis, de carreira, dentro da minha área, desde diretor de

Tecnologia até programador.”

Hoje você trabalha mais diretamente com negócios, prospecção de negócios,

relacionamento com clientes?

“Com pessoas e gestão de processos na área de TI. Minha função é implementar

processos, com o apoio da tecnologia, fazendo qualquer tipo de negócio. Usando

ferramentas, usando técnicas de mercado. Tudo no sentido do negócio ser mais ágil.”

Um trabalho mais de gestão?

“Isso.”

Quanto você passou, mais ou menos, trabalhando diretamente com a máquina?

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“Fui programador Cobol durante dois ou três anos, já trabalhei em várias linguagens de

quarta geração. Mas hoje eu não mais programo. A minha função hoje é diferente. É

gerir negócios e pessoas. Sou especialista na área de TI. Dependendo da necessidade

eu meto a mão. Mas a minha missão é ensinar aos meus subordinados – gerentes de

sistemas de negócios, programadores, desenvolvedores – as melhores práticas para que

eles utilizem as melhores ferramentas.”

Como houve essa migração desse trabalho de programação que você tinha para

uma posição mais de gerência?

“É o tempo. São 26 anos. Já fui analista júnior, analista premium, analista sênior, já fui

gerente de CPD. Voltei a ser analista de suporte, fui líder de projeto, coordenador de

projeto. Aí passei a ser especialista de negócios, especialista em métrica. Tomei a

iniciativa de estudar, especializei-me em CTRT e agora o que eu gosto é fazer gestão

para agregar grandes projetos. É uma das atividades que eu faço. São 26 anos

trabalhando na área com todos os desafios que a área de TI apresenta.”

Esse processo todo foi natural?

“Não. Eu tive a felicidade de me ter me formado numa época onde a carência de mão-

de-obra era muito grande. Não tinha realmente ninguém no mercado. Fui da segunda

turma da Universidade Federal da Paraíba. Informática talvez tivesse aqui no Recife,

um curso profissionalizante na Católica, mas na Federal não tinha curso de

Computação ainda. Naquela época se escolhia onde ia trabalhar. Então eu aproveitei e

trabalhei realmente onde eu quis, em várias empresas que naquela época tinham os

melhores salários, os melhores desafios. Eu trabalhei em interiores e capitais do Brasil,

mais o Exterior. Já trabalhei num projeto em Garanhuns, como consultor no Chile, lá

em Santiago, e ultimamente, nos últimos quatro anos, eu estava em São Paulo,

trabalhei no Bradesco e na Caixa Econômica Federal.”

Você teve interesse em migrar de uma área de desenvolvimento para o setor de

gerência?

“Na verdade eu virei gerente depois de 15 anos que estava na área de TI. Uma

experiência gratificante, mas essa turminha que acha que vai se especializar em alguma

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coisa se engana se acredita que é fácil gerir pessoas, isso é muito arriscado. Nossa área

é aparentemente nova, mas como em qualquer área, bons gestores são formados em

grandes experiências na área. Então eu não aconselho ninguém jovem a enfrentar – é

claro que tem raras exceções, tem muita gente jovem com quem eu trabalhei já e se

destacou e se destaca, mas na grande maioria é pura ilusão. Ainda hoje existe uma

idéia de que a área de TI é a área que dá dinheiro, que logo rapidamente vira gerente.

Não é bem assim a coisa. Você passa por um processo de especialização e futuramente

de liderança, um processo muito árduo. Porque é uma área que só quem está nela, que

gosta dela e dá continuidade à vida, tocar a vida da gente, aliado a um projeto mesmo

de vida.”

A maior parte desse pessoal fala que tenta, com essa intenção, fugir um pouco do

estresse, com medo de ficar obsoleto, em termos de tecnologia.

“Volto a dizer. A área de TI sempre está inovando e sempre está buscando algum

segmento que requer especialização. Por isso hoje não tem mais isso, se é gente jovem

ou experiente. Sempre vai ter gente, sempre vai ter segmentos, sempre vai ter produtos,

sempre vai ter outros desafios. Hoje, as grandes empresas – Microsoft, IBM, as

grandes instituições financeiras – têm seus negócios calcados dependentes totalmente

de Tecnologia da Informação. Então necessidade de pessoal vai ter sempre. Então a

pessoa que entra numa área dessa com esse medo, eu aconselho a desistir. Na área

específica de TI, a pessoa fica talhada para entender muito bem. Eu até diria mais:

espero que meu filho não entre nessa área sem antes fazer um estudo vocacional. Não é

como antigamente, só porque o pai é médico, vai ser médico também. Em TI é muito

diferente, as práticas, as informações não são muito fáceis e só quem se dá bem é quem

realmente abraça a profissão com muita firmeza. E tem que estudar muito. A cada dia a

gente sabe menos e a busca de um processo contínuo de aprendizagem é diária.”

Quanto tempo você trabalha normalmente na semana, é maior ou menor que

antes?

“Cada vez eu mais trabalho mais. Mais horas. Principalmente como gerente de uma

área que tem pessoas, profissionais colocados em todo o Brasil, e eu sou responsável

por organizar e gerir essas pessoas de modo que tudo funcione perfeitamente. Então o

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tempo realmente é um fator muito grande de sucesso para um profissional de TI que

tem essa visão que eu tenho. Principalmente em empresas de médio porte como essa

em que eu trabalho, onde muitas vezes a gente faz muito de tudo. Tenho hora de

chegar. Eu sou o primeiro a chegar na empresa, mas não tenho hora pra sair.

Eventualmente, sou chamado sábados, domingos e feriados. Sempre que é necessário é

preciso dar assistência ao pessoal aqui. Hoje tem a tendência de atender cliente,

atender a empresa de casa, mas isso demanda muito tempo e tira muito a sua

privacidade, o seu lazer.”

Como é que você faz para aproveitar seu pouco tempo?

“Sempre que posso, às vezes dou uma fugida, relaxo, vou à praia, faço uma viagem

para recarregar as baterias. Mas interfere muito no convívio familiar. Se você tiver

uma esposa que não entende, que não seja da área, realmente não é fácil.”

Em termos de posicionamento dentro da empresa, de relacionamento, que tipo de

atitudes são mais indicadas, que você tomaria de novo para ocupar o cargo que

você ocupa hoje?

“Primeiro tem que ter muita segurança técnica, muita experiência em todos os

possíveis e imagináveis pontos críticos do avanço tecnológico. E não ter medo de errar.

Segundo tem que ser um cara muito bom em gestão de pessoas. A gente trabalha com

pessoas. Pessoas são muito complicadas, pessoas não são máquinas, têm sentimentos e

seus problemas pessoais. Para fazer as pessoas trabalharem usando tecnologia, você

tem que ter muita sensibilidade. Tem muitas vezes que entender alguns aspectos

culturais, até regionais, não como incompetência, não como falta de estímulo, mas

como fatores culturais. Tem que ter muita sensibilidade e muita esperteza para que

mostre e se faça valer como gestor, ensinando muitas vezes e fazendo bem feito aquilo

que você pede para ele fazer. Muitas vezes a gente tem que mostrar – não só dizer

como faz, mas fazer e mostrar como faz.”

Como você faz para se atualizar tecnicamente? Que tipo de conhecimento você

lança mão?

“Eu estudei, sou especialista na área de estruturação de sistemas. Tudo que é novo, que

é lançado no mercado, eu procuro saber. Eu estudo muito, capto na internet. Participei

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recentemente em São Paulo de um treinamento em gestão de processos. A gente está

sempre se atualizando nas melhores práticas. Participo de fóruns de discussão com

colegas de São Paulo e de todo o Brasil, em termos de estruturação de sistemas, as

melhores práticas na área de gestão de processos. Enfim, estou sempre buscando me

aprofundar.”

Até para manter mesmo a referência...

“Exatamente. Ter um diferencial. Hoje em dia na área de TI, a única coisa que garante

ao profissional a possibilidade de buscar relocação no mercado é ter um diferencial. O

que eu quero é fazer perfeito aquilo que eu sei fazer, utilizando todas as técnicas

disponíveis no mercado.”

Você é expert na gestão de pessoas. Você diria que essa atividade tem um

rebatimento na sua vida privada, na sua vida em família? Uma coisa interfere na

outra? Existe troca entre esses dois pólos?

“Interfere, porque, por exemplo, eu tenho muito pouco tempo para a família. Eu

gostaria de ter mais tempo, mas a minha profissão é atrelada a um projeto de vida.

Então preciso me dedicar mais ao trabalho do que à própria família, porque existe um

sentimento próprio de dar para a minha família as condições mínimas necessárias que

eu não tive quando eu era estudante, estava na universidade ou era estudante

secundarista. Então a minha missão é trabalhar honestamente para que a minha família

tenha as condições que eu não tive quando cheguei pobre, do Interior, passei pela Casa

do Estudante e pela república na universidade.”

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Lúcio - Gerente

Queria que você começasse falando um pouco do teu trabalho e da sua formação.

“Sou engenheiro, professor do Centro de Informática e sou um dos diretores do Cesar.

Sou graduado em Engenharia, com mestrado em Computação, fiz meu doutorado

também em Computação. Trabalho com computação há pelo menos 15 anos. “

Como foi sua chegada ao C.E.S.A.R.?

“O C.E.S.A.R. foi criado no Centro de Informática e eu era professor do Centro. Eu

comecei a coordenar um projeto que exigia um tipo de conhecimento que a gente tinha

lá, aí me aproximei do C.E.S.A.R.. Foi natural.”

Nesse período de 15 anos em que você está trabalhando com Informática, como

você faz para separar o que é trabalho do que não é trabalho?

“A separação é fácil porque eu tenho família, tenho três filhos. Entender o que é ou

não trabalho não representa grande dificuldade. A dificuldade maior que eu tenho

enfrentado é que o tempo que sobra, que não é trabalho, é muito pequeno. Até porque

em função de estar trabalhando com Informática tem certas ferramentas que

supostamente deveriam ajudar a gente a ter mais tempo livre, como e-mails, acabam

funcionando ao contrário. Lembro quando eu fazia mestrado e via um artigo que eu

queria ler, precisava me deslocar fisicamente até a biblioteca, ficar na fila, esperar.

Agora faço uma busca rápida, já tenho o artigo em mãos. Nesses 15 anos, em 14 desses

15 anos eu me recusei a ler e-mail em casa para poder descomplicar. Se eu estou em

casa, estou em casa. Mas eu tenho uma profissão onde é muito difícil fazer essa

separação. Mais recentemente eu abri mão dessa idéia, então de vez em quando eu leio

meus e-mails em casa, quando é uma coisa mais urgente. Mas, de uma maneira geral,

eu evito ler e-mail em casa.”

Essa diferença que você percebe hoje sempre foi clara?

“Durante o doutorado eu trabalhava muito em casa. Para mim ela é clara na medida em

que você separa os espaços físicos. Na hora em que você tem um computador em casa,

conectado em banda larga, aí a diferença de estar trabalhando em casa é complexa. Por

isso que eu tento, pelo menos, fazer uma separação física. Quando estou em casa acho

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que é mais tranqüilo do que na universidade, mas se estou no horário comercial,

considero que estou trabalhando. Mas à noite, fim de semana, eu radicalizo e paro de

trabalhar. “

A família, nesse sentido é importante?

“Absolutamente fundamental. Eu digo brincando para meus colegas que estão

trabalhando muito que eles precisam casar, ter filhos. Porque a demanda é tal que se eu

não tivesse filho nem fosse casado eu trabalharia até meia-noite. Porque trabalho não

falta.”

Você, como várias pessoas que trabalham com TI, tem à sua disposição toda uma

infra-estrutura tecnológica de conexão com o mundo. Isso em relação a notícias, a

informações necessárias para você desenvolver ferramentas, preparar aulas etc.

Você tem noção de como essa infra-estrutura ao seu redor lhe coloca frente ao

real?

“Eu acho que essa definição do real e do virtual não é pertinente. Eu preparo minhas

aulas e elas estão disponíveis na Web. Então, não faz sentido. Na minha área, de

ensino de Tecnologia de Informação, você tem que usar a Web nas minhas aulas o

tempo todo. São exemplos reais, programas. Mas se você pegar o real como uma coisa

concreta, física, aí deixa de ser real. Eu estou sempre estimulando meus alunos a fazer

coisas na Web.“

Seu ambiente de trabalho oferece confiabilidade nas informações? Algumas

pessoas que entrevistei têm um cuidado especial com as informações que lida no

trabalho, porque é difícil ter certeza o tempo todo lidando com questões virtuais.

Isso acontece contigo?

“Acontece. Mas eu não vejo nenhuma diferença da máquina para o que não seja a

máquina. Até pela minha formação, que é digital, você aprende a questionar as coisas.

Eu consigo questionar um artigo impresso do mesmo jeito que um artigo da Web. Não

faz a menor diferença. A gente tem uma avalanche de informações mais disponíveis na

Web, mas a confiabilidade das informações é sempre uma coisa discutível em qualquer

meio.”

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Que recursos como costuma utilizar numa semana normal de trabalho para

atualizar informações, ou pegar informações para resolver um problema

pontual?

“Eu uso pouco isso. Porque não uso newsgroups, não sou filiado a nenhum. Já fui

filiado a vários na época em que eu tinha mais tempo. Hoje eu uso dois filtros de e-

mail para evitar problemas, mesmo assim ainda recebo alguns newsgroups. Chego a

receber no mínimo 50 mensagens por dia de coisas que eu tenho que resolver. Esse é

um dos problemas sérios do e-mail, uma ferramenta feita para ajudar e que ao mesmo

tempo complica sua vida.”

Existe alguma regra que você estabelece?

“Esse é um problema muito sério. Se a pessoa for muito sistemática, determina que lê

os e-mails durante X horas por dia. Mas não é o meu caso, eu não consigo ser

sistemático. O que eu tenho feito atualmente é que, se estou muito ocupado com

alguma coisa, eu não leio meus e-mails. Se for alguma coisa importante, a pessoa vai

me telefonar. Mas isso é uma coisa quase que como desobediência civil. A pessoa que

manda e-mail espera que você responda ou se manifeste de alguma forma. Acontece

que é humanamente impossível. Se você é uma pessoa como eu que recebe 70 e-mails

de coisas que eu tenho que responder, por dia, você não faz mais nada na vida. Não

faço mais parte de newsgroups, não leio newsletters, não quero nem saber. Só a

mensagem que é enviada especialmente para mim é que me interessa.”

Além dessa estratégia, tem alguma outra?

“Quando vou ler meus e-mails não leio linearmente. Eu olho geral, vejo quais são as

coisas que são válidas e urgentes e quais são as coisas mais urgentes. Tem coisa que

passa dois anos na minha mailbox e depois é que eu vou responder. Agora, existe

aquela sensação de que você está devendo alguma coisa. Quanto às ferramentas eu uso

MSN Messenger, uso Skype, uso o Outlook Express para montar minha agenda.

Minha agenda é toda no computador. Se você me perguntar qual é o meu dia livre, se

eu não tiver meu computador por perto eu não consigo dizer.”

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Numa semana típica de trabalho, incluindo as aulas, você tem uma noção de

quanto tempo você trabalha?

“Eu trabalho normalmente 10 horas por dia. Não dá mais do que isso. Na realidade eu

diria que até já trabalhei mais. Talvez hoje eu trabalhe umas 9 horas, por aí. Até em

função dos filhos – você tem que levar para a aula de inglês e outros lugares – eu

termino trabalhando isso. Atualmente tenho tido muitos problemas de coluna, por

passar muito tempo sentado em função do trabalho e da falta de exercício, vida

sedentária. Estou com duas hérnias de disco e uma degeneração na cervical, que dá dor

nos dedos. Aí eu tive que mudar a minha vida. De um mês para cá, tenho levado meu

laptop mas deixo na universidade, não levo para casa. É uma coisa que eu não fazia.

Tenho gastado tempo com acupuntura e também comecei a freqüentar academia.“

Isso faz você repensar a tua carreira?

“Com certeza. Eu nunca mais voltaria a ter o mesmo ritmo de trabalho de antes. Sem

chance.”

E a quantidade de horas que você trabalha hoje, ela tende a cair mais ainda?

“Certamente tenderá para isso. O que eu acho que precisa fazer, que não é fácil, é

melhorar a qualidade das horas de trabalho. Só que nunca dá para zerar a lista de

afazeres. É impressionante. Eu estou aplicando minha dose de irresponsabilidade. Se

eu não leio meus e-mails durante o dia, é a minha dose de irresponsabilidade. Vai ser

difícil eu ser mais eficiente do que sou. Outra coisa: eu não tenho secretária eletrônica

no meu celular da universidade, porque senão eu vou ter outro montão de coisas para

fazer.”

A partir desses dois pontos – família, filhos e a questão da saúde – você faz

alguma reflexão sobre o que é teu trabalho hoje e o que ele já foi?

“Família é fundamental para o equilíbrio emocional. Eu casei muito cedo e antes de

casar eu trabalhava muito. O que eu faço de reflexão é a seguinte: no fim de semana, se

meus filhos dizem “Vamos passear?’, eu vou. Posso ter até planejado corrigir umas

provas, fazer um projeto ou seja lá o que for. Se minha mulher diz “Vamos viajar”, eu

digo vamos. Para mim é muito concreto esse negócio de casar e ter uma família.

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Renova muito. Você pára, faz outras coisas e volta disposto a encarar novos desafios.

Tem cara que trabalha muito no final de semana e chega reclamando que não teve

tempo de fazer nada.“

Você tem uma visão mais centrada do próprio trabalho?

“Certamente. Senão você acaba tendo um esgotamento mental e não sabe mais o que

está fazendo. Acho importante separar.”

Você tem alguma afinidade cultural, tem alguma ligação com alguma linha

estética?

“Eu sou músico. Fui músico profissional, toquei durante muitos anos muitas horas por

dia.”

Você tocava o que?

“Violão. Hoje toco pouco, até porque estou com os dedos doídos por causa desse

problema na cervical. Mas eu fui arranjador, compositor.”

Isso tem algum reflexo no seu trabalho?

“Total. Eu trabalho na universidade com inteligência artificial aplicada a duas áreas:

uma é a própria música, tecnologia musical, eu dou aula disso, oriento alunos e faço

projetos. E a minha sensibilidade artística eu tenho convicção que é fundamental para

começar uma área nova aqui, que é a de jogos para celular. Só que a área de jogos

exige mais veia artística, tem roteiro. Pra mim foi muito natural, que já vinha da

música, trabalhar com essa parte de jogos.“

Essa área de jogos exige experiência com computação?

“É muito próximo. Mas eu sempre fui um cara interdisciplinar. Paralelo ao curso de

engenharia eu fazia curso de música, então eu sempre vivi tocando e mexendo com

tecnologia.”

Existe alguma contribuição sua da tecnologia na música?

“Não. A não ser coisas pontuais, quando vou escrever um arranjo aí eu uso algumas

ferramentas. Essa foi uma reflexão que eu tive quando comecei a fazer mestrado na

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área de computação. Tinha muita gente estudando acústica, música contemporânea,

usando o computador. Eu, quando toco, todo à moda antiga mesmo com o meu

violão.“

Você já chegou a refletir sobre viver processos sistêmicos paralelos, sobre o que é

música e o que é codificação, por exemplo?

“Eu estou o tempo todo pensando sobre música e tecnologia. Em modelagens,

processos de raciocínio. Fiz meu doutorado como um baixista de jazz, que inventa em

tempo real o que vai tocar em função do que os outros estão tocando. O tempo todo eu

estou refletindo sobre como é que funciona a cabeça do músico, o que ele está usando

para tomar decisões, como eu posso modelar isso no computador.”

Essa modelagem de música e tecnologia tem influência em algum outro tipo de

decisão não necessariamente técnica?

“Não sei. Tem um estudo que li há muitos anos, que diz que quando um cara faz

música, faz uma coisa diferente, ele está mais apto a fazer outras coisas, como

tecnologia, porque ele exercita uma parte do cérebro mais matemática e dá uma

renovada. Mas eu não sei até que ponto isso tem fundamento. Eu sei o seguinte: eu era

um excelente aluno de Engenharia. E fazia música. Na época eu estudava em casa e no

conservatório. Nas provas, por exemplo, eu ficava muito mais tranqüilo.”

Você atribui isso à música?

“No meu caso foi a música. Mas eu acredito que a variedade de atividades que você

pode fazer ajuda a manter um foco. Se você faz só tecnologia o tempo todo,

matemática ou computação, ou seja lá o que for, não vai render tão bem.”

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Edson - Gerente

Você hoje tem idéia de quanto tempo dedica ao trabalho, às atividades do

trabalho? E quanto tempo você dedica ao que não é trabalho, ou isso não é uma

coisa clara?

“Eu não tenho uma idéia. Eu posso lhe responder... o tempo que eu dedico no meu dia

útil pra trabalho é certo. Mas se você me pergunta assim sem fazer continha de

números, de tal hora a tal hora, etc., eu acho que eu passo muito mais tempo do meu

dia trabalhando do que fazendo qualquer outra coisa. Meu dia começa cedo, realmente

muito cedo. Cinco horas da manhã começa... por conta de acomodação das agendas

dos meus filhos, da minha mulher... a gente mora em Aldeia, portanto nos

acomodamos com essa coisa do tempo, partilhando o tempo de cada um, acomodando

e ajeitando as agendas para que possam ser mais otimizadas. E acaba tarde o meu dia ,

porque eu costumo fazer atividades noturnas. Porque atividade física mesmo eu faço à

noite. Então eu diria que eu passo a maior parte do meu tempo no trabalho. E o

finalmente do meu dia... Uma outra coisa que tem muita estrutura na minha vida é

assim, como eu moro em Aldeia, existe um momento em que eu desço e existe um

momento em que eu subo. Essa é uma relação legal que acontece comigo. Eu

normalmente desço às 6h20, 6h15 eu começo a descer de Aldeia para o Recife a partir

dessa hora e normalmente chego para casas às 9h30, 10h da noite. Então pra mim o ato

de subir e descer tem um limite, tem uma coisa bem delimitada. Agora em termos de

quantidade de tempo que eu tenho dedicado ao trabalho... Normalmente a minha vida é

assim: pela manhã eu tenho atividade que começam por volta das 8h, 8h e pouco,

atividades minhas mesmo. Se bem que na vinda de Aldeia pra cá é comum eu já estar

processando já coisas de trabalho. O fato de não estar no trabalho, num ambiente

fechado, mas a cabeça já está nele. Aliás, começa até antes disso porque às vezes eu

estou fazendo barba, usando o banheiro de manhã, tomando banho, e a cabeça já

começa a se ligar nas coisas que eu tenho para o dia. E aí várias idéias começam a

aparecer... a estrada também é um elemento interessante, porque eu gosto muito de

conversar na estrada. No momento em que eu estou com a minha mulher e meus filhos,

esse é um momento importante. A gente aí compartilha um monte de coisa também.

Mas aí chegando no trabalho, o que significa ou estar no escritório, ou estar aqui no

Porto Digital, ou estar visitando um cliente, isso aí é por volta das 8h, 8h30, e aí eu vou

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tranqüilamente até 1h da tarde. 1h a gente pára um pouquinho para almoçar. Eu tenho

almoçado em pouco tempo. Eu acho que a gente deveria ter mais tempo para isso,

conversar mais. 1h é que eu vou pro meu escritório e almoço com a minha esposa e

meus filhos, é um ponto de encontro que a gente tem, durante o almoço. Eu acho que é

um momento importante, a gente promover esse momento. Mesmo que eu não volte

pra casa, volte para o escritório. No escritório a gente tem mesa, a gente almoça junto.

E depois do almoço cada um vai fazer as suas coisas, meus filhos continuam

estudando, vão fazer suas atividades, minha esposa continua trabalhando, hoje ela está

desenvolvendo muito mais atividades. Ela está fazendo um mestrado, e está

desenvolvendo muito mais atividades de estudo do que de trabalho. E eu volto a carga

aí, e vai até umas 7h da noite, 7h30. A gente volta para o escritório, no escritório a

gente troca de roupa e eu vou pra Jaqueira. E aí a gente dá umas voltas, é bom

inclusive porque quando a gente pode estar junto, e na maioria das vezes a gente está

junto, eu e minha esposa, o número de vezes que a gente está dando voltas na Jaqueira,

a gente está dialogando um com o outro. Essa é a forma como eu tenho minha semana.

No final de semana, eu dedico meu sábado de manhã a ter minha atualização de inglês.

No sábado tarde e noite e domingo o dia todo é família. Eu não gosto de trabalhar no

final de semana – já trabalhei muito, mas não gosto e me irrita ter que trabalhar. Volta

e meia e meia eu preciso fazer alguma coisa no final de semana, mas eu faço com uma

certa irritação.”

Pelo que eu entendi, tudo o que é relativo ao teu trabalho ele acontece no

ambiente de trabalho, ou pelo menos a maior parte. Ou não necessariamente?

“Não necessariamente. O celular acaba com isso. Onde você estar, o celular te acha.”

E o trabalho à noite, acontece em casa também?

“Não, à noite não. Quando eu preciso trabalhar até mais tarde eu estico o horário da

tarde. Mas à noite eu não tenho trabalhado com mais freqüência não. Pelo menos nos

últimos meses eu tenho mantido, tenho conseguido não trabalhar durante a noite. Mas

aí um telefonema acontece, eu estou assistindo televisão... O celular quebra isso. O

celular e o notebook, são duas coisas meio perigosas. O notebook você abre em cima

de qualquer canto e você consegue trabalhar. Celular é a mesma coisa, as pessoas me

acham nos locais mais inusitados.”

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Essa preferência, essa possibilidade que você tem hoje de restringir o seu trabalho

ao ambiente de trabalho, e evitar trabalhar no final de semana, à noite... Você

conseguiu chegar nesse ponto faz tempo?

“Não, isso é uma coisa que tem a ver com o meu momento. O tipo de trabalho que eu

desenvolvo, pode ser que amanhã eu precise trabalhar final de semana, viajar. O tipo

de trabalho que eu estou desenvolvendo hoje me dá essa condição de não trabalhar à

noite. Eu já trabalhei muito durante a noite. Em época de projeto, a intensidade de

atividades para cumprir prazos... isso é uma coisa muito marcante na profissão da

gente. Atualmente, o tipo de trabalho que eu estou desenvolvendo ele me é suficiente.

Conseguindo trabalhar durante a semana, ele é suficiente para eu cumprir meus prazos.

O tipo de trabalho que eu estou desenvolvendo hoje me permite isso. Assim como não

viajar muito. Houve uma época em que eu viajava. Era uma coisa intensa, muito

intensa. Eu não sei se comentei da vez passada, mas ao ponto de uma tripulação da

Varig me reconhecer. Quer dizer, eu reconhecer uma tripulação é mais fácil do que

uma tripulação me reconhecer. E eu tava numa intensidade tão grande para Brasília

que uma tripulação fazia esse vôo de tempos em tempos e uma pessoa disse: “Olá, boa

viagem de novo com a gente”. E eu: “Sei não, eu acho que estou voando muito”.

Nessa época você tinha uma noção de que estava nesse...?

“Tinha. Tinha noção porque isso de alguma forma era medido. É outra coisa, o Smiles

é um grande indicador, ele promove. “Ah, vamos pela Varig, ou pela TAM etc”... essas

promoções de alguma forma funcionam muito mais como indicadores, pode te oferecer

condições, um bom indicador de quanto você está voando e muito menos do que lhe

proporcionando viagens. Nessa época, eu acumulava muito mais milhas do que

usufruía delas. Aquilo era um indicador. Eu tinha a idéia numérica, eu não tinha a

idéia, por exemplo, de uma reclamação que eu recebi da minha filha: “Pai, porque você

está viajando tanto?”. Essa idéia a gente só se depara com ela quando uma pessoa está

descrevendo. Eu não tinha essa idéia. Se você vai para o seu cartão de fidelidade, você

sabe o quanto em milhas você está voado, você tem idéia da intensidade de vôos.”

Mas não tem idéia da ausência?

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“Do que isso causa?. Isso é muito ruim. Eu desenvolvi um projeto e esse projeto

demorou aí um ano e meio. Eu viajei aí um ano e meio toda segunda-feira e voltava

todo sábado. Minha filha cresceu e eu não percebi isso. Isso eu guardo com muita dor.

É uma coisa que eu não faria.”

Qual é a idade dela?

“Hoje ela tem 19 anos. Muito ruim. A administração desse processo, assim... era um

projeto grande, um projeto nacional, era um projeto que todo profissional sob o ponto

de vista profissional gostaria. Eu estava coordenando a implantação de um sistema

numa rede de bancos nacional. Em mais de três mil agências. Um sistema de

informática para o Banco do Brasil, que implantou a Poupança Ouro no Banco do

Brasil. E eu freqüente Brasília durante um ano e meio. Ia toda segunda-feira e voltava

no sábado. Na segunda-feira, quando eu descia, já descia de mala pronta. Eram duas

trocas de roupa, uma na mala e outra lavando, praticamente isso. Esse foi um período

que profissionalmente foi muito interessante, eu conheci pessoas, conheço tecnologias,

enfrentei diversas situações. Como profissional eu gostaria de ter isso concluído. Mas

como pessoa, como pai, como marido... foi um período na minha vida muito difícil”.

Havia condição de tempo, ciência mesmo, preparo seu visto hoje para refletir

sobre isso naquele momento ou não, isso não acontecia?

“Naquele momento foi um convite, e um convite muito mais visto pelo lado

profissional do que qualquer outra coisa. Os efeitos colaterais ficavam meio que em

segundo plano. Esse foi um momento profissional importante para mim, mas

pessoalmente eu não sei o tamanho do prejuízo, não sei como medir o tamanho desse

prejuízo. Essa administração de tempo hoje, por exemplo, nas minhas atividades, eu

acho que não entraria num projeto dessa natureza. Por mais que remunere – e também

remunerou muito bem – ms por mais que remunere os efeitos colaterais de um projeto

dessa natureza para a situação familiar, de ambiente familiar que eu tenho hoje seria

muito complicado.”

E hoje, o tipo de reflexão que você faz sobre aquele tempo, ela é muito diferente?

A gente pode dizer que essa que você fez agora, essa descrição? Nessa época em

que você estava implantando esse sistema, teus objetivos foram todos

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direcionados para esses projetos. Mas como era a sua relação, por exemplo, com a

informação? Você se considerar uma pessoa que era informada do que estava

acontecendo no mundo ou o trabalho conseguia te isolar de tal maneira...

“Não. Eu sempre fui uma pessoa curiosa e o hábito da leitura me pertence. Uma

atividade dessa natureza ela me consumiu muito tempo fora, essas coisas todas que eu

comentei agora. Mas isso não me alienou não, alienou do mundo etc. Eu não deixei...

eu fazia questão de estar final de semana em casa com a esposa e filhos, continuava

com as mesmas assinaturas de jornais e revistas. Quer dizer, o meu processo com o

mundo ele acontecia. Eu acho que a intensidade do trabalho e a forma como ele foi

desenvolvido fora inclusive... Imagine se esse trabalho fosse desenvolvido aqui no

Recife. Eu acho que por mais que eu estivesse ausente no período de expediente, o fato

de voltando pra casa seria outra coisa. O meu maior complicador aí foi a freqüência

dessas viagens, a ausência do local onde você está. Mas isso não me alienou não, em

termos de informação isso foi importante. Eu acho que as viagens, mesmo dessa

natureza profissional, trabalho etc., sempre abre muito a cabeça da gente, porque a

gente está se relacionando com pessoas diferentes, com mundos diferentes. Em um ano

e meio em Brasília acontecem muitas coisas. Como eu morei em hotel, eu morava em

hotel, e hotel cada semana tem uma população diferente. Então você conhece pessoas

diferentes.”

Esse período te conectou mais ao mundo, digamos assim?

“Não, eu não faria essa avaliação não. Me conectou a outras partes do mundo e me

desconectou de algumas outras. Então o fato de eu não estar no Recife, eu ter

desconectado das coisas que aconteceram no Recife fisicamente.”

O projeto teve um período X delimitado...

“Um ano e meio.”

Ao final dele, você tinha uma noção crítica de que aquilo poderia estar te

prejudicando?

“Não.”

Se não tivesse um ano e meio você teria continuado com ele?

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“Não, eu acho que tem aí a questão do limite físico mesmo. Um ano e meio fazendo

toda semana fora você já tem um certo desgaste físico. A outra coisa é que em um ano

e meio você cumpriu etapas do projeto, o projeto não é uma bola de neve infindável.

Você tina etapas e aconteceu de que no final de um ano e meio você conseguiu

implantar, concluiu e implantou o sistema. Então aquilo foi um sucesso psicológico

muito intenso, porque você depois de um determinado período de tempo que você

investiu pesado suas energias, você conseguiu atingir altos objetivos do projeto. Então

esse lado também é positivo. Seria muito ruim se eu tivesse chegado ao final de um

ano e meio e eu tivesse, com o esforço todo que a gente fez, com a colaboração de

todos que faziam parte da equipe – porque não foi sozinho, foi uma equipe... então

nesse contexto foi até interessante porque a equipe funciona como equipe, não era o

indivíduo que estava fazendo aquele trabalho. Era uma equipe que uns estavam

zelando pelos outros. Então ao final de um ano e meio a gente teve o retorno de que foi

bem-sucedido. Então isso trouxe um sucesso psicológico muito interessante para cada

um da gente. E o sucesso psicológico é uma coisa importante para o ser humano,

então eu não tinha condições naquela época de fazer uma avaliação de que o meu

investimento nisso aí tinha sido danoso. Até ao contrário, tinha sido positivo. Eu acho

que naquele momento eu estava, o grupo estava bastante motivado, e isso abriu novas

portas. No aspecto profissional, é uma coisa muito interessante. Já no aspecto pessoal

eu acho que houve um desequilíbrio entre um investimento e a convivência no outro

mundo que não o profissional.”

A atualização da informação necessária para você desenvolver o seu trabalho

hoje, ela advém de que forma?

“Primeiro, as informações que ao longo do tempo eu apreendi. Esse banco de

conhecimento evidentemente ele é processado. Então eu acho que tenho habilidades

que eu também desenvolvi ao longo do tempo que geram a acessam esse banco de

informações. Então esse conjunto de habilidades advêm de observação, de

treinamento, de cursos fora, de congresso, de observação mesmo do que está

acontecendo, de comparação, de conversa, de observação das outras pessoas. E pela

prática. Então eu acho que sou um conjunto de habilidades e disponho de um conjunto

de informações. Eu tenho esse conjunto de habilidades adquirido ao longo do tempo e

tenho essa base de informações. E essa base de informações ela cresce porque eu tenho

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habilidades de atualização. Eu sempre estou trazendo novos conhecimentos, me

aperfeiçoando. Eu tenho habilidades que me promovem isso. Aí eu falei em

habilidades e em conjunto de informações, mas eu acho que eu tenho características

pessoais que não são habilidades e que me ajudam a desenvolver minhas habilidades.

Eu sempre dei muito valor – características pessoais têm a ver com valor, com

comportamento, e tudo mais – eu sempre dei muita ênfase à leitura, procurar

informação, a questão de prestar atenção às coisas. Na hora que eu faço isso eu

estimulo a entrada de informação. Me organizar. Isso sempre foi uma coisa... por

definição eu gosto de fazer as coisas organizadas, estruturadas e sistematizadas. Eu

acho que a minha formação é uma formação muito disciplinadora. Então eu trago uma

certa carga de disciplina para junto das pessoas. Então se você somar características

pessoais, habilidades e esse conjunto de informações que a o longo do tempo eu vou

gerando é o que me faz mover. Então você vai de alguma forma se utilizando da

experiência que você de alguma forma desenvolveu e que de alguma forma você possa

se utilizar daquela informação. Eu vou buscar essas informações em Internet, eu vou

buscar em leituras, eu vou buscar em conversas, em fóruns de discussões, em

newsletter. A Internet é um Mundo. Através de trabalhos anteriores, através de leituras,

muita leitura. Eu acho que grande parte do meu dia eu dedico à leitura.”

A esse tipo de atualização, você poderia dizer?

“Necessariamente, a atualização por atualização não.”

Atualização direcionada?

“Exatamente. Porque eu acho que também uma outra coisa que caracteriza o meu

trabalho é que eu gostaria de ter mais tempo para me atualizar independente de

projetos. Eu procuro me atualizar na medida que as coisas vão acontecendo.”

O que você precisa?

“É, na medida que eu vou precisando. Hoje eu não tenho aquela dedicação que eu

tinha. No momento em que eu por exemplo para fazer um trabalho de modelagem

sobre uma área específica, aí eu corro atrás pra me atualizar com relação àquilo. E

como eu trabalho com modelagem – modelagem significa a arte de você lidar com a

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informação, a tecnologia do uso da informação, mas essa tecnologia de uso da

informação me coloca diante do mundo da informação.”

E de muitas áreas para as quais você não foi exatamente treinado...

“Eu não tenho habilidades, eu não tenho informação, não tenho informação. Então eu

tenho que preencher aquela lacuna.”

É uma demanda constante essa... Então tu lutas o tempo todo contra uma

obsoletização?

“Exatamente. E isso para mim é uma neura.”

E isso te sufoca?

“Não.”

Como é que você consegue evitar que isso lhe sufoque?

“Eu acho isso extremamente agradável. É como se eu me alimentasse. Eu vejo meu

cérebro como um músculo. Como eu adoro fazer exercício , adoro botar coisa pra

dentro. Eu me sinto bem me atualizando. Eu disse a voe que eu sou uma pessoa

curiosa. Se eu não fosse, eu acho que eu empanzinava. Mas como eu sou muito

curioso... O curioso para o cérebro eu acho que é o guloso para quem come muito. A

curiosidade alimenta a minha busca por atualização. E não é neurose. Eu acho que

existe aquele cara que passa por diante de uma folha de jornal e já está lendo. Eu gosto

de uma boa prosa, eu gosto de uma conversa, eu gosto de sentar numa roda e contar

lorota. Mas também gosto, por exemplo, no momento em que eu sou convidado –

“Marcos, a gente está precisando do teu apoio. Diga aí, cara, vamos resolver tal

problema”. Esse problema eu não tenho a menor idéia do que diabo é, isso já me

estimula a captar.”

Eu suponho que essa tua curiosidade, o teu tipo de trabalho mesmo, ele ajude a

você ter uma noção do mundo, tem uma idéia sobre muita coisa, sobre desde o

mercado financeiro , tendências de mercado bancário... Numa séria de projetos

em que você está ou já esteve envolvido. É verdade isso, ou seja, teu trabalho, a

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tua busca necessária para conhecer e fazer modelagem te ajuda a ter noção do

mundo?

“Eu acho que todo mundo tem uma noção de mundo. Me ajuda a consolidar, essas

características pessoais, minhas habilidades, me ajudam a ter uma visão de mundo,

Mas eu acho que todo mundo tem uma visão de mundo. Alguns mais críticos, outros

menos críticos, uma visão mais ampla ou mais restrita. Eu acho que todo mundo tem

uma visão. Essa curiosidade eu acho que me ajuda muito a entender as coisas. Não só

de Economia, de Finanças, mas de comportamento, natureza, cultura, religião. Eu me

permito. Por exemplo, eu pratico religião, sou católico, passei muito tempo sem fazer

isso. Mas de uns dez anos pra cá, não é uma coisa específica, mas um conjunto de

ações que levaram, me conduziram a retornar o meu processo de desenvolvimento da

minha religiosidade. Pessoas inteligentes, padres inteligentes, colocam a gente para

refletir sobre muitas coisas, a leitura, o que a gente consegue descobrir fazendo leituras

bíblicas. A própria discussão entre as pessoas. E aí essas ações que eu falei, passei a

discutir com pessoas não que concordavam comigo, mas pensavam na mesma linha. A

gente podia discutir. Por isso eu passei a me aproximar muito mais de Deus do que eu

era há dez anos. Eu acho que essas habilidades, essas informações elas abrem mais. Eu

tenho essa historinha de religiosidade aqui. Eu digo que eu sempre peço a Deus para

conseguir. Eu acho que é muito importante a gente ter a serenidade para aceitar aquilo

que a gente não pode mudar. Isso é uma coisa muito importante. Serenidade é uma

palavra bonita. Se a gente parar para pensar o que ele significa é muito bonita. Mas ao

mesmo tempo pedir coragem e tranqüilidade para mudar aquilo que a gente pode. Não

ficar de braços cruzados. Mais ainda – e isso aí eu peço com muita intensidade – é a

sabedoria para saber distinguir uma da outra. Acho que aí é que está a questão

fundamental. É você ter a serenidade para aceitar aquilo que não pode mudar, mas a

coragem e essa habilidade para mudar o que pode e a sabedoria para distinguir uma da

outra. E eu acho que tem a ver com essa minha forma de viver as coisas, de

compreender, de fazer essa visão de mundo.A gente sai desenvolvendo uma série de

coisas diante das situações que a vida coloca a gente.”

Você participa de algum outro fórum de discussão ou newsletter que não tem a

ver com o teu trabalho exatamente?

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“Participo. Eu sou um elemento que tenho características pessoais, de vida, do que eu

faço, e faço parte de grupos. Um desses grupos é o Cursílio, grupo de evangelização

católica que utiliza as artes para alcançar seus objetivos.”

Você chegou primeiro à igreja ou chegou primeiro ao Cursílio?

“Eu cheguei primeiro à igreja, e depois conheci o Cursílio. Conheci através de colegas

meus.”

Que trabalham com TI também?

“Trabalham comigo, meu parceiro aqui vai fazer o Cursílio”

O Cursílio utiliza de forma bastante intensa a arte, a música, plástica, teatro...

“O que me chama a atenção no concílio... primeiro o próprio Cursílio, o momento em

que agente faz o Cursílio. E uma vez fazendo, o compromisso depois de dar

seguimento à questão de você evangelizar os seus ambientes. Essa outra parte eu acho

que é legal assim: o método tem escolas, sempre com pessoas interessantes

conversando sobre assuntos bem legais, pessoas que exploram sobra assuntos que a ge

te faz: “Puxa, mas como é que pode ser desse jeito?”. A gente pára pra pensar e não

são assuntos religiosos necessariamente não. Existem muitos cursos sobre as passagens

da Bíblia, mas existem pessoas que são convidadas a falar, por exemplo, sobre o

movimento da Fetape, trabalhadores rurais. Vai gente falar sobre água. E a gente

compreendendo isso sob o ponto de vista religioso, o que significa isso. Isso me

desperta uma curiosidade muito grande, tem sido uma grande audiência. Mas eu acho

que o forte do Cursílio é você poder fazer de forma orientada as questões das leituras,

as interpretações da Bíblia.”

Tem alguma atividade que te ajuda fora do trabalho a relaxar? Eu sei que o teu

contato com a família ajuda muito a relaxar, se desligar do trabalho, esquecer um

pouco a questão de prazos, demanda, cobranças etc. Existe alguma outra

atividade além dessas?

“Existe. Eu como disse a você eu moro em Aldeia, aí eu consegui desenvolver uma

forma de comunicação com uma família de sagüis. Todo dia de manhã eles passam

atrás do muro lá de casa, vêm assoviando e aí eu começo a assoviar do lado de cá. E a

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gente criou um canal de comunicação. E eles sabem que quando eu começo a assoviar

aqui vai ter banana. É uma família de 12 sagüis e eu boto duas bananas pra eles. Morro

de pena quando eu saio de lá e eles não aparecem, porque não é sempre a mesma hora

não. É de manhã cedo, 5h, 5h10, por aí. Mas isso pra mim é a coisa mais maravilhosa

do mundo. E eu percebo ali comportamentos do tipo quem é que lidera, como lidera, o

tratamento dos meninos novinhos. O cabra morrendo de fome pega a banana, os mais

velhos, e o pequenininho chega junto, tira e ele não faz nada. Eles respeitam como os

índios respeitam os filhinhos deles. Menino índio faz o que quiser até uma determinada

idade, depois dessa idade entra nos eixos. Sagüi faz a mesma coisa. Então tem o sagüi,

essa relação com o sagüi é uma das minhas prioridades. São cinco minutos que eu

passo ali, mas são cinco minutos que eu vejo um mundo completamente diferente do

meu. Convivo, vejo não, convivo com um mundo completamente diferente do meu.”

Você já estabeleceu alguma relação com arte?

“Já, já toquei em conjuntos (de rock).”

Durante quanto tempo?

“Toquei enquanto eu era menino. Era conjunto na época, não era banda. Conjunto dos

Meninos do Nóbrega. Meu vizinho estudava no Nóbrega e ele tocava violão e estudava

no conservatório. E eu gostava muito dele. Ele era mais velho do que eu, eu tinha uns

12, 13 anos e ele tinha 17, 18. E eu ia muito na casa dele, era vizinho mesmo, e ficava

olhando ele tocar violão. Aprendi a tocar violão olhando. E aí a gente ia sempre lá para

o Nóbrega sábado de tarde fazer o som, os ensaios. Era arretado.”

Nunca mais voltou a tocar não?

“Não, rapaz. Eu tenho um filho, meu filho mais velho tem síndrome de Down. Ele

soube dessas histórias e eu tocava também percussão, bateria, atabaque, essas coisas. E

eu contei essas coisas e ele quis aprender e terminou se dedicando a isso e toca bateria.

Tem bateria lá em casa. E ele tem guitarra também, porque aprendeu a tocar guitarra. E

ele faz “Pai, vamos fazer um barulho ali”, e a gente faz um barulho, fica no barulho.

Mas eu tenho muita vontade de aprender a fazer escultura em madeira.“

Já trabalhou com escultura alguma vez?

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“Não, mas minha filha já. Com argila e cimento. Ela modelava em argila e depois

passava um cimentinho em cima. Ela chegou a modelar. Tinha uma pessoa perto de

onde eu moro que era um artista, e a minha filha fez uma época dessas. Eu tenho muita

vontade de trabalhar com madeira, a madeira me atrai. Eu gosto muito de madeira.

Uma vez eu passei mais de hora olhando uma pessoa talhando um santo, quer dizer,

esculpindo. Fazendo uma escultura de um santo num tronco de jaqueira. Ele fez um

São José a coisa mais linda do mundo. Eu tenho esse São José lá em casa.”

Você o viu sendo feito?

“Eu vi. Pasei uma hora vendo o artesão acabar a obra. Quando ele acabou de assinar eu

disse “Quanto é o santo?” E levei lá pra casa.”

Deve ser uma sensação bem diferente você ver o santo nascer.

“ É lindo. Bom, ele tava meio nascido, só tirou o excesso. Eu sou devoto de São José e

de Nossa Senhora da Conceição. E no ano seguinte – isso foi em Maceió – e no ano

seguinte eu cheguei lá e ele estava com uma Nossa Senhora pronta. Ele talhou o São

José, eu trouxe, e no ano seguinte eu trouxe Nossa Senhora. Veja, o perfil das pessoas

que trabalham nessa área é um perfil muito interessante. É um perfil normalmente de

quem gosta de enfrentar desafios, são pessoas que naturalmente trabalham com

linguagem sistêmica, ou seja, elas sempre vêem algo entrando, processando e saindo.

Linguagem sistêmica é você estar construindo uma parede e você perguntar para a

pessoa: “O que você está fazendo?”. Uma diz que está construindo uma parede e outra

diz que está construindo uma casa. A que diz que está construindo uma casa tem

linguagem sistêmica. Ela está fazendo parte de um processo de transformação de tijolo

e cimento em uma coisa muito grande, não é apenas uma parede. Normalmente essas

pessoas da área de informática elas têm uma habilidade lógica porque a linguagem de

computador requer lógica, de alguma forma requer lógica. Mesmo que você não seja

um exímio programador, você não precisa ser um exímio programador para trabalhar

nessa área, mas de alguma forma você vai trabalhar com insumos processando e

gerando um produto. Isso é arte.. Se você considera por exemplo que ao talhar você

transforma um pedaço de tronco de jardim em um santo, você trabalhou em cima de

um grosso e conseguiu transformar aquilo numa coisa mais elaborada.”

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É um processo de transformação sistêmica?

“É um processo de transformação sistêmica. O sistema digestivo é o exemplo mais

tranqüilo para a gente compreender isso. O sistema circulatório é fechado, mas eu

entendo. Existem transformações ali, sangue venoso, sangue arterial, alimentação,

filtragem. Então esse pessoal é um pessoal que naturalmente tem mais habilidade,

lembra que eu falei das habilidades? Eu imagino que o pessoal de informática tem essa

característica. Eu acho que a gente consegue por essa característica, que é uma

característica tão forte, a gente consegue reconhecer o informático no mundo.”

Porque?

“Pelo seu comportamento, suas características. Ironia faz parte do comportamento do

informático. Aspectos físicos... é comum você identificar a pessoa. A própria forma de

se vestir, palavras que são ditas, muitas expressões em inglês mas não só isso. Coisas

do tipo, uma palavra que é muito usada no meio da informática é desconfigurado.

Minha filha olhou pra mim e disse: “Pai, o seu limpador de pára-brisa está

desconfigurado”. Isso é uma linguagem informática. Ela não é informática não, mas

isso é uma linguagem da informática. E ela o tempo todo está fazendo carga de

joguinhos, de softwares pela Internet. E depois que ela faz o download logo em

seguida precisa configurar. Então configurar passou a ser uma palavra usada. Algumas

palavras utilizadas pelos informáticos são muito marcantes. Termo informático

mesmo. É muito interessante. Na linguagem sistêmica, a relação com a arte pode estar

intimamente ligada porque a arte é transformação. Arte é você transformar...

Você vê nas suas estratégias de saída da lógica do trabalho semelhanças com as

mesmas estratégias buscadas por colegas teus de trabalho? O que você faz, o que

você busca, de alguma forma tem alguma semelhança com o que as pessoas fazem

em geral para esquecer do trabalho, esquecer o estresse do trabalho ou ter tempo

para pensar sobre si mesmo? Existe alguma linguagem alguma afinidade?

“Eu vou ter dificuldade em responder isso pelo seguinte: eu acho que isso depende.

Nos meus parceiros eu vejo isso. Eu tenho três parceiros, eu vejo isso com um deles. O

mesmo valor que eu dou à família ele dá, a mesma relação que eu procuro com a

família ele procura. A gente tem uma identidade. Os outros dois não, nesse aspecto.

Mas com um desses com quem eu não vejo essa identidade é com quem mais eu

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consigo me complementar. No trabalho. A gente tem uma complementaridade de

pensamento muito intensa, mas de comportamento às vezes é diferente. Ele tem um

relacionamento com a família muito interessante também, mas não é a mesma coisa,

tem umas características diferentes. Bom, esse tipo de trabalho que eu desenvolvo tem

características próprias, mas eu vejo por exemplo o técnico, o engenheiro de software

eu vejo o tipo de trabalho, a intensidade de desenvolvimento que ele pratica e as

necessidades por exemplo de no final de semana dar uma carreira e passar dentro de

uma tenda num camping lá não sei aonde. Um final de semana assim bem natural,

longe de tecnologia. Isso acontece muito, de fazer rapel, de fazer isso, de fazer aquilo.”

Eu já ouvi falar, não sei se é verdade, que alguns não têm nem computador em

casa.

“Eu não acho que seja assim não. Eu acho que não. Tem, e pior: está dentro do quarto,

no lugar mais íntimo da casa, no seu lugar mais íntimo. Informática deixou de ser

privilégio de informáticos. Ela penetrou em casa. Então eu acho que não, ele tem

computador em casa. Esse negócio de dizer que não quer nem saber e tal, mas tem

computador em casa. Sobretudo quando você tem notebook. Veja, o meu computador

de casa está no escritório. Eu hoje não tenho computador fixo em casa. Mas na hora

que eu chego em casa com o notebook tem computador em casa. Final de semana

minha filha pede: “Papai, posso usar o seu notebook para acessar a Internet?”. Eu digo

“Pode, claro”. O computador ele passou a conviver no dia-a-dia, ele pode não estar

fixo em casa, hoje você já tem recursos tecnológicos para fazer isso. Mas aí eu não sei

se respondi à sua questão. Eu acho que a estratégia que a gente usa para trabalho é uma

estratégia que diz respeito às habilidades com as informações. E essas habilidades

também valem para o seu dia-a-dia. Você vai fazer qualquer coisa que não aquele

trabalho específico, as habilidades continuam valendo. Eu acho que você vai repetir

aquilo que você faz. É interessante essa sua colocação. Mas eu acho que acho que tem

um comentário que eu poderia fazer. Você num ambiente de Tecnologia da Informação

tem mais intimidade com muito sites além daqueles de que você necessita para

desenvolver o seu trabalho. Por questões de navegação, você de repente passa o olho

ali em cima. Como você tem que estar lendo para ver o que é que tem, alguma coisa

que você está vendo, e às vezes passa em cima de um site que não tem nada a ver com

o que você está fazendo, mas você clica ali. Esse coisa maravilhosa da tecnologia que

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num clique lhe bota pra ir para um outro mundo, você entra numa outra sintonia, você

fazendo uma pesquisa sobre determinado assunto e de repente aparece um site ali.

Quando você tecla, cai em outro lugar completamente diferente. É um mundo novo

que se abre num clique. A velocidade com que você sai de um ambiente para outro é

muito rápida. Você pode estar num ambiente completamente fechado aqui. Esse

quadradinho aqui na verdade não tem esses limites não. O limite é digitalizável, ou é

bitável quando se está acessando a Internet, de alguma forma já tem alguma coisa na

Internet. Por exemplo, nessa hora você está navegando e descobre um negócio

chamado slow food, que vai de encontro ao fast food. E na hora em que você descobre

o slow food as suas atividades de cozinheiro despertam e você vai entender o que é

aquilo. Quer dizer, a informação do mundo do trabalho, quando você está no ambiente

do trabalho que você estava desenvolvendo, lhe chama a atenção uma coisa que você

gosta de fazer quando não está trabalhando. Nessa hora você diz: “Porque slow food?”.

E você vai entender que o movimento surgiu na França, que popularizou-se na Itália e

hoje o Brasil participa disso. É um movimento que diz assim: “Vamos combater o fast

food”. Porque se no fast food você come em 15 minutos, no slow food você come em

duas horas. Aí já tem idéias de receitas. Na hora em que você abre uma receita, você

diz: “Que bacana, vou fazer hoje de noite”. Então o mundo da informação não é o

mundo da Tecnologia da Informação. Você ora está com informação para sua atividade

profissional e ora está com informação para atividade de lazer. Mas é informação.”

Mas elas se interpenetram, não é?

“É. Então a informação ela está sendo disponibilizada para você e você vai fazer dela o

que suas habilidades conseguirem transformar.

Mas na mesma medida que permite você ter acesso a um monte de informaçõ e

conhecimento, ela também pode impedir esse processo...

“Sim, ela é capaz de alienar dependendo da forma como você está vendo. A riqueza e a

profundidade desse mar é tão grande, é tamanha, que você vai ficar num metro

quadrado. Porque a profundidade é muito grande, porque você tem metros e metros de

fundura na vertical. Esse mundo da gente é meio que um oceano enorme e profundo.

Você pode ficar ali naquele pedacinho e se satisfazer. Isso é alienar. Tem gente que sai

surfando para todos os lados e nunca mergulha, só na superfície. E você também pode

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se alienar por conta disso, você na verdade fica ali, numa quantidade de informações

que é como se fosse uma goteira. Tem um mar de informação ali. Oceanos e oceanos,

uma profundidade de oceanos. Essa expressão surfar na Internet é muito própria. Você

vai surfar, mas você pode mergulhar. Surfar você vai pegar uma onda, que pode ser

suficiente. Mas tenha a certeza de que tem outro tanto de mar pra trás. Inclusive eu

acho que isso vai ter problema. Não houve o alcoolismo na época industrial? Vai haver

alguma doença de informação.”

Nunca tinha pensado nisso não.

“Lembre-se de que a gente está na Sociedade da Informação. Alcoolismo tem uma

relação muito próxima com você sair da fábrica, da produção industrial, e num dia

extremamente estressante, em que você foi até o limite de horas, saiu exausto, e no

caminho de casa tinha uma bodega. Aí o sujeito vai, bota uma branquinha pra dentro e

chega em casa. No outro dia você faz a mesma coisa, e no outro dia você faz a mesma

coisa. E daqui a pouco vai sentir faltar no seu metabolismo. Isso é uma das causas do

alcoolismo. Você imagine agora que você sai do seu trabalho e se vicia em navegar na

Internet. Vai ter uma doença. E vai ser assim, a necessidade pela informação.

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EXECUTIVOS

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João - Executivo Qual a sua formação e como é que você chegou a ocupar o cargo de

executivo na empresa em que trabalha hoje?

“Eu sou engenheiro mecânico formado na Escola Politécnica no ano de 1960; meu

primeiro trabalho foi na IBM, eu trabalhei na IBM durante 10 anos, parte aqui

em Recife e parte na matriz que é no Rio de Janeiro. Eu estava na Matriz do Rio

de janeiro quando a IBM tava sofrendo grandes problemas da política de

informática do governo militar, na época, e nós tínhamos que administrar

diariamente problemas que não tinham nada a ver com informática e números,

eram problemas advindos da política; os meus trabalhos, por exemplo, era

despachar gente do Brasil pra outras filiais da IBM do mundo porque não havia

espaço pra elas no Brasil. Quando eu trabalhava no Recife eu tinha sido o

representante da IBM que atendia a empresa em que atuo hoje. Então já tinha

aquela relação de amizade com o pessoal dessa empresa, que funcionava como

uma unidade de negócios de outra empresa maior. E nessa ocasião eu fui

abordado pelo pessoal da empresa para participar da execução de um projeto que

desmembraria as duas empresas”.

Então empresa em que você atua hoje já existia?

“Sim, só que tinha uns poucos sócios minoritários. Então, em 1978 eu fui procurado

por um pessoal que tinha um projeto diferente, um projeto de uma empresa que fosse

gerida pelos seus próprios participantes, seus próprios técnicos. Então, eu fui abordado

por eles porque basicamente eles estavam pensando em alguém que fosse um reforço

na área de marketing, o pessoal que tava na casa era muito mais técnico e eu tinha essa

experiência, tinha essa ligação com eles, e então eles me convidaram pra isso e então

eu voltei para o Recife pra participar da empresa. São duas coisas: eu vinha pra dar

esse insumo de trabalho, do meu conhecimento de marketing que eu adquiri na IBM; e

vinha também atraído por um projeto de empresa que seria na verdade, criada ou

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recriada, vamos dizer, em cima de novos municípios, com um aspecto muito forte de

participação do pessoal técnico na gestão da empresa. Então, foi por esse motivo que

eu vim, foi assim que o meu destino se encontrou com o da empresa em 1979”.

E nessa época, quais eram suas atividades exatamente? Qual era o seu dia-a-dia, o

seu papel?

“O meu papel, quando eu cheguei, foi estruturar uma área comercial que a empresa

não tinha. Então, a empresa naquela época basicamente se dirigia muito pra área de

prestação de serviços, de bureau de serviços, a implantação de computador maior, a

questão de oferecer serviços de informática a outras empresas. Ela já era beneficiada

da política de informática, porque como houve a restrição muito grande de importação

de equipamentos, as empresas não tinham como fazer internamente seus próprios

serviços. Então o espaço do bureau de serviço foi muito desenvolvido nessa ocasião.

Então, meu papel também foi estruturar apresentações; propostas; corpo de vendas; de

vendedores, treinar vendedores pra ir pra rua pra vender serviço de informática”.

E hoje em dia é correto afirmar que você é um dos executivos chefes da

linha de trabalho da empresa?

“É”.

Quais são suas atribuições diárias? O que operativamente você faz

diariamente hoje em dia?

“De tudo um pouco. Hoje, o controle da empresa está dividido entre três sócios. E cada

um tem mais ou menos uma área. Eu tenho um trabalho mais voltado pra área externa

da empresa”.

De contato com o cliente?

“É. Sendo que eu, particularmente, me dedico mais ao aspecto institucional, às

relações institucionais; as relações com o governo, com outras empresas, com a

organização do setor de informática de Pernambuco. Eu cultivo uma relação com

a Sucesso (Associação das Empresas de Informática de Pernambuco), e com

outras entidades. Eu procuro marcar presença em reuniões executivas como Gere

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(Grupo de Executivos do Recife). Então, esse trabalho de projeção institucional é

minha preocupação mais forte no dia-a-dia do executivo; evidentemente que eu

tenho um background, que é a preocupação da empresa como um todo porque eu

sou um dos proprietários e preciso me preocupar com os problemas estratégicos

dela como um todo. Mas, como atividade do dia-a-dia eu sou mais voltado pra isso

e isso evidentemente me leva a ter uma relação também com o cliente, tanto o

cliente ativo como o cliente potencial”.

Nessa atividade o que é desafiante? O que é problemático? Que tipo de barreira o

senhor tem que enfrentar? E como o senhor faz pra manter o nome da empresa

lembrado pelos clientes?

“Sem dúvida nenhuma, é um desafio. É uma questão que a gente tem que se

preocupar permanentemente. Tem uma série de aspectos: aspectos da questão de

assessoria de imprensa, de publicidade, de colocar a marca da empresa na rua;

um trabalho que a gente fez foi o de tentar firmar a marca. Nossa marca tem sido

a mesma desde 1986, desde que a gente deu a última feição à logomarca; ela teve

algumas variações ocasionais, Mas, essa é uma questão importante: firmar a

marca com todas as suas cores, com as tonalidades de cores; pra que essa coisa

fique muito forte, muito presente, tanto do ponto de vista do marketing externo

como do marketing interno também. A gente tem procurado tratar essa questão

de que o próprio funcionário seja um condutor disso aí”.

E vocês lidam também com essa coisa de concorrência ou isso não é exatamente a sua

área?

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“É uma preocupação minha também pela questão da análise da concorrência.

Porque nesse trabalho institucional, quando eu tento firmar a imagem da

empresa na rua, eu procuro captar também como é que os concorrentes se

comportam. Por dois motivos: primeiro porque é uma força que eles têm, na qual

a gente tem que se aprimorar. E também porque é uma forma de aprendizado

para ser aplicado. Então, isso é uma coisa que eu procuro observar bastante. Se

eu pego um avião e eu vejo na revista da companhia aérea uma reportagem com

concorrente meu, então, aquilo me remete a pensar por que essa empresa

conseguiu uma abertura naquele veícuolo? Aquele é um veículo adequado? Seria

um veículo adequado pra gente também?”

Então, esse é um tipo de atividade que não para?

“Não para, é o tempo todo; até mesmo no ambiente social onde a gente está. Isso

vem à tona, você captura em outro ambiente com é que as pessoas entendem,

como é que as pessoas enxergam a empresa”.

Você tem noção clara de em uma semana normal quanto tempo você trabalha ou no

escritório ou em casa, se for o caso de você levar trabalho pra casa, ou em termos de

reunião?

“Normalmente, considerando o trabalho... Eu não sei se eu considero trabalho a

partir do momento que eu pego o jornal, porque já é uma leitura dirigida pra

aquilo que a gente... Mas, pode considerar 11, 12 horas por dia útil. Nos fins de

semana, geralmente no domingo à noite eu já faço uma geral do que eu tenho que

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organizar pra semana seguinte; eu procuro, por exemplo, no sábado e no

domingo não abrir e-mail, é uma coisa que eu adotei à muito tempo. Mas, no

domingo à noite eu faço isso, eu dou uma revisada na caixa postal.”

Já foi mais ou já foi menos?

“Já foi mais”.

E diminuiu por quê?

“Diminuiu até por uma questão de consciência, mesmo. O tempo passa e você

começa a descobrir que não tem mais o pique que tinha há algum tempo antes e

você começa a conciliar isso aí. Eu passei muitos anos aqui sem tirar férias. O

último período de descanso em que eu ainda trabalhava foi em 91. Aí depois em

diante eu procurei tirar umas férias longas, se afastar mesmo do trabalho; se eu

tirar umas férias e ficar aqui no apartamento, eu vou trabalhar, não tem jeito”.

Então, a questão física, de cansaço foi o fator pra você dá uma diminuída?

“Foi”.

Você faz alguma outra reflexão sobre vontade de fazer outras coisas ou pensar em

outras coisas? Na família?

“Faço, sim”.

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Isso foi fator determinante pra você dar uma maneirada nesse tempo de trabalho?

“Foi. Eu me conscientizei de que tive muito tempo, um tempo crucial até, pras

meus filhos, muito distante deles”.

Em que fase?

“Na adolescência. Estamos falando coisa de 10, 12, 13 anos, por aí. Eles eram

adolescentes”.

E hoje em dia, como você faz separar um pouco? Quando você vê que está nas doze

horas de trabalho?

“O que eu tenho adotado é não comprometer os fins de semana, pelo menos isso.

Na sexta feira, às oito horas da noite eu encerro a coisa e só vou reabrir no

domingo à noite. Tanto por questão de família como pelo próprio cansaço pessoal,

cansaço físico”.

O que alimenta suas informações em termos de estratégia de empresa, em termos de

planejamento de futuro? Onde você bebe informações pra saber como a Procenge vai

ser daqui há alguns anos? Precisa de análise de mercado, contato com as pessoas,

experiência própria?

“A gente tem o próprio ambiente do Recife que é um ambiente importante pra

isso, o setor de informática de Pernambuco é um ambiente importante porque a

gente tem contato com pessoas com visões e experiências muito importante nessa

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área. Agora, tem informação na própria internet. Eu e preocupo muito com isso,

com o que tão fazendo as empresas que são bem sucedidas”.

Esse acompanhamento é distante, via internet e noticiário ou é uma coisa mais

próxima, de conversa entre executivos?

“Como eu tenho até como tarefa da empresa me aproximar institucionalmente

dessa coisa organizada do setor, eu tenho facilidade de intimações diretas. E eu

aproveito determinadas situações, isso é a coisa que eu mais faço; recentemente

teve o Encontro Nacional das Empresas de Informática, em Florianópolis, e eu

converso com as pessoas, eu encontro pessoas que eu não via há muito tempo,

procuro saber o que as pessoas fizeram da vida, como é que elas tão fazendo

agora, como é que elas tão se organizado. Isso tem me preocupado cada vez mais,

a idade começa a pesar e você fica interessado em planejar até em benefício da

própria organização; até que ponto eu contribuo ou em que ponto eu contribuo

mais com a organização à medida em que eu adquiro um numero maior de

conhecimento”.

Então, é uma preocupação de continuar dando um contribuição válida e pulsante à

empresa. É isso?

“Isso. Em 2007 eu faço 60 anos e então eu acho que a partir daí eu tenho que ter

um plano diferente da forma de contribuição pra organização. Essa não é uma

organização familiar, não vou deixar meu filho tomar conta. Então, tem que

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pensar como é que vai formar sucessores, como é que vai poder contribuir melhor

de forma diferente”.

Imagino que por ser uma área bastante dinâmica, com tecnologias o tempo todo

nascendo, processos diferentes nascendo o tempo todo, eu acho que isso também

empurra você a ter essa preocupação.

“Sem dúvida nenhuma”.

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Clóvis – Executivo

Qual é a sua formação, como é a sua relação com a empresa, como é que você

chegou aqui?

“Eu sou graduado em Economia, com pós-graduações, mas nenhuma na área de TI. Eu

tenho pós na área de Marketing, Comércio Exterior, e a minha entrada na área de TI

veio um pouco porque meu pai já trabalhava nessa área. Eu nasci em 1972, em 81 eu

fiz o meu primeiro curso de programação, de programação em Base. Então eu fiz o

curso de Economia e comecei a trabalhar naquela época com meu pai, que tinha uma

empresa no Grupo Elógica. Ele era um dos sócios-fundadores, e eu fui estagiar lá. Fui

na verdade ajuda-lo durante um tempo, porque ele estava numa área nova da empresa e

precisava de alguém de confiança que pudesse levantar algumas coisas para ele,

algumas informações, e alguém que pudesse trabalhar fora do expediente. Depois eu

saí, fui trabalhar numa empresa de software, depois fui para o Rio Grande do Sul

trabalhar em uma fábrica, foi a época que ele já estava aposentado, já estava sem

trabalhar. E nessa empresa que eu trabalhava no Rio Grande do Sul, era um fabricante

de equipamentos, a gente tinha necessidade de ter um representante forte no Nordeste.

Então eu lembrei que meu pai sempre trabalhou em área comercial. Eu disse ‘pôxa, a

melhor pessoa que eu conheço é o meu pai’... a mesma coisa do passado! Aí chamei

meu pai, agente abriu a empresa junto com outras pessoas que trabalhavam com a

gente na época e a gente começou a trabalhar aqui no Recife fazendo a parte

comercial. Depois eu vim do Rio Grande do Sul e vim novamente trabalhar com ele

aqui. Hoje a gente tem uma empresa, eu e meu pai, e a gente representa e distribui

equipamentos de automação comercial.”

O seu trabalho é basicamente de representação comercial?

“Exatamente. Hoje a gente tem revendas no Norte e no Nordeste”.

Você tem então um trabalho executivo e de gerência?

“Exatamente, seria esse o perfil.”

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No seu dia-a-dia, no teu trâmite normal de trabalho, em termos de operação, o

que é mais problemático? O que você tem para resolver no dia-a-dia em termos

de operações mesmo... relação de custo, contato com o cliente?

“Não, o mais problemático para a gente, eu diria, seria o operacional da venda. A parte

comercial do sujeito aceitar o produto, concordar com custos, a parte de gerar tabelas

da fábrica, passando por a gente até chegar na revenda não é complicado, dá pra fazer

sem dificuldade. A parte mais difícil é o operacional na hora de fechar a venda.”

A negociação?

“Não, não a negociação. O fechamento da venda. Porque existe um procedimento, vai

chegar o pedido, o pedido assinado pelo cliente, vai chegar do revendedor pra gente, a

gente vai emitir a fatura, vai pro cliente o boleto bancário. Só que o tipo de cliente que

a gente tem é um cliente de baixíssimo nível de informação. Então muitas vezes ele

está acostumado com aquela coisa dele comprar e o vendedor ir receber o dinheiro lá,

ou ele comprar e na hora de pagar dizer ‘eu não vou pagar esse preço não, eu vou

pagar menos’...

E o que é a solução para isso?

“A solução pra isso é treinamento melhor para as equipes comerciais. Porque aí ela vai

conseguir seguir uma linha. Outro problema eu diria que também vem da falta de

conhecimento desse tipo de cliente, ele não ter um ambiente técnico adequado. Então

ele compra equipamentos que são de tecnologia para colocar em um pequeno

supermercado no subúrbio, um mercado lá de 4, 5 equipamentos, um check-out, como

a gente chama. Então o cliente tem lá 4 ou 5 chek-outs e está comprando equipamentos

de tecnologia, está comprando leitores laser, ta comprando microcomputadores, está

instalando programas, comprou um servidor, está instalando impressoras fiscais, mas

ele não aceita por exemplo fazer um aterramento adequado. Então é muito às vezes

difícil pro pessoal do comercial e até de área técnica que vai atender conseguir passar

para o cliente que ele precisa ter um ambiente adequado. Na verdade os dois problemas

vêm da falta de informação. E eu só consigo vislumbrar que a solução seria um melhor

treinamento para que na hora do fechamento do negócio as duas pontas ficassem

esclarecidas”.

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E a concorrência é uma ameaça?

“Também, com certeza. Até porque quando eu comecei a trabalhar na área, há uns dez

anos atrás, a gente tinha basicamente meia dúzia de concorrentes. Hoje a gente tem

mais de 70. Então é um volume de gente aí no mercado trabalhando que é absurdo.”

E quais são as alternativas que você tem para trabalhar com isso?

“Diversificar. A gente diversifica porque aí diminui os riscos. Como no mercado da

gente a gente não tem tantas possibilidades de diversificar, a gente diversifica em

áreas correlatas. Por exemplo, a gente aqui trabalha com automação. A gente

trabalhava com uma marca que foi agregada a outra e a gente está trabalhando com

essas duas marcas agora que funcionam como uma. O que foi bom porque a gente

agora tem um leque de produtos muito mais amplos. Então já houve uma

diversificação. Se a gente não consegue trabalhar dentro do mercado da gente pegando

outras marcas, até por uma questão de interesse mesmo, porque existem outras marcas

que já procuraram a gente e a gente não manifestou interesse. São duas marcas com o

mesmo preço, mesmo mercado. Eu vou concorrer com as duas? Eu não vou conseguir

fazer meu trabalho nem com A nem com B. Então deixa pra outro vender e ele é meu

concorrente. Questão de estratégia. Então eu diversifico em coisas próximas. Por

exemplo, a gente fez uma parceria com uma empresa dos EUA e a gente está

começando a representar alguns produtos de, vamos dizer assim, daqueles que vendem

em lojinhas de informática.”

Você tem uma noção mais ou menos clara de mais ou menos quanto tempo você

trabalha durante a semana, em termos de hora.

“Eu hoje não daqueles workaholics mais não, mas já fui há uns oito, nove anos.”

E o que foi que mudou? Porque mudar?

“Foi a necessidade de ver que eu tava... Eu tinha uma vida que eu praticava muitos

esportes, uma série de coisas em um momento da minha vida, e depois que eu entrei na

faculdade eu fui trabalhar... Eu trabalhava várias horas por dia, perdia minhas cadeiras

na faculdade... Quando não estava trabalhando ou estudando para a faculdade, eu

estava tomando cerveja. Terminei a faculdade e fui fazer uma pós-graduação, aí eu

estudava à noite, trabalhando o dia todo, viajando muito. Aí hoje, o que é que eu faço

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hoje por exemplo? Hoje eu tenho uma vantagem. Hoje eu posso tomar decisões e...

nenhum problema. Posso sair mais cedo. Claro, às vezes não dá. Às vezes você marca

alguma coisa em outra hora. Mas hoje eu posso. Se eu tivesse em outra situação que eu

estava no passado eu não podia. Mas hoje eu posso e eu faço isso. O que é que eu

faço? Eu vou pra casa. Digamos que eu precise de uma planilha pra fazer em casa...

não faz mal, eu mando pra casa e em casa eu faço.”

Nessa época quando você trabalhava demais, você trabalhava em geral quanto

tempo?

“Chegava na empresa 8h, almoçava lá, e ficava ata no mínimo 8h, 9h. teve uma época

que eu me lembro, em 98, a gente teve lá uma Certificação ISO, eu me lembro que eu

trabalhei de um dia para o outro todo, e trabalhei o outro dia todo, aí não agüentei e

dormi um pouco lá mesmo. Aí trabalhei o outro dia todo e quando era uma 4h da

manhã eu fui pra casa. Aí dormi um pouco e umas 9h eu estava de volta na empresa.

Aí trabalhei o outro todo, que era a sexta – foi quarta, quinta e sexta – e na sexta foi o

casamento do meu primo, que eu fui padrinho. Eu fui para o casamento, saí da empresa

direto para o casamento. Era padrinho e eu cheguei atrasado. Aí passou o casamento e

eu dormi no sábado. Então eu trabalhei no sábado, trabalhei no domingo, na segunda

foi a certificação. Quando o cara chegou pra certificar a gente, eu recebi o cara, a gente

foi certificado, foram dois dias de auditoria. Mas quando terminou o primeiro dia eu

saí de lá pra ir pra um dermatologista porque eu não sabia o que era, eu estava com a

pele toda manchada. E o dermatologista disse: “Você não tem nada na pele não, é

estresse. Faz quanto tempo que você não dorme?” Eu pesava... meu peso normal que

eu to hoje é 74 quilos, e cheguei a pesar 58 quilos”.

E fazer essa mudança desse sistema de workaholic para uma regime mais

tranqüilo... o que é que te ajudou?

“Atividade física, com certeza. Comprei equipamento de ginástica, botei em casa. E

passei a acordar super cedo, fazer exercício...”

Mas a atividade física serviu para você ter essa desconexão do trabalho?

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“Eu diria que ela me fez voltar a ter uma vida mais saudável, e isso incluía não

enlouquecer no trabalho. Todos os dias, mesmo quando eu estou sem tempo e não

estou matriculado em uma academia eu faço pelo menos 40 minutos de exercício todos

os dias. Mesmo que seja qualquer coisa, nem que seja ficar pedalando dentro de casa

assistindo televisão. Nessa época, eu me lembro bem, foi que eu disse: ‘eu preciso

fazer três coisas todo dia para poder manter minha sanidade física e mental’. Eu

preciso estudar todo dia, então todo dia eu leio, qualquer coisa, mas todo dia eu leio.

Se eu não tiver nada pra ler eu leio a Bíblia, que é uma coisa que eu não leio como

história, eu abro e leio em qualquer trecho quando eu não estou lendo nenhum livro.

Todo dia eu faço pelo menos 40 minutos de exercício e todo dia eu rezo. E aí eu

mantenho meu corpo, minha cabeça e meu espírito normais, sem nenhum exagero.”

Qual o reflexo disso no trabalho?

“Eu não tenho mais aqueles estresses. Eu vivia com azia, com gastrite, e quase não

tenho mais. Eu sei que todo mundo somatiza de algum jeito, e no meu caso é o

seguinte: se eu tiver um problema, eu na hora, basta estar conversando aqui com você,

ficar estressado, ficar preocupado, eu já começo a ter azia, muita azia. Isso eu não

tenho mais há alguns anos. Eu andava na minha pasta de trabalho, na minha gaveta de

trabalho eu tinha pastilha para azia.”

Essa mudança, esse efeito no trabalho fez você pensar sobre o trabalho, sobre o

trabalho na sua vida, sobre saúde?

“Com certeza. Até 98 a minha idéia era ficar milionário. Hoje não, eu não tenho mais

essa visão. Eu quero ficar milionário e viver. Não se isso foi no meu primeiro trabalho,

mas acredito que não. Claro que tem estresse. Tem que pagar conta no final do mês,

tem que pagar aluguel. Mas de 98 pra cá eu não vou morrer mais pelo trabalho. Vou

trabalhar sério, se precisar trabalhar mais uma noite, claro.... Mas você estar

trabalhando todo dia até 8h, 9h, 10h, todo sábado você estar indo trabalhar, o que a

princípio não estava no cronograma, é porque alguma desorganização está havendo no

seu trabalho.”

Você diria que o trabalho já foi o centro da sua vida e isso mudou, saiu do eixo

central?

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“Com certeza.”

O setor de vocês é muito competitivo...

“Tem muito a ver com aquilo que eu falei antes. É o seguinte: eu não vou mais

trabalhar, espero, feito louco, morrer de trabalhar. Se precisar eu vou, ou seja, você não

perde a combatividade. Tem um negócio interessante que pode ser trazido para a vida

porque o samurai entre escolher viver e morrer, ele escolheria morrer. Mas e aí você

diz: “E o samurai queria morrer?”. Não, não é isso, é que quando ele ia para a luta, se

ele fosse com medo de morrer era melhor não ir, ele já tinha perdido a batalha. Ele

tinha que ir livre, morrendo ou vivendo, ao final ele ter feito o melhor. No negócio é

assim também e esse conhecimento eu retirei do Niten, a arte da guerra dos samurais,

que eu prático há três anos.

Você percebeu essa proximidade logo ou demorou um pouco?

“Todo mundo já leu, todo mundo já conhece A Arte da Guerra, de Sun Tzu, embora

muita gente não entenda direito, porque quando você lê um livro desses, tem que ter

algum conhecimento do ambiente onde ele foi escrito. Se você vai ler um livro e não

sabe o contexto de como ele foi escrito você não vai entender os porquês da coisa. É a

mesma coisa de dizer que o samurai, entre a vida e a morte, escolheria a morte. Mas o

cara só queria morrer? Não, o cara estava desapegado do problema de vir a morrer.

Então ele podia enfrentar aquilo com uma confiança muito maior, com uma confiança

para pensar sem se apavorar, sem ser levado pelo estresse. Porque se você está

estressado – adrenalina você vai ter de qualquer jeito, não adianta – mas é você saber

usar aquela adrenalina para uma coisa correta, para você fazer bem feito. E não

simplesmente para se tremer nas bases, para fazer xixi na calça, para chorar na frente

do cliente porque precisa vender. É para fazer a coisa como deve ser feita. Então eu já

conhecia o Niten, e eles montaram um workshop aqui. O Niten tem uma coisa

interessante. O nível da gente começou a melhorar um pouco, existe um Kempai mais

graduado – o Kempai é o instrutor da gente, que significa o que veio primeiro, o mais

experiente. Então a gente precisava de um Kempai mais experiente, até para outras

coisas que o pessoal de Maceió ainda não está habilitado, e aí começou a vir um

Kempai de Fortaleza. O que é interessante é que todos esses caras têm a sua profissão.

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Chicão é marceneiro e vive disso, Fábio tem uma locadora, o rapaz que vem de

Fortaleza tem uma empresa que distribui Ypióca.”

A identificação do Niten com o trabalho foi imediata?

“Eu já via, não só no que a gente faz hoje, mas também na filosofia, muita coisa que

podia ser usada na vida profissional. A coisa de você estar preparado, por exemplo.

Você trabalha, mas você não conhece com o que você trabalha. Então a qualquer

momento pode surgir um cliente e você não vai saber? É uma coisa de você estar

preparado, na guerra você tem que estar preparado. Eu já achava bem parecido, e eu

não procurei só pela coisa de trocar a tapa lá no meio do campeonato não.“

Foi por uma questão existencial?

“Eu não diria existencial, porque eu já tenho uma religião.

Há mais relação entre o trabalho e o Niten?

“Tentamos atingir um nível que os budistas chamam de satori, que é um nível de

iluminação tal que os artistas marciais dizem que é o movimento da arte sem arte, onde

você não executa o movimento, seja com a mão, seja com a espada, seja com outra

arma marcial. Você atinge o satori quando a oportunidade rege o movimento, sem

racionalização, você faz. Piloto de Fórmula 1 ele não pensa, ele já exercitou tanto

aquilo. Eu conheci um executivo da empresa que eu trabalhava em Porto Alegre, o

cara ganhava R$ 70 mil por mês. No final do ano de 2000, ele ganhou de bônus R$

700 mil, aí todo mundo disse que era um absurdo. Não é absurdo não, a gente passava

uma semana fazendo uma planilha pra apresentar a ele sobre vendas, perspectivas... o

cara sentava, abria o laptop, ficava olhando, e num reunião de 30 minutos ele tirava

conclusões que a gente não chegou a ter. Uma equipe de três caras trabalhando uma

semana, 15 dias num negócio, e ele abria o laptop, montava uma apresentação, e

enquanto falava no celular ele montava uma outra planilha, transferia para a gente e ia

embora. Esse cara atingiu na profissão dele um ponto de iluminação tal que ele

consegue ver as coisas que os outros não conseguem, consegue fazer o que os outros

não fazem. Isso é uma coisa natural do ser humano e os artistas marciais não

sobrevivem só de trocar tapas. O cara que procura aquilo com um sentido mais

profundo vai entendendo isso com o tempo. Aristóteles diz que nós nos transformamos

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naquilo que praticamos com freqüência. A perfeição, portanto, não é um ato isolado, é

um hábito.

Isso vale para os negócios também?

“Claro”

Essa questão da humildade, como é que é isso?

“No Niten, todo mundo é aluno, só tem um professor que é o sensei. Os mais

graduados são os sempais e os menos graduados devem respeito aos mais velhos. Eu

sou o primeiro aluno, então por uma questão de poucos dias, que na verdade eu não

tive nenhum treino, eles mais ou menos me devem respeito. Quando a gente chega

numa academia de arte marcial, tem que o ambiente estar limpo e tudo organizado. Eu

cheguei, eu pago, eu sou cliente. Aqui não, a gente chega no local que a gente alugou,

a gente paga mensalidade para treinar e a gente limpa. E mesmo eu limpo. Então o que

é ensinado? Eu chego antes de todo mundo. Eu não sou o mais antigo e eles não me

devem respeito? Eles me respeitam porque? Porque eu sou o que mais serve a eles.

Então o que é samurai? Samurai traduzindo é aquele que serve. É o serviçal, o objetivo

é servir. Eu faço até uma comparação engraçada com o próprio Jesus Cristo, é uma

associação que eu faço e não tem nada a ver com o que a gente lê. O cara veio aqui, o

cara filho de Deus - para quem acredita, para quem é religioso – na questão puramente

política, ele era filho de José e Maria, esquecendo a questão do Espírito Santo, e Maria

era descendente direta da casa de Davi. Então José era de outra casa também poderosa.

Então na verdade o próprio Jesus poderia brigar pelo trono como rei na terra, porque

ele era de família nobre. Então o cara estava dos dois lados. Então o que foi que ele

fez? Ele veio para servir. E ele dizia que quanto mais ele serviu, e ele morreu servindo,

mais respeito ele teve. Tanto é que faz dois mil anos e até o tempo a gente conta pro

lado daquele cara. Assim, Jesus teve uma importância monstruosa na formação do que

a gente é hoje como mundo. Ninguém pode negar, você pode ser cristão ou não, pode

ter outra religião ou nenhum. Não importa. No mundo ocidental principalmente, a

gente vive sob o cara há dois mil anos falou.”

Como é que todas essas influências aí elas colaboram junto à empresa, a médio e

longo prazo, à tua capacitação?

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“Ajuda em dois sentidos. A princípio eu não precisaria estar fazendo curso nenhum.

Até um amigo meu diz: “Porque tu não vais dar aula, faz um mestrado e vai dar aula?”.

Hoje eu não faço porque ia tomar muito tempo, Mas eu penso em fazer um mestrado.

Pra quê? Pra estar preparado. E ao mesmo tempo é necessário eu ser desapegado. Isso

também é dado porque eu tenho uma base religiosa.

Aí você começa a não ter tanto desespero, a não ter tanto medo do futuro? Porque

você está o tempo todo fortalecendo esse alicerce de pedra...

“Exatamente. Porque você sabe que você está preparado. Você está sempre estudando,

você está fazendo o bem, não está arranjando inimigos. Como é que as portas vão estar

fechadas para você? Você está preparado, estudando, fazendo amigos.

Você já teve que se defender usando técnica do Niten?

“Já, até porque isso é humano, a gente perde a paciência também. Muitas vezes você

faz a coisa até pro cara entender também. A gente é, antes de ser humano, animal. A

gente tem instinto.

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Ulisses – Executivo

Qual é sua formação e o que você faz na empresa em que atua?

Sou formado desde 1994 em Ciência da Computação pela Universidade federal de

Pernambuco, onde fiz mestrado e agora finalizo doutorado. Atualmente sou professor

na Universidade Federal de Sergipe. Sou um dos três sócios de uma empresa de

segurança da informação, e também somos uma fábrica de software porque

desenvolvemos soluções para essa área.

Seu trabalho precisa ser realizado na sede da empresa?

Eu não gosto do ambiente de trabalho de Tecnologia da Informação e Comunicação.

Você não pode fumar, há muita dispersão e além disso eu sou um cara com 43 anos de

idade. A faixa etária das pessoas é bem abaixo e por isso eu prefiro trabalhar em casa.

O perfil dos meus sócios é completamente diferente do meu. Nós combinamos do

ponto de vista técnicos, de conhecimento e só. Não precisamos mais que isso. E na

maioria das vezes a troca presencial é desnecesária.

Quais as formas que você utiliza para atualizar as informações das quais você

necessita para o trabalho diário?

Uso o email e fóruns de discussão. Mas de uma forma geral, há alguém para fazer o

trabalho sujo de estar antenado com essas pequenas alterações e novidades técnicas. Eu

recebo espécies de boletins preparados pelos analistas de sistemas da empresa. Eu não

gosto da rede, ela de certa forma cegou muitos dos profissionais que trabalham com

tecnologia da informação. Concretamente, ela deveria ser encarada com um

instrumento de trabalho e não mais que isso. Mas o depósito de confiança que se dá às

informações contidas nela é fora do comum e muito perigoso. De qualquer forma, eu

também participo de conferências e seminários de forma institucional.

Você possui algum hobby ou atividade que te ajude a desvincular do trabalho?

Não sei se é um hobby. Eu estudo estratégias militares que foram esenvolvidas ao

longo da história pelas muitas civilizações que já existiram no Ocidente e no Oriente. É

uma grande curiosidade minha entender e quando possível aplicar pressupostos básicos

de guerra ao meu trabalho, porque minha atividade é de confronto e proteção de dados.

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Então a linguagem do enfrentamento, as táticas e manobras verificadas nos campos de

batalha possuem, todas elas, seus respectivos correspondentes no mundo da guerra da

informação em que minha empresa atua.Você me perguntou por uma atividade que

permita eu me desligar do trabalho. Bem, o estudo de táticas de guerra me ajuda nisso,

mas também está relacionada ao meu trabalho de uma forma inevitável. A associação é

muito forte.

Você se sente então uma espécie de soldado?

De certa forma sim. O que é um soldado? É um sujeito que tem um gene que lhe

permite certas atitudes drásticas de defesa e de ataque, de enfrentamento e utilização

do que está disponível materialmente para a defesa e se possível para uma ofensiva.

Portar uma pistola, saber armá-la e desarmá-la no escuro não faz de ninguém um

soldado. Você precisa ter aquilo dentro de você. O soldado é capaz de dasarmar seu

oponente, ou descobrir sua vulnerabilidade e atacá-lo por meio de sua fraqueza até

imobilizá-lo ou destruí-lo. Estar de posse de uma baioneta não faz de ninguém um

guerreiro. Montar e desmontar uma arma não faz de ninguém um franco atirador

Qual a associação disso com o seu trabalho na área de segurança da informação.

É total. Minha empresa trabalha para outras empresas e instituições protegendo dados

sigilosos. Funcionamos na expectativa de invasões ou de ações maliciosas que

procurem roubar essas informações. Nosso trabalho é proteger e se possível, detectada

uma invasão, um ataque, seguir a pista do invasor e destruir sua máquina, identificar

sua identidade e procurar formas de punir essa pessoa ou pessoas do ponto de vista

legal.

Que recursos vocês usam?

São recursos técnicos que podem ser associados a instrumentos de batalha reais. Da

mesma forma, os invasores usam recursos técnicos e procedimentos de confronto. Para

a defesa efetiva, também é necessário ter o que eu chamo de gene da guerra e se

entregar ao enfrentamento. Mas as ferramentas sozinhas não garantem a segurança de

ninguém. Nem fazem de um sujeito ou de muitos sujeitos reunidos um exército

vencedor. Essa é a razão pela qual um exército como o dos Estados Unidos nunca vai

conseguir debelar os revoltosos no Iraque.

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Esse conhecimento e esse relacionamento entre segurança de dados e estratégias

de guerra te ajuda a interpretar as ações das pessoas?

Bem esse conhecimento, não somente sobre estratégias de batalha, envolve também a

história da Guerra. E parece que a origem dos confrontos é sempre a fraqueza das

pessoas, das personalidades, a sede de conquista e de poder, a fraqueza nesse sentido,

de se deixar seduzir. O mesmo tipo de desafio que move um indivíduo interessado em

roubar senhas de cartão de crédito movia os piratas ou mercenários que atacavam

cidade sitiadas na Ásia e mesmo na Europa, deflagrando guerras e conflitos entre

reinos vizinhos.

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Teodoro - Executivo

O que você faz na empresa em que atua hoje? Como chegou aqui e como foi sua

experiência trabalhando fora do Estado de Pernambuco?

“Eu sou formado pela Universidade Federal de Pernambuco em Eletrônica. Eu

praticamente me formei e me mudei para o Rio Grande do Sul. Então meu crescimento

profissional foi todo no Rio Grande do Sul, onde fiquei 12 anos. Aqui eu tinha

trabalhado na Philips como engenheiro de desenvolvimento de hardware e fui para o

Rio Grande do Sul para ser engenheiro de sistemas de telefone. Em Porto Alegre eu

passei a ser executivo da Alcatel. Trabalhei na Alcatel para a Região Sul inteira, de

Santa Catarina ao Rio Grande do Sul e depois, com a chegada da Telefônica de

Espanha, os projetos começaram a minguar e eu passei a ser consultor das bandas B, C

e D. No meio desse trabalho eu fui convidado a vir para Pernambuco. Voltei para o

Recife para trabalhar com Informática, quando em toda a minha vida eu tinha

trabalhado com telefone. Naquele momento, a empresa tinha somente um cliente

grande aqui, que era o Bompreço, e um cliente grande em Brasília, que era o NCT.

Então fizemos um trabalho de pesquisa nacional, desenvolvemos uma network,

trabalhamos em São Paulo fortemente. Dois anos depois começou a aparecer contrato

com a Nortel, Alcatel, BCP, Motorola, e outros acontecendo em paralelo. Então hoje a

empresa presta serviço para a Motorola, LG, Nokia. Fora na área de tecnologia, como

Sun, HP e muito mais. No final do ano passado, eu passei a cuidar da parte de

Estratégia de Incubação e da área nova de Negócios Internacionais da empresa. Depois

de um certo tempo a tendência era essa mesmo, então eu consegui ocupar os dois

postos, até que passei a ficar somente com Negócios Internacionais. Começamos a

trabalhar com a Apex e eu também recebia diversos convites, em vários momentos.

Hoje, sou o principal executivo de uma nova empresa incubada do C.E.S.A.R.. Agora

vou colocar à prova meus conceitos. Trabalhei de um lado, agora vou para o outro

lado.

Como é o nome da nova empresa?

“AI Leader. Mexe com redes neurais e com reconhecimento padrão. Então eu estou na

AI Leader e acumulando também a coordenação do projeto de exportação do Porto

Digital. Essas são as minhas duas atribuições.“

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É uma mudança radical... Como é que, na tua carreira, como é que você faz para

separar o que é trabalho e o que não pode ser considerado trabalho, tipo família,

hobby, atividade física, cinema?

“Aí é uma questão de opção de vida. Desde cedo eu fiz a opção do trabalho ser minha

prioridade. O que eu tento fazer o seguinte: tento dar todas as condições, possíveis e

impossíveis, para minha família consiga viver independente de mim em alguns

aspectos. Com certeza, o dia-a-dia do trabalho atrapalha se você quiser ter uma vida

paralela, seja atividade física, seja de entretenimento. O que eu tento fazer é conciliar

uma coisa com a outra, para que meu trabalho também seja prazeroso. Eu não trabalho

porque tenho que trabalhar – trabalho porque gosto. Tem o cansaço físico, porque você

ter uma jornada de 12, 14, 15 horas cansa fisicamente. Mas eu tento de alguma forma

conciliar isso com o ritmo da família. Sou bastante franco em dizer que já me

sacrifiquei muito. Eu não sei o que é férias há uns 10 anos. No ano passado, fui

forçado a tirar umas férias acumuladas, mas mesmo assim continuei muito ligado no

trabalho. Meu trabalho está presente o tempo todo. Não digo que sou workaholic, pois

isso pode soar pejorativo. Mas eu procuro estar up to date com o que eu faço. Eu leio

bastante, minha casa é toda wi-fi, meu palm é wi-fi, meu notebook é wi-fi, estou o

tempo todo on-line (referência à tecnologia que permite conexão a internet sem o uso

de cabos ou fios). Então naturalmente estou trabalhando. Às vezes eu nem olho pra

caixa postal, porque se eu olho vou ter que fazer alguma coisa.”

Quanto tempo você trabalha, você tem idéia de uma média de horas trabalhadas?

“Eu nunca fiz essa média, mas eu acho também que tem fases. Eu estava terminando

minha pós-graduação há um tempo atrás que me tomou muito tempo, mas até há um

ano e meio atrás eu vinha num ritmo de ter uma atividade física às 5h30 da manhã – eu

corria. Eu chego na empresa às 7h30 da manhã, isso é padrão. E nunca saio antes das

7h30 ou 8h da noite. Uma média de 12 horas. Essa é minha média fixa, agora no final

de semana eu também trabalho.”

E você ainda trabalha em casa?

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“Trabalho porque tem o notebook. Coloca aí no fim de semana, por baixo, umas quatro

horas em cada dia. Agora por exemplo, para entregar minha monografia, eu virei

muitas noites. Eu acho que a gente pode falar numa média de 13 ou 14 horas todo dia.”

Você falou que é um profissional que está o tempo todo conectado, ou seja, você

está se utilizando de uma estrutura tecnológica que te permite realizar o teu

trabalho e ter contato com o mundo de negócios. Você tem noção de que em que

medida essa estrutura impede que você tenha contato com o mundo?

“Não, acho que é o contrário. Eu tenho contato a todo instante. E é aí que eu partilho

de umas idéias malucas de Sílvio Meira. Uma delas, acho que vem de Einstein, onde

ele diz o seguinte: você não pode fazer algo diferente se ficar fazendo o mesmo que as

outras pessoas fazem. Pela internet, você começa a ter uma outra visão do mundo, que

não é a visão que vem via Jornal Nacional. Eu assisto o Jornal Nacional também, mas

procuro fazer acima da média, acho muito bobo TV aberta. Eu assisto TNT, People &

Arts, Globo News, que é onde eu pego as informações. Normalmente também eu estou

plugado pegando uma coisa ou outra. Eu estou conectado ao mundo, muito mais do

que estava antes. Chega ao ponto de eu não sentir falta de ir ao cinema ou a algum

outro lugar.”

Essa estrutura ajuda a resolver o seu trabalho, a tua vida vem se modificando?

“Vem se modificando, sim. Eu sou formado em engenharia eletrônica e sempre gostei

do que faço, apesar daquela coisa de entrada e saída, de bater ponto. Eu gostava do que

fazia, mas não gostava de como fazia. Sempre gostei do que faço e queria ter

liberdade, de ter hora de trabalhar, de se divertir. Isso cria um conceito de que trabalhar

um dia, outro não, pode ser muito prazeroso. Hoje em dia eu consegui entender que

não é bem assim. Essa estrutura me fez trabalhar muito mais e com mais prazer.”

O que fez isso mudar, foi a tecnologia ou foi um processo de trabalho?

“Foi um processo, porque tecnologia já tinha naquele tempo. Talvez tivesse muito

mais tecnologia na Philips do que quando eu fui trabalhar no Rio Grande do Sul. Na

Philips eu vi o primeiro PC AT, enquanto todo mundo só falava nos primeiros PCs na

Philips já havia um AT colorido, que a Philips mandava da Holanda pra gente. Então

eu acho que up to date era lá. Quando eu fui pro Sul eu comecei a entender que eu não

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dependia tanto de tecnologia para ter um melhor desempenho no meu trabalho. Vivi

várias circunstâncias. Inclusive no Sul eu vi várias pessoas, com dinheiro, morando em

cidades pequenas, de 5 mil habitantes, por opção. Já em Porto Alegre elas se julgavam

a partir do resultado do trabalho. Foi aí que eu passei a entender que necessariamente

eu não preciso depender da Informática para trabalhar, muito mais interessante é o

resultado final. Esse contexto eu entendi como sendo mais prazeroso de trabalhar.

Você pode descansar trabalhando, descansar estudando, mas eu separei muito essas

coisas. Quando eu passei a ser consultor no Sul, foi mais fácil ainda porque eu

trabalhava em casa. A grande história de você trabalhar em casa é você admitir que

acabou a hora de casa e começou a hora do trabalho. É uma questão de disciplina. E eu

passei a participar mais da vida do meu filho e do meu círculo social. Essa formação

me fez ver que dá para fazer as coisas de uma forma diferente. Quando eu vim para cá,

aí a questão era construir um conceito. Acabei tendo de trabalhar dobrado para

alavancar os negócios. Aqui, é diferente do Sul – tem a diferença do clima, as pessoas

lá são mais isoladas e mais frias nos relacionamentos -, mas aqui sempre dá para ir à

praia com a minha família, para o parque de diversões... Então é bom saber que a

família está bem e você vai trabalhar mais tranqüilamente. Hoje eu já cheguei em outro

estágio. Eu não me vejo, sinceramente, me divertindo menos e trabalhando mais que as

outras pessoas. Pode ser que a minha família reclame, mas eu não me vejo assim.

Essa mudança de paradigma que você percebeu lá no Sul foi aplicada em outras

realidades da tua vida? Houve uma transferência desse modo de trabalhar que

você viu funcionar bem lá do Sul, ou para o seu trabalho aqui, ou para outros

níveis de relacionamento, como família?

“Eu acho que trabalho para a sociedade. Todo mundo acha chato ser síndico de

condomínio, mas alguém tem que ser. Se não tiver ninguém, vai ser eu. Porque se eu

deixar alguém que não presta ser esse síndico, o problema vai ser meu no final, por que

vou ter que pagar por sua má administração. Isso eu comecei a fazer lá. Quando eu vim

pra cá, continuei pensando assim. Aqui eu não sou síndico do meu prédio, mas eu

participo de entidades de classe, sou chairman da Câmara Americana. Então tem uma

parte aí da sociedade em que eu trabalho, mas sou seletivo. Me envolvo com o que eu

acho que vale a pena. Não me envolvo com qualquer entidade de classe. E eu não entro

num negócio em que eu não me sinto útil. E eu termino fazendo parte do processo de

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discussão. Isso vai muito do meu procedimento, de gostar de estar no negócio e me

empenhar porque eu estou nele. E trabalho da melhor maneira que eu posso. Com

relação ao pessoal tento ser menos rígido. Sei que preciso espairecer até para poder ter

a cabeça mais arejada com relação a outras coisas. Acho que no pessoal não sei se eu

precisaria ter uma dedicação, acho que tem que acontecer naturalmente.”

Essa conexão praticamente integral que você tem com o trabalho, ou via Cesar

pessoalmente, ou via wi-fi em casa, ela te dá certeza das informações com as quais

você está lidando ou você tem sempre um pé atrás e vai atrás do mercado, de

análises de outras pessoas que trabalham com negócios?

“Eu sou muito crítico e nunca aceito a coisa como ela está escrita. Eu sempre

questiono, sempre paro para pensar se faz sentido. Eu leio sobre tudo mas faço um

filtro muito grande. Não sou daqueles que pegam as palavras de um e transformo em

minhas palavras. A mesma coisa com a internet. A internet é um mundo de

informações, mas você tem que saber filtrar. É uma armadilha e muitas vezes você cai

nessa armadilha. Mas se você tiver um pouquinho de consciência de que você tem que

ficar o tempo todo filtrando, acho que você não corre esse risco.“

O que estabelece o filtro? Que elementos você utiliza?

“Eu acho que é um processo cultural e de experiência. Tenho meus procedimentos,

minhas convicções, sou um cara muito chato nesse aspecto. Eu defendo o que acredito

até a última hora. Só mudo se você conseguir provar que eu estou errado. Nisso eu sou

radical. É uma questão de inteligência empresarial.”

Você aplica isso ao trabalho. E no lado pessoal?

“É a mesma coisa. É a forma de você adquirir conhecimento da sociedade. Você tem

que estar atento, estar muito ligado. Não sei se vou passar a vida toda sendo como sou,

mas eu percebo tudo. Tudo o que está à minha volta, tudo que estou fazendo, consigo

ter controle de muitas coisas ao mesmo tempo. Isso me dá muita informação. Eu tenho

que processar essa informação paralela, usar e concluir com as minhas impressões. É

isso que normalmente eu faço.”

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Essas informações que de que você tem convicção elas se sedimentam, pelo que

entendi, na sua experiência anterior de trabalho.

“Me referencio nela. Naquilo que eu tenho certeza, porque eu tenho experiência, isso

faz o processo imutável, que aquilo ali não tem jeito, por mais que me digam diferente,

são referências fortes, sim. Eu sempre me baseio nelas, não porque alguém falou – o

meu histórico mostra que é assim.”

Isso também serve para analisar o seu trabalho...

“Sou um cara muito coerente com o que eu falo. O fato de eu estar hoje CEO de uma

incubada me diz tudo. Eu era o segundo homem na hierarquia do C.E.S.A.R., podia

continuar no C.E.S.A.R, mas pedi para sair, para ir para essa incubada.

Foi uma escolha sua?

“Minha. Eu fui assediado para não sair, porque eu estava cuidando de uma área nova

do C.E.S.A.R, em fase de estruturação. Mas houve um convite, o momento era aquele,

eu vi que era a melhor hora e decidi ir. E isso pra mim está coerente com o próprio

modelo do C.E.S.A.R. O C.E.S.A.R é uma casa de passagem. Então eu entendi que

aquela era a minha hora. Não adianta eu ficar falando isso para os outros se a gente não

está praticando. Eu tento ser coerente com as coisas que acredito.”

Para onde caminha a tua profissão? Você trabalha gerenciando, você tem alguma

expectativa do que vai estar fazendo daqui a alguns anos?

“Eu trabalho gerenciando, mas nunca teve tempo ruim pra mim. Quando eu fui dono

de empreiteira no Rio Grande do Sul, eu era o cara de instalação. O negócio é você

gostar do que faz e fazer o que gosta. Eu tenho muita capacidade de me adaptar às

situações. Se precisa trocar, vamos trocar. Não tem esse negócio. Eu acho que assim é

que a gente consegue sobreviver. Se a gente tem tranqüilidade para coordenar, tudo

bem, senão a gente progride e faz também. Eu acho que eu vou ter que passar por um

processo onde vou ter que colocar a mão na massa muitas vezes, como já coloquei, eu

sei que isso faz parte da história. O que a gente tem que ter é consciência de pra onde a

gente está andando. Eu nunca entrei num negócio para não evoluir de alguma forma,

acho que nesse não vai ser diferente. Com relação ao futuro da minha vida

profissional, é um negócio complicado. Tive uma experiência quando eu trabalhava na

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Philips aqui – eu tinha um chefe que era muito namorador, eu já estava noivo da minha

esposa e ele me dizia para eu não me casar. Ele me falava o seguinte: já pensou quanto

a universidade já investiu em cima de você? Do outro lado o investimento tem que ser

do mesmo tamanho. Depois eu associei a outra coisa, extrapolei o jeito dele falar e

pensei – eu estudei numa universidade pública, paga com o dinheiro do povo. Se eu

estou sendo um privilegiado, por estar me formando numa sociedade onde pouca gente

se forma, pouca gente tem nível superior, eu tenho que de alguma forma devolver. Daí

quando eu voltei do Sul eu pensei em usar minha experiência de ter rodado o país

inteiro para ajudar nos processos daqui e de alguma forma devolver para a sociedade.

Acho que no C.E.S.A.R eu consegui fazer um pedacinho disso para um determinado

segmento da sociedade. Eu acho que se der tudo certinho daqui pra frente, eu queria

condições de trabalhar em ações mais sociais. Não para ser mentor, mas para trazer

conhecimento de negócios para esse pessoal. Acho que essa será a minha maior

contribuição. Agora, eu não me vejo de jeito nenhum parado. Não sei parar, não vou

parar. E acho que por mais que envelheça eu vou estar lá. Se tem uma coisa que gosto

é de ler, de estudar, trabalhar.”

Como é separar trabalho e família?

“Eu gosto muito do que faço, mas às vezes complica. Eu gosto de futebol, meu filho

gosta de jogar, minha filha é pequenininha e aí eu faço coisas mais livres, brincadeiras

mesmo. Minha esposa, que é gaúcha e descendente de italianos, gosta de música, está

sempre tocando. A gente vai pouco para bar, ficamos muito mais em casa.”

O que você faz para desligar do trabalho ou isso nunca acontece?

“Acontece muito pouco. Meu trabalho é prazeroso. Eu não desligo não é porque eu

tenho que ficar ligado, não. Eu fico porque gosto de estar ligado. Estou sempre atento

ao dia-a-dia. Mas eu sei que uma pessoa de fora percebe mais detalhes. Nós, no

Nordeste, saímos muito, gostamos de festa. Mas o sulista é mais caseiro. Tem o clima,

a cultura, a família. Mas nós saímos, minha esposa sai com amigas, meus filhos vão ao

teatro etc. Agora indo para a incubada eu acho que vou voltar a tocar numa banda. Eu

gosto de rock e blues. Música pode gerar negócio também, se é algo prazeroso. “

Então, é como se a música funcionasse como um fator novo?

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“Sim, principalmente porque usa o fator emocional. A música trabalha com outra

dimensão. Quando você está muito imerso num processo racional, perde muito a visão

lateral das coisas.“

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QUADROS COM TIPOLOGIAS

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