u1p8
TRANSCRIPT
-
8/18/2019 u1p8
1/99
Caderno de Atenção Domiciliar ― Volume 2
1.1 DIMENSÕES DA GESTÃO DO CUIDADO
Gerir o cuidado é prover ou disponibilizar tecnologias de Saúde de acordo com as necessidades de cada
pessoa ao longo da vida, visando ao seu bem-estar, segurança e autonomia para seguir com uma vida produtiva
e feliz. A gestão do cuidado em saúde apresenta diversas dimensões interdependentes, que operam com lógicas
diferentes e dependentes da ação ou do protagonismo de múltiplos atores (CECÍLIO, 2009).
Para discutir a gestão do cuidado na atenção domiciliar (AD), serão utilizadas as dimensões do cuidado
apresentadas por Cecílio (2009) no artigo “A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói: elementos para se pensar as
múltiplas dimensões da gestão do cuidado” e, a seguir, apresentados alguns arranjos e dispositivos úteis para
qualificar a gestão do cuidado no âmbito do SUS. Este artigo reflete as múltiplas dimensões da gestão do cuidado
em saúde (profissional, organizacional e sistêmica) que são complementares e não guardam relação de hierarquia
entre si.
A “dimensão profissional“ é considerada o “núcleo duro” da gestão do cuidado. É o momento do encontro
entre o trabalhador/equipe e o usuário, configurando-se um “espaço intercessor” (MERHY, 1998) entre aquelesque portam necessidades de saúde e os que se dispõem a cuidar. É um espaço de grande potência criativa,
atravessado por determinantes externos (organizações, crenças, formação etc.) que influenciam tanto as equipes
quanto os usuários, mas também marcado por importante grau de liberdade e responsabilidade na ação dos
trabalhadores. Três componentes determinam uma boa ou má gestão do cuidado na dimensão profissional:
[...] a postura ética do trabalhador, em particular como ele concebe esse “outro” (opaciente) que necessita de seus cuidados; a competência com que o trabalhador operao seu “núcleo” de saber, o que nos remete ao maior ou menor domínio técnico-científicopara buscar as melhores respostas para o problema apresentado pelo paciente; e acapacidade de criação de um bom vínculo profissional–paciente (CECÍLIO, 2009, p. 548).
A “dimensão organizacional” da gestão do cuidado seria o “círculo do meio”, institucionalizando as práticas
de saúde dentro da organização, embora na AD esse cuidado se desenvolva no espaço próprio do usuário, o
domicílio, sem a estrutura da instituição. Nessa dimensão, as relações de trabalho são mais complexas, com novos
atores e questões. A fragmentação das práticas pela divisão técnica do trabalho exige esforço de coordenar o
processo de trabalho (CECÍLIO, 2009).
Enquanto na “dimensão profissional” a gestão do cuidado é produzida em um espaço privativo
(trabalhadorusuário), na “dimensão organizacional”, o registro e o uso da informação, os espaços de diálogo, a
troca entre os trabalhadores, a organização do processo de trabalho e a divisão de responsabilidades demandam
outra lógica gerencial, com ênfase na dinâmica de relacionamento da equipe (CECÍLIO, 2009).
A “dimensão sistêmica” da gestão do cuidado refere-se à existência de serviços de Saúde com diferentes papéis
e incorporação tecnológica que produzem certo grau de comunicação entre eles para garantir a integralidade na
assistência. Essa dimensão é mediada por regras e normas, representadas por protocolos, sistemas de referência e
contrarreferência e centrais de regulação. Essa rede de cuidados deve ser objeto de gestão para garantir o acesso
dos usuários às tecnologias em Saúde necessárias. Essa dimensão pode ser discutida à luz do conceito de Redes
de Atenção à Saúde (RAS).
-
8/18/2019 u1p8
2/9
10
Ministério da Saúde
As três dimensões são interdependentes: o cuidado produzido na dimensão profissional influencia e é
influenciado pela dimensão organizacional. As decisões tomadas no encontro trabalhadorpaciente, como o
projeto terapêutico, relacionam-se com a forma pela qual os trabalhadores se organizam em equipe para seguir
o que foi definido. Da mesma forma, os protocolos assistenciais que pretendem normatizar o fluxo de pacientes
(dimensão sistêmica) ora influenciam, ora são ignorados ou adaptados pelas equipes (dimensão profissional).
Para complementar a compreensão dessas três dimensões, apresentaremos uma “situação-analisadora”
comum, mas fictícia, na realidade dos serviços de atenção domiciliar (SADs), no conjunto dos municípios.
SITUAÇÃO-ANALISADORA:
Dona M., 70 anos, diabética e hipertensa, é aposentada e mora com o marido (75 anos), com o filho mais novo,
sua nora e seu neto de 2 anos, na periferia de Recife, em uma área coberta pela Estratégia Saúde da Família (ESF).
Há dois anos, dona M. sofreu um AVC e ficou acamada. A Equipe de Saúde da Família (eSF) foi acionada pelo
agente comunitário de Saúde (ACS) e passou a acompanhá-la em seu domicílio, realizando visitas semanais.
Há cerca de uma semana, dona M. desenvolveu uma úlcera por pressão na região sacral, classificada comograu II, necessitando de maiores cuidados, como a renovação mais frequente de curativo e mais de uma visita
por semana.
As ações que se seguem serão pontuadas e comentadas utilizando as dimensões expostas acima:
a) A eSF, dessa forma, entrou em contato com a Equipe Multidiscipinar de Atenção Domiciliar (Emad) responsável
pela população da área na qual dona M. reside, solicitando avaliação da situação da paciente.
Aqui, é essencial, para responder à necessidade de saúde de dona M., realizar a interlocução da ESF com o SAD
municipal (duas equipes de uma mesma rede de atenção, mas de serviços diferentes). É a dimensão sistêmica da
gestão do cuidado.
b) A Emad agendou uma visita na qual foi realizada avaliação da situação de dona M. e, no dia seguinte, asduas equipes construíram um plano de cuidados, discutindo o projeto terapêutico singular (PTS), que envolviaacompanhamento e curativos diários. Nesse plano, ficou decidido que a enfermeira e um dos auxiliares deenfermagem da Emad assumiriam a realização dos curativos, que seriam realizados cinco vezes /semana naprimeira semana, mas também que a enfermeira da ESF acompanharia os profissionais da Emad, ao menos, umavez/semana. Além disso, ficou combinado que a evolução do quadro e o registro das ações realizadas seriamfeitos no prontuário da eSF de dona M. já existente, ficando uma via com a paciente, em seu domicílio.
Nesse processo, é fundamental que os trabalhadores que cuidarão de dona M. definam claramente o papel decada um e como serão realizadas as ações apontadas no PTS. Além disso, o uso do prontuário é uma ferramenta
de extrema importância para a gestão do cuidado. É a dimensão organizacional da gestão do cuidado.
c) Quando a enfermeira e o auxiliar de enfermagem da Emad realizaram a primeira visita, conversaram com
dona M. sobre sua rotina e o melhor horário para as próximas, sobre os cuidados necessários para cuidar da
ferida, evitar complicações e sobre a necessidade de identificar um cuidador responsável por ajudá-la e ser
referência para a equipe de Saúde. Dessa forma, ficou combinado que sua nora C. seria a cuidadora e que não
seriam necessárias visitas diárias, pois C. estava finalizando o curso de técnico de Enfermagem e poderia ajudar
a trocar os curativos e a realizar os cuidados necessários.
-
8/18/2019 u1p8
3/9
11
Caderno de Atenção Domiciliar ― Volume 2
Nesse espaço de diálogo entre profissional de Saúde e usuário, no qual se reconhecem as singularidades,
são discutidas e pactuadas as ações e/ou procedimentos a serem realizados, a conduta terapêutica e construído
o vínculo fundamental para o sucesso do processo de cuidado. A forma como esse encontro se dá depende da
postura ética do profissional, do seu conhecimento técnico e de sua capacidade de criar vínculo, bem como das
crenças, saberes e desejos do usuário. É a dimensão profissional da gestão do cuidado.
As três dimensões são fundamentais para gerir o cuidado e ganham destaque na atenção domiciliar, por ser uma
modalidade de cuidado transversal realizada na casa, onde o usuário goza de grande autonomia e que impõe, à
equipe de Saúde, um olhar e um agir ampliados (clínica ampliada) para garantir a integralidade do cuidado.
1.2 ELEMENTOS FUNDAMENTAIS PARA A GESTÃO DO CUIDADONA AD
É muito comum no cotidiano das equipes de Saúde que trabalham no SUS, em especial na atenção domiciliar,
deparar-se com situações complexas, seja pelas características clínicas dos pacientes (multipatologia, polifarmácia,
patologias avançadas etc.), seja pelas condições socioeconômicas em que se encontram.
Essa característica do trabalho em saúde das equipes de AD somada ao fato de que o seu contato com o
paciente não se dá em estabelecimentos de Saúde, e sim no domicílio, impondo, necessariamente, um cuidado
em rede, impõem o desenvolvimento de saberes e habilidades para facilitar o provimento e a disponibilização de
tecnologias de Saúde de acordo com as necessidades dos pacientes, isto é, de gerir o cuidado realizado.
Mesmo estando claro que as equipes de Saúde, isoladamente, não detêm todas as condições para garantir o
acesso do paciente a tecnologias de Saúde, necessitando de recursos e tomadas de decisões inscritos na esfera
da gestão do SUS ou até em outros pontos de atenção da rede, ressalta-se a potencialidade delas em facilitar esse
acesso pelo desenvolvimento da capacidade de gerir o cuidado e operando como um “facilitador”, por meio doestabelecimento de formas diferentes de organização do processo de trabalho e uso de ferramentas/tecnologias.
A seguir, serão discutidos conceitos/ferramentas/dispositivos bastante úteis para a gestão do cuidado no
processo de trabalho das equipes de AD.
1.2.1 Acolhimento
Acolher é dar acolhida, admitir, aceitar, dar ouvidos, dar crédito, agasalhar, receber, atender, admitir (MICHAELIS,
2009). O acolhimento expressa uma ação de aproximação, um “estar com” e um “estar perto de”, ou seja, uma
atitude de inclusão, de estar em relação com algo ou alguém. É uma tecnologia leve, de uso das equipes na suarelação com o usuário e que se propõe a inverter a lógica de organização e funcionamento do serviço de Saúde,
partindo dos seguintes princípios: garantir acessibilidade universal, reorganizar o processo de trabalho com base
em uma equipe multiprofissional e qualificar a relação trabalhadorusuário (FRANCO; BUENO; MERHY, 1999).
Trata-se de uma diretriz ética, estética e política da Política Nacional de Humanização do SUS (BRASIL, 2009).
Ética, no compromisso com o outro, na atitude de acolhê-lo em suas diferenças, suas dores, suas alegrias, seus
modos de viver, sentir e estar na vida. Estética porque traz estratégias de dignificação da vida e do viver para
-
8/18/2019 u1p8
4/9
12
Ministério da Saúde
as relações e, assim, para a construção de nossa própria humanidade. Política porque implica o compromisso
coletivo de se envolver nesse “estar com”, potencializando protagonismos e vida nos diferentes encontros.
No campo da Saúde, o termo acolhimento é identificado como uma dimensão espacial, uma recepção formal
com ambiente confortável, mas também uma ação de organização administrativa e repasse de encaminhamentos
para serviços especializados. Há três formas de defini-lo: enquanto postura – a postura acolhedora da equipe;enquanto processo de trabalho – diretriz reorganizadora do processo de trabalho; e enquanto ferramenta –
instrumento para promover o vínculo, acessibilidade, universalidade e humanização em um espaço de recepção
para a escuta qualificada (SAVASSI, 2011).
Quando isoladas dos processos de trabalho em saúde, essas definições se restringem a uma ação pontual e
descomprometida com a responsabilização e o vínculo. Nessa definição restrita de acolhimento, muitos serviços
de Saúde convivem com filas na porta e com a insatisfação dos usuários. É necessário que outras técnicas e
saberes sejam incorporados por todos os profissionais das equipes de Saúde. O acolhimento só tem sentido se o
entendermos como uma passagem para os processos de produção de saúde.
Na AD, o acolhimento como postura da equipe faz mais sentido, afinal, trata-se de um âmbito que percebe ador e o sofrimento em todas as suas facetas, com o conhecimento do espaço de vida do usuário. Entender essa
postura como forma de promover a escuta das necessidades da pessoa e de seus familiares torna o processo de
trabalho/cuidado mais humano na medida em que centra seu foco nessas pessoas (ROA et al., 2009). Da mesma
maneira, o acolhimento-processo aponta para a reorganização do processo de trabalho da equipe como forma
de recepção dessas necessidades de saúde, considerando o binômio pacientecuidador.
A dimensão do acolhimento como ferramenta do acesso, embora mais ligada ao processo de trabalho em
atenção primária (FRANCO; BUENO; MERHY; 1999), encontra eco na AD: trata-se de receber as demandas de
cuidados domiciliares e tentar, a partir da escuta qualificada, oferecer a melhor resposta possível para cada caso
que se apresente ao serviço, criando compromisso com o acesso entre as ESF/Nasf, Emad/Emap, e realizando,
sempre que possível, as “pontes” necessárias na Rede de Atenção à Saúde (RAS).
1.2.2 Clínica Ampliada
A clínica ampliada representa também compromisso ético e intenso com o sujeito doente visto de modo
singular. Pauta-se por assumir a responsabilidade sobre os usuários dos serviços de Saúde, buscando a
intersetorialidade para ajudar a solucionar problemas, a minimizar a injustiça social e a reconhecer os limites do
conhecimento dos profissionais de Saúde e das tecnologias aplicadas (BRASIL, 2004).
O profissional de Saúde deve desenvolver a competência de ajudar as pessoas com foco na qualidade da vida,
especialmente na AD, em que o resultado depende da participação do sujeito e da sua capacidade de “inventar-
se”, apesar da doença. A escuta qualificada ajuda a pessoa e a família a entenderem a doença, relacionando-a com
a vida para evitar atitudes passivas diante do tratamento, responsabilizando-as e ampliando as possibilidades
clínicas do profissional (BRASIL, 2004).
Vínculo e afeto também são importantes, pois profissionais e usuários transferem afeto. Com a consciência
desses fluxos, pode-se melhor ajudar a pessoa a ampliar sua autonomia e a lidar com a doença de modo proveitoso
(BRASIL, 2004).
-
8/18/2019 u1p8
5/9
13
Caderno de Atenção Domiciliar ― Volume 2
Toda profissão faz um recorte de sintomas e informações, de acordo com seu núcleo profissional. Ampliar a
clínica significa também ajustar os recortes teóricos de cada profissão às necessidades dos usuários.
Na clínica ampliada, essa complexificação da compreensão provoca grande sensação de insegurança
profissional e pessoal ao lidar com as incertezas do campo da Saúde. Essas dificuldades fazem parte do desafio da
clínica ampliada e não devem ser consideradas exceções, mas parte do processo de mudança e qualificação noprocesso de trabalho em saúde (BRASIL, 2004).
A AD trabalha com essa complexidade na medida em que o ambiente de cuidado é o domicílio, onde a Emad
não tem o suporte físico da instituição, desnuda as dificuldades e os problemas, além de a necessidade de cuidado
ser singular, e não definida apenas pela doença. O cuidado no domicílio naturalmente provoca ampliação da
clínica, uma vez que a pessoa cuidada demanda diversidades de olhares e necessita de múltiplos serviços.
Uma abordagem muito utilizada na prática clínica individual, útil na ampliação da clínica e que pode ser
utilizada no cuidado do paciente em AD é o método clínico centrado na pessoa (MCCP), caracterizado por uma
metodologia sistematizada para auxiliar o profissional de Saúde a realizar a abordagem individual das pessoas.
O MCCP visa encontrar a real necessidade da pessoa em atendimento, ampliando o foco deste para todos
os problemas dela – físicos, sociais ou psicológicos, investigando a forma com que eles aparecem. Para que o
profissional da Emad consiga fazer uso dessa metodologia, precisa estabelecer com a pessoa em atendimento os
princípios de autonomia e de autocuidado, fundamentais para a clínica ampliada.
São seis os componentes do MCCP: explorando a doença e a experiência da doença; entendendo a pessoa
como um todo; elaborando um plano conjunto dos manejos dos problemas; incorporando prevenção e promoção
de saúde; intensificando o relacionamento entre pessoa e médico e sendo realista (STEWART, 2010).
Considerando os seus componentes, pode-se dizer que esse método apresenta dois elementos básicos: ocuidado à pessoa, identificando as ideias, as emoções e seus sentimentos relacionados ao adoecer; e o segundo
seria entender a visão e os objetivos tanto do profissional da Saúde como da pessoa, por meio do compartilhamento
de decisões e responsabilidades (RIBEIRO; AMARAL, 2008).
Partindo do princípio de que a clínica ampliada e o MCCP apresentam concepções ideológicas que se
complementam, a utilização desse método pode auxiliar a Emad na ampliação da clínica, introduzindo, de
maneira sistematizada, o atendimento voltado à pessoa, de forma integral, sistêmica e respeitando a autonomia
e os saberes de todos.
1.2.3 Apoio Matricial
A desburocratização e a desfragmentação do cuidado em saúde dependem do estabelecimento de novos
arranjos organizacionais, que incluem formas diferentes de organizar o processo de trabalho das equipes e o
padrão de comunicação dos trabalhadores e serviços de Saúde, e desses com os usuários.
Esses novos arranjos devem facilitar a transversalidade das ações e a troca de informações, de modo a
garantir a integralidade da atenção e a promover a responsabilização dos trabalhadores com a produção de
saúde (BRASIL, 2004).
-
8/18/2019 u1p8
6/9
14
Ministério da Saúde
O “apoio matricial” (AM) e a “equipe de referência” (ER) são dois arranjos que auxiliam na mudança nos
modos de produzir saúde, na medida em que estabelecem novas formas de relação entre as equipes e os serviços.
Segundo Campos & Domitti (2007), o apoio matricial visa garantir a retaguarda especializada às equipes
que realizam atenção à saúde, tratando-se de metodologia de trabalho que complementa os mecanismos de
referência e contrarreferência, os protocolos e as centrais de regulação. Propõe-se a ofertar, além de retaguardaassistencial, suporte técnico pedagógico às equipes de Saúde.
O AM está imbricado ao conceito de ER. O “profissional ou equipe de referência” seria aquele com a
responsabilidade pela condução de um caso individual, familiar ou comunitário, a exemplo do arranjo adotado
na Estratégia Saúde da Família (ESF) (CAMPOS; DOMITTI, 2007).
As equipes de referência têm composição multiprofissional de caráter transdisciplinar e são responsáveis pela
assistência à “saúde de um número de pacientes inscritos, segundo sua capacidade de atendimento e gravidade
dos casos” (BRASIL, 2004).
Dessa forma, quando não existe equipe de referência, é comum que o paciente peregrine em busca deassistência em toda a rede e acabe sendo “responsabilidade de todos os profissionais e, ao mesmo tempo, de
nenhum” (BRASIL, 2004).
Dessa forma, o AM é um arranjo que complementa as ERs, que, por serem responsáveis pelos seus pacientes e
por conhecê-los, não precisam encaminhá-los o tempo todo aos especialistas, sendo possível solicitar apoio. Assim,
o apoiador matricial possui conhecimento e perfil distintos dos profissionais da equipe de referência, agregando
saber e contribuindo com o aumento da capacidade de resolver problemas de saúde da equipe inicialmente
responsável pelo caso (CAMPOS; DOMITTI, 2007). O apoio matricial é, portanto, um arranjo organizacional que
lança mão de saberes e práticas especializadas, sem que a equipe de referência deixe de ser a responsável pelo
paciente (BRASIL, 2004).
Ainda segundo Campos & Domitti (2007, p. 400),
Apoio matricial e equipe de referência são, ao mesmo tempo, arranjos organizacionaise uma metodologia para a gestão do trabalho em saúde, objetivando ampliar aspossibilidades de realizar-se clínica ampliada e integração dialógica entre distintasespecialidades e profissões.
Na organização da atenção domiciliar, a eSF pode ser matriciada pelo Núcleo de Apoio à Saúde da Família
(Nasf) e também pelas equipes de AD (Emad/Emap), possuidora de núcleo de saber específico.
Assim, quando uma equipe de Atenção Básica (AB) está cuidando de um paciente e necessita de apoio, aEmad/Emap, bem como o Nasf, deve, ao mesmo tempo, realizar o cuidado desse usuário, assumindo nesse
momento um papel mais protagonista, e estabelecer processos que ajudem a aumentar a capacidade da eSF em
lidar com a situação. Essa forma de organizar o processo de trabalho ajuda a diminuir a necessidade de solicitar
apoio e/ou aumenta a quantidade de solicitações mais criteriosas ou, mesmo, atua preventivamente de modo
que evite situações mais graves e que necessitem de apoio especializado.
-
8/18/2019 u1p8
7/9
15
Caderno de Atenção Domiciliar ― Volume 2
1.2.4 Projeto Terapêutico Singular
O projeto terapêutico singular (PTS) é um conjunto de condutas/ações/medidas, de caráter clínico ou não,
propostas para dialogar com as necessidades de saúde de um sujeito individual ou coletivo, geralmente em
situações mais complexas, construídas a partir da discussão de uma equipe multidisciplinar (BRASIL, 2008).
Pelas características da atenção domiciliar, já comentadas neste capítulo, o PTS representa um importante
dispositivo que as Emad/Emap devem utilizar ao se depararem com casos/situações mais complexas e de difícil
resolução, caracterizadas pela necessidade de se acionar um conjunto de recursos disponíveis na Rede de Atenção
à Saúde ou fora dela, nos Centros de Referência em Assistência Social (Cras), por exemplo.
Importante ressaltar que a construção de um PTS, sempre que possível e necessário, deve ser realizada com
a participação de membros das equipes de Atenção Básica quando o paciente em AD se encontrar em sua área
de abrangência. Dessa forma, o projeto terapêutico é enriquecido por informações e conhecimentos que só o
acompanhamento transversal prestado pela AB poderia fornecer, além de favorecer o cuidado partilhado entre
as equipes de AD e as de AB, fortalecendo, assim, vínculos, e não os quebrando. Desse modo, a Emad e a equipe
de AB atuam conjuntamente para ajudar a entender o sujeito em seu contexto e a definir propostas de ações.
O esforço que envolve a elaboração e gestão de um PTS favorece os processos de “alta para AD1”. Isso
significa que o paciente ainda com necessidade de atenção à saúde no domicílio e que teve seu quadro
estabilizado por meio do cuidado realizado pelas equipes de AD será acompanhado, agora, pelas equipes de
Atenção Básica: é a “alta para AD1”. A articulação das equipes em todo o processo que envolve o PTS facilita
sobremaneira essa transição.
O projeto terapêutico pode ser elaborado também para grupos ou famílias e contempla as fases de
diagnóstico, definição das metas, definição das responsabilidades e reavaliação, apresentadas no quadro
abaixo de forma esquemática:
Quadro 1 – Fases do PTS
DIAGNÓSTICO
Avaliação/problematização dos aspectos orgânicos, psicológicos e sociais, buscando facilitar a conclusão, ainda
que provisória, a respeito dos riscos e da vulnerabilidade do usuário. O conceito de vulnerabilidade psicológica,
orgânica e social é muito útil e deve ser valorizado na discussão. A vulnerabilidade possibilita leitura mais
singular da situação de cada sujeito individual ou coletivo, enfrentando, de certa forma, as insuficiências da
generalização do conceito de risco (e grupos de risco). A equipe procura compreender como o sujeito singular
se coproduz diante da vida e da situação de adoecimento, como opera os desejos e os interesses, assim como
o trabalho, a cultura, a família e a rede social. Atenção especial deve estar voltada para as potencialidades, asvitalidades do sujeito. Uma função também importante nesse momento é produzir algum consenso operativo
sobre, afinal, quais os problemas relevantes tanto do ponto de vista dos vários membros da equipe quanto do
ponto de vista do(s) usuário(s) em questão.
DEFINIÇÃO DAS METAS
Sobre os problemas, a equipe trabalha as propostas de curto, médio e longo prazos que serão negociadas com
o sujeito “doente” e as pessoas envolvidas. A negociação deverá ser feita, preferencialmente, pelo membro da
equipe que tiver um vínculo melhor com o usuário.Continua
-
8/18/2019 u1p8
8/9
16
Ministério da Saúde
DIVISÃO DE RESPONSABILIDADES
É importante definir as tarefas de cada um com clareza. Escolher um profissional de referência, que, na atenção
domiciliar, pode ser qualquer membro da Emad ou da Emap, e na atenção básica qualquer membro da equipe
de Atenção Básica, independentemente da formação, é uma estratégia para favorecer a continuidade e a
articulação entre formulação, ações e reavaliações. Ele se manterá informado do andamento de todas as ações
planejadas no projeto terapêutico. Será aquele que a família procura quando sente necessidade e com o qual
negocia as propostas terapêuticas.
REAVALIAÇÃO
Momento em que se discutirá a evolução e se farão as devidas correções dos rumos tomados.
Fonte: (BRASIL, 2009, p. 30-31, adaptado).
O PTS também é uma ferramenta útil quando se tratar de “prognóstico fechado”, ou seja, “de usuários para os
quais existem poucas opções terapêuticas, como no caso dos usuários sem possibilidade de cura ou controle da
doença” (BRASIL, 2008). Esses tipos de pacientes, muito comuns na atenção domiciliar, representam desafio não
só por exigir grande esforço e conhecimento técnico, mas também porque fazem com que a equipe de Saúde
tenha que lidar com questões delicadas como a morte e com um sentimento de impotência. Dessa forma, écomum que as equipes vejam com um distanciamento, eximindo-se da responsabilidade. A Política Nacional de
Humanização, na “Cartilha Clínica Ampliada, Equipe de Referência e Projeto Terapêutico Singular”, trata
desse tema:
[...] é possível morrer com mais ou menos sofrimento, dependendo de como o usuário e
a família entendem, sentem e lidam com a morte. O projeto terapêutico singular, nesses
casos, pode ser importante como ferramenta gerencial, uma vez em que constitui um
espaço coletivo em que se pode falar do sofrimento dos trabalhadores em lidar com
determinada situação. A presunção de “não envolvimento” compromete as ações de
cuidado e adoece trabalhadores de saúde e usuários, porque, como se sabe, é um
mecanismo de negação simples, que tem eficiência precária. O melhor é aprender alidar com o sofrimento inerente ao trabalho em saúde de forma solidária na equipe,
ou seja, criando condições para que se possa falar dele quando ocorrer (BRASIL, 2008).
Pelas características e potencialidades apresentadas, o projeto terapêutico deve ser experimentado pelas
equipes de Atenção Domiciliar, em conjunto com as de outros serviços, como da AB e do hospital, quando
necessário, como mais uma ferramenta que ajuda na gestão do cuidado prestado aos pacientes em AD.
Conclusão
-
8/18/2019 u1p8
9/9
17
Caderno de Atenção Domiciliar ― Volume 2
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: a clínica. Brasília, 2004. 18 p. (Série B. Textos Básicos de Saúde).
______. Secretaria de Atenção à Saúde. Clínica ampliada, equipe de referência e projeto terapêutico
singular. 2. ed. Brasília, 2008. (Série B. Textos Básicos de Saúde).
______. Departamento de Atenção Básica. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Brasília,
2010. (Série A. Normas e Manuais Técnicos) (Caderno de Atenção Básica nº 27).
______. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS: acolhimento e classificação de risco
nos serviços de urgência. Brasília, 2009. (Série B. Textos Básicos de Saúde).
CAMPOS, G. W. S.; DOMITTI, A. C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do
trabalho interdisciplinar em saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 399-407, fev. 2007.
CECILIO, L. C. O. A morte de Ivan Ilitch, por Leo Tolstoy: elementos para se pensar a múltiplas dimensões da
gestão do cuidado. Interface: Comunic., Saúde, Educ., Botucatu, v. 13, p. 545-55, 2009. (supl.1).
FRANCO, T. B.; BUENO, W. S.; MERHY, E. E. O acolhimento e os processos de trabalho em saúde: o caso de Betim
(MG). Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 345-352, 2000.
MERHY, Emerson Elias. Sistema Único de Saúde em Belo Horizonte: reescrevendo o Público. In: TEXTOS de Apoio
ao Projeto Prioritário Acolhimento. São Paulo: Xamã, 1998.
MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2009.
RIBEIRO, M. M. F.; AMARAL, C. F. S. Medicina centrada no paciente e ensino médico: a importância do cuidado
com a pessoa e o poder médico. Rev. Bras. Educ. Med., Rio de Janeiro, v. 32, n. 1, mar. 2008.
ROA, R. R. et al. Abordagem centrada nas pessoas. Rev. Bras. Med. Fam. Comunidade, v. 4, n. 16, v. 4, n. 16,
p. 245-259, 2009.
SAVASSI, L. C. M. Iniciação à prática de ESF. Faculdade Senac: Belo Horizonte, 2011.
STEWART, Moira et al. Medicina centrada na pessoa: transformando o método clínico. Porto Alegre:
Artmed, 2010.