tim ingold - da transmissão de representações à educação da atenção

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 6 Timothy Ingold Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, jan./abr. 2010   texto Da transmissão de representações à educação da atenção*  From the transmission of representations to the education of attention TIMOTHY  INGOLD** RESUMO – O artigo discute o papel da experiência e o da transmissão geracional nos modos pelos quais os seres humanos conhecem e participam da cultura. Questiona o pressuposto da ciência cognitiva de que o conhecimento existe principalmente na forma de ‘conteúdo mental’ que é passado de geração em geração, e que a cultura é a herança que uma população recebe de seus antepassados. Dialoga com a biologia neodarwiniana e a psicologia cognitiva para situar o desenvolvimento humano além da dicotomia entre capacidades inatas e competências adquiridas. Propõe o conceito de habilidades humanas como propriedades emergentes de sistemas dinâmicos em que cada geração alcança e ultrapassa a sabedoria de seus predecessores. Conclui que a contribuição que cada geração dá à seguinte para o aumento do conhecimento humano se dá menos por um suprimento acumulado de representações e mais por uma educação da atenção. Descritores – Habilidades; educação da atenção; representações mentais. ABSTRACT –  The article discusses the role of experience and generational change in the ways human beings know and participate in the culture. It questions the assumption of cognitive science that knowledge exists  primarily in the form of ‘mental content’ that is passed from generation to generation, and that culture is a legacy that people receive from their ancestors. The author dialogues with the neo-Darwinian biology and cognitive psychology in order to place human development beyond the dichotomy between innate abilities and skills. He proposes the concept of human skills as emergent properties of dynamical systems where each generation achieves and exceeds the wisdom of their predecessors. He concludes that the contribution for the increase of human knowledge that each generation gives to the following is given least as a cumulative supply of representations and more for an education of attention. Keywords –  Skills; education of attention; mental representations.  Nós, seres humanos, con hecemos muito. Mas somos capazes de tanto conhecimento só porque pousamos nos ombros de nossos predecessores. Como Durkheim observou há muito tempo (1976 [1915], p 435), ‘àquilo que podemos aprender por experiência pessoal [é acrescentado] toda aquela sabedoria e ciência que o grupo acumulou no decorrer dos séculos’. O problema, que permaneceu no cerne das tentativas antropológicas de compreender a dinâmica da cultura, é saber como essa acumulação acontece. Como a experiência que adquirimos ao longo de nossas vidas é enriquecida pela sabedoria de nossos ancestrais? E como, por sua vez, tal experiência se faz sentir nas vidas dos descendentes? Em termos gerais, na criação e manutenção do conhecimento humano, o que dá, de subsídio, cada geração à geração seguinte? Uma abordagem para responder esta questão, embora tenha veneráveis antecedentes, sofreu um tipo de renascer em décadas recentes graças, em grande  parte, a de senvolvimentos pa ralelos na c iência cognitiva. Esta abordagem argumenta que o conhecimento existe na forma de ‘conteúdo mental’, que, com vazamentos,  preenchimentos e difusão pelas margens, é passado de geração em geração, como a herança de uma população  portadora de cultura. Um dos principais proponentes  Este artigo foi originalmente publicado como ‘From t he transmission of represen tations to the educatio n of attention’, in H. Whitehou se (ed.), The debated mind: evolutionary psychology versus ethnography (Oxford: Berg, 2001), p. 113-153. A tradução para esta Revista feita por José Fonseca foi autorizada pelo autor em 2009. ** Timothy Ingold é PHD em Antropologia e professor de Antropologia Social. Department of Anthropology School of Social Science. University of Aberdeen,Scotland (UK). E-mail : [email protected]  Artigo r ecebido em: abril/20 09. Apr ovado em: junho/2 009.

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6  Timothy Ingold 

Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, jan./abr. 2010

 

 

texto

Da transmissão de representações àeducação da atenção*

 From the transmission of representations to the education of attention

TimoThy ingold**

RESUMO – O artigo discute o pape da experiência e o da transmissão geraciona nos modos peos quaisos seres humanos conhecem e participam da cutura. Questiona o pressuposto da ciência cognitiva de que oconhecimento existe principamente na forma de ‘conteúdo menta’ que é passado de geração em geração, e quea cutura é a herança que uma popuação recebe de seus antepassados. Diaoga com a bioogia neodarwinianae a psicoogia cognitiva para situar o desenvovimento humano aém da dicotomia entre capacidades inatase competências adquiridas. Propõe o conceito de habiidades humanas como propriedades emergentes de

sistemas dinâmicos em que cada geração acança e utrapassa a sabedoria de seus predecessores. Concui quea contribuição que cada geração dá à seguinte para o aumento do conhecimento humano se dá menos por umsuprimento acumuado de representações e mais por uma educação da atenção.

Descritores – Habiidades; educação da atenção; representações mentais.

ABSTRACT – The artice discusses the roe of experience and generationa change in the was human beingsknow and participate in the cuture. It questions the assumption of cognitive science that knowedge exists primari in the form of ‘menta content’ that is passed from generation to generation, and that cuture is aegac that peope receive from their ancestors. The author diaogues with the neo-Darwinian bioog andcognitive pschoog in order to pace human deveopment beond the dichotom between innate abiitiesand skis. He proposes the concept of human skis as emergent properties of dnamica sstems where eachgeneration achieves and exceeds the wisdom of their predecessors. He concudes that the contribution for theincrease of human knowedge that each generation gives to the foowing is given east as a cumuative suppof representations and more for an education of attention.

Keywords – Skis; education of attention; menta representations.

 Nós, seres humanos, conhecemos muito. Mas somoscapazes de tanto conhecimento só porque pousamosnos ombros de nossos predecessores. Como Durkheimobservou há muito tempo (1976 [1915], p 435), ‘àquioque podemos aprender por experiência pessoa [éacrescentado] toda aquea sabedoria e ciência que o

grupo acumuou no decorrer dos sécuos’. O probema,que permaneceu no cerne das tentativas antropoógicasde compreender a dinâmica da cutura, é saber como essaacumuação acontece. Como a experiência que adquirimosao ongo de nossas vidas é enriquecida pea sabedoria denossos ancestrais? E como, por sua vez, ta experiência se

faz sentir nas vidas dos descendentes? Em termos gerais,na criação e manutenção do conhecimento humano, o quedá, de subsídio, cada geração à geração seguinte?

Uma abordagem para responder esta questão,embora tenha veneráveis antecedentes, sofreu um tipode renascer em décadas recentes graças, em grande

 parte, a desenvovimentos paraeos na ciência cognitiva.Esta abordagem argumenta que o conhecimento existena forma de ‘conteúdo menta’, que, com vazamentos, preenchimentos e difusão peas margens, é passado degeração em geração, como a herança de uma popuação portadora de cutura. Um dos principais proponentes

∗ Este artigo foi originamente pubicado como ‘From the transmission of representations to the education of attention’, in H. Whitehouse (ed.), The debatedmind: evoutionar pschoog versus ethnograph (Oxford: Berg, 2001), p. 113-153. A tradução para esta Revista feita por José Fonseca foi autorizada peoautor em 2009.** Timoth Ingod é PHD em Antropoogia e professor de Antropoogia Socia. Department of Anthropoog Schoo of Socia Science. Universit of Aberdeen,Scotand (UK). E-mail : [email protected] 

 Artigo recebido em: abril/2009. Aprovado em: junho/2009.

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antropoógicos desta abordagem é Dan Sperber.1 Meuobjetivo aqui é examinar agumas das inhas centrais dosargumentos de Sperber, e então mostrar por que penso quesão incoerentes. Enfoco o trabaho de Sperber não porqueee deva ser considerado particuarmente representativo,mas porque tem a virtude de tornar inusitadamenteexpícitos os pressupostos embutidos em grande parte da

teorização contemporânea sobre cutura e cognição, e deevá-os às suas concusões ógicas. Se as concusões sãoabsurdas, como creio que são, aguma coisa deve estar errada com os pressupostos básicos.2

Estes pressupostos são, especicamente, que oconhecimento é informação, e que seres humanos sãomecanismos para processá-o. Devo argumentar que, peo contrário, nosso conhecimento consiste, em primeirougar, em habiidades, e que todo ser humano é umcentro de percepções e agência em um campo de prática.Eaborando sobre estas premissas, vou sugerir uma

abordagem aternativa – mais devedora às perspectivasfenomenoógicas, ecoógicas e ‘prático-teóricas’ sobre percepção e cognição do que à ciência cognitiva cássica – que, a meu ver, oferece um caminho mais promissor  pea frente. Sei que há atuamente um forte contra-movimento dentro da própria ciência cognitiva, seguindouma triha muito semehante àquea aqui proposta. Minhacrítica, portanto, é mais dirigida contra o cognitivismona sua roupagem ‘cássica’ do que contra sua aternativa‘emergentista’. (Para uma exposição exceente desteútimo, ver A. ClARK, 1977). É justo dizer, no entanto,que a perspectiva dominante na psicoogia cognitiva

continua sendo a cássica; aém do mais, seu continuadodomínio é reforçado por uma poderosa aiança com a bioogia evoucionária em sua moderna formuação neo-darwiniana. Assim, contestar a ciência cognitiva cássicasignica inevitavelmente questionar alguns preceitosfundamentais do neodarwinismo.

Tanto na bioogia quanto na psicoogia, como voudemonstrar, o probema crucia é entender os processosde desenvovimento ontogenético. Seguindo um esboçoda abordagem de Sperber, eu considerarei o probemade desenvovimento primeiro como ee se apresenta na

 bioogia neo-darwiniana e em segundo ugar na ciênciacognitiva. A solução, eu armo, é ir além da dicotomiaentre capacidades inatas e competências adquiridas, atra-vés de um enfoque sobre as propriedades emergentes desistemas dinâmicos. Habiidades, sugiro eu, são mehor compreendidas como propriedades deste tipo. É através deum processo de habiitação (enskiment), não de encu-turação, que cada geração acança e utrapassa a sabedoriade suas predecessoras. Isto me eva a concuir que, nocrescimento do conhecimento humano, a contribuição quecada geração dá à seguinte não é um suprimento acumuadode representações, mas uma educação da atenção.

 A trAnsmissão de representAções

Mais de cinquenta anos atrás, Afred Kroeber estavareetindo sobre as aparentes analogias entre fenômenoscuturais e bioógicos. Seria errado, ee observou,comparar os indivíduos de uma cutura aos membrosde uma espécie. Porque os eementos que se combinam

 para estabelecer o padrão especíco de pensamento ecomportamento para um povo não podem ser rastreadosaté uma fonte ancestra comum, já que são de origens asmais diversas. Segundo a convenção da época, Kroeber chamou esses eementos de ‘traços de cutura’. E se existeago comparáve a uma espécie, pensou, é o traço (ouo conjunto de traços). Enquanto a espécie existe como popuação de organismos individuais de um certo tipo,também a forma existe como popuação de exempares.Cada ato de fazer um machado de pedra de determinadaforma, ou cada enunciação de uma frase com determinada

construção gramatica, seria um membro de ta popuação.E esses indivíduos de diversas espécies-traços se associam para formar a miríade de modeos de vida humana,exatamente como indivíduos de uma diferente espécieorgânica se associam para estabeecer os distintos padrõesde fauna e ora características de determinados locais.Assim, ‘é a agregados ecoógicos que as cuturas podemser comparadas: associações ocais de espécies de origemdiversa’ (KROEBER, 1952 [1943], p. 93).

A idéia origina de Kroeber votou à tona recentemente,de forma espantosamente simiar, na demanda de Sperber (2001) por uma ‘epidemioogia de representações’.

Basta substituir a noção atuamente fora de moda de‘traços’, com suas impicações meio comportamentais, pea noção bem mais mentaística de ‘representação’, eas duas formuações se tornam praticamente idênticas.Assim como o traço, segundo Kroeber, é manifestado nosseus exempares incontáveis, para Sperber, também, todarepresentação existe no níve de reaidade concreta comoa popuação de suas ocorrências, sejam estas encontradasdentro de cérebros humanos ou no comportamentocorpora que desencadeiam. Há, por exempo, mihõesde ocorrências da história de Chapeuzinho Vermeho

na cabeça de todo mundo que pode contá-a, e em todoevento de contar. E onde Kroeber comparou traços com osanimais e pantas habitantes de um oca, Sperber compararepresentações com os microorganismos causadores dedoença que habitam o corpo. Estudar a proiferação edistribuição de representações em cérebros é assim anáogoao estudo epidemioógico da proiferação e distribuiçãode microorganismos em corpos: ‘fenômenos culturaissão padrões ecológicos de fenômenos psicológicos’(SPERBER, 1996, p. 60).

Se o conhecimento consiste nas representaçõesque povoam os cérebros humanos, então a questão que

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cooquei no início sobre a contribuição, em acúmuo deconhecimento, que cada geração dá à geração seguinte, pode ser reformuada da seguinte maneira: Como as

representações são transmitidas? Em outras paavras,como uma representação no seu cérebro encontra o caminhodea até o meu, e ainda do meu cérebro até os cérebros deoutras pessoas? A esta questão, Sperber oferece um tipo

de resposta bem diferente da originamente sugerida por Kroeber. ‘O homem’, proferira Kroeber (já em 1917), ‘é... uma tábua em que se escreve’ (1952 [1943], p. 32). Aestrutura e natureza e textura da humanidade é ta que podeser inscrita com quaquer tipo de mensagem cutura quevocê quiser; a distinção crucia entre o humano e o animaé simpesmente que o primeiro é passíve de inscrição eo útimo não é. Esta visão do organismo humano (ou,mais especicamente, do cérebro) como tábula rasa, por mais impausíve que seja, serviu desde então para apoiar as asserções mais reativistas da antropoogia cutura.

Ea impica que os estudantes da cutura não precisamse preocupar com a psicoogia da natureza humana maisdo que, digamos, os jornaistas com a tecnoogia defabricação do pape.

Sperber aega que este modeo tradiciona deencuturação, enquanto simpes processo de inscrição, seapoia numa psicoogia impossíve. Mesmo se, no meucomportamento, eu ‘inscrevo’ representações no meucérebro, isto não equivae a ‘inscrevê-as’ no seu. A cadeiacausa que vai da presença concreta de uma representaçãoem um cérebro até o seu estabeecimento em outros émenos direta. Sperber expica isso por meio de uma

distinção entre ‘representações mentais’ e ‘representações púbicas’. Estou com uma meodia na cabeça: isto é umarepresentação menta. Eu assobio a meodia enquantocaminho rua abaixo: isto é uma representação púbica. É púbica porque existe como um padrão sonoro que podeser ouvido por outras pessoas na vizinhança. Para agunsque a ouvem ea pode não deixar quaquer impressãoduradoura; para outros, porém, ea pode não apenas ser ouvida, mas também ser embrada. Para esses útimos, ameodia está agora estabeecida dentro de ‘suas’ cabeças.E eles também podem se agrar assobiando a melodia,

enquanto descem a rua, como aconteceu comigo. Umatransmissão de informação foi assim efetuada, mas só porque cada etapa da externaização comportamenta(que transforma a representação menta em representação púbica) é compementada por uma etapa a mais deinternaização perceptua (que transforma a representação púbica ‘de vota’ em representação menta). E esta útimaetapa exige a operação de um aparato computacionacapaz de processar o input de dados sensoriais, comoos gerados peo impacto do meu assobio nos órgãosreceptores dos ouvintes, em forma representaciona dura-doura.

Resumindo, agum tipo de aparato processador cognitivo já deve estar instaado, em cérebros humanos,antes que quaquer transmissão de representações possaocorrer. Uma tábula rasa não poderia aprender, poisnão teria condições de converter o input sensoria emconteúdo menta. No entanto, assim que este ponto éreconhecido, temos de admitir também que o aparato

(ou aparatos) de processamento pode ser capaz de idar mehor com aguns tipos de input do que outros. Todosnós sabemos que agumas coisas, mesmo quando ongase compicadas como uma história, são fáceis de embrar,enquanto outras, como istas de números de teefone deonze dígitos, testam os imites de nossa capacidade. Isto,Sperber nos diz (1996, p. 74-5), acontece simpesmente porque os mecanismos cognitivos inerentes do cérebrosão equipados para idar com objetos de estruturanarrativa. Se grande parte do conhecimento em cuturasnão-iterárias toma a forma de mitos e histórias, é porque

essas formas são prontamente memoráveis. Aquio quenão puder ser facimente embrado sairá naturamentede circulação e, portanto, não cará retido na cultura.Enquanto determinam o que é e o que não é memoráve,os mecanismos de cognição têm um impacto bastanteimediato sobre a organização do conhecimento cutura.

Posto que esses mecanismos cognitivos, ou aparatosde processamento, precisam estar instaados antes dequaquer transmissão de informação cutura, de onde eesvêm? É caro que os próprios mecanismos podem ter sidoaprendidos. Em outras paavras, a criança pode primeiroadquirir representações que especiquem os mecanismos

 para processar o input subsequente. Mesmo assim, comoessas representações iniciais poderiam se estabeecer na mente da criança, a menos que aguns aparatos jáestivessem instaados para seecionar e processar o input-especicador-de-mecanismo relevante? O problema éanáogo ao de como enviar uma mensagem, em código,a um receptor sem a chave para descodicá-la. Primeirovocê tem de enviar outra mensagem, que especiquea chave. Mas então o receptor precisa já ter em mãosoutra chave, a m de decodicar aquela mensagem ....eassim por diante num regresso innito. A não ser que em

agum níve básico, tanto o remetente quanto o receptor tenham um conjunto de aparatos ou ‘enquadramentos’interpretativos comuns, a comunicação de informaçãonão conseguiria nunca, de forma aguma, ir adiante.

O ponto essencia, então, é que todo ser humano devevir ao mundo pré-equipado com mecanismos cognitivosque são especicados independentemente, e antes, dequaquer processo de aprendizado ou desenvovimento.3 Para John Toob e leda Cosmides, cujas investigaçõesdos fundamentos psicoógicos da cutura seguiram umcaminho muito próximo do de Sperber, esses mecanismosformam o que ees chamam de ‘metacutura humana’,

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 princípios básicos universais egados a todos e a cada umde nós em virtude de nossa ancestraidade evoucionáriacompartihada. Graças a esses enquadramentos meta-cuturais é que os seres humanos são capazes de aprender osaspectos variáveis de suas tradições culturais especícas.Se não fossem ees, seria impossíve para o aduto jáencuturado comunicar-se com o bebê recém-nascido, que

‘chega na cutura ivre de quaquer conhecimento sobresuas particuaridades’ (TOOBy e COSMIDES, 1992, p. 92). Como o etnógrafo em um mundo de estrangeiros(SPERBER, 1985, p. 62-3), o bebê pode votar aosaparatos de processamento de informação já prontos, queele partilha com as pessoas ao seu redor, a m de obter entrada em um mundo de entendimento cutura que, deoutra forma, estaria fechado.

Eu votarei a faar dos esforços de Toob e Cosmides para estabeecer uma ‘psicoogia evoucionária’; por enquanto basta subinhar a concusão dees, competamente

endossada por Sperber, que a transmissão entre geraçõesde informação cutura variáve depende da presença, emtodas as mentes humanas, de mecanismos de cogniçãoinatos, típicos da espécie. Supõe-se que esses mecanismossejam o resutado de um processo darwiniano de variaçãosujeito a seeção natura, e como ta, que sejam construídossegundo especicações que não são culturais, masgenéticas, incuídas dentro da herança bioógica comumda humanidade.

 A evolução dA  cognição

De acordo com um cenário hoje bem estabeecido,foi durante a era do Peitoceno, quando viviam comocaçadores e coetores, que os seres humanos evouíram para serem os tipos de criaturas que hoje são. Como aseeção natura, via de regra, adapta os organismos àscondições de vida preponderantes, podemos esperar queas propriedades ou ‘características de design’ da mentehumana, tanto quanto as do corpo, tenham evouídoenquanto soluções para os problemas e desaos especiaisque as popuações ancestrais de caçadores-coetorestiveram de enfrentar nos ambientes do Peitoceno.

Aém disso, há uma boa razão para acreditar que umaarquitetura cognitiva, consistindo de uma coeção demóduos reativamente discretos, cada qua especiaizadoem um domínio especíco de solução de problemas, teriauma vantagem seetiva sobre um design de propósitosmais genéricos. Um móduo especiaizado que, de agumamaneira, sabe de antemão qua é o probema e como idar com ee, pode dar uma resposta mais rápida e efetiva,interferindo minimamente com outras tarefas cognitivasque possam estar ocorrendo ao mesmo tempo. Assim pode haver um móduo para navegação e orientaçãono ambiente, outro, para tratar de cooperação socia,

outro, para reconhecimento e classicação de animais e pantas, outro, para aquisição de inguagem, outro, parauso de ferramentas, e assim por diante (HIRSCHFElD eGElMAN, 1994).

Os ambientes de caçadores-coetores ancestrais,todavia, eram muito diferentes dos que são encontradoshoje pea maioria dos habitantes do mundo. Muitos dos

desaos que eles enfrentaram praticamente desapareceram,enquanto surgiram outros que ees não poderiam ter antecipado. Assim, móduos cognitivos destinados por seeção natura a um propósito foram computados deoutras maneiras. Quaquer um pode aprender a dirigir um carro, especua Sperber (1996, p. 93), porque ashabiidades para dirigir exigem computações de espaçoe movimento as quais o cérebro está inerentemente pré-equipado para reaizar. Os aparatos de processamentoexigidos teriam evouído naquio que Sperber chama de seudomínio próprio, ou seja, na soução de tarefas cognitivas

enfrentadas por caçadores-coetores ao moverem-se peoterreno. Mas para dirigir um carro ees são mobiizadosno domínio de ação do motorista, que tem de abrir o seucaminho na estrada. Embora as circunstâncias não possamser mais diferentes, as operações cognitivas fundamentaissão praticamente as mesmas. De fato a impicação doargumento de Sperber é que quaquer modo de ocomoçãoque não pudesse aproveitar as capacidades cognitivasevouídas de um tipo ou de outro provavemente seriainaprendíve e jamais poderia tornar-se uma parte dacutura.

Grosso modo, embora o ambiente natura dos seres

humanos tenha sido em grande parte substituído ou sobre- posto por um ambiente cutura – ou seja, por um ambienteconsistindo de ‘todas as produções púbicas ... que sãocausas e efeitos de representações mentais’ (SPERBER,1996, p. 115) – os vários domínios de cutura nos quais acognição humana reamente opera foram modados por umviés seetivo a favor de representações que mimetizam osinputs de móduos cognitivos evouídos em seus domíniosoriginais próprios. Para reformuar a frase em termos deoutra distinção sugerida por Sperber, o cérebro humano é particuarmente suscetível a representações compatíveis

com suas disposições inatas. Tais representações vão proiferar e se espahar, estabeecendo-se assim dentroda cutura, ao passo que outras, deixando de satisfazer ascondições de input dos móduos cognitivos, vão decinar edesaparecer. A cutura, em suma, é parasita das estruturasuniversais de cognição humana.

Agora, por trás das oposições identicadas entredisposições e suscetibiidades, e entre domínios cogni-tivos próprios e de ação, reside uma distinção maisfundamenta, qua seja, entre aparatos inatos e repre-sentações adquiridas. Uma disposição é uma função deum aparato cognitivo geneticamente especicado que

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evouiu dentro de seu domínio próprio como parte daadaptação humana às condições ambientais originaisda vida de caçador-cohedor no Peistoceno. Existeuma suscetibiidade na receptividade de um aparatoespecíco ao conteúdo representacional mental de certotipo que, aiás, é comum dentro do domínio de ação davida cutura de uma popuação humana, uma forma de

vida que pode não parecer nem de onge com a de seus primeiros ancestrais. Por consequência ógica, no entanto,as competências que têm uma base disposiciona inata – aqueas ‘como as quais nascemos’ – têm de ser caramentedistintas daqueas que são fundadas em conteúdo mentaadquirido. As primeiras são produtos de um processoevoucionário, as segundas pertencem a um processode história. Embora a mudança evoucionária sejafundamentamente genética, a história de uma popuaçãoconsiste, segundo Sperber (1996, p. 115), de mudançasno seu reservatório de representações cuturais. E através

do curso inteiro da história, apesar da rotatividade nacomposição deste reservatório, a arquitetura evoutiva damente humana permaneceu essenciamente constante.

Potkin (2001, p. 132)4 considerou meu uso da frase‘mudança evoucionária é fundamentamente genética’uma deturpação grosseira daquio que os bióogos,em gera, e os bióogos evoucionários, em particuar,reamente acreditam. Em resposta, só posso reiterar quemeu objetivo até aqui foi resumir o mais cuidadosamente possíve a posição de um autor que não é, nem tem a pretensão de ser, bióogo. Trata-se de Sperber. E isto éo que Sperber diz: ‘As habiidades cognitivas humanas,

geneticamente determinadas, resutam de um processo deseleção natural’ (1966, p. 66). Sobre a questão do signica- do da mudança genética como índice de evoução, os próprios biólogos estão divididos. Uns aderem à deniçãocanônica de evolução como mudança ao longo do temponas frequências de gene em popuações de organismos,e distinguem evoução de história aegando que a útimaé independente da mudança genética (embora possahe trazer consequências). Outros, incusive Potkin,distinguem com exatamente as mesmas aegações aevoução ‘bioógica’ da ‘cutura’, e concuem que

não há nada fundamentamente genético na mudançaevoucionária  per se. Minha preocupação não é com aescoha dos termos, mas com a base epistemoógica da própria distinção – isto é, com a idéia de que um tipode mudança (cutura, histórica, dê-he o nome quequiser) é congurado dentro dos parâmetros de outro(bioógica, evoucionária). Quanto à objeção de Potkinde que as expicações convencionais da evouçãodevotam reativamente pouco espaço à genética, e muitomais a outras coisas, isto é simpesmente irreevante. Um bom ivro sobre evoução pode ter muito a dizer sobreos arquivos fósseis. O fato de fazer isto não eva a ugar 

nenhum, no que diz respeito à nossa compreensão dascausas de mudança.

d Ando  Atenção  Ao desenvolvimento (1): BiologiA 

Eu gostaria de começar minha crítica da teoria

epistemoógica de cutura de Sperber enfocando suasimpicações evoucionárias. Meu objetivo é acabar com a oposição entre mecanismos cognitivos inatos econteúdo cutura adquirido, mostrando como as formase capacidades dos seres humanos, assim como aqueas detodos os outros organismos, brotam dentro de processos dedesenvolvimento. Isto me eva a um conceito de evouçãoque, embora radicamente diferente da expicação neo-darwiniana ortodoxa, não nos obriga mais a reservar umespaço ontoógico separado para a história humana. Eisto, por sua vez, eventuamente abrirá o caminho para

uma resposta bem diferente à nossa questão origina:como cada geração contribui para a cognoscibiidade da próxima?

A obsessão de Sperber, ampamente compartihadaem ciência cognitiva com a descoberta de mecanismosinatos de processamento de informação geneticamentedeterminados, causa perpexidade à primeira vista,devido ao seu apeo expícito à bioogia evoucionárianeo-darwiniana,5 pois a maioria dos biólogos arma queees já descartaram há muito tempo a distinção entreestruturas inatas e adquiridas. Segundo o que é muitasvezes chamado de ‘primeira ei de bioogia’, as reais

características dos organismos não são nem inatas nemadquiridas, mas são produtos da interação, ao ongodo cico de vida, entre causas genéticas endógenas eambientais exógenas. Assim, o interacionismo há muitotempo substituiu o inatismo como credo dominante dentroda ciência bioógica. De fato, todavia, uma doutrina de pré-formação genética ainda espreita sob a superfíciedo interacionismo ortodoxo, pois ea foi imbricada na própria teoria matriz da bioogia: a teoria de evoução por seeção natura. A sinergia entre a bioogia neodarwinianae a ciência cognitiva cássica é, então, mais próxima do

que suspeitamos, e ambas faham pea mesma razão:são incapazes de oferecer uma expicação adequada dodesenvovimento ontogenético. Deixem-me mostrar o porquê.

O interacionismo descreve desenvovimento comouma reação que se desdobra entre genes e ambiente. Nesta reação, contudo, cabe aos genes manter a essênciada forma, enquanto o ambiente é concebido como merofornecedor de condições materiais para sua reaização.6 Cada gene é tomado por representar uma unidade deinformação digita pura, escrita em código na estruturamoecuar de DNA. Postas juntas, essas unidades

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formam o chamado genótipo, uma especicação formaldo organismo-a-vir-a-ser, a qual, por denição, é dadaindependentemente e à frente de quaquer contexto nomundo rea de desenvovimento. No começo de cada novociclo de vida, esta especicação genotípica é introduzida, por meio do DNA das céuas-germe, num contextoambiental especíco. Em desenvolvimento, a informação

transportada nos genes é considerada então exteriormente‘expressa’ na forma  fenotípica do organismo resutante.Apenas os eementos do genótipo, entretanto, e não ascaracterísticas do fenótipo, são transmitidos atravésdas gerações. Ao ongo de muitas gerações dentro deuma popuação, através de acidentes de mutação erecombinação, acopados aos efeitos de reproduçãodiferencia, o conteúdo informaciona do genótipo muda.Dizem que, somadas, essas mudanças apontam para um processo de evoução.

Tudo isso é muito bonito, exceto por um probema.

Sem dúvida, todo organismo começa a vida com seucompemento de DNA. Mas se os genes devem ser enten-didos, como exige a teoria, enquanto portadores de umaespecicação de desenho formal, moldada pela seleçãonatura, de um locus de desenvovimento para outro, entãodeve haver aguma correspondência sistemática entre oselementos desta especicação e o verdadeiro DNA dogenoma, que é independente de qualquer processo de de-

 senvolvimento. A existência de ta correspondência foigeramente admitida, mas nunca foi demonstrada (ver COHEN e STEWART, 1994, p. 293-4). Na prática, o queacontece é que os bióogos procuram redescrever as

características fenotípicas de organismos observadoscomo resutados de um sistema forma de regras epige-néticas (quase como os inguistas procuram redescrever expressões vocaizadas como resutados de uma sintaxegenerativa). Essas regras então são idas ‘dentro’ dogenoma, para que se possa ver como desenvovimentoa ‘leitura’ de um programa ou uma especicação que jáestá á, e que é importado com o genoma para o oca deinauguração de um novo cico de vida. Resumindo, comoexpicação da evoução de forma, a teoria neodarwinianaca numa simples circularidade. Esta é uma razão pela

qua ea tem se mostrado tão dura de refutar. No fundo, a questão acaba sendo um probema decópia. Segundo a expicação ortodoxa, as característicasformais do organismo incipiente são copiadas junto como DNA, antes de sua interação com o ambiente, e assimeas podem ‘interagir’ com o ambiente para produzir o organismo. Eu argumentaria, peo contrário (e comoiustrado esquematicamente na Figura1), que copiar já éum processo que ocorre dentro do contexto de interaçãoorganismo-ambiente. Em outras paavras, o ‘eo perdido’entre o genoma e os atributos formais do organismo não énada mais do que o próprio processo de desenvovimento.

Então não há, para o organismo, nenhum design, nenhumgenótipo, exceto, evidentemente, peo fato de que isto pode ser construído peo bióogo que faz a observação.A forma orgânica, em suma, é gerada, não expressa,em desenvovimento, e surge como uma propriedadeemergente do sistema tota de reações criado em virtudeda presença e atividade do organismo em seu ambiente.

E sendo assim – se a forma não for uma propriedade degenes, mas de sistemas de desenvovimento – então, paraexpicar a evoução da forma, temos de compreender como esses sistemas são constituídos e reconstituídos aoongo do tempo.

Figura 1 – Duas teorias de cópia: (1) na expicação darwinianaortodoxa, um desenho para o organismo é copiado com o

DNA do genoma, que então é ‘trazido para fora’ no decorrer do desenvovimento dentro de um contexto ambienta; (2) na‘abordagem de sistemas de desenvovimento’ aqui proposta,o processo de copiar é equivaente ao de desenvovimento doorganismo no seu ambiente.

Replicação

de DNA

Genoma Genótipo

Cópia de

características

formais

Interação

 Ambiente

Desenvolvimento

Fenótipo

Replicação

de DNA

Genoma Genótipo

Cópia de

características

formais

Interação

 Ambiente

Desenvolvimento

Fenótipo

Replicação

de DNA

Genoma  Ambiente

Forma

Orgânica

Sistema de

Desenvolvimento

Replicação

de DNA

Genoma  Ambiente

Forma

Orgânica

Sistema de

Desenvolvimento

Esses argumentos não são novos. Susan Oama(1985) foi uma de suas defensoras mais inuentesnos útimos anos. Ea embra que a natureza de umorganismo ‘não é genotípica... mas fenotípica’ e, portanto,‘depende tão profunda e intimamente do contexto dedesenvovimento quanto do genoma... Assim, evoução

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é a história derivaciona de sistemas de desenvovimento’(OyAMA, 1989, p. 5). Não obstante, por mais que eatenha se dado ao trabaho de distinguir seus pontos devista do interacionismo ortodoxo, sua crítica continuaa confundir as duas coisas, ao aegar que não há nadanuma abordagem de sistemas de desenvovimento quenão seja perfeitamente coerente com as premissas da

 bioogia evoucionária ne-darwiniana. (Para um exempo,ver DUNBAR, 1996). No Capítuo Dois,7 Pasca Boer reagiu exatamente da mesma maneira aos argumentosque apresento aqui. Na verdade, ee me pinta como umdefensor da idéia de que ‘desenvovimento consiste emuma “interação” entre informação anterior e circunstânciasexternas’. E ee se pergunta por que isto seria incompatívecom uma idéia neo-darwiniana da evoução de capacidadeshumanas. É caro que não há incompatibiidade aqui!Agum tipo de boqueio menta, todavia, parece impedir Boer, e muitos outros que pensam como ee, de entender 

que considerar a forma como ago que surge a partir do processo de desenvovimento é tudo, menos uma versãode interacionismo entre gene e ambiente.

A fonte desse boqueio parece residir na suposiçãode que organismos são efeitos de causas genéticas eambientais. No entanto, a reaidade, como Danie lehrmanaertou há muitos anos atrás, é muito mais compexa, poisas interações das quais procede o desenvovimento deum organismo não são entre genes e ambiente, mas entreorganismo e ambiente. Em cada momento do processode desenvovimento, estruturas formais ou disposiçõescomportamentais já estabeecidas no decorrer de interação

anterior estão envovidas, através de nova interação, nageração de mais outras (lEHRMAN, 1953, p. 345). E nãoé em nenhum dos componentes dos sistemas em interação,tomados individuamente, que os imites do processohaverão de ser encontrados, mas sim nas reações entre ees(OyAMA, 1993, p. 8). Assim, é simpesmente impossíverepartir causaidade entre fatores genéticos e ambientais.‘A teia de causaidade’, como escreve Esther Theen, ‘éintrincada e perfeitamente consistente desde o momentoem que nasce’ (1955, p. 94). Ou dito de outra maneira,organismos são causa e consequência de si mesmos

(GOODWIN, 1988, p. 108). Em resumo, causaidade nãoé uma reação entre coisas – genes e fatores ambientais, deum ado, organismos, de outro – que são externas entre si,mas é imanente no próprio processo de desenvovimento.8

Dito isto, é provável que minha armação de que ogenótipo não existe continue sendo contestada, para dizer o mínimo. Potkin, no Capítuo Três, chega a chamá-ade ‘um caso de anafabetismo bioógico’! Deixem-me,então, tornar minha posição absoutamente cara. Eu nãoduvido da existência do genoma, nem que ee desencadeie processos que são cruciais para o desenvovimento doorganismo em cada etapa do seu cico de vida. Aém disso,

não nego que a composição do genoma mude ao ongo dasgerações através de um processo de seeção natura. O queeu nego é que a sequência de DNA no genoma escrevaem código um desenho de especicações contexto-independentes, e com isso, a idéia de seeção naturacomo um agente de design. Agora, é possíve que Potkinaceite a primeira dessas negações, pois ee descarta como

‘ideia caduca’ a aegação de que os bióogos ‘pensamque o genoma contém informação’. É difíci saber comointerpretar este descarte, todavia, pois ee segue bem noscacanhares de uma insistência iguamente direta de que afonte da ordem e informação que não pode ser encontradaem experiência ambienta ‘deve estar nos genes’. Eu, comcerteza, não tenho nenhum problema com a denição deevoução de Potkin como ‘a transformação de formase sistemas bioógicos ao ongo do tempo’, e ee parececoncordar comigo (e Oama) que desenvovimento é oeo entre genoma e forma orgânica. Mas o que Potkin

deixa de reconhecer é que, se a idéia do genoma como portador de informação é de fato uma digressão, entãoa teoria de variação por seeção natura, embora possaexpicar mudanças em frequências de gene em sucessivasgerações no meio de uma popuação, é impotente paraexpicar a evoução da forma bioógica.

Genes, anal, são apenas segmentos de moléculasque podem trazer, ou não, eventuais consequências parao organismo em que estão. É perfeitamente possíve,como Cohen e Stewart demonstraram, que duas criaturas bem diferentes tenham exatamente o mesmo DNAno genoma. As criaturas podem não somente evouir 

sem quaquer mudança genética, eas também podemreter uma forma mais ou menos constante, apesar deconsiderável modicação no nível genético (COHENe STEWART, 1994, p. 309). Assim a seeção natura,evando a mudanças na composição do genoma, ocorredentro da evoução, mas não a expica. Ea nem mesmooferece uma expicação parcia, pois, para determinar qua parte é fruto de seeção natura, e qua não é, seria preciso uma repartição de responsabiidade causa peodesenvovimento de forma entre genes e experiência am- bienta. E isto, como demonstrei, não pode, em sã cons-

ciência, ser feito. Só indo aém da teoria de evouçãoatravés de variação por seeção natura, e considerando as propriedades de auto-organização dinâmica de sistemasdesenvovimentais, podemos esperar descobrir as possíveisconsequências dessas mudanças que podem ser expicadas por seeção natura para o próprio processo evoucionário.

d Ando  Atenção  Ao desenvolvimento (2): psicologiA 

Agora eu gostaria de ir da bioogia à psicoogia, eao probema que a ciência cognitiva tem com seu persis-

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tente apeo às estruturas inatas. Da mesma forma quea bioogia neodarwiniana tem de postuar um desenho para o organismo, a ciência cognitiva postua um de-senho para a mente que preexiste e garante todo apren-dizado ou aquisição de conhecimento subsequentes.Até onde se supuser que este desenho tem uma basegenética, e foi modado por seeção natura, ee tem

que formar um componente do genótipo. Só que aqui aciência cognitiva encontra exatamente o mesmo diemaque, como vimos, descarria a teoria neodarwiniana – mas de uma forma ainda mais pronunciada. E mais pronunciada porque os aparatos cognitivos geneti-camente determinados, que supostamente possibiitama transmissão de representações, já devem existir, nãomeramente na forma virtua de um desenho, mas nocircuito concreto dos cérebros humanos. Em outras paavras, é preciso presumir que a repicação de DNAnão apenas copia um desenho para a mente no ser 

humano embriônico, mas também copia os mecanismosespecicados daquele desenho na sua cabeça. De algumaforma, para dar início ao processo de desenvovi-mento ontogenético, tiras de DNA se transformarammiracuosamente em móduos computacionais. Isto émuito parecido com a suposição de que, peo fato dereproduzir o desenho de um avião na mesa de desenhoou na tea do computador, a pessoa esteja prontinha paradecoar.

Em gera, na iteratura da ciência cognitiva, considera-seque a proposição de estruturas inatas não exige justicaçãomaior do que referências vagas à genética e à seeção

natura (p. ex., JOHNSON-lAIRD, 1988, p. 35). Quandose discute quaquer ponto da questão de desenvovimento,os argumentos são confusos e contraditórios. Há umexempo disto no trabaho de Toob e Cosmides, aoqua já me referi. lembrando a distinção bioógica entregenótipo e fenótipo, Tooby e Cosmides armam que umadistinção equivaente precisa ser reconhecida no estudo damente entre psicoogia evolutiva e psicoogia manifesta.Cada situação pode então ser anaisada evando em conta‘condições ambientais, arquitetura evoutiva, e como suainteração produz o resutado manifesto’ (1992, p. 45-6).

Isto soa como uma reformuação do interacionismoortodoxo. Ainda assim, se o que ees chamam de‘arquitetura’ da mente fosse reamente anáogo aogenótipo, isso existiria apenas na forma programáticade um ‘desenho de edifício’, reguando a construção, aoongo do desenvovimento ontogenético, de um conjuntode mecanismos cognitivos. Nem todos os aspectosespecicados neste desenho, como Tooby e Cosmidesadmitem em seguida, serão executados imediatamente para quaquer indivíduo único. Assim, diferentes me-canismos despontarão em diferentes momentos no cicode vida; aém disso, ees podem se manifestar em aguns

indivíduos, mas não em outros, dependendo (entre outrascoisas) das circunstâncias ambientais que tiverem encon-trado.

 Neste caso, parece que os próprios mecanismosdevem ser entendidos mais como aspectos de psicoogiamanifesta do que de psicoogia evoutiva. Confusamente,no entanto, Toob e Cosmides usam com mais frequência

a expressão ‘arquitetura evoutiva’, para audir a essasestruturas manifestas, do que ao desenho básico. Naverdade, admitem abertamente este uso ambíguo, e quenão se preocupam em distinguir terminoogicamente a‘arquitetura adaptativa expressa’ dos programas maisfundamentais que suportam sua construção (1992, p. 82). Apresentada como uma questão de conveniênciaexpositiva, esta combinação do manifesto e do evoutivose aproxima mais de uma dissimuação para permitir umdiscurso sem quaquer contestação sobre mecanismoscognitivos, como se estes já estivessem em seu ugar e

fossem totamente operacionais, construídos peo grandemestre-de-obras da evoução, a seeção natura, antesmesmo de quaquer desenvovimento poder ser iniciado.E isso permite que ees aeguem, praticamente num sófôlego, que a ‘arquitetura evolutiva’ seleciona o que édesenvovimentamente reevante no ambiente e que oambiente está impicado no próprio desenvovimento daarquitetura (1992, p. 84-7).

Sperber vai encontrar exatamente o mesmo diema,embora sem o mesmo grau de eaboração. Neste caso, o probema gira em torno do status das disposições inatas,as quais são denidas, como vimos, enquanto módulos

cognitivos evouídos, geneticamente determinados ede domínio especíco. Suponhamos, de acordo com a bioogia evoucionária ortodoxa, que o genótipo incuaum conjunto de instruções para construir os móduos eas disposições que são dadas na sua operação. Então, por conseguinte, as próprias disposições emergem no decorrer do desenvolvimento ontogenético. Sperber conrmaesta interferência, observando que só se desenvoverãodisposições, se ‘condições ambientais adequadas’ forem preenchidas (1996, p. 67). Ainda em outro ugar, ee nosassegura que as disposições estão á desde o começo,

e que eas fazem a criança em desenvovimento tratar seetivamente a informação do ambiente circundanteque é essencia para que ea se torne ‘competente parafaar, competente para subir, ançar, pegar, comer, beber,competente para manipuar objetos, para reconhecer animais, para prever o comportamento de outras pessoas,e assim por diante’ (1966, p. 117). Nesta descrição dedesenvovimento, o processo começa não com um panoainda não realizado para construir móduos cognitivos,mas com móduos pré-constituídos cujas ‘necessidades’de informação estão ainda não satisfeitas. As estruturas já estão no ugar, mas estão iniciamente vazias de

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conteúdo informaciona. Desenvovimento diz respeitoa preencher os móduos, não diz respeito à sua cons-trução.

O cerne do probema, todavia, reside na fraseaparentemente inócua ‘condições ambientais adequa-das’. Para o desenvovimento de disposições, segun-do Sperber, as condições adequadas são aqueas do

 próprio domínio do móduo, domínio para o qua eeevouiu originamente como uma adaptação evoucio-nária. Se as condições forem signicativamente alte- radas, deixando neste sentido de ser adequadas, entãodevemos esperar ou que as disposições absoutamentenão se desenvovam ou que se desenvovam por diferentescaminhos. Apesar disso, Sperber invoca a ‘quaidadeinata’ das disposições para armar o contrário: que asdisposições estão á em todo caso, sejam quais foremas condições ambientais, e que diferenças ambientais sóse registram em desenvovimento através da suscetibii-

dade dos móduos a diferente conteúdo representaciona.Toob e Cosmides fazem praticamente as mesmasaegações, argumentando, por um ado, que os mecanismosconcretos que constituem a arquitetura evoutiva são‘soidamente construídos’ sob todas as circunstânciasambientais normais, mas, por outro, que esses mecanismosuniversais passam a funcionar em ‘inputs ambientaisvariáveis’ para produzir a diversidade de competênciasmanifestas e comportamentos que, de fato, observamos(1992, p. 45).9 

Deixem-me ver mais de perto essas armações(iustradas esquematicamente na Figura 2) com referência

a um exemplo especíco e muito alardeado, o da aquisiçãoda inguagem. Aqui, o pretenso mecanismo universa éo que vem a ser chamado de ‘dispositivo de aquisiçãode linguagem’ (DAL). Durante uma etapa bem denidada infância, este mecanismo é supostamente ativado,funcionando a partir do input de sons de faa no ambiente,de modo a estabeecer, na mente do bebê, a gramáticae o léxico de uma língua (ou línguas) especíca faladana sua comunidade. Um bebê criado em isoamentosocia, e privado assim do input  ambienta essencia,não aprenderia uma íngua, mas ainda possuiria um

DAl competamente formado (TOOBy e COSMIDES1992, p. 45). Assim, a aquisição de inguagem seriaaparentemente um processo em duas etapas: na primeira,o DAl é construído; na segunda, ee é fornecido comconteúdo sintático e semântico especíco. Esta, pelomenos, é a teoria, mas ea se sustenta na prática? Existe,em reaidade, quaquer base para separar a construçãode mecanismos psicoógicos ‘inatos’ da transmissão derepresentações cuturais ‘adquiridas’, como mostrado naFigura 3, ou será que a divisão nessas duas etapas não passa de um artifício de nossos próprios procedimentosanaíticos? A seguir, vou defender esta útima hipótese.

Figura 2 – Duas expicações para a construção da mente,segundo o modeo apresentado por Toob e Cosmides (1992).(1) Um desenho de construção universa (um componente dogenótipo) interage com o ambiente para ‘construir soidamente’a ‘arquitetura evoutiva’ que consiste de um número demecanismos cognitivos incuindo, por exempo, o ‘dispositivode aquisição de inguagem’. (2) A arquitetura (supostamenteuniversa) interage seetivamente com o ambiente, aceitandoinformação que especica várias competências culturais como, por exempo, a capacidade de faar ingês, hoandês ou japonês.

Figura 3 – Juntando as duas expicações da Figura 2 temos ummodeo de desenvovimento cognitivo em duas etapas. Observe, porém, que este modeo depende da excusão dos eementosdo ambiente que são constantes, ou ‘soidamente presentes’em todo contexto desenvovimenta imagináve, daquees querepresentam uma fonte de ‘input variáve’ de um contexto paraoutro. Apenas os primeiros são reevantes na primeira etapa(a construção de mecanismos ‘inatos’); apenas os útimossão reevantes na segunda (a aquisição de competênciasculturalmente especícas).

Desenho da Construção

(genótipo)  Ambiente

‘constructos sólidos’

 Arquitetura Evolutiva

Desenho da Construção

(genótipo)  Ambiente

‘constructos sólidos’

 Arquitetura Evolutiva

 Arquitetura

evolutiva‘Inputs variáveis’

no ambiente

Competências culturaisespecíficas

 Arquitetura

evolutiva‘Inputs variáveis’

no ambiente

Competências culturaisespecíficas

Desenho

da

construçãoComponente

constante (etapa 1)

 Arquitetura evolutiva

Componente

variável (etapa 2)

Competências culturais

específicas

Desenho

da

construçãoComponente

constante (etapa 1)

 Arquitetura evolutiva

Desenho

da

construçãoComponente

constante (etapa 1)

 Arquitetura evolutiva

Componente

variável (etapa 2)

Competências culturais

específicas

A          m        b         

i           e       

 n       

t           e       

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 Da transmissão de representações à educação da atenção  15

Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, jan./abr. 2010

 A lém dA  dicotomiA  inAto/ Adquirido

O primeiro ponto a observar é que os mecanismos (seassim podemos chamá-os) que garantem a capacidadede faar da criança não são construídos num vácuo, masemergem no contexto do envovimento sensoria dea emum ambiente atamente estruturado. Desde o nascimento,

se não antes,10 o bebê é imerso em um mundo de somno qua os padrões de faa característicos se misturamcom todos os outros ruídos do dia a dia, e é cercado por faantes da mais variada competência, que dãoapoio tanto na forma de interpretações contextuamentefundamentadas das vocaizações do bebê como de de-monstrações ou ‘gesticuações direcionadoras de aten-ção’ (ZUKOW-GOlDRING, 1977, p. 221-223), paraacompanhar as suas próprias. logo, este ambiente nãoé uma fonte de input  variáve para mecanismos pré-construídos, mas fornece, isto sim, as condições variáveis

 para a auto-montagem, ao ongo do desenvovimentoinicia, dos mecanismos propriamente ditos. E como ascondições variam, os mecanismos resutantes tambémtomarão múltiplas formas, cada uma delas ‘anada’tanto com padrões de som especícos quanto com outrosaspectos dos contextos ocais de vocaização. Essesmecanismos variavelmente anados, e as competênciasque ees estabeecem, são evidentemente os correatosdaquio que aparentam ser para nós as diversas ínguas domundo. Não é, então, por meio da transferência de conteúdosintático e semântico especíco que a criança desenvolvea capacidade de faar como se faa na sua comunidade. A

inguagem, neste sentido, não é adquirida. Em vez disso,ea está sendo gerada e regenerada continuamente noscontextos desenvovimentais de envovimento de criançasnos mundos da faa (lOCK, 1980). E se a inguagem nãoé adquirida, então não pode haver ta coisa como umdispositivo de aquisição de inguagem (DENT, 1990).

O que vale especicamente para o caso de linguageme faa também vae, de modo gera, em reação a outrosaspectos da competência cutura. Aprender a ançar eagarrar, subir, comer e beber, para citar apenas agunsexempos de Sperber (1966, p. 117), não é uma questão

de retirar  do ambiente representações que satisfazemas condições de input  de móduos pré-constituídos,mas sim de formar, dentro do ambiente, as conexõesneuroógicas necessárias, junto com os aspectos auxiiaresde muscuatura e anatomia, que estabeecem essasvárias competências. Para subinhar o contraste entrea posição de Sperber e a minha, deixem-me retornar àquestão da cópia. Para Sperber, um desenho para a menteé copiado, junto com o DNA do genoma, no momentoinicia de cada novo cico de vida. E este desenho, antesde ser aberto às inuências diferenciadoras do ambiente,transforma-se magicamente em mecanismos concretos

no cérebro, prontos e preparados para processar  inputs ambientais reevantes. Eu argumentei, ao contrário, que a própria cópia é um processo desenvovimenta, que este processo acontece num contexto ambienta, e que só eefornece um eo entre o genoma e as propriedades formaisdo organismo – incusive aqueas do seu cérebro (ver Figura 1).

Em certo sentido, então, a arquitetura da mente é um resutado de cópia; esta cópia, no entanto, não é umatranscrição automática de dispositivos cognitivos (ouinstruções para construí-os) de uma cabeça para outra,mas sim uma questão de  seguir , nas ações individuais,aquio que as outras pessoas fazem. Neste sentido, maisde imitação do que de transcrição, copiar é um aspectoda vida de uma pessoa no mundo, envovendo repetidastarefas e exercícios, ou aquio que Whitehouse (1996:113)chama com propriedade de ‘trabahos de maturação’.É através do trabaho de copiar, então, que as bases

neuroógicas das competências humanas se estabeecem.Isto não é para negar que a organização neura resutante possa assumir uma forma moduar; é para insistir, todavia,que a modularidade se desenvolve (Ingod 1994: 295),11 e que a maneira exata como este empacotamento ocorredependerá das especicidades da experiência ambiental.

Para afastar quaquer possíve ma-entendido,quero deixar caro que meu propósito não é defender a prioridade da cutura sobre a natureza, nem substituir oviés inatista da expicação de Sperber por uma doutrinade determinação ambienta das capacidades humanas.Meu argumento não está preso, como o de Potkin

(2001), entre os dois póos daquio que ee chama de o‘grande jogo’, com um ado postuando a mente comotábua rasa e o outro, insistindo que ea já vem comuma arquitetura pré-fabricada.12 Estas não são as únicasaternativas teóricas, e na verdade ambas são faaciosas pea mesma razão, que foi muito sucintamente expressa por Oyama: a informação especicando as capacidadesem questão, quer sua fonte esteja supostamente dentrodo organismo quer esteja fora no ambiente, deve ser con-siderada como ‘pré-existente aos processos que dão ori-gem a ea’ (OyAMA, 1985, p. 13). Meu ponto é que estas

capacidades não são nem internamente pré-especica- das nem externamente impostas, mas surgem dentro de processos de desenvovimento, como propriedades deauto-organização dinâmica do campo tota de reaciona-mentos no qua a vida de uma pessoa desabrocha.

Um exempo é a capacidade de, com certa precisão,ançar e agarrar coisas com a mão. Isto, bem comocaminhar com dois pés, parece ser uma das característicasda nossa espécie. Ainda há, na prática, um sem-númerode diferentes modos de ançar e de agarrar, adequados adiferentes atividades e situações. O ançamento de umdardo, de um peso ou de uma boa de cricket, cada qua

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Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, jan./abr. 2010

exige padrões e sequências diferentes de tensão muscuar,e diferentes concepções de passadas, ânguos e giros. Noentanto, não existe uma ‘essência’ de ançar e agarrar  baseando essas variações no verdadeiro desempenho(Theen, 1995, p. 83). Em todos os casos, as capacidadesespecícas de percepção e ação que constituem a habilidademotora são desenvovimentamente incorporadas nomodus operandi do organismo humano através de prática e treinamento, sob a orientação de praticantes já experientes, num ambiente caracterizado por suas próprias texturas e topograa, e coalhado de produtos deatividade humana anterior. Para adotar a feiz expressãode Kuger e Turve (1987), os componentes que de fato produzem as trajetórias dos membros envovidos emançar e agarrar não se apresentam em circuitos duros, e,sim, em “arranjos suaves”.13

Embora seja costume faar de uma habiidade como a deançar/agarrar como um universa humano, como diferente

de suas manifestações especícas, só podemos fazer istocolocando articialmente ‘entre parênteses’ todas asvariações de contexto e enfocando excusivamente aquioque toda situação de desenvovimento concebíve tem emcomum. Para ns analíticos comparativos, tais tentativasde separar o gera do particuar, ou de estabeecer o mínimodenominador comum de desenvovimento, podem ter suautiidade. Mas, se as habiidades universais nada mais sãodo que sedimentos abstratos deste procedimento anaítico,é absurdo, evidentemente, armar que elas se manifestamconcretamente, na forma de móduos mentais evouídos,nas cabeças dos indivíduos (SHORE, 1996, p. 17). Esta é

a essência do meu desacordo com Boer (Capítuo Dois).Dado o genótipo humano, ee diz, ‘certas consequênciasdesenvovimentais são praticamente inevitáveis em

circunstâncias normais’. Mas como vamos decidir quaiscircunstâncias são normais? Para Boer, as circunstânciassão mais excepcionais do que normais, se ‘elas não zerem parte das condições predominantes quando os genes emquestão forem seecionados’. Neste sentido, a maioria dascrianças no mundo hoje está crescendo em circunstâncias bastante excepcionais. Mesmo assim, exceto por acidenteou deciência, elas ainda estariam munidas de todo um

conjunto de habilidades evolutivas, especicado por genes naturamente seecionados.Então, deve ser possíve aduzir um núceo de cir-

cunstâncias concretas – aquio que Boer chama de‘ambiente epigenético padrão’ – que seja comum atodas as situações nas quais os humanos aprendem, por exempo, a ançar coisas, do território de caça ao campo decricket . Eu não posso imaginar que circunstâncias podemser estas. Ou, para usar outro exempo, podemos admitir que os bebês, ao aprenderem a caminhar, geramente seacham em situações onde existe chão para caminhar.Entretanto, como poderia o bebê encontrar ‘chão’,

como uma condição concreta de desenvovimento, queseja não apenas diferente de, mas também antecedentea superfícies ‘caminháveis’ tão diversas quanto areia,asfato, pastagem e mato, sendo que cada uma deas exigemodaidades distintas de ginga, equiíbrio e trabahodos pés? E, mais ainda, como poderia ta chão estar ivre de todos os contornos? Por estranho que pareça,

é exatamente assim que o chão debaixo dos nossos pésteria de ser experimentado inicialmente, se fôssemosnos aferrar à noção de que modalidades especícas decaminhar são cutura e ambientamente acrescentadasa uma capacidade universamente inata de ocomoção bipeda. E justamente o mesmo tipo de segmentação daexperiência da criança com o ambiente está impicadona noção de que a competência na sua íngua maternaé adquirida a partir de um ‘instinto de inguagem’ pré-formado (PINKER, 1994).

Se, no entanto, não houver estruturas psicoógicas inatas

 – nenhuma arquitetura embutida e nem mesmo quaquer desenho de especicações em contexto independente – o que é que pode evouir? Já argumentei, a respeito do probema gera da forma em bioogia, que, como a formasurge no interior dos sistemas desenvovimentais, paraexpicar sua evoução, temos de enfocar o desdobramentotempora desses sistemas e as suas propriedades de auto-organização dinâmica. Reconceituaizado desta maneira,o processo evoucionário torna-se um processo no quaos organismos, através de sua presença e suas atividades,estabeecem as condições sob as quais os seus sucessoresestão fadados a viver suas vidas. Da mesma forma, as

mútipas habiidades dos seres humanos, de atirar pedrasa ançar boas de cricket , de trepar em árvores a subir escadas, de assobiar a tocar piano, emergem através dostrabahos de maturação no interior de campos de práticaconstituídos peas atividades de seus antepassados. Não fazsentido perguntar se a capacidade de subir está na escadaou em quem a sobe, ou se a habiidade de tocar pianoestá no pianista ou no instrumento. Essas capacidadesnão existem ‘dentro’ do corpo e cérebro do praticantenem ‘fora’ no ambiente. Eas são, isto sim, propriedadesde sistemas ambientamente estendidos que entrecortam

as fronteiras de corpo e cérebro (A. ClARK, 1997, p. 214). Segue-se que o trabaho que as pessoas fazem,estabeecendo ambientes para suas próprias gerações e asgerações futuras, contribui bastante diretamente para aevoução das capacidades humanas.

 No seu estudo sobre as tarefas computacionaisimpicadas na navegação marítima, Edwin Hutchinsobserva que os ‘humanos criam seus poderes cognitivoscriando os ambientes nos quais ees exercem esses poderes’(1995, p. 169). Este, para ee, é o processo da cutura,embora se possa chamá-o simpesmente de história.Haverá, porém, algo especicamente humano sobre este

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 processo? Hutchins compara o navegador humano àformiga, que deve sua habiidade aparentemente inata deocaizar fontes de aimento com precisão impressionanteaos rastros deixados no ambiente por predecessoresincontáveis. Apague os rastros, e a formiga está perdida.Assim, de fato, estariam os humanos, sem cutura ouhistória. A concusão de Hutchins é que as capacidades de

formiga, também, são constituídas dentro de um processohistórico de cutura. Aternativamente, (e resumindo-se praticamente à mesma coisa) poderíamos concuir que ascapacidades supostamente ‘cuturais’ dos seres humanossão constituídas dentro de um processo de evoução. Meu ponto é que a história, compreendida como o movimento peo qua as pessoas criam os seus ambientes e, portanto,a si mesmas, não é mais do que uma continuação do processo evolucionário, como denido acima, no terrenodas reações humanas (INGOlD, 1995a, p. 207-212).Tendo dissovido a distinção entre o inato e o adquirido,

descobrimos que a distinção entre evoução e históriatambém desaparece com ea.

c ApAcidAde, competênciA  e hABilidAde

Até aqui, usei as paavras ‘capacidade’ e ‘competência’de modo exível e permutável para descrever aspectosda cognoscibiidade humana. No entanto, nenhuma deas parece totamente adequada a este propósito. O probemacom o conceito de capacidade é que ee está enraizado nasmetáforas de recipiente e conteúdo da psicoogia humanacomo um conjunto de compartimentos moduares pré-

constituídos ou ‘dispositivos de aquisição’, aguardando para serem preenchidos com informação cutura naforma de representações mentais. A imagem da mentecomo recipiente é partihada por Sperber e também por muitos daquees com quem ee aega discordar: reativistascuturais ortodoxos que, como ee diz, são ingênuos a ponto de acreditar que ‘habiidades mentais humanastornam a cutura possíve e ainda assim não determinamde modo agum seu conteúdo e sua organização’ (1996, p. 57). Ingênuo, peo contrário, no meu entender, é a crençade Sperber de que cutura serve como ‘conteúdo’ para

a psicoogia humana (lAVE, 1988, p. 85). Sem dúvida, pessoas criadas em diferentes ambientes aprendem a perceber seu entorno, e a agir de diferentes maneiras dentrodee. Podemos até concordar em chamar essas diferençasde cuturais. Neste caso, porém, eas não se incuemtanto nas ‘capacidades’ de uma psicoogia universa.São, antes, imanentes naquee campo de reações onde osseres humanos são submetidos aos processos orgânicosde crescimento e maturação, e no qua os seus poderes deação e percepção se desenvovem e se sustentam.14

Mas a noção de competência é iguamente pro- bemática, em grande parte, por causa da maneira como

seu signicado veio a ser constituído, especialmentenas iteraturas de psicoogia e ingüística, através deuma oposição ao desempenho [ performance]. A noçãosugere uma cognoscibiidade que é desigada da ação edos contextos de envovimento corpora de atores como mundo, e que toma a forma de regras interiores ou programas capazes de especicar, com antecedência, a

resposta comportamenta adequada a quaquer situação. Acompetência, como Drefus e Drefus mostraram (1986, p. 26-27), garante o tipo de processo que, de acordocom a ciência cognitiva, está no âmago de toda açãointeigente, ou seja, de ‘resover probemas’. A abordagemdo soucionador-de probemas inteigente, deste ponto devista, é agir sempre a partir de um pano, que é formuado pea submissão de uma representação da situação existentea um determinado conjunto de regras deiberativas. Assimas noções de capacidade e competência são intimamenteentreaçadas: enquanto a primeira sugere uma disposição

intrínseca a aceitar certos tipos de regras e representações,a útima é inerente a este conteúdo menta recebido. Oindivíduo dotado de capacidade para ínguas pode adquirir competência em ingês; o indivíduo dotado de capacidade para ançar/agarrar pode tornar-se um competente jogador de cricket , e assim por diante.

Pensar nesses termos, todavia, é tratar o desempenho,ta como o de quem faa ingês ou joga cricket , comonada mais do que a execução mecânica, peo corpo, deum conjunto de comandos gerados e coocados ‘onine’ peo inteecto. É supor que o desempenho começa comum plano que, por conter uma especicação completa e

 precisa do comportamento a seguir, é necessariamenteuma estrutura de um tipo muito compexo. O processo deimpementação, por outro ado, é supostamente de umasimpicidade mecânica. Este é o enfoque escohido por Sperber, e, geramente, segue de fato na tradição cássicada ciência cognitiva. Mas, como David Rubin indicou(1988, p.375), podemos iguamente muito bem tomar ocaminho oposto: isto é, pressupor uma estrutura simpes,ou até absoutamente nenhuma estrutura, e expicar odesempenho como o desdobramento de um processocompexo. Considerem, por exempo, os movimentos

do enhador, ao derrubar uma árvore com seu machado.Um modeo de processo simpes e estrutura compexaconsideraria cada baanço do machado como produtomecânico de um dispositivo computaciona mentainstaado na cabeça do enhador, destinado a cacuar omehor ânguo do baanço e a força exata da machadada.Um modeo de processo compexo, ao contrário,consideraria o movimento do machado como parte dofuncionamento dinâmico do sistema tota de reaçõesconstituído pea presença do homem, com seu machado,num ambiente que incui a árvore como foco atua desua atenção (BATESON, 1973, p. 433). De modo gera,

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um modeo do útimo tipo trataria o desempenho nãocomo a descarga de representações na mente, mas comouma reaização do organismo/pessoa por inteiro em umambiente (THElEN, 1995).

Isto exige uma abordagem fundamentamenteecoógica, e é esta a abordagem que adoto aqui.15 Sua premissa básica é que a cognoscibiidade humana está

 baseada não em aguma combinação de capacidadesinatas e competências adquiridas, mas em habilidade [ skill ] (RUBIN, 1988; J.E. ClARK, 1997). Como pode,então, uma expicação ecoógica de prática hábi evar-nos aém daquio que a ciência cognitiva cássicadescreve como desempenho competente? Já vimosque o desempenhador competente da ciência cognitivaestá vincuado à execução mecânica de um pano pré-determinado. Quando a ação é posta em andamento,ele não pode alterá-la para recongurar o plano à luz denovos dados sem interromper a execução. Em contraste,

o movimento do praticante habiidoso responde contínuae uentemente a perturbações do ambiente percebido(INGOlD, 1993a: 462). Isto é possíve porque o movi-mento corpora do praticante é, ao mesmo tempo, ummovimento de atenção; porque ee oha, ouve e sente,mesmo quando trabaha. É esta capacidade de resposta quesustenta as quaidades de cuidado, avaiação e destreza,que são características da obra executada com maestria(Pe, 1968, p. 22). Como escreveu Nichoai Bernstein, ‘aessência da destreza reside não nos movimentos corporais propriamente ditos, mas na harmonização dos movimentos

com uma tarefa emergente’, cujas condições de entorno

nunca são exatamente as mesmas de um momento para ooutro (BERNSTEIN, 1996, p. 23, ênfase origina). ‘

Aém do mais, quanto mais habiidoso for o praticante,menor é a necessidade de ‘eaboração’: assim, o quediferencia o especiaista do reativamente iniciante não éa compexidade ou a escaa de eaboração de seus panosou representações, mas até onde ee pode prescindir disso. ‘Quando as coisas estão andando normamente’,como dizem Drefus e Drefus, ‘os especiaistas nãosoucionam probemas e não tomam decisões; ees fazemo que normamente funciona’ (1986, p. 30-31). Isto não

é para negar que especiaistas fazem panos e formuamobjetivos. O enhador tem de escoher qua árvorederrubar, e decidir a orientação do entahe para que eaacabe caindo numa direção que não arrisque danicar avegetação ao redor. Observá-o fazer isto, no entanto, éohar como ee caminha peo bosque, coocando os ohosem diferentes árvores, examinando-as. Em outras paavras,é observá-o pressentir seu caminho, em um ambiente,rumo a um objetivo que é concebido em antecipação aum futuro projeto. Esse tipo de trabaho preparatório,como leudar e Costa observaram, ‘é uma atividadesocia mundana, não um esforço puramente “inteectua”’

(1996, p. 164). Sendo assim, ee exige, como quaquer outra prática de habiidade, poderes de discriminação perceptiva namente ajustados por experiência anterior.Aém disso, os ‘panos’ que o enhador cumpre atravésdesta atividade não especicam ou determinam de formaaguma os movimentos seguintes, ou as circunstâncias queos acompanham, em todo seu detahamento concreto. O

que ees fazem, em vez disso, é coocá-o numa posição de prontidão, da qua encetar o projeto subseqüente com umachance razoáve de sucesso. Uma vez iniciado o processo,o enhador precisa retornar às habiidades corpóreas queee já aperfeiçoou (SUCHMAN, 1987, p. 52).

Mas uma coisa é caracterizar o conhecimento doespeciaista em termos de habiidade, e outra bem diferenteé armar, como eu z, que a habilidade é a base de todo conhecimento. Evidentemente seria toice imaginar quesomos especiaistas em tudo que fazemos. Durante meutrabaho antropoógico de campo entre pastores de renas

na Lapônia nlandesa, tive que aprender a usar um laço.Apesar de ter me esforçado ao máximo, continuo incapazde açar um anima em movimento escohido por mimno meio de um rebanho de renas girando encurraadas.O probema é que, carecendo da coordenação especiade percepção e ação do pastor caejado, para saber como proceder, tenho de parar e pensar antes de jogar a corda, e,nesse meio-tempo, a rena, que tem muito mais habiidade para evitar o aço do que eu tenho para jogá-o, já está forade acance. De fato uma expicação de como eu procedo para jogar o aço, segundo uma série de movimentos pré-cacuados, pareceria à primeira vista estar em perfeita

conformidade com o quadro do praticante competenteem ação apresentado pea ciência cognitiva cássica.Para mim, trata-se reamente de um quebra-cabeça, um probema a ser resovido. Em que sentido, então, pode-sedizer que minha competência rudimentar é, não obstante, baseada em habiidade? Para responder a esta pergunta preciso introduzir uma distinção, que é essencia para omeu argumento, entre conhecimento e informação.

Considere um ivro de receitas cuinárias. Ee estáabarrotado de informação sobre como preparar umasérie de pratos de dar água na boca. Mas será que é desta

informação que consiste o conhecimento do cozinheiro?Sperber diria que sim. E assim a receita de moho Morna, para citar um de seus exempos favoritos, incui tudoque você precisa saber para preparar o moho na sua própria cozinha. Nada mais é considerado necessário,aém da capacidade de er. logo que as instruções foremtranscritas para a sua cabeça, tudo que você tem de fazer é ‘convertê-as em comportamento corpora’ (SPERBER,1996, p. 61). No entanto, é mais fáci faar desta conversãodo que pô-la em prática. Nenhum livro de culinária quese conheça vem com instruções exatas a ponto de suasreceitas poderem ser convertidas assim tão simpesmente

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em comportamento. Quando a receita me manda ‘derreter a manteiga numa pequena panea e adicionar a farinha’,sou capaz de segui-a só porque ea diaoga com minhaexperiência anterior de derreter e mexer, de idar comsubstâncias como manteiga e farinha, e de encontrar osingredientes e utensíios básicos nos vários cantos daminha cozinha (lEUDAR e COSTAll, 1996, p. 163). Os

comandos verbais da receita, em outras paavras, extraemseu signicado não de sua ligação a representações mentaisna minha cabeça, mas de seu posicionamento dentro docontexto famiiar da minha atividade doméstica. Assimcomo pacas de sinaização numa paisagem, ees dãodireções especícas aos praticantes, enquanto eles abremcaminho através de um campo de práticas reacionadas ouaquio que já chamei de ‘taskscape’16 (INGOlD, 1993b, p. 158). Cada comando é coocado estrategicamente emum ponto que o autor origina da receita, ohando paraa experiência prévia de preparar o prato em questão,

considerou ser uma junção crítica na totaidade do processo. Entre esses pontos, no entanto, espera-se queo cozinheiro ou a cozinheira seja capaz de achar o seucaminho, com atenção e sensibiidade, mas sem depender de outras regras expícitas de procedimento – ou, numa só paavra, habiidosamente.

Assim, a informação no ivro de receitas, em si mesma,não é conhecimento. Seria mais correto dizer que eaabre caminho para o conhecimento, por estar dentro deuma tarefagem até certo ponto já famiiar em virtude daexperiência anterior. Apenas quando é coocada no contextodas habiidades adquiridas através desta experiência

anterior, a informação especica uma rota compreensível,que pode ser seguida na prática, e apenas uma rota assimespecicada pode levar ao conhecimento. É neste sentidoque todo conhecimento está baseado em habiidade. Assimcomo o meu conhecimento da paisagem é adquirido aocaminhar por ea, seguindo várias rotas sinaizadas, o meuconhecimento da tarefagem também é adquirido seguindoas várias receitas no ivro. Não se trata de conhecimentoque me foi comunicado; trata-se de conhecimento que eumesmo construí seguindo os mesmos caminhos dos meus predecessores e orientado por ees. Em suma, o aumento

do conhecimento na história de vida de uma pessoa nãoé um resutado de transmissão de informação, mas simde redescoberta orientada. Eu votarei a esta distinção, pois ea é de importância fundamenta para que possamoscompreender o processo de copiar.

É aqui, enm, que podemos identicar o que diferenciao iniciante na vida rea do praticante competente, segundoa descrição cássica da ciência cognitiva. Ambos podem proceder da mesma maneira ‘pare-ande’, interrompendo periodicamente o uxo da ação, a m de tomar pé dasituação e panejar um itinerário novo. Mas as deiberaçõesdo iniciante não são executadas dentro de um sacrário

menta interior, protegido das mútipas esferas da vida prática, mas em um mundo rea de pessoas, objetos e rea-cionamentos. O ambiente, então, não é meramente umafonte de problemas e de desaos adaptativos a serem re- sovidos; ee se torna parte dos meios de idar com isso.Como And Cark cooca muito bem, a mente é um ‘órgãoincontinente’ que não admite car connado dentro do

crânio, mas que se mistura despudoradamente com o corpoe o mundo no conduto de suas operações (A. ClARK,1997, p. 53). Na soução de probema, todo passo é ummovimento exporatório no interior daquee mundo.

Quando, por exempo, com o aço na mão, eu ajustoa postura do meu corpo a m de estar bem posicionado para o próximo ance, eu não cooco os meus membrosem posições pré-cacuadas; ao contrário, os ajustes preparatórios de minha postura integram o próprio processo de cácuo. O ‘cacuador’, em outras paavras,não é um dispositivo dentro da cabeça, mas a pessoa

inteira no mundo (lAVE, 1988, p. 154). Junto com partesdo corpo, aspectos do cenário ambienta são incorporadoscomo partes integrais do ‘dispositivo’. Mas isto signica,também, que cácuo e impementação, onge de seremetapas separadas e sucessivas de quaquer operação,são integrados e unicados. Como num passeio pelocampo, ter encontrado seu caminho para agum ugar é reamente ter chegado á, e não simpesmente ter  panejado um itinerário para a viagem. Em útima anáise,então, não pode haver quaquer diferença entre resover um probema e executar a soução na prática, pois todo passo numa soução de probema é um passo ao ongo do

caminho da impementação. E cada passo segue o outrocomo movimentos sucessivos do agente perceptivamenteatento, a ‘pessoa-que-atua’ (lAVE, 1988, p. 180-181), nocenário da prática.

 A educAção dA   Atenção 

Como, então, para retornar à minha pergunta origina,cada geração contribui para a cognoscibiidade da geraçãoseguinte? A resposta não pode estar na transmissão derepresentações – ou naquio que D’Andrade (1981, p. 179)

chama de ‘informação do tipo “passe adiante”’ – pois, comomostrei, isto depende das pré-condições impossíveis deuma arquitetura cognitiva pré-fabricada. Nesta penútimaseção, eu quero fazer uma sugestão aternativa: que acontribuição dada por cada geração às suas sucessoras serevea como uma educação da atenção.

Iniciamente, eu argumentei que não há nenhuma‘eitura’ das moécuas de DNA constituindo o genomade um organismo que não seja o próprio processo dedesenvovimento. Agora nós chegamos a uma concusãoquase idêntica a respeito do aprendizado humano: nãohá nenhuma eitura de um roteiro verba, como o que se

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encontra no ivro de receitas cuinárias, que não faça partedo envovimento prático do iniciante com o seu ambiente.Mais uma vez, isso acaba sendo uma questão de copiar.lembre-se que no modeo epidemioógico de transmissãocutura de Sperber o conhecimento vem na forma derepresentações, que passam de cabeça a cabeça por meiode passos sucessivos de externaização comportamenta

e internaização perceptiva. Mas a reprodução de umarepresentação púbica, percebida no mundo, em umarepresentação correspondente na mente não envove o processo peo qua a representação, uma vez copiada, é posta em prática.

 Na sua forma púbica, por exempo, a receita demoho Morna existe no ivro de cuinária como ‘umarranjo de tinta em um pedaço de pape que pode ser ido’(Sperber, 1996, p. 61). Para transformar a representação púbica em representação menta o cozinheiro aspirantesó precisa estar equipado com mecanismos cognitivos

 para processar o input  deste arranjo num conjuntocorrespondente de imagens na mente. Em princípio, areceita pode ser reida, geração após geração, sem que secozinhe absoutamente nada. Cozinhar, na expicação deSperber (e como mostrado esquematicamente na Figura 4),não é copiar, é a expressão de cópias já estabeecidasna mente de quem cozinha. Este ponto de vista temseu anáogo exato na bioogia evoucionária ortodoxa,que, como vimos, pressupõe que o desenvovimentoé a expressão de uma especicação formal que já foicopiada no organismo, através de repicação genética,no momento da concepção. Assim como a teoria

evolucionária imagina que as especicações de formaorgânica, codicadas em genes, podem ser passadas degeração em geração, independentemente dos processosde desenvovimento, a ciência cognitiva também imaginaque o conhecimento cultural, codicado em palavrasou outros meios simbóicos, pode ser passado adiante,independentemente de sua apicação prática em tarefas econtextos especícos.

Mas Sperber faz um truque com seu exempo domoho Morna. Pois se a eitura da receita fosse reamenteuma questão de processar o input visua de um arranjo de

tinta, então a representação menta resutante consistiriaem nada mais do que uma imagem do roteiro escrito. Eo eitor não impementaria a representação cozinhando,mas sim escrevendo as paavras da receita noutro pedaçode pape. O truque é supor que, tendo formado umaimagem dos arranjos de tinta, o aprendiz de cozinheirotambém formou na sua mente uma imagem daquio quetais arranjos devem representar, isto é, um programa paraa atividade na cozinha. Entretanto, o outro exempo deSperber, a história do Chapeuzinho Vermeho, entrega o jogo. Ee expica que a criança cuja mente contém umarepresentação da história pode, se quiser, transformá-a

Figura 4 – De acordo com a ciência cognitiva, a reproduçãode representações mentais é bem diferente de sua expressão

comportamenta. Isto está iustrado esquematicamente, comreferência ao exempo cuinário de Sperber. Em termos dodiagrama, copiar é um processo ‘vertica’, enquanto a conversãoem comportamento é ‘horizonta’.

molho

cozinhar 

escrever 

receita

escrita

molho

cozinhar 

ler 

Repre-

sentação

mental

Repre-

sentação

mental

molho

cozinhar 

escrever 

receita

escrita

molho

cozinhar 

ler 

Repre-

sentação

mental

Repre-

sentação

mental

‘em comportamento corporal e, mais especicamente,voca’ (1996, p. 62), simpesmente contando a história.Da mesma maneira, o cozinheiro converteria a receitaembrada em comportamento escrevendo-a no pape. Aarmação de Sperber, de que o cozinheiro transforma arepresentação menta da receita escrita em comportamento

corpora  preparando o molho, faz tanto sentido quantoimaginar que a criança converte a história do ChapeuzinhoVermeho em comportamento indo para a casa da sua avócom uma tigea de manteiga e um boo!

Um dispositivo capaz de escanear as páginas de umivro de receitas e de processar a informação em imagensarquivadas pode também ter, peo menos em principio,equipamento para imprimir a informação recebida. Aindaassim, ta dispositivo – que é o que Sperber imagina ser oser humano – seria competamente incapaz de cozinhar.Como é, então, que seres humanos reais, ao contrário dosdispositivos de processamento animados da imaginação

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 Da transmissão de representações à educação da atenção  21

Educação, Porto Alegre, v. 33, n. 1, p. 6-25, jan./abr. 2010

de Sperber, aprendem as artes cuinárias? Ees aprendem, écaro, copiando as atividades de cozinheiros já capacitados.Para reiterar meu argumento inicia, copiar não é fazer transcrição automática de conteúdo menta de uma cabeça para outra, mas é, em vez disso, uma questão de seguir o que as outras pessoas fazem. O iniciante oha, sente ououve os movimentos do especiaista e procura, através

de tentativas repetidas, iguaar seus próprios movimentoscorporais àqueles de sua atenção, a m de alcançar o tipo deajuste rítmico de percepção e ação que está na essência dodesempenho uente (GATEWOOD, 1985). Como obser-vou Mereau-Pont, nós não copiamos tanto outras pes-soas quanto copiamos suas ações, e ‘encontramos outrosno ponto de origem dessas ações’ (1964, p. 117).17 Estecopiar, como já mostrei, é um processo não de transmissãode informação, mas de redescobrimento dirigido. Comota, ee envove um misto de imitação e improvisação: isto pode ser mais bem compreendido, na verdade, como as

duas faces de uma mesma moeda. Copiar é imitativo, namedida em que ocorre sob orientação; é improvisar, namedida em que o conhecimento que gera é conhecimentoque os iniciantes descobrem por si mesmos. Nestaconcepção, segundo Bourdieu, a improvisação é ‘tãodistante de uma criação de novidade imprevisíve’ comoa imitação é ‘uma simpes reprodução mecânica doscondicionamentos iniciais’ (BOURDIEU, 1977, p. 95).Ambas são aspectos do envovimento situado e atentoque é fundamenta para se tornar um praticante habiidoso(INGOlD, 1996b, p. 179).

O processo de aprendizado por redescobrimento

dirigido é transmitido mais corretamente pea noção demostrar . Mostrar aguma coisa a aguém é fazer estacoisa se tornar presente para esta pessoa, de modo queea possa apreendê-a diretamente, seja ohando, ouvindoou sentindo. Aqui, o pape do tutor é criar situaçõesnas quais o iniciante é instruído a cuidar especiamentedeste ou daquee aspecto do que pode ser visto, tocadoou ouvido, para poder assim ‘pegar o jeito’ da coisa.Aprender, neste sentido, é equivaente a uma ‘educaçãoda atenção’. Eu tomo esta frase de James Gibson (1979, p. 254), cuja tentativa de desenvover uma psicoogia

ecoógica, que trata a percepção como uma atividadede todo o organismo num ambiente, em vez de umamente dentro de um corpo, foi uma grande fonte deinspiração para a abordagem que adotei aqui. O queGibson disse foi que não é absorvendo representaçõesmentais ou esquemas para organizar dados brutos desensações corporais que nós aprendemos, mas atravésde uma sintonia na ou sensibilização de todo o sistema perceptivo, incuindo o cérebro e os órgãos receptores periféricos junto com suas conexões neurais e muscuares,com aspectos especícos do ambiente (GIBSON, 1979, p. 246-248).

Esta educação da atenção é bem diferente daquio queSperber tem em mente quando ee sugere que a criançaestá inatamente predisposta a idar com informação queespecica competências especiais como a fala, a habili- dade de subir, de arremessar, e assim por diante (1996, p. 117). A diferença é dupa. Primeiramente, as estruturasde atenção às quais Sperber se refere, ou as ‘disposições’,

são dadas desde o início, e eas não atravessam um processode desenvovimento dentro de um contexto ambienta.Em segundo ugar, a ‘educação’ deas, se pudermoschamá-a assim, não reside em sua sensibiização a certosaspectos do mundo, mas em sua recepção de conteúdoinformacional especíco. Falando de forma bem tosca,os iniciantes de Gibson são ‘anados’, os de Sperber são‘enchidos’. Assim, de uma perspectiva gibsoniana, se oconhecimento do especiaista é superior ao do iniciante,não é porque ee adquiriu representações mentais queo capacitam a construir um quadro mais eaborado do

mundo a partir da mesma base de dados, mas porque o seusistema perceptivo está reguado para ‘captar’ aspectosessenciais do ambiente que simpesmente passamdespercebidos peo iniciante. O enhador experiente – pararetornar ao exempo inicia – oha em torno de si em buscade orientação sobre onde e como cortar: ee consuta omundo, não uma gura em sua cabeça. O mundo, anal decontas, é mesmo seu mehor modeo (A. ClARK, 1997, p. 29). Adotando uma das metáforas-chave de Gibson, poderíamos dizer que o sistema perceptivo do praticantehabiidoso ressoa com as propriedades do ambiente. Oaprendizado, a educação da atenção, equivae assim a este

 processo de anação do sistema perceptivo (ZUKOW-GOlDRING, 1997).

Somos agora, nalmente, capazes de dar umaresposta à minha questão inicia. Na passagem dasgerações humanas, a contribuição de cada uma para acognoscibiidade da seguinte não se dá pea entrega deum corpo de informação desincorporada e contexto-independente, mas pea criação, através de suas atividades,de contextos ambientais dentro dos quais as sucessorasdesenvovem suas próprias habiidades incorporadasde percepção e ação. Em vez de ter suas capacidades

evoutivas recheadas de estruturas que representam aspectos do mundo, os seres humanos emergem comoum centro de atenção e agência cujos processos ressoam com os de seu ambiente. O conhecer, então, não reside nasreações entre estruturas no mundo e estruturas na mente,mas é imanente à vida e consciência do conhecedor, poisdesabrocha dentro do campo de prática – a taskscape  – estabeecido através de sua presença enquanto ser-no-mundo. A cognição, neste sentido, é um processoem tempo rea. ‘Em vez de faar de idéias, conceitos,categorias e eos’, sugere Gatewood, deveríamos pensar em uxos, contornos, intensidades e ressonâncias’ (1985,

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 p. 216).18 Estes são termos que descrevem, por um ado,as características da taskscape na qua os praticantesestão situados e, por outro ado, a trajetória de sua própriaatenção enquanto abrem caminho através dea. Mas comoa tarefagem através da qua quaquer pessoa se move éconstituída pea prática de todas as outras, cada umdesempenha um pape no estabeecimento das condições

de desenvovimento de todos os demais indivíduos. Assimo processo de cognição é equivaente ao próprio processohistórico da vida socia. E este útimo, como já mostrei,não passa de uma continuação, na esfera humana, de um processo de evoução mais abrangente.

conclusão 

À guisa de epíogo, eu gostaria de descartar trêsfaácias que estão no centro do método de Sperber para aexpicação de cutura. A primeira é que o conhecimento

cutura toma a forma de representações; a segunda é queessas representações, na sua modaidade menta, estãoarmazenadas dentro dos recipientes de uma psicoogiauniversa, de onde eas têm que ser resgatadas antes desua passagem à prática; a terceira é que, nesta passagem,cruza-se uma fronteira entre as esferas menta e púbica.

As ‘representações’ de Sperber são coisas pecuiares. Não se sabe ao certo o que eas representam, a não ser easmesmas. É verdade, de certa forma, a receita de mohoMorna ‘diz respeito’ ao que acontece na cozinha. Nocaso da história do Chapeuzinho Vermeho a situaçãonão é tão cara, e a aegação de Sperber de que um mito

como este é ‘uma história transmitida oramente que ser-ve para representar acontecimentos reais’ (1996, p. 95)denitivamente não convence. Já no caso da melodia queassobio enquanto caminho rua abaixo, a armação de queea representa ago mais do que ea própria (ibid., p. 32)é um competo absurdo. Reamente, se aceitarmos que arepresentação é um ‘objeto físico concreto’ (ibid., p. 61), oqua tanto pode surgir dentro dos cérebros humanos quantofora dees, na forma púbica de artefatos, então parece quede nada adiantou substituir o conceito antiquado de ‘traço’ pea ‘representação’.19 Peo menos aquee não nos ança

numa busca infrutífera por aquio que o objeto em questãodeve representar. Não seria mehor para nós, como útimorecurso, retornar à inguagem de Kroeber e considerar todacocção de um moho, toda narração de uma história e todoassobio de uma melodia como exemplo especíco de umtraço, em vez de sinal especíco de uma representação?

A resposta é ‘não’. Cocções, narrações de históriase assobios não são representações, não são traços; naverdade, ees não são objetos de nenhum tipo, mas simações corporicadas [enactions] no mundo.20 Quandovocê assobia uma meodia nova, ou conta uma história pea primeira vez, você não está simpesmente convertendo

em comportamento manifesto uma estrutura que já existecompetamente formada em sua mente. Mais exatamente,a forma da meodia ou da história surge e é suspensa dentroda própria corrente da atividade, situada, aiás, dentrode um ambiente que incui a mim, o ouvinte. E quandoouço, eu não converto o padrão de estímuo acústico de

volta numa estrutura menta, mas ainho o movimento da

minha atenção de maneira ta que ee ressoa com o da suaação. Em outras paavras, eu não sou – como Sperber diria(1996, p. 32) – o ‘usuário’ de uma forma que você mesmo‘produziu’, mas em vez disso me juntei com você, emborasienciosamente, no processo de sua produção. Isso vaetambém para ohar a atividade do cozinheiro na cozinha:novamente, o movimento de minha atenção ‘acompanha’o do cozinheiro enquanto ee desempenha sua tarefa.Ouvir ou ohar, neste sentido, é acompanhar um outroser, seguir – mesmo se apenas por um breve momento – o mesmo caminho que este ser percorre peo mundo da

vida, e tomar parte na experiência que a viagem permite.Essenciamente, nesta jornada, tanto o observador quantoo observado viajam na mesma direção. Ouvir, em suma,não é o inverso de assobiar ou faar, nem ohar é o inversode fazer, pois ‘ambos são orientados na mesma direção peo movimento da consciência’ (INGOlD, 1986, p. 273).

Como é possíve, então, que tendo ouvido vocêassobiar uma meodia, que tavez eu nunca tenha ouvidoantes, eu seja encontrado mais tarde assobiando exatamenteaquea mesma meodia? Com certeza, dirá aguém, não hánenhuma maneira de expicar esta notáve capacidade derecordar, a não ser supondo que a meodia exista, de aguma

forma, ‘dentro da minha cabeça’ – ou seja, como umarepresentação menta. Este, é caro, é o ponto de vista deSperber. Quer dizer que a própria mente, com seus várioscompartimentos de domínio especíco, é repositório parauma quantidade imensa de tais representações, e que oato de recordar é questão de acessar ou ‘invocar’ umarepresentação especíca lá de onde está armazenada, paraque ea possa então ser convertida em comportamentoexpícito. Adotar este ponto de vista, todavia, é forçar uma distinção entre os atos de recordar e desempenhar.O primeiro é considerado uma pura operação inteectua,

executada excusivamente dentro do espaço da mente,enquanto o útimo é considerado uma pura operaçãofísica ou comportamenta, empreendida posteriormente peo corpo. Esta distinção essenciamente cartesianaevoca uma outra à qua já me referi, e que é centra paraa expicação de ação inteigente da ciência cognitiva,entre resover probemas e impementar corporamenteas souções encontradas.

Ao criticar esta explicação, armei que resolver  probemas é inseparáve dos movimentos reais da pessoaem ação no cenário da prática, e que, portanto, ter resovidoum probema é ipso facto ter impementado a soução.

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Com este mesmo argumento, eu armaria agora que arecordação e o desempenho são unos e indiferenciáveis:que assobiar uma meodia é recordá-a. Isto – ouvindooutra vez a observação de Rubin (1988) – é compreender o recordar não como o acesso a uma estrutura compexa,mas como o desdobramento de um processo compexo.Assobiar uma meodia ou contar uma história que você

ouviu no passado é como andar peo campo ao ongo deum caminho que você já percorreu antes em companhia deoutra pessoa. Você se embra à medida que vai andando,sendo que aqui ‘ir andando’ signica encontrar seu próprio caminho peo terreno de sua experiência. Assima meodia ou história é uma jornada reaizada, ao invésde um objeto encontrado, e ter se embrado do caminho já é ter chegado ao seu destino. Porém, se cada assobio,ou narrativa, for uma jornada separada, como poderemosdizer de duas jornadas quaisquer que eas são de fato amesma? Para Sperber, cada desempenho é o sina de uma

representação, de modo que assobiar a mesma meodiaem diferentes ocasiões é retirar duas répicas do mesmomode. A simiaridade é dada desde o início. As jornadas,no entanto, só podem ser comparadas retrospectivamenteem termos do caminho andado. Assim como acompanhar aguém é andar o mesmo caminho através do mundo deexperiência vivida, embrar é também a pessoa refazer seus passos. Mas cada repasse é um movimento origina,não uma répica.

Finamente, se as formas que as coisas tomam, sejana imaginação ou no terreno, surgirem dentro da correnteda atividade envovida num campo de prática (INGOlD,

1995b, p. 76), então não há mais nenhuma necessidadede supor que, para ser percebida por outros, uma formatem de ter cruzado um imiar da interioridade do meucérebro para o mundo externo ou, inversamente, que, para ser conhecida por mim, ea tenha de ter cruzado oimiar na direção contrária, do ambiente ao redor parao meu cérebro. Seria errado, como argumentei em outrotrabaho (INGOlD, 1992, p. 51) pensar na interface entrecérebro e ambiente como uma área de contato entre doiscampos mutuamente excusivos, menta e púbico, respecti-vamente; antes, para usar o termo de Bohm (1980, p. 177),

cada um está ‘impicado’ no outro. Assim, ao ongo dodesenvovimento, a história das reações de uma pessoacom o seu ambiente está envolvida em estruturas especícasde atenção e resposta, neuroogicamente fundamentadas.Do mesmo modo, envovidas dentro das variadas formas eestruturas de ambiente estão as histórias das atividades de pessoas. Em suma, as estruturas neuroógicas e as formas(artefatos) que Sperber chama de representações não sãocausas e efeitos umas das outras, mas emergem juntascomo momentos compementares de um processo único – isto é, o processo da vida das pessoas no mundo. É dentrodeste processo que todo conhecimento é constituído.

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notAs1 As referências a Dan Sperber devem ser compreendidas no contexto dodebate que Ingod estabeece com este autor cujo artigo Menta Moduaritand Cutura Diversit está pubicados na primeira parte da mesma coetânea,H. Whitehouse (ed.), The debated mind: evoutionar pschoog versusethnograph. Oxford: Berg, 2001. (n.t)2 Este artigo nasceu de discussões em uma série de seminários sobre‘Memória e Transmissão Socia’, reaizados na Queen’s Universit,Belfast, em 1994 e 1995, e nanciados pelo Conselho de Pesquisa Sociale Econômica. Agradeço aos organizadores da série, Elizabeth Tonkin eHarve Whitehouse, por tornarem essas discussões possíveis, e a todos os participantes por muitas horas de frutífera troca, da qua tanto aprendi. Aorevisar o capítulo, fui altamente beneciado com os comentários de doisleitores prestimosos, mas anônimos.3 Esta é também a concusão acançada por Johnson-laird, que considerao aprendizado como ‘a construção de novos programas a partir de eementosda experiência’. Programas, todavia, não podem ser construídos de ar rarefeito. Para aprender quaquer coisa, você precisa já ter um programacomandando o processo de construção. Aquio, também, pode ter sidoconstruído do mesmo modo, através do processamento de input experienciade acordo com ainda outro programa: ‘você pode aprender a aprender, masentão aquee aprendizado dependeria de outro programa, e assim por diante.Basicamente, aprender deve depender de programas inatos que fazem programas’ (JOHNSON-lAIRD, 1988, p. 133, ênfase minha).4 Ingod está se referindo a artigo ‘Some Eements of a Science of 

Cuture’ de Henr Potkin, pubicado como capítuo 2 da mesma coe-tânea onde este artigo de Ingod está inserido: H. Whitehouse (ed.), Thedebated mind: evoutionar pschoog versus ethnograph. Oxford: Berg,2001. (n.t.)5 Uso o termo ‘neodarwiniano’ para me referir à chamada ‘síntesemoderna’ de seleção natural e genética de população, e à armação de queas duas juntas tornam-se necessárias e sucientes para explicar a evoluçãodas coisas vivas (Manard Smith, 1969). Se o neodarwinismo representaum renamento ou um travestismo das idéias originais de Darwin é umaquestão controversa que não vou abordar aqui.6 Que assim é pode ser conrmado por meio de uma simples experiênciamenta. Imaginem um organismo O1 no tempo T1, e seu descendente(muitas gerações distante) O2 no tempo T2. suponhamos, primeiro, queno período de T1 a T2 as condições ambientais permaneceram inateradas,mas ocorreram alterações signicativas na constituição genética doorganismo. Comparando O1 e O2, concuímos que houve uma evoução

de forma. Num segundo caso, suponhamos que não houve mudançanos genes do organismo mas que as condições ambientais se ateraramsignicativamente. Supercialmente, as diferenças entre O1 e O2 são iguaisàs do primeiro caso e ainda assim, ao compará-os desta vez, concuímosque não ocorreu evoução nenhuma, e que O1 e O2 são apenas expressõesmanifestas do mesmo desenho básico (ver OyAMA 1985, p. 40-41). Oresutado ambientamente induzido, no segundo caso, é considerado uma‘fenocópia’ daquio que foi produzido por mudança genética no primeiro.Curiosamente, porém, o útimo jamais é mencionado como uma ‘genocópia’do primeiro (COHEN e STEWART, 1994, p. 307).7 Ingod se refere ao artigo ‘Cutura Inheritance Tracks and CognitivePredispositions: The Exampe of Reigious Concepts’ de Pasca Boer   pubicado como capítuo 2 da coetânea: The Debated Mind: EvoutionarPschoog versus Ethnograph. Contributors: Harve Whitehouse - editor.Pubisher: Berg. Pace of Pubication: New york. Pubication year: 2001. (n.t.)8 Para uma discussão mais substancia da diferença entre a abordagemde sistemas desenvovimentais e o interacionismo padrão, ver Ingod(1996a).9 É simpesmente impossíve reconciiar a aegação de construção sóidacom a subsequente admissão de Toob e Cosmides de que ‘o geneticamenteuniversa pode ser expresso desenvovimentamente como desenhosmaturacionais diferentes no bebê, na criança, no adoescente e no aduto;em muheres e homens; ou em indivíduos que se deparam com diferentescircunstâncias’ (1992, p. 82).10 Como Dent (1990: 693) observa, ‘nascimento é uma transição, não um ponto de início mágico antes do qua a experiência não pode desempenhar um pape’. Há evidência de que a experiência pré-nata de sons vocais eva bebês recém-nascidos a expressar preferências especícas por certas vozesou mesmo trechos faados (DeCASPER e SPENCE, 1986).11 Greeneld (1991), por exemplo, mostrou como circuitos neurológicosdistintos, subjacentes respectivamente às capacidades de faa e de usode ferramentas, emergem em desenvovimento de um substrato comumidenticado com a área de Broca, através do estabelecimento de cone-  

xões separadas embora paraeas com as regiões anteriores do córtex pré-fronta.12 Segundo Potkin, os ‘humanos, e outros animais que podem aprender,vêm ao mundo sabendo o que precisam aprender e sobre o que pensar’.Esta armação se baseia numa distinção entre o que é conhecido desdeo início e o que é trazido para dentro posteriormente. Se isto não é umcaso da dicotomia inato/adquirido, ca difícil saber o que é. Quase nomesmo fôlego, Plotkin monta a dicotomia e logo em seguida repreendecientistas sociais como eu por supormos que ee e seus coegas psicóogosevoucionários são capazes de fazer ta coisa!13 Ver Theen (1995) e A. Cark (1977, p. 42-5) para maior discussão destaidéia.14 Uma indicação da tenacidade das metáforas de recipiente e conteúdo,a respeito de mente e cutura, é que num trabaho dedicado a demoir anoção de genes como recipientes de informação que é repicáve atravésdas gerações independentemente dos contextos de desenvovimento, Cohene Stewart podem apesar disso faar de cutura humana como ‘um vastodepósito de informação’, disponíve ‘para ser despejada em cada criançaem desenvovimento’ (1994, p. 357). Esta descontextuaização do contextode desenvovimento humano, sua redução a uma massa de partícuas deinformação utuando à deriva, é desastrosa para o argumento como umtodo. Como laughin, McManus e d’Aquii observaram (1992, p. 66),‘quaquer visão que constrói o aprendizado como um processo de despejar ... informação em um cérebro “de disquete”, passivo, onde ea é entãoabsorvida e guardada em memória, é totalmente ... errônea e anacrônica’(1992, p. 66). Ver também Shore (1996, p. 7).

15 Considerando que Sperber, também, agumas vezes apresenta seu programa num idioma quase ecoógico, vou expicar como o meu tipode ecoogia difere do seu. A proposta de Sperber é ‘reconhecer apenasorganismos humanos no seu ambiente material (seja ele natural ou articial)e enfocar estados e processos mentais individuais desses organismos ecausas e efeitos físico-ambientais dessas coisas mentais’ (1996, p. 99).Mesmo se concordarmos com Sperber que ‘coisas mentais’ podem ser ‘naturalizadas’ (ibid., p. 158, nota 27), isto é, tratadas como conguraçõesespecícas em nível neurológico, esta abordagem coloca o que estádentro do organismo (estados mentais) e o que está fora dee (o ambientefísico) como entidades, ou casses de entidade, mutuamente excusivas,que só mais tarde são juntadas e evadas a interagir. Em contraste, umaabordagem propriamente ecoógica, no meu modo de ver, é aquea que tratao organismo-no-seu-ambiente não como um compósito de fatores internos eexternos, mas como uma totaidade indivisíve. Esta totaidade é, na verdade,um sistema desenvovimenta, e a ecoogia ida com a dinâmica de tais

sistemas.16 ‘Taskscape’ é um neoogismo com que o autor se refere por associa-ção a uma paisagem (andscape) de sinaizações. Um neoogismo em português poderia ser ‘tarefagem’, mas preferimos manter o termo emingês. (n.t.)17 Mereau-Pont cita em defesa desta idéia o trabaho pioneiro de PauGuiaume, pubicado originamente em 1926, sobre imitação entrecrianças (GUIllAUME, 1971). Posteriormente, Bourdieu faz exatamentea mesma observação, quase com as mesmas paavras: ‘A criança nãoimita “modeos” mas ações de outras pessoas’ (BOURDIEU, 1977, p. 87).Conrmação empírica recente, a respeito de imitação na infância, éfornecida por Metzoff (1993). Ee mostra como através de ‘babucios’,não apenas com a voz mas também com os membros e a face, os bebês sãocapazes de combinar os movimentos que ees próprios sentem fazer comos movimentos que observam da parte de outras pessoas em torno dees.Esse tipo de ‘mapeamento intermoda ativo’ (AIM), diz Metzoff, forneceuma ponte para a compreensão dos outros como pessoas com intenções edesejos, nos quais estariam as fontes das ações observadas.18 Esses pontos são ecoados por Hutchins: ‘Em vez de conceber a reaçãoentre pessoa e ambiente em termos de informação codicada em movimentoatravés de uma fronteira, busquemos processos de carreamento, coordenaçãoe ressonância entre eementos de um sistema que incui uma pessoa e osarredores de uma pessoa’ (1995, p. 288).19 Onde Sperber faa de representações, outros autores em antropoogiacognitiva ançaram mão da noção de ‘modeos’. Assim Shore (1996, p. 46-52)faz uma distinção entre ‘modeos mentais’ e ‘modeos instituídos’ que seguerigorosamente a mesma direção da distinção de Sperber entre representaçõesmentais e púbicas. Mas os probemas e ambigüidades inerentes a ta métodosão exatamente os mesmos.20 Tomo emprestado o termo ‘enaction’ de Varea, Thompson e Rosch(1991, p. 173), que o usam como abreviação de ‘ação corporicada’. Elesquerem se referir com isso a uma ação que é dirigida de forma perceptiva e baseada em experiência sensório-motora.