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A NOÇÃO DE REDE REGIONAL: REFLEXÕES A PARTIR DA MIGRAÇÃO "GAÚCHA" NO BRASIL ROGÉRIO HAESBAERT* The concept of regional network: its application to "gaúcho" migration in Brazil The concept of regional network is proposed as an use fui tool for the study of migration. Regional networks arise when migrants create in lhe incoming region the institutions which they had left behind. "Gaúcho" migration is a good example of tnis. After leaving the southemmost Brazilian state of Rio Grande do Sul, "gaúchos" tend to reproduce cultural patterns in the new setting in arder to preserve their original territorial identity. This is done by means of the creation of "Gaúcho" Heritage Centers (C'I Ge), which form a non- contiguous "gaúcho" network- territory in the country. Este artigo visa clarificar uma noção que propusemos como resulta- do de uma pesquisa empírica bastante detalhada que envolveu os fluxos mi- gratórios de sulistas pelo interior do Brasil (HAESBAERT, 1997). Esta pesqui- sa, desenvolvida de forma mais prolongada através de uma "observação par- ticipante" entre os sulistas migrantes na região Nordeste, especialmente no oeste baiano e sul do Piauí, acabou se estendendo, através de outras fontes de dados, para todo o Brasil. Iniciamos nosso trabalho utilizando a metáfora "diáspora" para enfatizar a força deste fluxo migratório e seus vínculos com uma identidade cultural cujas bases históricas e geográficas (o espaço apro- priado simbolicamente para sua construção, a estância latifundiária da "Cam- panha" gaúcha) já haviam sido analisadas em pesquisa anterior (HAESBAERT, 1988). Após discutirmos as principais propostas conceituais para território e rede, chegamos à conclusão de que a geografia desenhada por grande parte desses sulistas no interior do país necessitava de uma outra noção para ser apreendida. Daí a nossa proposição de "rede regional" que, imbricada de • Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense

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A NOÇÃO DE REDE REGIONAL:REFLEXÕES A PARTIR DA MIGRAÇÃO

"GAÚCHA" NO BRASIL

ROGÉRIO HAESBAERT*

The concept of regional network: its application to"gaúcho" migration in Brazil

The concept of regional network isproposed as an use fui tool for thestudy of migration. Regionalnetworks arise when migrantscreate in lhe incoming region theinstitutions which they had leftbehind. "Gaúcho" migration is agood example of tnis. After leavingthe southemmost Brazilian state of

Rio Grande do Sul, "gaúchos" tendto reproduce cultural patterns in thenew setting in arder to preservetheir original territorial identity. Thisis done by means of the creation of"Gaúcho" Heritage Centers(C'I Ge), which form a non-contiguous "gaúcho" network-territory in the country.

Este artigo visa clarificar uma noção que propusemos como resulta-do de uma pesquisa empírica bastante detalhada que envolveu os fluxos mi-gratórios de sulistas pelo interior do Brasil (HAESBAERT, 1997). Esta pesqui-sa, desenvolvida de forma mais prolongada através de uma "observação par-ticipante" entre os sulistas migrantes na região Nordeste, especialmente nooeste baiano e sul do Piauí, acabou se estendendo, através de outras fontesde dados, para todo o Brasil. Iniciamos nosso trabalho utilizando a metáfora"diáspora" para enfatizar a força deste fluxo migratório e seus vínculos comuma identidade cultural cujas bases históricas e geográficas (o espaço apro-priado simbolicamente para sua construção, a estância latifundiária da "Cam-panha" gaúcha) já haviam sido analisadas em pesquisa anterior (HAESBAERT,1988). Após discutirmos as principais propostas conceituais para território erede, chegamos à conclusão de que a geografia desenhada por grande partedesses sulistas no interior do país necessitava de uma outra noção para serapreendida. Daí a nossa proposição de "rede regional" que, imbricada de

• Professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense

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forma complexa, em diferentes níveis, a várias outras redes, é um dos com-ponentes fundamentais dos processos de construção-destruição e reconstru-ção de territórios (ou de des-re-territorialização) no espaço brasileiro contem-porâneo.

Da metáfora "diáspora" à noção de "rede regional" gaúcha

São muito conhecidas a "tradição (i)migrante" que muitos sulistas di-zem "levar no sangue" ("europeu", ou seja, de descendentes de italianos ealemães) e características que, interna e/ou externamente difundidas, fazemdeste migrante um "pioneiro", um "desbravador" e até mesmo um "novo ban-deirante" que tem expandido nas últimas décadas parte da "modernização"(agrícola, basicamente) do interior brasileiro. Mesmo questionando em nossotrabalho todos os estereótipos que criam uma identidade homogeneizadora,moldada sempre por emblemas de "superioridade" e "bravura", identidadeque se reforça ainda mais frente aos estigmas negativos imputados à identi-dade nordestina ou baiana (a principal relação por nós analisada foi entrebaianos e gaúchos, mas isto também se reproduz, com algumasespecificidades, em todas as áreas de migração sulista), fica evidente, emvários momentos, a eficácia simbólica desses mitos' . Como toda representa-ção, esses mitos podem influenciar e mesmo desencadear processos con-cretos que chegam, no seu extremo, a promover a segregação socioespacial:vide os bairros "gaúchos" em Barreiras (BA) e Balsas (MA), as várias emanci-pações político-administrativas e tentativas de formação de novos Estados(como o de Araguaia, no Mato Grosso, e o do São Francisco, na Bahia) ali-mentadas em diferentes níveis por essa distinção de base identitária.

Essa migração sulista na verdade remonta ao início do século, quandose consolida o processo de privatização das terras no Rio Grande do Sul e os"colonos" descendentes de imigrantes (especialmente italianos e alemães)começam a deslocar- se para novas áreas, inicialmente áreas de mata (comonos seus espaços de origem, já que no século XIX lhes foram destinadas asáreas de mata ainda desocupadas do Sul do país), no oeste de Santa Catarinae oeste do Paraná. Somente mais tarde é que, naquilo que alguns supõemser uma confirmação da "índole naturalmente desbravadora" dos sulistas (naverdade referindo-se a um grupo bem definido: pequenos agricultores e capi-

1 Mito no sentido de possuírem uma origem naturalizada, a-históríca, passível de serreatualizada por meio de ritos que, no caso dos gaúchos, têm sua evidência maisconcreta na prática dos CTGs (Centros de Tradições Gaúchas), onde se busca reviverum tempo de heroísmo que remonta a República Rio·Grandense da Guerra dos Far-rapos (1835-1845), cuja data de proclamação (20 de setembro) é feriado oficial noRio Grande do Sul e motivo de grandes comemorações em todas as áreas de migra-ção sulista.

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talistas ligados à atividade rural, descendentes de imigrantes), passa-se a"colonizar" também áreas de campo e cerrados.

A ocupação e modernização (capitalista) dos cerrados teve na verdademuitos outros agentes que não o sulista (denominado, de forma genérica "ga-úcho", venha ele do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, do Paraná ou deoutras áreas para onde já havia migrado, como o Mato Grosso). Entra aí prin-cipalmente a atuação do Estado, seja através da EMBRAPA e seus investi-mentos em biotecnologia (descobrindo novas sementes de soja adaptadasaos solos e ao clima dos cerrados), seja por meio de subsídios à produção(que, no início dos anos 80, restritos à área de atuação da SUDENE, levarammuitos sulistas a passar dos cerrados do Centro-Oeste para os do planaltoocidental baiano). Muitos capitalistas de outros estados como São Paulo eMinas, e mesmo do próprio Nordeste, também atuam na difusão dessa mo-dernização, alguns tão "pioneiros" (ou "invasores", como diziam muitosbaianos) quanto os "gaúchos".

Trata-se assim de enfatizar que aquilo que denominamos inicialmentede "diáspora" gaúcha não é um processo de expulsão por motivos político-culturais, como originalmente a noção indica (relacionada ao êxodo dos ju-deus) mas sim econômicos, pois tanto o capitalista que migra para expandirseus lucros quanto o sem-terra que vai em busca de terra e trabalho sãomovidos por diferentes faces da mesma lógica de concentração dos meios deprodução e da especulação imobiliária e financeira (tão presente nessas "fron-teiras agrícolas" dominadas pelo complexo agroindustrial da soja que SAN-TOS FILHO et aI. [1988] usam a denominação fronteiras do capital financei-ro). No caso dos sulistas trata-se mesmo de um processo inverso: se fossepelo poder simbólico (cf. BOURDIEU, 1989) de sua identidade territorial/regi-onal, muitos deles certamente prefeririam permanecer em seus territórios deorigem. A migração tem antes de tudo uma base econômica, pela pressão e aexpansão da dinâmica capitalista, embora também carregue, de formaindissociável, o mito "imigrante" de dominação e difusão de inovações emoutras terras.

Ocorre que uma leitura que se restrinja à dimensão econômica do pro-cesso acaba simplificando uma dinâmica muito mais ampla, que a velha "de-terminação econômica" não consegue dar conta. Se mesmo no interior docircuito econômico encontramos múltiplas conexões e conflitos (entre ban-queiros, Estado, especuladores imobiliários, empresários rurais, industriais,grandes prestadores de serviços, sem falar nas relações entre patrões e clas-ses subalternas), imagine-se o grau de complexidade quando introduzimoselementos de ordem política e cultural (vide, por exemplo, o papel docoronelismo nordestino na estrutura de poder municipal/estadual e seus con-flitos e alianças com políticos sulistas).

A trama geográfica desenhada entre os múltiplos segmentos da migra-ção sulista demonstrou que entravam outras "variáveis", especialmente deordem político-cultural, conectadas de diversas formas aos processos de na-

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tureza econômica. Quer dizer, não era apenas a grande rede do capital nasescalas regional, nacional e global que explicava padrões de ordenação dasociedade e do território através do qual aqueles grupos se reproduziam.

Clarificado de forma muito mais detalhada para o oeste baiano e man-chas de cerrado no alto da Chapada Diamantina e sul do Piauí, esse raciocí-nio acabou se estendendo para outras áreas de migração sulista e foi possí-vel, no final do trabalho, demonstrar, inclusive através de mapeamentos emescala nacional, que a manutenção e mesmo o (re)fortalecimento da identi-dade sulista ou "gaúcha" era um importante complicador neste novo quadrode relações sociais. Também foi possível compreender o caráter ao mesmotempo uno e múltiplo, estático (pretensamente "a-histórico", mítico) e pro-cessual de (re)construção dessa identidade. Buscamos demonstrar este fatoatravés de um esquema (v. quadro 1) onde distinguimos algumas das diferen-tes dimensões/segmentações no interior da pretensamente monolítica identi-dade gaúcha.

Muitos sulistas se vêem de forma muito distinta do restante dos brasi-leiros. Corroborando esta perspectiva, a herança cultural gaúcha, revi vidaatravés dos Centros de Tradições (CTGs), faz com que muitos se julguem "opovo mais tradicionalista" do país". Mesmo aí, entretanto, há um tradiciona-lismo mais progressista, cujos participantes são conhecidos como "nativístas"(que usam a música regional para pregar a reforma agrária, por exemplo) eum tradicionalismo mais conservador (muitos de seus praticantes são deno-minados na Bahia, pejorativamente, de "bombachistas"), sem falar nos sulis-tas que não se identificam com as práticas do gauchismo. A origem étnica ereligiosa também é outro elemento diferenciador entre os sulistas, com pre-domínio do protestantismo luterano entre os descendentes de alemães e docatolicismo entre os descendentes de italianos, que por longo tempo tiveramsuas culturas relativamente separadas dentro do próprio Rio Grande do Sul,evitando inclusive casamentos interculturais. A origem étnica "européia", querdizer, ítalo-germânica (pois existem os gaúchos descendentes de portugue-ses e espanhóis, ocasionalmente com traços ameríndios e africanos, deno-minados "pêlos-duros"), é um elemento de distinção que muitas vezes sesobrepõe até mesmo a uma identidade de classe, como demonstra COSTA(1994) para acampamentos de sem-terra em Mato Grosso, em que sulistas enordestinos reproduzem preconceitos mútuos.

Quanto às classes socioeconômicas, embora predominem nos CTGsas classes média e alta (até pela dificuldade, para os sulistas mais pobres,mesmo "tradicionalistas", de "pilchar-se" [vestir-se a rigor] e filiar-se a um

2 Há mesmo quem veja o MTG - Movimento Tradicionalista Gaúcho - como "a maiormanifestação de regionalismo do país", com cerca de 2 milhões de filiados no Brasile no exterior (rev. Veja, 14.09.1994, "A nação gaúcha"). Para uma análise aprofundadadas contradições e uma perspectiva histórica do MTG ver OLlVEN (1992).

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QUADRO 1Principais segmentações e interseções na identidade "gaúcha"

(especialmente entre migrantes, fora do Sul do Brasil)

"GAÚCHOS" "BRASILEIROS"I _

TRADICIONALISTAS --"MODERNIZADORES"I _Prática do

TRADICIONALISMO

Conservadores("bombachistas")

Progressistas

Origem ÉTNICO-"NACIONAL" eRELIGIOSA

"ALEMÃES"I

LUTERANOS

"ITALIANOS" "PÊLOS-DUROS"~ /'

CATÓLICOS

CategoriasSOCIOECONÔMICAS

SEM-TERRA! CLASSES MÉDIAS CAPITALISTASSEM-TETO

Principais filiaçõesPOLÍTICO-PARTIDÁRIAS

PFL PSDB PMDB<,alianças com "coronéis" nordestinos

PDT PT

Origem GEOGRÁFICA ZONAS RURAIS PEQUENAS OU GRANDESCIDADES

Diferenças deGÊNERO GAÚCHO GAÚCHA

("puxa mais pela raíz")DiferençasETÁRIAS CRIANÇAS JOVENS ADULTOS IDOSOS

CTG), não é possível reconhecer uma vinculação estrita entre classe social efortalecimento da identidade. Por fim, as múltiplas posições político-partidári-as revelam outro cornplicador na definição da identidade gaúcha, isto semfalar no fato da diferença de gênero e por faixa etária, pois a mulher e os maisidosos geralmente têm uma vivência da identidade e uma vinculação com aterra de origem bastante distinta da do homem gaúcho (adulto, "chefe dacasa"), muito mais impregnado do ideário capitalista. No oeste baiano muitasdonas de casa afirmavam que "a mulher é que puxa pela raiz", geralmentemigrando contra a sua vontade e atendendo às imposições do marido. Eramuito raro encontrar idosos, e os poucos casamentos com baianos/as que

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encontramos ocorriam entre alguns jovens mais progressistas (como o fun-dador do PT em Barreiras).

Mas, ao mesmo tempo em que é fragmentada e está em constantemutação, variando de intensidade tanto no espaço - vide a força atual doMTG em Mato Grosso - quanto no tempo - vide o arrefecimento da identida-de regional gaúcha, principalmente nos períodos ditatoriais como o de Vargase dos militares pós-64 - esta mesma identidade é que é ativada no sentido desedimentar elos de união e solidariedade entre diversos segmentos dos gru-pos migrantes. Respeitadas essas características de diversidade espaço-tem-poral, a identidade gaúcha, representada por exemplo na difusão de C'TGspor todo o interior do país, como mostra a tabela 1, forma uma grande rede,em parte fortalecida ou mesmo alicerçada por outros elementos de ordemeconômica (como a migração periódica de trabalhadores especializados con-tratados no Sul e a manutenção de vários laços entre cooperativas e empre-sas que mantêm suas sedes no Sul do país) e política (vide a expressiva

Tabela 1CENTROS DE TRADiÇÕES "GAÚCHO" NO BRASil

(total por estados e por regiões)

Rio Grande do Sul 1.616Santa Catarina 245Paraná 222São Paulo 51Mato Grosso 36Mato Grosso do Sul 15Goiás 7Rondônia 5Bahia 3Distrito Federal 2Tocantins 2Am~o~s 2Pará, Maranhão, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco,Sergipe, Minas Gerais, Rio de Janeiro 1 cada

REGIÃO SUL 2.083REGIÃO CENTRO-OESTE 60REGIÃO SUDESTE 53REGIÃO NORTE 10REGIÃO NORDESTE 8

FONTES: CBTG (Confederação Brasileira do Tradicionalismo Gaúcho) e MTGs (se-ções do Movimento Tradicionalista Gaúcho) no Brasil (1993 e 1994).

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parcela de sulistas que não transfere o título de eleitor ou que vota em candi-datos sulistas - gerando o que uma jornalista denominou, para o caso deMato Grosso, "voto étnico"). A intensidade dos fluxos com o Sul é manifesta-da, por exemplo, na quantidade de linhas de ônibus como as que ligam dia-riamente Santa Maria (RS) e Barreiras (BA), Porto Alegre (RS) e Canarana(MT), Cascavel (PR) e Porto Velho (RO) etc.

Todas essas evidências empíricas nos encaminharam para a formu-lação de um novo conceito ou, pelo menos, de uma noção que, de umponto de vista geográfico, pudesse dar conta dessa realidade complexa emulti facetada. Partindo de conceitos tradicionais como os de território, redee região, chegamos até a noção de rede regional. É este caminho, agorasob um ponto de vista que prioriza a discussão teórica, que percorreremosa seguir.

o binômio território-rede e a questão da identidade territorial

Embora sejam concepções de origem muito antiga, remontando nomínimo ao século passado, território e rede sofreram nos últimos anos umaverdadeira reviravolta conceitual que inclusive extrapolou as fronteiras daGeografia. Junto a elas devemos lembrar a intensidade com que passaram aser utilizadas as noções de territorialização e desterritorialização (alguns exem-plos, fora da Geografia, encontram-se em IANNI [1992] e ORTIZ (1995], parao caso brasileiro, e em DELEUZE/GUATIARI [1976] e BADIE [1995], para oâmbito francês). O problema, na maioria das vezes, é que as ciências sociaisredescobriram ou deram nova importância à dimensão territorial dos proces-sos sociais mais para dizer que o território está desaparecendo do que paradestacar, de fato, a relevância de sua análise.

Este processo complexo, que RAFFESTIN (1993) denomina de T-D-R:Territorialização/Desterritorialização/Reterritorialização, foi uma das bases deonde partimos para o entendimento daquilo que denominamos "binômio terri-tório-rede" (HAESBAERT, 1995). O território, no nosso ponto de vista, não éapenas um espaço dominado/apropriado, no sentido político-econômico dotermo, como muitos enfatizam. LEFEBVRE (1986) já propunha uma distinçãoentre dominação, num sentido econômico-político, e apropriação, num senti-do simbólico-cultural. Preferimos ver o território com esta dupla face, ou seja,como "o produto de uma relação desigual de forças, envolvendo o domínio oucontrole político do espaço e sua apropriação simbólica", reconhecendo que"a dominação tende a originar territórios puramente utilitários e funcionais,sem que um verdadeiro sentido socialmente compartilhado e/ou uma relaçãode identidade com o espaço possa ter lugar" (HAESBAERT, 1995:35).

Dessa forma. podemos afirmar que o território é um espaço sobre/pormeio do qual:

• se exerce um controle, um poder, politicamente estruturado/estruturante (dai o papel fundamental de um de seus elementos, a fronteira):

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• estabelece-se uma apropriação simbólica, ou seja, relações sociaisproduzem ou fortalecem uma identidade utilizando como uma referência fun-damentai o espaço.

O território terá sempre como uma de suas propriedades o assenta-mento, a ocupação de uma área, ou, se preferirmos, um certo grau de"enraizamento", concreto e simbólico, do grupo social que ali se reproduz.Como já ressaltavam antigos geógrafos, o homem tem sempre "uma raiz naterra", é um ser social e biológico, cultural e natural ao mesmo tempo. Istonão implica, contudo, em hipótese alguma, "naturalizar" a relação do homemcom o espaço, naturalizando a noção de território e de identidade territorial.Mas também não se pode incorrer no equívoco oposto: desnaturalizar com-pletamente o homem, sob a velha crença "moderna" (instrumental/ tecnicista)do pleno domínio e manipulação da "natureza". Assim, uma concepção deterritório que prescinda de uma base física ou natural é uma noção abstrata,como algumas vezes aparece no discurso metafórico de alguns filósofos ecientistas sociais". É neste risco que também incorremos quando reduzimosou diluímos hoje o conceito de território ao conceito (ou noção, se quiserem)de rede. A polissemia do termo rede é tão vasta que inclui, e isto de maneiracrescente nos últimos anos, a visão de redes puramente imateriais e/ou sim-bólicas.

Desse modo, propomos definir território (ou suas distintas manifesta-ções) considerando:

a. as formas e a intensidade com que se apresenta a relaçãoindissociável entre sua dimensão predominantemente material, político-eco-nômica (reconhecida, por exemplo, na força de controle do acesso proporcio-nada por suas fronteiras, como enfatizou SACK, 1986, ou no território como"todo espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder", comodefine SOUZA, 1996:111), e sua dimensão mais imaterial, simbólico-cultural(manifestada pela coesão e o poder simbólico da identidade territorial por eleveiculada);

b. a configuração espacial que ele manifesta, seja como uma únicasuperfície, contínuo, seja como um conjunto de superfícies, fragmentado; nestecaso é imprescindível enfatizar a imbricação território-rede pois, como de-monstrou nosso trabalho, territórios são marcados sobretudo pelahorizontal idade espacial" e, especialmente quando fragmentados, necessi-tam de redes (ainda que imateriais) para sua articulação.

Insistimos, por isso, tanto no reconhecimento da íntima relação einterpenetração entre territórios e redes, quanto no reconhecimento de algu-mas especificidades. Na definição de um território a partir de sua relação com

3 Ver, por exemplo, alguns usos da expressão "território" feitos por DELEUZE eGUATIARI [1991], especialmente no capo 4, Géophilosophie.4 Sobre as noções de horizontal idade e verticalidade do espaço, ver SANTOS (1994,1996).

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as redes podemos ter pelo menos duas situações que, por sua vez, depen-dem da dimensão social e da escala que priorizarmos em nossa análise:

- o território é mais amplo do que as redes, sobrepondo-se a elas, casoem que as redes se tornam "elementos" constituintes ou fortalecedores doterritório, caso típico dos Estados-nações quando vistos a partir das redespolítico-administrativas e socioeconômicas que lhes dão uma (relativa) coe-são interna, tendo, neste sentido, um papel territorialízador. dialeticamente, oterritório, por meio de suas fronteiras, pode manter ou fortalecer a coesãodessas redes, ao controlar os fluxos dirigidos para fora deste território.

- o território é mais restrito do que as redes, quando estas se sobre-põem a eles, podendo participar de dois processos distintos: um de ordemterritorializadora, quando a(s) rede(s) servem de articulação para territóriosfragmentados (caso da "rede regional gaúcha" aqui analisada); outro de or-dem desterritorializadora, quando a(s) rede(s), com seu caráter extrínsecopreponderando em relação a um território, atua(m) na sua desarticulação (po-dendo, entretanto, rearticular territórios em outras escalas, como é o casodas "empresas-rede" multinacionais [CHESNAIS, 1996]).

Entre suas especificidades, o território, mais do que as redes, incorpo-ra uma base física, material, e certo nível de continuidade ou extensão sobrea superfície da Terra. Muitas redes, ao contrário, podem ser basicamenteimateriais, como algumas redes de comunicação representadas materialmentepor meros emissores/receptores ou "antenas" de conexão na superfície daTerra e redes de solidariedade mantidas sem uma clara fundamentaçãoterritorial (como o movimento feminista).

Por estarem sempre, em maior ou menor intensidade, interligados, pro-cessos de desterritorialização promovidos no contexto das redes podem fa-cilmente gerar novos territórios, em outras escalas, o que faz com que sejacada vez mais comum encontrarmos o fenômeno da sobreposição de territó-rios. Na verdade, não existe nunca um processo exclusivamenteterritorializador ou desterritorializador, há apenas o predomínio de uma dinâ-mica sobre a outra, dependendo do fenômeno ou dimensão social e da esca-la focalizados.

A rede possui uma característica muito importante que é a de nuncaconseguir preencher de forma contínua o espaço geográfico. Uma rede quese tornasse uma malha tão compacta a ponto de preencher todo um espaçodeixaria de ser rede. É por isso que o uso do termo se disseminou com tantarapidez nos últimos anos, num mundo em que a lógica "tradicional" dos domí-nios territoriais (que BERQUE, 1982, denominou de lógica "areolar") é cadavez mais suplantada por uma nova lógica "reticular", onde uma espécie de"territorialidade pós-moderna" é pautada pela fragmentação e sobreposiçãode territórios.

Outra consideração muito importante que, podemos afirmar, foi um pres-suposto e ao mesmo tempo uma construção resultante de nosso trabalhosobre a rede regional gaúcha, envolve o debate sobre as múltiplas formas de

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manifestação, no/pelo território, das dimensões material (de caráter predomi-nantemente político-econômico) e imaterial (simbólico-cultural) da vida soci-al. Trata-se de um jogo complexo onde propomos considerar, tal como naquestão território/rede, as distinções e a imbricação entre elas. Assim, o terri-tório pode manifestar:

a. um conteúdo mais material do que imaterial, ao prevalecerem asrelações de domínio sobre as de apropriação territorial (tal como na distinçãode Lefebvre anteriormente comentada); neste caso, tende a predominar umalógica areolar sobre uma lógica reticular;

b. um conteúdo mais imaterial do que material (embora não possa pres-cindir deste, pois aí o território perderia sua base concreta e, portanto, seucaráter geográfico, que sempre leva em consideração a relação indissociávelentre materialidade e imaterial idade), prevalecendo, portanto, a apropriação(mais simbólica) e não o domínio (mais material) sobre o espaço; neste casoa apropriação é vista na forma de um processo de identificação mediada peloespaço, e neste processo é impossível imaginar uma identidade territorialrepresentada unicamente na forma de rede.

Entramos aqui numa outra concepção, a de identidade territorial, quenos servirá de meio caminho para chegarmos depois à concepção de regiãoe daí, retornando à rede, à discussão final sobre rede regional. A identidadeterritorial é uma identidade social fortemente mediada por um território (oupor territórios inseridos em outras escalas territoriais que, como no caso daestância latifundiária para a identidade regional gaúcha, sofrem um processode transposição escalar ou geográfica, no sentido simbólico, pois com ele seidentificam não só os habitantes da Campanha gaúcha mas também de todoo Rio Grande do Sul). Como toda identidade social, ela promove uma deter-minada classificação dos indivíduos enquanto grupo, com base, aqui, nasrelações de pertencimento e identificação com um determinado espaço. Aidentidade regional, por sua vez, é a manifestação da identidade territorialnuma determinada escala, aquela manifestada através da região, que defini-mos como:

"um espaço (não institucionalizado como Estado-nação) de iden-tidade cultural e representatividade política, articulado em fun-ção de interesses específicos, geralmente econômicos, por umafração ou bloco 'regional' de classe que nele reconhece sua baseterritorial de reprodução" (HAESBAERT, 1988:26).

Como a região se define frente ao Estado-nação, neste sentido elaseria um território contínuo, não fragmentado e moldado espacialmente noestilo "colcha de retalhos" em que a moderna sociedade capitalista tentouinserir todos os pontos do planeta. Ocorre que o mundo contemporâneo, ditoglobalizado, tornou-se muito mais complexo geograficamente do que o mun-do "internacionalizado", onde territórios e redes ainda podiam ser vistos em

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conexões e lógicas hierárquicas relativamente bem definidas, sem grandessobreposições e interseções. Em nosso trabalho, deparamo-nos com grupossociais (ou pelo menos com expressivos segmentos deles) profundamenteimpregnados por algumas das características com as quais definimos umaregião (especialmente a identidade regional), sem que no entanto eles coabi-tassem um mesmo espaço, contínuo, e pelo qual pudessem articular um mo-vimento político "regionalista". Verificamos então que a saída seria a proposi-ção de um outro conceito ou noção, capaz de demonstrar. sociológica e geo-graficamente, a força dos laços "regionais" mantidos mesmo fora da regiãonum sentido mais tradicional e que ao mesmo tempo convivem com outroselos e dinâmicas socioespaciais. Foi assim que surgiu a concepção de rederegional, cuja proposta discutiremos a seguir.

Os elementos articuladores da rede regional

Uma das metáforas mais utilizadas para representar a geografia domundo contemporâneo é a do caleidoscópio, uma miríade de facetas repetin-do-se e entrecruzando-se sem parar. Mas mesmo o caleidoscópio, na suacomplexidade, está carregado de uma "geometricidade" que o espaço atualnão comporta. Se as redes têm que possuir pontos e linhas e, portanto, umadeterminada "geometria", o mesmo não acontece com as superfícies e asfronteiras dos territórios, por sinal cada vez mais fragmentados (vide as pro-postas político-territoriais para a solução dos conflitos na Bósnia e na Pales-tina). Além do fato de vivermos sob múltiplos territórios, entrecruzados porredes de diversas ordens, o que pode promover a incerteza e a ambigüidade,não podemos esquecer que um número crescente de pessoas sequer podeafirmar que vive num território e/ou que está incorporado/conectado a umarede: são os excluídos no sentido mais extremo, abandonados à própria sor-te, geralmente pela lógica "flexível" e perversa do capitalismo deste final deséculo, e para os quais a única razão de existir pode ser a sobrevivênciabiológica cotlolana."

5 Em HAESBAERT (1995) propusemos a noção de "aglomerados humanos de exclu-são" para definir o espaço destes excluidos. cujos exemplos mais conhecidos são osacampamentos de refugiados e muitos sem-teto. Alguns autores constestam a idéiade "exclusão", advogando que "o que ocorre é que se combinou de uma maneirasem precedentes na história do mundo a exploração com a exclusão. a populaçãooprimida que trabalha cada vez mais por menos com a que está sobrando e não temtrabalho, nem assistência, nem solidariedade, nem nada" (CASANOVA. 1996:53).José de Souza Martins, por sua vez, prefere o termo "inclusão precária" ou "margi-nal" ao termo "exclusão" (mesa-redonda no Simpósio "O fenômeno migratório nolimiar do Terceiro Milênio", São Paulo, novo 1996, e obra recente "Exclusão social e anova desigualdade" [S.Paulo. Paulus, 1997]).

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Deixando de lado a parcela de excluídos (ou os grupos sociais de in-clusão extremamente precária) entre os migrantes que estudamos, por setratar, pelo menos na área analisada (cerrados baianos e sul do Piauí), deuma parcela minoritária, já que a maioria dos sulistas pertence às classesmédia e alta (o que não quer dizer que muitos não tenham sofrido váriasformas de "exclusão parcial" no decorrer do processo - uns excluídos daterra, outros excluídos da participação política etc.), estes mantêm entre si ecom as áreas de origem vários tipos de ligações que nos permitiram formulara noção (conceito?) de rede regional para, em substituição à metáfora da"diáspora", compreender a complexidade geográfica da migração e os víncu-los econômicos, culturais e mesmo políticos mantidos entre os sulistas ou"gaúchos".

É verdade que nem todos utilizam o termo diáspora apenas comometáfora, tentando incorporar-lhe um certo rigor conceitual. Neste pontode vista a diáspora tem muito a ver com a rede regional (ou nacional, seextrapolarmos para os grupos nacionais migrantes, para os quais o termodiáspora é utilizado com muito mais freqüência). Basta lembrar as trêscaracterísticas básicas que BRUNEAU (1995, com base em G. Sheffer)reivindica para o que ele denomina de "conceito de diáspora": "a consci-ência e o fato de reivindicar uma identidade étnica ou nacional; a existên-cia de uma organização política, religiosa ou cultural do grupo disperso(riqueza da vida associativa); a existência de contatos sob diversas tor-mas, reais ou imaginárias, com o território ou país de origem" (p. 8). Adiversidade de formas com que os "gaúchos" se agregam à rede regional(uns pelos Centros de Tradições, outros pelas Cooperativas com sede noSul, outros pela Igreja Luterana ... ) demonstra que, como afirma Bruneau,não nos tornamos membros de uma diáspora - ou rede regional - poruma questão "natural" ou inexorável, mas por opção ou constrangimentosocial.

Parafraseando Bruneau, que associa diáspora e nação, podemos afir-mar, aqui para o contexto região / rede regional, que, enquanto a região temsido tradicionalmente tratada como um espaço relativamente bem definido edelimitado (o gaúcho sabe quando está saindo do Rio Grande do Sul ou dos"estados do Sul"), a rede regional é fluida, policêntrica, com limites mal defini-dos. Apesar da manutenção de vários traços identitários comuns, ela adquirefeições diferentes de acordo com a área de destino (por exemplo, os "gaú-chos" que estão no Nordeste não reproduzem sua identidade da mesma for-ma que aqueles que estão no Triângulo Mineiro, na Amazônia mato-grossenseou em Roraima). Enquanto a região tende a ser um espaço mais centralizado,contínuo e homogêneo, a rede regional é mais descentralizada, territorialmentedescontínua e heterogênea.

Podemos então afirmar que, dependendo da escala enfatizada, a rederegional é ao mesmo tempo um território no sentido tradicional, que prioriza adimensão horizontal, contínua ou em superfície do espaço, numa lógica

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"areolar", e uma rede, numa lógica "reticular" pautada em ligações materiais eimateriais através de fluxos que unem seus espaços traqrnentados". O queparece mais paradoxal na rede é que ela vai contra a idéia de que redeslfluxos que ultrapassam fronteiras relativamente bem definidas são sem-pre desterritorializantes, ou seja, desarticuladoras de territórios. Pelo me-nos neste caso o que denominamos de fluxos ou "linhas" da rede regional,que unem pontos de diferentes espaços geográficos, servem justamentepara dar coesão ao mesmo tempo a esses "microterritórios" (ou "comuni-dades" predominantemente gaúchas, como é o caso de alguns bairros enovos municípios criados e dirigidos por sulistas), à escala local, e a siste-mas de integração social "em rede" que podem alcançar a escala do Esta-do-nação.

Outra característica importante da rede (regional ou não) é que ela écapaz de atravessar territórios sem lhes exercer a menor influência. É o quese denomina "efeito túnel", como ocorre com o TGV (trem de grande veloci-dade) francês que, ao mesmo tempo em que reaproxima grandes centrosurbanos, distancia ou simplesmente ignora outros, excluídos de seu circuitode integração (através das estações). Isto em parte é válido para as inúmeraslinhas de ônibus que interligam diariamente cidades do Sul do país com cida-des para onde os sulistas migra(ra)m. Estes ônibus praticamente servem ape-nas à rede "gaúcha", parando em locais estratégicos, desde pontos para com-prar erva-mate (como a parada da linha Santa Maria-Barreiras no interior dePalmeira das Missões) até os pontos de embarque-desembarque (no caso dalinha Santa Maria-Barreiras, em 1992, as paradas de embarque terminavamem Maringá, no Paraná, e as de desembarque começavam no Triângulo Mi-neiro).

Propomos distinguir pelo menos dois elementos básicos dentro da rederegional, em seu sentido geográfico: os "territórios de base local" ou "comu-nitários" (que se tornam "pontos" da rede quando vistos na escala nacional),onde os contatos cotidianos e face a face são possíveis, e a rede propriamen-te dita, ou seja, as "linhas de fluxos intercomunitários" ou "interidentitários",que se estendem não apenas entre os territórios de organização local domi-nados por migrantes, mas principalmente destes com a região de origem.Estes vínculos podem ser de ordem material (transportes terrestres, que in-cluem a migração dirigida de trabalhadores e a importação de produtos deuso característico do grupo - como a erva-mate, no caso dos sulistas -, e oslaços comerciais interempresas, muitas mantendo sua sede na região de ori-gem) e imaterial (os contatos via redes técnico-informacionais, desde liga-ções telefônicas e de fax até antenas parabólicas que permitem sintonizar

6 Tomamos como referência aqui outros autores que, em distintas perspectivas (al-gumas até mesmo dicotômicas), distinguem ou estabelecem uma combinação dife-renciada entre território e rede, entre eles LATOUR (1991), LÉVY (1993), BADIE(1995) e BRUNET (1995).

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programas de rádio e televisão da região de origem 7). Um dos elementosfundamentais para a consolidação da rede é a articulação entre determina-dos "pontos-chave" ou de maior valor estratégico em seus rnicroterritórios.Eles atuam como agentes aglutinadores e/ou fomentadores dos laços de iden-tificação que mantêm a coesão do grupo (ou pelo menos de sua parcelahegemônica).

No caso dos "gaúchos" são fundamentais os Centros de TradiçõesGaúchas (só no Mato Grosso são 36, tão articulados que serviram de pontosde apoio na campanha para governador Dante de Oliveira). Eles formam, anível nacional, a Confederação Brasileira do Tradicionalismo Gaúcho, comvárias seções regionais e uma articulação inclusive em nível internacional,pois não apenas a identidade gaúcha é partilhada com os "hermanos" platinas,especialmente da Argentina e do Uruguai (onde está hoje a sede da Confede-ração Internacional do Tradicionalismo Gaúcho), como também se expandepara outros países onde existem migrantes sulistas (em países como Paraguai,Bolívia, Estados Unidos, Inglaterra e até mesmo no Japão).

Numa visão ufanista, o principal veículo da imprensa "tradicionalista" anível nacional, o jornal "Tradição", editado em Porto Alegre, afirma, por exemplo:

"Pode-se dizer, a rigor, que onde existe um gaúcho emigrado,em qualquer ponto da Nação, a Querência e os feitos doslegendários Farrapos estarão sendo reverenciados (Tradição nº212, set. 96, p. 1). A cultura gaúcha chega, hoje, através do [jor-nal] TRADiÇÃO a lugares onde até bem pouco tempo passadonão imaginávamos acabaríamos chegando. Integrando os des-garrados do pago que, através deste órgão, sentem-se ligadosnão apenas ao seu Rio Grande mas a todos aqueles que, emqualquer lugar situado dentro da Rosa dos Ventos, carrega umpouco de gauchismo." (Tradição nº 209, jun. 1996, p. 1)

Determinados segmentos dos migrantes encontram outros canais paraexpressar sua especificidade cultural, como os descendentes de alemães,que têm nas Igrejas Luteranas (chamadas de "igreja dos gaúchos" pelos "na-tivos" baianos), cujas sedes nacionais estão em São Leopoldo e Porto Alegre(RS), um importante núcleo articulador. Outros, como empresários ligados aosetor de educação, chegam a expandir suas instituições (vide a criação da

7 Como pode ser observado neste anúncio do jornal Nova Fronteira, de Barreiras(BA, 5.07.1994:12): "Se você é gaúcho, tem antena parabólica e quer matar as sau-dades dos pagos, aqui vai a dica: sintonize a qualquer hora o canal da Record e gireo comando do áudio dois graus á esquerda. A Rádio Gaúcha está entrando com somlocal. É um balaço. No esporte tu podes acompanhar os jogos do Grêmio e do Inter-nacional. Notícias de todo o Brasil com aquele sotaque e músicas galponeiras comos resultados das últimas Califórnias (da Canção Nativa). E tome um mate!"

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Fundação Educacional do Sul do Piauí, em Corrente, pela Universidade dePasso Fundo) e promover cursos de atualização de professores no Rio Gran-de do Sul.

Por fim, políticamente, os atores da rede regional, embora sejam múlti-plas suas formas de participação (ou exclusão) dos processos de decisãopolítica, procuram de algum modo manter o controle sobre seus territórios debase local, geralmente municípios (seria interessante um mapeamento dosmunicípios com prefeitos sulistas ou dos processos emancipatórios coman-dados por sulistas fora da região Sul) mas também novos estados (onde po-dem atuar sob a forma de alianças e coligações com grupos locais).

Várias prefeituras, até mesmo no sul do Amazonas (Apiuí, por exem-plo), são comandadas por sulistas, e em muitas áreas eles estimulam o sepa-ratismo, de onde provém o ditado que ouvimos com certa freqüência no Nor-deste: "gaúcho onde chega quer separar". É importante lembrar que isto éfonte de conflitos, nem sempre explícitos, produto de resistências de antigaselites locais, como ocorre em Mimoso do Oeste, localidade "gaúcha" na Bahiaque já possui prefixo próprio na TElEBA e, com cerca de 15 mil habitantes, amaior indústria de óleos vegetais do estado e três agências bancárias, nãoconsegue a emancipação de Barrreiras. Marilena Felinto, em reportagem naFolha de São Paulo (31.07.94) chamou de "verdadeira guerra de secessão" atentativa dos sulistas de emanciparem a localidade de Serra dos Gaúchos,que reúne cerca de 2.000 sulistas nos cerrados do noroeste mineiro.

Contraditoriamente, porém, ao mesmo tempo que promovem políticasconservadoras, muitas vezes voltadas para o interior do grupo (por exemplo,quando só votam em candidatos identificados com sua base geográfico-identitária), muitos podem exercer o papel de articuladores de novas práticaspolíticas (por exemplo, muitos núcleos do Partido dos Trabalhadores no cir-cuito dos migrantes, criados por sulistas).

Apesar de ser ambígua e aberta, múltipla e fragmentada, a rede regio-nal é mantida e se fortalece através das várias articulações entre seus territó-rios em nível local e, sobretudo, destes com o território/região de origem (que,como já ressaltamos, variam de intensidade no tempo e de acordo com osgrupos ou classes sociais envolvidos). Essas articulações podem ser econô-micas (laços comerciais e de investimento de capitais, por exemplo), políticas(pela reprodução de estruturas de poder semelhantes e pela busca de contro-le político, ainda que seja à escala local/municipal e que se realize através dealianças e acordos) ou culturais (especialmente pela coesão dada pela cons-ciência de pertencimento a uma identidade social comum). A rede regionalnão é uma região, no sentido mais utilizado para este termo, porque seusatores não partilham de um espaço comum, dotado de continuidade e que,desse modo, poderia coordenar um movimento político-territorial autonomista(um "regionalismo") frente ao Estado-nação.

Uma questão que se coloca hoje, entretanto, e com a qual encerramoseste artigo (e manifestamos nosso novo campo de pesquisa, envolvendo agora

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a "rede brasileiro-gaúcha" nos parceiros do Mercosul), é aquela que propõeum novo tipo de região e/ou rede regional, construída não mais trents aoEstado-nação mas diretamente frente ao processo de globalização empreen-dido por certas empresas e instituições. Muitas delas podem fazer uso dasespecificidades e da coesão dessas "redes regionais" (ou "nacionais", comoé o caso das redes chinesa e hindu) tanto para promover laços de solidarie-dade quanto para melhor reproduzir seus circuitos de exploração e de exclu-são, aliando desigualdade socioeconômica e segregação político-cultural.

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