revista subversa volume 2 | n.º 5 | mar 2015

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SUBVERSA ERIC COSTA | ROBERTA SANTIAGO | DANIEL WASHOWICZ | FREDERICO ROCHA | FERNANDO CARVALHO | JUKKA ANDRADE | JORGE PEREIRA MAURICIO GOLDANI LIMA | NATHALIA AFFEL | PEDRO PAULO DE ARAÚJO JÚNIOR | JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA | JOSÉ VIEIRA EDIÇÃO ILUSTRADA | KAROLINA WHO SUB 13 V. 2 | N.º 5 | Março de 2015

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Page 1: Revista Subversa Volume 2 | n.º 5 | mar 2015

SUBVERSA

ERIC COSTA | ROBERTA SANTIAGO | DANIEL

WASHOWICZ | FREDERICO ROCHA | FERNANDO

CARVALHO | JUKKA ANDRADE | JORGE PEREIRA

MAURICIO GOLDANI LIMA | NATHALIA AFFEL | PEDRO

PAULO DE ARAÚJO JÚNIOR | JOSÉ EUGÊNIO BORGES

DE ALMEIDA | JOSÉ VIEIRA

EDIÇÃO ILUSTRADA | KAROLINA WHO

SUB 13

V. 2 | N.º 5 | Março de 2015

Page 2: Revista Subversa Volume 2 | n.º 5 | mar 2015

WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA

[email protected]

@CANALSUBVERSA

Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 2 | n.º 5

© originalmente publicado em 16 de Março de 2015 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações:

Karolina Who

https://www.behance.net/karolinawho

[email protected]

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores

desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos

ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

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www.CANALSUBVERSA.com 3

ROCHA OLIVEIRA | © A KATANA PRATEADA | 5

MAURICIO LIMA | © NOVO TELL|13

ERIC COSTA | © MONÓLOGO DA TURBULÊNCIA | 18

FERNANDO CARVALHO | © CÁRCERE | 21

JUKKA ANDRADE | © CONVERSA DE DESJEJUM | 23

PEDRO PAULO DE ARAÚJO Jr. | © PORQUE NÃO FUI PRA LÁ NÃO | 30

JORGE PEREIRA |© ESTAS VEIAS QUE NUNCA FECHAM| 32

ROBERTA SANTIAGO | © DE UM PULSAR DESBOTADO | 36

NATHALIA AFFEL | ODEIO SUPORTE PARA COPOS | 38

DANIEL WASHOWICZ | © A ÚLTIMA OBRA | 43

ESPECIAIS

JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA | © CARTA ESCONDIDA | 46

JOSÉ VIEIRA | © O VELHO SEBASTIÃO | 50

SUBVERSA

SUB 13

V. 2 | N.º 5 | MARÇO DE 2015

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EDITORIAL

E aqui estamos, diante de mais uma Subversa, que vem delinear mais um

pouco, entre nós, o seu papel de revista literária. Esta é a primeira da nova forma

de numerar cada SUB. A partir de hoje, com a complexidade que a revista já

atingiu, o antigo número de edição atenderá, com muito prazer, à exigência de

uma nova forma de nomear a sua periodicidade.

Afinal, não se trata apenas de apostar na expressão contemporânea da

literatura atual, mas questionar este espaço dentro da sociedade. A Subversa,

feliz, encontrou os seus leitores. E, juntos, comprovamos e cultivamos, diariamente,

a existência deste espaço.

Este é um reflexo natural, que só é possível com o apoio e o envolvimento

de todos. Em primeiro lugar, sempre, dos autores que confiam na revista para a

divulgação dos seus trabalhos e, consequentemente, na nossa capacidade

avaliativa para tal. Muito mais por este motivo do que pela suposta ideia de que

vamos classificar um texto como bom ou ruim, é que temos prazer em manifestar

uma pequena opinião (ainda que muito breve e geral) sobre aquilo que, com

gosto, lemos. É corresponder minimamente à confiança depositada em nós e na

linha editorial da Subversa.

Nesta edição, contamos com as imagens originalíssimas da Karolina Who,

de São Paulo, que faz um trabalho super diferente de colagens digitais inspiradas

em glitch art.

Desejamos a todos uma boa viagem por estas páginas!

As editoras.

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-

A KATANA PRATEADA

Rocha Oliveira

São Gonçalo, RJ

O mar sempre o encantou sobremaneira. Desde o influxo amniótico,

ao apreciar, já no refluxo da madureza, as ondas suicidarem em plena

arrebentação. Gilvan ora espia a orla da janela; espraiando ora os olhos

pela areia, ora a derivar o olhar em alto mar. Por amar o mar, dinheiro e a

boa carreira, achou por bem sonhar meter-se na marinha: via-se, quem

sabe, o almirante. E, em não tendo vocação pro belicismo, cortejou a

ideia de abraçar a marinha mercante. Porém aqui está o Gilvan, na

Alfândega do Porto de Santos... Que um sonho pode mesmo ir a pique,

sem, no entanto, fazer náufrago o sonhador. Gilvan achou na alfândega

uma ilha, e a “terra à vista!” ora o faz mirar o mar.

A despachar alguns papéis de embargo, em verdade pensa em

chopes e em torresmos. Porém os ossos do ofício são amargos; mais que o

agro da cerveja e, evidente, bem menos que o amargor do

desemprego... Recusara hoje mesmo um suborno, que a propina não lhe

© KAROLINA WHO

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paga o salário e nem há de comprar o seu caráter. Em contrapartida, a

sua esposa o intimara a um jantar. Jantar no qual se recusava a “bater

ponto”, e como fosse um cálice de agrura. Que não mereceria – assim

entende – compartir a mesa com os Buarque, e assim rachar a conta de

sua própria indigestão. A mulher do “amigo” fora quem os convidou, que

o outro, decerto, era incapaz de tal convite. E a esposa até simpatizava

com a outra, porém os dois (e se assim lhes permitisse a Sociedade)

trocariam todo e qualquer prato belo ou chique por uma porção de

mútua antropofagia. Gilvan, pois, cotejava entre o chá de boldo e os

dissabores de u'a mulher contrariada...

— O Tavares, disse ela, pode até não ser lá um grande amigo, mas

sempre que precisamos de verdade, foi com os dois que pudemos contar.

Onde estava o seu irmão e a minha família? que, aliás, se mal tem onde

cair morta, tem também a boa vontade d’um carrasco.

Gilvan não tendo mais que argumentar, disse-lhe: Hum. Que assim

fala a eloquência de quem, em não querendo consentir, diz algo mais; e

mesmo que este algo seja nada. Era inevitável ao aduaneiro não deixar

de ruminar sobre um e outro empréstimo que lhe fora concedido pelo

“amigo”; cujos quais, e para todos os efeitos, lhes valeram mais uns meses

de um bom teto e a escusa à usura de um mau fiador. E muito embora o

Tavares só o fizesse com o fito de aparentar solicitude em se fazer mui bem

solicitado... Demais que lhe era lisonjeira – se diga mais – a inconfessa

inveja do amigo. Era o gosto da desventura alheia – e pois no presto

amparo dado ao “ombro amigo”. Tavares, malgrado a profissão avessa, –

era bacharel e não doutor –, possuía em si a alma do bom médico: que

em amar demasiado o seu ofício, bem lá no fundo ama, no enfermo, a

enfermidade.

E este nosso bom alfandegário, longe de ser cobaia humana, é,

outrossim, impaciente; e tamborila sobre a mesa o agastamento: maestro

a reger horas de tédio, tem, em todo arruído, elegia. Gilvan faz de sua

caneta u'a batuta, e as horas, em u'a desatenta sonolência, seguem

sempre mornas e maçadas. Vê ao longe um cargueiro em cujo casco lê

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um nome ao qual distingue ser Yamaguchi. Embora ignorando sua origem,

este nome o remete ao embargo – por ele autenticado – a uma carga de

salmões e outros mais frutos do mar. E por algum motivo igualmente

ignorado, o aduaneiro sente na barriga um frio súbito...

Regelaram-se-lhe as tripas; e por quê? O Gilvan não saberia nos

dizer. Riu-se apenas do sintoma e, recostado ao espaldar de sua cadeira,

derreou sua cabeça na parede. Perdeu-se a olhar pro teto, bastante

entretido com o forro em branco-pérola. Ao centro deste mesmo teto

pende uma antiga luminária, ainda da década de 30, como fosse um

pêndulo imóvel, a marcar, com a precisão d’um Swatch1, a cruel

inalterabilidade do marasmo. Num relance, e como em um lapso de

tempo, Gilvan vê tudo escurecer ante os seus olhos! Estremece. Freme em

sobressalto. Sente encapuzar-se de inopino! também, se amordaçar num

só instante. Não houve tempo sequer de gritar. Se debate a procurar

desvencilhar-se. E nada... Todo esforço é inútil quando não se é tão forte

quanto três ou quatro homens a opor-lhe impetuosa resistência. E o Gilvan

não é robusto e nem franzino, porém se gaba de dar boas braçadas.

Ouve então um intrincado burburinho, que se faz ouvir à sua volta. Parece-

lhe, pois, uma incendida discussão entre quatro ou mais indivíduos

japoneses.

O nosso aduaneiro sente regelar-se a espinha, e um temor horrendo

do acaso: o receio a um só tempo do perigo, e, por outro lado, do

improvável. Por um momento acha mesmo ser piada; decerto uma piada

de mau gosto; alguma peça pregada, a contragosto, pelos seus colegas

de trabalho. Todavia estranha muito não ouvir, além das vozes indistintas,

nenhum riso sequer, uma risada. Ninguém a lhe acudir; nada de nada...

Ouve só o doce sussurrar do mar sereno. E isto enquanto vê-se coagido a

levantar-se da cadeira com violência, e impelido a deixar seu gabinete

aos empurrões. E, aos trambolhões, Gilvan segue a andar a passos

trôpegos rumo à “sabe lá pra onde”.

Uma das vozes parece dar, então, voz de comando. Fosse o líder ou

1 Empresa de relógios suíços.

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algum capanga mais experiente. As outras, não obstante, parecem anuir

à imperativa. E assim, volvendo ora os passos à direita, igualmente forçam

a fazê-lo o nosso amigo; e, pois, senão sempre adiante, ora à direita ora à

esquerda. Sempre cosido o Gilvan a dois dos homens, atadas suas mãos

por u'a corda, segue puxado pelos braços e empurrado,

concomitantemente, pelas costas. O aduaneiro, atordoado, mal pode

acabar de crer no que lhe ocorre. Entretanto já não mais crê numa

suposta brincadeira. Ninguém leva um trote tão a sério! Por outro lado,

como ninguém os pôde ver? e então lhes obstar ou lhes deter? E entre

uma e outra conjectura, – suposições de sequestro e assassinato –, sente,

por fim, conquistar o pátio externo. A brisa marinha o consola, e ainda que

o frio os açoite.

Gilvan é agora arrastado, degraus abaixo, por uma pequena

escadaria. Seria, ao que parece, – é-lhe evidente –, o estreito cais da

alfândega do porto. Sente já a oscilação do píer a ondear sob seus pés; e,

a maresia a escumar o seu odor, converte-se no ópio que o Gilvan jamais

sequer sonhou tragar. Mas bem longe de fazer-se algo eufórico, o

aduaneiro faz-se é de horror, eletrizado. E sua, freme e arfa de pavor;

tremendo as pernas feito... vara verde? Vá! que seja “vara verde”; vez que

não me caberia analogia menos ofensiva à ilha nipônica. E o nosso amigo

sabe tanto do Japão quanto alguém que só assistiu a um longa sobre a

máfia japonesa... Mal saberia a que compare as próprias pernas.

É enfiado, pois, embarcação adentro. Tão logo esta arranca em

disparada. E por sinal há que notar que é veloz. O sacolejar da nau se lho

mareia, aliado ao seu extremo nervosismo. Porém Gilvan, já acostumado a

velejar, exime-se logo do engulho; restando-lhe engolir em seco. O

aduaneiro já então teme pela morte, em perdendo as esperanças de

viver. Fácil é associar este aperto ao embargo expedido horas atrás. O

nosso amigo, um funcionário exemplar, a despeito de tacharem-no

“caxias”, sempre fez cumprir a lei e as diretrizes de seu cargo. E muito

embora não vestisse a carapuça de algum exímio escrupuloso, nem por

isso resvalou ética afora.

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Mas vede ora o nosso Gilvan Mendes... Este, que não vê nada de

nada... Encapuzado, amedrontado e amordaçado; atado qual um

animal de corte. Arrepende-se, – verdade seja dita –, de ter preterido a

peita à consciência. Que “passassem” lá uns peixinhos de nada! umas

algas que fossem e, quem sabe, mesmo uma e outra bactéria... Que teria

ele que ver com a infecção intestinal d’algum pechincheiro de sushis? Tais

ideias iam e vinham quais marés, pois logo o aduaneiro repensava o seu

próprio pensamento, confrontado a razão com a emoção a remoer seus

atos frente à sina.

Mas em pensar neste seu fado, exasperou-se, e pôs-se a urrar em

desespero. Para a ira dos seus raptores, que o quiseram calar com

truculência. Gilvan sente um golpe seco no estômago e um, subsequente,

em sua cabeça. Se imagina a receber duas coronhadas. Teme que lhe

abriram o toitiço, e se põe na terrível expectância de sentir lhe escorrer o

sangue vivo.

— Dou-lhes tudo o que quiserem! – exclamou ele; ou ao menos

supusera assim dizer. Mas com a boca amordaçada nada disse, senão

balbuciou algo inda mais ininteligível que o idioma de seus interlocutores.

Entretanto ainda assim quis muito completar o seu apelo, ao falar algo

como: — “Inhauma inhu inhonhô!!!”

O que ele quis dizer não irei falar, e para não tirar o gosto ao ofício

de sua imaginação, caro leitor. Não demos azo à indolência... Porém o

líder, pois, pôs-se a ralhar com energia:

— Damare! Damare! (damaré)

Considerando-se a ignorância do amigo, que não pôde alcançar a

acepção e tão menos o significado da palavra, digamos tão-só tê-la

adivinhado quando a levar outra “coronhada”... Calou-se então de todo

e só chorava.

Poucos minutos se passaram e o nosso alfandegário sente aportar,

por fim, a embarcação. Travam-lhe do braço e conduzem-no hora ao

longo d’outro píer. Gilvan segue a deixar-se conduzir, já sem opor

nenhuma resistência, e pelo que parece um avarandado; um longo e

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estreito avarandado. Pensa agora em sua mulher e no seu filho, aos quais

houvera prometido voltar cedo. E verte hora então um choro acerbo... Já

não pensa em chopes, nem saquês; lhe bastaria um mero copo d’água

tendo aqueles dois por companhia. Demais que para escapar à do

Tavares não valeria a pena o seu velório. Porém o Gilvan considerou a

alternativa...

— Kutsuwonugu! (kutsuwonugú)

Assim dizem os homens com aspereza, enquanto – por fazer valer a

tradição – forçam-no a descalçar os pés. O aduaneiro adentra, ainda

encapuzado, o que se mostra ser um edifício. De meias, e embora

aturdido, sente sob os pés o assoalho – um soalho liso e polido. Caminha

entre o que parecem corredores, até por fim ser inserido num salão; e

assim lhe assevera o ar corrente. Os homens o obrigam a ajoelhar-se,

forçando o seu tronco para baixo e dando-lhe um chute nos joelhos (na

parte posterior dos mesmos). Destarte o amigo cai inapelavelmente de

joelhos... A dor que sentira fora tal que julgou esfaceladas suas rótulas.

Gilvan urra de dor e, todavia, engole a muito custo o seu lamento. De

golpe, enfim, arrancam-lhe o capuz.

Gilvan, por dor tamanha inda alheado, toma o ofuscar da claridade

pela vaga ilusão de ver estrelas. Firmada já a visão, o que vê ao seu redor

é sem dúvida nenhuma u'a vasta sala oriental, feita bem ao estilo japonês.

Do chão ao teto, – as paredes de permeio –, tudo em madeira, tatami e

papel. Aparte a situação adversa, Gilvan sente uma estranha quietude. E

quem sabe a explicasse o ambiente, ou ainda a explique o Feng Shui.

Mas, certo é que esta breve calmaria, encrespar-se-ia em tormenta...

— Inhãnhi inháinhe, exclama afoito o nosso amigo, inhaô! – era um

apelo.

À sua volta, quatro homens, outros mais à sua frente. Defronte a si, e

bem ao centro da sala, está um senhor de meia-idade; sentado

imponentemente em uma cadeira; as cãs lhe acentuando a altivez. Vê-se

bem que é o mandante, o mandachuva... Olha para o alfandegário com

desprezo, doando-lhe um sutil riso sardônico. O olhar do homem é frio e

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penetrante. E o nosso amigo sua e estremece. Teria assim Perseu fremido

ante a Medusa? Não se sabe. Porém, o Gilvan, petrificado, decerto

quereria parecer-lhes invisível, para assim esvanecer mansão afora. Mas,

reparando bem nos homens, – japoneses todos, ou, orientais ao menos –,

todos tendo boa compleição, o corpo recoberto por tatuagens; em não

sendo Yakuza2, caratecas... Um só bastava a lhe frustrar de todo a fuga.

O pressuposto líder se dirige respeitosamente ao mandachuva, que

parece responder com aprovação. Este último, voltando-se então pro

aduaneiro, diz-lhe algo em tom malicioso, que ele não entende todavia.

De repente, a dar um tapa pois no braço da cadeira, ergue-se a altear o

tom de voz. E berra e gesticula a babar-se. Célere e sôfrego, caminha em

direção ao nosso amigo, que nada faz senão mirá-lo abismado. O outro

berra, – e ao que é evidente –, a pragalhar e a fazer-lhe ameaças;

cobrindo-o, outrossim, de perdigotos. Gilvan, em desespero, apela aos

prantos pela sua compaixão. E o homem faz-lhe um gesto ríspido como a

exigir que se calasse. E sem mais, a enrolar as mangas da camisa, –

exibindo assim também suas tatuagens –, dá um brado a ecoar pelo

recinto:

— Nakamoto!!!

O nosso amigo freme, assustado, e arregala os olhos com espanto.

Abrindo uma porta corrediça, à lateral esquerda do salão, adentra – a

pisar duro, a passos rijos – nada menos que um bom e velho samurai... Sim!

paramentado a rigor! O Gilvan não sabe o que pensar. Que faz ali este

guerreiro à moda antiga!? Porém não houvera ensejo de juízos. Aquele,

que além de duas espadas postas à cintura, trazia outra mais em punho,

tão logo a ofereceu ao mandachuva. Ofertou-a com mesuras de um

súdito frente ao seu imperador: postou-se de joelhos, baixando

respeitosamente a cabeça, estendidos os braços com decoro; a espada

posta em transversal. O aduaneiro olha de esguelha para a arma, que

reluz sob o brilho das lanternas; um brilho assim argênteo e refulgente; e

por um momento fez-se fascinado. Bela, toda ela feita em prata, desde a

2 Membros das tradicionais organizações criminosas japonesas.

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empunhadura à bainha.

Ora, exceto – é claro – a sua lâmina; esta que, de golpe, logo

emerge, a desembainhar-se pelo chefe. Ele a empunha com arte e

maestria. Ergue-a bem alto, na vertical. Gilvan, já a abdicar da vida,

fecha os olhos num reflexo involuntário. Era tentar amenizar a sua dor, e

pelo ignorar da punição. O que os olhos não veem... No entanto, antes de

cerrar de todo as pálpebras, Gilvan vê da lâmina um lampejo, um clarão

como a cortar suas pupilas. E tão fugaz quanto o clarão, moveu-se

velozmente o mandachuva, postando-se imediatamente à sua direita.

Solta então um grito enraivecido! O alfandegário encomenda pois aos

céus a sua alma, e a pedir também a proteção dos seus. E solta mais um

grito o mandachuva! O nosso amigo, em pensamento, revisita a sua

família inda outra vez; em cada lembrança que lhe acode, desde a mais

remota à derradeira. Faz descer o sabre o Yakuza. Gilvan sente, alfim, o

gume da espada...

O nosso amigo, por um breve instante, – tendo pois um olho

entreaberto –, vê pender de lado a sua cabeça. Vê-se, enfim, em um

recinto em branco-pérola... Desperta em sobressalto – um pesadelo!

Fecha a boca; abre os olhos; seca-se das babas. Uma dor horrenda no

pescoço! Leva a mão ao mesmo; espreguiça a alongar-se; dá meia-volta

com a cabeça a relaxá-lo. Ouve um murmurar na sala ao lado. Atila a

audição estonteada: confabulam entre si a sua lamúria alguns dos

coreanos embargados... Gilvan relembra o longa ao qual assistiu. Ri-se

hora do sonho e do assombro. Opta por torresmos e cervejas. E no

cargueiro lê-se, sim, Young-Chin...

FREDERICO ROCHA é romancista, contista e poeta. Inspirado especialmente em

obras clássicas, particularmente em Camões e Machado de Assis. Escreveu uma

obra de cunho místico-filosófico intitulada Das Contradições à Razão, a coletânea

de sonetos Como Nasce um Poeta, uma seleção de contos sob o título d'Outros

Rasgos. Está em fase de conclusão de um livro de poemas e outro de microcontos,

No momento, além de contos eventuais, trabalha, também, em três romances.

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NOVO TELL

Mauricio Lima

Novo Hamburgo, RS

Engarrafamento de sentimentos

na estrada em reforma

para o hotel das formas

das coisas deformadas que chamamos de coisas.

Atrasados, estressados, para trás,

todos chegam uniformemente individuais

no inferno dos pecados capitais

condenados por um céu artificial

© KAROLINA WHO

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de seres superiores

que são os mentores mentolados que engolimos como pastilhas.

E a matilha de cordeiros raivosos,

rancorosos,

resignados,

irresolutos,

onde reza o luto que a lenda atéia lutou para haver

onde a alcatéia de cordeiros para, a ver o que quer que os que

querem queiram que o que é que eu ia dizer mesmo??

Pois o engarrafamento de pensamentos na BR dos meus estados

desunidos europeus jaz queimando aziático no colo do meu esôfago

como um abacaxi que não posso pagar, logo jazo devido, deslogo...

DIZ LOGO!!

Desligo...

Escuro é o engarrafamento de minhas frustrações nesta fábrica

abandonada,

onde o bando de donos é Nada.

Agarro com medo e desdém o estofamento do meu carro

e olho cedo

para além da janela do hotel.

Oh, tell me what you see!!

Eu tussi

e vi outras pessoas tossindo em silêncio,

em um negro e lento movimento,

e tudo pareceu desacelerado, dilacerado,

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um desalento!

Todos lá sentados sem cabimento em seus aquis,

como zumbis ridículos

aprisionados em seus cubículos,

hipnotizados pela tela de seus laptops,

que nada continham além de uma luz artificial

iluminando a escuridão insubstancial de cada cela.

E cancela a noite de sono de quem é que não dormi,

pois fiquei como um zumbi olhando-as.

Ali...

Não sei se acordei.

Abri o laptop do meu coração,

não tinha bateria.

Se eu tivesse força até bateria nele até ligar,

mas nem estou lá,

e também nem ligo.

Ex-tou em todo lodo pingando lentamente do rodo parado do tempo

no ralo estagnado do Nada.

A gente nada,

Nada,

e afunda.

E MEU DEUS!!!!

O que foi?!

O que foi?!

Por que tão triste?

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Tão Carrancudo?

É o meu carro que não anda,

a dor que tu não viu,

o telefone que não sai do mudo,

a rua que não acho,

a guria que me faz de capacho,

e eu que não me mudo!

É quase tudo!

E a pilha de carros vai se acumulando horizontalmente,

assim como os corpos nas ruas,

mas ninguém percebe,

pois é sempre em lugares diferentes,

em dias diferentes,

com alguém diferente.

É sempre diferente e diferente é sempre igual que se fosse igual seria

diferente,

mas já não é diferente?!

É pouco alarde

para um saber tarde,

tardio,

vadio,

que não chega...

E CHEGA!

Page 17: Revista Subversa Volume 2 | n.º 5 | mar 2015

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É tanta certeza até na dúvida embebida de racionalizações

duvidosamente obtidas,

que tenho vontade de chamar “quarto” de “vaca”,

“pizza” de “abajur”,

você de Saidaqui,

eu de Jafui Javou de Javouir Nuncaforense.

Pense:

O que é o que é,

é uma coisa que não é todas as coisas que não a são?

Ou inverta a charada.

Aí encontrarás o propósito da vida,

que é roubar um rolo de papel higiênico,

ter uma diarréia e usar dois rolos para se limpar,

e nada estar conectado a nada.

Mas não há figuras de nada.

MAURICIO GOLDANI LIMA é gaúcho da cidade de Novo Hamburgo. Professor,

músico e poeta, amante e incentivador das artes. Escreve desde 2007, mas

participa de publicações em revistas gaúchas desde 2014. No momento,

trabalha para o lançamento de seu primeiro livro de poesias.

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www.CANALSUBVERSA.com 18

MONÓLOGO DA TURBULÊNCIA

Eric Costa

Currais Novos, RN

Não há tranquilidade a 10.000 metros.

Diria eu, em mais uma inspiração profunda, que tenho mais

tempo pensando, conjecturando e comparando riscos que sequer

conheço do que tempo de viagem propriamente dita.

Sentir com inteligência e pensar com emoção? Mantra para os

de pés firmes nos chão. Mantra que se desfaz na extremidade de

© KAROLINA WHO

Page 19: Revista Subversa Volume 2 | n.º 5 | mar 2015

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condições. Súbito, somos seres completamente indefesos em uma

cápsula que luta para não sair planando ao simples sabor do vento.

Há uma velha tendência – infinita, talvez - de nos preocuparmos

com aquilo que foge a nosso alcance. De fazer do imponderável

motivo de suspiros, suor e até tremores quando sobre ele nada

podemos fazer. Procurássemos o sentido das coisas como alguém em

um voo turbulento tenta explicar cada aceleração da turbina ou

balançar do veículo compreenderíamos o nosso redor de forma muito

mais plena.

Discurso alongado. Como sai texto de mãos nervosas com duas

horas restantes de voo sem qualquer previsão de céu de brigadeiro

sobre nós? Não sei. Talvez seja a necessidade de expressão. Procurar

um caminho alternativo em meio ao sentimento e lugar comum talvez

não pareça o mais lógico, mas talvez o mais sincero.

Meramente humano. Dadas as guerras, o humano buscou o

escapismo nos séculos passados. Dado um grande conflito de

ansiedade a dez mil metros, alguém pode fazer mais do mesmo. De

conflito de nações a conflito contra a insegurança da própria criação;

de poesias românticas a palavras banais em redes sociais. Os tempos

mudam, a fragilidade é real e as rotas de fuga vem com um quê de

surreal.

A poesia é talvez aquilo de que primeiro abrimos mão, nos disse

Gessinger. Ainda que entre sinais vermelhos e verdes do painel, entre

atar cintos e não atar, ainda que em “modo avião”...nossa mente

necessita dela . Todo lugar e todo ser é abrigo dela. Talvez por haver

mais poesia na fraternidade entre medrosos ao primeiro balançar entre

as nuvens do que em seis mil páginas de muitos livros por aí eu ando

escrevendo por agora.

Um beep há dez minutos me incomoda. Me incomoda desde o

primeiro parágrafo do texto.

Será uma falha da turbina? Perdemos altitude? Despressurização?

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Olho ao canto e constato: é apenas o fim da bateria do

notebook. Sinal simplório, mas magnificado pelo contexto.

Um som mais grave. Agora, o ronco dos vizinhos de poltrona. Eis

uma saída mais fácil e quase tão poética quanto: o sono e o sonho são

parte um do outro. O texto, sem contexto, agora perde o sentido. A

tranquilidade reina. A fragilidade, porém, sempre existe.

O beep fica mais forte. Sou obrigado a abrir mão da poesia. Será

este sempre o fim do caminho das pedras? Ainda não. O pensamento é

livre e os neurônios não são exército de um só. São sinfônicos e cuja

música só se deve seguir.

Seguir sem hesitar. Só deixamos a poesia por limitação própria. Se

resistimos com a escrita defronte as turbulências, somos limitados pela

baixa autonomia de uma ou outra criação. Os carcerários do

pensamento são nossas próprias falhas. Amarram as mãos de cada

maestro que carregamos e desafinam a sinfonia com o tilintar das

chaves mentais.

Aqui do alto deve ser bonito? Daí do chão deve ser muito mais

legal.

ERIC DE MEDEIROS COSTA é acadêmico de Medicina da Universidade Federal

do Maranhão. Vê o escapismo de seus dias, às vezes solitários, no futebol, na

música, literatura e em sua própria introspecção.

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CÁRCERE

Fernando Carvalho

Rio de Janeiro, RJ

Eu queria cantar e compor em todas as línguas,

ser oriundo de todas as culturas,

nunca ter sotaque e não ser turista.

Ser professor de todas as artes, magias e ciências,

eu queria conhecer todos, encontrar tudo,

ter meninos e meninas na minha cama,

ser convidado e anfitrião em todas as festas,

habitar sonhos, habitar casas e habitar a rua.

Mudar de lugar muito rápido,

© KAROLINA WHO

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meditar com quem nunca precisa se mover,

sumir do mundo, criar outro mundo, visitar todos os planetas

e só depois visitar todos os países.

Visitar todas as pessoas, colher uvas, cortar cana, caçar pra sempre um

animal e nunca o achar.

Quero mergulhar sem equipamento.

Quero desafiar leões e depois viver com eles,

quero voar no vento e vender minha alma,

quero nunca ter visto alguém, quero não ser humano,

quero a saudade majestosa do nada, quero ser vazio,

quero viver mil anos e não ficar satisfeito, quero incorporar um deus,

quero ser um deus,

quero abraçar demônios e pedir que fiquem mais um pouco,

quero não ter resposta pra coisa nenhuma, quero que me entenda,

mas não quero que me olhe entendido.

Quero me enforcar e não morrer, quero morrer ao tropeçar, quero ser

burro, quero me calar, falar através de pensamentos, quero ter um filho

e ser filho de alguém de novo.

Quero confidenciar cartas longuíssimas,

quero conhecer a China,

quero nunca mais ter notícias de lá, quero não ter sorte, quero não ter

nome,

quero ser visto por todos os cegos, quero ser livre, quero nunca ter

desejado isso, quero nunca ter existido ou ao menos,

agora

desaparecer.

FERNANDO S. CARVALHO é estudante na Faculdade de Letras da Universidade

Federal do Rio de Janeiro.

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CONVERSA DE DESJEJUM

Jukka Andrade

São Paulo, SP

- Num gosto de preto! Num gosto!... Preto é catinguento! Cruz

credo! Tem banho p’ra dá jeito na catinga deles? ‘Cê a sovaqueira de

longe!... Num gosto de nordestino também não! Uns cabeça chata

co’a cara de morto de fome, cara de pobre, que fala tudo errado,

co’um sotaque feio. Essa raça só presta p’ra comê’ aquelas tranqueira

fedorenta cheia de pimenta... bucho, calango, palma... E se juntá’

preto com nordestino é uma só sai favelado! ‘Cês acha qu’eu ia tê’

uma filha d’um favelado preto da cabeça chata? Deus me livre! Por

isso qu’eu vi aquele gauchinho, parecen’o artista de televisão, co’uns

olhos clarinhos, co’a branquinha e cabelinho lisinho, e já logo peguei e

fiquei engravidei dele! Eu num ia querê’ que a minha filha tivesse um

cabelo véio duro, de pixaim, que mais parece piaçaba grudada na

cabeça! De cabelo ruim já basta o meu! Não ia passá’ o desgosto de

sê’ neguinha p’ra minha filha! – disse, agitada, Fabiana.

© KAROLINA WHO

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As três mulheres tomavam café da manhã na cozinha. Depois das

palavras de Fabiana, Anastácia e Jussara ficaram caladas, um tanto

inexpressivas, entreolhando-se, quase sem respirar, desacelerando

gradualmente o mastigar do pão. Mas, logo depois, quando silêncio

que inundou a cozinha foi diluído por uma mistura de ruidosos exteriores

ao recinto no qual elas estavam, barulhos de motos, latidos e música

brega, as mulheres continuaram o desjejum, enchendo a cozinha com

os sons dos talheres batendo, da mastigação e dos goles café.

Anastácia sorriu, um sorriso de arco reflexo para reabrir o canal de

comunicação entre as três. Jussara se incomodou com o que Fabiana

disse, mas não fez qualquer objeção. Jussara não se sentia confortável

na situação de opositora, por isso, ela tentou mudar de assunto:

- Nossa! Como esta cozinha está horrível! É tão pequena e

bagunçada! Esse fogão velho, esse azulejo engordurado! A mesa

capengando, a pia é pequena e baixa...

Fabiana atropelou as palavras de Jussara:

- Ó, Juzinha, num sei o qu’eu faria se a Katinha nascesse pretinha

que nem eu. Só qu’a minha filhinha é linda! Loirinha, co’a pele

branquinha igual a sua. Minha filhinha é linda, num é?

- É! E graças a Deus tem saúde. – disse Anastácia, enquanto

mergulhava a ponta do pedaço de pão francês dentro da xícara de

café quente.

Jussara bebeu um gole de café e disse, com reticência:

- Sim. A Kátia é linda... mas... isso independe da cor dela, não é?

Fabiana cortava um pão francês. Ela desenterrou a faca do pão

e, fazendo gestos largos com a mão que segurava a faca, começou a

objetar energicamente:

- Deus me livre! Ainda bem qu’a minha filhinha num é encardida

que nem essa molecada qu’eu vejo por aí! Uma molecada feia e suja!

Quero nem qu’ela se misture co’esse pessoalzinho aí. Quem anda com

preto vira preto também! E preto só se lasca! Eu trabalho duro! Limpan’o

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chão, limpan’o banheiro e cozinhan’o p’ros outro p´ra juntá’ um

dinheirinho e mandá’ ela p’ra longe daqui! Aqui só tem lixo, nóia,

maloqueiro, vagabundo! Nem morta vô’ deixá’ minha filhinha vivê’ o

resto da vida dela aqui. Se a polícia passasse fogo nesses vagabundo,

até dava p’ra ela ficá’, mas, do jeito que tá...

- Fabiana, não fale assim! Você não pode desejar a morte dos

outros. Isso não é cristão! – falou Anastácia, mastigando um pedaço de

pão.

- Você não conhece todas as pessoas daqui. Não diga que todas

são ruins! – disse Jussara, desta vez, com a voz um pouco mais firme.

- Ah! Conheço muita gente aqui! E quase tudo aqui, quando num

vale um real, é falsa que nem nota de três. Eu vejo por aí, ouço o

falatório... Qué’ um exemplo? ‘Cê não ouve dizê’ que a filha da

Sebastiana é uma putona? Pois é sim! Dá p’ra todo mundo, é só chegá’

junto qu’ela dá. Vive de shortinho curtinho, vestida que nem periguete...

Só falta mostrá’ a chavasca p’ra todo mundo... Com’é o nome dela?...

é Jéssica? ... Ela tem a idade da minha filha! ‘Cê acha qu’eu vô’ querê’

essa vadiazinha perto da minha filha Jamais! Ela é novinha, só que trepa

mais que rama de chuchu na cerca! Já deve tê’ abortado uns cinco.

Nunca ninguém me, mas eu num duvido disso não! ... Fica andan’o de

roupinha curtinha por aí, pedin’o p’ra sê’ estuprada! Quem que qu’é

isso, gente?

- Espere aí! – interrompeu, rispidamente, Jussara. – Eu uso roupas

curtas e não quero que me estuprem!

- ‘Cê sabe ficá’ na sua, sabe a hora de usá’ uma roupa curta, cê

sabe se portá’, ‘cê é descente! Já a filha da Sebastiana é uma

neguinha safada! Eu num quero minha filhinha se envolven’o co’essa

gente que nem a Jéssica!... é Jéssica, né? – retrucou Fabiana.

- A fama dessa menina não é das melhores, realmente, Fabiana.

A Jussara tem cabeça, ela não é desmiolada, graças a Deus! Eu criei a

Jussara sozinha, ela não virou uma qualquer. A mulher virtuosa sabe se

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preocupar com o que as pessoas vão dizer dela, Fabiana! A filha da

Sabastiana, coitada, virou uma pessoa despudorada e imprudente!

- É, Nastácia! A menina era uma gracinha, mas viu o que

aconteceu? Ficou no meio desse pessoal do bairro e deu nisso. A mãe,

que, diga-se de passagem, num é flor que se cheire, criou a menina

dentro do bar, onde só tem coisa que não presta! Ela era a dona do

bar, mas num precisava deixá’ a menina ali, no meio do pagode, nos

risca-faca. No meio d’uns negão sujo, d’uns cearence feio, d’uns véio

tarado feden’o a pinga... a filha dela virou piranha! E aqui só dá isso:

piranha e vagabunda. Não vô’ deixá’ minha filha aqui! É só ela terminá’

a escola qu’ela vai direto p’ra os Estados Unidos. Já tá tudo certo co’um

chegado meu lá de Governador Valadares. Ele vai ajudá’ a Katinha!

- Fabiana, isso é perigoso! Aqui não é tão ruim assim. Você só

precisa deixar a Kátia com gente direita. Não é preciso mandar a

menina para outro país. O Brasil é bom, o que falta aqui é gente

trabalhadora! Com essa cambada de preguiçosos este país não vai pra

frente! Meu pai me falava sobre o tempo da juventude dele aqui neste

bairro. Não faltava nada para a família dele, enquanto as outras

famílias ficavam passando necessidade. Mas nada era de graça! Eles

trabalhavam na roça o dia inteiro! – disse, orgulhosamente, Anastácia –

Ficou ruim quando invadiram as terras dos chacareiros. Tudo virou

favela! – lamentou Anastácia.

- Ouvi dizer que as famílias eram tão pobres, mas tão pobres, que

mal tinham dinheiro para comprar comida, quem dirá instrumentos para

trabalhar a terra... Não dá pra fazer lavoura usando as mãos! – disse

Jussara, que continuou a responder, mas a contragosto – Também

soube que muitas das terras daqui pertenciam a políticos,

comendadores e desembargadores que mal vinham para cá, elas não

pertenciam a chacareiros. As terras não eram utilizadas! Pô! As pessoas

precisavam morar em algum lugar! Por que não deveriam ocupar as

terras? Não se pode esquecer que a prefeitura expropriou os

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comendadores, mas eles receberam indenizações bem gordas.

Receberam muito mais do que as terras realmente valiam... E favela

não é uma coisa ruim... Eu acho a favela bonitinha. Parece um

mosaico. Casas de várias cores, vários formatos, umas sobre as outras...

Eu gosto.

- Cruz credo! Com’é qu’alguém pode gostá’ de favela! – disse

Fabiana em tom de escárnio.

- Somos favelados. Moramos na favela. – respondeu, mal-

humorada, Jussara.

- Não somos favelados! Nossas casas são bonitas! Nós somos

pessoas de bem, somos pessoas distintas... E o primeiro pessoal que

morou por aqui, na época do meu pai, era uma cambada de

preguiçosos! Meu pai dizia que que só tinham compromisso sério com a

garrafa e com a farra!... Ao menos, quando eu era pequena, moravam

longe da nossa casa. Agora não tem como fugir. Depois que o meu pai

foi para o interior, e eu herdei a casa, vieram mais e mais desses

desocupados. Foram invadindo tudo! Vagabundos, mal educados,

preguiçosos! Não tinham casa porque não deram duro na vida!...

Quando meus familiares vieram para o Brasil, eles tinham algum dinheiro

guardado, mas não era muito não. Minha família soube investir e

trabalhar! Não vou dizer que minha família nunca foi ajudada. Meu avô

recebeu uma ajuda de custo do governo. Ele já chegou ao Brasil com

uma concessão do governo para plantar em uma terra dada,

emprestada, sei lá... Mas isso não tira o mérito da minha família! Por que

quem estava aqui não prosperou?

- Porque era preto, Nastácia! Meu patrão sempre fala que preto

num gosta de trabalhá’! E eu concordo co’ele! E tem outra, pobre anda

muito cheio das ousadia, não sabe mais se por no lugar! Ele fala isso, e

eu dô’ razão. Pobre tá queren’o ganhá’ que nem médico e advogado!

Num pode isso! Se é p’ra trabalhá’ limpan’o chão, ou carregan’o

carga, fazen’o essas coisas que pobre faz, não tem que ganhá’ que

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nem empresário, advogado e médico! Qué’ sê’ milionário fazen’o

nada! Seu pai num tava errado não, Nastácia! ... Com’é mesmo que

fala o nome dele? Thomas Li...Limpkis...

- Era Lipke, Fabiana. Thomas Edmund Lipke.

- Gostaria de tê’ conhecido ele. Até o nome era bonito! Alemão

tem uns nome forte, né? Mas num é só vocês que é de raça não, viu?

Sô’ descendente de índio, co’espanhol e português! Meu cabelo é

ruim, eu sô’ assim, pretinha, mas sô’ limpinha! Eu tenho alma branca,

tenho pedigree! – disse, rindo, Fabiana – O pai do meu bisavô, da parte

de mãe, era espanhol, minha bisavó, da parte de pai, era portuguesa e

minha vó era índia pega no laço, no meio da kissassa braba!... Meu

patrão diz qu’eu sô’ exótica, Nastácia

- Mais ou menos... Seu patrão, como é o nome dele mesmo?

- Jardel.

- Isso!... Ele gostou da Jussara! Dava para ver nos olhos dele,

naquele dia que ele veio aqui buscar você, Fabiana... Como ele está?

Está bem?

- Mais ou menos. Processaram ele por injúria racial. – disse

Fabiana, indignada - Sabe a Amanda, filha da Reinalda do escadão?...

Ela trabalha no escritório do seu Jardel, e ‘cê sabe qu’ela só usa aquele

cabelo véio que mais parece uma vassoura de bruxa...

- É Black Power! – interrompeu Jussara.

- Tanto faz... – continuou Fabiana – Ele pediu p’ra ela cortá’ o

cabelo, p’ra ela ficá’ mais apresentável p’ra clientela dele, e ela num

quis! Daí ele disse assim: “se ponha no seu lugar, sua negrinha do

caralho! Você está aqui para me obedecer!”. Ela achô’ ruim e botô’

um processo no seu Jardel! Tomara qu’ela perca o processo! ... E ‘ces

sabiam qu’ela é lésbica?... Pois é! Num consegue macho! Tem que ficá’

colan’o o velcro. – caçou Fabiana.

- Ela não tem uma boa fama...

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Antes que Anastácia terminasse de falar, Jussara vomitou sobre a

mesa. Anastácia e Fabiana se levantaram, rapidamente, por nojo do

jato de vômito.

- O que é isso, Jussara? Vomitar sobre a mesa que Deus põe o

pão de cada dia é pecado! Respingou vômito em tudo! – esbravejou,

indignadamente, Anastácia.

- Tá grávida de quem, Ju? Quem é o papai? – perguntou,

fazendo troça, Fabiana.

- Me desculpem... Não é fácil engolir certas coisas logo pela

manhã... O café da manhã estava pesado... Eu já sabia que a Amanda

era lésbica... Eu transo com ela, já faz um tempo. – disse Jussara, que,

em seguida, saiu da cozinha.

JUKKA ANDRADE é natural de São Paulo, Brasil, tem 32 anos e possui algumas

graduações inconclusas, entre elas: Letras, Filosofia, Matemática Aplicada, Bio-

engenharia e Física. Costuma fazer intervenções em saraus da periferia de São

Paulo, sempre apresentando poemas autorais. Já escreveu artigos sobre

matemática elementar (publicados no sítio de internet "cola da web"), já foi

espancado na rua sem saber o porquê (sim, esta é uma informação

relevante), e, até o presente momento, não possui livros publicados.

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PORQUE NÃO FUI PRA LÁ NÃO

Pedro Paulo de Araújo Júnior

Itaí, SP

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Não fui pra lá não

Porque lá é contramão

Na contramão perco a razão

Fiquei aqui

Estático feito poste sem luz

Credo em cruz!

Chuvarada molhou-me todo

Vento abanando

Fiquei estático

Feito poste sem luz

Não fui pra lá não

Porque lá é contramão

PEDRO PAULO DE ARAÚJO JÚNIOR. 57 anos, cidadão itaiense, autodidata,

marido, pai, avô, vivendo tranquilo assim.

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ESTAS VEIAS QUE NUNCA

FECHAM

Jorge Pereira

Recife, PE

Sentiu um sopro feliz de eternidade quando viu cortar o céu a

aurora boreal. Sempre que estava sozinha e lhe ocorria presenciar

algum fenômeno especial, lembrara-se de seu pai e toda a sua busca

incansável de justificar a vida, o universo e todas as coisas mantendo-se

alheio a qualquer explicação divina ou mítica sobre a humanidade ou

natureza divina.

Para ela, que não seguira os seus moldes e pensamentos,

tornava-se bastante fácil aceitar a existência de um Deus todo-

poderoso que com suas mãos milagrosas criara o mundo e tudo o que

© KAROLINA WHO

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a ele pertence. Mas não justificava a sua sede de entendimento sobre a

vida. Helena era bióloga, estudara durante muitos anos o processo

evolutivo das espécies de anfíbios nas remotas ilhas indonésias, e

aplicava seus estudos principalmente no entendimento das atividades

cerebrais desses animais e suas circunvoluções.

Desde a infância, seus pensamentos eram permeados por

questões metafísicas, todas as noites após o jantar em família, seu pai

tomava numa mão a Bíblia e na outra A origem das espécies, do

célebre Darwin, e começava o seus discursos comparativos e provas

cabais do processo de criação e toda gênesis humana. Apesar de seu

ceticismo, não era um homem que gostava de influenciar o

pensamento religioso, inclusive se oferecia a acompanhar sua mãe nas

missas dominicais. Mas fora depois que sua mãe jogara-se de um fiorde

enquanto dirigia durante uma neblina muito forte, que seu pai mostrou-

se ainda mais descrente nas questões de Deus e deuses. Naturalmente,

houvera sido bastante trágico para ele entender as circunstâncias que

levaram uma mulher de Fé a tirar a própria vida. Naquele dia, eles

haviam discutido pela manhã sobre seus “artigos de fé” como ele

mesmo chamava os textos bíblicos, e ela descontente, saíra depois sem

lhe pronunciar uma palavra.

Já era tarde quando a polícia chegara à sua casa, Helena já

estava dormindo e foi acordada com seu pai aos prantos e um olhar

vazio. Eles nunca conseguiram encontrar o seu corpo, mas todos os

anos faziam uma peregrinação a pé ao local do acidente, e plantavam

flores no lugar mais alto do fiorde. Naquela noite, Helena pediu que eles

orassem juntos pela mãe, que deveria estar em algum lugar do universo

necessitando de luz e conforto, e assim o fizeram. Apesar da dor, aquele

fora um dos momentos mais recompensadores para seu pai, que de

súbito achou-se tomado por um vir-a-ser em perpétuo fluxo, uma

mansidão e calmaria em seu coração; como se fossem tomados pelo

toque divino, choraram abraçados.

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Com o passar dos anos, seu pai deixou-se entristecer por

completo, mas diferentemente de antes, passou os seus últimos dias de

vida dedicando-se ao estudo das religiões, deuses, karmas, seres

místicos e tudo aquilo que julgava importante para o exercício de suas

crenças. A partir de então, em diversas ocasiões lhe indagava sobre a

existência humana, até que num fim de tarde de outono boreal

enquanto estudava, saiu de casa e dirigiu-se ao mesmo local de

peregrinação de longos anos. Ajoelhou-se e chorou incansavelmente

por longos minutos, seu coração dava adeus a sua descrença e

apoderava-se de uma Fé nunca antes sentida. Por um momento

cessaram-se as lágrimas, suas mãos enxugaram-lhe a face e fez-se

abaixar o rosto ao chão, e ali ficou até que seus pulmões não mais

expiraram o ar frio do outono e que seus olhos não mais vissem a

paisagem do entorno.

Seu pai houvera entendido a necessidade da morte de sua mãe,

que viveu neste universo tremendamente enigmático - neste que era

apenas um planetinha na Via Láctea -, para lhe fazer resgatar a

necessidade humana de sentir existir-se. Não da necessidade de revelar

uma ou outra fé, não da necessidade de revelar um ou outro Deus, mas

sim da necessidade de mostrá-los que independentemente de todas as

forças divinas e das ciências naturais, o universo respirava cheio de

vida. E o fato dessas vidas estarem interligadas fazia com que todos os

sentidos das racionalidades humanas fossem exóticos e triviais, pois a

vida pulsava nas veias de todos os cosmos e todas as matérias, numa

filosofia perene de estar vivo e acreditar em algo.

Para Helena, o universo conspirava para as energias e as coisas

boas, para o sentimentalismo e as vivências espirituais e transcendentais

numa existência maior e mais genuína, na intuição e no acreditar. A

vida na Terra não se resumia apenas a um conjunto de moléculas de

carbono que dependem do sol e da água para viver, era mais do que

apenas a consciência e o toque providencial, existia o Amor e para ela

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isso já bastava. E naquele momento, ao ver a luz da aurora mais

vibrante, sentiu emanar uma força que lhe preencheu de vida e alegria,

eles estavam lá, no meio de toda aquela poeira da matéria que

formava o universo, pois para ela, a vida perpassa em veias que nunca

fecham.

JORGE PEREIRA, recifense, estudante de Bacharelado em Biomedicina pela

Universidade Federal de Pernambuco e bolsista de Iniciação Científica pelo

CNPq. Desenvolve projetos de pesquisa em Biologia Molecular com doenças

autoimunes no Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (LIKA).

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DE UM PULSAR DESBOTADO

Roberta Santiago

Porto Alegre, RS

palavras que devem ser ditas

mas morrem

ainda na esperança

de não precisarem nascer

o que afinal se sente

quantos metros cúbicos tem

o volume da dor

quantas letras formam

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o nome do que sinto

e qual é o nome

se para nomes, pensa-se

e só sinto

como se chama a cor dos seus olhos

que se fecharam

e agora estão costurados

agulha e linha de nylon

fio a fio

cílio por cílio

até que eu possa decorar em memória

e enfim descosturar

o que havia guardado

no exato diâmetro da tua pupila

o problema é que os olhos

não ouvem só veem

o problema é que as palavras

tão somente significam

a palavra amor nunca aprendeu a amar

ROBERTA SANTIAGO nasceu no Rio de Janeiro e mora atualmente em Porto

Alegre, RS. Escreve poesias desde os 13 anos de idade. Seu primeiro livro,

"Anotações sobre o tempo e as cidades", foi publicado em 2014. Atualmente

está concluindo o projeto do seu segundo livro de poesias.

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ODEIO SUPORTE PARA COPOS

Nathalia Affel

São Paulo, SP

Carlos deu o primeiro passo. Pronto, agora não tinha mais volta. O

pedido foi feito e desfazê-lo ficaria muito feio para o seu lado. Não que

ele não quisesse, mas após dizer aquelas palavras, um terror e

desespero se apoderou dele. E agora? Qual seria o próximo passo?

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Ajoelhar e fazer a boca mexer em um som de meia dúzia de palavras

foi fácil, até demais. Agora, colocar em prática a loucura que estava

prestes a iniciar era outro negócio. Ela vai dizer sim. Sim, caramba, sim, e

ainda complementar "Vou começar os preparativos amanhã!". Ele

conhecia a namorada, sabia o quanto ela ficava empolgada com esse

tipo de coisa e eles já estavam juntos há sete anos. Mas, também, ela

pode dizer qualquer outra coisa, "Vou pensar no caso", "Eu ainda não

tenho certeza", "Estamos indo rápido demais", "Não" ou simplesmente

"Carlos, não seja um completo idiota". Mas agora a placa de imbecil já

estava colada em sua testa. Ele tinha certeza de que em breve estaria

noivo.

E, para Carlos, neste frenesim de desespero, não só a sua vida de

solteiro estava terminada como a sua vida em geral estava destruída.

Nesse um minuto de pensamento que se seguiu entre a sua proposta e

a resposta da namorada, que no momento estava com uma cara de

espanto, da qual Carlos teria achado preocupante se não estivesse

tendo um surto interior. Todas as regalias que seriam cortadas

começaram a passar em sua cabeça como um filme. Cervejinhas

depois do trabalho, pizza pelo menos em quatro jantares por semana,

meias na gaveta de cuecas, andar nu pela casa cantando Guns N’

Roses com uma guitarra imaginária (não que ele fizesse isso, é claro).

Tudo estaria acabado. Como ela iria entender que ficar em frente ao

espelho imitando o Hulk ou saudando o bom e velho amigo ali debaixo

que muitas vezes lhe trouxe extremas alegrias, era perfeitamente

normal?

Ar, ele precisava de ar. Mas não dava para levantar dali

enquanto não houvesse uma resposta. E por que ela estava

demorando tanto? Ou ela realmente não estava, e aquela velha

história de que você vê toda a sua vida em um segundo antes de

morrer é totalmente verdadeira. Carlos então começou a pensar nas

desculpas e nas explicações que daria caso ela dissesse sim, como iria

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deixar claro que aquilo foi um erro, que o problema não era ela, mas a

vida com ela dali por diante. Como iria desfazer o que havia acabado

de fazer sem parecer um completo lunático bipolar ou um canalha de

quinta?

Respirou fundo e levantou. Mesmo porque àquela altura seus

joelhos já estavam pedindo socorro. E quando abriu a boca para falar

seja lá o que fosse, pois no fim resolveu fazer tudo no improviso, ela

respondeu “Não”. Ela disse: não. Passaram-se vários segundos de

choque enquanto os dois se olhavam e o resto do restaurante que ele

tinha escolhido com tanto carinho e dor no bolso, também esperava

uma reação, após a negativa inesperada. Finalmente, ele não teria de

arranjar nenhuma desculpa, inventar nenhuma explicação ou mentira.

Ele não precisaria agir como um completo idiota que acaba de pedir a

namorada em noivado e, cinco segundos depois, muda de ideia como

se um pedaço de pau tivesse caído na sua cabeça e o trazido para a

realidade. Uma sensação estranha começou a tomar conta de Carlos,

ele estava livre, livre para ver Duro de Matar até enjoar da cara do

Bruce Willis. E quem é que enjoa da cara do Bruce Willis? Livre para não

combinar as meias com as cuecas e ignorar os suportes de copo. E daí

que a madeira vai marcar? Livre para fumar dentro do carro sem ter

que deixar as janelas abertas, em um frio de matar, só para o cheiro

não impregnar no estofado e ainda tendo que jogar as cinzas fora para

ela não descobrir esse seu mais novo e fedido hábito. Livre para jogar

vídeo game comendo pipoca, como um garoto de dez anos durante o

domingo sem ter que ouvir “CUIDADO PRA NÃO DERRUBAR NO SOFÁ,

MANDEI LAVAR AS ALMOFADAS ONTEM!”.

E, com essa sensação estranha tomando conta do corpo de

Carlos, finalmente ele teve coragem de dizer: “Não? Como não? Eu te

trago em um restaurante desses, te compro um anel que custa mais do

que a minha casa, tomo a decisão de passar a minha vida do seu lado

e tudo o que eu recebo em troca é um mísero NÃO? Como você pode

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fazer isso comigo, Ivete?”. Carlos estava tomado por uma raiva um

tanto quanto descontrolada, respirando tão fundo que gotinhas líquidas

saíam de seu nariz vez ou outra. Apertava o encosto da cadeira com

tanta força que, se fosse realmente o Hulk, já tinha transformado aquilo

em pó. Até que Ivete resolveu se pronunciar: “Eu não estou preparada

para isso, eu acho que estamos indo rápido demais, eu até posso

pensar no caso, mas não sei. Não estou preparada para abrir mão da

minha liberdade, não quero que minhas noites vendo novela com um

pote de sorvete sejam substituídas por partidas de futebol e gritos

frenéticos. Quero lavar as minhas calcinhas no banho e deixá-las

penduradas em qualquer lugar, não sei cozinhar e prefiro comer pizza

quatro noites por semana do que me dar ao trabalho de ir até a

cozinha. Não quero ter que bancar a esposa todas as noites esperando

você voltar do trabalho enquanto poderia estar em um happy hour

com as amigas enchendo a minha cara de cosmopolitan e falando mal

das assistentes. Não, Carlos, não. As almofadas vão ficar sujas de

sorvete a cada vez que eu resolver passar o domingo jogando vídeo

game e assistindo Duro de Matar, porque quem é que resiste ao Bruce

Willis? Não estou pronta para ser uma boa esposa e, acho que nunca

estarei. Me desculpe”.

Se vocês pudessem ver a cara do Carlos, como os clientes

daquele restaurante estavam vendo de camarote, estariam tão

embasbacados quanto eles. Tudo o que ele conseguiu fazer foi

caminhar até o barman e pedir uma dose de qualquer coisa que

trouxesse um pouco de realidade para o que acabou de acontecer.

Ele foi rejeitado, abandonado, negado em público pela mulher que

mais amou na vida e era isso que ele repetia para o barman a cada

dose a mais que ele trazia de alguma coisa que ele ainda não sabia o

que era. E, em algum momento entre estar sóbrio e em desespero por

ter feito um pedido de casamento e estar bêbado cheio de desgosto e

frustração, Ivete foi embora dizendo “Carlos, não seja um completo

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idiota. Aqui está o dinheiro para o táxi, você não está em condições de

dirigir, e eu preciso de um cigarro”. Ela disse isso segurando-o pela face,

e cruza o restaurante com todos os olhares a seguindo, parando na

mesa em que estavam para depositar a taça de champanhe que

vinha segurando desde então, deixando uma marca do anel do fundo

da taça na madeira, “Odeio suporte para copos”.

NATHALIA AFFEL nasceu em São Paulo e é atriz formada pela Escola de Atores

Wolf Maya. Fez parte de várias companhias teatrais amadoras, atendendo à

workshops e cursos livres, tanto em interpretação quanto em teatro musical.

Também cantora, faz parte de um projeto musical chamado Frente Verso, e já

cantou em eventos como a festa No Capricho e o programa Jovens Talentos.

Atualmente estuda comunicação social, escreve e mantém um blog

chamado Plástico Bolha, onde aborda o mundo do entretenimento, arte e

cultura.

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A ÚLTIMA OBRA

Daniel Waschowicz

São Paulo, SP

O Sol espiava pelos pequenos furos da janela. Lá dentro estava

tudo quieto, sendo o silêncio interrompido ora ou outra por uma leve

respiração.

A luz do abajur se misturava ao cheiro forte do cigarro, num

amarelado intoxicante que impregnava todo aquele ambiente e

parecia sufocar todos os objetos daquele espaço com seus afiados

dedos decadentes.

DESTAQUE

DA

SEMANA

© KAROLINA WHO

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Alheio a essa atmosfera de morte, sentado numa poltrona

desbotada com pequenos rasgos, havia um homem aparentando estar

na casa dos quarenta anos. Em sua mão estava um cigarro aceso que

era conduzido a sua boca de momentos em momentos, com uma

lentidão aparentando indiferença.

O Sol tentava buscar os olhos daquele homem, mas ao refletir sua

luz neles, tudo o que revelava era ausência, como se tivessem sido

tragados. A vida penetraria naquelas órbitas que pareciam vazias?

A fumaça do cigarro era a continuação daquele olhar e à medida

que se elevava pelo ambiente, acabava por apodrecer a luz solar. E

aqueles olhos fitavam toda aquela extensão do espaço moribundo que

lhe rodeava procurando tragar os restos de vida que ali houvesse.

Aquela pessoa, desbotada pela ação do tempo, levantou-se

lentamente de sua poltrona e foi até uma mesinha à esquerda de onde

estava e lá sentou, abriu uma gaveta, pegou um caderno e uma

caneta e pôs-se a observar esses objetos por alguns instantes.

Pouco tempo depois, começou a escrever alguma coisa. Sua letra

era um pouco tremida, quase beirando o ilegível, mas nada que um

pouco de esforço na leitura não consiga resolver. Isto provavelmente

deveria ser resultado de pouca prática no decorrer dos anos. Apesar

disso, todo um universo ia sendo criado. Cada palavra era

minuciosamente esculpida, formando um tecido que começava a

rascunhar o próprio ambiente que o rodeava, dando vida à matéria

morta que lhe cercava.

Escolhida a última palavra, não lhe restava outra coisa, a não ser

levantar-se, colocar o casaco, acender um cigarro e caminhar

silenciosamente por algumas horas naquelas ruas vazias, como era de

seu costume.

Uma vez mais o Sol espiou e pode ler aqueles versos sobre a mesa,

sendo o primeiro a ter acesso àquelas palavras, que diziam o seguinte:

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A Janela Fechada

A janela fechou.

O abajur apagado

É o sonho de outrora

que jaz esmagado

Na escuridão do quarto.

A cortina desbotada

Jamais mostrará

Seus desenhos delicados

Cobertos pelo silêncio.

Aqueles papéis espalhados

Na mesa, junto a algumas

Velhas fotos de infância

São restos de passados

Presos ao silêncio

Daquela escuridão, cujo ar

Solidificado entupiu

Toda extensão do quarto.

E a janela nunca mais se abrirá.

DANIEL WACHOWICZ é formado em Letras e professor de português e inglês,

tendo feito diversos cursos de produção literária. Recentemente, fez o

lançamento de seu primeiro livro de poesias, “Convite ao abismo” (Multifoco,

2014).

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CARTA ESCONDIDA

José Eugênio Borges de Almeida

Maragogi, AL

Repousei com tranquilidade a minha mão sobre o teu colo e

deixei que, imóvel, pudesse sentir o pulsar do teu coração. Ele começou

a pulsar mais rápido e a tua respiração ficou mais ofegante, como

quem procura o ar e não encontra. Senti o toque macio da tua pele e

ESPECIAL

Reminiscências

© KAROLINA WHO

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pensei que a idade não tinha ainda conseguido diminuir as sensações

que um simples toque pode provocar nos nossos corpos.

Nos olhares, quando eles se prendiam sem pressas nas nossas

figuras, pareciam penetrar no mais fundo que as almas escondem ou

tentam esconder, às vezes simplesmente por inibição, sem explicação,

ou por pura timidez.

As nossas vozes pareciam que se igualavam em tons e

intensidade conforme o entendimento das palavras se aninhavam no

discernimento aprazível dos anos.

Nossos prazeres gustativos, foram sendo apurados na justeza dos

ensinamentos saudáveis da medicina, mas aí, talvez, os nossos corpos

tenham obedecido ao apelo dos nossos genes e muitas das nossas

preferências permaneceram incólumes.

Os perfumes por nós inalados, nunca tiveram consonância, talvez

por isso conseguíssemos ter nossos aromas tão próprios e diversos.

Por isso a tua lembrança não sai das minhas circunvoluções

cerebrais e o teu rosto das minhas retinas, apesar de se terem passado

tantos anos da tua morte.

Só as lembranças dos acontecimentos por nós vividos, é que se

tem esfumado na memória dos tempos, Assim como quem apaga um

quadro negro todo escrito, bem devagar, retirando fragmentos da

história, deixando-a assim mambembe, coxa, sem equilíbrio lógico. Os

parágrafos se misturando, tornando tudo incompreensível. As memórias

aparecem em flashes muito rápidos sem me dar tempo de fixá-las.

Lembras-te do Antônio? Se ainda estivesses viva, irias ver a

deterioração mental dele, provocada pelo Alzheimer. Ele já não

consegue reconhecer ninguém, nem a si próprio, num declínio cognitivo

enorme. Além da confusão mental e irritabilidade. As alterações do

humor são frequentes, muitas vezes com agressividade. Já nem

consegue identificar objetos ou pessoas.

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Não consegue formular frases que tenham algum sentido.

Recusa-se a levantar da cama e na maioria das vezes não quer comer.

Um verdadeiro abjeto.

Corpo sem memória é só um corpo, sem personalidade, sem vida,

sem sentimentos. Nós somos a nossa memória, sem ela, somos nada.

E ele tem menos seis anos que eu. Fico imaginando que talvez

essa doença atinja quem tem muito medo da morte, pois assim há um

desligamento em vida da vida, deixa-se de se ter a percepção dela e

nada mais importa. Acaba-se o sofrimento psíquico e a antevisão da

morte deixa de existir. Fica-se como um animal acéfalo.

Mas existem aqueles que resistem às investidas do tempo, como o

arquiteto Oscar Niemayer, que ultrapassou os cem anos de idade. O

seu corpo deteriorou-se, mas a sua integridade mental e intelectual foi

fantasticamente preservada.

Creio que os apagamentos no encadeamento das minhas

memórias são seletivos. As partes mais fortes, mais intensas têm sido

preservadas. Por enquanto.

Tenho tido o cuidado de escrever as partes que me esqueço com

mais frequência, para que assim, substitua a perda da minha memória.

Só para me sentir mais apoiado de passados. O pior é que muitas vezes

quando releio o que escrevi, não me reconheço dentro daqueles

personagens. É como se eu estivesse a ler uma história de outra pessoa.

De modo que o esforço da preservação de memória acaba por não

funcionar e não ter nenhum sentido prático para mim.

Tenho tido apatia e já me foge a memória semântica, perdendo

a flexibilidade do pensamento abstrato.

Entrei por outro tipo de experiência: sento-me à frente da câmara

de vídeo e começo a ler as memórias escritas e a afirmar que é a

história da minha vida. Mas acabou também por não resultar, pois no

outro dia nem sequer reconheci o meu rosto como se fosse meu.

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Agora já ando com a tua fotografia no bolso, para que a tua

memória não me fuja. Mas no outro dia dei por mim a observar o teu

retrato sem te reconhecer.

Por vezes sinto-me tão desasado, tão sem memória, que a

sensação é dum turbilhão dentro da minha cabeça, com muitos sons

desconexos a habitá-la.

As tuas saudades, quando me lembro de ti, são tão grandes que

só me apetece estar contigo, estejas onde estiveres.

Fazes-me falta minha querida.

Sinto falta do teu toque, do teu cheiro, da tua voz, quando

consigo me lembrar disso tudo.

Se estivesses aqui, de certeza que irias repetir para mim vezes sem

conta as nossas vivências, tornando a minha vida mais

consubstanciada, mais crível, mais humana, mais lógica...

JOSÉ EUGÊNIO BORGES DE ALMEIDA é médico e começou a escrever há

quatro anos, com 64. Nesta jornada, já reuniu 39 prêmios em concursos

literários diversos, publicou o romance juvenil “Uma Luz no Fim do Túnel” e está

em fase final de edição de “Labirinto Eterno”, finalista do Prêmio SESC 2014, a

sair pela Editora W5).

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O VELHO SEBASTIÃO

José Vieira

Santa Cruz, Portugal

ESPECIAL

Reminiscências

© KAROLINA WHO

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Era velho e chamava-se Sebastião. Tinha mais de oitenta anos. A

pele enrugada e os cabelos brancos escondiam as amargas memórias

da sua existência. Vivia sozinho numa pequena casa, outrora herdada

de seus pais. A vila que o viu nascer era a que o tinha visto envelhecer.

Sebastião sabia de cor, como se da palma da sua mão se tratasse,

cada canto e recanto daquele lugar. Aquela vila era o seu lar.

Sebastião não era uma pessoa muito faladora. Não se reunia no

jardim para jogar xadrez, como faziam outros da sua idade. Não era

visto nos cafés, ao início da manhã e ao fim da tarde. Não ia à igreja.

Sebastião vivia na vila, mas não se relacionava com ninguém. Era como

se vivesse num outro mundo. Um mundo apenas seu. Como se estivesse

dentro de uma bolha e onde não deixava ninguém entrar. Os da sua

idade sabiam que ele era assim por causa dela.

Chamava-se Benedita. Há muito tinha partido da vila, para seguir

o seu sonho. Era a jovem mais bonita da terra. Não havia moça tão

formosa como ela. Era alegre e destemida. Benedita encantava

qualquer um. Tinha a mesma idade que Sebastião. Juntos brincaram na

meninice. Descobriram a paixão na juventude. E conheceram a dor de

um amargo amor.

Na vila sabiam que aqueles dois estavam enamorados. Pareciam

destinados. Todos esperavam que quando atingissem a maioridade se

casassem.

Enquanto isso, não ocorria os dois jovens saboreavam

vagarosamente a vida. Viviam para a paixão que nutriam. Estavam

como que escravos daquele sentimento. Tudo era feito para o outro e

em função do outro. Seguidamente viria o apaziguamento e com isso, o

amor. As borboletas outrora sentidas, quando se aproximava a hora de

estarem juntos, passaram à serenidade. O sentimento tinha evoluído.

Tinha crescido juntamente com eles. A loucura da paixão transformara-

se num tranquilo amor. Daqueles amores para a vida inteira, assim

suponham.

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Sebastião deixara a escola cedo. Não tinha cabeça, costumava

dizer, para os estudos. Fora logo trabalhar como carpinteiro. Adorava o

que fazia. Das suas mãos saíam autênticas peças de arte. Era usual

curiosos da cidade virem à procura dos seus trabalhos. As maravilhas de

Sebastião trespassavam aquela pequena vila. Benedita continuara a

estudar. Tinha gosto em ir à escola. Nutria grande entusiasmo em

aprender novos saberes. Para qualquer lugar que fosse tinha sempre um

livro nas suas mãos. Não se cansava de ler e de imaginar. A sua mente

voava e voava para lugares longínquos. Cabia a Sebastião trazê-la de

volta à vila.

Amavam-se. Sem dúvida que se amavam. No seu jeito

complementavam-se mutuamente. Porém os sonhos de cada um eram

distintos. Sebastião queria criar raízes. Ficar na vila. Aquela pequena

terra era o seu segundo amor. Era apaixonado por cada canto e

recanto. Nunca tinha saído daquele lugar mas em momento algum

pensara em fazê-lo. Era a sua casa. Fazia-o feliz. Benedita por sua vez

queria voar. Conhecer o mundo era o seu maior sonho. Queria sair dali

e descobrir novas pessoas, culturas e saberes. Queria a descoberta.

Abrir horizontes. Deixar para trás as superstições e a pequenez daquele

local, que a agudizava a cada dia.

Na época eram jovens. Embora soubessem das suas diferentes

formas de pensar, quanto ao futuro, preteriam não falar sobre o assunto.

Assumiam que no momento certo haveriam de reflectir sobre o mesmo.

Enquanto isso preferiam ir vivendo e saboreando aquilo que a vida

proporcionava.

Amavam-se! A cada pôr-do-sol mil e uma promessas de amor

eterno. Sebastião e Benedita iam crescendo envoltos num intenso e

profundo amor, sem pensar no amanhã.

Um dia uma companhia de teatro chegou à vila. Precisavam de

figurantes. Benedita nem pensou duas vezes e inscreveu-se. Fez as

provas e imediatamente foi contratada para a peça. A sua

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participação fora tão excepcional que logo surgiriam novas propostas e

com isso uma reviravolta na sua vida. Teria que partir para a cidade e

Benedita, novamente, não vacilou. Foi embora. O seu maior sonho

brotava. Não podia desistir. Sebastião nada fez. Apercebeu-se que era

o segundo amor de Benedita. Se a prendesse à vila com o tempo seria

uma mulher infeliz e frustrada. Deixou-a ir. Mostrou assim o seu amor.

Benedita tornou-se numa conhecida actriz de teatro. Sebastião

ficou na vila a elaborar as suas obras em madeira. Todas as noites,

sentava-se num grande cadeirão junto à lareira. Abria a caixa de

música, que um dia fez para Benedita. Iria oferecê-la com um anel de

noivado, no dia em que Benedita anunciou a intenção de partir. Ficava

a ver a boneca a rodar e a rodar. Fechava os olhos e pensava nela

enquanto uma melodia tocava. E a boneca rodava e rodava. Não saía

das suas mãos ao contrário de Benedita.

JOSÉ VIEIRA é o pseudónimo de Teresa Vieira Lobo. Jovem nascida na década

de 80, numa pequena localidade chamada Gaula, terra de amoras, padres e

doutores. Em 2014 estreou no mundo da escrita com o livro “Estranhas

Coincidências”.

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Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais:

[email protected]

Colaboração especial:

Karolina Who