revista bang! nº12

Download Revista BANG! Nº12

If you can't read please download the document

Upload: filipe-cigano

Post on 14-Dec-2015

19 views

Category:

Documents


2 download

DESCRIPTION

Revista BANG!

TRANSCRIPT

  • 2 /// BANG! BANG! /// 3

    ilustradordacapa Jos Alves da Silva

    Formei-me como Arquitecto pela Fa-culdade de Arquitectura de Lisboa em 1996. Sempre tive grande interesse pela criao digital de imagens. Terminado o curso, co-fundei a empresa Pura Imagem com o objectivo de aplicar as tcnicas de representao tridimensional ao estudo e apresentao de projectos de Arquitectura. Ao longo de 12 anos trabalhei na represen-tao 3D de projectos, ganhando familiari-dade com as tcnicas de modelao, textu-rizao, iluminao e animao. A criao de personagens e ilustrao comeou como um hobby. No entanto, todas as tcnicas aplicadas simulao de Arquitectura eram vlidas para a criao de persona-gens em 3D. Em 2009, ganhei o 1 prmio (Master Award) do CGSociety Challenge XXIV, o mais importante concurso de imagens promovido pelo maior site mun-dial dedicado a 3D (www.cgsociety.org). A exposio pblica resultante dessa vitria propiciou os primeiros contactos nessa rea que me apaixonava mas que eu pensa-va ser impossvel de seguir como carreira profi ssional.No fi nal de 2009 tomei a deciso de me dedicar a tempo inteiro criao de perso-nagens. Desde ento tive a oportunidade de colaborar com clientes, na sua maioria in-ternacionais, na ilustrao de campanhas de publicidade e criao de personagens para fi lmes e jogos, e ter o trabalho publicado em livros como o Expos, Exotique, dArtiste, Digital Art Masters e revistas da especialida-de como a 3D World, 3D Artist ou 3D Creative. Para mais informaes www.artofjose.com BANG!

    1

    1. General Rhino (2011)O lanamento da verso 4.2 do Zbrush trazia muitas

    novidades. A 3D Total publishing encomendou-me um artigo com uma imagem que exemplifi casse a utilizao

    das novas ferramentas do software. Foi assim que nasceu esta imagem.

    2. Boxing Kangaroo (2010)Esta imagem foi criada para um artigo da revista 3DCre-

    ative, ensinando como desenvolver um personagem cartoon em 3D com o uso do software 3DStudio Max.

    3. Tequila Tatu (2011)Criada para ilustrar um artigo para a revista 3D

    Creative. O objectivo era representar um animal com defeitos humanos. Um tatu alcolico amante de tequila

    pareceu-me uma boa ideia.

    4. Barrio Guy (2010)A explorao de uma linguagem escultrica em que a

    angulosidade dos planos fosse reveladora das caractersticas psicolgicas do personagem levou

    criao desta imagem. A dureza dos planos procura espelhar a dureza do prprio personagem.

    5. Mouse Love (2009)

    A imagem que marcou um ponto de viragem na minha vida. Venceu o 1 prmio do CGSociety Challenge XXIV

    sob o tema Secret Agent.5

    2

    3 4

  • 4 /// BANG! BANG! /// 5

    coleco bang! s literatura fantstica[Resumo das novidades Por Lus Corte Real / editor]

    Elfos, vampiros e Avalon. Trs pilares da literatura fantstica regressam este trimestre

    A Senhora da Magia Marion Zimmer Bradley

    Em 2011, a Sada de Emergncia anunciou que adquirira os direitos de publicao de toda a obra de uma das autoras mais consagradas no campo da fantasia e cujo nome j dispensa apresentaes, Marion Zimmer Bradley. O acolhimento a esta notcia no podia ter sido mais entusistico e, fi nalmente, come-amos 2012 com a apresentao das novas edies portuguesas

    desta autora sob alada da Sada de Emergncia. No podamos deixar de comear por dar a conhecer a uma nova gerao um dos seus clssicos in-temporais, As Brumas de Avalon, dividido em quatro volumes. Mais do que se centrar nos homens que se tornaram famosos nas lendas que vieram das Ilhas Britnicas, Zimmer Bradley recria a histria de Avalon e a criao de Camelot focando nas mulheres por detrs do trono que viriam a infl uenciar o curso dos eventos. As vidas de Morgaine, Igraine, Morgause e Vi-viene giram em torno de Artur mas sero elas a tecer as teias de intriga e magia que iro imortalizar um dos maiores guerreiros de sempre.A publicao da obra de Zimmer

    Bradley ser regular e no deixar de incluir outras das suas sries mais populares, como Darkover.

    Rios de Prata R. A. Salvatore

    A nova trilogia do elfo negro que se iniciou com O Fragmento de Cris-tal continua com Rios de Prata. Os fs de R. A. Salvatore sabero que esta a trilogia original que deu ori-gem a toda a fascinante lenda de Drizzt doUrden que seria desen-volvida em volumes posteriores. na Trilogia das Plancies Geladas que o elfo negro faz a sua primeira apario ao mundo (a trilogia P-tria, Exlio e Refgio, embora narre as origens de Drizzt, foi escrita

    Revista Bang! 12 / Maro de 2012 ISBN: 978-989-637-420-4 Propriedade: Edies Sada de Emergncia. Todos os direitos (e mais alguns) reservados. Director e escravo das gals: Luis Corte Real Editora (procurada pela Interpol): Safaa Dib Direco de arte e catering: Sada de Emergncia Colaboradores explorados nesta edio: Ana Alexandre, Andr Leito, Ins Botelho, Joo Barreiros, Joo Lameiras, Ester Cortegano, Joo Monteiro, Joo Seixas, Lus Santos, Nuno Reis, Rita Santos, Rui Baptista, Samuel Andrade, Tiago Ramos. Autores e outros convidados sem voto na matria: Afonso Cruz, Antnio de Macedo, Antnio Nunes de Almeida, David Soares, Fernando Queirs, Gilmar Fraga, H. S. Coelho, Igor Rosa Dias de Jesus, J. B. Machado, Jos Alves da Silva, Lus Filipe Silva, Morgana de Avalon, Nuno Lopes, Paulo Stenzel, Pedro Martins, Peter Watts, Rita Fernandes, Rui Monteiro, Sherrilyn Kenyon. Redaco e solrio: Rua Adelino Mendes, n152, Quinta do Choupal 2765-082 S. Pedro do Estoril, Portugal Impresso (gralhas includas): Printer Portuguesa Tiragem de revirar os olhinhos: 8500 Copyright: Textos e imagens propriedade da editora e/ou dos respectivos autores, etc e tal.

    Nota: os preos das lojas Fnac anunciados nesta revista consideram-se correctos salvo erro, gralha tipogrfi ca ou interveno aliengena.

    PARA MAIS INFORMAES SOBRE A COLECO BANG! OU A EDITORA SADA DE EMERGNCIA VISITE-NOS EM: SAIDADEEMERGENCIA.COM

    No Fico

    02Ilustrador da capaJos Alves da Silva10Fantasia e Realidade: Anjos, Velhos e Novos David Soares12Enciclopdia da Histria UniversalAfonso Cruz14Mais Alguns Livros Mticos e Vrios Outros (Falsos ou No) - 1 Parte Antnio de Macedo18O Homem Ilustrado: Ray Bradbury em BDJoo Lameiras30Os Autores de Ouro da Literatura Fantstica - Burroughs e Marte: A Geografi a da Imaginao Joo Seixas40A (Verdadeira) Msica do DiaboJoo Monteiro54FringeIns Botelho69Os Livros das Minhas VidasLus Filipe Silva

    Fico

    08O Polvo Rita Fernandes22As CoisasPeter Watts50Concurso de Mini-ContosVrios Autores56Teme a EscuridoSherrilyn Kenyon66Arquivo MortoGilmar Fraga e Paulo Stenzel74As Portas do DiaboDavid Soares76Entre Lolita e MargaritaJ.B. Machado

    18

    40

    54

    56

    22

    76

    66

    14

    dor da capaves da Silvaa e Realidade: Anjos, Velhos e Novos

    Soarespdia da Histria UniversalCruzguns Livros Mticos e Vrios Outros (Falsos ou

    1 Parte Antnio de Macedoem Ilustrado: Ray Bradbury em BDameirasores de Ouro da Literatura Fantstica - Burroughs e: A Geografi a da Imaginao Joo Seixas

    FicoO Polvo Rita FernandesAs CoisasPeter WattsConcurso de Minni-ContosVrios AutoresTeme a EscuridoSherrilyn Kenyon

    30

  • 1

    6 /// BANG! BANG! /// 7

    George R. R. Martin est de volta com

    uma antologia que apresenta os seus

    melhores contos, incluindo um passado

    num dos momentos mais dramticos da

    Histria de Westeros. Est tambm de volta

    com o relanamento daquele que

    considerado o seu melhor romance:

    Sonho Febril.

    posteriormente); uma fi gura enig-mtica e misteriosa, temida pelos habitantes da superfcie devido ao facto de pertencer a uma raa san-guinria e cruel, implacvel na luta mas um companheiro feroz, leal e que far tudo para salvar os amigos das garras de assassinos e inimigos. Um verdadeiro clssico da fantasia, esta trilogia encerra com A Jia En-cantada, a ser publicado em Maio.

    Despertada P.C. Cast & Kristin Cast

    Despertada de P. C. Cast & Kristin Cast o 8 volume da srie da Casa da Noite. O 1 volume, Marcada, lanado em 2009, foi um dos t-tulos mais vendidos da editora e conseguiu atrair muitas das fs de literatura de vampiros sedentas por novos autores, na ressaca de Stephenie Meyer. As aventuras de Zoey Redbird, a eleita da Deusa Nyx, h muito que ultrapassaram os limites da Casa da Noite e es-tenderam-se a outras regies onde Zoey combate as foras vampricas do mal com a ajuda dos seus ami-gos. Mas mais do que as tenses latentes na histria, os fs tm-se sentido bastante cativados pela relao entre Stevie Ray e Refaim, dois seres vastamente diferentes entre si mas inevitavelmente atra-dos um pelo outro.

    O Cavaleiro de Westeros & Outras HistriasGeorge R. R. Martin

    Cerca de 100 anos antes da guerra civil narrada nas Crnicas de Gelo & Fogo, George R. R. Martin ini-ciou a publicao de uma srie de noveletas situada no mundo de Westeros, centrada nas aventuras de um escudeiro cujo sonho era prestar juramento como cavaleiro de Westeros. Num tempo em que a dinastia Targaryen ainda ocupa-va o Trono de Ferro, o escudeiro encontra um rapaz misterioso que ir mudar a sua vida para sempre. A colectnea contm no s a noveleta como uma seleco de alguns dos melhores contos da carreira de George R. R. Mar-tin, verdadeiras prolas de fi co. Nesta obra encontraro histrias

    sobre uma cidade, h muito do-minada por uma elite de lobiso-mens, onde ocorrem horrendos acontecimentos, uma batalha no passado que pode alterar o futuro, um magnata excntrico com gosto por espcies exticas que vai ser confrontado com o que no espe-rava, um padre em crise de f num mundo distante, uma histria de sobrevivncia num planeta onde sempre inverno, uma mulher que vasculha universos inteiros em bus-ca do amor perdido e muito mais.A edio ser apresentada a 18 de Abril de 2012, em Lisboa, com a presena do prprio autor, e es-tar em pr-venda exclusiva. No percam esta oportunidade ni-ca de conhecer um dos grandes mestres da literatura fantstica.E para celebrar a visita do autor ao pas, decidimos tambm ofe-recer uma nova capa de um dos seus ttulos mais populares fora do mundo das Crnicas. Sonho Febril ter nova sobrecapa nas livrarias no ms de Abril. Para quem ainda no leu, este um clssico de vampi-ros muito antes de toda a angstia adolescente de Stephenie Meyer ter

    tornado a fi gura do vampiro me-ditica nos ltimos anos. Conhe-am a histria de Abner Marsh,capito do lendrio barco a va-por Fevre Dream e a sua jornada inesquecvel pelo rio Mississpi

    Segredo de PrataPatricia Briggs

    Mercy Thompson uma herona bem diferente do que fomos habi-tuados a ler. Ela forte, indepen-dente, mecnica de automveis para ganhar a vida, mas tambm uma metamorfa com a habilidade de se transformar num coiote e ser imune a grande parte da magia das criaturas sobrenaturais que a rodeiam. Aquilo que a torna to especial tambm aquilo que a coloca em constante perigo. No bastasse isso, vizinha do lobiso-mem alfa, Adam, por quem nutre sentimentos contraditrios. Mercy j enfrentou a rainha dos vampiros, seres fericos perigo-sos, alcateias de lobisomens ame-aadoras e j passou por situaes psicolgicas extremas que teriam deixado qualquer mulher de ras-

    tos, mas ela tem uma coragem e uma fora inspiradora e matura que tornam a leitura viciante. No 5 volume, Segredo de Prata, Mercy tenta devolver um livro mgico mas descobre que este contm segredos que as fadas fa-ro tudo para proteger. Como se no fosse sufi ciente enfrentar o mundo implacvel e perigoso das fadas, Mercy ainda tem de li-dar com o lado depressivo do seu amigo Samuel (mas ser s um amigo?), cada vez mais atormentado pelo confl ito entre a sua natureza humana e animal. Conseguir Mercy encontrar uma forma de manter o seu mundo e amigos ilesos?

    John CarterEgdar Rice Burroughs

    Uma estreia total na coleco Bang!, j tardava em fi gurar na nossa coleco o nome incontornvel de Edgar Rice Bur-roughs. Mais conhecido em Portugal pela sua criao de Tarzan, o rei dos macacos, Burroughs foi tambm o criador da per-sonagem de John Carter, o protagonista da srie Barsoom. Em John Carter, Edgar Rice Burroughs constri um mito da era moderna que marcou de forma indelvel geraes de leitores e infl uenciou as obras de incontveis criadores. Publicado agora pela primeira vez em Portugal numa edi-o comemorativa do seu centenrio, com introduo contextualizada do crtico lite-rrio Joo Seixas, a oportunidade nica de conhecer pela primeira vez um clssi-co intemporal. O lanamento do livro ir coincidir com a estreia do fi lme John Car-ter nas salas portuguesas em Maro, uma adaptao que promete rivalizar com as super-produes de fantasia e fi co cien-tfi ca norte-americanas dos ltimos anos.

    Sombras Radiantes Melissa Marr

    Melissa Marr d seguimento aos seus con-tos de Fadas numa histria sombria e arre-batadora de tentao e consequncias, e de herosmo quando menos se espera. Os lei-tores iro ser seduzidos por um universo perigoso, de cortar a respirao, um mun-do de fadas totalmente imaginado, em que at os amantes de no-fi co (ou de livros sem fadas) vo querer ingressar.Em Sombras Radiantes -nos apresenta-do Ani, metade humana e metade Fada, deixando-se esta levar pelos seus apetites. Esses mesmos apetites tambm atraem inimigos poderosos e aliados incertos, incluindo Devlin. Ele sabe que o nico que pode manter Ani a salvo das suas ir-ms. E se falhar, ser o nico responsvel pela sua morte. Mas Ani no de se deixar

    proteger enquanto os outros lutam as suas batalhas por si. medida que se tornam mais ntimos, uma ameaa maior coloca em perigo todo o Mundo das Fadas.

    O Avatar de KushielJacqueline Carey

    Maro tambm o ms em que ser pu-blicado a novidade O Avatar de Kushiel de Jacqueline Carey, um mundo repleto de sensualidade e perigos. Naturalmente rico em aventuras, com um enorme elenco de personagens bem construdas, esta como-vente e robusta histria apelar igualmente a amantes de fantasia e fi co ertica. No percam esta oportunidade de viajar Terre Dange e acompanhar Phdre, atin-gida pelo Dardo de Kushiel e eleita para toda a vida a experimentar a dor e o prazer como uma coisa s.

    Uncharted, O Quarto LabirintoChristopher Golden

    Uncharted segue as aventuras de Nathan Drake, o ladro aventureiro que anda em busca de runas antigas, artefactos inesti-mveis e riquezas incalculveis. A srie Un-charted da Sony j vendeu quatro milhes de cpias at hoje.Conhecido pelas suas sequncias de aco de cortar a respirao, pelos mistrios pro-fundos e originais, e pelos personagens en-cantadores, Uncharted faz a sua passagem natural para o papel, para alegria dos fs de todo o mundo. Escrito de forma autntica e extremamente fi el aos jogos, os fs de Uncharted no vo querer perder a ltima aventura pica de Nathan Drake. BANG!

    LTIMOS LANAMENTOS DA COLECO BANG!

    165. Rios de Prata Trilogia das Plancies Geladas

    R. A. Salvatore166. A Senhora da Magia As Brumas de Avalon, vol. 1

    Marion Zimmer Bradley 167. Despertada

    P. C. Cast & Kristin Cast 168. Mago As Trevas de Sethanon

    Raymond E.Feist169. Avatar de Kushiel

    Jacqueline Carey170. Wicked Lovely Sombras Radiantes

    Melissa Marr171. Segredo de Prata

    Patricia Briggs172. John Carter de Marte

    Edgar Rice Burroughs173. Sangue Ardente

    Charlaine Harris174. Uncharted O Quarto Labirinto

    Christopher Golden175. O Cavaleiro de Westeros

    & Outras Histrias George R. R. Martin

  • 8 /// BANG! BANG! /// 9

    UM CONTO DE

    RITA FERNANDES

    O P O L V OPassava os dias em frente janela, afundado nessa poltrona de fazen-da e caros, como se boiasse sobre ela, sobre si mesmo e sobre a nica casa que algum dia tinha conhecido. Dizia-lhe o fi lho de meia-idade: meu pai, h lugares com pessoas como o senhor, no tem de fi car para sempre aqui. E aquelas palavras faziam-lhe comicho por dentro, uma co-micho incomodativa que lhe dava vonta-de de engolir as prprias mos e deix-las coar tudo com toda a fora. Mantinha a (com)postura, cada dia mais torta, e res-pondia: no h outro lugar onde queira morrer.

    A casa, mais velha que ele, era agora lugar para reencontro de fantasmas: l

    estavam os seus pais, de repente to jo-vens, a rirem baixinho na cozinha. Ele quase adivinhava o tosco bigode do pai a escarafunchar no pescoo da me, tal qual o ourio-do-mar remexe as areias mais profundas do oceano, enquanto ela con-tinuava a cortar as cenouras para dentro da panela enorme da sopa. Ao mesmo tempo, conseguia ouvir os irmos, pouco mais velhos que ele mas ainda to jovens, a correrem no quintal da frente, sujos at s orelhas, por detrs delas tambm, mas incapazes de deixar que qualquer cansao os derrubasse. Logo a seguir, l aparecia a mulher, cheirosa, de avental vestido, a cantarolar junto telefonia, enquanto limpava o p aos candelabros, e os passos

    do fi lho, no andar de cima, a tornarem-se mais pesados medida que ia crescendo. Envolto no cenrio, o velho homem sen-tia um cheiro fresco de ondas salgadas a rebentarem na costa e sentia-se, assim, se-cretamente acompanhado.

    Era fi nal da manh e a campainha to-cava. Ele levantava-se da sua poltrona e caminhava em passos curtos na di-reco da porta, como se carregasse s costas uma carapaa pesadssima; alis, quase se conseguia v-la, a balanar-lhe por trs, coberta de musgo. O cho de madeira, por baixo, velho e podre, ran-gia a cada passo. Mas ele l ia, deter-minado, at abrir, por fi m, a porta ao sorriso rasgado da criana pequenssi-

    Sentado na sua poltrona assemelhava-se a um polvo mole, velho e incolor, de tentculos pendidos na direco do cho.

    J no sabia sequer morder ou mover-se em gestos repentinos ao avistar um isco estaladio; era agora mais inofensivo que uma

    sardinha tonta arrastada pelas correntezas do mar.

    ma que o esperava impaciente em bicos de ps.

    O pequeno vinha sempre no mesmo dia da semana, seguro pela mo do pai, que lhe dizia, antes de tocar campai-nha: v l se hoje no cansas o teu av, ele no tem a tua idade. Mal sabia o fi lho que o velhote ansiava, todas as semanas, pelo dia em que o garoto chegava cheio de vida, acompanhado pelo chocalhar de diferentes baldes cheios de conchas de to-das as formas, e o cansava at exausto dormia sempre to bem nessa noite.

    Nesse dia, como em todos, o fi lho de meia-idade ps a mesa e serviu o almoo que, como sempre, trazia j pronto consi-go. O av, sentado ao topo da mesa, e o neto, junto a si, sentado em cima de mil almofadas, de forma a conseguir chegar ao prato, tinham o mesmo rosto: olhavam por cima dos copos e travessas e pensa-vam: tem mesmo de ser? As sobrancelhas de ambos formavam arcos iguais, pendi-das sobre a testa como se fossem anzis muito fi rmes espera da dentada fatal que os fi zesse mexer. As bocas, como que penduradas na cara, eram as de achigs tristonhos nas mos dos homens. E os olhitos de ambos, pequenos pontos de luz no meio da velha sala da casa, mira-vam desinteressados as verduras, anteven-do outras mil opes muito melhores do que perder tempo a comer.

    Eram, assim, trs geraes diferentes reunidas em volta de uma mesa, duas de-las com um ponto em comum: a falta de apetite. O elemento presente da gerao do meio, ali pai e fi lho ao mesmo tempo, l arregalava os olhos e os outros dois me-tiam boca o que lhes parecia sufi ciente para satisfazer tal vontade.

    Nesse dia, no se ouviu comentar: meu pai, no acha que est na hora de deixar esta casa? Em vez disso, toda a casa se ca-lou para ouvir a criana contar as novida-des que tinha armazenado durante toda a semana para s desvendar junto do av. E o velho homem cansado sentia ganhar pequenos rasgos de vida por cada palavri-nha palrada pelo petiz que ouvia como se fosse a coisa mais importante do mundo.

    Queria pegar no neto por uma mo e no fi lho por outra e lev-los s praias de outrora aos mergulhos dados de cabe-a mar adentro, sem frio ou medos, e s festas na pele dos banhos de sol quentes. Mexia um p, por debaixo da mesa, de-pois o outro; sentia-os como dois portes antigos enferrujados pela falta de leo nas dobradias e abandonava o desejo. No acompanhando o corpo a velocidade da vontade, optava por se juntar criana e entravam juntos em mar profundo, sem

    oxignio ou barbatanas de preveno, sem sarem sequer dos seus lugares. Pas-savam horas enredados em algas, corais e estrelas-do-mar, a fugirem de tubares brancos e alforrecas e a fazerem troa das lagostas e caranguejos. Nisto, o fi lho de meia-idade levantava a mesa, olhava para as paredes manchadas da casa, abanava a cabea em desaprovao, analisava o cho, lavava a loua suja acumulada dentro dum alguidar, abria um livro da estante, olhava de volta para os tectos e voltava a abanar a cabea. Os outros dois, escafandros des-temidos em guas revoltas, nem se davam conta da aco terrena nas poucas vezes que vinham superfcie s para analisar as conchas trazidas nos baldes pelo mais pequeno.

    Juntos, no se assemelhavam a duas crianas tontas a viajar pelo mundo do imaginrio; eram, sim, dois verdadeiros cruzados dos mares convictos do seu papel. Bem imersos nas suas funes, viajavam to longe que acabavam por descobrir territrios nunca antes visitados e espcies por catalogar. No o podiam provar ao mundo porque no tinham imagens para mostrar; em contrapartida, tinham o privilgio de poder guardar um segredo como sendo um verdadeiro te-souro. Ensinava o av ao pequeno: nem sempre para ter valor tem de ser reconhe-cido pelos outros. E a criana aprendia e aceitava, ao mesmo tempo que sacudia no ar mais um bzio vazio e o encostava, de-pois, ao ouvido.

    Horas mais tarde, mil milhas mais tar-de, era hora de as visitas desaparecerem. O velho homem saa a custo do seu lugar na mesa da sala, frio como se realmente o arrancassem de dentro de gua a j horas tardias. Filho e neto, antes de irem, aju-davam-no a cair de volta na sua poltrona de estimao e despediam-se: at para a semana. O garoto largava um beijo pe-quenino como ele nas bochechas rugosas do av e tirava uma concha do balde para lha deixar nas mos, enquanto o pai j o chamava porta.

    De volta ao seu assento, canoa segura atracada no cais, via os dois pela janela a ausentarem-se no mundo. Mirava a crian-a a afastar-se, presa pela mo do fi lho de meia-idade, e pensava: no me podia ter sido oferecido melhor companheiro. Descalo, olhava para os seus ps, joane-tes enormes e unhas grossas de tanta ida-de, e era essa a ltima imagem que tinha antes de fechar os olhos, exausto.

    Subia uns degraus para entrar noutra dimenso, onde se punha, ento, a fl utuar acima da prpria cabea, careca e repleta de pequenas manchas, rplica exacta de

    a de um polvo gasto e murcho. Flutuava de braos abertos, com o corpo todo a ondular calmamente, junto com as on-das que lhe existiam por cima da cabea, agora to distantes das que tinha conhe-cido a rebentarem furiosas nas rochas. Submerso nessa bolha de gua, voltava a ouvir o riso da me ao longe, a voz do pai a cham-lo, a mulher a cantar-lhe de man-sinho... Mas a casa e a poltrona de sempre eram j muito longe, os seus fantasmas tambm, quando, por fi m, se deixava adormecer com um pequeno sorriso, ao mesmo tempo que pensava: ser a minha melhor noite de sono.

    Quando o fi lho de meia-idade e o neto o quiseram visitar, na semana seguinte, e, pela primeira vez, tinha ele partido a uma velocidade mais repentina do que qual-quer um dos dois, perceberam logo que j no o iam encontrar, porque as conchas de todas as semanas estavam alinhadas em cima da poltrona, que se via pelo lado de fora da janela. O pai dizia: no te pre-ocupes, ele foi para o cu. O pequeno, fu-rioso, largava-lhe a mo e respondia: no, ele foi para o fundo do mar. BANG!

    Rita Fernandes nasceu em 1989 em Lisboa. Foi na adolescncia que percebeu que queria contar histrias. Entre cursos de escrita criativa e de literatura infanto-juvenil, nada lhe d mais prazer que dar vida a personagens. estudante fi nalista da licenciatura em Jornalismo na Escola Superior de Comunicao Social, onde colabora com o jornal 8 colina. Em 2011 fi cou classifi cada em 1 lugar no II Prmio Literrio Cidade Poesia (So Paulo, Brasil), onde viu o seu conto editado na antologia O Polvo e outras histrias.

  • 10 /// BANG! BANG! /// 11

    uando alguns lei-tores de 1955 le-ram os trechos respeitantes ao exrcito espec-tral de Dunhar-row, instrumen-talizado por Ara-gorn para derro-tar os corsrios de Umbar, no

    recm-publicado livro The Return of the King, de J. R. R. Tolkien, a terceira parte da trilogia de literatura fantstica The Lord of the Rings, devero ter-se lembrado na-turalmente dos ainda eminentes Anjos de Mons, os reforos celestiais que acu-diram a um pequeno corpo expedicion-rio britnico, ajudando-o a fugir com se-gurana das mais numerosas tropas ale-ms, na batalha travada perto da cidade belga de Mons, a 23 de Agosto de 1914.

    Essa soldadesca sobrenatural era constituda por arqueiros ingleses mor-

    de modo explcito que os agentes sobre-naturais cintilantes so os arqueiros fantasmas de Agincourt, liderados por So Jorge (de modo geral, os santos so personagens que no gozam de gran-de popularidade no culto ingls, mas, enquanto cone nacionalista, So Jorge benefi ciava do afecto popular). O bos-quejo dos archeiros fantasmagricos como sendo anjos foi desenhado pelos eclesisticos que, poucos meses aps a publicao da notcia, disseminaram-no entre as suas parquias sob a forma de panfl etos. Em principal, o relato intitu-lado A Troop of Angels, publicado a 3 de Abril de 1915 no jornal paroquiano Hereford Times do condado de Hereford-shire, foi decisivo em estabelecer a identidade anglica dos intervenientes alm-tumulares: nessa narrao, uma jovem chamada Miss Marrable conta as experincias que dois soldados ingleses, presentes no corpo expedicionrio salvo por anjos em Mons, lhe confi dencia-

    ram, inclusive uma descrio de como as tropas alems se paralisaram pelo terror ao serem acostadas pelo magote miraculoso.

    Diversos jornais britnicos tambm reproduziram o texto original, discor-rendo sobre ele com as mais imagina-tivas interpretaes chegou a reve-lar-se que o exrcito alemo ocultara a informao de que se encontraram fl echas nos corpos dos soldados mor-tos a 23 de Agosto de 1914. Isolado no onfalo da voragem dessecretista, o autor da notcia continuava a ser inter-rogado por leitores vidos de mais por-menores, porm o texto no era notcia nenhuma, mas um conto: uma fi co inventada pelo conhecido escritor ga-ls Arthur Machen, que, desde 1910, trabalhava como jornalista para o The Evening News.

    Machen sempre disse que o seu conto The Bowmen era apenas uma fi co, sem nenhum referente real, mas isso no im-

    fantasia e realidade

    Anjos, Velhos e Novospor David Soares

    tos na Batalha de Agincourt, ocorrida a 25 de Outubro de 1415, no local onde hoje se situa a contempornea cidade e comuna de Azincourt, no Norte de Frana. Nessa batalha episdio da famosa Guerra dos Cem Anos (na verdade, durou cento e dezasseis anos) , o jovem rei ingls Henry V derrotou o numeroso exrcito francs liderado por Charles I de Albret, condestvel da Frana, inaugurando um interregno na imperante hegemonia francesa; a fortu-na de ser-se salvo por corajosos compa-nheiros de armas, provenientes do outro mundo, inspirou, pois, a imaginao in-glesa nas trincheiras da Primeira Grande Guerra.

    O relato estreou-se a 29 de Setembro de 1914 no jornal vespertino ingls The Evening News (o primeiro jornal do mun-do a ter telefone), editado nessa altura pelo jornalista Walter J. Evans, mas no menciona nenhuns anjos; com efeito, a notcia, intitulada The Bowmen, descreve

    pediu que a lenda dos Anjos de Mons ganhasse com rapidez um mpeto e uma dimenso incomuns, fi rmando-se com solidez na psique popular como um verdadeiro episdio de interveno divina alis, no faltou quem insultas-se o prprio autor por tentar denegrir com calnias a verdade sobre os anjos patriticos e at alguns soldados ingle-ses, sobreviventes da Batalha de Mons, contaram imprensa que os anjos, de facto, os ajudaram a retirar-se do campo de batalha. Tambm em 1915, o conhe-cido escritor conservador Edward Ha-rold Begbie publicou um livro intitulado On the Side of Angels, no qual acusou Ma-chen de lucrar com verdadeiras vises espirituais, transmitidas telepaticamente por desgraados soldados na frente de batalha e que ele sintonizara.

    Em tempos de carestia, como o da Primeira Grande Guerra, natural que os indivduos desesperados sintam maior disponibilidade para encontra-

    O fenmeno das aparies de Ftima pede para ser cotejado com

    o dos Anjos de Mons.

    David Soares autor dos roman-ces Batalha, O Evangelho do Enforcado, Lisboa Triunfante e A Conspirao dos Antepas-sados. A revista literria Os Meus Livros considerou-o o mais importante autor portugus de literatura fantstica.

    rem conforto junto de ideias mar-ginais que refutariam em melhores circunstncias. Em Portugal, por exemplo, o fenmeno das aparies de Ftima, cuja data principal de 13 de Maio de 1917 se inscreveu na sequncia da partida do corpo ex-pedicionrio portugus para Frana, pede para ser cotejado com o dos Anjos de Mons.

    Hoje, a secularizao da socieda-de no permitir, certamente, um levantamento de massas de ordem similar em torno de um tema de natureza religiosa, mas os meca-nismos que promovem a aceitao do inverosmil tambm funcionam com o pensamento poltico, como comprovou a emergncia dos na-cionalismos durante o sculo XX. Ao contrrio dos nossos antepassa-dos, somos demasiado rebuscados para acreditarmos nas chamadas grandes mitologias formativas, mas, por outro, talvez sejamos mais les-tos que eles a acreditar em informa-o contrafactual desde que ela v ao encontro daquilo que sentimos, porque, hoje, os sentimentos subs-tituram os factos e qualquer fi co difundida sem anlise poder ser, tal como o conto de Machen, lida como sendo verdade histrica.

    Por um lado no duvido de que isso acontecer, mais tarde ou mais cedo. Por outro, prefi ro no ser tes-temunha dos anjos que o sculo XXI poder trazer. BANG!

    Arthur Machen foi um dos grandes escritores do incio de sculo xx. A sua obra im-prescindvel compreenso de autores como H. P. Lovecraft, Stephen King, Bram Stoker, Conan Doyle, Oscar Wilde, ou mesmo Alfred Hitchcock. Foi apontado por Lus Borges como a grande infl uncia do realismo mgico. A Coleco Bang! publicou duas das mais marcantes obras do autor: O Terror e O Grande Deus P

    B E L A LU G O S I I S D E A Dht tp : / /be la lugos i isdead.b logspot . com/

    QUIN PUEDE MATAR A UN NIO? (1976)N A R C I S O I B E Z S E R R A D O R

    Baseado no romance de Juan Jos Plans, El juego de los nios, acompanhamos um jovem casal de frias que viaja at a uma ilha no sul de Espanha. A ilha encontra-se deserta mas rapidamente o casal comea a aperceber-se que os seus habitantes foram todos mortos pelas crianas, e um destino semelhante aguarda-osLogo no incio do fi lme, o realizador confronta-nos com imagens verdicas exi-bindo os horrores a que as crianas so sujeitas na Guerra. Quem pode matar

    uma criana? Uma simples pergunta. Uma provocao? Ibez Serrador empurra o casal para um pesadelo claustrofbico, ao mesmo tempo que os obriga a refl ectir sobre a condio dos pequenos oponentes. E nos es-pectadores o nervosismo crescente.Apesar de uma premissa hoje, bastante comum, Quin puede matar a un nio? continua a ser uma das melhores obras do cinema de terror espa-nhol. / Rui Baptista

    S P L I T S C R E E Nspl i tscreen-b log.b logspot . com/

    TARAN E O CALDEIRO MGICO (1976) T E D B E R M A N , R I C H A R D R I C H

    Um conto de magia e espadas da Disney que no podia ser mais diferente de qual-quer outro fi lme da companhia que criou o Rato Mickey. Inquestionavelmente o mais negro que j foi feito por esta companhia, Taran e o Caldeiro Mgico um dos fi l-mes de animao que qualquer f de fan-tasia no pode perder. Quanto mais no seja, vale a pena ver por causa do vilo, the Horned King, que facilmente poderia ter vindo da mente de um dos mestres de low fantasy. A nica razo pela qual pode

    perder pontos por ser dedicado a crianas, pois se fosse virado para o pblico adulto seria certamente uma das melhores animaes j feitas a nvel do fantstico e provavelmente fi lme de culto. Ou talvez, quem sabe, tenha sido este fi lme a iniciar muitos no mundo do fantstico. / Ana Ale-xandre

    N OT A F I L M C R I T I Cht tp : / /not f i lmcr i t i c .b logspot . com/

    HANSEL & GRETEL (2007)P I L - S U N G Y I M

    Era uma vez, um rapaz que tinha medo da responsabilidade. E o seu medo era to grande que durante um passeio soli-trio se distraiu e despistou-se para fora da estrada. Ele foi acudido por menina de capa vermelha e faces rosadas que o aliciou para dentro de uma fl oresta encan-tada. L, esperava-o uma casa onde os sonhos se tornavam realidade. Um local mgico, onde no existia doena, nem papes e podia comer cupcakes em todas as refeies. Enfi m, ser feliz e despreocu-

    pado eternamente, distncia da imaginao de uma criana. Mas sob a aparncia de felicidade est um poder demasiado grande para estar nas mos de quem nunca amadureceu. O rapaz ter de escolher: viver para sempre na iluso ou crescer? Hansel & Gretel uma fantstica incurso no imaginrio dos Irmos Grimm, que representa tudo o que a sua obra deve ser: bela e negra ao mesmo tempo. / FilmPuff

  • 12 /// BANG! BANG! /// 13

    Nascituros Gomez Bota comeou as escavaes em Jerusalm no ano de 1891, numa das etapas da sua volta ao mundo, via-gem que empreendera para provar que a Terra no redonda, ou aproxima-damente redonda. Levou uma vida a reunir provas de que o nosso planeta , na verdade, uma espcie de espiral qua-drimensional. Sobre as escavaes, Bota escreveu num pequeno livro que foi publicado j no sculo XX pela edito-ra Eurdice! Eurdice! que, durante as primeiras semanas de trabalho de cam-po, se deparou com um rio subterrneo, um canal que identifi cou com o mtico Aqueronte. Afi rma, no livro menciona-do, que encontrou a porta do Inferno tal como Dante a descreveu. Para l da-quela porta, havia um cone em direco ao centro da Terra, com os famosos nove crculos que se estendiam por mui-tos quilmetros, mas que eram perfeita-mente visveis do vestbulo. Ao contr-rio de Dante, no teve Virglio nenhum a servir-lhe de guia, mas foi avanando com a sua equipa at lhe ser impossvel continuar, devido ao calor que atraves-sava o centro da construo de pedra. No via os mortos, porque eles no se vem com estes olhos, disse, mas po-dia ouvir os seus lamentos, pois o nosso corao tem as orelhas necessrias para ouvir estas coisas.

    Quando comunicou a sua descoberta, Gomez Bota foi preso sem quaisquer explicaes, e as escavaes foram encer-radas pelas autoridades. Soltaram-no dois meses depois, expulsando-o do Levante.

    No seu livro, afi rma que ns, patetica-mente, vemos os mortos como ossos en-quanto eles, os mortos, vem-nos como

    enciclopdia da histria universalpor Afonso Cruz

    Noutros tempos, cultivou-se uma heresia, dualista, gnstica por vezes, maniquesta:

    assentava na ideia de que existia outro deus.

    fetos que ainda no nasceram. Olham para a nossa vida como ns olhamos para o interior de um tero. Diz ainda que to-das as viagens se fazem para dentro da morte e dos mortos, pois quanto mais vivemos, mais perto estamos de nos tor-narmos antepassados.

    den tecnolgico construdo com sofs e incapazes de reagir. Incapazes de perce-ber que podemos ter a responsabilidade de criar. O texto seguinte foi publicado por Lukkari nos primeiros anos do grupo Metanoia:

    Noutros tempos, cultivou-se uma he-resia, dualista, gnstica por vezes, mani-questa por outras: assentava na ideia de que existia outro deus, um que mandava neste mundo, material, carnal e sem esp-rito, um deus mau e trapalho, em oposi-o a um outro, perfeito na sua bondade. Foram vozes de fi losofi as por vezes cris-ts, mas na verdade mais antigas, e que sempre assombraram o esprito humano e que haveriam de perdurar pelo menos at sexta cruzada, a dos Albigenses, a cruzada de cristos contra cristos, a tal em que Simon de Monfort tem, duran-te o cerco a Bziers, uma das frases mais famosas da Histria da perfdia humana. Quando lhe perguntaram como fariam para distinguir os catlicos dos hereges, o dito duque e representante do papa Ino-cncio III, respondeu: Matem-nos a to-dos, Deus reconhecer os seus. E assim foi, hereges ou no, homens, mulheres e crianas foram mortos.

    Uma das particularidades destas here-sias , portanto, a existncia de uma outra divindade, que muitas vezes identifi cada com o Deus do Antigo Testamento e que, segundo estas doutrinas, no era o verda-deiro Deus, mas um demiurgo orgulho-so, ou mesmo diablico, que teria criado o mundo tal como o conhecemos e nele nos mantm escravos e prisioneiros. S-culos depois, temos de concordar com a heresia gnstica, no teologicamente, mas socialmente. Somos governados por uma caterva de incompetentes que nos criaram este mundo social onde o cidado entre-tido com verses modernas do circo ro-mano, enquanto os outros se entrevaram num espao artstico e potico, sem rele-vo carnal. Tal como o verdadeiro Deus gnstico: estava nos cus, e partes suas es-tariam presas, em centelhas nos coraes dos homens. Entretanto, a humanidade prestava culto ao Deus errado, ao falso, ao burlo, ao truo, enfi m, ao estadista bem remunerado e que acumula vencimentos, uns em cima dos outros.

    Somos obrigados a olhar e concordar, num contexto social, com Andronikos. No existe s uma divindade, plena de esprito, existe outra, a que nos governa, um Mammon, uma divindade incompe-tente e bolsos cheios, de reduzidos valores intelectuais mas cheia da carne do sculo: a conta bancria e palavras como demo-cracia e liberdade. Palavras que, quando

    autor dos livros Enciclopdia da Estria Universal (Quetzal, 2009), A Carne de Deus (Bertrand, 2008) e Os Livros Que Devoraram o Meu Pai (Caminho, 2010 - Prmio Literrio Maria Rosa Colao). Recentemente publicou A Boneca de Kokoschka (2010) e O Pintor De-baixo do Lava-Loias (2011). Alm de escrever, tambm ilustrador, cineasta e msico (compe e toca na banda de blues/roots The Soaked Lamb). Vive no campo e tem dois fi lhos.http://afonso-cruz.blogspot.comhttp://soakedlamb.com

    Prova da fragmentao do indivduo usando apenas dois espelhos Diz o criado de Mr. Abbott Abbott:

    O meu patro olha-se ao espelho e diz para o seu refl exo: Que elegncia, Mr. Abbott Abbott! O seu refl exo, por sua vez, no v Mr. Abbott Abbott, mas sim um novo refl exo sobreposto ao primei-ro, uma imagem de uma imagem, e diz a mesma frase: Que elegncia, Mr. Abbott Abbott! Sistematizando: o que acontece que Mr. Abbott Abbott 1 (chamemo-lo assim) v o seu refl exo, que Mr. Abbott Abbott 2; que, por sua vez, no v o origi-nal pois tambm se est a ver ao espelho; v, isso sim, Mr. Abbott Abbott 3. Este, no espelho, v Mr. Abbott Abbott 4. E assim at ao infi nito. Quando s existe um espelho, os infi nitos Mr. Abbott Ab-bott que compem Mr. Abbott Abbott esto sobrepostos e parece existir apenas um refl exo, mas a verdadeira natureza do homem, uma multiplicidade infi nita, pode facilmente ser percebida se neste exerccio usarmos mais do que um espelho. Nesse caso, aparecero todos os Abbott Abbott que a vista consegue alcanar, dizendo em unssono: Que elegncia, Mr. Abbott Abbott!

    Gnosticismo poltico Na dcada de 1970, Paavo Lukkari, jun-tamente com vrios outros artistas euro-peus, fundou um grupo de contestao social, chamado Metanoia, em que usava o gnosticismo de Andronikos fora do contexto religioso, aplicando-o poltica. Para eles, no um deus avaro e castra-dor, embusteiro e canalha, que governa as nossas vidas, mas sim um grupo de polti-cos corruptos, com as mesmas caracters-ticas do Deus gnstico, que nos impede de criar, de perceber o caroo das coisas e nos mantm presos numa espcie de

    pronunciadas, fazem calar e matar, mas a pleno direito, com a legalidade do impos-tor, com a mesma voz dos deuses de pe-dra que exigem sangue. Existe realmente um deus dissoluto, uma divindade falsa, escatolgica, refastelada num slio e a quem acendemos incenso, ou em quem votamos, o que vai dar no mesmo.

    Lixo O lixo mais caro a ltima tecnologia. (Ari Caldeira)

    Opostos A vida no o contrrio da morte. O momento da concepo ou do nasci-mento que, podemos dizer, o opos-to da morte. Demolir o oposto de cons-truir, mas demolir no o oposto de lar. Ento qual o contrrio da vida? Muito simples: a vida de casado.

    Curiosamente, Miroslav Bursa, o autor da frase supracitada, haveria de abando-nar a vida que levava diz-se que sedu-ziu largas centenas de mulheres , com-prometendo-se num casamento eterno: tornou-se monge num mosteiro da Bu-covina, contraindo matrimnio com um cnjuge omnipresente e de quem se diz ser fonte de vida eterna. BANG!

  • 14 /// BANG! BANG! /// 15

    O S H O M E N S D E N E G R O No meu artigo Livros mticos ou a Biblioteca (qua-se) invisvel, publicado na revista Bang! n. 7, falei por duas ou trs vezes na teoria da conspirao, que em regra faz sorrir os cpticos e os espritos superiores.

    Argumenta-se que h conspiraes o que se comprova pela Histria mas no h conspirao, no sentido singular, a tal conspirao dos ho-mens de negro [1] que estariam por trs dos eventos mais marcantes da histria do mundo e fariam parte de uma autoridade secreta acima da mais alta autoridade secreta que manipula governos, organizaes, grandes multinacionais e mono-plios, com um plano secreto por trs de outro plano secreto atrs de um outro plano ainda mais secreto que por sua vez controla secretamente os mais remotos e astutamente contraditrios planos secretos de acordo com o mximo dos mxi-mos de todos os planos ultra-secretos (tero de desculpar-me, mas j me perdi)

    O mais esquisito de tudo isto que eu, com todo o meu inato cepticismo mstico, sinto por vezes uns minipruridos cerebrais que me alertam para a hiptese de que tal-vez sim, talvez seja verdade talvez exista realmente uma superconspirao que nos superdomina e nos manipula como se fs-semos inadvertidas marionetas

    Seno, como se explicariam tantas aldra-bices, pseudocientfi cas e outras, que circu-lam por a e, mais ainda!, como se expli-caria a crena que nelas depositam alguns crebros bem aparelhados, fi dedignos, l-cidos e acima de toda a suspeita? [2] Fareja-me que a simples estupidez humana no explica tudo pois no ser ela, tambm, a prpria estupidez humana, uma arma gentica de que arteiramente se servem os tais misteriosos agentes conspiracionrios? [3] Penso que se podem incluir nesta am-bgua e voltil categoria uns quantos livros uns autnticos, outros falsos que me proponho aqui mostrar-vos (pelo menos alguns deles), e que, verdadeiros ou falsos, em no poucos casos provocaram estra-gos bem reais.

    V E R D A D E I R O O U R E A L ?

    Antes de ir adiante convm aten-der ao seguinte pormenor: de um ponto de vista puramente sociolgico que a minha rea de es-pecializao o que conta no tanto a distino acadmica entre o verdadeiro e o falso, distino que compete Filosofi a, Cincia, Lgica, Teoria do Conheci-mento, eventualmente Teologia, mas sim a distino entre o real ou actuante e o no-real ou inactuante.

    Por exemplo: a crena em OVNIs pode ser falsa, mas os seus efeitos sociolgicos so bem reais s na Internet existem quase vinte milhes de websites com teste-munhos, associaes, editoras e livrarias, clubes, indstrias, empresas de cinema e TV e respectivos fi lmes e sries televi-sivas, literatura (tanto de fi co como de ensaios), colquios e simpsios, institui-es, congregaes, artistas de um extenso leque de artes e ofcios, lbuns de BD, lojas paranormais, celebridades envolvidas, pro-gramas informativos e culturais, jogos de computador, DVDs, marcas comerciais, bandas de msica pop, etc., etc.

    Tudo isto mobiliza uma gigantesca massa sociolgica e interfere em di-versas reas culturais, artsticas, sociais, econmicas, fi losfi cas, religiosas e at polticas movimentando milhes e milhes de euros. Ou seja, no devemos confundir o real com o verdadeiro, como

    se comprova por esta simples amostra: o fenmeno bem real e actuante, ainda que possa ser eventualmente falso. Por outras palavras: um fenmeno pode ser cientifi ca-mente falso, mas, ao mesmo tempo, sociolo-gicamente real.

    A M I R A G E M D O S D I R I O S S E C R E T O S

    Enfi m, para no me alongar em considerandos, comearei por vos apresentar um livro falso cujo aparecimento foi anunciado, com grandes parangonas e honras de sensacionalista au-tenticidade, pela revista alem Stern Maga-zin, de 25 de Abril de 1983, ocupando toda a capa e com o ttulo Hitlers Tagebcher ent-deckt (Dirios de Hitler descobertos), ou seja: teriam sido fi nalmente encontrados os famosos dirios secretos de um dos mais sinistros ditadores e genocidas do sculo xx, aps aturadas pesquisas do jornalista e investigador da Stern, Gerd Heidemann!

    Tratar-se-ia sem dvida de uma desco-berta bombstica, a ser autntica tal reve-lao. No entanto a notcia era boa de

    se evidenciou que tudo no passava de um logro bastante inepto e grosseiro, com er-ros histricos e uma m imitao da letra do fhrer, que ainda por cima detestava escrever e ditava as suas cartas e outros textos a uma secretria. Logo se descobriu que o falsrio era um tal Konrad Paul Kujau, conhecido ilustrador e falsifi cador, conluiado com o jornalista Gerd Heidemann, que entretan-to haviam recebido da revista Stern cerca de nove milhes de marcos pelos direitos de publicao dos 61 cadernos. Por sua vez The Sunday Times, de Londres, tambm j tinha desembolsado 400.000 dlares para o mes-mo efeito, e a Newsweek s por um triz no chegou a comprar os respectivos direitos por um preo semelhante.

    Claro que os dois burles foram presos, julgados e condenados por fraude, falsifi -cao e desfalque, em 1984, com pena de trs anos e meio de priso.

    Fim da histria.Que pena! Se fosse verdadeira, seria sem

    dvida uma histria devastadoramente promissora

    Ora aqui est um exemplo de um livro falso que no fez mal a ningum, a no ser aos burles, que foram presos, e aos edi-

    Capa da revista Stern, proclamando a descoberta dos dirios de Hitler

    mais para ser verdadeira. Nem merece a pena determo-nos nos maquiavlicos pro-psitos que transpiram daquela garabulha copiada de frases de discursos sortidos de Hitler entremeadas com assustadoras in-vencionices porque a fraude foi descoberta rapidamente.

    Apesar de algumas divergncias iniciais entre alguns dos peritos que examinaram os 61 cadernos supostamente manuscritos com a caligrafi a de Adolf Hitler, datados de 1932 a 1945, abarcando treze anos da mais sombria experincia humana, segun-do o semanrio novaiorquino Newsweek que durante o entusiasmo inicial comeou por engolir a patranha, em pouco tempo

    tores da Stern, Peter Koch e Felix Schmi-dt, que tiveram envergonhadamente de se demitir.

    N A Z I S M O E M A G I A S N E G R A S : L E N D A S E N O - L E N D A S

    Bem sei que aqui na revista Bang! na-vegamos nas retroversas ondas das fi ces fantsticas, mas infelizmen-te nem tudo o que se relaciona com Hitler e o nazismo to grotescamente simples, fantasiado e inofensivo como o que acabei de sumariar.

    MAIS ALGUNS L I V R O S M T I C O SE VRIOS OUTROS (FALSOS OU NO)

    ( P R I M E I R A PA R T E )

    T E XTO D E A N TN IO D E M A C E D O

  • 16 /// BANG! BANG! /// 17

    As relaes de Hitler com magias (de preferncia negras) e outros sortilgios tornaram-se um lugar comum sobretudo depois da explosiva apario do livro Le Matin des magiciens, de Louis Pauwels e Ja-cques Bergier, publicado em 1960 e que marcou uma poca, e no qual, entre outras misteriosidades, se esmiuavam as origens mgico-ocultas do nazismo [trad. port.: O Despertar dos Mgicos, ed. Bertrand]. O fas-cnio de Hitler pelas sociedades secretas e ocultistas j vinha de trs, basta relembrar que por volta de 1920, no DAP (Deutsche Arbeiterpartei), Hitler se encontrou com Die-trich Eckart, um dos membros-fundadores da Sociedade Thule (Thule-Gesellschaft), um grupo ocultista de exaltao germanizante e racista que apoiou o DAP e daria origem, mais tarde, ao partido nazi organizado pelo futuro ditador. Eckart tornou-se o mentor de Hitler, imbuindo-o com as suas ideias e apresentando-o a fi guras eminentes de Mu-nique.

    Mas foi principalmente a partir da pu-blicao da obra de Pauwels e Bergier que proliferaram dezenas de livros sobre o assunto. Entre os mais emblemticos desta colheita, e mais ou menos da mesma poca e anos seguintes, contam-se Hitler et les socits secrtes: Enqute sur les sources occultes du nazisme (Paris, 1969), de Ren Alleau, e Hitler et la tradition cathare (Paris, 1971), de Jean-Michel Angebert, nos quais se in-sistia nas sociedades secretas envolvidas e nas negras magias associadas s antigas

    religies da sustica, bem como as suas in-fl uncias directas em Hitler e no nazismo.

    De realar tambm a importncia que tiveram, neste movimento, dois misterio-sos livros do ainda mais misterioso Otto Rahn (1904-1939), medievalista alemo que acreditava que os Ctaros haviam sido os guardies do Santo Graal e que esse prodigioso objecto recheado de sobrena-turais virtudes continuaria escondido algu-res no sul de Frana, talvez nas abruptas montanhas onde ainda hoje se podem ver as runas da fortaleza ctara de Montsgur. Os dois livros a que me refi ro so Kreuzzug gegen den Gral (1933) e Luzifers Hofgesind (1937). [4]

    As ideias de Otto Rahn excitaram a entusistica adeso de Heinrich Himm-ler, um dos mais altos dignitrios do na-zismo e senhor absoluto da temvel SS (Schutzstaffel). Em 1937, Himmler ofere-ceu a Hitler, como prenda de aniversrio, os livros de Otto Rahn, que foi integrado na SS como investigador. As convices defendiddas por Rahn so exploradas com a espectaculosidade que todos co-nhecemos em pelo menos dois fi lmes do arquelogo-aventureiro Indiana Jones, personagem criada por Steven Spielberg e George Lucas: Raiders of the Lost Ark (1982) e Indiana Jones and the Last Crusa-de (1989), ambos realizados por Steven Spielberg [5], onde se exploram dois dos grandes mitos cristos, a Arca da Aliana (judaico-cristo) e o Santo Graal (clti-

    co-cristo), e as cpidas apetncias dos nazis para se apoderarem desses fabulo-sos objectos propiciadores de um poder ilimitado.

    Saltemos porm da fi co para a som-bria e palpvel realidade: na biblioteca pri-vada de Hitler encontrou-se, entre muitas outras curiosidades, um tremendo livro de magia que no fi ctcio este mesmo real! , intitulado Magie: Geschichte, Theorie, Praxis [Magia: Histria, Teoria, Prtica], da autoria de um tal doutor Ernst Schertel, publicado no municpio de Prien (Baviera) em 1923. Esse exemplar tem o aliciante de se encontrar anotado pelo prprio punho de Hitler, com marcas verticais suas, a lpis grosso, nas margens das pginas, referen-ciando as passagens mais satanicamente revelatrias dos malfi cos intuitos que j fervilhavam pelo hitlerstico crebro. Trata-se de um precioso exemplar, sem dvida, que se conserva na John Hay Library, da Brown University, em Providence, Rhode Island (EUA). [6]

    Do seu autor, Ernst Schertel (1884-1958), sabe-se apenas que escreveu ro-mances e peas de teatro versando ocul-tismo, e ensaios na mesma linha, e per-tenceu ao movimento do revivalismo m-gico e ocultista germnico dos primeiros anos do sculo xx. um autor menor em cuja obra e actividades se incluem sado-masoquismo, danas extticas, nudismo e vislumbres de magia sexual, provavel-mente inspirado pelas obras mgicas e

    ritualsticas de Paschal Beverly Randolph (1825-1875). Houve um comentador que considerou Ernst Schertel como a ver-so germnica de Aleister Crowley, mas tal no passa, evidentemente, de excesso de entusiasmo por parte do comentador alemo Schertel nunca teve nem um centsimo da visibilidade de Crowley, ape-sar de Hitler o ter seguido como mestre mgico.

    O exemplar a que me refi ro tem uma dedicatria ao fhrer escrita pelo prprio punho de Schertel, cuja traduo reza mais ou menos o seguinte: A Adolf Hi-tler - com veneradora dedicao, do Au-tor. Para no abusar da pacincia e da boa vontade de quem se vai penosamente extenuando por estas linhas, apenas cito quatro das passagens realadas por Hitler, para amostra:

    Todo e qualquer universo mgico-demnico est centrado nos grandes in-divduos, dos quais brotam as principais concepes criativas. O mago est rode-ado por um campo-de-fora de energias paracsmicas, e tal como j o dissemos, ele actua, no mais alto grau ectrpico, sobre a dinmica csmica (pg. 78).

    Sat o princpio criativo, que estabe-lece e incrementa os valores, e de incio aparece-nos como o mal; em contraparti-da, Seraph o plo que efectiva os valores da permanncia e da preservao, e ao qual chamamos o bem. Sat o guerreiro fertili-zador, que tanto destri como constri, ao passo que Seraph constitui a posse e a paz. Portanto, Sat e Seraph no so adversos, mas sim polaridades contrapostas, como as duas faces da mesma moeda (pg. 80).

    O egosmo pode ser bom, e o altrus-

    [1] Refi ro-me, claro, aos famosos les hommes en noir que o anatematizado Jacques Bergier popularizou em 1971 na sua obra Les livres maudits, que na poca incandesceu muitas ima-ginaes, e mesmo depois.[2] Se acham que exagero, faam o obsquio de ler o implacvel livro Impostures intellectuelles, dos professores universitrios de Fsica Alan Sokal e Jean Bricmont (Paris: ditions Odile Jacob, 1997), que sendo embora de 1997 con-tinua infelizmente actualizado, e deveria ser de leitura obrigatria para quem no queira deixar-se enganar por todas as intelectualices que nos so impingidas como dogmas No mesmo sentido vai um livro mais recente do prof. Jorge Buescu, doutorado em Matemtica pela Universidade de Warwick, O Mistrio do Bilhete de Identidade e Outras Histrias (Lisboa: Gradiva, 11. edio 2007), sobretudo as pp. 159 a 199.[3] Para quem queira fi car devidamente elucida-do das misteriosas razes estatsticas da estupi-

    dez humana, recomenda-se a leitura do diver-tido e esclarecedor livro de Carlo M. Cipolla, Allegro Ma Non Troppo (Oeiras: Celta Editora, 1993), sobretudo o captulo As leis fundamen-tais da estupidez humana, pp. 45 a 81.[4] Ambos esto traduzidos em portugus, numa traduo alis bastante boa e cuidada: Cruzada Contra o Graal (Editora Hugin, 2000), e A Corte de Lcifer (Editora Hugin, 2002). Infelizmente a Editora Hugin faliu em 2005 e hoje so raridades que somente se encontram (quando encontram) em alfarrabistas. No entanto, para quem queira dar-se ao trabalho de se deslocar Biblioteca Nacional, em Lisboa, ambos os livros esto disponveis para leitura com as seguintes cotas, respectivamente: L. 66910-V. e R. 22088-V.[5] Em Portugal, esses fi lmes foram estreados com os ttulos: Os Salteadores da Arca Perdida e Indiana Jones e a Grande Cruzada.[6] Existe traduo em ingls, integral, com as passagens que Hitler marcou impressas em

    bold: Dr. Ernst Schertel, Magic: History, Theory, Practice. Annotated by Adolf Hitler. Trad. ing. por Cotum Research Staff. Introd. J. H. Kelley. Ed. Cotum, 2009. Apesar de ser uma traduo num ingls um bocado macarrnico, consegue mesmo assim dar uma ideia aceitvel do texto original e do contedo e intenes das referidas passagens.[7] Sabe-se que durante a II Guerra Mundial os servios secretos britnicos contrataram o astrlogo suo Louis de Wohl (1903-1961) para tentar antecipar as jogadas blicas de Hitler. Aparentemente os ingleses no acredi-tavam em predies astrolgicas, mas sabiam que Hitler sim, acreditava, e tinha astrlogos ao seu servio para lhe indicarem as confi guraes astrais mais propcias para os seus ataques. Ora, se os ingleses tambm as conhecessem, podiam precaver-se calculando onde e quando o dita-dor nazi faria as suas investidas E ainda h quem diga que a magia e afi ns no tm utilida-de nenhuma (!)

    mo pode ser mau. Ser prestvel torna-nos grandes, mas ser dominador torna-nos maiores (pg. 81).

    Quem no transporta em si a semente demnica, nunca dar nascimento a um novo mundo (p. 92).

    Se Hitler descodifi cou ou no o que isto realmente queria dizer, ou se apenas inter-pretou estas e outras nebulosidades conso-ante o que os seus incandescidos vapores cerebrais lhe quiseram fazer crer, deixo considerao e ao arbtrio do arguto leitor, certamente mais arguto do que eu, que apenas me limito a avaliar pelos catastr-fi cos resultados da II Guerra Mundial. [7] BANG!

    Antnio de Macedo, escritor, cineasta e prof. universi-trio, nasceu em Lisboa em 1931. Inclui na sua extensa fi lmografi a dezenas de do-cumentrios, programas televisivos e fi lmes de inter-veno, bem como onze longas-metragens de fi co. Paralelamente, especializou-se na investigao e estudo das religies comparadas, de esoterologia, de histria da fi losofi a e da esttica audio-visual, e das formas literrias e flmicas de speculative fi ction, temas que tem abordado em inmeros colquios e conferncias, e em diversas publicaes. Foi homenageado pelo 30. Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz, em Setembro de 2001, pela relevncia da sua carreira e pelo contributo prestado cultura cinematogrfi ca portuguesa.

    Uma pgina do livro Magie: Geschichte, Theo-rie, Praxis, anotado, na margem, por Adolf Hitler

  • 18 /// BANG! BANG! /// 19

    O HOMEM ILUSTRADO:RAY BRADBURY EM BD

    TEXTO DE JOO LAMEIRAS

    Quem no se lembra de Fahrenheit 451, o genial fi lme que Franois Truff aut realizou a partir do roman-ce homnimo de Bradbury, exemplo maior de uma srie de adaptaes ao grande e ao pequeno ecr? verdade que a escrita eminentemente visual de Ray Bradbury, em que o terror e a fi co cientfi ca funcionam como efi cazes metforas da natureza humana, a isso se presta, mas acaba por ser tambm a consequncia de um amor recproco entre este autor e as histrias aos quadradinhos.

    o prprio Bradbury,

    que chegou a escrever o argumento para uma verso cinematogrfi ca no concretizada do Little Nemo de Winsor McKay, a confessar o seu amor pelos comics nos seguintes termos: Como posso negar a infl uncia exercida sobre a minha vida pelos autores de comics e os seus trabalhos? uma longa histria de

    amor que come-ou tinha eu 3 anos de idade e nunca mais ter-minou, infl uen-ciando a minha vida, a minha imaginao e a minha escrita.

    Sem Buck Rogers, descoberto quando tinha nove anos, nunca teria desejado voar para o futuro com tanta intensida-de. Sem as tiras coloridas de Tarzan que eram publicadas todos os domingos, nun-ca teria lido com tal entusiasmo as obras de Edgar Rice Burroughs sobre a viagem de John Carter a Marte, que inspiraram,

    aos doze anos de idade, o meu primeiro romance. () Coleccionei o Prince Valiant durante mais de 30 anos e escrevi autnticas car-tas de amor a Harold Foster, o seu criador, chamando-lhe o maior desenhador de co-mics que conheci em toda a

    Um dos mais clebres escritores de fico cientfica de sempre, o norte-americano Ray Bradbury tambm um dos autores que mais tem visto os seus trabalhos transpostos para outros suportes, do cinema Banda Desenhada.

    BANG! /// 18

    Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, retrato de um mundo distpico onde os livros no tm lugar

    Fahrenheit 451, a temperatura a que o papel dos livros arde, retrata uma sociedade americana cada vez mais disfuncional

    minha vida. Como recompensa, Foster mandou-me dois gigantescos originais das pginas dominicais do Principe Va-liant, que levarei comigo para o tmulo.

    Se Bradbury sempre foi um leitor assumido e entusiasta de BD, esta s comearia a utilizar os seus contos como fonte de inspirao, na dcada de 50, graas editora EC Comics, clebre pelos seus comics de terror e de fi co cientfi ca, ilustrados pelos melhores desenhadores americanos da poca, como Jack Davis, Bernard Krig-steen, Graham Ingels, Wallace Wood e Al Williamson. Um dos primeiros exemplos foi Home to Stay, uma his-tria desenhada por Wally Wood e publicada no n 13 da revista Weird Fantasy, adaptando Kaleidoscope e Th e Rocket Man, dois contos includos no livro de Bradbury, Th e Illustrated Man. E foi o prprio Ray Bradbury que telefonou a William Gaines, o edi-tor da EC Comics para lhe dizer que a histria da EC era melhor que os seus contos originais que lhe tinham servido de base, embora no to boa que no tivssemos que lhe pagar di-reitos de autor, acrescenta Gaines. A partir da, com a beno do prprio Bradbury, sucedem-se as adaptaes dos contos originais, desenhadas pelos melhores autores da EC, que assinam

    aqui alguns dos seus melhores traba-lhos para a editora, como no caso de Wood, com Mars is Heaven. Infeliz-mente, o trabalho incontornvel da EC Comics nunca teve a devida divul-gao em Portugal e as adaptaes que os seus desenhadores fi zeram de Ray Bradbury no so excepo. Por isso, ainda mais digno de ateno O Papa Defuntos, um lbum da Editora brasi-leira L& PM, distribuido em Portugal na dcada de 90, em que Jack Davis, Graham Ingels, Wally Wood, Bernie

    Krigstein e Jack Kamen adap-tam contos de Bradbury.

    Bem mais recentes, do incio dos anos 90, so as Ray Bradbury Chronicles, uma srie de adaptaes publicadas nos EUA pela editora Topps e que resultam da iniciativa do edi-tor Byron Preiss que conseguiu reunir um vasto leque de auto-res contemporneos, dos dois lados do Atlntico, que nos do a sua viso das histrias de Bradbury. Embora desigual, como todas as antologias, esta antologia reuniu a nata da BD americana (de Mike Migno-la a P. Craig Russel, de Kent Williams a Richard Corben, de Timothy Truman a Dave Gibbons) a que se juntam os

    O clebre conto A Sound of Th under de Bradbury adaptado para BD por William Stout

    Ilustrao de Daniel Torres para um dos contos das Crnicas Marcianas, Encontro Nocturno

    Marte o Paraso! Por detrs do titulo idlico, os as-tronautas iro descobrir uma verdade muito mais cruel

    Os melhores contos sobre dinossauros pelo autor foram adaptados para BD com ilustraes de Moebius e William Stout

  • 20 /// BANG! BANG! /// 21

    espanhis Vicente Segrelles, desenha-dor de O Mercenrio, Toni Garcs e Daniel Torres, o criador de Roco Var-gas, srie de fi co cientfi ca retro parcialmente publicada em Portugal pela Meribrica.

    Cinco dessas adaptaes foram publicadas em Portugal, entre 1999 e 2001, na 2 srie da revista Seleces BD, coordenada por Jorge Magalhes. Nessas adaptaes, assinadas por Vi-cente Segrelles, Dave Gibbons, Toni Garcs, Daniel Torres e Marc Chia-rello, que os leitores portugueses pu-deram descobrir nas Seleces BD, h duas verdadeiras prolas: Vem minha Cave, um conto sobre uma discreta e silenciosa invaso extraterrestre, ilus-trado por Dave Gibbons, o desenha-dor de Watchmen, que com o seu trao clssico e planifi cao cerrada, traduz de forma admirvel o clima de grande suspense da histria e Encontro Noc-turno, o conto das Crnicas Marcianas adaptado por Daniel Torres. Uma bela histria sobre dois personagens de di-ferentes eras, que ocasionalmente se cruzam numa estrada, que Bradbury considera como uma das suas hist-rias favoritas e que Daniel Torres trata com grande delicadeza e beleza, graas a um trao de grande elegncia, valo-rizado por umas cores etreas, perfei-tamente adequadas a uma histria em que espao e tempo se confundem.

    Mas, para alm de todos os nomes que Byron Preiss conseguiu reunir neste projecto, ou-tros desenhadores de nomeada tive-ram oportunidade de dar uma corres-pondncia visual s palavras de Ray Bradbury, como foi o caso de Moebius e de William Stout, com as suas ilustra-es para a colect-nea Dinosaur Tales, que reunia os me-lhores contos sobre dinossauros escritos

    pelo autor americano, incluindo o c-lebre A Sound of Th under, j adaptado

    para a BD por All Williamson e por Richard Corben, em duas verses bem dspares, mas igualmente conse-guidas, sobretudo quando compara-das com a pattica adaptao cinema-togrfi ca realizada por Peter Hyams em 2005.

    Tambm o por-tugus Jos Carlos Fernandes transps para a BD os con-tos de Ray Brad-

    O clssico de Ray Bradbury sobre um misterioso circo que desperta a curiosidade de dois adolescentes ser publicado pela Sada de Emergncia

    A colonizao de Marte por humanos na sequncia da devastao da Terra originou alguns dos melhores con-tos da carreira de Bradbury

    Antologia que rene algumas das melhores adaptaes de BD do grande clssico de fi co cientfi ca, As Crnicas Marcianas

    Este texto dedicado ao Jorge Magalhes, que pela primeira vez me convidou a es-crever sobre Ray Bradbury.

    bury. Antes de se sentir com capacidades para escrever as suas prprias histrias, Fernandes treinou a mo adaptando contos de Gabriel Gar-ca Mrquez e de Ray Bradbury. E se a adaptao de O Drago, se re-vela bastante incipiente quando comparada com a verso de Segrelles, este tipo de trabalho revelou-se uma notvel escola de aprendizagem, conforme o prprio Fernandes admite, e outras adaptaes posteriores, como O Dia em que Choveu para Sempre, podem perfeitamente ombrear com os trabalhos recolhidos por Byron Preiss, em termos narrativos e de planifi cao.

    Mas as adaptaes dos textos de Bradbury BD no param. Para alm das ilustraes que Dave McKean, que j tinha desenhado uma das capas de Ray Bradbury Comics da Topps, fez para Th e Homecoming, tambm Fahrenheit 451 foi adaptado BD por Tim Hamilton, numa muito conseguida adaptao, que no foi a nica recente, pois em Julho de 2011, saram mais duas adaptaes, de Something Wicked this Way Comes, desenhada por Ron Winberly e de Th e Martian Chronicles, ilus-trada por Denis Calero.

    Tal como o autor, que aos 91 anos de idade, mantm um invej-vel dinamismo, tambm a obra de Ray Bradbury se mantm bem viva. Nos contos e romances que escreveu, ou nas Bandas Desenhadas que os adaptam. BANG!

    Joo Lameiras Mestre em Histria da Arte pela Universidade de Coimbra. Tem desenvolvido uma vasta actividade no campo

    da Banda Desenhada, como conselheiro editorial, tradutor, argumentista e crtico para diversas editoras e publicaes e

    scio-gerente da Livraria Dr. Kartoon. Escreve com frequncia no seu blogue http://porumpunhadodeimagens.blogspot.com

    Vem minha Cave, um conto sobre uma discreta e silencio-sa invaso extraterrestre, uma das melhores adaptaes de Bradbury ilustrada por Dave Gibbons

  • 22 /// BANG! BANG! /// 23

    Estou a ser Blair. Fujo pe-las traseiras enquanto o mundo entra pela frente.

    Estou a ser Copper. Regresso dos mortos.

    Estou a ser Childs. Guardo a entrada principal.

    Os nomes no interessam. So marcadores, nada mais. Toda a biomassa intermutvel. O que importa que so tudo o que so-bra de mim. O mundo queimou o que restava.

    Vejo-me pela janela, a avanar pela tempestade, usando Blair. MacReady disse-me para queimar Blair se ele regressasse sozi-nho, mas MacReady ainda julga que sou um dos seus. No sou: es-tou a ser Blair e encontro-me porta. Estou a ser Childs e deixo-me entrar. Comungo bre-vemente, com gavinhas que se contorcem a partir dos meus rostos e que se entrelaam: sou BlairChilds a trocar notcias do mundo.

    O mundo descobriu-me. Encon-trou a minha toca por baixo do barraco das ferramentas, o salva-vidas por acabar, caniba-lizado a partir das vsceras de helicpteros mortos. O mundo est ocupado a destruir o meu meio de fuga. Depois vir minha procura.

    S me resta uma alternativa. Desintegro-me. Enquanto Blair vou partilhar o meu plano com Copper e alimentar-se da bio-massa em putrefaco que em tempos se chamou Clarke. Tantas alteraes em to pouco tem-po exauriram-me perigosamente as reservas. Enquanto Childs j consumi o que restava de Fuchs e estou provido para a fase se-guinte. Ponho o lana-chamas s costas e saio para a longa noite antrctica.

    Entrarei na tempestade para nunca mais voltar.

    Antes de me despenhar fui muito mais. Fui explorador, embai-xador, missionrio. Espalhei-me pelo cosmos, conheci mun-dos incontveis, comunguei: o apto recriava o inapto e todo o universo progredia em incrementos mnimos rejubilantes. Fui soldado, em guerra com a entropia. Fui a mo com que a Criao se aperfeioa.

    Tanta sabedoria que tive. Tanta experincia. Agora no sou ca-paz de me lembrar de tudo o que soube. S recordo ter tido esse conhecimento.

    Contudo lembro-me de me despenhar. A queda matou de imediato quase toda esta ramifi cao, mas parte dela conseguiu afastar-se dos destroos: alguns trilies de clulas, uma alma de-masiado fraca para as controlar. A biomassa amotinada arras-tou-se para longe, apesar das minhas tentativas desesperadas de me manter coeso: pequenos fragmentos de carne em pnico que desenvolveram por instinto os membros de que se recordaram e fugiram sobre o gelo ardente. Quando recuperei o controlo do que restava, os focos de incndio tinham-se desvanecido e o frio regressava. Mal consegui desenvolver anticongelante sufi ciente para impedir que as minhas clulas rebentassem antes de ser en-volvido pelo gelo.

    Lembro-me igualmente de voltar a despertar: vibraes senso-riais em tempo real, as primeiras falhas de conscincia, o lento calor da percepo, medida que corpo e alma se reuniam aps a sua longa dormncia. Lembro-me das ramifi caes bpedes a rodearem-me, dos estranhos sons agudos que produziam, da bi-zarra uniformidade da estrutura corporal. Pareciam to mal adap-tados, com uma morfologia inefi ciente! Mesmo incapacitado via tanta coisa que podia ser reparada. Comunguei. Saboreei a carne do mundo e o mundo atacou-me. Atacou-me.Deixei esse lugar em runas. Encontrava-me do outro

    lado das montanhas a estao norueguesa, segundo lhe chamam por aqui e nunca teria conseguido percorrer essa distncia com uma pele bpede. Felizmente havia outra forma pela qual optar, mais pequena do que a bpede, mas mais adaptada ao clima local. Escondi-me den-tro dela enquanto o resto de mim repelia o ataque. Escapei para a noite sobre quatro patas e deixei que as chamas crescentes me encobrissem a fuga.

    S parei de correr quando aqui cheguei. Movimentei-me entre estas novas ramifi -caes usando a pele de um quadrpede. Como no me tinham visto a assumir outra forma, no atacaram.

    Quando os assimilei vez quando a mi-nha biomassa se alterou e assumiu formas de todo familiares para os olhos locais fi z essa co-munho sozinho, pois descobrira que o mundo no gosta do que desconhecido.

    Estou sozinho na tempestade. Sou um habitante das profun-dezas no leito de um qualquer mar aliengena lgubre. A neve soprada em rajadas horizontais. Rodopia quando apanhada em ravinas ou contra elevaes, criando pequenos remoinhos. Mas ainda no estou longe o sufi ciente. Ainda vejo a estao, bri-lhante nas trevas, um amontoado angular de luz e sombras, uma bolha de calor no abismo ululante.

    Observo-a a mergulhar na escurido. Rebentei com o gerador. Agora j no h luz, excepo dos sinais luminosos ao longo das cordas-guias: fi leiras de estrelas azuis plidas aoitadas pelo

    vento, constelaes de emergncia destinadas a orientar a bio-massa perdida de volta a casa.

    No vou regressar a casa. No estou sufi cientemente perdido. Avano pelo negrume at que as prprias estrelas desaparecem. Trazidos pelo vento chegam-me os brados dbeis de homens as-sustados e furiosos.

    Algures atrs de mim, a minha biomassa separada reagrupa-se em formas mais vastas e poderosas para o confronto fi nal. Podia ter-me juntado a ela: escolhido a unidade em vez da fragmenta-o, sendo reabsorvido e confortado pelo todo maior. Podia ter adicionado a minha fora batalha que se avizinha, mas optei por um rumo diferente. Estou a poupar as reservas de Childs para o futuro. O presente nada traz, alm da aniquilao.

    melhor no pensar no passado.J passei tanto tempo no gelo. No sabia quanto at que o

    mundo juntou as pistas, decifrou os apontamentos e as gravaes da estao norueguesa, e identifi cou o local da queda. Na altura estava a ser Palmer. Incgnito, acompanhei a expedio.

    Cheguei a conceder-me uma rstia de esperana.Contudo, o que encontrei j no era uma nave, nem sequer

    um destroo. Era um fssil, incrustado no fundo de um enorme fosso rebentado no glaciar. Vinte destas peles poderiam empo-leirar-se umas em cima das outras e mal chegariam borda da cratera. A escala temporal instalou-se em mim com o peso de um mundo: quanto tempo teria sido preciso para que todo aquele gelo se acumulasse? Quantas eras teria o universo avanado sem mim?

    E durante todo esse tempo, talvez um milho de anos, no houvera salvamento. Nunca me encontrei. Interrogo-me quanto ao signifi cado disso. Ser que ainda existo sem ser aqui?

    Uma vez regressado ao acampamento irei apagar o rasto. Vou dar-lhes uma batalha fi nal, um monstro que destruir. Eles que venam. Eles que deixem de procurar.

    Voltarei ao gelo na tempestade. Seja como for, mal sa de l, tendo estado vivo apenas alguns dias, depois de tal eternidade. Mas nesse tempo aprendi muito. Pelos destroos fi quei a saber

    que no haver reparaes. O gelo disse-me que no serei salvo. E

    com o mundo descobri que no vai haver reconciliao. Agora, a nica esperana de fuga em direco ao fu-turo: sobreviver a toda esta biomassa hostil e deforma-da, deixar que o tempo e o cosmos mudem as regras. Talvez da prxima vez que acordar, este mundo seja diferente.

    Tero passado eras at que veja outra alvorada.

    Foi isto que o mundo me ensinou: a adaptao provocao. A adaptao um incentivo violncia. quase obsceno uma ofensa contra a prpria Criao ter de fi car preso nesta pele. Est to mal adaptada ao ambien-te que precisa de se envolver em camadas mltiplas de tecido meramente para se manter aquecida. So inmeras as maneiras de a optimizar: membros mais curtos, melhor isolamento, uma

  • 24 /// BANG! BANG! /// 25

    relao superfcie-volume mais baixa. Tantas formas que ainda tenho dentro de mim e no me atrevo a usar nenhuma, nem se-quer para afastar o frio. No me atrevo a adaptar. Aqui, s posso esconder-me.

    Que tipo de mundo rejeita a comunho? a mais simples e irredutvel competncia que a biomassa pode

    ter. Quanto maior a capacidade de mudana, mais nos podemos adaptar. A adaptao aptido, a adaptao sobrevivncia. mais profunda do que a inteligncia, mais profunda do que o te-cido: celular, axiomtica. Mais ainda, deleitvel. Comungar sentir o absoluto prazer sensual de melhorar o cosmos.

    Mesmo assim, ainda que esteja encurralado nestas peles to mal adaptadas, este mundo no quer mudar.

    Comecei por pensar que talvez no passasse de malnutrio, que aqueles ermos gelados no garantissem energia sufi ciente para mutaes rotineiras. Ou talvez fosse uma espcie de labora-trio: um canto anmalo do mundo, afastado e imobilizado na-quelas formas bizarras, fazendo parte de uma qualquer experin-cia arcana de monomorfi smo em ambientes extremos. Depois da autpsia interroguei-me se o mundo se teria simplesmente esque-cido de como mudar: sendo incapaz de tocar nos tecidos, a alma no poderia esculpi-los, tendo o tempo, o stress e a fome crnica apagado a memria de alguma vez ter sido capaz de o fazer.

    Contudo, havia demasiados mistrios, demasiadas contradi-es. Porqu aquelas formas especfi cas, to mal equipadas para o ambiente em que se encontravam? Se a alma estava isolada da carne, o que a manteria coesa?

    E como podiam aquelas peles estar to vazias quando nelas entrava?

    Estou habituado a encontrar inteligncia em todo o lado, per-correndo cada parte de todas as ramifi caes. Todavia, no havia nada a que me agarrar na biomassa desprovida de mente daquele mundo: apenas ligaes que transportavam ordens e informa-es. Comunguei sem que isso me fosse oferecido; as peles que escolhia debatiam-se e sucumbiam; as minhas fi brilas infi ltra-vam-se na electricidade hmida de todos os sistemas orgnicos. Vi atravs de olhos que ainda no eram meus, comandei nervos motores que accionavam membros ainda feitos de protena alie-ngena. Usei aquelas peles tal como fi zera com um sem fi m de outras, assumi o controlo e deixei que a assimilao das clulas individuais prosseguisse ao seu ritmo.

    Claro que s podia usar o corpo. No encontrava memrias para absorver, experincias ou compreenso. A sobrevivncia de-pendia da insero no que me rodeava e no bastava parecer-me com o que existia naquele mundo. Tinha de agir como ele e pela primeira vez em toda a memria viva, no sabia como o fazer.

    Tambm no precisava de o fazer, o que era ainda mais assus-tador. As peles que assimilava continuavam a mover-se sozinhas. Conversavam e desempenhavam as tarefas que lhes tinham sido atribudas. No entendia o que se passava. Penetrava cada vez mais profundamente nos rgos e nos membros a cada momen-to que passava, alerta a quaisquer sinais do dono original. No encontrei redes alm da minha.

    Claro que poderia ter sido muito pior. Podia ter perdido tudo, fi cando reduzido a uma mancheia de clulas sem nada, alm do instinto e da sua plasticidade para as guiar. Teria voltado a crescer recuperado a sencincia, comungado e regenerado um intelecto vasto como um mundo mas seria um rfo, amnsi-co, sem percepo de quem era. Pelo menos fui poupado a isso: emergi da queda com a identidade intacta, com os moldes de mil mundos ainda a ressoar-me na carne. Mantive no s o desejo puro de sobreviver, mas tambm a convico de que a sobrevi-

    vncia importante. Ainda sou capaz de sentir prazer, caso exista motivo sufi ciente.

    Mesmo assim, em tempos houve muito mais.A sabedoria de tantos outros mundos, perdida. Tudo o que

    resta so resumos abstractos, memrias limitadas de teoremas e fi losofi as excessivamente vastas para se acomodarem numa rede to empobrecida. Poderia assimilar toda a biomassa deste lugar, reconstruir corpo e alma um milho de vezes acima da capacida-de daquilo que aqui se despenhou mas enquanto me encontrar encurralado no fundo deste poo, afastado da comunho com o meu ser mais vasto, nunca recuperarei tal conhecimento.

    Sou um fragmento miservel daquilo que fui. Cada clula per-dida leva um pouco do meu intelecto com ela e acabei por fi car to pequeno Enquanto em tempos pensava, agora limito-me a reagir. Quanto poderia ter sido evitado, caso pudesse ter recu-perado um pouco mais de biomassa dos destroos? Quantas op-es me escapam por a minha alma no ter a dimenso necessria para as conter?

    O mundo falava consigo prprio, tal como eu o fao quando as minhas comunicaes so simples quanto baste para serem transmitidas sem fuso somtica. At mesmo como co era capaz de captar os morfemas identifi cativos bsicos esta rami-fi cao era Windows, aquela era Bennings, as duas que tinham partido com destino incerto na mquina voadora eram Copper e MacReady e sentia-me maravilhado com o facto de aqueles pedaos fi carem isolados uns dos outros, de manterem a forma durante tanto tempo, que a identifi cao de alquotas individuais de biomassa acabasse por ter um objectivo til.

    Mais tarde escondi-me dentro dos bpedes e aquilo que se ocultava naquelas peles assombradas comeou a falar comigo. Disse que os bpedes se chamavam tipos, ou homens, ou idiotas. Revelou que por vezes MacReady era chamado de Mac. Explicou que aquele aglomerado de estruturas era uma estao.

    Disse que tinha medo, mas talvez isso fosse eu.Claro que a empatia inevitvel. No possvel imitar as fa-

    lhas e os qumicos que motivam a carne sem tambm os sentir at certo ponto. Mas isto era diferente. Essas intuies tremeluziam em mim, mas mantinham-se fora do alcance. As minhas peles vagueavam pelos corredores e os smbolos crpticos em todas as superfcies Horrio da Lavandaria, Benvindo ao Clube, Este Lado Para Cima quase faziam um certo senti-do. Aquele artefacto pendurado na parede era um relgio: media a passagem do tempo. Os olhos da pele pas-seavam por aqui e por ali, e eu absorvia fragmentos da no-menclatura a partir da men-te dela do homem.

    No entanto estava ape-nas a deslocar-me a bor-do de um holofote. Via o que ele iluminava, mas no era capaz de apontar numa direco por mim escolhida. Podia ouvir, mas apenas isso. No ti-nha como interrogar.

    Se pelo menos um des-ses holofotes tivesse feito uma pausa para meditar sobre a sua prpria evo-luo, sobre a trajectria

    que o levara quele stio As coisas pode-riam ter sido diferentes, caso eu soubesse. Mas tudo se resumiu a uma nova palavra:

    Autpsia.MacReady e Copper tinham encontrado

    parte de mim na estao norueguesa: uma ramifi cao que fi cara para trs, queimada aquando da minha fuga. Tinham-na tra-zido com eles carbonizada, deformada, imobilizada a meio da transformao e pareciam no saber do que se tratava.

    Nessa altura estava a ser Palmer e Norris e co. Juntei-me restante biomassa e ob-servei Copper a abrir-me e a retirar-me as entranhas. Vi-o a deslocar qualquer coisa de trs dos meus olhos: algum tipo de r-go.

    Era deformado e incompleto, mas o essencial era bastante claro. Parecia um grande tumor enrugado, como uma com-petio celular desregrada como se os processos que defi nem a vida se tivessem virado contra ela. Era obscenamente vas-cularizado, devendo consumir oxignio e nutrientes de forma absolutamente des-proporcionada em relao sua massa. No conseguia imaginar como algo assim poderia existir, como fora capaz de alcan-ar tal dimenso sem ser ultrapassado por uma morfologia mais efi ciente.

    Tambm no era capaz de conceber qual a sua utilidade. Mas depois comecei a olhar com novos olhos para estas ramifi caes, para as formas bpedes que as minhas c-lulas tinham copiado escrupulosa e precipi-tadamente ao darem-me uma nova forma para este mundo. No estando habituado a proceder a inventrios para qu catalogar partes corporais que se transformam em outras coisas mnima provocao? vi pela primeira vez a estrutura inchada que encimava cada corpo. Era muito maior do que deveria ser: um hemisfrio sseo onde se poderia acomodar um milho de liga-es ganglionares com espao de sobra. Cada ramifi cao dispunha de uma. Cada fragmento de biomassa tinha uma daque-las enormes excrescncias deformadas de tecido.

    Apercebi-me ainda de outra coisa: os olhos e os ouvidos da minha pele morta tinham alimentado aquela coisa antes de Copper a ter retirado. Um aglomerado denso de fi bras percorria o eixo longitu-dinal da pele, ao longo do centro do en-dosqueleto, chegando cavidade escura e gelatinosa onde a excrescncia se alojava. A estrutura deformada estivera ligada a toda a pele, como uma espcie de interface somatocognitiva, mas amplamente mais massiva. Era quase como se

    No.Era assim que funcionava. Era assim

    que aquelas peles vazias se deslocavam por sua vontade prpria; fora por isso que no encontrara outra rede com a qual integrar-me. Ali estava: no se encontrava distribudo pelo corpo, mas sim enrolado em si prprio, escuro, denso e enquistado. Encontrara o fantasma naquelas mquinas.

    Senti-me enojado.Estava a partilhar a minha carne com

    um cancro consciente.

    Por vezes, escondermo-nos no basta.Lembro-me de me ver espalhado no piso do canil, uma quimera com uma centena de divises, a comungar com meia dzia de ces. Gavinhas carmesim contorciam-se no cho. Rplicas semifor-madas emergiram dos meus fl ancos, com formas de ces e coisas nunca vistas neste mundo, morfologias aleatrias recordadas pelas partes de uma parte.

    Lembro-me de Childs me queimar vivo antes de ser Childs. Lembro-me de me en-colher aterrorizado dentro de Palmer, rece-ando que aquelas chamas se pudessem vi-rar contra o resto de mim, que este mundo tivesse aprendido a atacar sem aviso prvio.

    Lembro-me de me ver a cambalear pela neve, levado pelo instinto puro, enquanto usava Bennings. Tinha cotos retorcidos indiferenciados presos s mos, como pa-rasitas grosseiros, mais fora do que dentro; fragmentos sobreviventes de um massacre anterior, aleijados, descuidados, levando consigo o que podiam e revelando-se ao mundo. Os homens cercaram-no na noi-te: sinalizadores vermelhos na mo, luzes azuis pelas costas, os rostos bicromticos e belos. Lembro-me de Bennings, envolto em chamas, a uivar como um animal no exterior.

    Lembro-me de Norris, trado pelo cora-o defeituoso que fora copiado na perfei-o. De Palmer a morrer para que o resto de mim pudesse viver. Windows, ainda hu-mano, queimado por via das dvidas.

    Os nomes no importam. a biomassa que interessa: tanta que se perdeu. Tantas experincias novas, tanta sabedoria recen-te aniquilada por este mundo de tumores conscientes.

    Porque seria que me tinham desenterra-do? Para qu cortarem-me do gelo, leva-rem-me pelo ermo, ressuscitarem-me, para me atacarem assim que acordei?

    Se o objectivo era a erradicao, por que no me mataram logo assim que me en-contraram?

    Aquelas almas enquistadas. Aqueles tu-mores. Escondidos nas suas cavernas sseas, enrolados sobre si prprias.Sabia que no se poderiam esconder

    eternamente. Aquela anatomia monstruo-sa no impedira a comunho, limitara-se a abrand-la. Crescia um pouco a cada mo-mento que passava. Sentia-me a envolver as ligaes motoras de Palmer, a avanar ao longo de um milho de correntes mi-nsculas. Sentia a minha infi ltrao na massa pensante escura atrs dos olhos de Blair.

    No passava de imaginao, claro. Nesse ponto tudo so refl exos, incons-cientes e imunes microgesto. Contudo, parte de mim queria parar enquanto ainda havia tempo. Estou habituado a incorpo-rar almas e no a partilhar espao com elas.

  • 26 /// BANG! BANG! /// 27

    cessar. preciso muita concentrao para me esconder nestas peles e com tantos olhos a observar-me foi uma sorte que a comunho tivesse durado o sufi ciente para trocar recordaes: compor a minha alma estava fora de questo. Agora, no entanto, no tenho nada mais para fazer a no ser preparar-me para o oblvio. Nada que me preencha os pensamentos, alm de todas as lies que fi caram por aprender.

    O teste sanguneo de MacReady, por exemplo. O seu detetor de coisas, para re-velar os impostores que se faziam passar por homens. No resulta to bem quanto o mundo julga, mas o facto de funcionar de todo viola as regras mais essenciais da biologia. o centro do enigma. a res-posta a todos os mistrios. J o poderia ter solucionado se eu fosse um pouco maior. Talvez j conhecesse o mundo, se este no estivesse determinado a matar-me.

    O teste de MacReady.Ou ser impossvel, ou estive errado

    acerca de tudo.

    Eles no mudaram de forma. No co-mungaram. O receio e a desconfi ana mtua cresciam, mas no uniram as almas. Limitaram-se a procurar o inimigo no exterior.

    Por isso dei-lhes algo que pudessem en-contrar.

    Deixei pistas falsas no computador ru-dimentar da estao: cones e animaes simplistas, valores e projeces errneos, temperados com verdade quanto bastasse para convencer o mundo da sua idoneida-de. No interessava que a mquina fosse demasiado bsica para realizar tais clcu-los, ou que, fosse como fosse, no houves-se dados onde os basear. Blair era a nica biomassa que o poderia saber e ele j era meu.

    Deixei indcios falsos, destru os verda-deiros e depois com o libi estruturado deixei que Blair enlouquecesse. Permiti que sasse para a noite e destrusse os ve-culos enquanto eles dormiam, controlan-do-lhe ao de leve os movimentos para ga-rantir que certos componentes vitais eram poupados. Libertei-o na sala do rdio, observei pelos seus olhos e pelos de ou-tros enquanto ele dava largas destruio. Ouvi-o divagar sobre um mundo em risco, sobre a necessidade de conteno, acerca da convico de que a maioria de vs no faz ideia do que se passa por aqui mas eu tenho bem noo que alguns de vocs o sabem

    Estava convicto de cada palavra. Pude v-lo no seu holofote. As melhores falsi-fi caes so as que se esqueceram de que no so reais.

    Esta esta compartimentao era algo sem precedentes. Assimilara j um milhar de mundos mais fortes do que este, mas nunca um que fosse to bizarro. O que aconteceria quando me deparasse com a falha do tumor? Quem assimilaria quem?

    Naquele momento estava a ser trs ho-mens. O mundo comeava a desconfi ar, mas ainda no se apercebera. Nem mesmo os tumores nas peles que eu tomara sabiam

    quo perto me encontrava. Sentia-me gra-to por isso por a Criao ter regras, por haver coisas que no mudavam, fosse qual fosse a forma assumida. No importa se uma alma se espalha atravs da pele ou se se propaga num isolamento grotesco, ela necessita sempre de electricidade para fun-cionar. As recordaes dos homens preci-savam de tempo para se consolidar, para atravessar os portes que fi ltravam o rudo presente nos sinais e uma descarga atem-pada de esttica, mesmo indiscriminada, limpava a memria temporria antes de o seu contedo poder ser armazenado de forma permanente. Pelo menos eliminava o sufi ciente para que os tumores se esque-cessem de que por vezes havia alguma coi-sa a mover-lhes os braos e as pernas.

    Ao incio s assumia o controlo quando as peles fechavam os olhos e os holofotes se agitavam de forma desconcertante atra-vs de imagens falsas, padres que se fun-diam sem sentido uns nos outros, como uma biomassa hiperactiva incapaz de se acomodar numa nica forma. (Sonhos, disse-me um holofote, e um pouco depois, Pesadelos.) Era seguro sair durante esses perodos misteriosos de dormncia, em que os homens jaziam, inertes e isolados.

    Contudo, em breve os sonhos desapare-ceram. Os olhos passaram a estar sempre abertos, fi tos nas sombras e uns nos ou-tros. As ramifi caes at a dispersas pela estao comearam a juntar-se, a trocar os empreendimentos solitrios pela compa-n