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Representações e usos das inovações de indumentária de Maria Antonieta (1774-1789)
Representations and uses of Marie Antoinette's costume innovations (1774-1789)
Felipe Bernardo da Silva Goebel *1
Resumo: Esse artigo analisa as transformações de indumentária e de comportamento
feminino realizadas pela rainha Maria Antonieta (1754-1793) para ter sua posição e influência
firmadas na Corte de Versalhes. Para tal, examinamos, inicialmente, os quadros oficiais e as
polêmicas que alguns deles geraram na rígida sociedade de corte francesa e nos salons
artísticos e filosóficos de Paris. Mobilizaremos ainda a revista Cabinet des Modes, a qual
tinha a rainha como patronesse, e que serviu como divulgadora das tendências de vestimenta e
ornamentação cotejados pela rainha e seu grupo seleto, e por isso considerado à la mode e
copiados e adaptados por diversos setores sociais. Além disso, nos debruçamos sobre os
panfletos políticos e pornográficos contrários à sua ascensão no interior da política cortesã,
buscando respostas negativas a essas inovações, centrando nosso olhar nas charges e
caricaturas do período que mobilizam o vestuário. Ao se posicionar com irreverência e
rebelião frente às rígidas regras de vestimenta e comportamento da aristocracia do regime
Bourbon, esperamos demonstrar de que forma Maria Antonieta e seu entourage foram capazes
de operar mudanças significativas no vestir e agir feminino do período pré-revolucionário e
como essas transformações foram divulgadas e adaptadas por diversos setores da sociedade
francesa, dentro e fora de Versalhes, e apropriadas pelos críticos da monarquia. Dessa forma,
analisamos o conjunto de representações e usos dados a essas inovações e, também, as
declarações políticas contidas nessas atitudes no período imediatamente anterior à Revolução.
Tal subversão, além de gerar mudanças significativas na indumentária, parece ter
transformado Maria Antonieta na personificação do que havia de mais vicioso na monarquia
absolutista, unindo as mais diversas críticas, desde as advindas das intrigas cortesãs até a dos
libelistas populares de Paris e dos líderes sans-culotte. E por isso mesmo o que deveria ser
totalmente aniquilado em conjunto com o regime.
Palavras-chave: Maria Antonieta; Indumentária; Sociedade de corte; História da moda.
Abstract: This paper analyzes the transformations in women's clothing and feminine
behavior carried out by Queen Marie-Antoinette (1754-1793) in order to establish her position
and influence at the Court of Versailles. To do so, we first examine the official portraits and
controversies that some of them generated in the rigid French court society and in the artistic
and philosophical salons in Paris. We will also mobilize the magazine Cabinet des Modes,
which had the queen as a patroness, and which served as a promoter of the trends in dressing
and ornamentation adopted by the queen and her select group, and therefore considered a lá
mode, and thus copied and adapted by several sectors. In addition, we focus on the political
and pornographic pamphlets against her rise within the court’s politics. We seek out negative
responses to these innovations, focusing on the cartoons and caricatures of the period that
mobilize women's clothing and behavior. By standing with irreverence in the face of the rigid
rules of dress and behavior of the aristocracy of the Bourbon regime, we hope to demonstrate
how Marie-Antoinette and her entourage were able to effect significant changes in the pre-
revolutionary feminine dress and behavior and how this transformations were divulged and
adapted by various sectors of French society, inside and outside Versailles, and appropriated
by the critics of the monarchy. In this way, we analyze the set of representations and uses
given to the innovations of dress of the courtesan aristocracy and also the political
* Mestrando do PPGHIS/UFRJ, orientado pela Profa Dra Maria Aparecida Rezende Mota, bolsista FAPERJ,
email: [email protected]
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declarations contained in this attitude in the period immediately preceding the Revolution.
This subversion, in addition to generating significant changes in dress, seems to have
transformed Marie-Antoinette into the embodiment of what was most vicious in the absolutist
monarchy, uniting the most diverse critics, from the courtesan intrigues to the popular liberals
of Paris and the sans-culotte leaders. So, she should be totally annihilated in conjunction with
the regime.
Keywords: Marie-Antoinette; Clothing; Court society; Fashion history.
Maria Antonieta é, no imaginário popular atual, a trágica rainha francesa que perdeu a
cabeça, figurada e literalmente, pelas exuberâncias e frivolidades da moda do final do século
XVIII. Agraciada com inúmeros privilégios, como juventude, beleza e riqueza e boas
intenções, ela ocupou uma posição prestigiosa sem igual e era extravagante, imatura e
suscetível à adulações. Seu vasto guarda-roupa era assunto de intenso escrutínio público e
deveria conformar-se e complementar a etiqueta e cerimonial da complexa Corte de
Versalhes. Em um ano, ela adquiria, por alto, cerca de cem trajes novos: trinta e seis grand
habits (vestidos formais de corte), trinta e seis vestidos informais de seda (deshabillée), trinta
e seis robes en cerceau (vestidos em duas partes, com saia e corpete separados) para
carteados, saraus e jantares, além de vestidos informais de musselina e algodão.2 Todos
deveriam ser encomendados às melhores e mais caras marchandes de modes e costureiras de
Paris e confeccionados somente com materiais produzidos em território francês. Esses gastos
não eram fora de comum ou controversos, constituíam antes uma prazerosa obrigação: de
acordo com Madame Campan, “o esplendor externo era considerado um necessário atributo
da realeza” 3 e ela poderia ser, e de fato foi, criticada se negligenciasse esse importante ponto
da prerrogativa real. Ela é, de maneira definitiva, lembrada como uma mulher preocupada
com sua aparência; um dos seus epítetos mais famosos foi “Rainha da Moda”. De fato, antes
mesmo de se tornar rainha da França ela já era considerada especialmente bem vestida. Como
Delfina, (esposa do herdeiro do trono francês, o Delfim), era o dever da jovem de quatorze
anos conformar-se aos gostos franceses e livrar-se de qualquer vestígio de suas origens
austríaca.
O destaque dado aos trajes de Maria Antonieta, na metade final do século XVIII,
relaciona-se com a já consolidada cultura das aparências na França. Essa importância apoiava-
se, sobretudo, no objetivo atribuído pelo Rei Sol à indumentária, quando esta passou a ser
tratada como um projeto político de justificação do poder régio com pretensões absolutas e
2 CAMPAN, Henriette. Memoirs of the Court of Marie-Antoinette, Queen of France. Disponível em:
<https://archive.org/details/memoirsofcourto1v2camp> p. 1:286. ”The queen bought more than a hundred gowns
per year: thirty-six grand habits; thirty-six informal silk gowns; and thirty-six robes en cerceau for card parties,
soirées, and dinner parties, as well as informal muslim and cotton gowns.” 3 Idem, p. 1.185.
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sediado no recém-construído Palácio de Versalhes. Sendo assim, os hábitos de vestuário e
ornamentação dos cortesãos funcionavam, segundo Daniel Roche 4, como fator de definição e
distinção social, integrando um programa político-social que enaltecia os indivíduos mais
abastados das esferas dominantes, ao contrário do resto da população, que não tinha acesso
direto às sempre cambiantes normas de vestimenta e comportamento da corte. Dessa forma, a
cultura das aparências, suas práticas e representações eram lugar comum quando Maria
Antonieta se casou com o jovem Delfim.
A disseminação de estilos e tendências de vestuário seguia a disseminação das ideias,
e as vezes a impulsionava. Como Daniel Roche apontou, na história da indumentária do
século XVIII podemos perceber a construção e as costuras do Iluminismo. Revistas de moda e
bonecas de estilo (poupée des modes) eram instrumentos iluministas tão influentes quanto a
Encyclopédie – ou a guilhotina. Comerciantes e marchandes de modes parisienses eram os
planejadores de um sistema de moda em expansão e em constante alteração, e que tinha
pretensões globais: “Mercadores e não manufatureiros, eles exerciam um papel sobre a
produção que era indireto, mas crucial para a economia do gosto: eles a espalhavam para os
limites mais afastados do mundo civilizado, e o estilo parisiense era inseparável do
Iluminismo, de São Petersburgo à Baía Botany” 5.
Os rígidos padrões de indumentária exigidos para se frequentar Versalhes durante os
reinados de Luís XV e Luís XVI, passaram por rápidas transformações a partir da década de
1750. Historicamente, o vestir tinha correspondência com o status e cumpria o importante
papel de garantir a distinção social da aristocracia. Na sociedade desigual do Ancien Régime,
orientada pela cultura das aparências, as pessoas eram o que elas vestiam. A aristocracia, a
burguesia, os profissionais liberais e as classes trabalhadoras tinham cada qual suas regras e
códigos de vestimenta, reforçados em teoria, mas nem sempre na prática, pelas Leis
Suntuárias.
Após a morte do Rei Sol, em 1715, essas leis, que nunca foram muito efetivas, caíram
silenciosamente em desuso e foram esquecidas. Pela primeira vez, pessoas de diferentes
classes podiam usar tecidos considerados luxuosos como a seda, o veludo e o brocado e
almejar seguir novas tendências de vestuário – se pudessem arcar com o custo delas. Ao
mesmo tempo, o Setecentos vivenciou um eclodir de técnicas e maquinários que inovaram a
produção de bens ligados à vestimenta, tais como a lançadeira transportadora que permitiu os
4 ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVII-XVIII). São Paulo:
Editora SENAC, 2007. p. 20-23. 5 Idem, p. 281.
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primeiros teares mecanizados, e novos tecidos, como o algodão, o linho e a seda estampados
ou tecidos em blocos. Tudo isso, aliado à ascensão da burguesia de Paris no campo da
manufatura e do comércio, transformava as vestimentas em bens mais acessíveis. As
antiquadas Leis Suntuárias constituíam, assim, uma forma de blindagem da aristocracia contra
a imitação dos símbolos externos de sua posição, signos esses que garantiam a sua distinção
em relação às demais camadas sociais.
Sob Luís XIV, o consumo tornou-se parte de um processo que se revestia de ideias
civilizadoras – nos termos de Norbert Elias – e que influenciavam tanto a elaboração de
estilos e tendências a serem seguidas, como o exercício de retração da espontaneidade e da
ritualização dos atos da vida cotidiana, por meio da etiqueta cortesã. O consumo de bens de
luxo relacionados à vestimenta era, portanto, parte de um sistema bem calculado pelo regime
absolutista Bourbon, e que tinha por objetivo não a gratificação individual, mas o
desenvolvimento da autoridade política do monarca e o controle das tensões internas da
aristocracia. Com o surgimento acelerado de novos estilos a serem seguidos e com o desuso
das Leis Suntuárias, os símbolos aristocráticos de vestimentas passaram a ser disseminados
para fora da corte e a ser imitados por diversos setores sociais.6
Em Versalhes, porém, a aristocracia permaneceu, ao longo do reinado de Luís XV
(1715-1774), alheia a toda essa efervescência relacionada às condições de produção e
consumo da indumentária. Na corte ainda imperava, ao longo da primeira metade do século,
até pelo menos a década de 1760, a noção de estagnação dos símbolos de distinção. Como
Delfina, e mais tarde como Rainha, uma rígida etiqueta e um dispendioso protocolo de
comportamento governavam a vida diária de Maria Antonieta e boa parte do que ela vestia,
como vestia, quando vestia e até quem a vestia. Antes mesmo de deixar Viena na primavera
de 1770, essas questões foram ressaltadas para ela por sua mãe, a Imperatriz Maria Teresa e
pelo embaixador francês, conde Mercy-Argenteau. Um célebre professor de dança foi enviado
de Paris para ensiná-la a andar de saltos altos e caminhar graciosamente usando as saias-
balão, a pesada cauda e o grand-corps. Todo um novo guarda-roupa, assim como um enxoval,
foi encomendado a costureiras parisienses. A arquiduquesa austríaca deveria ser, ao menos
nas aparências, o mais francesa possível antes mesmo de pisar na França. Em suma, Maria
Antonieta passou a ser treinada para entender a maneira como sua futura família Bourbon e
sua esplendorosa corte lidavam com a aparência, com o vestuário e a exibição de suas
representações pública.
6 ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVII-XVIII). São Paulo:
Editora SENAC, 2007. p. 141.
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Assim que chegou a Versalhes, Maria Antonieta insubordinou-se contra a etiqueta
cortesã arraigada, transformando suas roupas e acessórios em expressões desafiadoras de sua
autonomia. Embora, como muitos biógrafos salientaram7, ela nunca tenha manifestado um
interesse constante pela política, quer num plano internacional, quer no âmbito privado das
intrigas palacianas, ela parece ter identificado no seu guarda-roupa uma ferramenta útil para
manter sua posição, seu prestígio pessoal e autoridade. Seus esforços nesse sentido tornaram-
se cada vez mais complexos e sofisticados à medida que chegou à idade adulta, se adaptou ao
clima político sempre cambiante à sua volta, até assumir o papel central na Corte de
Versalhes. Foi muito cedo, como uma adolescente recém-chegada, que ela fez pela primeira
vez uma tentativa de assumir o controle sobre sua imagem, elaborada e transmitida por seu
vestuário, ao se recusar a usar o justíssimo e desconfortável espartilho formal, chamado de
grand corps. Dando início a uma série de audaciosos experimentos estilísticos que durariam a
vida inteira, ela conseguiu desafiar as ideias estabelecidas sobre o tipo e a extensão do poder
que uma mulher e uma rainha francesa deveria desempenhar dentro e fora da corte.
O poder e o papel que as Rainhas da França deviam desempenhar eram, há séculos,
severamente restringidos pelo princípio conhecido como Lei Sálica. Passando, desde o século
XV por amplas e diversas revisões e reinterpretações, o princípio basicamente excluía as
mulheres da linha de sucessão direta ao trono, mantendo-as sob o domínio do marido e
limitando seu papel a gerar herdeiros para o trono. Durante os sete anos iniciais de seu
casamento com o Delfim Luís Augusto, futuro Luís XVI, Maria Antonieta encontrou essa via
fechada: o casamento não consumado a colocava em uma situação duplamente frágil por não
cimentar a precária aliança franco-austríaca e nem garantia definitivamente seu lugar no trono
e na corte.
Isolada em uma corte hostil à sua origem austríaca e a seu sexo, sem ter sua posição
consolidada e colocando em risco as altas apostas feitas pela politica internacional europeia, a
jovem voltou-se então para seu próprio corpo. Por meio de roupas e acessórios
cuidadosamente selecionados, ela passou a cultivar o que ela mesma mais tarde chamou de
“aparência de prestígio”8, ao mesmo tempo em que enfrentava um contínuo fracasso
matrimonial. Do traje de montaria masculino que exibia nas caçadas reais, (em que montava
de pernas abertas, como um homem) às peles brancas e os enormes diamantes que usava nos
bailes, dos penteados monumentais que ostentava nos salons de Paris aos disfarces
7 FRASER, Antonia. Maria Antonieta. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2001. p. 108. 8 D’ARNETH, Alfred e GEFFROY, M. A. Correspondance secrete entre Marie-Therese et le comte de Mercy-
Argenteau, avec les lettres de Marie-Therese et de Marie-Antoinette. Tome I. P. 103. Disponível em:
<http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2003713/>
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intrincados que usava para bailes a fantasia em Versalhes, as surpreendentes e não
convencionais escolhas de indumentária de Maria Antonieta a exibiam como uma mulher
bem-sucedida e amada nos círculos mais influentes da corte, ou seja, no círculo do rei. Tanto
que podia gastar, vestir e fazer exatamente o que quisesse, ainda que essa afirmativa estivesse
o mais longe da verdade.
Não sendo, obviamente, rei ou amante do rei, a atitude de Maria Antonieta em relação
às roupas representou um claro desvio dos costumes e protocolos cortesãos estabelecidos e
naturalizados. Ao tencionar seguir e ditar o ritmo das cambiantes tendências de moda, ela
estava posicionando-se de forma contrária à concepção tradicional sobre a indumentária, que
deveria funcionar como um sistema fechado capaz de manter inalterada os símbolos de
distinção da aristocracia. Que a Rainha da França, que deveria ser apenas a esposa submissa
do rei e cujo poder advinha diretamente da ligação física e espiritual com este, modificasse as
convenções de aparência e comportamento, procurasse atenção e aprovação em seus próprios
termos e transitasse com mais desenvoltura que o marido na esfera pública era algo
praticamente inédito. Tendo sua posição consolidada ao ser coroada em 1774, ao dar à luz
uma filha em 1778 e um herdeiro para o trono, em 1781, e sem ter seu poder desafiado por
amantes reais, porque o tímido Luís XVI não teve nenhum ou nenhuma, a jovem rainha logo
abandonou o estilo estagnado, antiquado e ostensivo que por muito tempo havia funcionado
para evocar a atemporalidade do reinado Bourbon. Partiu, então, em estimulantes novas
direções. Auxiliada por uma nova e florescente guilda de trabalhadoras, as marchandes de
modes, Maria Antonieta elevou suas declarações de moda e comportamento a novos
patamares.
Uma de suas modas características, nesse sentido de inovação não convencional, foi o
extravagante pouf. Esse estilo de penteado e toucado era tópico, temporário e espirituoso,
sendo assim simbólico do novo papel desempenhado pela indumentária. Era um arranjo
confeccionado com plumas, enchimentos, apliques de cabelo, miniaturas em cera, flores e que
visava mudar frequentemente, e sair de moda mais rapidamente ainda. Na sua primeira
aparição em Versalhes, em abril de 1774, durante os últimos dias do reinado de Luís XV, ele
era uma forma de expressão pessoal e íntima, ligada à individualidade e aos sentimentos. Mas
em poucas semanas, com a morte de Luís XV, esse estilo chamado de poufs sentimentais
(poufs aux sentiments) deu lugar aos poufs circunstanciais (poufs aux circonstances). (Figura
1 e Figura 2) Iniciada com os poufs, essa sede por atualidades se espalhou para vestidos,
chapéus e outras peças de roupa. Durante o reinado de Luís XVI, talvez mais do que em
qualquer outro período, como aponta Madeline Delpierre, a moda estava ligada de maneira
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inseparável dos eventos correntes.9 Um pouf adornado com a miniatura de uma fragata de
guerra e usado por Maria Antonieta em 1778 e chamado de Coiffure à la Belle-Poule, não era
apenas uma novidade e uma extravagância capaz de atrair muitos olhares, mas celebrava uma
vitória naval específica contra os ingleses na Guerra de Independência Americana, assim
como exibia o patriotismo e perspicácia política de sua portadora. (Figura 1)
A Rainha também adotou e lançou na corte vestidos completamente diferentes dos
tradicionais grand habits, como o traje à la polonaise, (que se tornou moda quando a aliada
Polônia enfrentava ameaças de invasão prussiana), ou o redingote, (espécie de sobrecasaca
cumprida, ajustada à cintura e abotoada duplamente na frente, para ser usado sobre vestidos
de corte que se tornavam cada vez menos estruturados). Ou ainda o traje deshabillé (nada
mais do que o vestido de corte sem as múltiplas e pesadas sobressaias e armações) já existente
que passou a ser usado fora do boudoir. Menos ostensivos, mas igualmente inovadores, foram
os graciosos e leves vestidos en chemise, ou chemise à la reine batizado em sua homenagem,
que veio a apreciar como uma reação contra as rígidas armações de saias e os espartilhos
justos usuais na corte. Adotado como vestimenta oficial para todas as frequentadoras de seu
exclusivo e campestre retiro do Petit Trianon, tais vestidos soltos feitos de musselina leve, e
com clara inspiração inglesa, facilitavam práticas claramente não reais, como piqueniques na
relva, jogos variados, leituras e concertos ao ar livre. Mesmo com os protestos dos cortesãos
mais conservadores de que os vestidos tornavam as nobres damas
que os usavam indistinguíveis das criadas e das parisienses, a rainha e suas companheiras o
usavam não só no Petit Trianon como na corte e até mesmo em Paris. (Figura 3)
9 DELPIERRE, Madeline. Dress in France in the Eighteenth-century. New Haven e Londres: Yale University
Press, 1997. p. 147.
Figura 1 e Figura 2 - O penteado extravagante, altíssimo e ultra decorado
chamado pouf.
Fonte: Anon. La Coiffure à la Belle Poule. N.d.
(Aquatint sobre cartolina. 23 x 17cm) Disponível em:
<https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b84101510?rk=4
2918;4>
Fonte: Esnaut et Rapilly. Bonnet à la Victoire... 1778. Gallerie
des Modes. 1ere Suite des Costumes François pour le coiffures
despuis de 1776. (Gravura colorida a mão sobre papel. 23 x
17cm). Disponível em:
<https://www.mfa.org/collections/object/download/239088>
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Ilustrações de todos esses novos
estilos adotados por Maria Antonieta e
utilizados por seu entourage podiam ser
vistos nas recém criadas revistas de moda.
A Gallerie des modes, a primeira revista
voltada ao tema a ser publicada com certa
regularidade, apareceu em 1778, seguida
em 1785 pela Cabinet des modes.
Idealizada por Jean Antoine LeBrun
Tossa na década de 1770, a publicação
havia fracassado em conseguir o selo de
aprovação real, necessário para sua
impressão e circulação, por não ter o
montante necessário para sua aquisição.
Em 1784, e por intermédio da marchande
favorita de Maria Antonieta, Rose Bertin,
Tossa foi apresentado à Rainha que
demostrou interesse pelo projeto,
terminando por transformá-lo em um de
seus protegidos e emprestando a soma
necessária para a aquisição do selo.10
Lançada por fim em novembro de 1785
sob o título completo de Cabinet des Modes ou Les Modes Nouvelles, a publicação inovava
significantemente: valendo-se de técnicas modernas de impressão e contando com apenas
duas ou três ilustrações por caderno, que eram coloridas mecanicamente usando um sistema
similar ao da estamparia, o que barateou seu custo, cerca de 21 livres11 por assinatura anual,,
permitindo uma tiragem maior, em torno de 2 mil unidades12. Com a patrocínio e apoio de
Maria Antonieta o projeto teve sucesso e algumas edições precisaram de impressões extras.
Vinte e quatro edições foram lançadas sob esse título até novembro de 1786, quando mudou 10 FRASER, Antonia. Maria Antonieta. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2001. p. 201. 11 A moeda corrente no final do século XVIII era dividida da seguinte maneira: um Luís de Ouro equivalia à 24
livres; o écu (de prata) à 6 livres ou 120 sols; o sol (de cobre) denominado em 1 e 2 unidades de sol avaliadas em
1/20 de um livre (ou 12 deniers) por sol; o denier (de cobre) feitas em unidades de 3 e 6 deniers, com valor de
1/4 e 1/2 de sol respectivamente (a moeda de três deniers também era chamada de liard). 12 DELPIERRE, Madeline. Dress in France in the Eighteenth-century. New Haven e Londres: Yale University
Press, 1997. p. 151. p. 70
Figura 3 – a chemise à la reine.
Fonte: Anon. Gravurista: Duhamel. Cabinet des Modes. 7o
Caderno. 15 de fevereiro de 1786.(Etching colorida por prensa.
34 x 26cm) Disponível em:
<https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1040056n?rk=42918;4>
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seu título para o mais abrangente Magasin des modes nouvelles françaises et anglaises, que
contou com trinta e seis números até ser interrompida em 1789 pela censura revolucionária.
No seu primeiro e inaugural número, a Cabinet des modes prometia, em um subtexto
que acompanharia toda edição:
Um trabalho que dê um conhecimento preciso e rápido dos novos vestidos e
adornos de pessoas de um e outro sexo, de móveis novos de todo tipo, de
novas decorações e embelezamento de apartamentos, novas formas de
carruagens, joias, ourivesaria e, genericamente tudo que a Moda oferece de
singular, de agradável ou de interessante em todos os gêneros.13
Ela era publicada a cada quinze dias no seu primeiro ano, passando para cada dez dias
nos anos seguintes. Elas transmitiam notícias, anedotas e ilustrações variadas do mundo da
moda parisiense para aqueles que não eram afortunados o suficiente para residir em Paris,
considerada o centro do mundo civilizado14. Ainda que antes disso, ilustrações das
indumentárias cortesãs, incluindo as da Rainha em seus trajes formais, já circulassem por
meio das chamadas fashion plates, as revistas são inovações estratégicas em direção ao
surgimento de um novo sistema indumentário. Essas estampas eram suplementos de
almanaques requintados como Le Mercure Galant, e sendo coloridos manualmente, eram
consideradas bastante caras, circulando apenas entre a restrita elite das cortes e altas
burguesias.15
As revistas, ao contrário, eram uma forma muito mais efetiva e com custos bem
menores de publicidade das inovações em matéria de estilos de vestimenta e adornos. Elas
rapidamente substituíram as poupées des modes em mercados externos, por exemplo. Apesar
de essas revistas iniciais terem um pequeno número de assinantes da elite letrada, a sua
frequência e riqueza de conteúdo as tornava desproporcionalmente influentes na sociedade
parisiense em efervescência cultural. Além disso, há evidências de que elas talvez tenham
alcançado uma audiência mais ampla, menos influente, mas igualmente consciente das
tendências de vestuário, além do restrito círculo de ricos assinantes; em 1788, por exemplo,
13CABINET DES MODES, 1º Caderno, 15 de novembro de 1785. Disponível em:
<http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k10400416> p. 1. “Ouvrage qui donnne une connoissance exact & prompte
tant des habillemens & parures nouvelles des personnes de l'un & de l'autre sexe, que des nouveaux meubles de
toute espèce, des nouvelles décorations, embellissemens d'appartemens, nouvelles formes de voitures, bijoux,
ouvrages d'orfévrerie, & généralement de tout ce que la Mode offre de singulier, d'agréable ou d'intéressant dans
tous les genres.” (tradução minha). 14 MAGASIN DES MODES NOUVELLES FRANÇAISES ET ANGLOISES, 19º Caderno, 20 de maio de 1787.
Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1025111d > p. 146. “C'est à nous, Missionnaires de la
Mode, & par conséquent initiés dans les moyens mystérieux de plaire, c'est à nous, dont il demande les conseils,
à l'aider dans cette fonction très-difficile.” (tradução minha). 15 MACKRELL, Alice. An illustrated history of fashion: 500 years of fashion illustration. B.T. batsford: London,
1997. p. 55-57.
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Lebrun Tossa, recusou-se publicamente a enviar cópias extras da revista para seus assinantes,
explicando: “Não é justo que se vendedoras de lojas, porteiros e servos peguem cópias nós
tenhamos que fornecê-las duas vezes!”16
Na Exibição de 1783 do Salon da Académie des Beaux Arts, em Paris o quadro da
Rainha, pintado por sua retratista oficial Elisabeth Vigée Le Brun, causou perturbação no
público. O quadro virou o primeiro assunto nas rodas aristocráticas e artísticas da Europa. O
jornal Correspondence Littéraire publicou que os visitantes ficaram estupefatos com a
audácia de Maria Antonieta permitir ser retratada daquela forma: “Havia-se distinguido
inicialmente dentre os outros retratos dessa amável artista aquele da Rainha en levité, mas
tendo o público aparentemente desaprovado esse traje pouco digno de Sua Majestade, foi-se
pressionado a substituí-lo por outro com um vestuário mais apropriado à dignidade do
trono”.17
A comoção popular foi tanta que o retrato foi retirado da Exibição, e a consagrada
retratista teve que repintá-lo às pressas para mostrar Maria Antonieta em trajes mais
condizentes com seu status real. Apesar de ser um retrato oficial da Rainha, ele não foi
exposto na sessão do Salon reservada às representações da Coroa e de seus dirigentes, mas
sim na ala reservada às obras da artista, ou seja, Vigée Le Brun. Como não era um retrato de
Estado, cópias dele não seriam enviadas para as cortes estrangeiras dos aliados da França.
Apesar desses pontos, tratava-se ainda de uma representação pictórica da Rainha, exibida em
público, ou seja, de um quadro com status oficial. Retratar a Rainha da França de forma mais
informal não era algo de todo inconcebível; retratos em poses domésticas e com trajes
informais de Maria Antonieta foram enviados com frequência à Viena para a satisfação
privada de seus familiares, sobretudo de sua mãe.
Retratos informais, apesar disso, não apareciam na Exibição anual do Salon da
Académie des Beaux Arts nem no Grand Salon de Versalhes, como foi feito com o quadro de
Maria Antonieta en chemise. No controverso retrato, Vigée Le Brun exibe a Rainha
posicionada displicentemente ao lado de uma mesa, porém contra um fundo neutro. Não fica
claro, portanto, se ela se encontra em um ambiente interno ou externo. Maria Antonieta posa
envolvendo uma fita de seda azul ao redor de um pequeno ramo de flores que inclui a flor que
16 Citado em: ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVII-XVIII).
São Paulo: Editora SENAC, 2007. p. 17. 17 GRIMM, Friedrich-Melchior. Correspondance littéraire, philosophique et critique, ed. Maurice Tourneaux.
Tomo 13, p. 441-42. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5781395q/f12.image.r=Correspondance%20litt%C3%A9raire,%20philosop
hique%20et%20critique%20tome%2013 “On avait d'abord distingué parmi les portraits de cette aimable artiste
celui de la Reine en lévite; mais le public ayant paru désapprouver ce costume peu digne de Sa Majesté, l'on s'est
pressé de lui en substituer un autre avec un habillement plus analogue à la dignité du trône.” (Tradução minha)
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representa sua assinatura pessoal e a da Casa de Habsburgo, a rosa. Algumas flores repousam
ordenadamente sobre a mesa, enquanto outras se encontram dispostas em um enorme buquê,
dentro de um vaso de Sévres. A composição simples é, no todo, codificada para a
informalidade e tem algo de pitoresco. A face de Maria Antonieta é habilidosamente
enquadrada pelo olhar de soslaio, quase torto, que parece estar voltado para o espectador
posicionado de frente para a tela. Seu largo chapéu de palha, adaptado do estilo Marlborough
inglês, quebra o contorno simétrico do rosto. Seu cabelo, além disso, cai solto e sem
empoamento pelos ombros, enquanto que a falta de joias e a vestimenta aparentemente
simples evocam uma naturalidade estudada associada com o visual en chemise. O encanto do
retrato encontra-se nas formas arredondadas, presentes nos gomos formados pelas pregas das
mangas e nos babados da gola do vestido, e no ângulo convidativo formado pelos braços
estendidos.
Ao exibir a Rainha como uma dama usando a última moda ao invés do tradicional
traje francês de corte, Vigée Le Brun, talvez sem perceber, tenha realizado o desejo de Maria
Antonieta de escapar de suas obrigações de Rainha da França ou, ao menos, o seu desejo de
não ser retratada unicamente como tal. Era uma espécie de revolta à rígida sociedade de corte,
mas dificilmente uma revolta política consistente e profunda. Jacques Revel muito bem
articulou o dilema de Maria Antonieta ao escrever sobre sua pretensão em conduzir sua vida
como desejava e em criar um espaço para si que fosse apartado do teatro das exibições
públicas de Versalhes. Para Revel, Maria Antonieta “esqueceu a máxima de que a realeza não
tinha direito a uma vida privada” dentro da sociedade de corte.18 Revel continua analisando o
desejo da Rainha de criar um espaço privado e controlado por ela, simbolizado pelo Petit
Triannon:
Nesse caso, a encenação de uma esfera privada se situa na origem de uma
degradação da representação da corte que se tornou trivial, até mesmo ridícula.
Era uma piada, talvez até mesmo um ultraje, a Rainha brincando de ser
camponesa ou ordenhadora com seus baldes de porcelana de Sévres e seus
equipamentos dourados. Claramente podemos ver a indignação social gerada a
partir daí e antecipar a dramática distinção entre a Rainha e seu entourage
brincando de ser aldeões e a realidade encarada pela população francesa. É
muito fácil, portanto, imaginar Maria Antonieta, estilosamente vestida como
uma camponesa, proferindo a frase apócrifa: “Que comam brioches!”19
18 REVEL, Jacques. Marie Antoinette in her fiction: the staging of hatred In FORT, Bernadette, ed., Fictions of
the French Revolution. Evanston: Northwestern University Press, 1991 p. 118 19 Idem. p. 123. Tradução minha: “In this case, the staging of the private sphere is at the origin of a degradation
of the court’s representation that it renders trivial, even ridiculous. It is a joke, maybe even an outrage, a queen
playing at being peasant or milkmaid with her Sèvres buckets and golden implements. We see class outrage, and
we anticipate the final dramatization of the distinction between her and her entourage playing at being a peasant
and the real state of the French people. It is easy to imagine the queen, stylishly dressed as a milkmaid, uttering
the apocryphal line: ‘Let them eat cake!’”
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O quadro que substituiu o malfadado retrato da Rainha en gaulle, a apresenta de
maneira mais formal, porém ainda peculiar. Nele podemos observar Maria Antonieta posando
ao ar livre, ao lado de um canteiro de rosas e em frente a silhueta de uma árvore. O bosque ao
fundo, provavelmente pertencente ao Petit Trianon, em tons de verde e cinza escuro, evocam
algo de sedutor e misterioso. Essa noção é aumentada pelo contraste do azul acetinado do
vestido de três partes escolhido pela Rainha. Rosada e levemente pálida, segurando uma rosa
enrolada em uma fita azul, Maria Antonieta olha direta e calmamente para o espectador, como
que o convidando a dar um passeio com ela no bosque ao fundo. A figura ocupa ainda não o
espaço central da composição, mas encontra-se meio deslocada para a direita o que enaltece o
efeito do convite. Há ainda algo de lânguido no ângulo formado por seus braços que seguram
a rosa, como se tivesse acabado de colhê-la. Apesar do quadro não apresentar as
características tradicionais dos quadros oficiais, ele não é totalmente codificado de forma
informal como o retrato en gaulle. O traje usado é um vestido rebuscado, o tipo de vestido
aceito como traje de corte no período e é confeccionado em cetim azul, adornado com rendas,
babados e fitas. Além disso, Maria Antonieta usa um colar pérolas perfeitas de duas voltas,
que combina com sua pulseira, e um elaborado pouf com plumas. Esses adornos suntuosos
servem aqui não apenas como símbolos de luxo e riqueza, mas também se adequam às
tradicionais modalidades de representação da realeza. Mais uma vez, porém, Maria Antonieta
é retratada como a Rainha do Trianon, ainda que de maneira menos chocante, e não como a
Rainha da França.
Apesar do controle demonstrado com suas representações, seja patrocinando revistas
que divulgassem seu inovador estilo seja recorrendo a sua retratista oficial que era sua amiga
e confidente, a imagem de Maria Antonieta foi construída, e constantemente reformulada, na
abundante literatura panfletária das últimas décadas do Setecentos. Essa literatura, na qual a
Rainha tinha nenhum controle e pouco acesso, foi a responsável por transformá-la na
personagem capaz de aglutinar a insatisfação tanto da elite quanto das camadas populares. No
final da década de 1780, aristocracia, burguesia e plebe, distantes quase que por um abismo na
hierarquia social e nas suas demandas sócio-políticas, chegaram a um consenso em seu ódio
contra a Rainha. Ela, ao ser impelida para a notoriedade pela posição pública que ocupava,
pela sua rebelião à etiqueta cortesã, pela engenhosidade ostensiva de seu “Ministério da
Moda” e pelo seu estilo de vida que fugia às regras de Versalhes, estabeleceu-se como uma
força a ser levada em conta tanto na esfera pública como na privada. Ou seja, tornou-se uma
figura central que atraía tanta ou mais atenção que o Rei ou que qualquer amante que
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houvesse pisado em Versalhes e cujo renome e status não tinham nada a ver com o pio
anonimato materno.
O caminho encontrado pelos panfletos, charges e caricaturas voltados contra a Rainha
foi o do desdém, o do deboche e o do excesso. A maior parte dessa literatura constitui uma
produção letrada bastante medíocre, e o mesmo pode-se dizer das ilustrações que a
acompanhavam. São muito frequentemente anônimos, escritos e compostos de maneira crua e
explícita e de teor erótico e pornográfico, nem um pouco parecida com a rebuscada e
pomposa escrita do período. São antes de mais nada produções gestadas marginalmente, no
submundo literário e artístico que floresceu nas capitais europeias do final do século. Ao
contrário dos quadros encomendados e planejados por Maria Antonieta, a maior parte das
charges e caricaturas pretendiam, em sua maioria, apenas ser uma direta ilustração de um
texto ou de uma anedota. Quanto mais chocante fosse o texto mais graficamente ousado seria
o produto pictórico que o acompanhava.
Antes de mais nada, precisamos ter claro que a escrita panfletária e as imagens
vinculadas a eles, nas décadas finais do Setecentos, são a expressão perfeita do surgimento do
fenômeno jornalístico. Mais do que isso, como aponta Chantal Thomas, eles também expõem
o sentimento de aceleração temporal, típica da eclosão da Revolução20. Em outras palavras o
rompimento com a impressão de imobilidade temporal típica do Ancien Régime. Não apenas
os eventos importantes passaram a desdobrar-se em um ritmo desconhecido anteriormente,
mas também os ambientes em que esses eventos ocorriam tornaram-se múltiplos e móveis. O
sentimento de sacralidade e atemporalidade, perpetuado na forma da repetição dos gestos no
serviço das regras religiosas e da etiqueta, havia se transformado para dar conta das mudanças
sócio culturais típicas do período. Com isso, o ritmo acelerado de impressão e difusão desses
materiais e o fato de poder ser encontrado em quase todo lugar, das ruas sujas aos refinados
Salons aristocráticos e até na Corte, revelam essa alteração. Tal alteração na percepção e na
vivência do tempo são necessárias para o nascer do fenômeno jornalístico, o qual os panfletos
são parte integrante, ainda que mantenham a aparência de um pequeno livro.
Livretos de poucas páginas, contendo pequenas ilustrações, e com conteúdo quase
sempre pornográfico, os textos eram rapidamente produzidos e mais rapidamente consumidos.
Apesar disso, conforme nos alerta Jacques Revel, nada pode ser mais perigoso do que
formular hipóteses sobre uma possível sociologia dos leitores de um determinado estilo de
20 THOMAS, Chantal. The heroine of the crime: Marie-Antoniette in pamphlets. In: GOODMAN, Dena, ed.
Marie-Antoinette: writing on the body of a queen. Nova York: Reutledge, 2003 p. 103
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escrita21. A questão muitas vezes tem sido apresentada nos termos de uma literatura anônima
ou coletiva destinada a um público amplo, como no caso das ficções da Bibliotèque bleue, das
mazarinadas e também dos jornais dos dias de hoje. Apesar disso, Revel e Roger Chartier
defendem que os conteúdos de tais escritos circulavam de forma bastante ampla, seja via
leitura direta ou via um jogo de retransmissão de certas citações através de bilhetes escritos ou
oralmente22. Dessa forma, podemos afirmar que essas publicações devem ser localizadas no
contexto de rápida e diversificada disseminação de informações. Tais materiais tiveram um
papel decisivo na propagação de ideias por meio oral (nas ruas, nos mercados, nos locais de
trabalho e entretenimento etc.). Conforme aponta Chartier, sem a capacidade de disseminação
oral não é possível se entender a emergência de uma consciência revolucionária em uma
França pobremente letrada. Na esfera da oralidade, ao serem lidos ou encenados em público
ou ao ter suas ilustrações exibidas, tais textos contribuíam para os comentários maliciosos das
ruas, para os rumores das multidões, para a risada debochada e obscena do imaginário
coletivo das vésperas da Revolução.
Mais do que isso, os panfletos, charges e caricaturas pretendiam suprir as necessidades
e exigências do presente em transformação, de forma parecida com o que era proposto por
Diderot e os enciclopedistas, ao se posicionarem contra a ópera e o teatro clássico. Conforme
já dito, essas produções despedaçaram a noção de atemporalidade e sacralidade do Ancien
Régime. Elas centravam-se apenas no presente, sem qualquer referência e simbolismo divino
(seja cristão ou greco-romano) como na ópera e no teatro. A produção desses materiais
focalizava, com um mínimo de diversidade, o ódio, desprezo e mórbido interesse das pessoas
comuns por um pequeno número de personagens. A exposição crua dos inúmeros vícios dos
indivíduos que ocupavam os maiores ranques sociais e políticos era justificada por via política
por meio de um clamor pela insurreição.
Dito isso, faz-se necessário ainda termos em mente que esses textos eram consumidos
não como materiais individuais, mas como peças de um produto maior e coeso. Essa tese é
defendida por Jacques Revel, que afirma que esses materiais devem ser entendidos como um
todo, como um conjunto, mesmo que apenas porque eram vistos e talvez consumidos dessa
forma pelos contemporâneos. Ou seja, como peças individuais que juntas formavam um único
e intrincado quebra-cabeça.23 Essa hipótese é sustentada pelo fato dos panfletos pegarem
“emprestado” muito dos temas e objetos uns dos outros, desde simples alusões até citações
21 REVEL, Jacques. Marie Antoinette in her fiction: the staging of hatred In FORT, Bernadette, ed., Fictions of
the French Revolution. Evanston: Northwestern University Press, 1991 p. 113 22 CHARTIER, Roger. História cultural: entre práticas e representações. Algés: Difel, 2002 p. 152-155 23 REVEL, Jacques. Marie Antoinette in her fiction: the staging of hatred. Op.cit. p. 120
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inteiras. Juntos, eles referiam-se à um repertorio de referências comuns, à um corpo de
“conhecimento” que simultaneamente criavam e traziam para a realidade. Tomamos, assim,
como Revel, essas obras como elementos de uma única e estreita rede serial de
intertextualidade, onde cada parcela da série faz sentido apenas porque é percebida como uma
citação retirada de um tesouro (thesaurus) de referências comumente aceitas. No seu
conjunto, eles não precisavam referir-se a nada mais porque são em si mesmos um princípio
formador de um conhecimento, mesmo que não verificável no real.
Como o indivíduo mais evidente do reino, mais do que seu apático marido, Maria
Antonieta foi, provavelmente, o exemplo feminino a ser seguido. Pode fazer com que
mulheres de diferentes classes enxergassem nela algo que poderia ser copiado, pelo menos
nos primeiros anos de seu reinado em que era a bem amada da Nação. Nesses primeiros anos,
de qualquer forma, Maria Antonieta conseguiu implantar um gérmen de transgressão nas
mulheres francesas que passaram a ousar determinar como deviam se comportar e se vestir.
Sinais disso são os aumentos significativos em peças de vestuário nos guarda-roupas das
mulheres parisienses de diferentes classes, como tão bem demonstrou Daniel Roche24. Além
disso, as mulheres passaram a sair da esfera privada motivadas, talvez, pela imagem
efervescente de juventude e divertimentos que a Rainha da França cultivou em seus primeiros
anos.
Sem o irromper da Revolução sobre seu mundo lúdico, de fato, Maria Antonieta teria
continuado a viver imperturbável, conforme aponta Zweig. Teria sido uma Rainha marcante,
mas não uma Rainha trágica. E a tragédia de Maria Antonieta pode ser encontrada não no seu
fim na guilhotina, mas no que a levou até lá. Pois, esse caminho feito por panfletos e charges
políticas e pornográficas, criaram uma Maria Antonieta de papel que era a responsável por
todos os excessos cometidos por um regime autocrático já em franca decadência e que havia
sido, no mínimo, injusto com sua nacionalidade e sexo.
Sua decapitação na guilhotina foi a prova final de que os estilos indumentários que
criou e disseminou eram apenas a ponta do iceberg das tensões de gênero do final do
Setecentos. Os escândalos envolvendo em alguma instância os vestidos, rendas, chapéus,
plumas e laços da Rainha encobriam o começo de uma mudança no tratamento dado pelos
dirigentes do sexo masculino à suas mulheres. Maria Antonieta havia ousado sair do
anonimato e do espaço designado para ela pelos homens. Havia apoiado outras mulheres a
24 ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVII-XVIII). São Paulo:
Editora SENAC, 2007. p. 56-57, 68-72, 88-93, 133-144
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fazer o mesmo diretamente – Elizabeth Vigée Le Brun e Rose Bertin, para citar a mais
famosa, Madame Toussauds, que patrocinou, Germaine de Staël, que escreveu um ensaio em
sua defesa, a Duquesa de Devonshire, com quem manteve uma estreita relação epistolar etc. –
ou de maneira indireta ao servir em alguma medida de exemplo. Muito mais do que uma
“mulher comum”, Maria Antonieta foi uma mulher peculiar com um estilo inovador, fruto
perfeito do período de acirradas transformações sociais e políticas do final do Setecentos.
Referências
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