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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013
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QUANTIFIED SELVES: contar, monitorar e conhecer a si mesmo através dos números1
QUANTIFIED SELVES: telling, monitoring and knowing yourself through numbers
Liliane da Costa Nascimento2
Fernanda Bruno3
Resumo: Este trabalho investiga, através dos métodos da teoria ator-rede, as
práticas de objetivação de si presentes nas técnicas de auto-monitoramento
empregadas pelos Quantified Selves, um grupo de indivíduos que busca promover
melhorias em suas vidas através do registro de indicadores quantitativos e
qualitativos sobre seu comportamento e personalidade. Iniciaremos descrevendo
este movimento e focalizando as suas formas de medição e registro. Em seguida,
passaremos a uma breve apresentação das formas de análise e registro de si nos
estoicos. Por fim, cotejaremos as formas de auto-monitoramento contemporâneas
com estas modalidades históricas da escrita de si, buscando circunscrever suas
especificidades em relação aos processos subjetivos que promovem.
Palavras-Chave: Escrita de si. Auto-monitoramento. Quantified Self.
Abstract: This paper investigates, using the methods of actor-network theory, the
practices of self-objetification found in the self-monitoring techniques used by the
Quantified Selves, a group of individuals that seek to improve their lives through the
act of registering quantitative and qualitative indicators about their behaviour and
personality. We will start by describing this movement and focusing the ways their
supporters measure and register their lives. After that, we will give a brief
presentation of the practices of self-analysis and self-registering used by the stoics.
Finally, we will compare the contemporary practices of self-monitoring with these
historical ways of personal writing, in order to grasp the distinctiveness of the
subjective processes they enable.
Keywords: Personal writing. Self-monitoring. Quantified Self.
Ninguém se preocupa em viver bem, mas sim em durar muito, quando afinal viver
bem está ao alcance de t odos, ao passo que durar muito não está ao de ninguém.
Sêneca, Cartas a Lucílio
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cibercultura do XXII Encontro Anual da Compós,
na Universidade Federal da Bahia, Salvador, de 04 a 07 de junho de 2013. 2 Doutoranda do PPGCOM/ECO/UFRJ, Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ, [email protected].
3 Prof.ª do PPGCOM/ECO/UFRJ, Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, [email protected].
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Comecei a perceber que a auto-hipotetização era uma experiência dolorosa. E me
perguntei se, no lugar de aprender mais sobre mim, havia me tornado simplesmente
um “hipocondríaco digital”.
R. Barooah4
O eu se traduz em indicadores e o que se pode medir – numérica e tecnologicamente –
se pode aperfeiçoar. Esta talvez seja uma das definições possíveis do movimento Quantified
Selves (QS), surgido em 2008 na região da Bacia de São Francisco, Califórnia. O movimento
organiza, em 29 países, encontros locais de pessoas interessadas em usar técnicas objetivas
para aferir, registrar e acompanhar aspectos específicos de seu comportamento. Constitui-se,
assim, um coletivo dedicado ao auto-monitoramento.
O grupo articula usuários e desenvolvedores de dispositivos sensorizados – wereable5,
portáteis ou não – e softwares – que variam de interfaces computacionais offline a redes
colaborativas online, passando por vários aplicativos para celular. Através do uso destas
ferramentas, os QS’s buscam lidar com problemas que afetam negativamente suas vidas ou
descobrir tendências e correlações sobre seu comportamento e sua saúde a partir do
armazenamento, a longo prazo, de diversos conjuntos de indicadores que permitem monitorar
uma infinidade de condições: doenças crônicas, atividade sexual, qualidade do sono, humor,
produtividade, uso do tempo, performance cognitiva, atividade física etc.
Em que pese o rótulo de excentricidade atribuído ao grupo, é interessante notar que a
sua constituição coincide com a expressiva expansão do mercado do auto-monitoramento.
Em 2012, os investimentos nas startups de saúde digital cresceram 84% em relação a 2011 e
totalizaram 1,1 bilhão de dólares. As perspectivas futuras são ainda mais otimistas: segundo a
ABI Research, as vendas dos dispositivos wereable de monitoramento da saúde passará de 3
milhões de unidades em 2011 para 36 milhões em 2017; para a Parks Associates, o valor do
mercado das tecnologias digitais de saúde deve passar de 1,7 bilhões de dólares em 2010 para
5,7 bilhões em 2015, liderado por iniciativas de “cuidado crônico, bem estar e gerenciamento
de medicamentos”6.
A prática da contabilização de si ganha contornos específicos hoje, mas não é uma
inovação do presente. Em certa medida, ela reverbera preocupações historicamente familiares
sobre como devemos, afinal, viver nossas vidas. Esta busca por forjar para si verdades que
4 http://quantifiedself.com/2010/04/why-i-stopped-tracking/
5 Dispositivos eletrônicos que podem ser usados junto ao corpo.
6 The digital doctor is in. Entrepreuner, 29 Nov. 2012.
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orientem a existência implica questionamentos sobre quem devemos ser e sobre como
podemos nos aperfeiçoar – seja na relação com nosso corpo, com nossa saúde ou no
desenvolvimento das virtudes da alma. Historicamente, diversas pedagogias do bem viver
endereçaram essas questões, contemplando, cada uma a seu modo, a interpelação sistemática
e organizada de si por si mesmo – realizada enquanto via de aperfeiçoamento pessoal.
A partir da descrição do grupo Quantified Selves e do recuo histórico até práticas que se
ocupavam do registro da vida cotidiana em busca do bem viver, este trabalho visa identificar,
no contemporâneo, mudanças neste processo, que têm sido mediado, hoje, por dispositivos
tecnológicos. Tendo em vista as especificidades das práticas de auto-monitoramento dos
QS’s, notamos que o uso destes dispostivos implica a consolidação de uma nova forma de
cirscunscrever o cuidado e a atenção a si, que articula a) o registro; b) a leitura – muitas vezes
em tempo real e c) a análise de indicadores monitorados em nome de um bem-estar global e
do alcance de performances cada vez melhores nos diversos setores de nossas vidas.
Desta forma, faremos neste trabalho dois percursos distintos, mas complementares.
Partiremos de uma descrição prelimirar do grupo QS, realizada através dos métodos quali-
quantitativos da teoria ator-rede. Esta descrição pretende retraçar o modo como os
participantes do grupo definem a si mesmos, seus propósitos, problemas e ideais. Ao mesmo
tempo, observaremos e descreveremos os atores do grupo, as práticas e dispositivos
presentes, buscando identificar que tipo de ação efetuam. Atentaremos, ainda, para algumas
das conexões que caracterizam e mantêm este coletivo. Num segundo momento, realizaremos
um recuo histórico até os estóicos e suas práticas de registro de si tendo em vista, na última
parte do texto, cotejar as práticas dos QS’s e seus processos subjetivos com outras formas de
escrita de si. Este recuo busca apreender a singularidade dos problemas que nos ocupam no
presente a partir do contato com documentos, textos e práticas afastadas no tempo e ainda
assim próximas quanto às inquietações mais gerais que levantam. Se a descrição segundo a
teoria ator-rede pretende ser uma via de apreensão do modo como os próprios atores do QS
definem suas práticas, o recuo genealógico (Cf. Foucault, 1979) permite perceber como
outros coletivos compreenderam diferentemente práticas similares. Esta diferença torna mais
visível tanto a singularidade presente quanto a sua contingência.
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1. Atores e redes dos Quantified Selves
O grupo Quantified Selves é heterogêneo em relação aos tipos e objetivos de suas
práticas de auto-monitoramento. Pela mídia, têm sido referenciados como um “movimento
geek de elite” (Kriger, 2010 apud. Butterfield, 2012, p. 8), como um “eclético mix de early
adopters7, fanáticos da boa forma, evangelistas da tecnologia, viciados em desenvolvimento
pessoal, hackers e pacientes que sofrem de variados problemas de saúde”8. Juntos,
monitoram dados de natureza extremamente diversa, realizam suas descobertas e adotam,
muitas vezes, hábitos no mínimo estranhos para atingir seus objetivos, como ingerir
quantidades significativas de manteiga para melhorar a cognição.
As práticas de auto-monitoramento dos QS’s diversificam as formas através das quais
nossas mentes, corpos e cotidianos estiveram, historicamente, transmutados em números,
desenhados em gráficos e submetidos a práticas de escrutínio e análise. Que tal um garfo
capaz de registrar quantas mordidas você deu e quanto tempo durou sua refeição, alertando-o
caso esteja comendo rápido demais? E que tal um site onde você pode registrar as relações
sexuais mantidas e organizar um histórico de datas e parceiros? O mesmo pode valer para
analisar a qualidade do sono, os sentimentos de felicidade ou estresse ao longo do dia.
Segundo o blog do movimento9, os QS’s são um grupo de pessoas interessadas em
desenvolver o auto-conhecimento através do auto-monitoramento. Em termos operacionais, o
movimento se estrutura através de três atividades principais: meetups, encontros locais no
estilo “show and tell”, nos quais indivíduos apresentam suas experiências de auto-
monitoramento e aprendizados; um blog10
, com conteúdo noticioso sobre projetos pessoais e
auto-monitoramento em geral; e conferências, que reunem os participantes dos grupos com
criadores de dispositivos de hardware e software voltados para esta prática, além de
especialistas, acadêmicos, investidores, profissionais de saúde, designers e empreendedores.
Hoje, existem 15.790 pessoas participando de um dos 104 capítulos locais do QS em 82
cidades ao redor do mundo11
– a maioria nos EUA e em países da Europa. As figuras centrais
7 Grupo de usuários pioneiros na adoção de uma determinada tecnologia.
8 Counting every moment. The Economist, 3 Mar. 2012.
9 http://quantifiedself.com/about/.
10 http://quantifiedself.com
11 Dados do Meetup (http://quantified-self.meetup.com/), mídia social que suporta grupos temáticos e que foi
adotada pelos QS’s para multiplicar a organização de capítulos locais de maneira descentralizada. Consulta
realizada em 13/01/2013.
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desta iniciativa são Gary Wolf e Kevin Kelly, jornalistas e escritores com uma história de
intenso envolvimento com o mundo das novas tecnologias. Kelly foi um dos fundadores da
revista Wired, e Wolf, ainda hoje, contribui como editor para o veículo, que exerce grande
influência na discussão especializada sobre a cultura em rede e o mundo digital. Hoje, Kelly
também articula sua trajetória editorial e de experimentação com novas tecnologias nos
mercados de consultoria e inovação12
.
Este trabalho parte de uma primeira observação do grupo QS, baseada na teoria ator-
rede. Por estar em grande parte situado e „inscrito‟ na internet, a descrição das ações deste
grupo se aproxima do seu próprio desdobrar. Nosso caminho, portanto, foi abordar, a partir
de métodos quali-quantitativos, os rastros – documentos, discursos, ferramentas e
informações – deixados pelos QS’s na internet. Como reforça Bruno (2012), o valor dos
rastros digitais para a teoria ator-rede é deduzido de sua proposta conceitual: abandonar o
social como substância capaz de explicar os fenômenos – ou o que há de exterior e
inapreensível neles – para um retorno investigativo que permita reconstruir suas conexões
(Latour, 2005, p. 97). Assim, o conhecimento de um fenômeno implica percorrê-lo,
compreendendo como e em que circunstâncias se deram os encontros que o produziram,
tarefa que não pode ser reduzida à abstrata explicação de que seriam produto de uma força de
natureza social.
Utilizando a perspectiva da cartografia de controvérsias (Venturini, 2009), procuramos
deixar que a observação, precedendo teoria e metodologia, multiplicasse os pontos de vista
em jogo. Assim torna-se possível, segundo a teoria ator-rede, acessar as metafísicas dos
atores sobre seus mundos, permitindo que eles próprios – tomados não como participantes
alienados, mas como conhecedores do fenômeno em questão – organizem o campo.
Para seguir os rastros deste movimento na web e visualizar os atores e suas redes,
iniciamos pelo blog do movimento: analisamos qualitativamente 200 posts – os 100 mais
antigos e os 100 mais recentes – registrando uma classificação dos temas e objetivos
expressos em cada um, trechos interessantes, além de data e título. Também fizemos
anotações livres de questões que chamaram a nossa atenção. Esta observação não-estruturada
12
Hoje, Kelly é membro do Center for Business Innovation, da Ernst & Young e da Global Business Network,
consultora especializada em explorar cenários futuros para empresas do ramo de tecnologia.
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orientou o trabalho quantitativo, que consistiu em estruturar um banco de dados13
para
arquivar todos os posts do blog – um total de 644. Identificamos as palavras mais recorrentes
e a co-ocorrência entre elas.
Considerando o número de posts a analisar, bem como a heterogeneidade dos
elementos que participam das ações de uma rede qualquer, recorremos a instrumentos de
observação que nos permitissem uma primeira visualização desta diversidade. Realizamos,
assim, uma análise de vizinhança, que consiste em identificar e classificar os sites citados em
um determinado domínio para apontar os temas e atores que gravitam em torno dele (Jacomy
e Ghitalla, 2007). O propósito era efetuar um mapeamento preliminar tanto das ações quanto
das conexões que caracterizam o movimento, levando em conta que os elementos que
participam de uma ação não estão acessíveis com a mesma facilidade, não possuem a mesma
visibilidade, não possuem o mesmo peso no quadro observado, e assim por diante. A análise
de vizinhança permitiu apreender, ainda que de forma relativamente superficial, a
complexidade das ações de vários atores, humanos e não-humanos, suas especificidades e
interações, as quais carregam, por sua vez, elementos de outras relações distantes no tempo e
no espaço. Foram analisados os links encontrados nos 50 posts mais recentes do blog QS e os
200 domínios mais citados no conjunto de todos os posts. A coleta dos dados, realizada
através do software Navicrawler14
, incluiu 295 sites, que foram classificados segundo o tipo
de ambiente visitado, o responsável pela iniciativa, a natureza do conteúdo disponível e o
tema. Todos os dados estão disponíveis no blog que acompanha este artigo15
.
13
Esta base de dados MySQL concentra todos os dados usados na pesquisa e segue incorporando os novos posts
publicados. 14
Extensão do Firefox desenvolvida pela ONG WebAtlas: http://webatlas.fr/wp/navicrawler/. 15
http://vidaquantificada.wordpress.com.
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FIGURA 1 – Comunidades encontradas na rede de vizinhança.
Este levantamento preliminar fez emergir a variedade de objetivos, práticas e
ferramentas utilizadas, evidenciando a existência de diferentes modalidades de
monitoramento e registro de si entre os QS’s, que podem ser demarcadas em três grandes
grupos:
a) práticas orientadas por metas: fundadas por motivações específicas, consistem em
acompanhar a progressão individual em direção a um certo ideal – perder peso, ser mais feliz,
dormir melhor etc.;
b) auto-experimentação: consistem em investigações sobre a saúde e o comportamento
empreendidas por indivíduos comuns, constituindo uma espécie de ciência pessoal a partir do
uso de técnicas e conhecimentos especializados;
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c) lifelogging – seu foco é a produção de biografias numéricas pessoais a partir do
arquivamento integral de registros e da visualização de dados sobre fatos cotidianos, sem
orientação a metas específicas.
Longe de figurarem como tipos puros, estes grupos descrevem tendências assumidas
pelas práticas de si dos adeptos deste movimento. Para aprofundar sua compreensão, vamos
cotejar estas práticas com duas formas históricas de escrita relevantes para a cultura de si dos
estoicos: os hypomnemata e as missivas.
2. A escrita de si: breve genealogia
A história das práticas de si é marcada por duas crenças recorrentes: a de que o
caminho para aperfeiçoar-se passa por conhecer a si; e a de que o desenvolvimento das
habilidades humanas – dentre elas a de viver bem – dependeria do esforço contínuo e do
exercício. As formas tomadas por estes impulsos constroem, historicamente, uma genealogia
de técnicas que inclui “abstinências, memorizações, exames de consciência, meditações,
silêncio e escuta do outro” (Foucault, 1992). Entre os estoicos, o aperfeiçoamento individual
aparece associado a uma cultura que incentivava o cuidado consigo, a escrita, a leitura e a
meditação.
Historicamente, diferentes práticas de si se deram sem a escrita, o que nos leva a uma
indagação sobre a função dos registros nas modalidades de exame do eu. Segundo Foucault
(Ibidem, p. 152), a escrita vai se destacar entre as formas de objetivação de si já tardiamente,
na época imperial, nos textos de Epicteto. Para o autor (Ibidem, p. 157), a prática estaria
associada à necessidade de submeter-se ao olhar do outro: enunciar o que se é implicaria
envergonhar-se das próprias falhas, reforçando o comprometimento de afastar as fraquezas e
enobrecer do espírito. A escrita articularia, portanto, formas complementares de visibilidade:
ela seria um mostrar-se ao outro que permitiria o conhecimento de si.
Este conhecimento é produzido na medida em que a escrita possibilita a reflexão sobre
os princípios de conduta e sua aplicação no cotidiano. Melhorar-se e elaborar-se envolvem,
portanto, um trabalho sobre o pensamento: ainda que estes processos requisitem a
materialidade de nossos atos e corpos, eles implicam uma reflexão que confere à escrita uma
função que Plutarco (apud. Foucault, 1992, p. 134) denomina como etopoiética: “(...) a
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escrita constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende toda a askesis: a saber, a
elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais de
ação (Foucault, 1992, p. 2).”
Para o propósito deste trabalho focalizamos duas modalidades de escrita de si dos
estoicos. Os hypomnemata, que implicam a construção e a revisitação de cadernos de notas
como exercício capaz de auxiliar os homens a aperfeiçoar o seu modo de vida. E a
correspondência, especialmente a de direção espiritual, como as cartas de Sêneca a Lucílio,
que incluiu o relato detalhado do cotidiano a outrem, misturando aconselhamento, amizade,
atenção a si e reflexão sobre os valores sociais na busca pela elevação espiritual.
2.1. Os hypomnemata
Os hypomnemata são cadernos de memórias que inscrevem um tipo especial de relação
a si: a elaboração da individualidade a partir da reflexão suscitada pela escrita e leitura de
registros dispersos e heterogêneos do lido, ouvido, ensinado e pensado – trechos de obras,
reflexões, experiências vividas, conversas testemunhadas etc., vindos de diferentes tempos e
espaços. Como demarca Foucault (Ibidem, p. 137-8), estes compêndios, que também podiam
assumir a forma de correspondências enviadas a outrem, instrumentalizavam os objetivos de
voltar-se a si e elaborar-se em uma cultura chancelada pelo valor da tradição e pela
recorrência ao já estabelecido.
Recorria-se aos hypomnemata em momentos de dificuldade, buscando aconselhamento,
ou em momentos de reflexão, para realimentar a escrita e a meditação. A relação a si
implicada nesta atividade de escrita e leitura consistia em confrontar-se com a autoridade do
já dito, construindo para si terra firme – ao revisitar a tradição, o sujeito construía parâmetros
de conduta próprios, que orientariam seu posicionamento diante da vida e suas ações futuras.
Destacaremos alguns aspectos fundamentais desta prática: a relação que ela propõe com o
tempo; o tipo de memória que pretende construir; a relação entre interioridade e exterioridade
que propõe e a noção de verdade que articula.
Em primeiro lugar, falemos sobre o conteúdo dos hypomnemata: eles não se restringem
às narrativas de si, como o diário íntimo, mas comportam o registro de exterioridades que
constituiriam uma espécie de memória útil – seu conteúdo não deveria se prestar somente à
recordação, mas munir os indivíduos de um compêndio que estivesse sempre à mão,
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ajudando a guiar a ação presente. Eles auxiliariam em momentos difíceis ou em tarefas como
lidar com os defeitos da própria personalidade.
Não se trata, portanto, de buscar a purificação através da confissão, ou de explicitar
aquilo que se desconhece através do verbo. O conteúdo dos hypomnemata é um passado útil,
disperso e heterogêneo, revisitado em uma postura firme de negar o atropelo do futuro sobre
o presente e produzir um espaço de interlocução entre reflexão, experiência e subjetividade.
Estamos, portanto, diante de um tipo especial de memória e de relação com o tempo, do qual
podemos deduzir outro aspecto importante para este trabalho: a relação entre exterioridade e
interioridade presente nestas práticas.
Se a escrita e leitura dos hypomnemata subsidia processos de subjetivação, eles se dão
através da construção deste espaço em que destacaríamos, dentre os encontros da vida,
aqueles que devem fazer parte de nós. Os hypomnematas seriam, portanto, o lugar onde
negociaríamos os limites entre o que passa e o que deve permanecer, onde podem se
dissolver os limites entre exterioridade e interioridade. O que se destaca é a proposta de um
voltar-se a si que depende do outro – que figura, através dos discursos heterogêneos
recolhidos, como guia ou exemplo.
Por fim, da heterogeneidade dos hypomnemata decorre seu caráter fragmentário, que
articula um conceito de verdade particular: local e com valor circunstancial de uso (Ibidem,
p. 141). Os hypomnemata são desprovidos, portanto, da coesão que se depreende da
totalidade de uma obra. Eles promovem o encontro entre a autoridade do tradicional e a
singularidade das circunstâncias registradas. E a possibilidade de síntese entre esses
elementos não se dá pela coesão dos discursos ali reunidos em um único argumento, mas sim
como processo de subjetivação – como transformação daquele que escreve, relê e reflete. A
escrita é vista, assim, como um processo assimilador dos recortes que acabam por ficar,
finalmente, gravados na alma.
2.2. A correspondência
As correspondências, por seu turno, figuram entre as primeiras formas históricas da
narrativa de si (Ibidem, p. 152). Escritas como manifestação de amizade, elas veiculavam a
outrem notícias sobre a própria vida – atividades cotidianas, escolhas, notícias sobre a saúde,
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alegrias e infortúnios. Como instrumento para direção espiritual, elas eram escritas para
emitir conselhos, opiniões e mesmo críticas a alguém próximo. Foucault (Ibidem, p. 153)
destaca que alguns temas teriam sido, entre os estoicos, caros ao estilo epistolar, dentre eles a
relação com o corpo e com a alma.
A correspondência aproxima a escrita para o outro e a elaboração de si – ela é um
fazer-se presente a si que pressupõe o olhar do outro. Assim como os hypomnemata – escritos
para si – podem ser enviados a outrem para auxiliá-los em momentos específicos, as missivas
– escritas para o outro – encerram um trabalho sobre aquele que as escreve. Ao emitir um
aconselhamento, o indivíduo se prepara para enfrentar situação semelhante no futuro. E como
escrever para alguém supõe ler o que se escreve, as missivas implicam um espaço de
introspecção – “mas há que entender esta menos como uma decifração de si por si mesmo do que
como uma abertura de si mesmo que se dá ao outro” (Ibidem, p. 152). Além disso, a
correspondência, diferente do hypomnemata, confere, para o destinatário, um rosto ao escritor
– ela uma objetivação da alma daquele que se mostra e se interroga enquanto escreve.
É particularmente importante para este trabalho atentar para os temas dos quais se
ocupou a correspondência na cultura de si dos estoicos. Elas eram usadas não só para veicular
notícias sobre a própria saúde, mas para fornecer descrições detalhadas dos problemas e das
sensações corpóreas experimentadas. Além disso, elas eram uma forma de acompanhar o
cotidiano: elas continham relatos de dias comuns, justo na medida do que eles têm de igual a
todos os outros, “atestando assim, não a relevância de uma atividade, mas a qualidade de um
modo de ser” (Ibidem, p. 155).
É neste sentido que a narrativa a outrem do dia decorrido mantém relação com uma
outra prática: "passar em revista o seu dia" (Ibidem, p. 156). Esta prática, que originalmente
não tomava a forma de um texto escrito, consiste em um exame de consciência que se faz à
noite, vinculado à memorização. Por meio dele faz-se uma espécie de controle administrativo
que implica mensurar as atividades realizadas e os possíveis fracassos. A finalidade é reativar
os princípios de conduta e corrigir, no futuro, sua aplicação. Ao refletir sobre o dia decorrido,
memoriza-se "as regras de comportamento que é preciso ter sempre presentes no espírito”
(Ibidem, p. 157).
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3. Auto-monitoramento e delegação
Levantei-me às 6h10min depois de ir dormir à 0h45 min. Fui despertado uma vez
durante a noite. Minha frequência cardíaca foi de 61 batimentos por minuto – minha
pressão arterial, 12/7. Pratiquei 0 minutos de exercícios físicos ontem, então, minha
frequência cardíaca máxima durante a prática de exercícios não foi calculada. Ingeri
cerca de 600 miligramas de cafeína, zero de álcool. E a minha pontuação no Índice
de Narcisismo da Personalidade, ou o NPI-16, é um tranquilizador 0.31.
Gary Wolf, The Quantified Self Movement.
O meu dia de hoje pertence-me, ninguém me roubou um bocadinho que fosse: todo
ele foi dividido entre o leito e a leitura. Os exercícios físicos ocuparam uma parcela
mínima (...). Depois da corrida, que foi mais estafadeira que o exercício, meti-me na
água fria, nome que em minha casa se dá à água morna (...). A seguir do banho, um
pouco de pão seco, uma ligeira refeição, mesmo em pé, daquelas que não obrigam a
ir lavar as mãos. Durmo muito pouco. Tu conheces o meu hábito: basta um breve
sono para repousar (...). Vou dizer-te agora em que problema ocupei o meu espírito.
Sêneca, Cartas a Lucílio.
Estas falas sintetizam elementos importantes para a comparação entre as formas
contemporâneas de auto-monitoramento e as práticas de si dos estoicos. Na primeira, Gary
Wolf, porta-voz dos Quantified Selves, apresenta o seu dia sob a perspectiva dos indicadores
que monitora. Na segunda, Sêneca cumpre a promessa de descrever com minúcia o seu dia a
Lucílio, e justifica ser esta prática da maior utilidade: observar-se com atenção e avaliar com
cuidado cada um dos seus dias impede-nos de deixar crescer nossos vícios. Pensar no que
vamos fazer é tão importante quanto pensar no que fizemos, pois o futuro depende do
passado (Sêneca, 1991, p. 369).
Temos, portanto, elementos comuns que nos permitem colocar estas práticas em
diálogo. O primeiro deles é a crença na atenção a si, que para os estoicos se corporificava na
prática do exame e escrita do dia, e que para os QS’s se dá através da medição de conjuntos
de indicadores. O segundo é o objetivo de aperfeiçoar-se, que aparece como motivador tanto
para escrita dos hypomnemata e das correspondências quanto para as práticas
contemporâneas de auto-monitoramento. E o terceiro elemento é que essas três formas de
atenção a si encerram preocupações de ordem prática: elas são meios de instrumentalizar o
aperfeiçoamento de si em uma prática que deve ter o potencial de retornar sobre a ação
concreta e a vida cotidiana.
Destes elementos derivam também grandes diferenças. Em primeiro lugar, vemos
destoar as concepções de boa vida e seus esquemas morais correlatos: enquanto para Sêneca
a meditação, e não os exercícios físicos, devem ocupar a maior parte do dia, a atenção ao
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corpo assume, na analítica dos QS’s, papel central. Além disso, enquanto acompanhar o
cotidiano e os dias no que eles têm de mais comum era, entre os estoicos, uma forma de não
desviar o foco de si, entre os QS’s, a proposta é gerar o “auto-conhecimento através dos
números”. Neste caso, o eu está inscrito e disperso em indicadores quantificáveis da boa
saúde, da boa vida, da boa forma. Na palavras de Kelly (2007, online, grifo nosso):
Muitos procuram este auto-conhecimento e nós reconhecemos todos os caminhos
para atingi-lo. No entanto, o caminho não-trilhado que escolhemos explorar aqui é
um caminho racional: se algo não pode ser medido, não pode ser melhorado. Então
estamos em uma busca por coletar a maior quantidade possível de ferramentas que
irão nos apoiar na medição quantificável de nós mesmos.
Disto decorre uma diferença essencial quanto ao tipo de inscrição que acompanha cada
uma dessas práticas. Entre os QS’s, o registro assume caráter semi-automatizado tanto no
âmbito do auto-monitoramento quanto no da análise do que se coleta: não se trata
simplesmente de tomar nota de conteúdos e acontecimentos para revisitá-los ou de escrever a
outrem reflexões livres. Trata-se, antes, da coleta sistemática de indicadores que possam ser
transformados em dados, analisados no curso do tempo e abordados com métodos ditos
objetivos. Isso é verdadeiro especialmente para o caso do auto-monitoramento centrado em
metas. Na imagem abaixo, vemos um painel para gerenciamento da produtividade, gastos
diários etc. (fig. 2). O usuário informa seu desempenho e seus objetivos, e o sistema analisa e
projeta a progressão destes dados (fig. 3).
FIGURA 2 – Painel da ferramenta 42Goals16
com metas definidas pelo usuário.
16
http://www.42goals.com/
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FIGURA 3 – Perfil público e gráficos de metas na ferramenta 42Goals.
Os QS’s buscam parâmetros quantitativos mesmo para analisar aspectos que não são
imediatamente quantificáveis. O monitoramento do humor é um bom exemplo. Vários
aplicativos vêm utilizando um modelo parecido para tanto: disparar mensagens randômicas
aos usuários pedindo que avaliem, em uma escala, como se sentem no momento. As
respostas, projetadas no curso do tempo, podem ser posteriormente analisadas, impedindo
que os usuários respondam de maneira tendenciosa uma questão que, segundo J. Cohen,
criador do aplicativo Expereal17
, não poderia ser verdadeiramente respondida somente através
da análise subjetiva: “como, afinal, está minha vida hoje em comparação ao passado?”.
Esta crença de que não devemos confiar em nossas impressões e em nossa memória é
uma das premissas da forma de fazer-se presente a si no projeto dos QS’s. Relatando o
monitoramento da atividade física, L. Eaton afirma: “Sim, eu posso me lembrar, mas muitas
vezes, eu tendo a superestimar ou subestimar as coisas. Com o Fitbit, eu sei se estou
mentindo ou não”18
. Este grupo adota, assim, uma forma particular de fazer frente aos
enganos e mistérios tanto da consciência quanto do inconsciente: delegar a dispositivos
17
http://expereal.com/ 18
http://byanyothernerd.blogspot.com.br/2012/06/1-year-later-of-fitbits-and-vibrams.html
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tecnológicos a resolução do enigma do eu, para que mostrem com evidências numéricas e
formas visuais o que temos feito de nossas vidas. Como explica Wolf (online):
Podem nossos dispositivos nos conhecer melhor que nós mesmos? Parece óbvio que
isso seja verdadeiro. O auto-conhecimento humano é infestado por todos os tipos de
limites: parcialidade, erros de amostragem, falhas de memória e falta de poder de
processamento suficiente para reconhecer padrões complexos. Máquinas não
sofrem dessas três primeiras limitações, e a última está sob o ataque da lei de
Moore.19
Isso implica que a avaliação subjetiva – necessária, por exemplo, no caso do humor –
seja substituída, sempre que possível, por sensores. Assim, o estresse passa a ser medido não
pela avaliação e relato da sensações, mas por um aparelho que identifica o nível de
condutividade da pele, como o Basis20
. Caso semelhante se passa para o sono – a sensação de
descanso advinda de uma noite bem dormida não basta para garantir uma boa avaliação, que
depende, então, de aparelhos que meçam a frequência das ondas cerebrais durante o sono,
segundo padrões chancelados cientificamente, mas passíveis de personalização: “A ciência
revela os fatores que mais afetam o sono, mas existe uma arte de descobrir o que funciona
para você... e a Zeologia é onde esses dois elementos se encontram.”21
O caminho dos números representa, neste sentido, um relativo abandono da
introspecção e da reflexão como via privilegiada para o auto-conhecimento. Num mesmo
movimento, a palavra e a narrativa perdem sua centralidade na decifração do eu, tarefa agora
delegada ao dispositivo. Ao falar sobre seu aplicativo de monitoramento do humor, por
exemplo, Cohen comenta que a simplicidade é a chave deste modelo. E conclui: diante da
pergunta „como está sua vida no momento?‟, “se o usuário tem que pensar sobre isso, ele está
pensando demais”22
. Perspectiva semelhante é assumida pelo aplicativo Happiness23
, que
promete ser um novo tipo de diário que convida os usuários a “irem além de seu diálogo
interior e começarem a identificar padrões”. A ferramenta permite a escrita de notas livres
sobre os motivos dos sentimentos registrados, que podem ser organizados por tags e exibidos
em uma tabela que os associa visualmente às motivações (fig. 4).
19
http://quantifiedself.com/2008/03/reality-mining-at-mit/> 20
http://www.mybasis.com/ 21
http://blog.myzeo.com/about/ 22
http://quantifiedself.com/2012/10/toolmaker-talk-jonathan-cohen-expereal/ 23
http://goodtohear.co.uk/happiness
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FIGURA 4 – Funcionamento do aplicativo Happiness, mostrando a captura do nível de felicidade, a escrita de
notas e a tabela de análise.
O caráter instrumental deste projeto de aperfeiçoamento de si reflete, em certa medida,
os objetivos perseguidos por estes indivíduos. Enquanto os estoicos perseguiam a virtude
enquanto bem supremo, do qual deveriam derivar todas as diretrizes da conduta, aqui, os
ideais de performance são locais e gerenciados caso a caso. Eles precisam ser tangíveis o
suficiente para serem medidos; divididos em etapas pequenas o suficiente para que a
motivação de alcançá-los não desapareça. A instrumentalização do projeto contemporâneo do
auto-monitoramento também se manifesta no fato de que ele focaliza o aqui e agora, a
transformação possível e imediata, a realização advinda da capacidade de resolver os próprios
problemas. Este é um projeto dito ao alcance de todos, ao contrário da desumana figura do
homem integral, que para Sêneca, era em tese inatingível.
Daí o desejo de dotar essas ferramentas de facilitadores da análise e camadas de
aconselhamento, bem-vindos na medida em que são recebidos como verdade especializada
sobre como agir diante das incertezas acerca dos limites entre os comportamentos desejáveis,
condenáveis e saudáveis. Este aconselhamento é marcado por seu pragmatismo. Assim, o
Jawbone Up24
(fig. 5) vibra para sinalizar ao usuário sua falta de atividade física e o Zeo25
oferece dicas para melhorar a qualidade do sono, que incluem, inclusive “hackeá-lo”:
24
https://jawbone.com/up 25
http://www.myzeo.com/sleep/knowledge-center/getting-more-deep-rem
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conduzir experimentos para descobrir o que pode funcionar para você. Este conhecimento,
que vem sob a forma de um conselho, responde a uma motivação recorrente para se auto-
monitorar, exposta por L. Eaten em seu blog: “(...) Isso me permite tomar decisões mais
informadas. Como mais batatas fritas, uma cenoura ou devo, no mínimo, sair para uma
caminhada?”26
.
FIGURA 5 – Jawbone Up, uma pulseira equipada com sensores.
A dimensão prática também era requisitada pela escrita dos estoicos, mas em sentidos
de todo outros. Os hypomnemata deveriam estar sempre à mão, para serem consultados
diante da dúvida e orientar o presente. Já Sêneca (1991), em suas cartas a Lucílio, nos chama
a atenção por sua determinação em dar aos homens orientações para todos os momentos de
suas vidas. Suas cartas não se limitam a expor os princípios do estoicismo – elas são um
empreendimento de direção espiritual e meditação sobre a existência calcados em exemplos
da vida cotidiana. Sêneca admite, portanto, o valor da parenética – a parte da filosofia que
cuidaria do aconselhamento sobre questões específicas da vida e traz, através das máximas,
sínteses facilmente memorizáveis e com efeitos sobre a direção da conduta.
O projeto do auto-monitoramento estabelece, no entanto, uma relação consigo que
estabelece um outro lugar para a razão. Ela não está no encontro consigo, mas nos números,
os quais são tão mais valiosos no que revelam quanto forem obtidos por vias extra-
conscientes. No lugar da informação produzida e registrada conscientemente, temos um
corpo que produz, a todo momento, dados que escapam a nossa atenção e memória: coloque
um dispositivo em seu braço e saiba quantos passos você deu, quantas escadas você subiu,
quantas horas de sono leve ou profundo você dormiu. Assim, tudo se passa como se a
tecnologia produzisse uma forma de presença a si que seria, entretanto, alcançada através da
mediação técnica – que, longe da neutralidade que comumente lhe é atribuída, implica
26
http://byanyothernerd.blogspot.com.br/2012/06/1-year-later-of-fitbits-and-vibrams.html
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cálculos e apropriações do discurso médico e científico. Diferentemente da escrita de si dos
estoicos, em que a prática mesma de escrever retornava sobre a reflexão e a ação, implicando
num só movimento a atenção ao outro e o trabalho sobre si, a modalidade de registro e
monitoramento dos QS’s faz da delegação ao dispositivo técnico a via régia do contato
consigo. Um outro diálogo entre interioridade e exterioridade se produz, bem como uma
forma específica de relação com o conhecimento especializado.
Esta relação fica evidente no grupo das práticas de auto-experimentação. Seus relatos
são fragmentos de uma individualidade que precisa ser monitorada porque se tornou
problemática. A medicina calcada nos fatores de risco e as novas tecnologias biomédicas
deslocaram os limites entre saúde e doença, fazendo do gerenciamento das condições
crônicas “responsabilidades individuais morais a serem endereçadas através da ampliação do
acesso ao conhecimento, auto-vigilância, prevenção, medição/tratamento de risco e consumo
de serviços e bens de auto-ajuda/biomédicos apropriados” (Clarke et al, 2003, p. 2). A busca
por este conhecimento está presente nos QS’s que se dispõem, por exemplo, a realizar testes
genéticos para decifrar seu genoma e participar de discussões sobre o estabelecimento das
relações entre genótipo e fenótipo, que ainda são matéria de controvérsias no campo da
medicina.
Apesar disso [das incertezas sobre o que podem revelar estas informações, grifo
nosso], estou ávido para ter meus genes sequenciados primeiramente (...) para
ampliar minha alfabetização genética. Trata-se de uma nova linguagem, sintaxe, e
visão de mundo, e eu quero ser proficiente nela. (Kelly, 2007: online).
Estamos, portanto, diante de uma forma de auto-conhecimento que reverbera, de modo
próprio, discursos da biomedicina contemporânea. Existe aqui, como nos hypomnemata, a
produção de uma memória útil a ser revisitada mas que se articula não só nos limites entre
interioridade e exterioridade, mas entre interioridade psicológica e biológica, entre o que o eu
pode conhecer, registrar, lembrar, e o que o dispositivo técnico pode monitorar, analisar e
revelar. E ainda que a abertura de si ao outro – que figura como audiência com quem se firma
o compromisso de melhorar-se ou que integra comunidades para experimentações coletivas e
troca de conhecimento – tenha papel primordial no QS, a decifração de si através da
delegação técnico-científica aparece no centro dos projetos de felicidade, otimização da
existência e ampliação da vida destes indivíduos. Projetos que talvez sejam, como suspeitava
Sêneca no texto que figura na epígrafe deste trabalho, incompatíveis.
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Referências
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