quantified selves contar, monitorar e conhecer a si mesmo...

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013 www.compos.org.br 1 QUANTIFIED SELVES: contar, monitorar e conhecer a si mesmo através dos números 1 QUANTIFIED SELVES: telling, monitoring and knowing yourself through numbers Liliane da Costa Nascimento 2 Fernanda Bruno 3 Resumo: Este trabalho investiga, através dos métodos da teoria ator-rede, as práticas de objetivação de si presentes nas técnicas de auto-monitoramento empregadas pelos Quantified Selves, um grupo de indivíduos que busca promover melhorias em suas vidas através do registro de indicadores quantitativos e qualitativos sobre seu comportamento e personalidade. Iniciaremos descrevendo este movimento e focalizando as suas formas de medição e registro. Em seguida, passaremos a uma breve apresentação das formas de análise e registro de si nos estoicos. Por fim, cotejaremos as formas de auto-monitoramento contemporâneas com estas modalidades históricas da escrita de si, buscando circunscrever suas especificidades em relação aos processos subjetivos que promovem. Palavras-Chave: Escrita de si. Auto-monitoramento. Quantified Self. Abstract: This paper investigates, using the methods of actor-network theory, the practices of self-objetification found in the self-monitoring techniques used by the Quantified Selves, a group of individuals that seek to improve their lives through the act of registering quantitative and qualitative indicators about their behaviour and personality. We will start by describing this movement and focusing the ways their supporters measure and register their lives. After that, we will give a brief presentation of the practices of self-analysis and self-registering used by the stoics. Finally, we will compare the contemporary practices of self-monitoring with these historical ways of personal writing, in order to grasp the distinctiveness of the subjective processes they enable. Keywords: Personal writing. Self-monitoring. Quantified Self. Ninguém se preocupa em viver bem, mas sim em durar muito, quando afinal viver bem está ao alcance de t odos, ao passo que durar muito não está ao de ninguém. Sêneca, Cartas a Lucílio 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cibercultura do XXII Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal da Bahia, Salvador, de 04 a 07 de junho de 2013. 2 Doutoranda do PPGCOM/ECO/UFRJ, Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ, [email protected]. 3 Prof.ª do PPGCOM/ECO/UFRJ, Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, [email protected].

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, 04 a 07 de junho de 2013

www.compos.org.br 1

QUANTIFIED SELVES: contar, monitorar e conhecer a si mesmo através dos números1

QUANTIFIED SELVES: telling, monitoring and knowing yourself through numbers

Liliane da Costa Nascimento2

Fernanda Bruno3

Resumo: Este trabalho investiga, através dos métodos da teoria ator-rede, as

práticas de objetivação de si presentes nas técnicas de auto-monitoramento

empregadas pelos Quantified Selves, um grupo de indivíduos que busca promover

melhorias em suas vidas através do registro de indicadores quantitativos e

qualitativos sobre seu comportamento e personalidade. Iniciaremos descrevendo

este movimento e focalizando as suas formas de medição e registro. Em seguida,

passaremos a uma breve apresentação das formas de análise e registro de si nos

estoicos. Por fim, cotejaremos as formas de auto-monitoramento contemporâneas

com estas modalidades históricas da escrita de si, buscando circunscrever suas

especificidades em relação aos processos subjetivos que promovem.

Palavras-Chave: Escrita de si. Auto-monitoramento. Quantified Self.

Abstract: This paper investigates, using the methods of actor-network theory, the

practices of self-objetification found in the self-monitoring techniques used by the

Quantified Selves, a group of individuals that seek to improve their lives through the

act of registering quantitative and qualitative indicators about their behaviour and

personality. We will start by describing this movement and focusing the ways their

supporters measure and register their lives. After that, we will give a brief

presentation of the practices of self-analysis and self-registering used by the stoics.

Finally, we will compare the contemporary practices of self-monitoring with these

historical ways of personal writing, in order to grasp the distinctiveness of the

subjective processes they enable.

Keywords: Personal writing. Self-monitoring. Quantified Self.

Ninguém se preocupa em viver bem, mas sim em durar muito, quando afinal viver

bem está ao alcance de t odos, ao passo que durar muito não está ao de ninguém.

Sêneca, Cartas a Lucílio

1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cibercultura do XXII Encontro Anual da Compós,

na Universidade Federal da Bahia, Salvador, de 04 a 07 de junho de 2013. 2 Doutoranda do PPGCOM/ECO/UFRJ, Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ, [email protected].

3 Prof.ª do PPGCOM/ECO/UFRJ, Doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ, [email protected].

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Comecei a perceber que a auto-hipotetização era uma experiência dolorosa. E me

perguntei se, no lugar de aprender mais sobre mim, havia me tornado simplesmente

um “hipocondríaco digital”.

R. Barooah4

O eu se traduz em indicadores e o que se pode medir – numérica e tecnologicamente –

se pode aperfeiçoar. Esta talvez seja uma das definições possíveis do movimento Quantified

Selves (QS), surgido em 2008 na região da Bacia de São Francisco, Califórnia. O movimento

organiza, em 29 países, encontros locais de pessoas interessadas em usar técnicas objetivas

para aferir, registrar e acompanhar aspectos específicos de seu comportamento. Constitui-se,

assim, um coletivo dedicado ao auto-monitoramento.

O grupo articula usuários e desenvolvedores de dispositivos sensorizados – wereable5,

portáteis ou não – e softwares – que variam de interfaces computacionais offline a redes

colaborativas online, passando por vários aplicativos para celular. Através do uso destas

ferramentas, os QS’s buscam lidar com problemas que afetam negativamente suas vidas ou

descobrir tendências e correlações sobre seu comportamento e sua saúde a partir do

armazenamento, a longo prazo, de diversos conjuntos de indicadores que permitem monitorar

uma infinidade de condições: doenças crônicas, atividade sexual, qualidade do sono, humor,

produtividade, uso do tempo, performance cognitiva, atividade física etc.

Em que pese o rótulo de excentricidade atribuído ao grupo, é interessante notar que a

sua constituição coincide com a expressiva expansão do mercado do auto-monitoramento.

Em 2012, os investimentos nas startups de saúde digital cresceram 84% em relação a 2011 e

totalizaram 1,1 bilhão de dólares. As perspectivas futuras são ainda mais otimistas: segundo a

ABI Research, as vendas dos dispositivos wereable de monitoramento da saúde passará de 3

milhões de unidades em 2011 para 36 milhões em 2017; para a Parks Associates, o valor do

mercado das tecnologias digitais de saúde deve passar de 1,7 bilhões de dólares em 2010 para

5,7 bilhões em 2015, liderado por iniciativas de “cuidado crônico, bem estar e gerenciamento

de medicamentos”6.

A prática da contabilização de si ganha contornos específicos hoje, mas não é uma

inovação do presente. Em certa medida, ela reverbera preocupações historicamente familiares

sobre como devemos, afinal, viver nossas vidas. Esta busca por forjar para si verdades que

4 http://quantifiedself.com/2010/04/why-i-stopped-tracking/

5 Dispositivos eletrônicos que podem ser usados junto ao corpo.

6 The digital doctor is in. Entrepreuner, 29 Nov. 2012.

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orientem a existência implica questionamentos sobre quem devemos ser e sobre como

podemos nos aperfeiçoar – seja na relação com nosso corpo, com nossa saúde ou no

desenvolvimento das virtudes da alma. Historicamente, diversas pedagogias do bem viver

endereçaram essas questões, contemplando, cada uma a seu modo, a interpelação sistemática

e organizada de si por si mesmo – realizada enquanto via de aperfeiçoamento pessoal.

A partir da descrição do grupo Quantified Selves e do recuo histórico até práticas que se

ocupavam do registro da vida cotidiana em busca do bem viver, este trabalho visa identificar,

no contemporâneo, mudanças neste processo, que têm sido mediado, hoje, por dispositivos

tecnológicos. Tendo em vista as especificidades das práticas de auto-monitoramento dos

QS’s, notamos que o uso destes dispostivos implica a consolidação de uma nova forma de

cirscunscrever o cuidado e a atenção a si, que articula a) o registro; b) a leitura – muitas vezes

em tempo real e c) a análise de indicadores monitorados em nome de um bem-estar global e

do alcance de performances cada vez melhores nos diversos setores de nossas vidas.

Desta forma, faremos neste trabalho dois percursos distintos, mas complementares.

Partiremos de uma descrição prelimirar do grupo QS, realizada através dos métodos quali-

quantitativos da teoria ator-rede. Esta descrição pretende retraçar o modo como os

participantes do grupo definem a si mesmos, seus propósitos, problemas e ideais. Ao mesmo

tempo, observaremos e descreveremos os atores do grupo, as práticas e dispositivos

presentes, buscando identificar que tipo de ação efetuam. Atentaremos, ainda, para algumas

das conexões que caracterizam e mantêm este coletivo. Num segundo momento, realizaremos

um recuo histórico até os estóicos e suas práticas de registro de si tendo em vista, na última

parte do texto, cotejar as práticas dos QS’s e seus processos subjetivos com outras formas de

escrita de si. Este recuo busca apreender a singularidade dos problemas que nos ocupam no

presente a partir do contato com documentos, textos e práticas afastadas no tempo e ainda

assim próximas quanto às inquietações mais gerais que levantam. Se a descrição segundo a

teoria ator-rede pretende ser uma via de apreensão do modo como os próprios atores do QS

definem suas práticas, o recuo genealógico (Cf. Foucault, 1979) permite perceber como

outros coletivos compreenderam diferentemente práticas similares. Esta diferença torna mais

visível tanto a singularidade presente quanto a sua contingência.

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1. Atores e redes dos Quantified Selves

O grupo Quantified Selves é heterogêneo em relação aos tipos e objetivos de suas

práticas de auto-monitoramento. Pela mídia, têm sido referenciados como um “movimento

geek de elite” (Kriger, 2010 apud. Butterfield, 2012, p. 8), como um “eclético mix de early

adopters7, fanáticos da boa forma, evangelistas da tecnologia, viciados em desenvolvimento

pessoal, hackers e pacientes que sofrem de variados problemas de saúde”8. Juntos,

monitoram dados de natureza extremamente diversa, realizam suas descobertas e adotam,

muitas vezes, hábitos no mínimo estranhos para atingir seus objetivos, como ingerir

quantidades significativas de manteiga para melhorar a cognição.

As práticas de auto-monitoramento dos QS’s diversificam as formas através das quais

nossas mentes, corpos e cotidianos estiveram, historicamente, transmutados em números,

desenhados em gráficos e submetidos a práticas de escrutínio e análise. Que tal um garfo

capaz de registrar quantas mordidas você deu e quanto tempo durou sua refeição, alertando-o

caso esteja comendo rápido demais? E que tal um site onde você pode registrar as relações

sexuais mantidas e organizar um histórico de datas e parceiros? O mesmo pode valer para

analisar a qualidade do sono, os sentimentos de felicidade ou estresse ao longo do dia.

Segundo o blog do movimento9, os QS’s são um grupo de pessoas interessadas em

desenvolver o auto-conhecimento através do auto-monitoramento. Em termos operacionais, o

movimento se estrutura através de três atividades principais: meetups, encontros locais no

estilo “show and tell”, nos quais indivíduos apresentam suas experiências de auto-

monitoramento e aprendizados; um blog10

, com conteúdo noticioso sobre projetos pessoais e

auto-monitoramento em geral; e conferências, que reunem os participantes dos grupos com

criadores de dispositivos de hardware e software voltados para esta prática, além de

especialistas, acadêmicos, investidores, profissionais de saúde, designers e empreendedores.

Hoje, existem 15.790 pessoas participando de um dos 104 capítulos locais do QS em 82

cidades ao redor do mundo11

– a maioria nos EUA e em países da Europa. As figuras centrais

7 Grupo de usuários pioneiros na adoção de uma determinada tecnologia.

8 Counting every moment. The Economist, 3 Mar. 2012.

9 http://quantifiedself.com/about/.

10 http://quantifiedself.com

11 Dados do Meetup (http://quantified-self.meetup.com/), mídia social que suporta grupos temáticos e que foi

adotada pelos QS’s para multiplicar a organização de capítulos locais de maneira descentralizada. Consulta

realizada em 13/01/2013.

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desta iniciativa são Gary Wolf e Kevin Kelly, jornalistas e escritores com uma história de

intenso envolvimento com o mundo das novas tecnologias. Kelly foi um dos fundadores da

revista Wired, e Wolf, ainda hoje, contribui como editor para o veículo, que exerce grande

influência na discussão especializada sobre a cultura em rede e o mundo digital. Hoje, Kelly

também articula sua trajetória editorial e de experimentação com novas tecnologias nos

mercados de consultoria e inovação12

.

Este trabalho parte de uma primeira observação do grupo QS, baseada na teoria ator-

rede. Por estar em grande parte situado e „inscrito‟ na internet, a descrição das ações deste

grupo se aproxima do seu próprio desdobrar. Nosso caminho, portanto, foi abordar, a partir

de métodos quali-quantitativos, os rastros – documentos, discursos, ferramentas e

informações – deixados pelos QS’s na internet. Como reforça Bruno (2012), o valor dos

rastros digitais para a teoria ator-rede é deduzido de sua proposta conceitual: abandonar o

social como substância capaz de explicar os fenômenos – ou o que há de exterior e

inapreensível neles – para um retorno investigativo que permita reconstruir suas conexões

(Latour, 2005, p. 97). Assim, o conhecimento de um fenômeno implica percorrê-lo,

compreendendo como e em que circunstâncias se deram os encontros que o produziram,

tarefa que não pode ser reduzida à abstrata explicação de que seriam produto de uma força de

natureza social.

Utilizando a perspectiva da cartografia de controvérsias (Venturini, 2009), procuramos

deixar que a observação, precedendo teoria e metodologia, multiplicasse os pontos de vista

em jogo. Assim torna-se possível, segundo a teoria ator-rede, acessar as metafísicas dos

atores sobre seus mundos, permitindo que eles próprios – tomados não como participantes

alienados, mas como conhecedores do fenômeno em questão – organizem o campo.

Para seguir os rastros deste movimento na web e visualizar os atores e suas redes,

iniciamos pelo blog do movimento: analisamos qualitativamente 200 posts – os 100 mais

antigos e os 100 mais recentes – registrando uma classificação dos temas e objetivos

expressos em cada um, trechos interessantes, além de data e título. Também fizemos

anotações livres de questões que chamaram a nossa atenção. Esta observação não-estruturada

12

Hoje, Kelly é membro do Center for Business Innovation, da Ernst & Young e da Global Business Network,

consultora especializada em explorar cenários futuros para empresas do ramo de tecnologia.

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orientou o trabalho quantitativo, que consistiu em estruturar um banco de dados13

para

arquivar todos os posts do blog – um total de 644. Identificamos as palavras mais recorrentes

e a co-ocorrência entre elas.

Considerando o número de posts a analisar, bem como a heterogeneidade dos

elementos que participam das ações de uma rede qualquer, recorremos a instrumentos de

observação que nos permitissem uma primeira visualização desta diversidade. Realizamos,

assim, uma análise de vizinhança, que consiste em identificar e classificar os sites citados em

um determinado domínio para apontar os temas e atores que gravitam em torno dele (Jacomy

e Ghitalla, 2007). O propósito era efetuar um mapeamento preliminar tanto das ações quanto

das conexões que caracterizam o movimento, levando em conta que os elementos que

participam de uma ação não estão acessíveis com a mesma facilidade, não possuem a mesma

visibilidade, não possuem o mesmo peso no quadro observado, e assim por diante. A análise

de vizinhança permitiu apreender, ainda que de forma relativamente superficial, a

complexidade das ações de vários atores, humanos e não-humanos, suas especificidades e

interações, as quais carregam, por sua vez, elementos de outras relações distantes no tempo e

no espaço. Foram analisados os links encontrados nos 50 posts mais recentes do blog QS e os

200 domínios mais citados no conjunto de todos os posts. A coleta dos dados, realizada

através do software Navicrawler14

, incluiu 295 sites, que foram classificados segundo o tipo

de ambiente visitado, o responsável pela iniciativa, a natureza do conteúdo disponível e o

tema. Todos os dados estão disponíveis no blog que acompanha este artigo15

.

13

Esta base de dados MySQL concentra todos os dados usados na pesquisa e segue incorporando os novos posts

publicados. 14

Extensão do Firefox desenvolvida pela ONG WebAtlas: http://webatlas.fr/wp/navicrawler/. 15

http://vidaquantificada.wordpress.com.

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FIGURA 1 – Comunidades encontradas na rede de vizinhança.

Este levantamento preliminar fez emergir a variedade de objetivos, práticas e

ferramentas utilizadas, evidenciando a existência de diferentes modalidades de

monitoramento e registro de si entre os QS’s, que podem ser demarcadas em três grandes

grupos:

a) práticas orientadas por metas: fundadas por motivações específicas, consistem em

acompanhar a progressão individual em direção a um certo ideal – perder peso, ser mais feliz,

dormir melhor etc.;

b) auto-experimentação: consistem em investigações sobre a saúde e o comportamento

empreendidas por indivíduos comuns, constituindo uma espécie de ciência pessoal a partir do

uso de técnicas e conhecimentos especializados;

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c) lifelogging – seu foco é a produção de biografias numéricas pessoais a partir do

arquivamento integral de registros e da visualização de dados sobre fatos cotidianos, sem

orientação a metas específicas.

Longe de figurarem como tipos puros, estes grupos descrevem tendências assumidas

pelas práticas de si dos adeptos deste movimento. Para aprofundar sua compreensão, vamos

cotejar estas práticas com duas formas históricas de escrita relevantes para a cultura de si dos

estoicos: os hypomnemata e as missivas.

2. A escrita de si: breve genealogia

A história das práticas de si é marcada por duas crenças recorrentes: a de que o

caminho para aperfeiçoar-se passa por conhecer a si; e a de que o desenvolvimento das

habilidades humanas – dentre elas a de viver bem – dependeria do esforço contínuo e do

exercício. As formas tomadas por estes impulsos constroem, historicamente, uma genealogia

de técnicas que inclui “abstinências, memorizações, exames de consciência, meditações,

silêncio e escuta do outro” (Foucault, 1992). Entre os estoicos, o aperfeiçoamento individual

aparece associado a uma cultura que incentivava o cuidado consigo, a escrita, a leitura e a

meditação.

Historicamente, diferentes práticas de si se deram sem a escrita, o que nos leva a uma

indagação sobre a função dos registros nas modalidades de exame do eu. Segundo Foucault

(Ibidem, p. 152), a escrita vai se destacar entre as formas de objetivação de si já tardiamente,

na época imperial, nos textos de Epicteto. Para o autor (Ibidem, p. 157), a prática estaria

associada à necessidade de submeter-se ao olhar do outro: enunciar o que se é implicaria

envergonhar-se das próprias falhas, reforçando o comprometimento de afastar as fraquezas e

enobrecer do espírito. A escrita articularia, portanto, formas complementares de visibilidade:

ela seria um mostrar-se ao outro que permitiria o conhecimento de si.

Este conhecimento é produzido na medida em que a escrita possibilita a reflexão sobre

os princípios de conduta e sua aplicação no cotidiano. Melhorar-se e elaborar-se envolvem,

portanto, um trabalho sobre o pensamento: ainda que estes processos requisitem a

materialidade de nossos atos e corpos, eles implicam uma reflexão que confere à escrita uma

função que Plutarco (apud. Foucault, 1992, p. 134) denomina como etopoiética: “(...) a

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escrita constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende toda a askesis: a saber, a

elaboração dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais de

ação (Foucault, 1992, p. 2).”

Para o propósito deste trabalho focalizamos duas modalidades de escrita de si dos

estoicos. Os hypomnemata, que implicam a construção e a revisitação de cadernos de notas

como exercício capaz de auxiliar os homens a aperfeiçoar o seu modo de vida. E a

correspondência, especialmente a de direção espiritual, como as cartas de Sêneca a Lucílio,

que incluiu o relato detalhado do cotidiano a outrem, misturando aconselhamento, amizade,

atenção a si e reflexão sobre os valores sociais na busca pela elevação espiritual.

2.1. Os hypomnemata

Os hypomnemata são cadernos de memórias que inscrevem um tipo especial de relação

a si: a elaboração da individualidade a partir da reflexão suscitada pela escrita e leitura de

registros dispersos e heterogêneos do lido, ouvido, ensinado e pensado – trechos de obras,

reflexões, experiências vividas, conversas testemunhadas etc., vindos de diferentes tempos e

espaços. Como demarca Foucault (Ibidem, p. 137-8), estes compêndios, que também podiam

assumir a forma de correspondências enviadas a outrem, instrumentalizavam os objetivos de

voltar-se a si e elaborar-se em uma cultura chancelada pelo valor da tradição e pela

recorrência ao já estabelecido.

Recorria-se aos hypomnemata em momentos de dificuldade, buscando aconselhamento,

ou em momentos de reflexão, para realimentar a escrita e a meditação. A relação a si

implicada nesta atividade de escrita e leitura consistia em confrontar-se com a autoridade do

já dito, construindo para si terra firme – ao revisitar a tradição, o sujeito construía parâmetros

de conduta próprios, que orientariam seu posicionamento diante da vida e suas ações futuras.

Destacaremos alguns aspectos fundamentais desta prática: a relação que ela propõe com o

tempo; o tipo de memória que pretende construir; a relação entre interioridade e exterioridade

que propõe e a noção de verdade que articula.

Em primeiro lugar, falemos sobre o conteúdo dos hypomnemata: eles não se restringem

às narrativas de si, como o diário íntimo, mas comportam o registro de exterioridades que

constituiriam uma espécie de memória útil – seu conteúdo não deveria se prestar somente à

recordação, mas munir os indivíduos de um compêndio que estivesse sempre à mão,

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ajudando a guiar a ação presente. Eles auxiliariam em momentos difíceis ou em tarefas como

lidar com os defeitos da própria personalidade.

Não se trata, portanto, de buscar a purificação através da confissão, ou de explicitar

aquilo que se desconhece através do verbo. O conteúdo dos hypomnemata é um passado útil,

disperso e heterogêneo, revisitado em uma postura firme de negar o atropelo do futuro sobre

o presente e produzir um espaço de interlocução entre reflexão, experiência e subjetividade.

Estamos, portanto, diante de um tipo especial de memória e de relação com o tempo, do qual

podemos deduzir outro aspecto importante para este trabalho: a relação entre exterioridade e

interioridade presente nestas práticas.

Se a escrita e leitura dos hypomnemata subsidia processos de subjetivação, eles se dão

através da construção deste espaço em que destacaríamos, dentre os encontros da vida,

aqueles que devem fazer parte de nós. Os hypomnematas seriam, portanto, o lugar onde

negociaríamos os limites entre o que passa e o que deve permanecer, onde podem se

dissolver os limites entre exterioridade e interioridade. O que se destaca é a proposta de um

voltar-se a si que depende do outro – que figura, através dos discursos heterogêneos

recolhidos, como guia ou exemplo.

Por fim, da heterogeneidade dos hypomnemata decorre seu caráter fragmentário, que

articula um conceito de verdade particular: local e com valor circunstancial de uso (Ibidem,

p. 141). Os hypomnemata são desprovidos, portanto, da coesão que se depreende da

totalidade de uma obra. Eles promovem o encontro entre a autoridade do tradicional e a

singularidade das circunstâncias registradas. E a possibilidade de síntese entre esses

elementos não se dá pela coesão dos discursos ali reunidos em um único argumento, mas sim

como processo de subjetivação – como transformação daquele que escreve, relê e reflete. A

escrita é vista, assim, como um processo assimilador dos recortes que acabam por ficar,

finalmente, gravados na alma.

2.2. A correspondência

As correspondências, por seu turno, figuram entre as primeiras formas históricas da

narrativa de si (Ibidem, p. 152). Escritas como manifestação de amizade, elas veiculavam a

outrem notícias sobre a própria vida – atividades cotidianas, escolhas, notícias sobre a saúde,

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alegrias e infortúnios. Como instrumento para direção espiritual, elas eram escritas para

emitir conselhos, opiniões e mesmo críticas a alguém próximo. Foucault (Ibidem, p. 153)

destaca que alguns temas teriam sido, entre os estoicos, caros ao estilo epistolar, dentre eles a

relação com o corpo e com a alma.

A correspondência aproxima a escrita para o outro e a elaboração de si – ela é um

fazer-se presente a si que pressupõe o olhar do outro. Assim como os hypomnemata – escritos

para si – podem ser enviados a outrem para auxiliá-los em momentos específicos, as missivas

– escritas para o outro – encerram um trabalho sobre aquele que as escreve. Ao emitir um

aconselhamento, o indivíduo se prepara para enfrentar situação semelhante no futuro. E como

escrever para alguém supõe ler o que se escreve, as missivas implicam um espaço de

introspecção – “mas há que entender esta menos como uma decifração de si por si mesmo do que

como uma abertura de si mesmo que se dá ao outro” (Ibidem, p. 152). Além disso, a

correspondência, diferente do hypomnemata, confere, para o destinatário, um rosto ao escritor

– ela uma objetivação da alma daquele que se mostra e se interroga enquanto escreve.

É particularmente importante para este trabalho atentar para os temas dos quais se

ocupou a correspondência na cultura de si dos estoicos. Elas eram usadas não só para veicular

notícias sobre a própria saúde, mas para fornecer descrições detalhadas dos problemas e das

sensações corpóreas experimentadas. Além disso, elas eram uma forma de acompanhar o

cotidiano: elas continham relatos de dias comuns, justo na medida do que eles têm de igual a

todos os outros, “atestando assim, não a relevância de uma atividade, mas a qualidade de um

modo de ser” (Ibidem, p. 155).

É neste sentido que a narrativa a outrem do dia decorrido mantém relação com uma

outra prática: "passar em revista o seu dia" (Ibidem, p. 156). Esta prática, que originalmente

não tomava a forma de um texto escrito, consiste em um exame de consciência que se faz à

noite, vinculado à memorização. Por meio dele faz-se uma espécie de controle administrativo

que implica mensurar as atividades realizadas e os possíveis fracassos. A finalidade é reativar

os princípios de conduta e corrigir, no futuro, sua aplicação. Ao refletir sobre o dia decorrido,

memoriza-se "as regras de comportamento que é preciso ter sempre presentes no espírito”

(Ibidem, p. 157).

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3. Auto-monitoramento e delegação

Levantei-me às 6h10min depois de ir dormir à 0h45 min. Fui despertado uma vez

durante a noite. Minha frequência cardíaca foi de 61 batimentos por minuto – minha

pressão arterial, 12/7. Pratiquei 0 minutos de exercícios físicos ontem, então, minha

frequência cardíaca máxima durante a prática de exercícios não foi calculada. Ingeri

cerca de 600 miligramas de cafeína, zero de álcool. E a minha pontuação no Índice

de Narcisismo da Personalidade, ou o NPI-16, é um tranquilizador 0.31.

Gary Wolf, The Quantified Self Movement.

O meu dia de hoje pertence-me, ninguém me roubou um bocadinho que fosse: todo

ele foi dividido entre o leito e a leitura. Os exercícios físicos ocuparam uma parcela

mínima (...). Depois da corrida, que foi mais estafadeira que o exercício, meti-me na

água fria, nome que em minha casa se dá à água morna (...). A seguir do banho, um

pouco de pão seco, uma ligeira refeição, mesmo em pé, daquelas que não obrigam a

ir lavar as mãos. Durmo muito pouco. Tu conheces o meu hábito: basta um breve

sono para repousar (...). Vou dizer-te agora em que problema ocupei o meu espírito.

Sêneca, Cartas a Lucílio.

Estas falas sintetizam elementos importantes para a comparação entre as formas

contemporâneas de auto-monitoramento e as práticas de si dos estoicos. Na primeira, Gary

Wolf, porta-voz dos Quantified Selves, apresenta o seu dia sob a perspectiva dos indicadores

que monitora. Na segunda, Sêneca cumpre a promessa de descrever com minúcia o seu dia a

Lucílio, e justifica ser esta prática da maior utilidade: observar-se com atenção e avaliar com

cuidado cada um dos seus dias impede-nos de deixar crescer nossos vícios. Pensar no que

vamos fazer é tão importante quanto pensar no que fizemos, pois o futuro depende do

passado (Sêneca, 1991, p. 369).

Temos, portanto, elementos comuns que nos permitem colocar estas práticas em

diálogo. O primeiro deles é a crença na atenção a si, que para os estoicos se corporificava na

prática do exame e escrita do dia, e que para os QS’s se dá através da medição de conjuntos

de indicadores. O segundo é o objetivo de aperfeiçoar-se, que aparece como motivador tanto

para escrita dos hypomnemata e das correspondências quanto para as práticas

contemporâneas de auto-monitoramento. E o terceiro elemento é que essas três formas de

atenção a si encerram preocupações de ordem prática: elas são meios de instrumentalizar o

aperfeiçoamento de si em uma prática que deve ter o potencial de retornar sobre a ação

concreta e a vida cotidiana.

Destes elementos derivam também grandes diferenças. Em primeiro lugar, vemos

destoar as concepções de boa vida e seus esquemas morais correlatos: enquanto para Sêneca

a meditação, e não os exercícios físicos, devem ocupar a maior parte do dia, a atenção ao

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corpo assume, na analítica dos QS’s, papel central. Além disso, enquanto acompanhar o

cotidiano e os dias no que eles têm de mais comum era, entre os estoicos, uma forma de não

desviar o foco de si, entre os QS’s, a proposta é gerar o “auto-conhecimento através dos

números”. Neste caso, o eu está inscrito e disperso em indicadores quantificáveis da boa

saúde, da boa vida, da boa forma. Na palavras de Kelly (2007, online, grifo nosso):

Muitos procuram este auto-conhecimento e nós reconhecemos todos os caminhos

para atingi-lo. No entanto, o caminho não-trilhado que escolhemos explorar aqui é

um caminho racional: se algo não pode ser medido, não pode ser melhorado. Então

estamos em uma busca por coletar a maior quantidade possível de ferramentas que

irão nos apoiar na medição quantificável de nós mesmos.

Disto decorre uma diferença essencial quanto ao tipo de inscrição que acompanha cada

uma dessas práticas. Entre os QS’s, o registro assume caráter semi-automatizado tanto no

âmbito do auto-monitoramento quanto no da análise do que se coleta: não se trata

simplesmente de tomar nota de conteúdos e acontecimentos para revisitá-los ou de escrever a

outrem reflexões livres. Trata-se, antes, da coleta sistemática de indicadores que possam ser

transformados em dados, analisados no curso do tempo e abordados com métodos ditos

objetivos. Isso é verdadeiro especialmente para o caso do auto-monitoramento centrado em

metas. Na imagem abaixo, vemos um painel para gerenciamento da produtividade, gastos

diários etc. (fig. 2). O usuário informa seu desempenho e seus objetivos, e o sistema analisa e

projeta a progressão destes dados (fig. 3).

FIGURA 2 – Painel da ferramenta 42Goals16

com metas definidas pelo usuário.

16

http://www.42goals.com/

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FIGURA 3 – Perfil público e gráficos de metas na ferramenta 42Goals.

Os QS’s buscam parâmetros quantitativos mesmo para analisar aspectos que não são

imediatamente quantificáveis. O monitoramento do humor é um bom exemplo. Vários

aplicativos vêm utilizando um modelo parecido para tanto: disparar mensagens randômicas

aos usuários pedindo que avaliem, em uma escala, como se sentem no momento. As

respostas, projetadas no curso do tempo, podem ser posteriormente analisadas, impedindo

que os usuários respondam de maneira tendenciosa uma questão que, segundo J. Cohen,

criador do aplicativo Expereal17

, não poderia ser verdadeiramente respondida somente através

da análise subjetiva: “como, afinal, está minha vida hoje em comparação ao passado?”.

Esta crença de que não devemos confiar em nossas impressões e em nossa memória é

uma das premissas da forma de fazer-se presente a si no projeto dos QS’s. Relatando o

monitoramento da atividade física, L. Eaton afirma: “Sim, eu posso me lembrar, mas muitas

vezes, eu tendo a superestimar ou subestimar as coisas. Com o Fitbit, eu sei se estou

mentindo ou não”18

. Este grupo adota, assim, uma forma particular de fazer frente aos

enganos e mistérios tanto da consciência quanto do inconsciente: delegar a dispositivos

17

http://expereal.com/ 18

http://byanyothernerd.blogspot.com.br/2012/06/1-year-later-of-fitbits-and-vibrams.html

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tecnológicos a resolução do enigma do eu, para que mostrem com evidências numéricas e

formas visuais o que temos feito de nossas vidas. Como explica Wolf (online):

Podem nossos dispositivos nos conhecer melhor que nós mesmos? Parece óbvio que

isso seja verdadeiro. O auto-conhecimento humano é infestado por todos os tipos de

limites: parcialidade, erros de amostragem, falhas de memória e falta de poder de

processamento suficiente para reconhecer padrões complexos. Máquinas não

sofrem dessas três primeiras limitações, e a última está sob o ataque da lei de

Moore.19

Isso implica que a avaliação subjetiva – necessária, por exemplo, no caso do humor –

seja substituída, sempre que possível, por sensores. Assim, o estresse passa a ser medido não

pela avaliação e relato da sensações, mas por um aparelho que identifica o nível de

condutividade da pele, como o Basis20

. Caso semelhante se passa para o sono – a sensação de

descanso advinda de uma noite bem dormida não basta para garantir uma boa avaliação, que

depende, então, de aparelhos que meçam a frequência das ondas cerebrais durante o sono,

segundo padrões chancelados cientificamente, mas passíveis de personalização: “A ciência

revela os fatores que mais afetam o sono, mas existe uma arte de descobrir o que funciona

para você... e a Zeologia é onde esses dois elementos se encontram.”21

O caminho dos números representa, neste sentido, um relativo abandono da

introspecção e da reflexão como via privilegiada para o auto-conhecimento. Num mesmo

movimento, a palavra e a narrativa perdem sua centralidade na decifração do eu, tarefa agora

delegada ao dispositivo. Ao falar sobre seu aplicativo de monitoramento do humor, por

exemplo, Cohen comenta que a simplicidade é a chave deste modelo. E conclui: diante da

pergunta „como está sua vida no momento?‟, “se o usuário tem que pensar sobre isso, ele está

pensando demais”22

. Perspectiva semelhante é assumida pelo aplicativo Happiness23

, que

promete ser um novo tipo de diário que convida os usuários a “irem além de seu diálogo

interior e começarem a identificar padrões”. A ferramenta permite a escrita de notas livres

sobre os motivos dos sentimentos registrados, que podem ser organizados por tags e exibidos

em uma tabela que os associa visualmente às motivações (fig. 4).

19

http://quantifiedself.com/2008/03/reality-mining-at-mit/> 20

http://www.mybasis.com/ 21

http://blog.myzeo.com/about/ 22

http://quantifiedself.com/2012/10/toolmaker-talk-jonathan-cohen-expereal/ 23

http://goodtohear.co.uk/happiness

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FIGURA 4 – Funcionamento do aplicativo Happiness, mostrando a captura do nível de felicidade, a escrita de

notas e a tabela de análise.

O caráter instrumental deste projeto de aperfeiçoamento de si reflete, em certa medida,

os objetivos perseguidos por estes indivíduos. Enquanto os estoicos perseguiam a virtude

enquanto bem supremo, do qual deveriam derivar todas as diretrizes da conduta, aqui, os

ideais de performance são locais e gerenciados caso a caso. Eles precisam ser tangíveis o

suficiente para serem medidos; divididos em etapas pequenas o suficiente para que a

motivação de alcançá-los não desapareça. A instrumentalização do projeto contemporâneo do

auto-monitoramento também se manifesta no fato de que ele focaliza o aqui e agora, a

transformação possível e imediata, a realização advinda da capacidade de resolver os próprios

problemas. Este é um projeto dito ao alcance de todos, ao contrário da desumana figura do

homem integral, que para Sêneca, era em tese inatingível.

Daí o desejo de dotar essas ferramentas de facilitadores da análise e camadas de

aconselhamento, bem-vindos na medida em que são recebidos como verdade especializada

sobre como agir diante das incertezas acerca dos limites entre os comportamentos desejáveis,

condenáveis e saudáveis. Este aconselhamento é marcado por seu pragmatismo. Assim, o

Jawbone Up24

(fig. 5) vibra para sinalizar ao usuário sua falta de atividade física e o Zeo25

oferece dicas para melhorar a qualidade do sono, que incluem, inclusive “hackeá-lo”:

24

https://jawbone.com/up 25

http://www.myzeo.com/sleep/knowledge-center/getting-more-deep-rem

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conduzir experimentos para descobrir o que pode funcionar para você. Este conhecimento,

que vem sob a forma de um conselho, responde a uma motivação recorrente para se auto-

monitorar, exposta por L. Eaten em seu blog: “(...) Isso me permite tomar decisões mais

informadas. Como mais batatas fritas, uma cenoura ou devo, no mínimo, sair para uma

caminhada?”26

.

FIGURA 5 – Jawbone Up, uma pulseira equipada com sensores.

A dimensão prática também era requisitada pela escrita dos estoicos, mas em sentidos

de todo outros. Os hypomnemata deveriam estar sempre à mão, para serem consultados

diante da dúvida e orientar o presente. Já Sêneca (1991), em suas cartas a Lucílio, nos chama

a atenção por sua determinação em dar aos homens orientações para todos os momentos de

suas vidas. Suas cartas não se limitam a expor os princípios do estoicismo – elas são um

empreendimento de direção espiritual e meditação sobre a existência calcados em exemplos

da vida cotidiana. Sêneca admite, portanto, o valor da parenética – a parte da filosofia que

cuidaria do aconselhamento sobre questões específicas da vida e traz, através das máximas,

sínteses facilmente memorizáveis e com efeitos sobre a direção da conduta.

O projeto do auto-monitoramento estabelece, no entanto, uma relação consigo que

estabelece um outro lugar para a razão. Ela não está no encontro consigo, mas nos números,

os quais são tão mais valiosos no que revelam quanto forem obtidos por vias extra-

conscientes. No lugar da informação produzida e registrada conscientemente, temos um

corpo que produz, a todo momento, dados que escapam a nossa atenção e memória: coloque

um dispositivo em seu braço e saiba quantos passos você deu, quantas escadas você subiu,

quantas horas de sono leve ou profundo você dormiu. Assim, tudo se passa como se a

tecnologia produzisse uma forma de presença a si que seria, entretanto, alcançada através da

mediação técnica – que, longe da neutralidade que comumente lhe é atribuída, implica

26

http://byanyothernerd.blogspot.com.br/2012/06/1-year-later-of-fitbits-and-vibrams.html

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cálculos e apropriações do discurso médico e científico. Diferentemente da escrita de si dos

estoicos, em que a prática mesma de escrever retornava sobre a reflexão e a ação, implicando

num só movimento a atenção ao outro e o trabalho sobre si, a modalidade de registro e

monitoramento dos QS’s faz da delegação ao dispositivo técnico a via régia do contato

consigo. Um outro diálogo entre interioridade e exterioridade se produz, bem como uma

forma específica de relação com o conhecimento especializado.

Esta relação fica evidente no grupo das práticas de auto-experimentação. Seus relatos

são fragmentos de uma individualidade que precisa ser monitorada porque se tornou

problemática. A medicina calcada nos fatores de risco e as novas tecnologias biomédicas

deslocaram os limites entre saúde e doença, fazendo do gerenciamento das condições

crônicas “responsabilidades individuais morais a serem endereçadas através da ampliação do

acesso ao conhecimento, auto-vigilância, prevenção, medição/tratamento de risco e consumo

de serviços e bens de auto-ajuda/biomédicos apropriados” (Clarke et al, 2003, p. 2). A busca

por este conhecimento está presente nos QS’s que se dispõem, por exemplo, a realizar testes

genéticos para decifrar seu genoma e participar de discussões sobre o estabelecimento das

relações entre genótipo e fenótipo, que ainda são matéria de controvérsias no campo da

medicina.

Apesar disso [das incertezas sobre o que podem revelar estas informações, grifo

nosso], estou ávido para ter meus genes sequenciados primeiramente (...) para

ampliar minha alfabetização genética. Trata-se de uma nova linguagem, sintaxe, e

visão de mundo, e eu quero ser proficiente nela. (Kelly, 2007: online).

Estamos, portanto, diante de uma forma de auto-conhecimento que reverbera, de modo

próprio, discursos da biomedicina contemporânea. Existe aqui, como nos hypomnemata, a

produção de uma memória útil a ser revisitada mas que se articula não só nos limites entre

interioridade e exterioridade, mas entre interioridade psicológica e biológica, entre o que o eu

pode conhecer, registrar, lembrar, e o que o dispositivo técnico pode monitorar, analisar e

revelar. E ainda que a abertura de si ao outro – que figura como audiência com quem se firma

o compromisso de melhorar-se ou que integra comunidades para experimentações coletivas e

troca de conhecimento – tenha papel primordial no QS, a decifração de si através da

delegação técnico-científica aparece no centro dos projetos de felicidade, otimização da

existência e ampliação da vida destes indivíduos. Projetos que talvez sejam, como suspeitava

Sêneca no texto que figura na epígrafe deste trabalho, incompatíveis.

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