press review page - ulisboa · 2019-06-21 · marcenaria, o que valeu um bocado ... e foi o que eu...
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Nasceu em é«ora. Foi aprendiz de carpinteiro e ajudante de mercearia. A escola
não o conquistou, mas os professores certos fizeram a diferença. Foi essa lição que
levou para a vkla. Tirou Biologia, fez um doutoramento em Sedimentoiogja na Sor-
bonne, na Paris dos anos 60, onde descobriu o cinema livre e as greves. No final dos
anos 80, a batalha para salvar a jazida de pegadas de dinossauros de Pego Longo,
em Carenque, tornou-o um rosto conhecido. Aos 87 anos, a luta continua.
Galopim de Carvalho."A escola está aamestrar crianças parapassarem nos exames"
Aos 87 anos, Galopimde Carvalho fala da paixãopelas rochas e pelo ensinoe da batalha que lhe valeu
a alcunha de avô dosdinossauros. As pegadas deCarenque que o pais ajudoua salvar estão ao abandono.
MARTA F. REIS (Texto)mana. [email protected] GONÇALVES (Fotografia)brune, [email protected]
Primeiro foi "pai" dos dinossauros, depois
passaram a chamar-lhe avô. Galopim de
Carvalho sorri à alcunha e à passagemdo tempo, que não o atormenta. Não foi
ele quem descobriu o trilho com 132metros numa pedreira desativada de
Carenque, mas dois alunos, Carlos Coke
e Paulo Branquinho. Tomaram-se umacausa: bateu-se - bateram-se - para quea construção da CREL, que viria a ser
inaugurada em 1995, não arrasasse essa
porta aberta para o passado. Em abriljuntou-se a um cordão humano contrao estado de abandono a que foram vota-das as pegadas que o país ajudou a sal-
var. Aos 87 anos, não esconde que é dos
sonhos que mais gostava de ver concre-tizados: poder ver nascer ali um espaçode interpretação, o museu que nuncasaiu do papel. Curioso desde pequeno,na escola aprendeu sobretudo que tipode professor não queria ser. Hoje vê desa-
lento e frustração numa classe maltra-tada e currículos estereotipados que anu-lam o gosto por saber e ensinar. Recebe-
nos na sua casa na Lapa, em Lisboa,rodeado de livros, gravuras, pedras, dinos-
sauros e outros bichos de antigamente,ao lado da mulher, Isabel, com quemcomeçou a namorar no Liceu de Évora.
São 62 anos de casamento e o essencialé fazer todos os dias o balanço, diz. Nun-ca foi de dormir muito. Hoje deita-secedo e acorda pelas quatro da manhã.Dedica-se à escrita, livros, bloçues, aos
seus seguidores no Facebook. É de con-tar histórias que gosta - são a melhorforma de aprender.
A história de Galopim de Carvalho
começa em Évora. Nasce em 1931. Eraum país muito diferente?Muito. Vou publicar um livro que se cha-
ma Évora, Anos 30 e 40, deve sair no
próximo ano. Mostra bem o que era a
vida. Lembro-me perfeitamente da Guer-
ra Civil de Espanha. Havia uma estru-tura no tempo do Estado Novo que eraa Legião Portuguesa. Combateram emEspanha ao lado do Franco. Fomos vê-
los chegar, vieram a pé de Badajoz. Tinhaoito anos quando a guerra acabou. Foram
tempos terríveis. Morreram muitos,outros foram fuzilados. Os anarquistase comunistas portugueses iam comba-ter ao lado dos republicanos, os fascis-
tas e falangjstas estavam ao lado de Fran-
co. Quando os republicanos perderam,muitos foram fuzilados em Badajoz. Mar-cou-nos muito.O que o leva a escrever esse livrotantos anos depois?Tinha muitos elementos, muitos teste-munhos, muitas vivências. No tempo da
u Guerra Mundial vivemos o raciona-mento. Tínhamos senhas para comprararroz, açúcar, manteiga. Só não era racio-nado o feijão, a batata, o que era produ-zido nas aldeias.Havia fome?Não houve, mas havia filas enormes. Os
alentejanos iam buscar muitos produ-tos do campo, havia esse engenho.Era melhor do que na cidade.
Sim, sempre. As populações do camposuportaram sempre melhor as crises do
que a cidade. Tinham as hortas, tinhamas galinhas, tinham um porco.Que ambições tinha um rapaz quenascia em Évora nesse tempo?Em criança queria ser carpinteiro.
"Batia-se muito na escola.Alguns professores eramautênticos criminosos,hoje seriam condenados"
"Ia no caminho para a escolaprimária com dores de barriga,com medo"
"O afeto na relação entreprofessor e aluno é fundamental"
Chegou a ser aprendiz de carpinteiro ede sapateiro.Aprendi, a brincar, esse e outros ofícios.
No tempo da guerra dava ajuda numamarcenaria, o que valeu um bocado à
minha família nessa questão do racio-namento, havia sempre um bocado de
açúcar.Ao mesmo tempo andava na escola?Só entrei para a escola na terceira clas-
se. Era muito pequenino e a minha mãedizia que eu era muito frágil. Na escola
batia-se muito nas crianças, eram autên-
ticos criminosos. Alguns professores des-
se tempo, hoje, seriam condenados.A minha mãe não me deixa logo ir, masainda fui a tempo de apanhar muitasreguadas.Os seus pais tinham estudado?
0 meu pai tinha feito o quinto ano do
liceu, e a minha mãe a quarta classe. Eracostureira. O meu pai era empregado deescritório.Não gostou desses tempos de escola:disse uma vez que foi uma prisão.Não gostei por isso, porque as criançaseram maltratadas na escola. Não era pornos portarmos mal, era por errar, pornão saber resolver um problema, pornão saber a tabuada. Mais de três errosnum ditado era uma reguada. Se tives-se nove erros, eram seis reguadas.Fazia com que tivessem ódio à escola?Ódio autêntico. Quando acabei a quartaclasse nunca mais falei ao meu profes-sor. Se ia numa rua, passava para o outrolado. Nunca mais o cumprimentei. Uma
criança de dez ou 11 anos, para tomaresta atitude, é porque está profundamen-te magoada. Depois entro para o liceu e
já não havia reguadas, já havia outrotratamento. Mas aí só gostei das disci-
plinas quando gostei dos professores.Ovando não gostava, a minha reação
era não estudar. Fuibom aluno numas dis-
ciplinas e medíocre nou-tras por causa dos pro-fessores. Os bons pro-fessores fizeram demim pessoa interessa-da nas matérias, os
maus professores desin-
teressaram-me.
Imaginava já queseria um dia maistarde professor?De maneira nenhuma.Quando fiz o quinto anodo liceu tive um profes-sor de Ciências que eraaqui de Lisboa, do Liceu
Gil Vicente. Foi substituir um professorque esteve o ano todo de baixa médica.
Pegou nuns caixotes cheios de pedrasque havia na escola e foi aí que começoutudo. Na altura havia muitas minas emPortugal, mais de cem. Tirava-se um oudois quilos de volfrâmio e vendia-se. Eraum artesanato mineiro. Havia poucosliceus, um liceu por distrito; por isso as
escolas estavam cheias de material queas minas davam. Tínhamos caixotes e
caixotes cheios de pedras.Por abrir?Sim. Esse professor chega e começa a
desembrulhar essas pedras, algumas emjornais antigos, com mais de 50 anos.Nós lavávamos as pedras debaixo da tor-neira com uma escova e ele identifica-va-as: isto é granito, isto é basalto, umapirite. Fazíamos as etiquetas com uma
letra muito bonita. Foi uma experiênciamaravilhosa. Descobri o prazer de ver o
resultado de uma obra, ao mesmo tem-
po que aprendi. Marcou-me. Quando fiz
o sétimo ano quis ir para Geologia. Está-vamos no ano de 1950. Ninguém sabia o
que era.Os seus pais não sabiam?Não, queriam que eu fosse para Biolo-
gia, para ser professor de liceu. Ser geó-
logo era insignificante. E foi o que eu fiz:
vim para Lisboa fazer Biologia. Chum-bei no primeiro ano, chumbei no segun-do, e depois a tropa chamou-me e aca-bou-se. Vou para Évora, passo dois outrês anos lá, com um bom ordenado, coma namorada que já era a minha mulher,estava nas minhas sete quintas. Estivetrês anos assim.Não foi para a guerra.Felizmente, não fui. No meu ano houve
incorporações para a índia, eu era aspi-rante e só podiam ir alferes. Quando aca-bei a tropa, volto para Lisboa. Com o meudinheiro matriculei-me então na licen-ciatura que eu queria, Geologia, e aí foi
um sucesso.
Porque gostava mais dessa naturezamorta?Nunca simpatizei com a biologia. Tinhavocação para as pedras, para os mine-rais, para os fósseis, para as rochas.A biologia, aqueles bichos, insetos, lagar-tixas... Naquela altura, a biologia era mui-
to naturalista; hoje mete bioquímica,muito protão, eletrão, proteína. Naque-le tempo eram os lagartos.Não se via tão bem como funcionava.Sim, eram os zoólogos e os botânicos.Mas foi assim que me lancei na geolo-
gia, com empenho. E entretanto casei.Conheceu onde a Isabel?Éramos colegas de liceu. Fiz o curso comtão boas classificações que, quando ter-minei, convidaram-me a ficar como assis-
tente. Acabei em julho e em outubrocomecei a trabalhar.E os pais babados...Com certeza. Ser professor era uma coi-
sa importante. Naquela altura, mesmoo professor de liceu ou o professor pri-mário eram uma entidade de grandeprestígio na cidade.Pela experiência que tinha tido emaluno, sentiu logo que tinha de ser umprofessor diferente?Sim, já ia corrigido, já sabia o que nãodevia ser um professor. E depois fui afi-nando.O que se revelou mais importante?O afeto, dar autoestima ao aluno, mes-
continua na página seguinte »
Foi professor na Faculdadede Ciências de Lisboa entre
1961 e2OOl ediretordoMuseu Nacional de História
Natural durante dez anos,até 2003
"Tratamoso tempo comuma displicênciamuito grande"
mo aos alunos mais desinteressados. Há
sempre um aluno mais desinteressado.Temos de criar situações que os levema tirar uma conclusão inteligente paraque os possamos elogiar em frente aos
colegas. Ainda hoje tenho rapazes de 70
anos que me berjam. O afeto na relaçãoprofessor-aluno é fundamental. Se hou-
ver uma relação de afeto, o aluno vai
para a escola com prazer. Aquele pro-fessor distante, austero... Tive um pro-fessor de Francês que abria a caderne-ta dos alunos. Nós éramos numeradose íamos contando à medida que ele iavirando as páginas. Eu era o nove. Quan-do via "sete, oito", começava a engolirem seco; quando passava, suspirava. Masele chegava ao fim e voltava ao princí-pio. Era sádico. Um professor assim não
conquista um aluno. No liceu não sofri
tanto, mas na escola primária ia muitas
vezes no caminho com dores de barri-
ga, com medo.Sente que a escola melhorou?Melhorou em muitos aspetos. Tenho ido
a muitas escolas, todas as semanas vou,do Minho ao Algarve. Hoje, o único pro-blema é que têm de me vir buscar, já não
me meto em comboios e táxis. Hoje, nas
escolas, domina a professora: 80% são
mulheres. E os homens estão imbuídos
naquele espírito. Há afeto, há família.Mas os professores, hoje, estão muitomaltratados. Tiraram-lhes o prestígio, a
dignidade, atentou-se contra a discipli-na com uma liberdade excessiva nas esco-
las. Confundiu-se liberdade com um libe-
ralismo, fez-se da disciplina fascista, e
em 45 anos não melhorámos. Melhorá-mos muito nas estatísticas do ensino.Democratizámos o ensino, todas as crian-
ças vão à escola, tiram o 12.° ano. Mas,no meio disto tudo, os programas são
maus e os livros também.
Porquê?Trabalham para as estatísticas, não tra-balham para a formação de cidadãos. Os
manuais do ensino, estereotipados, copiam-
se de uns anos para os outros, são umnegócio das editoras. O professor nãotem tempo para divagar, tem de cum-
prir e pronto. Não está a ensinar, está a
amestrar as crianças para responderembem num exame e poderem passar.Vê com mágoa esse ambiente.
Muita, tenho discutido muito sobre isso
com os professores.Apaixonou-se pelo ensino da geologiamuito anos antes de lhe aparecerempela frente os dinossauros.
Hoje, a geração de professores foramtodos meus alunos. E já são rapazes e
raparigas nos 60, 70 anos. Alguns já se
jubilaram. Na Universidade dos Açorestenho um que já se jubilou.Sente-se velho quando lhe chegamessas notícias?Um bocadinho, termos um aluno com74 anos...Doutorou-se na Universidade deSorbonne em 1964. Como foi a viagempara Paris?Como tinha boas classificações conseguiuma bolsa de estudo. Isto era uma his-
tória que nunca mais acabava. Mas ao
início ia para fazer o doutoramento em
Paleontologia.Então já havia um interesse emdinossauros?Não, a minha entrada no mundo dos
dinossauros é só com a batalha de Caren-
que. Tinha ido para estudar uns bichi-nhos que estão ali desenhados, briozoá-rios. Têm 11 a 20 milhões de anos. Per-mitem perceber como era Portugal nessa
altura. Ia ficar um ano em Paris e, quan-do já estava quase para me vir embora,a Shell, vendo a panóplia de portugue-ses que estavam espalhados pela Euro-
pa, foi ver quem estava a estudar umaárea que lhes interessasse e entraramem contacto comigo para ver se eu que-reria prolongar a bolsa. Acabei por fazer
o doutoramento em Sedimentologia e
esqueci-me da paleontologia. Quando
regresso, como tinha ficado com o dou-
toramento cá em aberto, cinco anos mais
tarde doutorei-me em Geologia pela Uni-versidade de Lisboa. E fiz assim a minhacarreira de professor. Em 2001 puseram-me na rua, quando fiz 70 anos.
Custou-lhe?Custou-me um bocado porque queria
continuar a trabalhar. Era diretor doMuseu Nacional de História Natural. Ain-
da fiquei dois anos depois de jubilado na
direção do museu. Mas, depois, o Con-selho de Ministros não autorizou mais.Entenderam que já era muito velho e
que tinha de dar lugar aos novos. Custa.
Fiquei na prateleira. Tinha secretáriase fui aprender a mexer no computador.Não fiquei parado. Da jubilação para cá
já publiquei 20 livros.Das histórias todas que as rochas
contam, qual a fascina mais?São tantas. A serra de Sintra é muito inte-
ressante. É uma espécie de um furúncu-lo. Temos os sedimentos recentes. Recen-
tes... [risos] Sedimentos de há 200 milhõesde anos. Formam, no caso da serra de
Sintra, talvez 3 mil metros. Mas por bai-
xo tem 35 quilómetros de crosta, rochas.
E por baixo desses 35 quilómetros, aquihá uns 80 milhões de anos, aproximada-mente, vindo lá do interior da Terra, do
núcleo quente, uma espécie de bolha de
calor bate na base desses 35 quilómetrose começa a derreter essas rochas. Vai der-retendo e vai subindo, e a serra de Sin-
tra nasce. Por baixo está o granito, a rochaderretida que solidificou. Com o tempo,a erosão desgasta. No meio da serra, hoje,vê-se o granito; dos lados, o calcário.
Mas, entretanto, a serra está paradaou não?Está temporariamente parada - tempo-rariamente, em termos geológicos. A ser-
ra foi empurrada de sul para norte.A geologia que tem sido ou que era ensi-
nada nas escolas não conta muito estashistórias. Aprende-se que o granito é
quartzo, o feldspato, a mica - isto nãodiz nada a ninguém. Quando se ensinaa geologia desta forma, as pessoas que-rem saber mais. Olhe esta experiênciaque já tenho feito nas escolas. O calcá-rio forma-se no mar com base no cálcio
que está na água, levado para o mar pelos
rios, que dissolvem as rochas. O cálciodo mar com o dióxido de carbono daatmosfera faz o calcário das conchas, dos
corais. É feito pelos organismos vivos
com base no cálcio do mar e no ar daatmosfera.Todo o calcário resultou de vida?
Isso, e aprisiona o ar do passado. Se puser-
mos o calcário em água com ácido, come-
ça a efervescência e liberta o dióxido de
carbono. Vê, nesta fotografia? O rapazpõe a cara por cima para receber as boli-nhas de ar do tempo dos dinossauros.Nunca lhe disseram: "Está a
simplificar". Aquela ideia de que a
ciência é para entendidos?
"Os professores, hoje,estão muito maltratados.
Tiraram-lhesa dignidade, atentou-se
contra a disciplina"
"As escolastrabalham para
as estatísticas,não trabalham para a
formação de cidadãos"
Os medíocres é que fazem da ciência um
bicho-de-sete-cabeças. É simples desde
que seja bem explicada. Consigo ser rigo-roso sem fugir aos conceitos. Claro quechegamos aqui a uma altura em que jánão sei dizer muito sobre o que é um ele-
trão e por aí fora.No tempo dos dinossauros, como era o
território onde é hoje Portugal?No Jurássico estávamos numa latitu-de mais baixa, no paralelo 30, tínha-mos um tempo quente e húmido comonas Caraíbas.Era por isso que havia cá muitos?Havia muito alimento, muita vegetação.Também os houve noutras zonas maisfrias, mas a grande população, como os
que temos cá, estavam numa latitudemais baixa.
Porque têm sido descobertos tantosfósseis na zona da Lourinhã?Os terrenos eram um delta, como o del-
ta do Mekong ou o delta do Ganges, zonas
de aluviões com muita argila, muito bar-
ro, onde os animais facilmente morreme ficam ali. Também os havia no Alente-
jo ou em Trás-os-Montes, mas não fica-
ram tapados no barro e desapareceramos ossos. O que estavam nos deltas, em
zonas baixas, ficavam afundados naque-las inundações e ficavam assim preser-vados, ao abrigo do oxigénio. Hoje esca-
vamos e encontramo-los.
Quando começou a trabalhar nestaárea já se sabia que havia fósseis de
dinossauros em Portugal?Há muitos anos, agora é que houve um
boom, mas há trabalhos desde o final doséc. xix. A pouco e pouco foi-se desco-
brindo. E a certa altura há um grupo de
curiosos da Lourinhã que começa a des-
cobrir muita coisa. O Horácio Mateus, a
Isabel, os pais do Otávio Mateus e do
Simão. E aí, de facto, percebe-se que aLourinhã é um ninho de dinossauros.Tem-se dado o valor suficiente a isso?
Não. Os políticos estão sempre maisinteressados nas eleições, no que dávotos. A geologia não dá votos, tem sido
um bocado um parente pobre. E se hojeos dinossauros não morrem é porquehá um conjunto de jovens que não os
deixa morrer. Muitas das investigaçõessão feitas à custa deles ou de diligên-cias feitas junto das autarquias. Nestemomento não há projetos de investiga-ção sobre dinossauros pagos pelo Minis-tério da Ciência.Antes de continuarmos nos
dinossauros, outras riquezas como
petróleo, há ou não?
Petróleo, há; se há petróleo em quanti-dade comercializável, não sabemos. Já
no século passado traziam petróleo cá
para cima, em 1940, frascos de petróleotirados ali na zona deTorres Vedras. Masforam sempre quantidades que não dava
para explorar. Mas ainda bem que não:
um país com petróleo é um país comfome.Como vê o interesse crescente no lítlo?Parece-me importante. Há uns funda-mentalismos contra o lírio, quanto a mim,inexplicáveis. Que eu saiba, o lítio não
provoca problemas de poluição para asaúde. Explorar lítio, granito ou calcá-rio é a mesma coisa. Explorar petróleojá é diferente. O potencial do lítio é enor-me nesta era que se adivinha, dos auto-móveis movimentados a eletricidade.O lítio é o metal mais utilizado na fabri-
cação das pilhas. São pilhas porque são
umas placazinhas umas em cima das
outras e há uns processos de transferên-cia de energia que geram a eletricidade.Essas placas são de lítio. Não há muitos
países com tanto lítio como nós.
"Os medíocres é quefazem da ciência um
, bicho-de-sete-cabeças.É simples desde que seja
bem explicada"
"Há fundamentalismoscontra o lítio, quanto a
mim, inexplicáveis. Nãohá muitos países comtanto lítio como nós"
Porque é que o temos?Aconteceu assim, pela forma como a ter-ra evoluiu. Houve zonas em que se con-
centrou mais lítio, outras mais cobre,mais volfrãmio... Nós temos muito gra-nito e bom. Muito mármore. Temos o
sienito no Algarve. Temos a pirite e mine-rais de cobre na Neves-Corvo mas, estu-
pidamente, vendemos as minas aos cana-
dianos. Estão a dar lucro e o dinheiro
está a ir todo para o Canadá. E agoraacho que estão a fazer a mesma asnei-
ra: estão a vender a exploração de lítioa uma empresa qualquer.Falou da eletrificação. A preocupaçãoem torno das alterações climáticas,imagino que não fizesse parte da
equação quando começou a trabalhar.Não. Começou a ter-se a perceção do ris-
co, de quanto a temperatura pode aumen-tar até ao final do século. Também nãose falava no plástico e hoje sabemos o
impacto que tem a poluição. A gente pen-sava que a Terra era uma coisa imensa.Eram mais othnistas.Sim. Até porque hoje conseguimos vera Terra; quando comecei a estudar, era
algo inabarcável. Não pensámos num
planeta finito e, hoje, tudo isto se vê. Nãosó se vê mas sente-se. A oriente dos Aço-res nota-se a poluição europeia, a oci-dente a poluição americana, vê-se isso
no lixo que se apanha no mar, nas emba-
lagens, nos metais pesados.Indo então aos tempos em que se
tornou primeiro pai, depois avô dosdinossauros: que descoberta foi essa
que o tornou conhecido do pais e o fez
desdobrar-se cm intervenções, idas aescolas?
Aconteceu quando, em 1986, dois alunosmeus andavam ali em Carenque no fun-do de uma pedreira. As pedreiras sãolocais ideais para os geólogos porque asrochas estão à vista, não há tantas árvo-res, ervas. Descobriram o primeiro tri-lho de pegadas de dinossauros do país.Eu era diretor do museu e encabecei aluta para salvar essa jazida. la-se cons-truir a CREL, ia passar por cima Foi umaluta tremenda, mas conseguimos.Há muitos trilhos desses?
0 de Carenque é importante porque é omaior trilho dos dinossauros mais moder-
nos. O da serra de Aire é o mais antigodos saurópodes. Pensava-se que os sau-
rópodes tinham aparecido há 150 milhõesde anos e vamos encontrá-los lá há 175
milhões, 25 milhões de anos antes.Em Carenque, que dinossauros eram?Só sabemos que era um bípede. As pega-das têm 60 a 70 centímetros de diâme-tro. A pedreira foi aberta para explorara pedra;, quando chegaram àquela cama-da, já não interessava e pararam os tra-
balhos. Foi essa a sorte. Os rapazes viramuma pegada e deram com o trilho. Esta-
va sujo, tinha erva, limpou-se tudo. Hojeestá tudo tapado, ao abandono.Percebeu logo que ia ser uma grandebatalha?Foi muito difícil. Cavaco era intransigen-te, não queria de maneira nenhuma abriros cordões à bolsa para se abrirem ostúneis por baixo da pedreira e preservaros trilhos. Mas acabaram por ser feitos.O que foi determinante?
Conseguimos pôr o país inteiro a favordas pegadas, foi isso.
Chegou a haver ameaças?Isso não. Houve atitudes menos corre-tas de alguns ministros, mas outros forammuito favoráveis. A Teresa Patrício Gou-veia [ministra do Ambiente e Recursos
Naturais] ajudou muito, o Ferreira do
Amaral, que era ministro das Obras Públi-
cas, também. Mas levei muita pancadado Miguel Sousa Tavares, dizia que eu
estava a gastar o dinheiro dos contribuin-tes para fazer uma coisa que não teminteresse nenhum, só para ensinar as
criancinhas. Sabe muito, é um homeminteligente, mas é desagradável.Voltaram a fazer um cordão humano
este ano para salvar as pegadas, umainiciativa de alunos da Escala BásicaProfessor Galopim de Carvalho. Senteo quê? Desilusão?A CREL foi inaugurada em 1995, salva-ram-se as pegadas, foram limpas, pôs-seuma tela por cima e, passados estes anos
todos, aquilo está tudo ao abandono.O arquiteto que desenhou o túnel fez de
um lado uma cabeça, o dinossauro vis-
to de frente, e na outra o dinossauro vis-
to de trás. A maior parte das pessoas nem
repara nisso. Na Alemanha visitei umparque com meia dúzia de pegadas quenão têm o interesse destas e fizeram umaestrutura imensa, parecida agora comque o se fez na Lourinhã. Mas nem esse
parque foi uma iniciativa dos Governos,foi uma iniciativa do Otávio Mateus. Nãoestá ali dinheiro do Estado. E rende.É uma área que o país tem negligencia-do. As pegadas da serra d'Aire estão a
estragar-se todas, é uma vergonha. Masvamos lá convencer os políticos...Foi a maior batalha que travou na suavida?
Foi, e foi vitoriosa naquela altura. Nun-ca sonhei que depois das pegadas salvas
não fossem transformadas num local de
visita. Fez-se o projeto do centro de inter-
pretação, mas nunca houve dinheiro.
Quanto se gastou para salvar as
pegadas?Naquela altura, um milhão e 600 milcontos, seis milhões de euros. Fazer o
resto em cima era uns trocos, mas nun-ca se fez. Mas não se fez com o Cavaco,Sócrates, com ninguém.Revela o quê, na sua opinião?
"Conseguimos pôro país inteiro a favor
das pegadas.Hoje está tudo tapado,
ao abandono"
"O José Guilhermeandou a namorar-me
para fazer prédios comvista para as pegadas. Aomenos estariam acessíveis"
A imaturidade de um país que não está
preparado para ser democrático. Li hojeuma frase de Guerra Junqueira: falavade um povo imbecilizado, políticos semideias, que não sabem ser políticos. Reu-nimos não sei quantas mil assinaturas
para o assunto ser tratado na Assembleiada República. Passaram a chamar-me o
pai dos dinossauros, depois passei a seravô. [risos]O Parque Jurássico de Steven
Spielberg mudou o interesse na
paleontologia?Sim, mas cá acho que este movimento e
o barulho que fizemos ajudou muito.O filme apareceu dois ou três anos depois.Passou a haver projetos. Fez-se uma gran-de exposição no Museu de História Natu-
ral, na Rua da Escola Politécnica. Pude-
mos trazer especialistas estrangeiros,dos EUA, de França, do Canadá, da Mon-
gólia, da China. Isso movimentou mui-to dinheiro nessa altura. Depois passoutudo. O Socrates dizia sempre, "o profes-sor manda, o professor não pede, man-da". Nunca me ligou nada.Gostava de ainda ver concretizadoesse projeto?Gostava muito. Fizemos o cordão de
apoio, vou lutando. Falei com todos os
presidentes que passaram pela Câma-ra de Sintra.O terreno é da câmara?É do José Guilherme, o construtor. Nun-ca quis vender, o Estado também não
quis. Andou a namorar-me muito tem-po porque queria que eu conseguisseautorização para fazer prédios em tor-no das pegadas. Está a ver o que era:uns prédios com vista para as pegadas.Então, nessa altura, fazia tudo. Olhe, foi
pena, ao menos estavam acessíveis às
pessoas.Não há uma cultura geológica em Por-
tugal. O que é que a geologia lhe diz?Nada. Tenho pena de não me poder des-dobrar pelas escolas todas. Escrevo noFacebook e nunca senti tanto interes-se como hoje pelas histórias. Escreve-
ram-me hoje aqui: ensinam de uma for-ma natural: além disso, são quase poe-sia.
Eé?De certa maneira sim. As histórias são
bonitas. Como se forma o granito, o cal-
cário, o volfrâmio, que utilidades ao lon-
go do tempo se foram buscar à geolo-gia, porque é que houve glaciações hámilhões de anos. É a história do plane-ta. Claro que, quando vou às escolas,todos querem saber de dinossauros. Às
vezes tenho de dizer "já chega".Como desvia a atenção?Já pensou como nasce uma montanha?Lá em casa, na sua cama, ponha umlençol, outro lençol, um cobertor, outrocobertor, faça uma pilha de roupa comvárias camadas, como as camadas desedimentos do fundo do mar. Se pegarna roupa da cama e fechar os braços,vai ficar com dobras para cima e dobras
para baixo. As dobras para cima são as
montanhas, as dobras para baixo sãoas raízes das montanhas. Vão aquecer,vão derreter, formam-se magmas, comtendência a subir, forma-se o granito.Porque é que temos tanto granito? Por-
que tivemos uma cadeia de montanhas.Aconteceu o que está agora a aconte-cer nos Alpes, nos Himalaias.Como vamos ser no futuro?Há indícios de que vai fechar o Atlân-tico. Abriu, estávamos colados ao Cana-dá. No centro há uma racha de onde sai
o magma, o magma que fez alargar ofundo do oceano. Daqui a uns 35 milhõesde anos, aproximadamente, estaremos
já muito próximos dos Açores. E daquia uns 180 milhões de anos temos o Mar-quês de Pombal a abraçar a Estátua daLiberdade, [risos]
Ainda cá vamos andar?Não acredito. A Terra vai continuar,mas esta civilização vai desaparecer.Existirão novas espécies depois doHomo sapiens.Com certeza. Mas estamos a criar insus-
tentabilidade. Mesmo que tenhamosuma espécie mais evoluída do que a
nossa, ela vai continuar a precisar de
ar, de água, de bens que a natureza nosdá e que não são inesgotáveis. O Sapienstem 300 mil anos. Não sabemos quan-to mais tempo terá. Só China e índiasão não sei quantos mil milhões de pes-
soas, vamos respirar um ar cada vezmais poluído, beber água que não pres-ta. A sua geração talvez não sofra, masa dos seus filhos, sim.Somos a última geração a ter algumaprevisibilidade.A poder respirar. Vai haver um tempoem que as pessoas têm um contador de
oxigénio para entrar em casa. E pagam.Que mais imagina?Sei lá. A Terra tem mais 5 mil milhõesde anos para viver, até o Sol crescer,crescer e nos apanhar. Antes de isso,
claro, começará a ser muito quente.O que resistirá mais tempo? São as
baratas, como se costuma dizer?Estão cá há 300 milhões de anos, iguai-zinhas a elas próprias.Um geólogo aprende a relativizar o
tempo?Tratamos o tempo com uma displicên-cia muito grande, falamos de milhõesde anos com uma falta de respeito enor-me. Tem ideia do que é um milhão deanos? Um milhão? Eu digo-lhe: se forbater um sino de uma igreja uma bada-lada por segundo, tem de estar 11 diase 14 horas a dar badaladas, sempre abater, sempre a bater. Ou se quiser
meter um milhão de bagos de arroz em
sacos, enche 16 sacos de quilo. Ummilhão é isto.Só um.Sim, dizemos 70 milhões, 150 milhões,6 mil milhões de anos. Quando dizemos
que os sedimentos com 200 milhões de
anos são recentes é porque é relativo aos4500 milhões de anos da Terra.Mas imagino que ao mesmo tempotenha uma noção mais apurada do
quão efémeros somos.Quando se faz a escala do tempo, quan-do se compara a história da Terra às 24horas do dia, aparecemos nos últimossegundos. Foi quase sempre uma Terrasem vida, inóspita. Foi disto que gosteina geologia, mas acho que todas as pro-fissões são bonitas se nos aplicarmos.Podia ter sido outra coisa?
Houve uma altura em que quis ser arqui-teto, tinha um certo fascínio, Ainda hojegosto de ver, tenho uma certa apetência.Como se mantém um casamento de 60anos?
Casámos em 1957, 62 anos. A tolerar-seum ao outro. Os velhos estão sempre àbirra mas não podem viver um sem ooutro. Ficamos mais rabugentos, sem
paciência. Uma pessoa tem sempre defazer o ponto de situação. Enquanto o
balanço for positivo, está bem. No nos-so tempo era complicado se alguém se
quisesse separar. A minha mulher come-
çou a trabalhar primeiro do que eu, como
professora, foi o suporte da nossa casa.
Logo isso, dá uma grande independên-cia à mulher,O que o preocupa mais no país de
hoje?Não termos aproveitado 45 anos paracultivar este povo, para lhe dar culturacívica. Não precisava de ser cultura cien-tífica, é cultura cívica. Só lhe damos fute-bol, só lhe damos porcaria.Não gosta de futebol?Nada. Sou capaz de gostar de ver umdesafio de futebol, a habilidade dos joga-dores. Agora, o mundo do futebol, aque-les comentadores, aqueles treinadores,desligo logo. É um país alienado, as nos-
sas televisões são alienantes, mesmo atelevisão do Estado, tirando a 2.
O que lhe dá mais prazer hoje em dia?
Escrever, cozinhar. Partilho no Facebook
algumas receitas que vou fazendo. Cogu-melos de coentrada com ovos e batatapalha, um sonho. A minha mulher cozi-nha por receita, rigorosamente; eu sou
o criativo, o anarquista na cozinha.De que tem mais saudades?
"O Atlântico vai fechar.Daqui a uns 180 milhões
de anos temoso Marquês a abraçar
a Estátua da Liberdade"
"Vai haver um tempoem que as pessoas
têm um contador deoxigénio à porta de casa.
E pagam"
As rochas ajudam a contar ahistória do país. Como nasce umamontanha? Tentou sempre darrespostas simples às perguntas demiúdos e graúdos, por entenderque a cultura científica não tem deser sá para uma elite
Não sei, vivo muito o dia-a-dia. Estoumuito ocupado sempre. Ter a cabeça boa
só tem um inconveniente muito grande:temos a noção da decrepitude física. Se
me levantar agora, vou inseguro. Aca-bo por me movimentar pouco. Se voua um museu, às Janelas Verdes, estouconstantemente a sentar-me. Aqui sen-
tado em casa estou muito bem, não sei
que idade tenho.O que era mais fascinante quandoveio pela primeira vez a Lisboa?Ver os elétricos, ver o mar.Lembra-se da primeira vez que o
viu?Tinha 12 anos. E não foi o mar, foi o
Mar da Palha, no Cais das Colunas. Vimdo Barreiro para Lisboa. Era um des-lumbramento.Os seus avós viram o mar?A minha avó, não. Mas vinha-se a Lis-boa uma vez na vida. Os meus pais vie-ram em 1940 à Exposição do MundoPortuguês e, depois, uma vez mais tar-de, para ver uma revista.Também é anarquista politicamente?Sou mais socialista do que os socia-listas, mas não sou sectário como os
comunistas.Nunca o convidaram para a política?Todos menos o CDS, para militante.Nunca me filiei. Todos os partidos têmcoisas com que não concordo. Elogioquando me apetece e critico quandome apetece.Há uma crise de regime?Não acho, acho que precisamos é de
uma limpeza na justiça. A Assembleiada República podia resolver tudo, criarlegislação adequada. Temos a mesma
justiça do tempo de Salazar.Apesar de não gostar da escola queteve, era um miúdo curioso?Muito, tudo o que aprendi foi fora daescola. Convivia muito com o Lima de
Freitas, pintor, com o Mário Ruivo, quefoi político, e com dois ou três rapazesmais velhos do que eu que sabiam mui-to de filosofia e história. Tinha 15, 16
anos quando fiz as primeiras pergun-tas e nunca mais deixei de estudar pormim.E sempre gostou do campo.Aprendi muito com os camponeses, foiaí que fiz a minha formação social e
política, no drama de vida dos alente-
janos. Percebi o que era a exploraçãodo homem, enriquecer à custa do empo-brecimento dos outros. Formou a minha
personalidade.
O pescoço e a cauda nos túneis daCREL, às portas de Lisboa,
lembram que ali em cima, na jazidade Pêro Longo, estão pegadas de
dinossauros. A intervenção custouo equivalente a seis milhões de
euros, lembra Galopim de Carvalho,mas o projeto de musealização
nunca saiu do papel
Um livro que o tenha marcado?As Vinhas da Ira. Ratos e Homens tam-bém li, gostei muito.E música?Gosto de ouvir Zeca Afonso, cantar alen-
tejano. Hoje tenho mais dificuldade, oiçouns timbres mas não oiço uns outros.Tive o meu irmão músico, Francisco José,
morreu em 1989. Éramos seis. Tenhouma irmã com 92, outra com 80.Custa muito perder os irmãos?Custa muito. Custa muito perder as pes-soas da nossa geração. Todas as sema-nas perco alguém, é próprio, tenho mui-tos amigos e colegas nos 80, nos 90. Todas
as semanas há um que bate a bota e esta-
mos sempre perante o problema da mor-te. Que não me preocupa a mim. Posso
morrer logo que não me faz diferençanenhuma Gosto muito de estar vivo, masnão me preocupa.Pensou sempre assim?Há alturas da vida em que não se pensana morte, começa-se a pensar a partirde certa idade, quando começam a apa-recer algumas doenças, quando o cora-
ção leva ao hospital, vem um enfarte. Eu
já tive um enfarte, dois AVC, já estivecom o problema de bater a bota. Masuma pessoa tem de andar, estamos aquia falar, levantei-me muito cedo, fiz os
meus trabalhos.Li que sempre foi de dormir pouco.Durmo à tarde e deito-me cedo mas, às
vezes, às quatro horas já não tenho sono,venho escrever. Escrevo os livros, parao Facebook, para dois bloques.Projetos não faltam, então?Isso é que ajuda. Às vezes penso que pos-so não acabar, mas enquanto estou a tra-balhar estou feliz da vida. Geralmentetrabalho entre as quatro e as 11 da manhã.
Se pudesse recuar no tempo, onde ia?
Talvez aos meus 30 anos, a Paris. Quemsai da província e entra numa cidadecomo Paris, com oferta cultural por todoo lado, uma maneira de ser diferente...Havia greves, que cá não havia, haviatelevisão livre, cinema sem censura. Vou
para Paris quando estamos cá no augeda repressão política. Quando vi a pri-meira greve fiquei fascinado ao ver a polí-cia a amparar os grevistas, a apoiá-los;cá, a polícia batia.Andou nas lutas antifascistas?
Pouco, levava os meus recados, os pape-linhos, muito no campo. Conheci mui-tos militantes comunistas que ninguémsabia que eram.É uma história que está devidamentefeita?Acho que a geração mais nova não foidevidamente informada sobre aquilo quePortugal passou. É nesse sentido tam-bém que digo que a televisão podia tertido um papel pedagógico, podia ter sido
uma universidade. Diz-se mal do PREC,mas foi uma altura em que se levou cul-tura às aldeias. E nessa altura houvegrandes políticos. Homens como LucasPires já não voltam a aparecer, como
Maria de Lourdes Pintasilgo. Depoisentrou-se numa era do Durão Barroso,Cavaco, Sócrates, tudo uma malta sem
preparação nenhuma.
Quem são as figuras de referência nasua vida?Como criança, foi o meu mestre carpin-teiro. Escrevi um livro chamado O Chei-ro da Madeira, em volta do mestre Rober-to. Uma criança com quatro ou cincoanos perceber que se podem fazer coi-
sas da madeira... Foi de tal maneira impor-tante que durante muito tempo compreiferramentas. Em Paris ia ver as novida-des de ferramentas; muitas não chegueia usá-las, mas era o fascínio de ter. Ser-
rar e sentir o cheiro da resina. Mas ain-da fiz muitos móveis, prateleiras.Um homem habilidoso.Um operacional, sim. No liceu, foi o pro-fessor de Ciências de que já falei. Já pro-fissional, o prof. Orlando Ribeiro, geó-grafo, mas que percebia a linguagem dos
geólogos. E ao mesmo tempo tinha umaconduta cívica, cultural, muito especial.Corrigiu o meu doutoramento datilogra-fado. Aprendi muito com ele na escritae nas ideias. São três referências.
Qual foi o melhor conselho que lhederam?Há uma frase que já não sei se é minhaou de um professor que tive a Matemá-tica - às vezes pergunto-me se não é algoque nasceu na minha cabeça. Reproveia Matemática no sétimo ano do liceu,repeti o ano só para fazer Matemática e
tive este professor. A frase é esta: a mate-mática é como uma escada, sobes umdegrau e só depois de teres o pé bemassente é que sobes para o outro. E fazesassim do segundo para o terceiro, do ter-ceiro para o quarto. Se fizeres assim,sobes onde tu quiseres. Passos firmes.E isto é válido para todas as ciências,para todas as disciplinas.
"Não me preocupa amorte. Às vezes penso queposso não acabar os meusprojetos, mas a trabalhar
estou feliz da vida"
"As televisões sãoalienantes. A geração maisnova não foi devidamente
informada sobre aquiloque Portugal passou"