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Histria e Cultura, Franca, v. 4, n. 3, p. 234-254, dez. 2015 Pgina | 234
POSSIBILIDADES DE DILOGO INTERDISCIPLINAR
ENTRE HISTRIA E DIREITO: UM ESTUDO A PARTIR DA
CULTURA E DAS RELAES DE VIOLNCIA NA REGIO
NORTE DO RIO GRANDE DO SUL
INTERDISCIPLINARY DIALOGUE POSSIBILITIES
BETWEEN HISTORY AND LAW: A STUDY ON THE CULTURE
AND VIOLENCE RELATIONS ON THE NOTHERN PART OF RIO
GRANDE DO SUL
Felipe Bert FREITAS
Resumo: Nas trs ltimas dcadas vem ocorrendo um processo de esgotamento nos paradigmas
explicativos da Histria, o que possibilitou a emergncia de novos temas, mtodos e fontes. Nesse contexto, tambm acontece uma renovao crtica do Direito, em sua memria
institucional, suas ideias e agentes, o que possibilitou a aproximao com outras reas de
conhecimento. Assim, este artigo prope a reflexo sobre as possibilidades terico-
metodolgicas do dilogo interdisciplinar entre a Histria e o Direito, tendo como base as fontes judiciais e o estudo do prprio Poder Judicirio no Rio Grande do Sul.
Palavras-chave: Histria; Direito; Interdisciplinaridade.
Abstract: In the last three decades, a process of depletion of the History explanatory paradigms
has been occurring, which allowed for the emergence of new themes, methods and sources. In
this context, there also is a critical renewal of the Law, in its institutional memory, its ideas and its agents, which allowed for more closeness to other areas of knowledge. Thus, this article
proposes the reflection on the theoretical-methodological interdisciplinary possibilities of
dialogue between History and Law, having as its basis court sources and the study of the Judiciary Power itself in Rio Grande do Sul.
Keywords: History; Law; Interdisciplinarity.
Do ponto de vista historiogrfico, os trabalhos que contemplam o Judicirio e
sua documentao ainda so muito recentes. Embora na atualidade tenhamos
visualizado uma ampliao significativa da produo acadmica, Axt aponta para as
dificuldades que cercam os pesquisadores que trabalham com essa temtica. Para o
autor, nossa cultura historiogrfica foi caudatria de uma concepo especfica de
poder, que sempre se estribou na apologia do presidencialismo forte e voluntarista,
frequentemente sobreposto s demais instncias (AXT, 2001, p. 1). Em outras palavras,
os historiadores brasileiros foram fortemente influenciados pela Histria poltica, tendo
Mestre em Histria Regional Programa de Ps Graduao em Histria Regional UPF Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo, RS Brasil. E-mail: [email protected]
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como principal protagonista o Poder Executivo e seus agentes, o que dificultou o
aprofundamento dos debates entre a Histria e o Direito.
Nas dcadas de 1970-80, a historiografia sofreu um processo de crise dos seus
paradigmas explicativos, o que resultou na valorizao de novas temporalidades, temas
e sujeitos, como por exemplo: a natureza do poder; as lideranas carismticas, os
trabalhadores e o lazer; a mulher; a infncia; a velhice, e no caso de nossas pesquisas, a
cultura e as relaes de violncia. O movimento dos Annales passou a conceber a
histria como forma de abordagem que prioriza a experincia humana e os processos
de diferenciao e individualizao dos comportamentos e identidades coletivas
sociais na explicao histrica (CASTRO, 1997, p. 45-59). Nesse sentido,
privilegiaram-se as mudanas estruturais, principalmente sociais e econmicas,
deixando de lado a histria dos grandes homens, estadistas, generais e eclesisticos e
passou-se a valorizar a experincia histrica das pessoas comuns e da mentalidade
daqueles que, por muito tempo, foram silenciados pela historiografia oficial ou, nas
palavras de Peter Burke, contar a historia vista de baixo (BURKE, 1992).
Uma das principais contribuies dessas mudanas foi a redefinio do conceito
de fontes. Deixando de lado os documentos oficiais e os registros escritos, os
historiadores passaram a buscar novas evidncias como a oralidade, as fotografias, as
artes e a literatura, consequentemente abrindo espao para o uso de processos judiciais
como fonte de pesquisa. Alm disso, a historiografia passou a dialogar com outras reas
como a Sociologia, Filosofia, Antropologia e o Direito.
Dessa conjuntura surgiram os primeiros trabalhos que contemplam as fontes
judiciais como objeto de anlise. Dentre eles destacam-se Os excludos da Histria:
operrios, mulheres e prisioneiros, de Michelle Perrot e Senhores e caadores: a origem
da Lei Negra, do historiador ingls Edward P. Thompson. Ambos os autores
investigaram o cotidiano, os valores e as formas de conduta das classes populares, alm
de buscarem a compreenso de como a ordem jurdica moderna tornou-se um
mecanismo para a consolidao do sistema capitalista e a formao de uma sociedade
burguesa.
No caso do Brasil, os estudos de Pesavento (1983), Fausto (1984) e Chalhoub
(1986), trouxeram como contribuio historiogrfica a anlise das condies
socioeconmicas da poca e suas relaes com a violncia; a compreenso do crime
como um fenmeno social e no apenas uma transgresso das leis, e o estudo das
representaes e imaginrios sociais dos grupos dominantes acerca da criminalidade. As
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obras citadas constituram os primeiros resultados da aproximao interdisciplinar entre
os dois campos de conhecimento em questo.
Nesse mesmo sentido de transformao se enquadra a produo historiogrfica
jurdica. Com o esgotamento terico em reas de investigao da Histria do Direito,
Histria das Instituies Jurdicas e Histria das Ideias e Pensamento Jurdico,
atualmente temos presenciado um lento processo de renovao de seus paradigmas.
Oriunda de uma viso de mundo racionalista, a cultura jurdica dos sculos XVII,
XVIII, XIX e XX foi marcada pela formao social burguesa, pelo desenvolvimento
econmico capitalista, pela justificao dos interesses liberal-individualista e por uma
estrutura estatal centralizada (WOLKMER, 2003, p. 24). Buscando desvalorizar a
ordem social e jurdica do Ancien Regime, a partir das concepes de liberdade e
igualdade, a burguesia ascendente construiu os fundamentos do Direito moderno. Eficaz
num primeiro momento, tais concepes acabaram servindo de instrumento para
consolidao da ordem social burguesa, provocando a perda do significado da
historiografia jurdica. De acordo com Wolkmer (2003, p. 16)
alguns juristas declinaram para uma narrativa conservadora e
dogmtica, que visava justificao da ordem social vigente,
negligenciando a explicitao do Direito como um processo dinmico, inserido no bojo de conflitos e tenses sociais
Nas duas ltimas dcadas, tal viso tradicional das ideias e instituies jurdicas
tm sofrido algumas mudanas. Visando superar a crise que se abateu sobre essa rea de
conhecimento, busca-se um olhar de natureza crtico-ideolgica para a historiografia
jurdica. Estas novas concepes sofrem influncias diretas dos paradigmas
historiogrficos, especialmente o Neomarxismo, a Escola de Frankfurt e o Movimento
dos Annales. Abandonando as concepes elitistas, conservadoras, acumulativas e
lineares, os pesquisadores tm buscado compreender a historicidade do direito a partir
de uma viso crtica e problematizadora.
Nesta perspectiva, o objetivo deste texto debater as potencialidades do dilogo
crtico e intelectual entre Histria e Direito, e os cuidados tericos e metodolgicos que
o pesquisador deve ter ao trabalhar com esses campos de conhecimento, tomando como
base para discusso, a pesquisa envolvendo o estudo das relaes entre cultura e
violncia nos processos criminais de homicdio e leso corporal, que tramitaram na 1
Vara do Civil e do Crime da Comarca de Passo Fundo/Soledade1, entre os anos de 1900
e 1930. Para fins didticos, o artigo est estruturado da seguinte maneira: na primeira
parte, vamos tratar das potencialidades da aproximao entre as duas disciplinas, a partir
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da anlise da cultura e das relaes de violncia na sociedade rural norte-rio-grandense
durante o primeiro trintdio do sculo XX. No segundo momento, busca-se discutir
alguns pressupostos terico-metodolgicos que devem ser levados em considerao
quando se trata de pesquisas envolvendo o Judicirio e sua documentao.
Relaes de violncia e prticas culturais: conexes entre Histria e Direito a partir
das fontes judiciais.
O trabalho com processos judiciais2 uma tarefa rdua e confusa, mas ao
mesmo tempo instigante, seja pela natureza da fonte, pela complexidade das memrias
ali representadas ou pelas dificuldades de compreender a caligrafia dos escrives. Por
ser uma documentao oriunda de situaes que envolvem diversos mbitos da
sociedade como: poltica, economia e cultura, e composta por atores, como rus,
vtimas, testemunhas, promotores, juzes, escrives e agentes policiais, estes,
representando diferentes lugares do social, os processos judiciais apresentam mltiplas
possibilidades de anlise.
No caso de nossas pesquisas, ao entramos em contato com os acervos do
Judicirio, presentes no Arquivo Histrico Regional da Universidade de Passo Fundo
proces