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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Por que a Lógica deveria se ocupar da rotação? Como o conteúdo realista de Principles of Mathematics continua a Dialética das Ciências da fase idealista de Russell MARCOS AMATUCCI Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de DOUTOR em Filosofia, área de Lógica e Filosofia da Ciência, sob a orientação do Prof. Dr. Mário Ariel González Porta. São Paulo 2019

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  • PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    Por que a Lógica deveria se ocupar da rotação?

    Como o conteúdo realista de Principles of Mathematics continua a Dialética das

    Ciências da fase idealista de Russell

    MARCOS AMATUCCI

    Tese apresentada à Banca

    Examinadora da Pontifícia

    Universidade Católica de São

    Paulo, como exigência parcial

    para a obtenção do título de

    DOUTOR em Filosofia, área de

    Lógica e Filosofia da Ciência,

    sob a orientação do Prof. Dr.

    Mário Ariel González Porta.

    São Paulo

    2019

  • Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos a reprodução total ou parcial desta

    Tese de Doutorado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.

    Assinatura____________________________________________________________

    Data ____________________________________

    e-mail: [email protected]

  • Marcos Amatucci

    Por que a Lógica deveria se ocupar da rotação?

    Como o conteúdo realista de Principles of Mathematics continua a Dialética das

    Ciências da fase idealista de Russell

    Tese apresentada à Banca

    Examinadora da Pontifícia

    Universidade Católica de São

    Paulo, como exigência parcial

    para a obtenção do título de

    DOUTOR em Filosofia, área de

    Lógica e Filosofia da Ciência,

    sob a orientação do Prof. Dr.

    Mário Ariel González Porta.

    Aprovada em ____/____/________

    BANCA EXAMINADORA

    ____________________________________________________

    Dr. Mário Ariel González Porta (Orientador) – PUC/SP

    ____________________________________________________

    Dr. Edélcio Gonçalves de Souza – FFLCH/USP

    ____________________________________________________

    Dr. Pedro Monticelli – FSB/FAPCOM

    ____________________________________________________

    Dr. Orlando Bruno Linhares – U. Mackenzie

    ____________________________________________________

    Dr. Luiz Marcos da Silva Filho – PUC/SP

  • Dedico este trabalho aos heroicos membros do

    Grupo de Pesquisa Origens da Filosofia Contemporânea.

  • 5

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de

    Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES). Código de financiamento 001. No. de

    Processo: 001.88887.151823/2017-00.

    This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de

    Nível Superior – Brasil (CAPES). Financial code: 001.Process:

    001.88887.151823/2017-00

  • 6

    Agradeço aqui e serei eternamente grato a

    Mário Ariel Gonzalez Porta, por ter-me ensinado Filosofia.

    Agradeço aos professores Edélcio Gonçalves de Souza e Pedro Monticelli pelas

    oportunas e generosas contribuições por ocasião do exame de qualificação.

    Agradeço à amada Cláudia por ter ficado ao meu lado durante todo o doutorado.

    E aos meus colegas da PUC e da USP pelas produtivas e agradáveis conversas, sem as

    quais eu seria ainda mais ignorante.

  • 7

    RESUMO

    Principles of Mathematics, de 1903, é tido como o primeiro livro realista de Russell, que

    rompe com o idealismo e inicia o projeto logicista, de fundamentação da Matemática pela

    Lógica. O objetivo deste trabalho é demonstrar a tese de que Principles of Mathematics,

    e o rompimento de Russell com o idealismo britânico, são o resultado direto da resolução

    dos problemas encontrados ao longo do programa Dialética das Ciências, que se inicia

    em 1895 e culmina com Principles. Seguindo a doutrina neo-hegeliana, os problemas das

    ciências são considerados por Russell como antinomias, as quais devem sofrer um duplo

    tratamento, o de eliminação das antinomias evitáveis e o da superação das inevitáveis

    através de uma transição dialética para uma nova ciência, ciência por ciência. Tais

    problemas não encontraram solução no interior naquela doutrina, levando Russell a um

    rompimento gradativo com os princípios idealistas. Principles portanto continua a

    Dialética das Ciências, não é um novo começo a partir de uma ruptura. Assim, o

    conhecimento do programa Dialética das Ciências é fundamental para compreender o

    rompimento de Russell com o idealismo, que teve como pivô a Teoria das Relações. O

    estudo trata o papel da Dinâmica Racional, presente em Principles e pouco

    compreendido, como metonímia da incompreensão geral do caráter de continuidade

    existente entre a Dialética das Ciências idealista e a fundamentação da Matemática

    realista. O trabalho conclui que Principles não inicia o projeto logicista de maneira

    isolada, mas como resultado da resolução das antinomias da Dialética das Ciências.

    PALAVRAS-CHAVE: Bertrand Russell; Principles of Mathematics; Dialética das

    Ciências; logicismo; Filosofia da Matemática.

  • 8

    ABSTRACT

    Principles of Mathematics, 1903, is regarded as Russell's first realist book, which breaks

    with idealism and begins the logicist project of grounding mathematics by logic. The aim

    of this work is to demonstrate the thesis that Principles of Mathematics and Russell's

    disruption with British idealism are the direct result of solving the problems encountered

    throughout the Dialectic of Sciences program, beginning in 1895 and culminating in

    Principles. Following the neo-Hegelian doctrine, the problems of science are considered

    by Russell as antinomies, which must undergo a double treatment, the elimination of

    avoidable antinomies and the overcoming of the inevitable ones through a dialectical

    transition to a new science, science by science. Such problems found no solution within

    that doctrine, leading Russell to a gradual break with idealistic principles. Principles

    therefore continues the Dialectic of the Sciences, it is not a new beginning from a rupture.

    Thus the knowledge of the Dialectic program of the Sciences is fundamental to

    understand Russell's break with idealism, which was centred on Theory of Relationships.

    The study deals with the role of Rational Dynamics, present in Principles and little

    understood, as a metonymy of the general incomprehension of the character of continuity

    between the idealistic Dialectic of Science and the foundation of realistic mathematics.

    The paper concludes that Principles does not initiate the logistic project in isolation, but

    as a result of the resolution of the antinomies of the Dialectic of Sciences.

    KEYWORDS: Bertrand Russell; Principles of Mathematics; Dialectics of Sciences;

    logicism; Philosophy of Mathematics.

  • 9

    SUMÁRIO

    RESUMO ......................................................................................................................... 7

    abstract .............................................................................................................................. 8

    1. Introdução – o problema ......................................................................................... 13

    1.1. Aρχή και τέλος: caracterizando o idealismo do qual Russell parte, e o realismo

    onde chega .................................................................................................................. 18

    1.2. O Programa Tiergarten ou a Dialética das Ciências ........................................ 23

    2. O neo-hegelianismo herdado por Russell ............................................................... 26

    2.1. A recepção do idealismo alemão na grã-bretanha ........................................... 26

    2.2 McTaggart ............................................................................................................ 30

    2.3 Lotze ..................................................................................................................... 32

    2.2. O artigo Russell’s Debt to Lotze de Milkov .................................................... 35

    2.3. Discussão ......................................................................................................... 40

    3. O Desenvolvimento da Dialética das Ciências ....................................................... 45

    3.1. Visão geral do Programa Tiergarten ................................................................ 45

    3.2. A transição dialética de uma ciência para outra............................................... 47

    3.3. A Dialética das Ciências e as contradições ou antinomias .............................. 48

    3.4. A Matemática britânica no Século XIX: referência e intuição ........................ 50

    3.4.1. Referencialismo ........................................................................................ 50

    3.4.2. Intuitivismo ............................................................................................... 54

    3.5. A Aritmética, suas antinomias, e a transição dialética para a Geometria ........ 56

    3.5.1. Difficulties of Continuous ........................................................................ 59

    3.5.2. Number and Quantity ............................................................................... 71

    3.5.3. On Quantity .............................................................................................. 84

    3.5.4. Transição dialética .................................................................................... 93

  • 10

    3.6. A Geometria, suas antinomias, e a transição dialética para a Cinemática ....... 94

    3.6.1. A encruzilhada .......................................................................................... 96

    3.6.2. O desenvolvimento da Geometria e as concepções de espaço: Continente e

    Grã-Bretanha. ....................................................................................................... 100

    3.6.3. A concepção de espaço no século XVII ................................................. 101

    3.6.4. Dentro da própria geometria ................................................................... 102

    3.6.5. A dificuldade (Geometrias não-euclidianas) .......................................... 106

    3.7. O Ensaio sobre os Fundamentos da Geometria ............................................. 112

    3.7.1. Foundations of Geometry e Kant ........................................................... 113

    3.7.2. As condições de possibilidade da Geometria Projetiva: axiomas .......... 115

    3.7.3. As condições de possibilidade da Geometria Métrica: axiomas ............ 125

    3.7.4. A Livre Mobilidade ................................................................................ 126

    3.7.5. O Axioma das Dimensões ...................................................................... 127

    3.7.6. O Axioma da Distância........................................................................... 127

    3.7.7. As consequências filosóficas do estudo da Geometria e a transição dialética

    132

    3.7.8. As contradições da Geometria ................................................................ 134

    3.8. A Cinemática e a Dinâmica (Matéria e Movimento) ..................................... 138

    3.8.1. Various Notes-I ...................................................................................... 142

    3.8.1. Various Notes-III .................................................................................... 145

    3.8.2. Various Notes-IV .................................................................................... 147

    3.8.3. Various Notes-VI .................................................................................... 147

    3.8.4. Various Notes-VII .................................................................................. 152

    3.8.5. Various Notes-X ..................................................................................... 152

    3.8.6. Various Notes-XI .................................................................................... 153

    3.8.7. Various Notes-XII .................................................................................. 154

  • 11

    3.8.8. On Dynamics .......................................................................................... 155

    3.8.9. On Causality ........................................................................................... 157

    4. Conclusão: por que Principles é a CONTINUAÇÃO da Dialética das Ciências por

    outros meios .................................................................................................................. 162

    4.1. Como Principles continua a Dialética das Ciências ...................................... 162

    4.1.1. A trilha dos documentos ......................................................................... 165

    4.1.2. A (tortuosa) trilha dos conteúdos............................................................ 172

    4.1.3. O problema das relações e a transição para o realismo .......................... 187

    4.1.4. Peano e a Lógica de Russell em Principles ............................................ 192

    4.1.5. Outras mudanças da Dialética das Ciências para o Principles ............... 208

    4.2. Comentários Finais ........................................................................................ 209

    5. Referências ........................................................................................................... 212

    6. Glossário ............................................................................................................... 218

    ÍNDICE DE FIGURAS

    Figura 1 Múltiplas forças atuando sobre um ponto material e sua resultante (exemplo).

    ........................................................................................................................................ 16

    Figura 2 - Razão cruzada da Geometria Projetiva ........................................................ 103

    Figura 3 - O Absoluto de Cayley .................................................................................. 105

    Figura 4 - Construção do Quadrilátero de Staudt. A partir de Russell (1897). ............ 117

    Figura 5 - Figuras qualitativamente similares na Geometria Projetiva. ....................... 120

    Figura 6 - Evolução do pensamento de Russell da Dialética das Ciências até Principles.

    Fonte: autor.. ................................................................................................................. 164

  • 12

    LISTA DE ABREVIAÇÕES

    Auto. ………………………... The autobiography of Bertrand Russell Vol. 1: 1872-1914

    Difficulties of Continuous… On Some Difficulties of Continuous Quantity

    Foundations of Geometry… An Essay on the Foundations of Geometry

    Fundamental Ideas………… The Fundamental Ideas and Axioms of Mathematics

    Leibniz ……………………… A Critical Exposition of the Philosophy of Leibniz

    Mathematical Reasoning…… An Analysis of Mathematical Reasoning being an inquiry…

    My Philosophical…………… My Philosophical Development

    Notes on……………………… Notes on the Logic of the Sciences

    Number and Quantity……… On the Relations of Number and Quantity

    On Causality………………… On Causality as Used in Dynamics

    On Dynamics………………… Four Notes on Dynamics

    On Quantity………………… On Quantity and Allied Concepts

    Papers n…………………… The Collected Papers of Bertrand Russell v. n

    Principles……………………… Principles of Mathematics (o livro1)

    Recent Work………………… Recent Work in the Philosophy of Mathematics

    Relations……………………… The Classification of Relations

    Various Notes – i…………… Various Notes on Mathematical Philosophy no. i

    Why do we regard…………… Why do we regard Time, but not Space, as necessarily a Plenum?

    1 Alguns autores abreviam como Principles os rascunhos que antecederam o livro; aqui os rascunhos serão

    indicados como tais.

  • 13

    POR QUE A LÓGICA DEVERIA SE OCUPAR DA ROTAÇÃO?

    “… how, or why, should Logic care about rotation?”

    Grattan-Guinness “The search for Mathematical Roots

    1870-1940”

    1. INTRODUÇÃO – O PROBLEMA

    Em seu The search for Mathematical Roots, Grattan-Guinness estranha o fato de que o

    livro de Russell Principles of Mathematics culmine com uma parte inteira (Parte VII,

    “Matéria e Movimento”) sobre mecânica, ou, como prefere Russell, utilizando o termo

    tradicional, Dinâmica Racional. Diz Grattan-Guinness:

    6.7.5 Parte 7, Junho de 1902: dinâmica sem estática2, e dentro da

    Lógica? [Título] Esta parte, ‘Matéria e Movimento’, foi montada

    principalmente por importação [do rascunho de 1899-1900] de

    ‘Principles’ (§6.3.3); uma lâmina [do manuscrito] é datada de Junho de 1900. Ele tratou de alguns aspectos da dinâmica, seguindo

    estudos de 1898 (Papers 2, 83-110); por algum motivo ignorou a

    estática. Em adição a conter muito da parte mais antiga do texto, é

    sua parte mais fraca, além da mais curta (34 páginas); [...]. Pode-se

    suspeitar de um compreensível desejo de terminar este enorme e

    cansativo livro o mais cedo possível. GRATTAN-GUINNESS, 2000

    p. 322.

    Dois parágrafos abaixo, continua:

    [...] a empreitada tomada nesta Parte parece boa demais para ser

    verdade, ou mais especificamente, para ser logicista; como, ou por

    que, a Lógica deveria ocupar-se da rotação? id. ib.

    Este estranhamento de Grattan-Guinness segue uma interpretação standard, em certo

    ponto incentivada pelo próprio Russell3, de que este, uma vez tendo rompido com o neo-

    hegelianismo em favor de uma visão realista por volta de 1899, abandona completamente

    seus projetos anteriores e levanta em Principles of Mathematics (Principles) um projeto

    logicista para fundamentar a Matemática (incluso a Geometria), uma vez que estas não

    podem mais contar com as intuições puras de espaço e tempo para sua fundamentação.

    2 Não trataremos aqui da estática. Contudo, o próprio Russell explica este ponto: “Agora, a força só pode

    se manifestar pela produção de movimento: a concepção estática de equilíbrio de forças apenas se deduz

    da concepção dinâmica.” RUSSELL, 1959 p. 45. 3 Quando este dá conta deste período no seu autobiográfico My Philosophical Development (My

    Philosophical), por exemplo.

  • 14

    Segundo esta visão, a “virada” realista e o projeto logicista de Russell fazem com que

    este rompa definitivamente com qualquer resquício de hegelianismo e kantianismo.

    Grattan-Guinness toma como comprovação de que Russell reconhece seu suposto erro de

    introduzir dinâmica em seu projeto logicista, o fato de que esta “desaparece” no Principia

    Mathematica, cerca de dez anos depois.

    O objetivo principal deste trabalho é demonstrar a tese de que: Principles of

    Mathematics, e o rompimento de Russell com o idealismo britânico, são o resultado

    direto da resolução dos problemas da encontrados ao longo do programa Dialética das

    Ciências. Tais problemas não encontraram solução no interior naquela doutrina, tendo

    sido a teoria das relações o ponto fulcral do rompimento. Principles portanto continua a

    Dialética das Ciências, não é um novo começo a partir de uma ruptura. Esta é a tese

    central.

    A compreensão do Programa Tiergarten4 é fundamental para compreender o rompimento

    de Russell com o idealismo, e a importância de sua Teoria das Relações neste

    rompimento; o papel da Dinâmica Racional presente em Principles é justamente o de

    evidenciar esta ligação, estando ali presente como órgão vestigial, provavelmente em

    desuso, mas que comprova os caminhos da evolução do organismo.

    Assim, o tratamento de matéria e movimento é continuação de um programa iniciado em

    sua fase idealista, e é este o motivo de constar de Principles.

    A passagem da fundamentação Lógica da Matemática, principalmente os estudos sobre o

    continuum5 e o infinito, e em particular da Geometria, para o tratamento de matéria e

    movimento; a axiomatização e a busca de ferramental lógico para a fundamentação da

    Matemática consistem em uma continuação consequente da resolução dos problemas da

    Geometria encontrados no Programa Tiergarten.

    4 Ou “Dialética das Ciências”. O projeto é assim chamado por Russell e os manuscritos são agrupados sob

    esta égide em Papers 2. Neste estudo trataremos indistintamente o projeto por Programa Tiergarten ou

    Dialética das Ciências. 5 Russell utiliza os termos em Latim continuum e o plural continua, manteremos esta grafia no caso dos

    substantivos, utilizando os termos em Português contínuo/a/os/as para os adjetivos. Esta regra será quebrada

    quando falarmos do “contínuo-numérico” (number-continuum), em On Quantity mais à frente, que é outro

    tipo de continuum, a saber, a uma série infinita de números, e não uma quantidade.

  • 15

    A compreensão do Programa Tiergarten e do papel da Dinâmica Racional é fundamental

    para compreender o contexto no qual se inicia o projeto logicista de Russell, pois este

    projeto, neste período, é apenas parte do projeto mais geral de resolver de maneira realista

    os problemas encontrados em sua fase idealista (não obstante possa eventualmente ter-se

    tornado o centro de suas preocupações num período mais à frente).

    Ainda, em sua crítica à Parte VII do Principles 6, Grattan-Guinness, apoiando-se numa

    resenha de Hardy do Principlespara o Suplemento Literário do Times, aponta um

    “pressuposto obviamente errado” sobre causalidade no interior da discussão sobre a

    Dinâmica:

    No próximo Capítulo Russell busca estabelecer cadeias causais

    como implicações; infelizmente ele faz a pressuposição obviamente

    errada de que ‘de um suficiente [finito] número de eventos em um

    suficiente número de momentos, um ou mais eventos a um ou mais

    momentos podem ser inferidos’ (p. 478). (id. ib)

    Esta crítica de Grattan-Guinness vem explicitamente (p. 329) da resenha de Hardy. Nela

    este, após afirmar que, do ponto de vista do projeto logicista, Russell “parece ter provado

    o seu ponto”, diz o seguinte sobre a Parte em tela:

    Mas a Dinâmica do Sr. Russell não nos parece tão boa; e em

    particular sua explicação de causalidade parece definitivamente

    errada. ‘Causalidade é o princípio em virtude do qual a partir de um

    suficiente número de eventos em um suficiente número de momentos

    um ou mais eventos em um ou mais novos momentos podem ser

    inferidos.’ E o Sr. Russell segue a explicar que na dinâmica real,

    nossos dados devem ser o todo do estado do mundo em dois

    momentos de tempo, e de que destes dados seu estado a qualquer

    outro momento pode ser inferido. Mas certamente isto é

    matematicamente não-verdadeiro. É suficiente matematicamente

    saber as posições e velocidades de todas as partículas do mundo a

    qualquer momento. O Sr. Russell, banindo a velocidade, necessita

    substituí-la por mais dados de posições. Mas para fazer isso

    necessita-se não de mais um conjunto de posições, mas de um

    infinito número de tais conjuntos, pois a velocidade de uma partícula

    pode apenas ser calculada a partir de um conhecimento de suas

    posições em infinitos momentos de tempo [at infinitely many times].

    [...] Se uma partícula for projetada verticalmente, podemos saber sua

    posição se soubermos sua velocidade. Mas não podemos calcular seu

    movimento se soubermos apenas sua posição original e sua posição

    a um tempo subsequente. Suponha que ela tenha sido projetada do

    solo, e tomemos um segundo momento no qual ela encontre o solo

    6Seguimos aqui uma notação mnemônica para as obras de Russell, explicitada na Lista de Abreviações, que

    se encontra logo após o Sumário.

  • 16

    novamente. Como podemos dizer que ela não esteve em repouso?

    HARDY, 1903 pp. 265-266.

    Em que pese que a preocupação de Hardy pertencer à Cinemática, que deve examinar a

    trajetória, e não à Dinâmica, que trata das causas do movimento, vamos, em consonância

    com esta crítica adicional da Parte VII mostrar também que esta concepção de causalidade

    na dinâmica de Russell, correta ou errônea, também é fruto da resolução de problemas

    metafísicos do período idealista, iniciados no Programa Tiergarten, e continuados em sua

    fase realista, principalmente em seus estudos sobre Leibniz. Neste, Russell explicita uma

    antinomia (como chama) sobre a atuação de múltiplas forças sobre um ponto. A antinomia

    consiste no fato em que múltiplas forças reais atuando consecutivamente sobre um ponto

    não causam um efeito real, mas a resultante, que não é real, é o efeito observável daquelas

    causas. Isto, segundo ele, coloca em questão causalidades de eventos individuais (que

    podem não ter efeito). Vide Figura 1.

    Figura 1 Múltiplas forças atuando sobre um ponto material e sua resultante (exemplo).

    A tentativa de resolver esta antinomia resultou na formulação de causalidade que

    prevaleceu em Principles. Ainda, a compreensão do projeto Tiergarten lança luz sobre as

    razões que teriam levado Russell a trocar o idealismo pelo realismo, outras do que

    simplesmente “seguir Moore”, conforme ele mesmo declara em My Philosophical

    Development (My Philosophical).

    Em My Philosophical, Russell reproduz alguns textos que classifica como “A Dialética

    das Ciências”, onde se vê de maneira muito resumida a ligação que faz entre Geometria

    e dinâmica. Trata-se da relatividade do espaço com relação a um corpo: um triângulo num

    espaço geométrico7 deve poder “mover-se” para outra região sem perder suas

    propriedades. Mas na Geometria as figuras não se “movem” de fato, pois o movimento

    pressupõe força aplicada a uma matéria.

    Agora, a força só pode se manifestar pela produção de movimento:

    a concepção estática de equilíbrio de forças apenas se deduz da

    7 De curvatura constante; mas a discussão mais elaborada da Geometria e dos tipos de espaço será realizada

    mais adiante. Aqui expomos a ideia geral de Russell a este respeito, no livro não-técnico My Philosophical.

    Resultante

    F4 F3 F2

    F1

  • 17

    concepção dinâmica. Portanto, a Geometria envolve considerações

    de matéria, e matéria deve ser considerada primariamente como

    aquilo que produz movimento em outra matéria [...] RUSSELL,

    1959 pp. 44-45.

    A compreensão do que acontece aqui requer o exame deste conceito de “matéria” do qual

    Russell se utiliza para atacar o problema que encontrou. Este problema já aparece (não

    exatamente com esta formulação) em seu estudo sobre Geometria, apresentado como tese

    de fellowship para o Trinity College, Cambridge: An Essay on the Foundations of

    Geometry (Foundations of Geometry). É neste estudo que os problemas da dinâmica

    primeiramente se apresentaram a ele, e foram tratados sob a perspectiva idealista. Mais

    tarde, depois da “virada” realista, eles reaparecem no seu A Critical Exposition of the

    Philosophy of Leibniz (Lebniz) sob a forma do paradoxo da aceleração resultante de várias

    acelerações – que dará origem à estranha formulação de causalidade que vemos no

    Principles.

    Russell explicita – de forma ainda mais resumida – a continuidade destas questões no

    Prefácio do Principles:

    Há cerca de seis anos atrás, eu comecei uma investigação sobre a

    filosofia da Dinâmica. Eu fui de encontro à dificuldade de que,

    quando uma partícula é sujeita a várias forças, nenhum dos

    componentes da aceleração realmente ocorre, mas apenas a

    aceleração resultante, da qual aquelas são partes; este fato tornou

    ilusória a causalidade de particulares por particulares tal qual é

    afirmada, à primeira vista, pela Lei da Gravitação. Parece também

    que a dificuldade relativa ao movimento absoluto é insolúvel numa

    teoria de espaço relacional. A partir desses dois fatos eu fui levado a

    um reexame dos princípios da Geometria, e daí à filosofia da

    continuidade e do infinito, e daí a uma perspectiva de descobrir o

    significado de qualquer [any] na Lógica Simbólica. RUSSELL, 1905

    pp. xvi-xvii.

    Nosso intento é desenvolver estes elementos aqui esboçados, dando conta de suas

    dificuldades técnicas, e mostrar a continuidade que estes problemas oferecem, de cujas

    soluções o levaram até o Principles.

  • 18

    1.1. Aρχή και τέλος: caracterizando o idealismo do qual Russell parte, e

    o realismo onde chega

    Gostaríamos de escrevem em um parágrafo que o idealismo de Russell era assim e assim,

    e em outro parágrafo que o posterior realismo de Principles era assim e assim. Entretanto,

    aqui não há preto e branco, mas uma grande quantidade de tons de cinza de fronteiras

    embaçadas.

    O caráter especificamente britânico do neo-hegelianismo ao qual Russell explicitamente

    se filiava antes de 1900, é caracterizado no próximo Capítulo. Veremos que, apesar das

    declarações em contrário, Russell estava mais próximo de Kant do que de Hegel. Em My

    Philosophical, declara:

    Toda vez que Kant e Hegel estavam em conflito, eu tomava o lado

    de Hegel. Eu estava muito impressionado pelo Metaphysische

    Anfangsgrüde der Naturwissenschaft de Kant e produzi elaboradas

    notas sobre ele... My Philosophical, p. 42.

    (Ou seja, Russell mal acaba de declarar-se mais hegeliano do que kantiano e

    imediatamente passa a falar deste e não daquele. Este trecho é uma metáfora do

    relacionamento de Russell com os dois idealistas alemães.)

    O fato é que Russell nunca foi muito afeto ao monismo; tendo sido introduzido, logo que

    adentrou Cambridge em 1890, ao idealismo por McTaggart, o qual é declaradamente

    pluralista (veja-se citação do próprio na seção com seu nome). Mais tarde, mesmo antes

    de ter uma teoria das relações completamente desenvolvida, Russell já criticaria as

    limitações das relações dentro do monismo de Bradley, o qual as afirmava

    intrinsecamente redutíveis a adjetivos, tendo o status de mera terminologia útil.

    Não obstante Russell define McTaggart como hegeliano; o que não é de se estranhar,

    considerando-se a nebulosa mistura em que o neo-hegelianismo britânico amalgamava

    Kant e Hegel

    Bradley se filia ao idealismo absoluto de Hegel: monista, e cujo Absoluto é inatingível

    pela mente humana, motivo pelo qual nosso pensamento é intrinsecamente

    autocontraditório, posto que parcial, e assim é obrigado a aderir à doutrina de verdades

    parciais, ou gradação de verdades.

    .

  • 19

    Todos esses aspectos delineados acima serão objeto de detalhamento no próximo

    Capítulo. Por ora vamos caracterizar o idealismo e o posterior realismo de Russell.

    Quando define seu idealismo transcendental, Kant o faz em contraposição ao de Berkeley,

    o qual caracteriza como dogmático. Em suas próprias palavras:

    ... tudo o que é intuído no espaço e no tempo, portanto todos os

    objetos de experiência possível para nós, são apenas fenômenos, i.e.,

    meras representações que, tal como são representadas – como seres

    extensos ou séries de modificações –, não têm uma existência

    fundada em si mesma fora de nossos pensamentos. A essa doutrina

    eu denomino idealismo transcendental. (...) Nosso idealismo

    transcendental, pelo contrário, concede que os objetos da intuição

    externa, exatamente como são intuídos no espaço, são também reais,

    assim como todas as modificações no tempo, tal como o sentido

    interno que as representa. Pois, uma vez que o espaço já é uma forma

    daquela intuição que denominamos externa, e sem objetos no mesmo

    não haveria qualquer representação empírica, nós podemos e

    devemos assumir como reais os seres extensos nele, e o mesmo vale

    para o tempo. KANT, 1989 (CRP) B 520.

    Não é claro que Russell adote o idealismo transcendental assim descrito, ipsis literis. Não

    é claro por um motivo: nem em sua fase idealista nem no realismo de Principles, Russell

    está preocupado com o mundo exterior ou sua epistemologia, com exceção do tratamento

    do espaço. Esta preocupação seria de Moore. A ontologia russelliana – bastante discutida

    – restringe-se aos objetos da Lógica e da Matemática. O que se pode dizer, de forma

    negativa, é que Russell se afasta do monismo de Hegel (ao menos em sua versão

    britânica), pouco fala sobre o Absoluto, e quando o faz é para criticar Bradley, novamente

    no contexto da teoria das relações. Pode-se, temerosamente, afirmar por exclusão que o

    idealismo de Russell está mais próximo do idealismo transcendental de Kant.

    Em que pese que em My Philosophical Russell afirme que o projeto da Dialética das

    Ciências “deveria terminar com uma prova de que toda a realidade é mental” (p. 42),

    devemos lembrar que este tardio livro de memórias foi escrito após Análise da Matéria e

    Análise da Mente, onde Russell volta sua atenção a questões ontológicas mais gerais, já

    em sua perspectiva realista. O fato é que, em sua fase idealista, Russell está focado nos

    objetos da Matemática.

    No tratamento do espaço, Russell tateia neste período entre diversas concepções, desde a

    kantiana “adaptada” para as geometrias não-euclidianas em Foundations, até mera

    possibilidade de movimento (no caso do espaço vazio) numa concepção próxima de

    Leibniz, passando pelo Plenum, próximo a Descartes. Por fim, em Principles termina por

  • 20

    adotar o espaço absoluto de Newton sob a argumentação de que é a concepção que pode

    ser pensada com menos contradições.

    Seria mais sensato afirmar que Russell adota concepções idealistas, de Hegel (mormente

    no que concerne à dialética e, muito importante neste período, à mereologia); e de Kant,

    principalmente no que se refere ao método de discussão de condições de possibilidade.

    Tanto a dialética e a mereologia, quanto o método abdutivo de pesquisar condições de

    possibilidade, são ontologicamente neutros no que se refere ao mundo exterior. O que isto

    significará na prática filosófica de Russell neste período ficará mais claro ao longo do

    trabalho.

    Ainda, como veremos em Milkov, mais à frente, a partir de 1896 Russell aproxima-se

    gradativamente do idealismo teleomecanista de Lotze, à medida em que toma contato

    com a obra deste filósofo; sendo um dos principais eventos o curso de Lotze ministrado

    por McTaggart ao qual Russell atende no início de 1898.

    A situação não é muito diferente no que diz respeito à sua adesão ao realismo, que

    mostraremos ao longo do trabalho ter sido fruto do desenvolvimento interno de sua

    filosofia, na busca da resolução das antinomias das ciências, em que se afasta

    gradativamente das concepções idealistas e aproxima-se das concepções realistas, puxado

    pelo problema do pluralismo na teoria das relações.

    Assim como Hegel e Kant são misturados no neo-hegelianismo britânico, muitas vezes

    Moore e Russell são assim vistos no que diz respeito ao realismo. Moore é quem estava

    preocupado com o mundo exterior, como expressa no The Refutation of Idealism

    (MOORE, 1903). Lá Moore trata da metafísica do mundo “externo”, contrapondo um

    mundo material (como chama) ao esse est percipi:

    Não há, portanto questão de como “sair do círculo de nossas próprias

    ideia e sensações”. Meramente ter a sensação já é estar fora daquele

    círculo. Significa conhecer algo que é tão verdadeiramente e

    realmente não uma parte da minha experiência, quanto qualquer

    coisa que eu jamais conhecer. MOORE, 1903, p. 451

    Este trecho denota a preocupação de Moore com o idealismo. Russell por sua vez

    preocupava-se mais com o pluralismo, que diretamente afetava sua teoria das relações:

    Moore estava mais preocupado com a refutação do idealismo,

    enquanto eu mais interessado na rejeição do monismo. Os dois

    estavam, no entanto, bem proximamente conectados. Eles estavam

    conectados através da doutrina das relações, a qual Bradley havia

  • 21

    destilado a partir da filosofia de Hegel. Eu chamei esta a ‘doutrina

    das relações internas’ e eu chamei minha visão de ‘doutrina das

    relações externas’8. A doutrina das relações internas sustentava que

    toda relação entre dois termos expressa, primariamente,

    propriedades intrínsecas dos dois termos e, em última análise, a

    propriedade do todo o qual os dois compõem. My Philosophical, p.

    54.

    É possível imaginar a colisão que Russell teve, a partir de uma doutrina de relações

    internas, com a antinomia dos pontos, os quais não têm propriedades intrínsecas, e só

    podem ser definidos por meio de relações espaciais.

    O tipo de realismo que Russell tem ao escrever Principles claramente está mais aplicado

    aos objetos da Lógica e da Matemática do que ao mundo exterior. Começa a desenvolver

    um realismo platônico, no que acompanhará Frege, e no Prefácio de Principles revela

    algumas evidências de platonismo, cuja adoção ainda atribui a Moore. Não obstante,

    como os termos de suas proposições denotam, e denotam um mundo plural, o denotado é

    um objeto do mundo independente da mente; então quando suas proposições se referem

    a termos do mundo, referem-se a um mundo que possui objetos independentes entre si e,

    em nossa interpretação, do sujeito que considera a proposição. Mas esta última parte é,

    referente ao mundo exterior, é uma interpretação; o idealismo de McTaggart poderia

    acomodar-se objetos externos plurais e independentes entre si. O que é certo é o realismo

    platônico e o pluralismo de relações irredutíveis a adjetivos.

    No que diz respeito às questões de Filosofia, minha posição, em

    todos os aspectos principais, é derivada do Sr. G. E. Moore. Eu

    aceitei dele a natureza não-existencial das proposições (exceto tais

    em que aconteça afirmarem existência), e sua independência de

    qualquer mente conhecedora (knowing mind); também o pluralismo

    no que diz respeito ao mundo, ambos, aqueles de existentes e aquele

    de entidades, como composto por um número infinitamente grande

    de entidades mutuamente independentes, com relações as quais, são

    finais (ultimate), e não redutíveis a adjetivos de seus termos ou do

    todo o qual eles compõem. Principles, p. xviii.

    O platonismo se revela na descrição de proposições independentes da mente conhecedora.

    Não são reais (não se localizam no espaço e no tempo), mas são objetivos.

    8 Conforme veremos, a doutrina de Bradley é mais ampla do que Russell interpreta, admitindo relações

    “externas” para objetos suficientemente distantes para serem considerados partes de “todos” diferentes,

    mesmo porque qualquer todo que não o Absoluto é para Bradley uma abstração capaz apenas de suportar

    gradações de verdade.

  • 22

    Há ainda a reconhecida influência de Lotze, não só sobre Russell, mas sobre todos os

    idealistas britânicos. Esta influência e suas características são extensamente discutidas no

    próximo capítulo.

    Em resumo podemos caracterizar o idealismo de Russell como composto de elementos

    do realismo transcendental de Kant, principalmente; eivado de traços do idealismo

    absoluto de Hegel aqui e ali; e seu realismo, principalmente um realismo platônico do que

    diz respeito aos objetos da Lógica e da Matemática, possivelmente estendido aos objetos

    reais, mas que certamente não eram o centro das preocupações de Russell no período aqui

    descrito.

  • 23

    1.2. O Programa Tiergarten ou a Dialética das Ciências

    Em um trecho bastante citado9 de My Mental Development, Russell conta sobre seus

    planos para o trabalho futuro:

    Eu recordo uma manhã de primavera quando eu caminhava pelo

    Tiergarten10, e planejava escrever uma série de livros em filosofia

    das ciências, crescendo gradualmente em concretude quando eu

    passasse da Matemática para a Biologia; eu pensava que também

    escreveria uma série de livros sobre questões sociais e políticas,

    crescendo gradualmente em abstração. Por último eu atingiria uma

    síntese hegeliana num trabalho enciclopédico tratando igualmente de

    teoria e prática [practice]. O esquema era inspirado por Hegel, e

    ainda assim algo dele sobreviveu à mudança em minha filosofia.

    RUSSELL, 1944, p. 11 [nossa ênfase].

    Embora Russell não precise qual manhã foi essa, neste trecho autobiográfico ele está

    relatando o período entre 1894 e 1898: “Nos anos de 1894 a 1898, eu acreditava na

    possibilidade de provar, através da Metafísica, várias coisas sobre o Universo que meus

    sentimentos religiosos me faziam pensar importantes.” [p. 11]; período muito extenso,

    tratando-se de Russell. Entretanto sabemos que Russell graduou-se em Cambridge em

    1894 e casou-se em dezembro desse ano; e após sua lua-de-mel atendeu a cursos de

    economia na Universidade de Berlim a partir de janeiro de 1895 (sua esposa tinha planos

    de participar ativamente de reformas políticas e sociais junto com seu marido11), e então

    passou “a maior parte do ano de 1895 em Berlim, estudando economia e a Social-

    Democracia Alemã” [p. 10]. Portanto, seu passeio pelo Tiergarten deve ter ocorrido neste

    ano.

    Não obstante, seus manuscritos do ano de 1894, conforme organizados pela McMaster

    University nos The Collected Papers of Bertrand Russell12, ainda são trabalhos escolares

    para as disciplinas que cursou (por exemplo, Paper on History of Philosophy para a

    disciplina de Ward, onde comenta criticamente Descartes, Leibniz, Locke e Hume; e

    outros manuscritos de caráter estudantil). Os trabalhos classificados pelos organizadores

    de Papers 1 (BLACKWELL et al., 1983) como “profissionais” começam em 1895.

    Embora haja um punhado deles neste volume (principalmente, os primeiros escritos sobre

    9 Por exemplo, em Griffin, The Tiergarten programme GRIFFIN, 1989 também presente em GRIFFIN,

    1991. 10 Parque localizado no centro de Berlim. 11 Cf. GRIFFIN, 2003. 12 Doravante mencionados como Papers seguidos do volume.

  • 24

    Geometria que ensaiavam seu Foundations), no Papers 2 (GRIFFIN; LEWIS, 1990) os

    organizadores dedicam toda uma Parte denominada The Dialectic of the Sciences (A

    Dialética das Ciências), seguindo o nome que o próprio Russell lhes atribuiu em My

    Philosophical. Estes manuscritos, em adição àqueles de Geometria de Foundations e

    Papers 1, constituem o “core” da produção idealista do programa Tiergarten.

    A ideia do programa era suplantar as contradições das ciências individuais (conforme a

    concepção neo-hegeliana de ciências) numa síntese dialética de todas as ciências. Esta

    ideia é desenvolvida mais adiante.

    Neste período Russell chama-se a si próprio de hegeliano “de pleno direito” (“full-fledged

    Hegelian”):

    Eu terminei meu livro sobre a fundamentação da Geometria em

    1896, e passei imediatamente para o que eu pretendia ser um

    tratamento similar na fundamentação da Física, tendo a impressão de

    que os problemas relativos à Geometria estavam resolvidos. Eu

    trabalhei na fundamentação da Física por dois anos, mas a única

    coisa que eu publiquei que expressam minha visão daquele período

    foi um artigo sobre número e quantidade [...] Eu era nesse tempo um

    hegeliano de pleno direito, e almejava a construção de uma Dialética

    das Ciências, a qual deveria terminar com a prova de que toda a

    realidade é mental. Eu aceitei a visão hegeliana de que nenhuma das

    ciências é realmente verdadeira, uma vez que todas dependem de

    alguma abstração, e toda abstração leva, mais cedo ou mais tarde, a

    contradições. My Philosophical, pp. 41-42.

    Entretanto, é consenso entre os comentadores que suas principais influências são os neo-

    hegelianos13 ingleses Bradley, McTaggart, James Ward, e Lotze. Do idealismo alemão

    ele se vale mais de Kant do que de Hegel, a medir pela quantidade de citações14.

    No caso do programa Tiergarten, é de McTaggart a interpretação de que uma teoria

    completa do Absoluto seria possível (em contraposição a Bradley que acredita que não é

    possível), e supõe-se que a ideia de uma Dialética das Ciências que culminasse com uma

    metafísica do Absoluto seja uma influência desta interpretação, e não de Hegel

    diretamente.

    13 Utilizaremos o termo neo-hegelianos, novamente seguindo Griffin, para caracterizar o hegelianismo

    anglo-saxão tal qual influenciou Russell. Claro está que, tratando-se de Filosofia, evidentemente não se

    trata de um bloco homogêneo. Bradley guarda importantes divergências com McTaggart e Ward,

    explicitadas no texto na medida do necessário; e Russell tomará elementos ora de um ora de outro. O

    próximo Capítulo tratará do movimento neo-hegeliano em maior detalhe. 14 Griffin, op. cit.

  • 25

    Os documentos agrupados em Papers 2 sob o título de “A Dialética das Ciências” são em

    número de 16 e consistem nos seguintes:

    1) Nota sobre a Lógica das Ciências – (circa 1896)

    2) Várias Notas sobre a Filosofia da Matemática (1896-1898). Estas notas são

    numeradas em algarismos romanos, de I a XVII. Iniciam-se justamente com a

    transição da Geometria para a Dinâmica, passando pela discussão do contínuo no

    espaço e tempo, e terminando com o a priori e as categorias na Matemática.

    3) Quatro Notas sobre a Dinâmica (circa 1896)

    4) Comentário sobre Hannequin, Essai critique sur l’hypothèse des atomes dans la

    Science contemporaine (1896)

    5) Sobre algumas dificuldades da Quantidade Contínua (1896)

    6) Comentário sobre Couturat, De l’Infini mathématique (1897)

    7) Sobre as Relações de Número e Quantidade (1897)

    8) Movimento em um Plenum (1897)

    9) Por que consideramos tempo, mas não espaço, como necessariamente um

    Plenum? (1897)

    10) Comentários sobre Love, Theoretical Mechanics (1898)

    11) Sobre a causalidade como usada na Dinâmica (1898)

    12) Sobre a Quantidade e conceitos afins (1898)

    13) A Classificação das Relações (1899). Este artigo lido na Sociedade Aristotélica já

    demonstra um rompimento com o neo-hegelianismo, embora não seja considerado

    pelos comentadores como o primeiro a fazê-lo (o primeiro seria “Seems, Ma’am?

    Nay, it is!” de 1897).

    No Papers 1, uma série de trabalhos de 1895 e 1896, numerados de 40 a 44, são agrupados

    sob o título Parte VI – Fellowship e primeiros artigos profissionais, os quais iniciam-se

    com a revisão para o Mind do livro de Heymans. Devido à unidade temática – tratam da

    Geometria e preparam o trabalho apresentado para sua Fellowship em Cambridge (bem

    como denotam as transformações no pensamento de Russell no período), o Foundations

    of Geometry – são aqui tomados como parte do Programa Tiergarten.

    14) Observações sobre Espaço e Geometria (On Space)

    i. Introdução

    ii. Introdução alternativa ou suplementar

    iii. Nota. Sobre o significado de aprioridade tal como aplicada à Geometria

  • 26

    15) A Lógica da Geometria.

    16) O a priori na Geometria [1896]

    Nossa análise deste material será mais detalhada nos tópicos relativos às teses objetivadas,

    e apenas descritivo onde não disser respeito a elas. De maneira geral, analisaremos o

    necessário para responder a Grattan-Guinness sobre a ligação entre a Parte VII do

    Principles e a Filosofia da Matemática, tomando esta ligação como metonímia da

    trajetória de Russell até Principles.

    Para facilitar o entendimento do caminho percorrido nos manuscritos, que muitas vezes

    têm um caráter de rascunho, com ideias tateando antes de chegar a uma conclusão mais

    definitiva, vamos adiantar onde Russell vai chegar no desenvolvimento da Geometria.

    O surgimento das Geometrias não-euclidianas (que Russell chama de Metageometria, no

    singular), coloca em questão o caráter apodítico da intuição pura de Kant, uma vez que

    Kant identifica a intuição pura de espaço com o espaço euclidiano. A tese de Russell

    consiste em separar os axiomas que podem ser comuns a todas as Geometrias, e

    estabelece-los como “logicamente a priori”, e, portanto, certos. Quanto aos axiomas

    específicos da Geometria euclidiana, Russell irá considerá-los “empíricos” e apenas

    “aproximados”. O “aproximado” deriva do fato da Geometria euclidiana poder ser

    considerada uma aproximação de qualquer outra Geometria desde que sua curvatura não

    seja muito acentuada. Como a Geometria só é possível em espaços de curvatura constante

    (caso contrário o Princípio da Livre Mobilidade é ferido), a Metageometria poderá ser

    considerada uma aproximação da Geometria euclidiana. Com esta estratégia Russell

    reformula a intuição pura de espaço de Kant em uma “sensação de espaço”, uma vez que

    resultados aproximados são característica de eventos sensoriais, e não de intuições

    puras.

    Esta forma final, porém, só é atingida no Foundations of Geometry publicado.

    2. O NEO-HEGELIANISMO HERDADO POR RUSSELL

    2.1. A recepção do idealismo alemão na grã-bretanha

    O neo-hegelianismo britânico é um idealismo tardio e bastante peculiar, se comparado ao

    alemão. Ele surge como reação da Filosofia aos ataques do materialismo que, embora de

    pouco fundamento filosófico, leva a opinião pública para um realismo ateu alimentado

  • 27

    pelo avanço da ciência e da técnica, colocando em cheque a religião e a própria

    importância da Filosofia. Esta intenção é explícita na obra de Sterling (O Segredo de

    Hegel), introdutor pioneiro de Hegel aos britânicos.

    Não é possível aqui esgotar este assunto, mas ele é importante para o entendimento do

    projeto de Dialética das Ciências de Russell, das antinomias das ciências encontradas por

    ele (e, muitas vezes, do porquê ele as considerava antinomias), e de como a doutrina das

    relações internas obstruiu caminho das soluções, levando Russell, depois de esgotadas

    outras tentativas, ao rompimento com ela e posteriormente com o idealismo. Sem o

    quadro de referência do neo-hegelianismo britânico muitas destas questões sequer fazem

    sentido.

    O influxo do idealismo alemão na Grã-Bretanha tem início na segunda metade do Século

    XIX, “uma geração inteira após a morte de Hegel” (METZ, 1930 p. 237). Passmore

    (PASSMORE, 1966) fala em uma inversão de papéis: o idealismo nasce nas ilhas em seu

    ocaso no continente. Ali, o empirismo viceja, a Filosofia realiza a volta a Kant, e resta

    pouca metafísica para inspirar os britânicos. Entre os metafísicos remanescentes está

    Lotze, sendo este um dos motivos de sua grande influência no neo-hegelianismo britânico

    (além, é claro, do valor de seu trabalho).

    Este influxo não foi uma invasão completamente estrangeira, na medida em que veio

    atender a necessidades internas da filosofia britânica de oferecer respostas ao

    materialismo, conforme mencionado acima. Segundo Metz (op. cit.), o pensamento

    idealista na filosofia britânica foi precedido por uma correspondente atmosfera intelectual

    na literatura: Coleridge estudou Kant na Alemanha e foi professor e amigo de Green; este

    foi seu executor literário. Influência semelhante exerceu Carlyle. “Foi a partir destas

    direções mais do que de círculos estritamente filosóficos que o novo movimento recebeu

    seu ímpeto mais forte.” (id. ib.).

    Metz acredita que o movimento idealista britânico avançou por etapas. O primeiro

    estágio, dos pioneiros, ocorre na década de 1870 e consiste em superar problemas de

    tradução, construir comentários e incorporar o idealismo alemão no currículo acadêmico;

    ao mesmo tempo em que o tradicional empirismo britânico era combatido com novas

    ideias. Desta primeira fase participam Stirling, Green, Caird, Wallace e outros. Não

    obstante ser primariamente exegético, este trabalho foi transformador e criativo, dando

    ao neo-hegelianismo cores próprias fora do continente. Foi com Green, em Oxford, que

  • 28

    o idealismo consolidou-se na Grã-Bretanha. Green é “um kantiano pelas lentes de Hegel”

    METZ, 1930 pp. 272-273.

    A segunda geração, de Bradley, McTaggart, Bosanquet, Seth (Pringle-Pattison15), e

    outros, já procura dar novas soluções aos problemas enfrentados por Hegel e Kant. Hegel

    – cujos trabalhos foram todos vertidos para o Inglês – foi o mais influente; Kant vindo

    em seguida. Mas, de maneira geral, os britânicos tratam Hegel e Kant como um todo

    único; aqui e ali são colocados um contra o outro. Em situação semelhante encontra-se

    Russell ele mesmo. Compare-se a descrição de Metz: “Mas todo o sistema idealista

    alemão era usualmente tomado em conjunto como um só todo, exibindo um

    desenvolvimento orgânico e necessário de Kant a Hegel, mesmo se estes dois, vez ou

    outra conflitavam um com o outro.” METZ, 1930 p. 256, com a do próprio Russell sobre

    si próprio: “Sempre que Kant e Hegel estavam em conflito, eu me alinhava com Hegel”

    RUSSELL, 1944, p. 42 (My Philosophical). O que Russell relata ter acontecido consigo

    é o que Metz relata ter acontecido com os neo-hegelianos britânicos em geral.

    Mander (MANDER, 2011) estabelece o critério quantitativo de uso (citações) de Hegel e

    de Kant, para dividir os idealistas ingleses em hegelianos (Wallace, McTaggart e Caird)

    e kantianos (Green e novamente Caird). O fato do critério objetivo colocar Caird em

    ambos os grupos reforça a tese de Metz que Hegel e Kant encontravam-se amalgamados

    no pensamento neo-hegeliano. Ademais, Hegel não podia ser compreendido por si

    próprio, Kant era necessário para seu domínio.

    Stirling apresenta Hegel como um “continuador ingrato” de Kant; o primeiro teria

    construído um grande edifício, mas trêmulo, sobre as bases firmes fincadas pelo segundo.

    Mas Stirling falava de fora da academia, e sua influência limitava-se às livrarias.

    Passmore divide o movimento neo-hegeliano entre os “absolutistas” e os “personalistas”.

    Os primeiros são monistas, com Bradley como principal representante, acreditando que o

    mundo é o espírito Absoluto que contém partes; os segundos pluralistas, acreditando em

    espíritos individuais (selves). Estas diferenças refletem-se na doutrina das relações: os

    primeiros consideram relações “externas” de maneira muito restrita, como terminologia

    útil, mas as relações na realidade são internas – podem ser resolvidas logicamente em

    15 Seth mudou seu nome em determinado momento para Pringle-Pattison por motivos familiares; a literatura

    trata-o ora por um ora por outro nome; espero com esta nota poupar os leitores do martírio de descobrir por

    si próprios que se trata do mesmo filósofo.

  • 29

    termos de qualidades dos relata. Os segundos adotam a doutrina das relações externas,

    sendo Seth (Pringle-Pattison) e McTaggart seus representantes. Apesar disso não há

    uniformidade na doutrina das relações, por exemplo, Green antecede Bradley, mas tem

    outra doutrina de relações. O fato é que o idealismo alemão foi adotado aos retalhos na

    Grã-Bretanha. Veja-se discussão sobre McTaggart, mais à frente.

    Bradley trabalhou por meio século em Oxford sem dar aulas devido a problemas de saúde;

    ficou conhecido pelos seus textos. Foi o primeiro filósofo britânico a ser condecorado

    com a Ordem do Mérito (O. M.). Não gostava de ser chamado de hegeliano, e quando

    reconhecia alguma dívida para com Hegel logo continuava com algo como, “mas o leitor

    deve ter em mente que somente eu sou responsável pelo que eu digo”; e recomenda

    Herbart como “antídoto” para Hegel. De acordo com Metz, permaneceu “virtualmente

    intocado por Kant” (op. cit. p. 323). É com Bradley que o hegelianismo britânico ganha

    sua personalidade própria. Além de Herbart, outras influências sobre Bradley são Lotze

    e Sigwart, principalmente na Lógica, e Volkmann na psicologia. O débito de Bradley com

    estes filósofos alemães reflete-se em seu anti-psicologismo, que também chega a Russell.

    Entretanto, nenhuma influência é decisiva o suficiente para evitar que a filosofia de

    Bradley seja completamente própria e original. Bradley afirma que as abstrações que

    fazemos ao predicar levam a contradições. Para ele, nossa sensação é uma unidade –

    quando percebemos um tecido vermelho, por exemplo, percebemos uma unidade e não

    uma coisa e uma qualidade. Quando passamos ao plano do pensamento, separamos o

    vermelho da coisa vermelha e predicamos. Este é um processo de abstração que leva

    necessariamente a contradições. Por este motivo, o mundo descrito pelo pensamento é

    eivado de contradições: é um mundo de aparências e não a realidade. Este traço

    racionalista é claramente verbalizado pelo filósofo: “se fatos e princípios colidem, tanto

    pior para os fatos16”. A contradição do juízo, criada pela abstração que separa a unidade

    coisa-qualidade, para depois uni-los, consiste em que a) ou afirmamos de algo, algo que

    ele não é; ou afirmamos uma tautologia. Assim, se todo o pensamento é contraditório, o

    Absoluto não pode ser pensado.

    Em termos gerais, poderíamos listar nove traços comuns ao neo-hegelianismo britânico,

    raros entre as monumentais diferenças existentes entre os filósofos a ele pertencentes (de

    Mander, op. cit.):

    16 Presuppositions of a Critical History apud Passmore op. cit. p. 60.

  • 30

    a) Há uma unidade subjacente a todo o conhecimento.

    b) O conhecimento comporta camadas hierárquicas de verdade, de diferentes ordens.

    c) A Filosofia gera conhecimento.

    d) A área de interesse da Filosofia é a realidade considerada como um todo.

    e) Sendo o todo o objeto da Filosofia, e sendo a unidade a “substância” do

    conhecimento, a Filosofia é ela mesma um todo unitário.

    f) Ênfase na Metafísica: as questões filosóficas desde a Lógica até a Ética são

    metafísicas.

    g) Como a realidade é ideal, a Lógica é inseparável da Metafísica.

    h) Foco em questões sociais e políticas, e atuação social frente à crueza da

    industrialização inglesa.

    i) Grande inter-relação e trabalho conjunto entre os idealistas eles mesmos.

    2.2 McTaggart

    McTaggart exerce uma influência direta e pessoal em Russell. Em sua autobiografia,

    Russell descreve sua amizade com McTaggart, que se inicia quando adentra Cambridge,

    e só rompida no início da Primeira Guerra, quando Russell adere ao movimento pacifista,

    e, segundo ele, McTaggart acaba por capitanear seu desligamento de Cambridge.

    McTaggart era um hegeliano, e naquele tempo [entre 1890 e 189417]

    ainda jovem e entusiasta. Ele exerceu uma grande influência

    intelectual sobre a minha geração, apesar de, em retrospecto, eu

    penso que não foi uma boa influência. Por dois ou três anos, sob sua

    influência, eu fui um hegeliano. (Auto., p. 88)

    Russell encontra McTaggart em 1890, duas semanas após chegar a Cambridge. Antes de

    seu contato com ele, Russell era um “utilitarista, e com inclinações para o empirismo”

    GRIFFIN, 1991 p. 47; McTaggart teria declarado o utilitarismo “estéril” e o empirismo

    “cru”, e teria dito a Russell que uma abordagem mais sofisticada poderia ser encontrada

    em Hegel.

    McTaggart era de muitas maneiras idealmente talhado para ser

    mentor de Russell. De um lado, seu desenvolvimento intelectual foi

    17 “Apesar de que após 1898 eu não aceitava mais a filosofia de McTaggart, eu permaneci próximo dele,

    até uma ocasião durante a Primeira Guerra...” (id. ib.) Isto é, esta influência ocorre durante a elaboração

    da Dialética das Ciências. Não obstante Russell atende ao curso de McTaggart sobre Lotze na Quaresma

    de 1898.

  • 31

    de um paralelismo bem próximo ao de Russell. Em 1885 quando ele

    chegou em Cambridge, McTaggart era um materialista ateu, tinha

    Mill como uma de suas divindades e tinha lido e aceito (por um

    tempo) Herbert Spencer. Tudo isto ele tinha em comum com Russell,

    o qual estava tentando escapar das consequências depressivas destas

    doutrinas [...] McTaggart, como Russell, sentia uma necessidade

    emocional pelo misticismo, mas, também como Russell, demandava

    rigor intelectual tanto quanto. GRIFFIN, 1991, p. 48.

    Dois anos depois de sua chegada, Russell teve suas habilidades intelectuais reconhecidas

    pela sua eleição para “Os Apóstolos”18. Lá alinhava-se com McTaggart em diversas

    discussões, como na polêmica sobre a aceitação de mulheres na sociedade ou não.

    McTaggart, que possuía um papel proeminente na Sociedade, provocou seus membros no

    sentido de que podiam estar perdendo “algo de real valor” em não admitir mulheres.

    Russell preparou um paper defendendo esta posição e leu para a sociedade em fevereiro

    de 1894, com o título “Lööberg or Hedda?” (DEACON, 1985).

    Finalmente, Russell dedica seu primeiro livro a McTaggart, “a cujos discurso e amizade

    este livro deve sua existência” (Foundations of Geometry, caput).

    McTaggart é personalista e pluralista. Esta segunda fase do idealismo britânico opunha-

    se à ideia do Absoluto como um espírito único (representada ali principalmente por

    Bradley) em favor de uma concepção de realidade como uma “Eterna República”

    composta por mentes interligadas entre si e com Deus. Esta concepção tem dificuldade

    de encaixar Deus; relega a Ele um modesto papel de primus inter pares cuja função é um

    tanto confusa. “J. E. McTaggart corta o nó Górdio: Deus precisa partir. O real é uma

    comunidade de selves finitos.[...] Ele é, em termos de habilidade, o Bradley do Idealismo

    Personalista.” (Passmore, op. cit., p. 75).

    Mais tarde McTaggart contaria com suas próprias palavras como se considera:

    Ontologicamente sou um idealista, desde que acredito que tudo o que

    existe é espiritual. Eu sou também, em um sentido do termo, um

    idealista personalista. Pois eu acredito que cada parte do conteúdo

    do espírito recai sobre algum self, e que nenhuma parte dele recai

    sobre mais de um self; e que as únicas substâncias são selves, partes

    de selves, e grupos de selves ou partes de selves. [...] Como há mais

    substâncias do que uma só, elas devem existir em relação uma com

    as outras – apesar de que, é claro, relações também existem entre

    18 The Cambridge Conversazione Society, “The Society” como Russell chamada, ou The Apostles, seu

    apelido secreto provavelmente oriundo do fato de que foram 12 seus fundadores. Era um grupo altamente

    seleto, ao qual somente por convite se podia adentrar, que se reunia Sábados à noite para discutir um paper

    que um dos membros apresentava.

  • 32

    qualidades e relações, da mesma maneira que ambos, qualidades e

    relações, têm qualidades. MCTAGGART, 1924 pp. 251-253.

    McTaggart, de acordo com Milkov, ministrou o curso de Lotze que Russell atendeu.

    Entretanto (ou ademais), parece consenso que o hegelianismo de McTaggart guardava

    distância do Hegel real, estando provavelmente mais próximo de Lotze. Milkov afirma

    que “Desafortunadamente, o estudo de McTaggart sobre Hegel [Studies in Hegelian

    Dialetic] estava longe de ser verdadeiramente hegeliano” MILKOV, 2008 p. 186; e

    Passmore que “ninguém jamais se convenceu de que o Hegel ele descreve existe fora da

    imaginação fértil de McTaggart.” (PASSMORE, 1966 p. 76).

    Voltemo-nos, pois, a Lotze.

    2.3 Lotze

    Não podemos neste estudo fazer mais do que uma brevíssima incursão nos principais

    traços do idealismo peculiar de Lotze, com o intuito de entender sua influência sobre

    Russell; em seguida analisamos mais detalhadamente o trabalho de Milkov que trata

    diretamente da influência de Lotze sobre Russell.

    Lotze é o terceiro alemão mais influente na Grã-Bretanha. Isto ocorre por ao menos três

    fatores históricos (além dos filosóficos). Primeiro, muitos ingleses tiveram contato direto

    com Lotze em Göttingen (Seth ou Pringle-Pattison, James Ward e R. B. Holdane). Lotze

    era visto como herdeiro direto de Hegel, e seus textos eram bem menos impenetráveis do

    que os deste. “Era consequentemente suposto que ele fornecia o melhor caminho para o

    mundo misterioso de Hegel [...] e muitos que foram afastados pelo monismo rígido de

    Hegel encontraram satisfação no sistema19 mais solto de Lotze” (Metz p. 257).

    Passmore acredita que a falta de um sistema é o que garantiu a Lotze sua influência, pois

    cada filósofo podia pegar o que lhe fosse útil20. Beiser (BEISER, 2014) afirma que esta é

    uma característica de Lotze e Trendelenburg:

    19 Metz utiliza o termo “sistema” de forma ampla; refere-se por exemplo aos “sistemas” de Bradley, de

    Bosanquet e de McTaggart (p. 271); onde claramente não há “sistemas” no mesmo sentido do sistema de

    Hegel. 20 Uma certa passagem do Prefácio da Lógica tem sido utilizada fora de contexto para dizer que o próprio

    Lotze instruía o leitor a assim proceder; mas na verdade Lotze se refere especificamente ao Livro Segundo:

    “O Livro Segundo não necessita de prefácio; é bastante livre das amarras de [um] Sistema, e apenas põe

    junto o que quer que eu pensei ser útil. A seleção da matéria poderia ser bem diferente em muitas partes,

    muito poderia ser acrescentado, e muito, será pensado, poderia ser omitido. O leitor poderia considerá-lo

    um Mercado aberto, onde ele pode simplesmente passar reto pelas mercadorias que não precisa.” LOTZE,

    1884 p. x.

  • 33

    Tendo encorajado fortemente seus estudantes a pensarem por si

    próprios, nenhum dos dois formou uma escola ou teve discípulos.

    Suas influências, portanto, vieram não no atacado – numa doutrina

    completa ou sistema fechado – mas aos pedaços – em muitas

    sugestões espalhadas e ideias disparatadas. Seu legado também

    repousou pesadamente em seus exemplos: sobre como ler um texto

    cuidadosamente, sobre como pensar em um problema de maneira

    completa e detalhada, sobre como escrever e argumentar com

    clareza. BEISER, op. cit. p. 2.

    Green, Bosanquet e Bradley (dentre outros) participaram da tradução System of

    Philosophy para o inglês. Além deste, Logic, Metaphysic (ambos em três volumes),

    Microcosmus e sua série de seis “Outlines” também foram traduzidos.

    O terceiro mais importante motivo pela adoção de Lotze na Grã-Bretanha é que, como

    vimos, a Alemanha realizava sua volta à Kant, com grande crescimento do empirismo, e

    restavam poucos “fornecedores de metafísica” para serem importados por filósofos

    britânicos desejosos de uma alternativa para enfrentar o materialismo, o ateísmo e o

    realismo ingênuo. Lotze era um deles, talvez o principal, último remanescente de um

    idealismo metafísico, anti-psicologista e não-ateu.

    Não obstante, Lotze não é imune à “volta à Kant”:

    A Metafísica de Lotze começa com uma explicação do propósito da

    filosofia, um começo apropriado, e deveras necessário quando a

    própria identidade da filosofia estava em jogo. É notório que Lotze

    defina o propósito da filosofia em termos essencialmente

    epistemológicos, i.e., como um exame ‘dos pressupostos básicos da

    investigação’. Esta é uma clara reação contra o sistema maduro de

    Hegel, o qual inicia-se com metafísica, com o conhecimento do

    Absoluto. Implicitamente, mas deliberadamente e decididamente,

    Lotze estava tomando a filosofia de Kant, o qual fez da crítica do

    conhecimento o ponto inicial de sua filosofia. Portanto, os termos

    que Lotze utiliza para definir a filosofia são kantianos. Beiser, op.

    cit. p. 155.

    Ademais, sua formação médica e a influência de Herbart o afastou de Hegel em direção

    ao realismo, e sua epistemologia o afastou do realismo, deixando-o numa posição

    intermediária. Por motivos financeiros, optou por obter uma profissão mais prática antes

    de dedicar-se à filosofia, e escolheu medicina. Estudou em Leipzig na década de 1830,

    que vivia uma efervescência do método experimental, com Fechner, Volkman e os irmãos

    Ernst e Eduard Weber. Estes conduziam experimentos pioneiros em psicologia e

    fisiologia. Com eles, Lotze aprendeu a importância da mensuração, do experimento e da

    observação. Este foi um importante contrapeso realista em seu idealismo, que acaba

  • 34

    adquirindo traços peculiares – traços estes que atravessam o canal e chegam à Grã-

    Bretanha, afastando ainda mais de Hegel o novo idealismo, já eivado da forte

    personalidade dos idealistas britânicos.

    Apesar de Lotze rejeitar o realismo ingênuo, ele ainda pensa que sua

    explicação do processo de percepção é compatível com algum grau

    de realismo. Ele está convencido que nenhuma explicação da

    sensação puramente idealista pode ser satisfatória; não podemos

    assumir que as atividades do sujeito sozinhas são a fonte da sensação,

    a qual sempre requer algum estímulo externo. [...] Pois mesmo que

    não haja similaridade de conteúdo entre sensação e estímulo, há

    ainda uma proporcionalidade entre eles [...] mudanças na

    intensidade, duração e velocidade do estímulo causam mudanças

    correspondentes na sensação. (id. p. 224)

    Lotze chama sua própria posição de idealismo teleológico.

    É ‘idealismo’ porque limita nosso conhecimento ao mundo das

    aparências, a como as coisas aparecem para nossa consciência, a

    nossas formas de intuição e pensamento sobre o mundo. É

    ‘teleológico’ em ao menos dois sentidos. Primeiro, em um sentido

    pragmático, porque ele justifica nossas categorias básicas, e nossa

    crença na realidade das coisas, apelando para o propósito que elas

    ajudam a atingir. Segundo, num sentido metafísico, porque ele

    conecta o mundo das aparências com o mundo dos valores – o

    normativo e o natural – através do conceito de propósito. Enquanto

    o sentido pragmático refere-se aos fins humanos, o sentido

    metafísico aponta para os fins do cosmo mesmo. (id. p. 163).

    Lotze constava da lista de leituras que Harold Joachim deu a Russell a pedido deste.

    Joachim era irmão da esposa do tio de Russell, Rollo. Desta lista também constava a

    Lógica de Bradley, e a de Bosanquet.

    Griffin relata que Lotze também constava da lista de leitura da parte II do Tripos21 de

    Ciências Morais de Cambridge. Depois de terminar o Tripos I de Matemática, Russell

    mudou-se para os Tripos I e II de Ciências Morais. O Tripos I de Ciências Morais

    consistia em Lógica tradicional (silogismo, indução, teoria de termos e proposições); o

    Tripos II consistia em Lógica simbólica, estatística, método científico, probabilidade e

    aprofundamentos dos tópicos do Tripos I. A lista de leituras do Tripos II continha a

    21 O ensino de Cambridge era todo voltado à preparação para grandes exames chamados Tripos. Isto foi

    motivo de crítica de muitos estudantes e professores, inclusive do próprio Russell. Além disso, a

    Matemática em Cambridge era aplicada, pois sucessivos Deans consideravam esta uma contribuição da

    universidade ao desenvolvimento social da Inglaterra; e isto, aliado ao sistema de Tripos, colocou a

    Matemática de Cambridge em atraso em relação aos desenvolvimentos teóricos da Matemática Pura do

    Continente – não só da Alemanha, mas também da Itália.

  • 35

    Lógica de Lotze (traduzida por Bosanquet); Princípios de Lógica de Bradley; a Lógica

    de Bosanquet; a Lógica de Sigwart; e ainda, Venn, Boole e Jevons em Lógica simbólica

    (GRIFFIN, 1991 pp. 24-26).

    2.2. O artigo Russell’s Debt to Lotze de Milkov

    Este artigo merece uma seção própria e uma análise detalhada, por dois motivos: primeiro,

    porque ele dá suporte a algumas de nossas afirmações, contrariando outras; e segundo,

    porque a discussão que Milkov faz sobre a influência de Lotze em Russell atinge o cerne

    de nossa discussão da passagem do programa Tiergarten para o Principles. Milkov

    apresenta um ponto de vista próprio (isto é, não acompanhado por nenhum outro

    comentador) sobre a “virada” de Russell de 1898, o qual não pode passar sem discussão

    neste estudo.

    No artigo (MILKOV, 2008), Milkov afirma que a filosofia de Russell foi influenciada

    por Lotze, entre 1896 e 1898, através de três eventos concretos, os quais deixam

    evidências em seus escritos subsequentes a cada evento. Apresentaremos os três eventos

    de maneira concisa e em seguida passamos a detalhá-los.

    No primeiro evento, em 1896, a leitura de Lotze pela recomendação de Joachim e por

    constar do programa de Ciências Morais de Cambridge, reflete-se em seu trabalho de

    fellowship, depois Foundations of Geometry, que apresenta o Princípio de Diferenciação,

    oriundo de Lotze. Segundo este princípio, os objetos de cognição humana são complexos

    segmentados que possuem partes diversas.

    No segundo evento, a releitura da Metafísica em 1897, Russell afirma que o dilema

    monismo-pluralismo depende de como vemos espaço e tempo: como adjetivais ou como

    relacionais, respectivamente22. Mas apenas afirma a relação entre os dois pares de

    concepções, sem tomar nenhum caminho.

    22 Isto é, se adotamos a teoria das relações internas (como Russell chama a teoria de Bradley), de que todas

    as relações podem ser reduzidas a qualidades de partes de um mesmo todo, com relação a espaço e tempo,

    temos que concomitantemente adotar uma posição monista: toda a realidade é parte de um Absoluto; se, ao

    invés disto, adotarmos uma teoria de relações externas, que une “termos” (como posteriormente Russell

    chamaria em sua nova teoria do juízo) distintos e que não podem (as relações) ser reduzidas a qualidades,

    com relação a espaço e tempo, então temos que concomitantemente adotar uma posição pluralista – a

    realidade é composta por diversas coisas diferentes (“selves” para os personalistas). No último Capítulo,

    quando verificarmos o aprendizado de Russell da Dialética das Ciências relativo à teoria das relações,

    exploraremos mais explicitamente porque a interpretação de Russell é apenas uma simplificação da teoria

    de relações de Bradley.

  • 36

    Russell opta pela concepção relacional apenas em 1898, após atender ao curso de Lotze

    ministrado por McTaggart em janeiro-fevereiro de 1898 (o terceiro evento).

    Não obstante a afirmação de Milkov, as anotações de aula de Russell mostram que ele

    contrapõe as ideias de Lotze expostas por McTaggart com suas próprias considerações

    críticas. A mudança na concepção de relação, se ocorreu por este episódio, o foi pela

    crítica à concepção de Lotze. As anotações dizem o seguinte sobre as relações:

    Relações entre duas ideias é uma terceira ideia e portanto não pode

    ser explicada. Fala de relações entre coisas ou entre coisas e ideias.

    O certo é falar de relações entre ideias, não entre coisas. O que quer

    que seja que valha aqui está em cada um [dos relata?]. Se uma

    relação existe, [é] algo diferente [de] se uma relação não existe. No

    caso de ideias, [a] diferença é [uma] diferença mental, não de ideias.

    Portanto relações podem ser entre ideias. Mas, [no] caso de coisas,

    [a] relação não pode flutuar no ar: a única coisa a ser mudada é [são]

    as coisas relacionadas. Relação entre coisas significa mudanças

    correlatas. É claro que ideias são afetadas pela relação, mas a relação

    não é meramente esta afetação. No que concerne a coisas, temos

    mudança em A e mudança em B [relata]. Parece ter feito [as] coisas

    diferentes, e perdido a relação. Isto é desenvolvido na Metafísica

    pela unidade das coisas. RUSSELL, Lent Term 1898., pp. 2-3.

    Estas aulas teriam ajudado Russell a desenvolver uma nova teoria do juízo entre abril e

    junho do mesmo ano. Esta nova teoria do juízo diz que proposições relacionam termos

    distintos entre si (e não afirmam qualidades ou relacionam internamente partes de um

    todo). Espaço e tempo, acompanhando esta concepção, são séries de momentos com

    relações externas entre si.

    As aulas de McTaggart sobre Lotze ajudaram Russell a desenvolver sua nova teoria do

    juízo entre abril e junho de 1898; esta nova teoria afirma que juízos são relações externas

    entre termos diferentes entre si (o que implica pluralismo). De acordo com isto, espaço e

    tempo são séries de lugares e momentos distintos com ligações externas entre si.

    As discussões entre Russell e Moore tiveram lugar entre maio e junho de 1898, após

    Russell desenvolver esta concepção. Tais discussões, ao contrário do que afirma o próprio

    Russell em My Philosophical, não foram a causa de sua “virada”.

    Milkov afirma que a forma de hegelianismo de Russell é “vago e genérico”, podendo ser

    rastreado por quatro características:

    [...] a influência de Hegel sobre Russell é vaga e genérica. Podemos

    rastreá-la através de quatro exemplos: 1. A aceitação da prova

    ontológica da existência de Deus. 2. O projeto para uma transição

  • 37

    dialética de uma ciência para outra e para uma enciclopédia das

    ciências. A ideia era que, quando desenvolvidas em isolamento, as

    ciências são incompletas e enredadas em contradições; esta

    incompletude pode ser neutralizada apenas através de uma transição

    dialética para uma ciência mais ampla. 3. A propensão de Russell

    pelos paradoxos a qual o ajudou a descobrir o paradoxo das classes.

    4. A principal tarefa de Russell como filósofo era, além disso,

    estabelecida em termos hegelianos: acima de tudo, ele esforçou-se

    para resolver alguns problemas da Lógica e Matemática (ruins) de

    Hegel – para acertá-las com a ajuda das ideias de Cantor e

    Weierstrass. Esta, contudo, é de fato uma forma muito solta de

    hegelianismo. (Milkov, op. cit., pp. 186-187)

    Se esta forma “solta” de hegelianismo moldou a forma e a direção da filosofia de Russell,

    seu conteúdo foi muito mais fortemente influenciado por Lotze: “Em resumo, Lotze deu

    a Russell tanto os temas e problemas específicos quanto os meios de lidar com eles.” (id.

    ib.)

    Evidências desta influência aparecem em Foundations of Geometry, RUSSELL, 1900

    (Leibniz), e Principles. No primeiro, uma seção inteira é dedicada à filosofia do espaço

    de Lotze; no segundo, Lotze é o filósofo do século XIX mais citado (e não Bradley ou

    Frege); e no terceiro novamente um Capítulo inteiro é dedicado à concepção de espaço e

    substância de Lotze.

    Milkov descreve a filosofia de Lotze como caracterizada pelo princípio de que processos

    físicos, biológicos, psicológicos, sociais, éticos e culturais devem ser descritos

    mecanicamente; e que a metafísica só deveria ser perseguida quando esgotados os

    recursos da descrição mecânica23. Guardadas estas ressalvas, a ciência pode então

    perscrutar as razões de um ser superior.

    O próprio Lotze chamou esta concepção, combinada com o princípio

    do mecanismo, de ‘teleomecanismo’. Resumidamente, o método do

    ‘teleomecanismo’ ou do ‘idealismo teleológico’ é o de perseguir a

    verdade em alguma conexão teleológica. Ao mesmo tempo, Lotze

    insistiu que os cientistas deveriam investigar elementos do ser

    supremo [highest being] somente quando alcançassem problemas

    fundacionais. (id. p. 188)

    Milkov compara o teleomecanismo de Lotze àquela abordagem descrita por Russell em

    Principles – que devemos perseguir investigações metafísicas somente ao alcançar

    indefiníveis tais como número, tempo, cores etc.

    23 Isto é, em termos de encadeamento causal que exclui causas finais e forças vitais. cf.: AUDI, 1999 p.550.

  • 38

    A seguir detalhamos os três impactos.

    O primeiro impacto de Lotze em Russell diz respeito à noção de ordem espacial e ordem

    temporal. Russell aceita a ideia de Lotze que para que o pensamento seja possível os

    objetos de pensamento devem ser complexos – compostos de elementos claramente

    diferentes (o simples é impensável pois os objetos do pensamento só podem ser pensados

    através de alguma complexidade). A complexidade só pode ser alcançada se nos

    referirmos a termos individuais.

    Paralelamente, na percepção deve haver um “princípio de diferenciação”, segundo o qual

    as coisas apresentadas o são como várias. Russell chama este elemento de diferenciação

    de “forma de externalidade”. O argumento de Russell na teoria da percepção é paralelo

    ao argumento na teoria do juízo (pensamento): os objetos de percepção devem ser

    complexos pois para percebê-los devemos diferenciar suas partes e relacioná-las – e estas

    devem ser externas umas às outras.

    Para os seres humanos, espaço e tempo são fundamentais para suas formas de

    externalidade. Além disso Russell distingue entre espaço vazio e ordem espacial. Espaço

    vazio para Russell é a possibilidade de se estabelecer relações espaciais entre figuras e

    dentro de figuras. O espaço vazio é conceitual24 e a priori; é diferenciado através da

    matéria, e a unidade da diferenciação é o átomo.

    Estas noções de Russell vêm de duas ideias de Lotze (apesar de sua crença de que teriam

    vindo de Bradley e Bosanquet): a distinção entre espaço vazio e ordem espacial de

    Foundations of Geometry seguem a distinção lotzeana entre extensão e lugar-momento,

    a qual não existia em Kant.

    A distinção consiste em afirmar que extensão se refere a uma multiplicidade infinita de

    possíveis direções; enquanto que o lugar e momento no tempo dão realidade às

    possibilidades. Com esta concepção Lotze opunha um espaço objetivo ao espaço

    subjetivo de Kant25.

    24 “Mas podemos concordar, a respeito do espaço vazio, que o ‘infinito todo dado’ é realmente dado? Não

    devemos, a despeito do argumento de Kant, considera-lo como totalmente conceitual?” Foundations of

    Geometry§ 204. 25 O argumento de Lotze, que Russell reproduz em Foundations of Geometry, é que se o espaço fosse

    subjetivo, outros seres (não humanos) teriam um espaço diferente do nosso. Russell acredita que o

    argumento é cogente e acrescenta que mesmo “Tom, Dick ou Harry” poderiam ter intuições diferentes.

  • 39

    A segunda ideia de Lotze que Foundations of Geometry utiliza é o seu atomismo, que já

    estaria presente na Revisão de Hannequin, de 1896. De acordo com essa concepção,

    átomos são os últimos blocos constituintes do Universo, e permanecem imutáveis em

    todas as composições das quais participam. Além disso são pontuais, isto é, sem extensão.

    Extensão só é possível se há pontos que possam ser identificados e diferenciados.

    O segundo impacto de Lotze sobre Russell ocorre em 1897 quando este relê a Metafísica,

    e reflete-se no texto “Why do we regard time, but not space, as necessarily a plenum?”

    (Why Do We Regard) 26. Em uma nota que brevemente antecede Why Do We Regard,

    “Can we make a dialectical transition from punctual matter to the plenum?” Russell se

    refere explicitamente a Lotze. Ali Russell coloca ênfase na análise Lógica dos problemas

    metafísicos: distingue entre dois conceitos de espaço e tempo: como relações ou como

    adjetivos do Absoluto; afirma qu