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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros COSTA, IF. Organização burocrática e controle social. In: Polícia e sociedade: gestão de segurança pública violência e controle social [online]. Salvador: EDUFBA, 2005, pp. 65-84. ISBN 978-85-232- 1219-3. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license. Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0. Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0. Parte I - Análise sócio-organizacional e problemática da burocracia Organização burocrática e controle social Ivone Freire Costa

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros COSTA, IF. Organização burocrática e controle social. In: Polícia e sociedade: gestão de segurança pública violência e controle social [online]. Salvador: EDUFBA, 2005, pp. 65-84. ISBN 978-85-232-1219-3. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International license.

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 4.0.

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 4.0.

Parte I - Análise sócio-organizacional e problemática da burocracia

Organização burocrática e controle social

Ivone Freire Costa

A problemática da organização burocrática na atualidade é com-preendida como estrutura e forma de pensar, materializada no con-trole social, particularmente sob condições de insegurança e desi-gualdade entre diferentes e múltiplos poderes sociais.

Os modelos alternativos de busca de flexibilidade, em substi-tuição ao burocrático, vêm-se defrontando com dificuldades e insu-ficiências nas suas abordagens, uma vez que o problema da rigidezburocrática continua sendo um campo de incerteza e dilema, aindadependentes de condições sociais não resolvidas. As organizaçõesprosseguem apresentando certas características típicas do modeloweberiano, que as definiu como um poder legal-formal, diferente-mente do tradicional e do carismático, instalando-se, no percursodo século XX e na atualidade, grandes inquietações, pela proble-mática da sua deterioração e da necessidade social dos serviços aserem por elas prestados, especialmente os governamentais.

Essa problemática visualizada, com maior ênfase na década de70, por diversos teóricos, foi tratada de forma radical por WarrenBennis (1973), prevendo que o mundo veria nos próximos 25 a 50anos, portanto entre 1998 e 2023, o fim da organização burocrática.Ao contrário de suas previsões, este fato ainda não se constatou,podendo-se até afirmar, frente às evidências atuais, a tendência paraa sua permanência, como forma de expressão de controle de pode-res, em espaços sociais racionalmente estruturados.

Organização Burocráticae Controle Social

Os temas da ordem social,da desigualdade, do poder,e da organização social estão esboçadosmuito antes de haver sociologia;os sociólogos constroem as suasdisciplinas num permanente diálogo como passado e com os autores maisrepresentativos desse passado.

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Essa tendência sugere como resultado de insegurança social edo apelo de proteção dos indivíduos, os quais, quanto mais desar-mados se encontram, tanto mais o fenômeno burocrático aparececomo uma forma de controle pelo Estado, da sociedade, das organi-zações e dos indivíduos.

Optamos por tratar tais questões pelo caminho do controle, vis-to sob a lógica de diferentes poderes, em situação de ambigüidadese paradoxos, à luz do pensamento weberiano, matriz histórica dopensar burocrático; e também das abordagens desse fenômeno, naperspectiva do conhecimento sócio-organizacional, através das idéi-as de diferentes pesquisadores, para subsidiar a compreensão dopapel da polícia na segurança pública, bem como as suas possibili-dades de mudança.

Burocracia, Organização e Poder

Embora seja aparentemente simples a constatação da força bu-rocrática, observa-se que esse fenômeno tem escapado a toda tenta-tiva de definição. É que, quando se fala em burocracia, fala-se naverdade de vários fenômenos associados. Ora se está referindo-se àclasse dominante; ora à camada social de altos funcionários públicose administradores de empresa comuns em países capitalistas, e orase alude a um tipo de organização – a organização burocrática – ondea divisão do trabalho é metódica e disciplinadamente conduzida paraos fins perseguidos, ou, ainda, para um modo de pensar ou de viver.

No sentido popular, a burocracia é entendida como papelada,número exagerado de tramitações, apego excessivo aos regulamen-tos, morosidade, enfim, ineficiência. A bem da verdade, incorpo-rou-se ao termo burocracia aquelas expressões negativas, estuda-das por Merton1, como disfunções burocráticas e, posteriormentetambém, por Crozier, como funções latentes desse sistema.

Etimologicamente, a palavra burocracia origina-se do latim vul-gar bura – pano grosseiro de lã. O primeiro sentido atribuído ao termo,já no século IV, e a seu derivado bureau , nos séculos XII ao XV, segun-do Lakatos (1977, p.53), referia-se à própria mesa de escrever e ao lugaronde ela se encontra. A seguir, sucessivas significações foram desen-

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volvidas: “local de trabalho de quem desenvolve qualquer atividadeprofissional sobre mesas, pessoas que exercem tal função [...].” No sé-culo XVIII, significou a influência crescente dos escritórios (e da admi-nistração) na atividade das pessoas. Foi, no entanto, o economista fran-cês Jean-Clau-de Marie Vincent (1712-1759), o formulador dohibridismo bureaucratie, ao juntar ao termo bureau o radical kratia(poder, autoridade, lei), do grego krátos (força, domínio, poderio). Emportuguês, o termo se firmou como burocracia e burocrático.

Na acepção marxista, a burocracia foi estudada como forma dedominação estatal na antiga Mesopotâmia, China, Índia, ImpérioInca, Antigo Egito e Rússia. Assim, para Marx, a burocracia emer-ge como mediação entre os interesses particulares e gerais, em fun-ção do modo de produção asiático, para explorar as obras hidráuli-cas de irrigação do solo. Para tanto, a burocracia vai coordenar osesforços da sociedade de então e, posteriormente, vai explorar ascomunidades subordinadas a ela, através da apropriação da terrapelo Estado (estatização da terra) e, inclusive, da posse do exceden-te econômico. O modo de produção asiático caracterizou-se pelaintervenção do Estado na economia, tendo como base a burocracia,seja no âmbito estatal, seja no âmbito das corporações privadas. Aburocracia mantinha sob sua tutela as classes comerciante ecampesina, assim como toda a aristocracia territorial, porquantodependiam dela para manter as obras hidráulicas e a nomeaçãopara a administração pública2 (1971).

O desenvolvimento desse mecanismo, como forma dominantede estruturação de atividades sociais, acompanha o desenvolvimentoindustrial capitalista, a partir de dois principais tipos de organiza-ção: a empresarial e a estatal.

Quanto mais as empresas e o Estado se organizavam, melhor suas rela-ções se ajustavam; quanto mais o trabalho era racionalizado e sistema-tizado através de organização, maior era o desenvolvimento [...] O Esta-do, como um poder burocrático organizado e, a um tempo, burocraciacivil e militar, e dispondo do monopólio da violência, isto é, em poderesde legislar e tributar, exerce estas atividades, através de aparelhos re-pressivos ideológicos e econômicos. (MOTA, 1988, p.56)

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É preciso ter sempre em mente que Weber definiu o poder comosendo a possibilidade de alguém ou de algum grupo impor seu arbí-trio sobre o comportamento de outros. Mas ele não está interessadono poder em geral, e sim em um tipo particular, que é a dominação.A dominação caracteriza-se como um estado de coisas em que ogovernante – ou seja, a pessoa que impõe seu arbítrio sobre os de-mais – acredita ter o direito de exercer o poder. Já o governado, vaiconsiderar sua obrigação obedecer às ordens do governante. Nadominação, que é uma das categorias de autoridade estabelecida,existem princípios e crenças que tornam legítimo aos olhos dogovernante e dos governados o exercício do poder. E essa legitimi-dade acaba por conferir estabilidade à dominação. Esse aparatoadministrativo que corresponde à dominação legal dá-se o nome deburocracia ou organizações burocráticas (1963).

Delineamento e complexidade daOrganização Burocrática

Por ter absorvido a crítica marxista da democracia burguesa,Weber afastou-se do conservantismo e do monarquismo. Acreditavaque a democracia constitucional era a única solução para os proble-mas internos e externos da Alemanha de seu tempo. Nessa perspec-tiva, a abordagem weberiana da estrutura política aproxima-se daabordagem marxista das estruturas econômicas. Enquanto Marxrelaciona os vários fatores sociais e políticos aos meios de produção,Weber, em questões políticas, encara o controle sobre as armas esobre os meios de administração. Essa preocupação com o controledos meios materiais de poder político é tão fundamental para a com-preensão dos tipos de estrutura política, quanto a preocupação comos meios de produção; e, no caso de Marx, é importante tambémpara a compreensão das estruturas econômicas.

Para Weber, as burocracias têm sua fonte de legitimidade nopoder racional-legal, e não no poder patriarcal, patrimonial oucarismático. A burocracia é, para ele, um tipo de poder legal-for-mal, fundado na racionalidade em relação aos fins.

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Cumpre, portanto, caracterizar a forma de organização a quecorresponderia este tipo de poder, na acepção original weberiana, afim de se obter um quadro de referência da análise que se querempreender.

O aparato administrativo em que se assentaria a racionalidadeburocrática, na acepção weberiana, poderia ser traduzido sintetica-mente através de três características básicas: formalização,impessoalidade e direção por administradores profissionais, segun-do Motta e Bresser Pereira (1988, p.66). Para conseguir eficiência, aburocracia precisa especificar antecipadamente e nos mínimos deta-lhes esses elementos, indicando com isso como a ação deveria serrealizada. Detalhadamente, tais características estão indicadas como:caráter legal das normas e regulamentos e das comunicações; cará-ter racional da divisão do trabalho; impessoalidade nas relações; hi-erarquia de autoridade; rotinas e procedimentos estandardizados;competência técnica e meritocracia; especialização da administra-ção que é separada da propriedade; profissionalização dos partici-pantes; e completa previsibilidade do funcionamento.

O formalismo da burocracia se expressa no fato da autoridade deri-var de um sistema de normas racionais escritas e exaustivas. Essas nor-mas definem com precisão as relações de mando e subordinação, distri-buindo as atividades a serem executadas de forma sistemática, tendoem vista os fins pretendidos. A administração é formalmente planejada,organizada, e sua execução se realiza através de documentos escritos.Em síntese, o formalismo exprime-se na autoridade que deriva de nor-mas racionais-legais. Tais normas são validadas por este critério, o queconfere à pessoa investida da autoridade o poder de coação sobre ossubordinados, colocando à sua disposição meios coercitivos capazes deimpor disciplina. A autoridade é baseada no direito, isto é, num sistemade normas, cuja obediência pode ser imposta pela coação.

O poder do administrador burocrático está definido pelas fun-ções que ele exerce num sistema firmemente organizado de mandoe subordinação, mediante supervisão dos inferiores pelos superio-res. A organização assume, assim, uma forma piramidal.

Ora, em uma burocracia plenamente desenvolvida, afirma Weberque a hierarquia de funções é monocrática, ou seja, existe apenas

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um chefe para cada subordinado, ao invés de comissões várias. Se-gundo ele, isto levaria a uma maior rapidez nas decisões.

Já em relação à impessoalidade, a divisão do trabalho é realiza-da em termos de cargos abstratamente definidos, e não de pessoas.Dessa forma, a autoridade e a responsabilidade pertencem ao car-go, independentemente da pessoa que o ocupe. É a norma que cria ocargo e que define suas atribuições. A obediência está em relação auma norma impessoal dentro da competência limitada, racional eobjetiva do referido preceito. Assim, a impessoalidade administrati-va procura cobrir todas a áreas da organização, prever todas as ocor-rências e enquadrá-las dentro do comportamento definido.

O modelo de organização burocrático baseia-se, portanto, nahierarquia e na impessoalidade, encontrando, no início do séculoXX, um campo fértil ao seu desenvolvimento, por sua condição deresposta ao controle e à modernização dos processos de trabalhoque o capitalismo impunha àquela época.

A partir desse conhecimento, o fenômeno burocrático aparece emduas grandes linhas completamente opostas. Uma das linhas trata dosproblemas científicos da sociologia e da ciência política moderna; eoutra, de um problema que continua se apresentando como uma zonade incerteza e um dos mitos ideológicos (CROZIER, 1981, p.88).

Outro aspecto dessa problemática é a visão catastrófica da evo-lução das burocracias, vista pela contradição entre este modelo deorganização e os valores democráticos. Com a refutação do argu-mento, Merton, Gouldner e Selznick conseguiram escapar inicial-mente a essa contradição, nos limites da visão funcionalista. Inves-tigando as relações entre a eficiência organizacional e a robotizaçãodos indivíduos, eles sugeriram que as características rotineiras eopressivas da burocracia eram devidas à resistência do ser humanoao modelo mecanicista que lhe é imposto, constituindo ademais,uma espécie de círculo vicioso, já que tal resistência acaba final-mente por reforçar a influência do esquema que a provocou.

Verificaremos mais de perto as análises desses três especialis-tas – Merton, Gouldner e Selznick – em relação aos seus estudossobre as conseqüências previstas (ou desejadas) da burocracia queconduzem à máxima eficiência, inclusive as imprevistas, quer di-

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zer, aquelas que levam à ineficácia. A essas conseqüências impre-vistas, Merton deu o nome de disfunções da burocracia, salientan-do a insuficiência de estudos científicos sobre as tensões internasem tais estruturas. Ressaltou também que não existe uma organi-zação plenamente racional e que o formalismo não tem a profundi-dade descrita por Weber.

A partir daí, pode-se dizer que cada disfunção é o resultado dealgum desvio ou exagero em cada uma das características do mode-lo burocrático, explicado por Weber. Isto é, cada disfunção constituiuma conseqüência não prevista pelo modelo weberiano. Por exem-plo: internalização das regras e exagerado apego aos regulamen-tos; excesso de formalismo e de papelório; resistência à mudança;despersonalização do relacionamento; categorização como base doprocesso decisorial; super-conformidade às rotinas e procedimen-tos; exibição de sinais de autoridade; dificuldades no atendimentoa clientes e conflitos com o público.

Por outro lado, observou-se que a análise de Merton quanto àresistência a mudança, dá a entender que o funcionário não a inter-preta devidamente, o que pode caracterizar um grande perigo à suasegurança e tranqüilidade. Em vista disso, a mudança torna-se inde-sejável para ele. Assim, na medida do possível, ele passa a resistir aqualquer tipo de alteração que se pretenda implantar na burocracia,podendo advir daí um comportamento passivo ou agressivo.

As normas que constituem os meios, por sua vez, transformam-se em fins, da mesma forma que as necessidades de documentos ede formalizar as comunicações vão conduzir ao excesso de docu-mentos, ou melhor, ao papelório. A impessoalidade, outrossim, levaa uma diminuição das relações personalizadas entre os membrosda organização. Com isso, os funcionários passam a conhecer oscolegas não pelo nome de batismo, mas pelo título do cargo queocupam. Além do mais, quem decide em qualquer situação é aque-le que ocupa a mais elevada categoria hierárquica, independente-mente de seu conhecimento sobre assunto.

As regras e rotinas afastando-se do conjunto de objetivos queas originaram, passam a serem absolutas. Quer dizer, tornam-seum fim em si mesmas. Com o tempo, as regras e as rotinas, reve-

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lam-se sagradas para o funcionário. Isto induz à perda de sua inici-ativa, de sua criatividade e de sua inovação, produzindo rigidez noseu comportamento. A ênfase na hierarquia de autoridade leva osistema a indicar visivelmente todos aqueles que detêm o poder.Desse modo, são utilizados símbolos, como, dentre outros, unifor-me, localização da sala e tipo de mesa.

Nessas condições, o funcionário fica completamente voltado paradentro da organização, para suas normas e regulamentos internos,para suas rotinas e procedimentos, enfim, para seu superior hierár-quico que avalia o seu desempenho. Sua atuação interiorizada geral-mente o leva a criar conflitos com os clientes da organização. Com aspressões do público, que pretende soluções personalizadas, o funcio-nário passa a percebê-las como ameaças a sua própria segurança.Daí a tendência à defesa contra pressões externas à burocracia e àsdificuldades de atendimento às demandas sociais.

Conclui-se que tais disfunções, ou conseqüências imprevistasdecorrem do fato de a burocracia não levar em conta a chamadaorganização informal, e as diferenças individuais entre as pessoas,privilegiando o controle que norteia toda a atividade organizacional.Desse modo, propõe Merton um modelo alternativo que enfatize ocontrole e a previsibilidade dos comportamentos.

Alguns autores têm seguido o caminho aberto por Merton, aexemplo de Selznick. Muito depois, já na década de 70, Katz e Kahn,analisando a problemática das organizações burocráticas, reafir-mam as conclusões de Merton, reforçando a rigidez como redutorada eficácia organizacional, decorrente da resistência às pressões3.

O estudo de Selznick (1947) volta-se para a necessidade da flexi-bilidade da burocracia, no sentido de seu ajustamento às exigênci-as externas dos clientes e das internas dos participantes, ao proporuma nova abordagem da sociologia da burocracia, especificamentedo modelo burocrático, diferente do weberiano. Da mesma formaque Merton (1966), ele demonstra que as disfunções provêm de pro-blemas ligados à organização informal. Argumenta ainda que a bu-rocracia não é rígida nem estática, mas adaptativa e dinâmica,interagindo intensamente com o ambiente externo e se adaptandoa ele. Uma das revelações importantes de Selznik foi a de que a

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rigidez burocrática se manifesta tanto na lógica da descentralizaçãoquanto na da centralização. Isso foi constatado durante as suas pes-quisas na T.V.A – organização que seguia à época o modelo demo-crático. Contudo, ele visou a soluções práticas frente às dificulda-des encontradas, não avançando, em relação às fontes das dificul-dades do modelo em estudo, o que equivale, mais uma vez, a reafir-mar o quadro weberiano.

Outra abordagem da organização burocrática foi desenvolvidapor Blau e Scott. Simplificada com a utilização de tipologiasorganizacionais, tal abordagem se baseava no beneficiário princi-pal da organização. Os benefícios angariados pela parte principalda organização vão se constituir na sua razão de ser. Para ele exis-tem quatro categorias de participantes: os membros da organiza-ção; os proprietários ou dirigentes; os clientes; e o público em geral.

A essas categorias corresponderiam, respectivamente, os se-guintes tipos de organização: associação de benefícios mútuos; or-ganizações de interesses comerciais; organizações de serviços; e or-ganizações de Estado.

Essa tipologia enfatiza a força de poder e a influência dobeneficiário sobre as organizações, a ponto de condicionar a suaestrutura e seus objetivos (Blau & Scott,1970).

O Fenômeno Burocrático naDinâmica do Poder

Segundo Crozier, a principal debilidade das teorias socioló-gicas da burocracia reside no fato de elas procurarem explicar odesenvolvimento e a persistência dos processos burocráticos, semlevar em consideração os problemas de governo, termo este em-pregado por analogia ao vocábulo da ciência política (1970).

Ao analisar o fenômeno burocrático, considera que os fenô-menos do poder acompanham necessariamente todos os proces-sos de integração social, admitindo, já no limite, não haverintegração ou sociedade possível sem poder. O poder é um cam-po de incertezas das ciências sociais, difícil de se esclarecer. Pormuito tempo, a sociologia e a ciência política recuaram, para mais

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uma vez perceberem que nenhuma relação concreta entre indi-víduos ou grupos humanos poderia jamais ser despojada de suadimensão de poder.

Conforme a análise desenvolvida por Crozier (1970, p.20), certosprogressos ocorreram nesse caminho, a exemplo não só da teoriadas decisões4, como também dos conhecimentos empíricos e experi-mentais da sociologia das organizações. Os problemas do poder, se-gundo ele, manifestam-se, particularmente, sob três diferentes as-pectos: aspecto moral, aspecto lógico e aspecto metodológico, a saber:

• Aspecto moral indica que se acumularam tabus, como o dadominação e da dependência, considerados como categoriasmorais e não como fatos;• Aspecto lógico aponta para os fenômenos de poder que exi-gem ao mesmo tempo uma análise racional clássica, de ordeminstrumental e uma análise oposta, de ordem afetiva. O podersó se concebe na perspectiva de um objetivo, o que significaque o jogo do poder, de certa forma, obedece sempre às regrasde uma racionalidade fundada sobre a eficácia. No entanto, eleintroduz ao mesmo tempo certos fenômenos afetivos podero-sos. Com isso, o jogo do poder encontra-se igualmente condici-onado pelas possíveis reações afetivas dos indivíduos que secomprometem e que por ele não deixarão de ser afetados;• Quanto ao aspecto metodológico, toda relação de poder é con-dicionada por uma série de restrições estruturais, quecondicionam as regras do jogo, inclusive não se podendo modi-ficar sem que haja uma repercussão sobre o conjunto do qualfaz parte. Portanto, do ponto de vista estrutural, argumenta quenenhuma relação de poder pode ser dissociada dos conjuntosinstitucionais nos quais ela se desenvolve, admitindo que, des-sa forma, não pode haver campo neutro.

Diante desses obstáculos, ainda consoante esse autor, os soció-logos e cientistas políticos tenderam a se refugiar na descrição e afracionar suas análises do tipo do poder, em função de métodos deexercício utilizados por eles como coerção, disposição de recom-

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pensas, ou, então, pelos mecanismos de identificação do poder doespecialista e de poder legítimo. Tais abordagens, contudo, não per-mitiram a compreensão de como se operam as arbitragens entre osdiferentes tipos de poder.

Ao declarar que poderes vindo de fontes diferentes não têmmedida comum e não podem ser comparados, tornou-se impossívelcompreender e prever de que forma, na realidade, esses poderesdiferentes se compõem e se equilibram entre si. Os múltiplos pode-res exercidos sobre as mesmas pessoas são, evidentemente, de na-tureza diferente e é importante não confundí-los. Dessa forma,Crozier propõe uma análise estratégica do poder, que permite me-dir as forças em questão, e descobrir as leis de sua negociação e desua composição.

Assim, considera os fenômenos do poder não mais sob o ânguloúnico de um detentor, mas enquanto relações entre indivíduos ouentre grupos e, no limite, como processos que atingem, com seusobjetivos e suas regras de jogo, a organização da qual participam osdiversos protagonistas.

A dinâmica de uma negociação de poder é como o resultado deum jogo onde limites e restrições constituem passagens obrigatórias,bem como ocasiões de manipulação para os protagonistas, tendendoa determinar, finalmente, sua estratégia, inseridos no conjunto daorganização de que fazem parte. Os objetivos formais e informais,fixados pela organização e aceitos pelos participantes, assim como,as regras do jogo que lhes são impostas, ou que eles se impuseram,vão constituir seus próprios limites. Conforme, ainda, a análise de-senvolvida observa-se que objetivos e regras não agem diretamente,pois limitam a liberdade de ação dos jogadores e tendem a distinguirsetores nos quais ou a ação é completamente previsível, ou outros,onde domina a incerteza. Do ponto de vista de Crozier, o poder deum jogador depende do controle que ele pode exercer sobre umafonte de incerteza. Isso afeta seu comportamento no quadro das re-gras do jogo impostas pela organização, o que vai distanciá-lo dosteoremas mecanicistas sobre o uso do poder, teoremas esses que sãoexpressos na demonstração do poder que se adquire.

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O Paradoxo da Arquitetura Burocráticae a Insegurança Social

Independentemente do esgotamento de formas tradicionais de pro-dução de riquezas através do trabalho, este é, ainda, o meio utilizadopelo homem, com o qual ele modifica o meio ambiente natural, transfor-mando-o, de modo a satisfazer as suas necessidades. Conforme explicitaBraverman (1996, p.36), o que distingue o trabalho humano do animalnão é a eficiência do fazer em si, mas a capacidade que o homem tem derealizar este trabalho de forma consciente e proposital. Ou seja, a espé-cie humana é singular, na medida em que somente ela é capaz de utili-zar a inteligência para realizar o trabalho como atividade proposital. Elaidealiza os resultados do seu trabalho antes de sua realização.

A história do trabalho humano é a história da administração eda burocracia. A administração e as formas burocráticas de contro-le do trabalho sempre existiram na história da humanidade; contu-do, o problema do poder e do controle sempre se constituiu numdilema difícil para o conhecimento científico, particularmente paraa sociologia e para os estudos organizacionais. Em se tratando daprodutividade do trabalho humano, no início do século XX, vai ocor-rer um conhecimento sistematizado do trabalho assalariado, atra-vés das organizações capitalistas então emergentes.5 A partir deentão, a preocupação científica com o controle vai consolidar-se como capitalismo, objetivando garantir, simultaneamente, a organiza-ção racional do trabalho e o controle do poder organizacional.

As formas mecanicistas e burocráticas de pensar o controle eramas mais tradicionais. Elas refletiram a estratégia dominante das or-ganizações capitalistas e dos desenvolvimentos teóricos de suasgestões, prevalecentes até quase meados do século XX. As exigên-cias de controle em tais modalidades mostraram os seus efeitos e asconseqüências negativas, já nas primeiras décadas deste século.

A racionalidade humana é capaz de expressar diferentes formasde interpretar o mundo e de nele agir. A sociedade, as organizações eas pessoas podem ser vistas sob aquelas duas possibilidades distin-tas, já tratadas no capítulo 2: a racionalidade funcional, que tende aser a-histórica e não conflitiva, vendo a organização como um siste-

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ma coordenado pela hierarquia, tendendo a minimizar ou mesmoignorar as dimensões relativas à subjetividade humana. Na outra, aracionalidade crítica, leva-se em conta a historicidade das organiza-ções, seus valores, (TAYLOR,1997, p.87) seus mitos, suas tradições, esuas sub-culturas; (ALLIAIRE & FISIROTU, 1978) contextualiza e olhanão só a organização e os processos decorrentes da luta dos diferen-tes poderes, como também os reflexos da sociedade maior, isto é, comvisão dialética, atenta para o que ocorre lá fora, observando as con-tradições e os conflitos na consideração das múltiplas dimensões hu-manas: simbólica, emocional, subjetiva e racional.

O ato racional constitui a expressão concreta do ser humano, damesma forma que o emocional e o afetivo. Contudo, a prática socialutilizada para obter resultados, em relação aos fins a que se visa, privi-legiou a eficiência a qualquer custo e atingiu todas as atividades davida do homem moderno. Os resultados negativos dessa lógica instru-mental foram vistos mais apropriadamente nas aplicações do pensa-mento taylorista e no modelo fordista de produção. (WOOD, 1992, p.12)

A racionalidade é, sem dúvida, o fator que distingue a organiza-ção dos demais sistemas sociais. Dessa forma, todo e qualquer tipode organização é dotado de uma teleologia. Quer isso significar quetodos visam à obtenção de resultados e, nesse sentido, o trabalhoque desenvolve tem uma intencionalidade. Por essa razão, a racio-nalidade é o elemento que fundamenta a burocracia, como o é tam-bém de qualquer outro tipo de organização. Por isso os conceitos deracionalidade instrumental e substancial tornaram-se de suma im-portância para distinguir a natureza da ação racional, praticada porindivíduos, em diferentes posições e situações sócio-organizacionais.

No início do século XX, a racionalidade que fundamenta a buro-cracia e aumenta a produtividade revelou o seu lado negativo. Na pers-pectiva da teoria da gestão, revelou-se o paradoxo entre a eficiência ea felicidade humana como o principal desafio de gestão. Os defensoresdas relações humanas, no limite dessa abordagem, mostraram que aeficiência organizacional a qualquer custo é negativa para a vida hu-mana e, conseqüentemente, para a produtividade da organização, su-gerindo que deveria haver um equilíbrio para melhores resultados.

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O reconhecimento da insuficiência e as ameaças desta racionali-dade instrumental foram-se ampliando, desde fins da década de 20,evoluindo-se com contribuições significativas, em todos os camposdo conhecimento.6

As origens destes paradoxos e ambigüidades podem ser encon-tradas na obra do próprio Weber, onde se afirma a superioridadedas organizações racionais modernas, ao mesmo tempo em que, seinquieta com a existência de aspectos negativos que reduziriam seusmembros a uma situação de estandartização.

Entre os contemporâneos e os sucessores de Weber generalizou-se essa inquietude. Toda a literatura pós-weberiana sobre burocra-cia está realmente marcada por essas contradições. Uns utilizamaqueles mesmos argumentos de Weber de que as organizações buro-cráticas correspondem ao advento da racionalização no mundo mo-derno e que, por esse motivo, são intrinsecamente superiores a todasas demais formas possíveis de organização; enquanto outros, comoCrozier, vêem as organizações burocráticas como se fossem Leviatãs,através das quais está se preparando a escravidão da raça humana.

À vista disso, defendem, simultaneamente, tanto a superiorida-de do racionalismo burocrático, no tocante à eficiência, como as im-plicações ameaçadoras para os valores tradicionais da humanidade.

Quando Bennis (1973) previu o fim da organização burocrática,baseou-se nas fraquezas da própria organização. Para ele, tais fra-quezas seriam os germes dos futuros sistemas organizacionais, deonde surgiriam, conseqüentemente, novos sistemas mais adequa-dos às demandas da pós-industrialização. Forças externas impulsi-onariam este fim. Bennis refere-se às rápidas e inesperadas mu-danças em todos os campos e direções, também vistas como turbu-lência ambiental; refere-se também ao crescimento em tamanhodas organizações, que se tornariam complexas e internacionais; àsnovas exigências de pessoal com competências diversas e altamen-te especializadas, e, por fim, a problemas de coordenação e de acom-panhamento dessas mudanças.

Tais fatores, para ele, iriam definir, como incertos e desafiado-res, uma nova natureza para os processos de organização e gestãocarregada de ambigüidades e de incertezas.

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No quadro delineado por Crozier (1977), o dirigente defrontar-se-ia com problemas multifacetados e cada vez mais complexos doque os anteriores. Sua atenção seriam disputada por eventos e porgrupos situados dentro e fora da organização. Isso lhe proporciona-ria informações contraditórias, complicando seu ponto de vista emrelação aos problemas a enfrentar, como novas exigências dos cli-entes, dos fornecedores, das agências reguladoras, dos concorren-tes, além das expectativas da alta administração, assim como dossubordinados, e dos acionistas. Frente a isso, os principais desafiospara a gestão das organizações seriam seu crescimento com a con-seqüente ampliação das próprias atividades; maiores exigências decoordenação e integração das partes envolvidas; concorrência maisaguda, ampliando-se os riscos na atividade organizacional; exigên-cias de novos mercados; competitividade; sofisticação de tecnologias;taxas elevadas de inflação; internacionalização dos negócios; maiorvisibilidade das organizações, o que despertaria mais atenção doambiente e do público, tanto de maneira positiva como negativa.

O fato é que Bennis precipitou-se ao declarar o fim da organiza-ção burocrática no contexto de relações contraditórias. Ele consi-derou antagônico por excelência os níveis de resposta que a organi-zação poderia manter, em relação ao exercício de controle de pode-res, especialmente no sistema capitalista. Na verdade, a burocraciainvadiu todos os setores e passou a governar as nossas vidas. Noquadro aqui traçado por esta análise, como se verificará mais adi-ante, a burocracia adota mecanismos de fuga para se proteger.

Ressalte-se, ainda, a validade de suas previsões, particularmentequanto à natureza da gestão das organizações, no seu contexto essen-cialmente de incerteza. Essa visão não apresenta contestações em ne-nhum campo do conhecimento. Qualquer organização atual, em todosos setores de suas atividades, lida com a imprevisibilidade em lugar daprevisibilidade, com a descontinuidade e a instabilidade, com a ambi-güidade e a incerteza, num quadro de extrema insegurança social.

Só será possível uma visão realista do funcionamento das orga-nizações considerando-se, simultaneamente, todos os níveis, ou seja,dois elementos postos desta realidade: “[...] as exigências de umaracionalidade utilitária e a resistência dos meios humanos.” Segun-

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do Crozier, para escapar a essa contradição, seria necessário mos-trar as condições de desenvolvimento e os limites das conseqüênci-as imprevistas da burocracia, que geram rotinas e opressão. Porisso deve-se procurar saber em que medida o desenvolvimento daburocracia, enquanto organização racional, é por elas afetado. Emlinhas gerais depreende-se da leitura de Crozier (1977), que ainexorabilidade da evolução das burocracias concebida por Weberdepende, pelo menos em parte, da própria capacidade do homempara dominar e romper os círculos viciosos burocráticos.

A rigidez de uma organização não decorre somente de pressõesvindas de cima. Também as exigências de conformidade não funcio-nam em um único sentido: os subordinados também utilizam para secomprometer com a direção e, dessa forma, proteger-se contra ela.Trata-se, na verdade, de outro aspecto de luta pelo poder. Quandoessas duas pressões opostas se estabilizam, deixando pouca margemde iniciativa para enfrentar as dificuldades, a organização em causatorna-se profundamente rígida. Nenhuma organização, todavia, podeescapar à necessidade de mudança; todas elas estão constantementeobrigadas a adaptar-se às transformações do seu ambiente. Contu-do, em relação às transformações menos evidentes, igualmente pro-fundas do corpo de pessoal, não poderão sobreviver se não foremsuficientemente flexíveis e capazes de adaptação.

Para conseguir isso, deverão confiar na iniciativa e na capaci-dade de invenção de certos indivíduos e de certos grupos. Contudo,não se deve acreditar que a incerteza do ambiente seja, como tal,um obstáculo suficiente para impedir a rigidez das organizações.Ao contrário, afirma Crozier, as condições externas de incerteza sãosusceptíveis de implicar maior conformidade e rigidez, na medidaem que fica evidenciada a inutilidade de procurar adaptar-se às si-tuações totalmente imprevisíveis.

Esse argumento parece-nos esclarecedor para o estudo de umimportante aspecto da problemática da organização burocrática, queé a rigidez. Observa-se um ambiente de extrema insegurança socialem todos níveis, em um quadro de crescente violência, o que vem ge-rando na sociedade apelos de proteção e segurança dos indivíduos.

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A impessoalidade, bem como a centralização, podem ser vistoscomo uma forma de escapar da realidade. Todavia, tais condiçõesde fuga não podem ir muito longe. A organização está submetida apressões, originárias de uma grande quantidade de informação. Istoa coloca a par das conseqüências de suas atividades, obrigando-aconsiderar erros e a corrigi-los. Uma organização burocrática seriaaquela que não consegue corrigir-se em função de seus erros. Osmodelos de ação como a impessoalidade, as regras e a centraliza-ção das decisões estão tão estabilizadas, que chegaram a ser parteintegrante de seu equilíbrio interno. Quando uma regra não permi-te desenvolver adequadamente as atividades prescritas, a pressãoresultante dessa situação disfuncional não leva ao abandono dessaregra. Ao contrário, contribui para sua extensão e reforço.

A característica principal do sistema de organização burocráticaconsiste em que as dificuldades, os maus tratos e as frustrações ten-dem a desenvolver novas pressões que reforçam o clima deimpessoalidade e centralização que o originou. O sistema de organiza-ção burocrática repousa na existência de uma série de círculos vicio-sos, relativamente estéreis, que se desenvolvem a partir de um climagerado por esses elementos. “[...] A rigidez burocrática não se podemanter, a não ser dentro de certos limites, e as disfunções não podemreforçar os círculos viciosos além de certa medida” (Crozier, 1977, p.20).

Como se vê, a organização burocrática, na acepção weberiana,revela ineficiência, rigidez e tendência a escapar da realidade. Es-ses traços não foram unicamente conseqüências inesperadas, maselementos de um sistema racional de ação, cujos objetivos consisti-ram em obter um nível de conformidade, da parte dos membros daorganização. Portanto, a problemática da organização burocrática,seja como um sistema social, seja como um processo ou até comouma forma de pensar cristalizada como cultura, parece-nos melhorcompreendida. E essa compreensão ocorre pela função de equilí-brio entre o tipo de controle social utilizado para manter a organi-zação em movimento, e as reações do grupo humano a ele submeti-do. Para Crozier, esses dois dados dependem, por sua vez, das nor-mas culturais da sociedade global e das possibilidades técnicas exis-

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tentes à disposição do homem, para diminuir a incerteza da açãosocial, que, conforme já referido anteriormente, impõe-se como forçaexterna à mudança da rigidez burocrática.

No plano do indivíduo, ao se aprofundar a opção pela rigidezburocrática, observou-se que esta decorre das vantagens de convi-ver com situações de conflitos, em lugar da cooperação. Tais vanta-gens foram consideradas como os limites da permanência da orga-nização burocrática no mundo atual, trabalhadas por Crozier (1977),a partir dos seguintes elementos:

• cooperar é uma atitude do indivíduo em matéria de sua deci-são de participação;• o equívoco dos teóricos das relações humanas, particularmen-te, os da escola lewiniana, em considerar que o desejo de parti-cipação de indivíduo estivesse sempre presente, independen-temente das condições;• nem sempre os indivíduos de uma organização mostram-seentusiasmados quando são convidados a participar de seu fun-cionamento.

A relativa ambigüidade das atitudes dos subordinados em rela-ção a essa questão foi mostrada nas experiências de Chris Argyris.7

Do mesmo modo, Tannenbaun descobre que pode haver mais coer-ção em organizações democráticas com grande participação, do queem um sistema autoritário, com participação mais escassa, eviden-ciando, segundo ele, o interesse que o subordinado pode ter emrefugiar-se na apatia (CROZIER, 1981, p.258).

Em tais circunstâncias, a falta de participação poderia ser re-solvida, tanto através de mudanças na estrutura, quanto pela ado-ção de formas mais permissivas de comando.

Sugerem-se algumas observações no plano individual, originá-rias da situação examinada por Crozier. Delas foram destacadas:

• os membros de uma organização parecem ter atitudes bas-tante ambíguas, seguindo uma inclinação natural que os con-duz a procurar controlar: de um lado gostariam de participarmais, e do outro temem perder a própria autonomia;

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• é muito mais fácil preservar a própria independência e a pró-pria integridade quando se permanece afastado das decisões. Oindivíduo que se deixa levar pelos problemas que suscita a ori-entação da ação coletiva permanece muito mais livre vis-à-visde qualquer pressão. A cooperação decidida é vulnerável a pres-sões dos superiores e até mesmo dos colegas;• a vontade real de participar depende, em grande parte, dograu de confiança e sinceridade para com os demais, que carac-teriza as relações interpessoais dentro do meio e da sociedade;» as regras realmente protegem os indivíduos, e todo o sistemaburocrático pode ser considerado como uma estrutura de pro-teção que se tornou necessária devido à vulnerabilidade do in-divíduo ante os problemas suscitados pela ação social;• a participação forçada ou imposta, na qual o indivíduo recusacompletamente a responsabilidade, é uma participação clan-destina e sem compromisso, e o indivíduo que se submete a elaconserva sua completa liberdade vis-à-vis da organização. Essearranjo permite resolver uma contradição que, de outra forma,continuaria sem solução. Ele sabe que a organização não lhepode proporcionar as compensações para o comprometimentoe não quer arriscar-se a perder uma parcela de sua liberdade.Se a organização, através das regras oficiais, lhe impõe umaparticipação sem responsabilidade, ele poderá satisfazer, aomesmo tempo, as suas duas aspirações contraditórias;

Dentro desse contexto, a função da rigidez burocrática podeser finalmente analisada como uma função de proteção. Ela garan-te o mínimo de segurança ao indivíduo em suas relações com ossemelhantes, na ocasião das atividades cooperativas coordenadas,necessárias para a consecução dos seus objetivos.

Pode-se considerar que Crozier desenvolve uma visão otimistada burocracia. Ele prevê sua mudança e sua adaptação como siste-ma social, dentro das sociedades mais industrializadas. Nelas, há ehaverá cada vez mais uma tendência a diminuir a rigidez, já que osindivíduos parecem cada vez menos vulneráveis às dificuldades do

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conflito e aos riscos do fracasso, dentro de um sistema de organiza-ção social muito mais flexível e muito mais complexo. Hoje, essequadro traçado por Crozier torna-se mais complexo com a insegu-rança e o medo. Nessas circunstâncias, o indivíduo vê nelas as pos-sibilidades que ela oferece para se proteger.

Das várias experiências de alteração da organização burocráticana busca da flexibilidade,8 obtiveram-se certas mudanças no grau deaplicação de alguns dos elementos do modelo originalmente concebi-do por Weber. Nesse sentido, a organização burocrática assume, pro-gressivamente, novas configurações na sua estrutura, convivendo comformas de pensar relativas ao controle e a proteção individual de po-deres em conflito e que pode redundar em novas formas de rigidez.

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