papa francesco 20130629 enciclica lumen fidei po

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    CARTA ENCCLICA

    LUMEN FIDEI

    DO SUMO PONTFICE

    FRANCISCOAOS BISPOS

    AOS PRESBTEROS E AOS DICONOS

    S PESSOAS CONSAGRADAS

    E A TODOS OS FIIS LEIGOS

    SOBRE A F

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    1. A luz da f a expresso com que atradio da Igreja designou o grandedom trazido por Jesus. Eis como Ele Se nos apre-senta, no Evangelho de Joo: Eu vim ao mundocomo luz, para que todo o que cr em Mim noque nas trevas (Jo 12, 46). E So Paulo expri-me-se nestes termos: Porque o Deus que disse:das trevas brilhe a luz, foi quem brilhou nosnossos coraes (2 Cor4, 6). No mundo pago,com fome de luz, tinha-se desenvolvido o cultodo deus Sol, Sol invictus, invocado na sua auro-ra. Embora o sol renascesse cada dia, facilmentese percebia que era incapaz de irradiar a sua luzsobre toda a existncia do homem. De facto, osol no ilumina toda a realidade, sendo os seus

    raios incapazes de chegar at s sombras da mor-te, onde a vista humana se fecha para a sua luz.

    Alis nunca se viu ningum arma o mrtirSo Justino pronto a morrer pela sua f nosol .1 Conscientes do amplo horizonte que a flhes abria, os cristos chamaram a Cristo o ver-

    dadeiro Sol, cujos raios do a vida .2

    A Marta,em lgrimas pela morte do irmo Lzaro, Jesusdiz-lhe: Eu no te disse que, se acreditares, versa glria de Deus? (Jo 11, 40). Quem acredita, v;

    1 Dialogus cum Tryphone Iudaeo, 121, 2: PG 6, 758.2 Clementede alexandria, Protrepticus, IX: PG 8, 195.

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    v com uma luz que ilumina todo o percurso daestrada, porque nos vem de Cristo ressuscitado,estrela da manh que no tem ocaso.

    Uma luz ilusria?

    2. E contudo podemos ouvir a objeco que

    se levanta de muitos dos nossos contempor-neos, quando se lhes fala desta luz da f. Nostempos modernos, pensou-se que tal luz poderiater sido suciente para as sociedades antigas, masno servia para os novos tempos, para o homemtornado adulto, orgulhoso da sua razo, desejoso

    de explorar de forma nova o futuro. Nesta pers-pectiva, a f aparecia como uma luz ilusria, queimpedia o homem de cultivar a ousadia do saber.O jovem Nietzsche convidava a irm Elisabeth aarriscar, percorrendovias novas (), na incerte-za de proceder de forma autnoma . E acrescen-tava: Neste ponto, separam-se os caminhos da

    humanidade: se queres alcanar a paz da alma ea felicidade, contenta-te com a f; mas, se queresser uma discpula da verdade, ento investiga .3O crer opor-se-ia ao indagar. Partindo daqui,Nietzsche desenvolver a sua crtica ao cristia-nismo por ter diminudo o alcance da existncia

    humana, espoliando a vida de novidade e aven-tura. Neste caso, a f seria uma espcie de ilusode luz, que impede o nosso caminho de homenslivres rumo ao amanh.

    3 Brief an Elisabeth Nietzsche (11 de Junho de 1865) ,in: Werke in drei Bnden(Munique 1954), 953-954.

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    3. Por este caminho, a f acabou por ser as-sociada com a escurido. E, a m de convivercom a luz da razo, pensou-se na possibilidadede a conservar, de lhe encontrar um espao: oespao para a f abria-se onde a razo no po-dia iluminar, onde o homem j no podia ter

    certezas. Deste modo, a f foi entendida comoum salto no vazio, que fazemos por falta de luze impelidos por um sentimento cego, ou comouma luz subjectiva, talvez capaz de aquecer o co-rao e consolar pessoalmente, mas impossvelde ser proposta aos outros como luz objectivae comum para iluminar o caminho. Entretanto,

    pouco a pouco, foi-se vendo que a luz da razoautnoma no consegue iluminar sucientemen-te o futuro; este, no m de contas, permanece nasua obscuridade e deixa o homem no temor dodesconhecido. E, assim, o homem renunciou busca de uma luz grande, de uma verdade gran-

    de, para se contentar com pequenas luzes que ilu-minam por breves instantes, mas so incapazesde desvendar a estrada. Quando falta a luz, tudose torna confuso: impossvel distinguir o bemdo mal, diferenciar a estrada que conduz metadaquela que nos faz girar repetidamente em cr-culo, sem direco.

    Uma luz a redescobrir

    4. Por isso, urge recuperar o carcter de luzque prprio da f, pois, quando a sua chamase apaga, todas as outras luzes acabam tambmpor perder o seu vigor. De facto, a luz da f pos-

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    sui um carcter singular, sendo capaz de iluminartoda a existncia do homem. Ora, para que umaluz seja to poderosa, no pode dimanar de nsmesmos; tem de vir de uma fonte mais originria,deve porvir em ltima anlise de Deus. A f nas-ce no encontro com o Deus vivo, que nos chama

    e revela o seu amor: um amor que nos precedee sobre o qual podemos apoiar-nos para cons-truir solidamente a vida. Transformados por esteamor, recebemos olhos novos e experimentamosque h nele uma grande promessa de plenitude ese nos abre a viso do futuro. A f, que recebe-mos de Deus como dom sobrenatural, aparece--nos como luz para a estrada orientando osnossos passos no tempo. Por um lado, provmdo passado: a luz duma memria basilar a da

    vida de Jesus , onde o seu amor se manifestouplenamente vel, capaz de vencer a morte. Mas,por outro lado e ao mesmo tempo, dado que

    Cristo ressuscitou e nos atrai de alm da morte,a f luz que vem do futuro, que descerra diantede ns horizontes grandes e nos leva a ultrapas-sar o nosso eu isolado abrindo-o amplitu-de da comunho. Deste modo, compreendemosque a f no mora na escurido, mas uma luzpara as nossas trevas. Dante, na Divina Comdia,depois de ter confessado diante de So Pedro asua f, descreve-a como uma centelha / que seexpande depois em viva chama / e, como estrelano cu, em mim cintila .4 precisamente desta

    4 Divina Comdia, Paraso, XXIV, 145-147.

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    luz da f que quero falar, desejando que cresaa m de iluminar o presente at se tornar estre-la que mostra os horizontes do nosso caminho,num tempo em que o homem vive particular-mente carecido de luz.

    5. Antes da sua paixo, o Senhor assegurava aPedro: Eu roguei por ti, para que a tua f nodesfalea (Lc 22, 32). Depois pediu-lhe para conrmar os irmos na mesma f. Conscien-te da tarefa conada ao Sucessor de Pedro, Ben-to XVI quis proclamar esteAno da F, um tempo

    de graa que nos tem ajudado a sentir a grandealegria de crer, a reavivar a percepo da amplitudede horizontes que a f descerra, para a confessarna sua unidade e integridade, is memria doSenhor, sustentados pela sua presena e pela acodo Esprito Santo. A convico duma f que faz

    grande e plena a vida, centrada em Cristo e na for-a da sua graa, animava a misso dos primeiroscristos. Nas Actas dos Mrtires, lemos este di-logo entre o prefeito romano Rstico e o cristoHierax: Onde esto os teus pais? perguntavao juiz ao mrtir; este respondeu: O nosso verda-deiro pai Cristo, e nossa me a f nEle .5 Paraaqueles cristos, a f, enquanto encontro com oDeus vivo que Se manifestou em Cristo, era uma me , porque os fazia vir luz, gerava neles a

    vida divina, uma nova experincia, uma viso lu-

    5Acta Sanctorum, Iunii, I, 21.

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    minosa da existncia, pela qual estavam prontos adar testemunho pblico at ao m.

    6. O Ano da F teve incio no cinquentenrioda abertura do Conclio Vaticano II. Esta coin-cidncia permite-nos ver que o mesmo foi um

    Conclio sobre a f,6

    por nos ter convidado a re-por, no centro da nossa vida eclesial e pessoal, oprimado de Deus em Cristo. Na verdade, a Igrejanunca d por descontada a f, pois sabe que estedom de Deus deve ser nutrido e revigorado semcessar para continuar a orientar o caminho dela.O Conclio Vaticano II fez brilhar a f no m-

    bito da experincia humana, percorrendo assimos caminhos do homem contemporneo. Destaforma, se viu como a f enriquece a existnciahumana em todas as suas dimenses.

    7. Estas consideraes sobre a f em con-tinuidade com tudo o que o magistrio da Igrejapronunciou acerca desta virtude teologal7 pre-tendem juntar-se a tudo aquilo que Bento XVI

    6 Embora o Conclio no trate expressamente da f, to-davia fala dela em cada pgina, reconhece o seu carcter vital esobrenatural, supe-na ntegra e forte e constri sobre ela osseus ensinamentos. Bastaria lembrar as declaraes conciliares

    (...) para nos darmos conta da importncia essencial que o Con-clio, coerente com a tradio doutrinal da Igreja, atribui f, verdadeira f, aquela que tem Cristo como fonte e, como canal,o magistrio da Igreja [Paulovi,Audincia Geral (8 de Marode 1967): InsegnamentiV (1967), 705].

    7 Cf., por exemplo, ConC. eCum. vat. i, Const. dogm.sobre a f catlica Dei Filius, III: DS3008-3020; ConC. eCum.vat. ii, Const. dogm. sobre a divina Revelao Dei Verbum, 5;Catecismo da Igreja Catlica, 153-165.

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    escreveu nas cartas encclicas sobre a caridadee a esperana. Ele j tinha quase concludo umprimeiro esboo desta carta encclica sobre a f.Estou-lhe profundamente agradecido e, na fra-ternidade de Cristo, assumo o seu precioso traba-lho, limitando-me a acrescentar ao texto qualquer

    nova contribuio. De facto, o Sucessor de Pe-dro, ontem, hoje e amanh, sempre est chamadoa conrmar os irmos no tesouro incomensu-rvel da f que Deus d a cada homem como luzpara o seu caminho.

    Na f, dom de Deus e virtude sobrenaturalpor Ele infundida, reconhecemos que um gran-

    de Amor nos foi oferecido, que uma Palavraestupenda nos foi dirigida: acolhendo esta Pala-

    vra que Jesus Cristo Palavra encarnada ,o Esprito Santo transforma-nos, ilumina o ca-minho do futuro e faz crescer em ns as asas daesperana para o percorrermos com alegria. F,esperana e caridade constituem, numa interliga-o admirvel, o dinamismo da vida crist rumo plena comunho com Deus. Mas, como estecaminho que a f desvenda diante de ns? Don-de provm a sua luz, to poderosa que permiteiluminar o caminho duma vida bem sucedida efecunda, cheia de fruto?

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    CaPtulo I

    aCreditmoS no amor

    (cf. 1Jo 4, 16)

    Abrao, nosso pai na f

    8. A f desvenda-nos o caminho e acompanhaos nossos passos na histria. Por isso, se quiser-

    mos compreender o que a f, temos de expla-nar o seu percurso, o caminho dos homens cren-tes, com os primeiros testemunhos j no Antigo

    Testamento. Um posto singular ocupa Abrao,nosso pai na f. Na sua vida, acontece um factoimpressionante: Deus dirige-lhe a Palavra, revela--Se como um Deus que fala e o chama por nome.

    A f est ligada escuta. Abrao no v Deus,mas ouve a sua voz. Deste modo, a f assume umcarcter pessoal: o Senhor no o Deus de umlugar, nem mesmo o Deus vinculado a um temposagrado especco, mas o Deus de uma pessoa,concretamente o Deus de Abrao, Isaac e Jacob,

    capaz de entrar em contacto com o homem e es-tabelecer com ele uma aliana. A f a respostaa uma Palavra que interpela pessoalmente, a um

    Tu que nos chama por nome.

    9. Esta Palavra comunica a Abrao uma cha-mada e uma promessa. Contm, antes de tudo,

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    uma chamada a sair da prpria terra, convite aabrir-se a uma vida nova, incio de um xodoque o encaminha para um futuro inesperado. Aperspectiva, que a f vai proporcionar a Abrao,estar sempre ligada com este passo em frenteque ele deve realizar: a f v na medida em que

    caminha, em que entra no espao aberto pela Pa-lavra de Deus. Mas tal Palavra contm ainda umapromessa: a tua descendncia ser numerosa, se-rs pai de um grande povo (cf. Gn13, 16; 15, 5;22, 17). verdade que a f de Abrao, enquantoresposta a uma Palavra que a precede, ser sem-pre um acto de memria; contudo esta memriano o xa no passado, porque, sendo memriade uma promessa, se torna capaz de abrir ao fu-turo, de iluminar os passos ao longo do caminho.

    Assim se v como a f, enquanto memria dofuturo, est intimamente ligada com a esperana.

    10. A Abrao pede-se para se conar a esta Pa-lavra. A f compreende que a palavra uma rea-lidade aparentemente efmera e passageira ,quando pronunciada pelo Deus el, torna-seno que de mais seguro e inabalvel possa haver,possibilitando a continuidade do nosso caminho

    no tempo. A f acolhe esta Palavra como rochasegura, sobre a qual se pode construir com ali-cerces rmes. Por isso, na Bblia hebraica, a f indicada pela palavra emnah, que deriva do

    verbo amn, cuja raiz signica sustentar . Otermo emnah tanto pode signicar a delidadede Deus como a f do homem. O homem el re-

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    cebe a sua fora do conar-se nas mos do Deusel. Jogando com dois signicados da palavra presentes tanto no termo grego pistscomo nocorrespondente latinofdelis, So Cirilo de Jeru-salm exaltar a dignidade do cristo, que recebeo mesmo nome de Deus: ambos so chamados

    is .8

    E Santo Agostinho explica-o assim: Ohomem el aquele que cr no Deus que pro-mete; o Deus el aquele que concede o queprometeu ao homem .9

    11. H ainda um aspecto da histria de Abraoque importante para se compreender a sua f.

    A Palavra de Deus, embora traga consigo novi-dade e surpresa, no de forma alguma alheia experincia do Patriarca. Na voz que se lhe diri-ge, Abrao reconhece um apelo profundo, desdesempre inscrito no mais ntimo do seu ser. Deusassocia a sua promessa com aquele ponto onde desde sempre a existncia do homem semostra promissora, ou seja, a paternidade, a ge-rao duma nova vida: Sara, tua mulher, dar-te-um lho, a quem hs-de chamar Isaac (Gn17,19). O mesmo Deus que pede a Abrao para seconar totalmente a Ele, revela-Se como a fon-te donde provm toda a vida. Desta forma, a f

    une-se com a Paternidade de Deus, da qual brotaa criao: o Deus que chama Abrao o Deuscriador, aquele que chama existncia o que noexiste (Rm4, 17), aquele que, antes da funda-

    8 Cf. Catechesis, V, 1: PG 33, 505A.9Enarratio in Psalmum, 32, II, s. I, 9: PL36, 284.

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    o do mundo, (...) nos predestinou para sermosadoptados como seus lhos (Ef1, 4-5). No casode Abrao, a f em Deus ilumina as razes maisprofundas do seu ser: permite-lhe reconhecer afonte de bondade que est na origem de todasas coisas, e conrmar que a sua vida no deriva

    do nada nem do acaso, mas de uma chamada eum amor pessoais. O Deus misterioso que o cha-mou no um Deus estranho, mas a origem detudo e que tudo sustenta. A grande prova da fde Abrao, o sacrifcio do lho Isaac, manifes-tar at que ponto este amor originador capazde garantir a vida mesmo para alm da morte. A

    Palavra que foi capaz de suscitar um lho no seucorpo j sem vida (), como sem vida estavao seio de Sara estril (Rm4, 19), tambm sercapaz de garantir a promessa de um futuro paraalm de qualquer ameaa ou perigo (cf. Heb11,19; Rm4, 21).

    A f de Israel

    12. A histria do povo de Israel, no livro doxodo, continua na esteira da f de Abrao. Denovo, a f nasce de um dom originador: Israelabre-se aco de Deus, que quer libert-lo da

    sua misria. A f chamada a um longo caminho,para poder adorar o Senhor no Sinai e herdar umaterra prometida. O amor divino possui os traosde um pai que conduz seu lho pelo caminho (cf.Dt1, 31). A consso de f de Israel desenrola--se como uma narrao dos benefcios de Deus,da sua aco para libertar e conduzir o povo (cf.

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    Dt26, 5-11); narrao esta, que o povo transmi-te de gerao em gerao. A luz de Deus brilhapara Israel, atravs da comemorao dos factosrealizados pelo Senhor, recordados e confessa-dos no culto, transmitidos pelos pais aos lhos.Deste modo aprendemos que a luz trazida pela f

    est ligada com a narrao concreta da vida, coma grata lembrana dos benefcios de Deus e como progressivo cumprimento das suas promessas.

    A arquitectura gtica exprimiu-o muito bem: nasgrandes catedrais, a luz chega do cu atravs dos

    vitrais onde est representada a histria sagrada.A luz de Deus vem-nos atravs da narrao dasua revelao e, assim, capaz de iluminar o nos-so caminho no tempo, recordando os benefciosdivinos e mostrando como se cumprem as suaspromessas.

    13. A histria de Israel mostra-nos ainda a ten-

    tao da incredulidade, em que o povo caiu vriasvezes. Aparece aqui o contrrio da f: a idola-tria. Enquanto Moiss fala com Deus no Sinai,o povo no suporta o mistrio do rosto divinoescondido, no suporta o tempo de espera. Porsua natureza, a f pede para se renunciar posse

    imediata que a viso parece oferecer; um con-vite para se abrir fonte da luz, respeitando omistrio prprio de um Rosto que pretende reve-lar-se de forma pessoal e no momento oportuno.Martin Buber citava esta denio da idolatria,dada pelo rabino de Kock: h idolatria, quandoum rosto se dirige reverente a um rosto que no

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    rosto .10 Em vez da f em Deus, prefere-se ado-rar o dolo, cujo rosto se pode xar e cuja origem conhecida, porque foi feito por ns. Diante do

    dolo, no se corre o risco de uma possvel cha-mada que nos faa sair das prprias seguranas,porque os dolos tm boca, mas no falam (Sal

    115, 5). Compreende-se assim que o dolo umpretexto para se colocar a si mesmo no centroda realidade, na adorao da obra das prpriasmos. Perdida a orientao fundamental que dunidade sua existncia, o homem dispersa-sena multiplicidade dos seus desejos; negando-se aesperar o tempo da promessa, desintegra-se nosmil instantes da sua histria. Por isso, a idolatria sempre politesmo, movimento sem meta de umsenhor para outro. A idolatria no oferece um ca-minho, mas uma multiplicidade de veredas queno conduzem a uma meta certa, antes se con-guram como um labirinto. Quem no quer con-

    ar-se a Deus, deve ouvir as vozes dos muitosdolos que lhe gritam: Cona-te a mim! A f,enquanto ligada converso, o contrrio da ido-latria: separao dos dolos para voltar ao Deus

    vivo, atravs de um encontro pessoal. Acreditarsignica conar-se a um amor misericordioso

    que sempre acolhe e perdoa, que sustenta e guia aexistncia, que se mostra poderoso na sua capaci-dade de endireitar os desvios da nossa histria. Af consiste na disponibilidade a deixar-se inces-

    10 martin BuBer, Die Erzhlungen der Chassidim(Zurique1949), 793.

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    santemente transformar pela chamada de Deus.Paradoxalmente, neste voltar-se continuamentepara o Senhor, o homem encontra uma estradasegura que o liberta do movimento dispersivo aque o sujeitam os dolos.

    14. Na f de Israel, sobressai tambm a gu-ra de Moiss, o mediador. O povo no pode vero rosto de Deus; Moiss que fala com Jahvna montanha e comunica a todos a vontade doSenhor. Com esta presena do mediador, Israelaprendeu a caminhar unido. O acto de f do indi-

    vduo insere-se numa comunidade, no ns co-

    mum do povo, que, na f, como um s homem: o meu lho primognito , assim Deus designa-r todo o Israel (cf.Ex4, 22). Aqui a mediaono se torna um obstculo, mas uma abertura:no encontro com os outros, o olhar abre-se parauma verdade maior que ns mesmos. Jean Jac-ques Rousseau lamentava-se por no poder verDeus pessoalmente: Quantos homens entremim e Deus! 11 Ser assim to simples e na-tural que Deus tenha ido ter com Moiss parafalar a Jean Jacques Rousseau? 12 A partir de umaconcepo individualista e limitada do conheci-mento impossvel compreender o sentido da

    mediao: esta capacidade de participar na visodo outro, saber compartilhado que o conheci-mento prprio do amor. A f um dom gratuitode Deus, que exige a humildade e a coragem de

    11mile(Paris 1966), 387.12 Lettr Christophe de Beaumont(Lausanne 1993), 110.

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    1-2). No h nenhuma garantia maior que Deuspossa dar para nos certicar do seu amor, comonos lembra So Paulo (cf. Rm8, 31-39). Portanto,a f crist f no Amor pleno, no seu poder e-caz, na sua capacidade de transformar o mundo eiluminar o tempo. Ns conhecemos o amor que

    Deus nos tem, pois cremos nele (1 Jo 4, 16). Af identica, no amor de Deus manifestado em

    Jesus, o fundamento sobre o qual assenta a reali-dade e o seu destino ltimo.

    16. A maior prova da abilidade do amor de

    Cristo encontra-se na sua morte pelo homem. Sedar a vida pelos amigos a maior prova de amor(cf.Jo 15, 13), Jesus ofereceu a sua vida por to-dos, mesmo por aqueles que eram inimigos, paratransformar o corao. por isso que os evan-gelistas situam, na hora da Cruz, o momento cul-

    minante do olhar de f: naquela hora resplandeceo amor divino em toda a sua sublimidade e am-plitude. So Joo colocar aqui o seu testemunhosolene, quando, juntamente com a Me de Jesus,contemplou Aquele que trespassaram (cf. Jo 19,37): Aquele que viu estas coisas que d teste-munho delas e o seu testemunho verdadeiro.E ele bem sabe que diz a verdade, para vs crer-des tambm (Jo 19, 35). Na sua obra O Idiota,Fidor Mikhailovich Dostoivski faz o protago-nista o prncipe Myskin dizer, vista doquadro de Cristo morto no sepulcro, pintado porHans Holbein o Jovem: Aquele quadro poderia

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    mesmo fazer perder a f a algum ;14 de facto, oquadro representa, de forma muito crua, os efei-tos destruidores da morte no corpo de Cristo. Etodavia precisamente na contemplao da mor-te de Jesus que a f se refora e recebe uma luzfulgurante, quando ela se revela como f no seu

    amor inabalvel por ns, que capaz de penetrarna morte para nos salvar. Neste amor que nose subtraiu morte para manifestar quanto meama, possvel crer; a sua totalidade vence todae qualquer suspeita e permite conar-nos plena-mente a Cristo.

    17. Ora, a morte de Cristo desvenda a total a-bilidade do amor de Deus luz da sua ressurrei-o. Enquanto ressuscitado, Cristo testemunhavel, digna de f (cf.Ap 1, 5; Heb2, 17), apoiorme para a nossa f. Se Cristo no ressuscitou, v a vossa f , arma So Paulo (1 Cor15, 17).

    Se o amor do Pai no tivesse feito Jesus ressurgirdos mortos, se no tivesse podido restituir a vidaao seu corpo, no seria um amor plenamente -

    vel, capaz de iluminar tambm as trevas da morte.Quando So Paulo fala da sua nova vida em Cris-to, refere que a vive na f do Filho de Deus queme amou e a Si mesmo Se entregou por mim (Gl2, 20). Esta f do Filho de Deus certa-mente a f do Apstolo dos gentios em Jesus,mas supe tambm a abilidade de Jesus, que sefunda, sem dvida, no seu amor at morte, mas

    14 Parte II, IV.

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    tambm no facto de Ele ser Filho de Deus. Pre-cisamente porque o Filho, porque est radicadode modo absoluto no Pai, Jesus pde vencer amorte e fazer resplandecer em plenitude a vida.

    A nossa cultura perdeu a noo desta presenaconcreta de Deus, da sua aco no mundo; pen-

    samos que Deus Se encontra s no alm, noutronvel de realidade, separado das nossas relaesconcretas. Mas, se fosse assim, isto , se Deusfosse incapaz de agir no mundo, o seu amor noseria verdadeiramente poderoso, verdadeira-mente real e, por conseguinte, no seria sequer

    verdadeiro amor, capaz de cumprir a felicidadeque promete. E, ento, seria completamente in-diferente crer ou no crer nEle. Ao contrrio, oscristos confessam o amor concreto e poderosode Deus, que actua verdadeiramente na histriae determina o seu destino nal; um amor que sefez passvel de encontro, que se revelou em ple-

    nitude na paixo, morte e ressurreio de Cristo.

    18. A plenitude a que Jesus leva a f possui ou-tro aspecto decisivo: na f, Cristo no apenas

    Aquele em quem acreditamos, a maior manifes-tao do amor de Deus, mas tambm Aquele a

    quem nos unimos para poder acreditar. A f nos olha para Jesus, mas olha tambm a partir daperspectiva de Jesus e com os seus olhos: umaparticipao no seu modo de ver. Em muitos m-bitos da vida, amo-nos de outras pessoas queconhecem as coisas melhor do que ns: temosconana no arquitecto que constri a nossa

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    casa, no farmacutico que nos fornece o rem-dio para a cura, no advogado que nos defendeno tribunal. Precisamos tambm de algum queseja vel e perito nas coisas de Deus: Jesus, seuFilho, apresenta-Se como Aquele que nos explicaDeus (cf.Jo 1, 18). A vida de Cristo, a sua maneira

    de conhecer o Pai, de viver totalmente em rela-o com Ele abre um espao novo experinciahumana, e ns podemos entrar nele. So Joo ex-primiu a importncia que a relao pessoal com

    Jesus tem para a nossa f, atravs de vrios usosdo verbo crer. Juntamente com o crer que

    verdade o que Jesus nos diz (cf.Jo 14, 10; 20, 31),Joo usa mais duas expresses: crer a (sinnimode dar crdito a) Jesus e crer em Jesus. Cre-mos a Jesus, quando aceitamos a sua palavra, oseu testemunho, porque Ele verdadeiro (cf. Jo6, 30). Cremos em Jesus, quando O acolhemospessoalmente na nossa vida e nos conamos a

    Ele, aderindo a Ele no amor e seguindo-O aolongo do caminho (cf.Jo 2, 11; 6, 47; 12, 44).

    Para nos permitir conhec-Lo, acolh-Lo esegui-Lo, o Filho de Deus assumiu a nossa carne;e, assim, a sua viso do Pai deu-se tambm deforma humana, atravs de um caminho e um per-

    curso no tempo. A f crist f na encarnao doVerbo e na sua ressurreio na carne; f numDeus que Se fez to prximo que entrou na nos-sa histria. A f no Filho de Deus feito homemem Jesus de Nazar no nos separa da realidade;antes permite-nos individuar o seu signicadomais profundo, descobrir quanto Deus ama este

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    mundo e o orienta sem cessar para Si; e isto levao cristo a comprometer-se, a viver de modo ain-da mais intenso o seu caminho sobre a terra.

    A salvao pela f

    19. A partir desta participao no modo dever de Jesus, o apstolo Paulo deixou-nos, nosseus escritos, uma descrio da existncia cren-te. Aquele que acredita, ao aceitar o dom da f, transformado numa nova criatura, recebe umnovo ser, um ser lial, torna-se lho no Filho:Abb, Pai a palavra mais caracterstica da

    experincia de Jesus, que se torna centro da ex-perincia crist (cf. Rm8, 15). A vida na f, en-quanto existncia lial, reconhecer o dom ori-ginrio e radical que est na base da existncia dohomem, podendo resumir-se nesta frase de SoPaulo aos Corntios: Que tens tu que no tenhasrecebido? (1 Cor4, 7). precisamente aqui quese situa o cerne da polmica do Apstolo com osfariseus: a discusso sobre a salvao pela f oupelas obras da lei. Aquilo que So Paulo rejeita a atitude de quem se quer justicar a si mesmodiante de Deus atravs das prprias obras; estapessoa, mesmo quando obedece aos mandamen-

    tos, mesmo quando realiza obras boas, coloca--se a si prpria no centro e no reconhece que aorigem do bem Deus. Quem actua assim, quemquer ser fonte da sua prpria justia, depressa a

    v exaurir-se e descobre que no pode sequeraguentar-se na delidade lei; fecha-se, isolando--se do Senhor e dos outros, e, por isso, a sua vida

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    torna-se v, as suas obras estreis, como rvorelonge da gua. Assim se exprime Santo Agosti-nho com a sua linguagem concisa e ecaz: Note afastes dAquele que te fez, nem mesmo parate encontrares a ti .15 Quando o homem pensaque, afastando-se de Deus, encontrar-se- a si

    mesmo, a sua existncia fracassa (cf. Lc15, 11--24). O incio da salvao a abertura a algo quenos antecede, a um dom originrio que sustentaa vida e a guarda na existncia. S abrindo-nosa esta origem e reconhecendo-a que podemosser transformados, deixando que a salvao actueem ns e torne a vida fecunda, cheia de frutos

    bons. A salvao pela f consiste em reconhecero primado do dom de Deus, como resume SoPaulo: Porque pela graa que estais salvos, pormeio da f. E isto no vem de vs, dom deDeus (Ef2, 8).

    20. A nova lgica da f centra-se em Cristo. Af em Cristo salva-nos, porque nEle que a vidase abre radicalmente a um Amor que nos prece-de e transforma a partir de dentro, que age emns e connosco. V-se isto claramente na exege-se que o Apstolo dos gentios faz de um textodo Deuteronmio; uma exegese que se insere na

    dinmica mais profunda do Antigo Testamento.Moiss diz ao povo que o mandamento de Deusno est demasiado alto nem demasiado longedo homem; no se deve dizer: Quem subir por

    15 De continentia, 4, 11: PL40, 356 ( ab eo qui fecit te nolidecere nec ad te ).

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    ns at ao cu e no-la ir buscar? ou Quematravessar o mar e no-la ir buscar? (cf. Dt30,11-14). Esta proximidade da palavra de Deus concretizada por So Paulo na presena de Je-sus no cristo. No digas no teu corao: Quemsubir ao cu? Seria para fazer com que Cristo

    descesse. Nem digas: Quem descer ao abismo?Seria para fazer com que Cristo subisse de entreos mortos (Rm10, 6-7). Cristo desceu terra eressuscitou dos mortos: com a sua encarnao eressurreio, o Filho de Deus abraou o percursointeiro do homem e habita nos nossos coraespor meio do Esprito Santo. A f sabe que DeusSe tornou muito prximo de ns, que Cristo nosfoi oferecido como grande dom que nos trans-forma interiormente, que habita em ns, e assimnos d a luz que ilumina a origem e o m da vida,o arco inteiro do percurso humano.

    21. Podemos assim compreender a novidade,a que a f nos conduz. O crente transforma-do pelo Amor, ao qual se abriu na f; e, na suaabertura a este Amor que lhe oferecido, a suaexistncia dilata-se para alm dele prprio. SoPaulo pode armar: J no sou eu que vivo, mas

    Cristo que vive em mim (Gl 2, 20), e exor-tar: Que Cristo, pela f, habite nos vossos cora-es (Ef3, 17). Na f, o eu do crente dilata-separa ser habitado por um Outro, para viver numOutro, e assim a sua vida amplia-se no Amor. aqui que se situa a aco prpria do Esprito San-to: o cristo pode ter os olhos de Jesus, os seus

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    sentimentos, a sua predisposio lial, porque feito participante do seu Amor, que o Esprito; neste Amor que se recebe, de algum modo, a vi-so prpria de Jesus. Fora desta conformao no

    Amor, fora da presena do Esprito que o infun-de nos nossos coraes (cf. Rm5, 5), impossvel

    confessar Jesus como Senhor (cf. 1 Cor12, 3).

    A forma eclesial da f

    22. Deste modo, a vida do el torna-se existn-cia eclesial. Quando So Paulo fala aos cristosde Roma do nico corpo que todos os crentes

    formam em Cristo, exorta-os a no se vangloria-rem, mas a avaliarem-se de acordo com a me-dida de f que Deus distribuiu a cada um (Rm12, 3). O crente aprende a ver-se a si mesmo apartir da f que professa. A gura de Cristo oespelho em que descobre realizada a sua prpriaimagem. E dado que Cristo abraa em Si mesmotodos os crentes que formam o seu corpo, o cris-to compreende-se a si mesmo neste corpo, emrelao primordial com Cristo e os irmos na f.

    A imagem do corpo no pretende reduzir o cren-te a simples parte de um todo annimo, a meroelemento de uma grande engrenagem; antes, su-

    blinha a unio vital de Cristo com os crentes ede todos os crentes entre si (cf. Rm12, 4-5). Oscristos sejam todos um s (cf. Gl3, 28), semperder a sua individualidade, e, no servio aosoutros, cada um ganha profundamente o prprioser. Compreende-se assim por que motivo, foradeste corpo, desta unidade da Igreja em Cristo

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    desta Igreja que, segundo as palavras de Ro-mano Guardini, a portadora histrica do olharglobal de Cristo sobre o mundo ,16 , a f percaa sua medida , j no encontre o seu equilbrio,nem o espao necessrio para se manter de p.

    A f tem uma forma necessariamente eclesial,

    professada partindo do corpo de Cristo, comocomunho concreta dos crentes. A partir destelugar eclesial, ela abre o indivduo cristo a todosos homens. Uma vez escutada, a palavra de Cris-to, pelo seu prprio dinamismo, transforma-seem resposta no cristo, tornando-se ela mesma

    palavra pronunciada, consso de f. So Pauloarma: Realmente com o corao se cr ()e com a boca se faz a prosso de f (Rm10,10). A f no um facto privado, uma concepoindividualista, uma opinio subjectiva, mas nascede uma escuta e destina-se a ser pronunciada ea tornar-se anncio. Com efeito, como ho-deacreditar nAquele de quem no ouviram falar?E como ho-de ouvir falar, sem algum que Oanuncie? (Rm10, 14). Concluindo, a f torna-seoperativa no cristo a partir do dom recebido, apartir do Amor que o atrai para Cristo (cf. Gl5,6) e torna participante do caminho da Igreja, pe-

    regrina na histria rumo perfeio. Para quemfoi assim transformado, abre-se um novo modode ver, a f torna-se luz para os seus olhos.

    16 Vom Wesen katholischer Weltanschauung (1923) ,in: Unterscheidung des Christlichen. Gesammelte Studien 1923-1963(Mainz 1963), 24.

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    CaPtulo II

    Se no aCreditardeS,NO COMPREENDEREIS

    (cf. Is7, 9)

    F e verdade23. Se no acreditardes, no compreendereis(cf. Is7, 9): foi assim que a verso grega da B-blia hebraica a traduo dos Setenta, feita em

    Alexandria do Egipto traduziu as palavrasdo profeta Isaas ao rei Acaz, fazendo aparecer

    como central, na f, a questo do conhecimen-to da verdade. Entretanto, no texto hebraico, huma leitura diferente; aqui o profeta diz ao rei: Se no o acreditardes, no subsistireis . Existeaqui um jogo de palavras com duas formas do

    verbo amn: acreditardes (taaminu) e subsisti-reis (teamenu). Apavorado com a fora dos seusinimigos, o rei busca a segurana que lhe pode

    vir de uma aliana com o grande imprio da As-sria; mas o profeta convida-o a conar apenasna verdadeira rocha que no vacila: o Deus de Is-rael. Uma vez que Deus vel, razovel ter fnEle, construir a prpria segurana sobre a sua

    Palavra. Este o Deus que Isaas chamar maisadiante, por duas vezes, o Deus-Amen, o Deusel (cf. Is65, 16), fundamento inabalvel de -delidade aliana. Poder-se-ia pensar que a ver-so grega da Bblia, traduzindo subsistir por compreender , tivesse realizado uma mudanaprofunda do texto, passando da noo bblica de

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    entrega a Deus noo grega de compreenso.E no entanto esta traduo, que aceitava certa-mente o dilogo com a cultura helenista, no alheia dinmica profunda do texto hebraico;a rmeza que Isaas promete ao rei passa, real-mente, pela compreenso do agir de Deus e da

    unidade que Ele d vida do homem e hist-ria do povo. O profeta exorta a compreender oscaminhos do Senhor, encontrando na delidadede Deus o plano de sabedoria que governa ossculos. Esta sntese entre o compreender e o subsistir expressa por Santo Agostinho, nassuas Confsses, quando fala da verdade em que

    se pode conar para conseguirmos car de p: Estarei rme e consolidar-me-ei em Ti, () natua verdade .17 Vendo o contexto, sabemos queeste Padre da Igreja quer mostrar que esta verda-de dedigna de Deus , como resulta da Bblia, asua presena el ao longo da histria, a sua capa-cidade de manter unidos os tempos, recolhendoa disperso dos dias do homem.18

    24. Lido a esta luz, o texto de Isaas faz-nosconcluir: o homem precisa de conhecimento,precisa de verdade, porque sem ela no se man-tm de p, no caminha. Sem verdade, a f no

    salva, no torna seguros os nossos passos. Seriauma linda fbula, a projeco dos nossos desejosde felicidade, algo que nos satisfaz s na medidaem que nos quisermos iludir; ou ento reduzir-

    17 Confessiones, XI, 30, 40: PL32, 825.18 Cf. ibid.: o. c., 825-826.

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    -se-ia a um sentimento bom que consola e afa-ga, mas permanece sujeito s nossas mudanasde nimo, variao dos tempos, incapaz desustentar um caminho constante na vida. Se a ffosse isso, ento o rei Acaz teria razo para nojogar a sua vida e a segurana do seu reino sobre

    uma emoo. Mas no ! Precisamente pela sualigao intrnseca com a verdade, a f capaz deoferecer uma luz nova, superior aos clculos dorei, porque v mais longe, compreende o agir deDeus, que el sua aliana e s suas promessas.

    25. Lembrar esta ligao da f com a verdade hoje mais necessrio do que nunca, precisamentepor causa da crise de verdade em que vivemos.Na cultura contempornea, tende-se frequente-mente a aceitar como verdade apenas a da tecno-logia: verdadeiro aquilo que o homem consegueconstruir e medir com a sua cincia; verdadeiro

    porque funciona, e assim torna a vida mais c-moda e aprazvel. Esta verdade parece ser, hoje,a nica certa, a nica partilhvel com os outros, anica sobre a qual se pode conjuntamente discu-tir e comprometer-se; depois haveria as verdadesdo indivduo, como ser autntico face quilo que

    cada um sente no seu ntimo, vlidas apenas parao sujeito mas que no podem ser propostas aosoutros com a pretenso de servir o bem comum.

    A verdade grande, aquela que explica o conjun-to da vida pessoal e social, vista com suspeita.Porventura no foi esta perguntam-se a

    verdade pretendida pelos grandes totalitarismos

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    do sculo passado, uma verdade que impunha aprpria concepo global para esmagar a histriaconcreta do indivduo? No m, resta apenas umrelativismo, no qual a questo sobre a verdade detudo que, no fundo, tambm a questo deDeus j no interessa. Nesta perspectiva, l-

    gico que se pretenda eliminar a ligao da religiocom a verdade, porque esta associao estaria naraiz do fanatismo, que quer emudecer quem nopartilha da crena prpria. A este respeito, pode--se falar de uma grande obnubilao da mem-ria no nosso mundo contemporneo; de facto,a busca da verdade uma questo de memria,

    de memria profunda, porque visa algo que nosprecede e, desta forma, pode conseguir unir-nospara alm do nosso eu pequeno e limitado; uma questo relativa origem de tudo, a cuja luzse pode ver a meta e tambm o sentido da estradacomum.

    Conhecimento da verdade e amor

    26. Nesta situao, poder a f crist prestar umservio ao bem comum relativamente maneiracorrecta de entender a verdade? Para termos umaresposta, necessrio reectir sobre o tipo de co-

    nhecimento prprio da f. Pode ajudar-nos estafrase de Paulo: Acredita-se com o corao (Rm10, 10). Este, na Bblia, o centro do homem,onde se entrecruzam todas as suas dimenses: ocorpo e o esprito, a interioridade da pessoa e asua abertura ao mundo e aos outros, a intelign-cia, a vontade, a afectividade. O corao pode

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    manter unidas estas dimenses, porque o lugaronde nos abrimos verdade e ao amor, deixandoque nos toquem e transformem profundamente.

    A f transforma a pessoa inteira, precisamentena medida em que ela se abre ao amor; nesteentrelaamento da f com o amor que se com-

    preende a forma de conhecimento prpria daf, a sua fora de convico, a sua capacidade deiluminar os nossos passos. A f conhece na me-dida em que est ligada ao amor, j que o prprioamor traz uma luz. A compreenso da f aquelaque nasce quando recebemos o grande amor deDeus, que nos transforma interiormente e nos d

    olhos novos para ver a realidade.

    27. conhecido o modo como o lsofo Lu-dwig Wittgenstein explicou a ligao entre a f ea certeza. Segundo ele, acreditar seria compar-

    vel experincia do enamoramento, concebidacomo algo de subjectivo, impossvel de proporcomo verdade vlida para todos.19 De facto, aosolhos do homem moderno, parece que a questodo amor no teria nada a ver com a verdade; oamor surge, hoje, como uma experincia ligada,no verdade, mas ao mundo inconstante dossentimentos.

    Mas, ser esta verdadeiramente uma descri-o adequada do amor? Na realidade, o amor nose pode reduzir a um sentimento que vai e vem. verdade que o amor tem a ver com a nossa

    19 Cf. G. H. vonWright (coord.), Vermischte Bemerkungen/ Culture and Value(Oxford 1991), 32-33 e 61-64.

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    afectividade, mas para a abrir pessoa amada, eassim iniciar um caminho que faz sair da reclusono prprio eu e dirigir-se para a outra pessoa, am de construir uma relao duradoura; o amor

    visa a unio com a pessoa amada. E aqui se ma-nifesta em que sentido o amor tem necessidade

    da verdade: apenas na medida em que o amor es-tiver fundado na verdade que pode perdurar notempo, superar o instante efmero e permanecerrme para sustentar um caminho comum. Se oamor no tivesse relao com a verdade, estariasujeito alterao dos sentimentos e no supe-raria a prova do tempo. Diversamente, o amor

    verdadeiro unica todos os elementos da nossapersonalidade e torna-se uma luz nova que apon-ta para uma vida grande e plena. Sem a verdade,o amor no pode oferecer um vnculo slido, noconsegue arrancar o eu para fora do seu iso-lamento, nem libert-lo do instante fugidio para

    edicar a vida e produzir fruto.Se o amor tem necessidade da verdade, tam-

    bm a verdade precisa do amor; amor e verdadeno se podem separar. Sem o amor, a verdadetorna-se fria, impessoal, gravosa para a vida con-creta da pessoa. A verdade que buscamos, a ver-

    dade que d signicado aos nossos passos, ilumi-na-nos quando somos tocados pelo amor. Quemama, compreende que o amor experincia da

    verdade, compreende que precisamente ele queabre os nossos olhos para verem a realidade in-teira, de maneira nova, em unio com a pessoaamada. Neste sentido, escreveu So Gregrio

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    Magno que o prprio amor um conhecimen-to,20 traz consigo uma lgica nova. Trata-se deum modo relacional de olhar o mundo, que setorna conhecimento partilhado, viso na viso dooutro e viso comum sobre todas as coisas. NaIdade Mdia, Guilherme de Saint Thierry adopta

    esta tradio, ao comentar um versculo do Cn-tico dos Cnticos no qual o amado diz ama-da: Como so lindos os teus olhos de pomba! (Ct 1, 15).21 Estes dois olhos explica Saint

    Thierry so a razo crente e o amor, que setornam um nico olhar para chegar contempla-o de Deus, quando a inteligncia se faz enten-dimento de um amor iluminado .22

    28. Esta descoberta do amor como fonte deconhecimento, que pertence experincia pri-mordial de cada homem, encontra uma expres-so categorizada na concepo bblica da f.

    Israel, saboreando o amor com que Deus o esco-lheu e gerou como povo, chega a compreender aunidade do desgnio divino, desde a origem suarealizao. O conhecimento da f, pelo facto denascer do amor de Deus que estabelece a Alian-a, conhecimento que ilumina um caminho na

    histria. por isso tambm que, na Bblia, verda-de e delidade caminham juntas: o Deus verda-

    20 Cf. Homiliae in Evangelia, II, 27, 4: PL76, 1207 ( amoripse notitia est ).

    21 Cf.Expositio super Cantica Canticorum, XVIII, 88: CCL,Continuatio Mediaevalis, 87, 67.

    22 Ibid., XIX, 90: o. c., 87, 69.

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    deiro o Deus el, Aquele que mantm as suaspromessas e permite, com o decorrer do tempo,compreender o seu desgnio. Atravs da expe-rincia dos profetas, no sofrimento do exlio ena esperana de um regresso denitivo CidadeSanta, Israel intuiu que esta verdade de Deus se

    estendia mais alm da prpria histria, abraandoa histria inteira do mundo a comear da criao.O conhecimento da f ilumina no s o caminhoparticular de um povo, mas tambm o percursointeiro do mundo criado, desde a origem at sua consumao.

    A f como escuta e viso

    29. Justamente porque o conhecimento da fest ligado aliana de um Deus el, que estabe-lece uma relao de amor com o homem e lhe di-rige a Palavra, apresentado pela Bblia como es-cuta, aparece associado com o ouvido. So Paulousar uma frmula que se tornou clssica: fdesex auditu a f vem da escuta (Rm10, 17). Oconhecimento associado palavra sempre co-nhecimento pessoal, que reconhece a voz, se lheabre livremente e a segue obedientemente. Porisso, So Paulo falou da obedincia da f (cf.

    Rm1, 5; 16, 26).23 Alm disso, a f conhecimen-

    23 A Deus que revela devida a obedincia da f (Rm16, 26; cf. Rm1, 5; 2 Cor10, 5-6); pela f, o homem entrega-setotal e livremente a Deus, oferecendo a Deus revelador o obs-quio pleno da inteligncia e da vontade e prestando voluntrioassentimento sua revelao. Para prestar esta adeso da f, sonecessrios a prvia e concomitante ajuda da graa divina e os

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    to ligado ao transcorrer do tempo que a palavranecessita para ser explicitada: conhecimentoque s se aprende num percurso de seguimento.

    A escuta ajuda a identicar bem o nexo entre co-nhecimento e amor.

    A propsito do conhecimento da verda-

    de, pretendeu-se por vezes contrapor a escuta viso, a qual seria peculiar da cultura grega. Sea luz, por um lado, oferece a contemplao datotalidade a que o homem sempre aspirou, poroutro, parece no deixar espao liberdade, poisdesce do cu e chega directamente vista, semlhe pedir que responda. Alm disso, parece con-

    vidar a uma contemplao esttica, separada dotempo concreto em que o homem goza e sofre.Segundo esta concepo, haveria oposio entrea abordagem bblica do conhecimento e a grega,a qual, na sua busca duma compreenso comple-ta da realidade, teria associado o conhecimento

    com a viso.Mas tal suposta oposio no corroboradade forma alguma pelos dados bblicos: o Antigo

    Testamento combinou os dois tipos de conheci-mento, unindo a escuta da Palavra de Deus como desejo de ver o seu rosto. Isto tornou possvelentabular dilogo com a cultura helenista, um

    interiores auxlios do Esprito Santo, o qual move e converte aDeus o corao, abre os olhos do entendimento, e d a todosa suavidade em aceitar e crer a verdade. Para que a compreen-so da revelao seja sempre mais profunda, o mesmo EspritoSanto aperfeioa sem cessar a f mediante os seus dons (ConC.eCum. vat. ii, Const. dogm. sobre a divina Revelao Dei Ver-bum, 5).

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    dilogo que pertence ao corao da Escritura.O ouvido atesta no s a chamada pessoal e aobedincia, mas tambm que a verdade se revelano tempo; a vista, por sua vez, oferece a visoplena de todo o percurso, permitindo situar-nosno grande projecto de Deus; sem tal viso, dis-

    poramos apenas de fragmentos isolados de umtodo desconhecido.

    30. A conexo entre o ver e o ouvir, como r-gos do conhecimento da f, aparece com a m-xima clareza no Evangelho de Joo, onde acre-ditar simultaneamente ouvir e ver. A escuta daf verica-se segundo a forma de conhecimentoprpria do amor: uma escuta pessoal, que dis-tingue e reconhece a voz do Bom Pastor (cf. Jo10, 3-5); uma escuta que requer o seguimento,como acontece com os primeiros discpulos que, ouvindo [Joo Baptista] falar desta maneira, se-

    guiram Jesus (Jo 1, 37). Por outro lado, a f estligada tambm com a viso: umas vezes, a visodos sinais de Jesus precede a f, como sucedecom os judeus que, depois da ressurreio de L-zaro, ao verem o que Jesus fez, creram nEle (Jo 11, 45); outras vezes, a f que leva a uma

    viso mais profunda: Se acreditares, vers a gl-ria de Deus (Jo 11, 40). Por m, acreditar e vercruzam-se: Quem cr em Mim (...) cr nAqueleque Me enviou; e quem Me v a Mim, v Aqueleque me enviou (Jo 12, 44-45). O ver, graas suaunio com o ouvir, torna-se seguimento de Cris-to; e a f aparece como um caminho do olhar em

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    que os olhos se habituam a ver em profundidade.E assim, na manh de Pscoa, de Joo que,ainda na escurido perante o tmulo vazio, viue comeou a crer (Jo 20, 8) passa-se a MariaMadalena que j v Jesus (cf.Jo 20, 14) e querret-Lo, mas convidada a contempl-Lo no seu

    caminho para o Pai at plena consso daprpria Madalena diante dos discpulos: Vi oSenhor! (Jo 20, 18).

    Como se chega a esta sntese entre o ouvir eo ver? A partir da pessoa concreta de Jesus, queSe v e escuta. Ele a Palavra que Se fez carne ecuja glria contemplmos (cf.Jo 1, 14). A luz daf a luz de um Rosto, no qual se v o Pai. Defacto, no quarto Evangelho, a verdade que a fapreende a manifestao do Pai no Filho, nasua carne e nas suas obras terrenas; verdade essa,que se pode denir como a vida luminosa de

    Jesus.24 Isto signica que o conhecimento da f

    no nos convida a olhar uma verdade puramenteinterior; a verdade que a f nos descerra uma

    verdade centrada no encontro com Cristo, nacontemplao da sua vida, na percepo da suapresena. Neste sentido e a propsito da visocorprea do Ressuscitado, So Toms de Aquino

    fala de oculata fdes(uma f que v) dos Apsto-los:25 viram Jesus ressuscitado com os seus olhos

    24 Cf. heinriCh SChlier, Meditationen ber den Jo-hanneischen Begriff der Wahrheit , in: Besinnung auf das NeueTestament. Exegetische Aufstze und Vortrge 2 (Friburgo, Basel,Viena 1959), 272.

    25 Cf. Summa theologiae, III, q. 55, a. 2, ad 1.

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    e acreditaram, isto , puderam penetrar na pro-fundidade daquilo que viam para confessar o Fi-lho de Deus, sentado direita do Pai.

    31. S assim, atravs da encarnao, atravsda partilha da nossa humanidade, podia chegar

    plenitude o conhecimento prprio do amor.De facto, a luz do amor nasce quando somostocados no corao, recebendo assim, em ns, apresena interior do amado, que nos permite re-conhecer o seu mistrio. Compreendemos agorapor que motivo, para Joo, a f seja, juntamen-te com o escutar e o ver, um tocar, como nosdiz na sua Primeira Carta: O que ouvimos, oque vimos () e as nossas mos tocaram rela-tivamente ao Verbo da Vida (1 Jo 1, 1). Pormeio da sua encarnao, com a sua vinda entrens, Jesus tocou-nos e, atravs dos sacramentos,ainda hoje nos toca; desta forma, transformando

    o nosso corao, permitiu-nos e permite-nos reconhec-Lo e confess-Lo como Filho deDeus. Pela f, podemos toc-Lo e receber a for-a da sua graa. Santo Agostinho, comentandoa passagem da hemorrossa que toca Jesus paraser curada (cf. Lc8, 45-46), arma: Tocar com o

    corao, isto crer .26

    A multido comprime-seao redor de Jesus, mas no O alcana com aqueletoque pessoal da f que reconhece o seu mistrio,o seu ser Filho que manifesta o Pai. S quando

    26 Sermo 229/L, 2: PLS 2, 576 ( Tangere autem corde,hoc est credere ).

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    somos congurados com Jesus que recebemoso olhar adequado para O ver.

    O dilogo entre f e razo

    32. A f crist, enquanto anuncia a verdade

    do amor total de Deus e abre para a fora desteamor, chega ao centro mais profundo da expe-rincia de cada homem, que vem luz graas aoamor e chamado ao amor para permanecer naluz. Movidos pelo desejo de iluminar a realidadeinteira a partir do amor de Deus manifestado em

    Jesus e procurando amar com este mesmo amor,

    os primeiros cristos encontraram no mundogrego, na sua fome de verdade, um parceiro id-neo para o dilogo. O encontro da mensagemevanglica com o pensamento losco do mun-do antigo constituiu uma passagem decisiva parao Evangelho chegar a todos os povos e favore-

    ceu uma fecunda sinergia entre f e razo, quese foi desenvolvendo no decurso dos sculos ataos nossos dias. O Beato Joo Paulo II, na suacarta encclica Fides et ratio, mostrou como f erazo se reforam mutuamente.27 Depois de terencontrado a luz plena do amor de Jesus, des-cobrimos que havia, em todo o nosso amor, umlampejo daquela luz e compreendemos qual era asua meta derradeira; e, simultaneamente, o factode o nosso amor trazer em si uma luz ajuda-nosa ver o caminho do amor rumo plenitude da

    27 Cf. n. 73:AAS(1999), 61-62.

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    doao total do Filho de Deus por ns. Nestemovimento circular, a luz da f ilumina todas asnossas relaes humanas, que podem ser vividasem unio com o amor e a ternura de Cristo.

    33. Na vida de Santo Agostinho, encontramos

    um exemplo signicativo deste caminho: a buscada razo, com o seu desejo de verdade e clareza,aparece integrada no horizonte da f, do qual re-cebeu uma nova compreenso. Por um lado, aco-lhe a losoa grega da luz com a sua insistnciana viso: o seu encontro com o neoplatonismofez-lhe conhecer o paradigma da luz, que descedo alto para iluminar as coisas, tornando-se as-sim um smbolo de Deus. Desta maneira, Santo

    Agostinho compreendeu a transcendncia divinae descobriu que todas as coisas possuem em siuma transparncia, isto , que podiam reectir abondade de Deus, o Bem; assim se libertou do

    maniquesmo, em que antes vivia, que o inclinavaa pensar que o bem e o mal lutassem continua-mente entre si, confundindo-se e misturando-se,sem contornos claros. O facto de ter compreen-dido que Deus luz deu sua existncia umanova orientao, a capacidade de reconhecer o

    mal de que era culpado e voltar-se para o bem.Mas, por outro lado, na experincia concre-ta de Agostinho, que ele prprio narra nas suasConfsses, o momento decisivo no seu caminhode f no foi uma viso de Deus para alm destemundo, mas a escuta, quando no jardim ouviuuma voz que lhe dizia: Toma e l ; ele pegou

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    no tomo com as Cartas de So Paulo, detendo--se no captulo dcimo terceiro da Carta aos Ro-manos.28 Temos aqui o Deus pessoal da Bblia,capaz de falar ao homem, descer para viver comele e acompanhar o seu caminho na histria, ma-nifestando-Se no tempo da escuta e da resposta.

    Mas, este encontro com o Deus da Palavrano levou Santo Agostinho a rejeitar a luz e a

    viso, mas integrou ambas as perspectivas, guia-do sempre pela revelao do amor de Deus em

    Jesus. Deste modo, elaborou uma losoa da luzque rene em si a reciprocidade prpria da pa-

    lavra e abre um espao liberdade prpria doolhar para a luz: tal como palavra correspondeuma resposta livre, assim tambm a luz encontracomo resposta uma imagem que a reecte. Destemodo, associando escuta e viso, Santo Agosti-nho pde referir-se palavra que resplandeceno interior do homem .29 A luz torna-se, por as-sim dizer, a luz de uma palavra, porque a luz deum Rosto pessoal, uma luz que, ao iluminar-nos,nos chama e quer reectir-se no nosso rosto pararesplandecer a partir do nosso ntimo. Por ou-tro lado, o desejo da viso do todo, e no apenasdos fragmentos da histria, continua presente e

    cumprir-se- no m, quando o homem comodiz o Santo de Hipona poder ver e amar;30 eisto, no por ser capaz de possuir a luz toda, j

    28 Cf. Confessiones, VIII, 12, 29: PL32, 762.29 De Trinitate, XV, 11, 20: PL42, 1071.30 Cf. De civitate Dei, XXII, 30, 5: PL41, 804.

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    que esta ser sempre inexaurvel, mas por entrar,todo inteiro, na luz.

    34. A luz do amor, prpria da f, pode ilumi-nar as perguntas do nosso tempo acerca da ver-dade. Muitas vezes, hoje, a verdade reduzida a

    autenticidade subjectiva do indivduo, vlida ape-nas para a vida individual. Uma verdade comummete-nos medo, porque a identicamos comodissemos atrs com a imposio intransigen-te dos totalitarismos; mas, se ela a verdade doamor, se a verdade que se mostra no encontropessoal com o Outro e com os outros, ento calivre da recluso no indivduo e pode fazer partedo bem comum. Sendo a verdade de um amor,no verdade que se impe pela violncia, no verdade que esmaga o indivduo; nascendo doamor pode chegar ao corao, ao centro pessoalde cada homem; daqui resulta claramente que a

    f no intransigente, mas cresce na convivnciaque respeita o outro. O crente no arrogante;pelo contrrio, a verdade torna-o humilde, sa-bendo que, mais do que possuirmo-la ns, elaque nos abraa e possui. Longe de nos endure-cer, a segurana da f pe-nos a caminho e torna

    possvel o testemunho e o dilogo com todos.Por outro lado, enquanto unida verdade doamor, a luz da f no alheia ao mundo material,porque o amor vive-se sempre com corpo e alma;a luz da f luz encarnada, que dimana da vidaluminosa de Jesus. A f ilumina tambm a mat-ria, cona na sua ordem, sabe que nela se abre

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    um caminho cada vez mais amplo de harmonia ecompreenso. Deste modo, o olhar da cincia tirabenefcio da f: esta convida o cientista a perma-necer aberto realidade, em toda a sua riquezainesgotvel. A f desperta o sentido crtico, en-quanto impede a pesquisa de se deter, satisfeita,

    nas suas frmulas e ajuda-a a compreender quea natureza sempre as ultrapassa. Convidando amaravilhar-se diante do mistrio da criao, a falarga os horizontes da razo para iluminar me-lhor o mundo que se abre aos estudos da cincia.

    A f e a busca de Deus

    35. A luz da f em Jesus ilumina tambm o ca-minho de todos aqueles que procuram a Deuse oferece a contribuio prpria do cristianismopara o dilogo com os seguidores das diferentesreligies. A Carta aos Hebreus fala-nos do tes-temunho dos justos que, antes da Aliana com

    Abrao, j procuravam a Deus com f; l se diz,a propsito de Henoc, que tinha agradado aDeus , sendo isso impossvel sem a f, porque quem se aproxima de Deus tem de acreditar queEle existe e recompensa aqueles que O procu-ram (Heb11, 5.6). Deste modo, possvel com-

    preender que o caminho do homem religiosopassa pela consso de um Deus que cuida delee que Se pode encontrar. Que outra recompen-sa poderia Deus oferecer queles que O buscam,seno deixar-Se encontrar a Si mesmo? Aindaantes de Henoc, encontramos a gura de Abel,de quem se louva igualmente a f, em virtude da

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    qual foram agradveis a Deus os seus dons, a ofe-renda dos primognitos dos seus rebanhos (cf.Heb11, 4). O homem religioso procura reconhe-cer os sinais de Deus nas experincias dirias dasua vida, no ciclo das estaes, na fecundidade daterra e em todo o movimento do universo. Deus

    luminoso, podendo ser encontrado tambmpor aqueles que O buscam de corao sincero.Imagem desta busca so os Magos, guiados

    pela estrela at Belm (cf. Mt2, 1-12). A luz deDeus mostrou-se-lhes como caminho, como es-trela que os guia ao longo duma estrada a desco-brir. Deste modo, a estrela fala da pacincia deDeus com os nossos olhos, que devem habituar--se ao seu fulgor. Encontrando-se a caminho, ohomem religioso deve estar pronto a deixar-seguiar, a sair de si mesmo para encontrar o Deusque no cessa de nos surpreender. Este respeitode Deus pelos olhos do homem mostra-nos que,

    quando o homem se aproxima dEle, a luz hu-mana no se dissolve na imensido luminosa deDeus, como se fosse um estrela absorvida pelaaurora, mas torna-se tanto mais brilhante quantomais perto ca do fogo gerador, como um es-pelho que reecte o resplendor. A consso de

    Jesus, nico Salvador, arma que toda a luz deDeus se concentrou nEle, na sua vida lumino-sa , em que se revela a origem e a consumaoda histria.31 No h nenhuma experincia hu-

    31 Cf. Congr. Paraa doutrinada f, Decl. Dominus Iesus(6 de Agosto de 2000), 15:AAS92 (2000), 756.

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    mana, nenhum itinerrio do homem para Deusque no possa ser acolhido, iluminado e purica-do por esta luz. Quanto mais o cristo penetrarno crculo aberto pela luz de Cristo, tanto maisser capaz de compreender e acompanhar o ca-minho de cada homem para Deus.

    Congurando-se como caminho, a f tem aver tambm com a vida dos homens que, apesarde no acreditar, desejam-no fazer e no cessamde procurar. Na medida em que se abrem, de co-rao sincero, ao amor e se pem a caminho coma luz que conseguem captar, j vivem sem osaber no caminho para a f: procuram agircomo se Deus existisse, seja porque reconhecema sua importncia para encontrar directrizes r-mes na vida comum, seja porque sentem o desejode luz no meio da escurido, seja ainda porque,notando como grande e bela a vida, intuem quea presena de Deus ainda a tornaria maior. Santo

    Ireneu de Lio refere que Abrao, antes de ouvira voz de Deus, j O procurava com o desejo ar-dente do seu corao e percorria todo o mun-do, perguntando-se onde pudesse estar Deus ,at que Deus teve piedade daquele que, sozi-nho, O procurava no silncio .32 Quem se pe acaminho para praticar o bem, j se aproxima deDeus, j est sustentado pela sua ajuda, porque prprio da dinmica da luz divina iluminar osnossos olhos, quando caminhamos para a pleni-tude do amor.

    32 Demonstratio apostolicae praedicationis, 24: SC406, 117.

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    F e teologia

    36. Como luz que , a f convida-nos a pene-trar nela, a explorar sempre mais o horizonte queilumina, para conhecer melhor o que amamos.Deste desejo nasce a teologia crist; assim, cla-ro que a teologia impossvel sem a f e per-tence ao prprio movimento da f, que procuraa compreenso mais profunda da auto-revelaode Deus, culminada no Mistrio de Cristo. A pri-meira consequncia que, na teologia, no se ve-rica apenas um esforo da razo para perscru-tar e conhecer, como nas cincias experimentais.

    Deus no pode ser reduzido a objecto; Ele Su-jeito que Se d a conhecer e manifesta na relaopessoa a pessoa. A f recta orienta a razo parase abrir luz que vem de Deus, a m de queela, guiada pelo amor verdade, possa conhecerDeus de forma mais profunda. Os grandes dou-tores e telogos medievais declararam que a teo-logia, enquanto cincia da f, uma participaono conhecimento que Deus tem de Si mesmo.Por isso, a teologia no apenas palavra sobreDeus, mas, antes de tudo, acolhimento e buscade uma compreenso mais profunda da palavraque Deus nos dirige: palavra que Deus pronun-

    cia sobre Si mesmo, porque um dilogo eternode comunho, no mbito do qual admitido ohomem.33 Assim, prpria da teologia a humil-

    33 Cf. Boaventura, Breviloquium, Prol.: Opera Omnia, V(Quaracchi 1891), 201; In I librum sententiarum, Proem., q. 1,resp.: Opera Omnia, I (Quaracchi 1891), 7; tomSde aquino,

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    dade, que se deixa tocar por Deus, reconheceos seus limites face ao Mistrio e se encoraja aexplorar, com a disciplina prpria da razo, as ri-quezas insondveis deste Mistrio.

    Alm disso, a teologia partilha a forma ecle-sial da f; a sua luz a luz do sujeito crente que

    a Igreja. Isto implica, por um lado, que a teologiaesteja ao servio da f dos cristos, vise humil-demente preservar e aprofundar o crer de todos,sobretudo dos mais simples; e por outro, dadoque vive da f, a teologia no considera o magis-trio do Papa e dos Bispos em comunho comele como algo de extrnseco, um limite sua li-

    berdade, mas, pelo contrrio, como um dos seusmomentos internos constitutivos, enquanto omagistrio assegura o contacto com a fonte ori-ginria, oferecendo assim a certeza de beber naPalavra de Cristo em toda a sua integridade.

    Summa theologiae, I, q. 1.

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    CaPtulo III

    tranSmito-voS aquilo que reCeBi(cf. 1 Cor15, 3)

    A Igreja, me da nossa f

    37. Quem se abriu ao amor de Deus, acolheua sua voz e recebeu a sua luz, no pode guardareste dom para si mesmo. Uma vez que escutae viso, a f transmite-se tambm como palavrae como luz; dirigindo-se aos Corntios, o apsto-lo Paulo utiliza precisamente estas duas imagens.Por um lado, diz: Animados do mesmo espritode f, conforme o que est escrito: Acreditei epor isso falei, tambm ns acreditamos e por issofalamos (2 Cor4, 13); a palavra recebida faz-seresposta, consso, e assim ecoa para os outros,convidando-os a crer. Por outro, So Paulo re-

    fere-se tambm luz: E ns todos que, com orosto descoberto, reectimos a glria do Senhor,somos transgurados na sua prpria imagem (2Cor3, 18); uma luz que se reecte de rosto emrosto, como sucedeu com Moiss cujo rosto re-ectia a glria de Deus depois de ter falado com

    Ele: [Deus] brilhou nos nossos coraes, parairradiar o conhecimento da glria de Deus, queresplandece na face de Cristo (2 Cor4, 6). A luzde Jesus brilha no rosto dos cristos como numespelho, e assim se difunde chegando at ns,para que tambm ns possamos participar desta

    viso e reectir para outros a sua luz, da mesma

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    forma que a luz do crio, na liturgia de Pscoa,acende muitas outras velas. A f transmite-se porassim dizer sob a forma de contacto, de pessoaa pessoa, como uma chama se acende noutrachama. Os cristos, na sua pobreza, lanam umasemente to fecunda que se torna uma grande

    rvore, capaz de encher o mundo de frutos.

    38. A transmisso da f, que brilha para as pes-soas de todos os lugares, passa tambm atravsdo eixo do tempo, de gerao em gerao. Dadoque a f nasce de um encontro que acontece nahistria e ilumina o nosso caminho no tempo, amesma deve ser transmitida ao longo dos scu-los. atravs de uma cadeia ininterrupta de tes-temunhos que nos chega o rosto de Jesus. Como possvel isto? Como se pode estar seguro debeber no verdadeiro Jesus atravs dos sculos?Se o homem fosse um indivduo isolado, se qui-

    sssemos partir apenas do eu individual, quepretende encontrar em si mesmo a rmeza doseu conhecimento, tal certeza seria impossvel;no posso, por mim mesmo, ver aquilo que acon-teceu numa poca to distante de mim. Mas, estano a nica maneira de o homem conhecer; a

    pessoa vive sempre em relao: provm de ou-tros, pertence a outros, a sua vida torna-se maiorno encontro com os outros; o prprio conheci-mento e conscincia de ns mesmos so de tiporelacional e esto ligados a outros que nos pre-cederam, a comear pelos nossos pais que nosderam a vida e o nome. A prpria linguagem, as

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    palavras com que interpretamos a nossa vida e arealidade inteira chegam-nos atravs dos outros,conservadas na memria viva de outros; o co-nhecimento de ns mesmos s possvel quan-do participamos duma memria mais ampla. Omesmo acontece com a f, que leva plenitude

    o modo humano de entender: o passado da f,aquele acto de amor de Jesus que gerou no mun-do uma vida nova, chega at ns na memria deoutros, das testemunhas, guardado vivo naquelesujeito nico de memria que a Igreja; esta uma Me que nos ensina a falar a linguagem daf. So Joo insistiu sobre este aspecto no seuEvangelho, unindo conjuntamente f e memriae associando as duas aco do Esprito Santoque, como diz Jesus, h-de recordar-vos tudo (Jo 14, 26). O Amor, que o Esprito e que ha-bita na Igreja, mantm unidos entre si todos ostempos e faz-nos contemporneos de Jesus, tor-

    nando-Se assim o guia do nosso caminho na f.

    39. impossvel crer sozinhos. A f no suma opo individual que se realiza na interiori-dade do crente, no uma relao isolada entre o eu do el e o Tu divino, entre o sujeito aut-

    nomo e Deus; mas, por sua natureza, abre-se ao ns , verica-se sempre dentro da comunhoda Igreja. Assim no-lo recorda a forma dialoga-da do Credo, que se usa na liturgia baptismal. Ocrer exprime-se como resposta a um convite, auma palavra que no provm de mim, mas deveser escutada; por isso, insere-se no interior de

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    um dilogo, no pode ser uma mera conssoque nasce do indivduo: s possvel responder creio em primeira pessoa, porque se perten-ce a uma comunho grande, dizendo tambm cremos . Esta abertura ao ns eclesial reali-za-se de acordo com a abertura prpria do amor

    de Deus, que no apenas relao entre o Pai eo Filho, entre eu e tu , mas, no Esprito, tambm um ns , uma comunho de pessoas.Por isso mesmo, quem cr nunca est sozinho;e, pela mesma razo, a f tende a difundir-se, aconvidar outros para a sua alegria. Quem recebe

    a f, descobre que os espaos do prprio eu se alargam, gerando-se nele novas relaes queenriquecem a vida. Assim o exprimiu vigorosa-mente Tertuliano ao dizer do catecmeno que,tendo sido recebido numa nova famlia depoisdo banho do novo nascimento , acolhido nacasa da Me para erguer as mos e rezar, junta-

    mente com os irmos, o Pai Nosso.34

    Os sacramentos e a transmisso da f

    40. Como sucede em cada famlia, a Igre-ja transmite aos seus lhos o contedo da suamemria. Como se deve fazer esta transmissode modo que nada se perca, mas antes que tudose aprofunde cada vez mais na herana da f? atravs da Tradio Apostlica, conservada naIgreja com a assistncia do Esprito Santo, que

    34 Cf. De Baptismo, 20, 5: CCL1, 295.

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    temos contacto vivo com a memria fundado-ra. E aquilo que foi transmitido pelos Apstolos,como arma o Conclio Ecumnico Vaticano II, abrange tudo quanto contribui para a vida santado Povo de Deus e para o aumento da sua f; eassim a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, per-

    petua e transmite a todas as geraes tudo aquiloque ela e tudo quanto acredita .35

    De facto, a f tem necessidade de um mbitoonde se possa testemunhar e comunicar, e que omesmo seja adequado e proporcionado ao quese comunica. Para transmitir um contedo me-ramente doutrinal, uma ideia, talvez bastasse umlivro ou a repetio de uma mensagem oral; masaquilo que se comunica na Igreja, o que se trans-mite na sua Tradio viva a luz nova que nascedo encontro com o Deus vivo, uma luz que tocaa pessoa no seu ntimo, no corao, envolvendoa sua mente, vontade e afectividade, abrindo-a a

    relaes vivas na comunho com Deus e com osoutros. Para se transmitir tal plenitude, existe ummeio especial que pe em jogo a pessoa intei-ra: corpo e esprito, interioridade e relaes. Estemeio so os sacramentos celebrados na liturgiada Igreja: neles, comunica-se uma memria en-carnada, ligada aos lugares e pocas da vida, as-sociada com todos os sentidos; neles, a pessoa envolvida, como membro de um sujeito vivo,num tecido de relaes comunitrias. Por isso,se verdade que os sacramentos so os sacra-

    35 Const. dogm. sobre a divina Revelao Dei Verbum, 8.

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    mentos da f,36 h que armar tambm que a ftem uma estrutura sacramental; o despertar da fpassa pelo despertar de um novo sentido sacra-mental na vida do homem e na existncia crist,mostrando como o visvel e o material se abrempara o mistrio do eterno.

    41. A transmisso da f verica-se, em primei-ro lugar, atravs do Baptismo. Poderia parecerque este sacramento fosse apenas um modo parasimbolizar a consso de f, um acto pedaggicopara quem precise de imagens e gestos, e do qualseria possvel fundamentalmente prescindir. Mas

    no assim, como no-lo recorda uma palavrade So Paulo: Pelo Baptismo fomos sepultadoscom Cristo na morte, para que, tal como Cristofoi ressuscitado de entre os mortos pela glria doPai, tambm ns caminhemos numa vida nova (Rm6, 4); nele, tornamo-nos nova criatura e -lhos adoptivos de Deus. E mais adiante o Aps-tolo diz que o cristo foi conado a uma formade ensino (typos didachs), a que obedece de cora-o (cf. Rm6, 17): no Baptismo, o homem recebetambm uma doutrina que deve professar e umaforma concreta de vida que requer o envolvimen-to de toda a sua pessoa, encaminhando-a para o

    bem; transferido para um novo mbito, con-ado a um novo ambiente, a uma nova maneiracomum de agir, na Igreja. Deste modo, o Bap-tismo recorda-nos que a f no obra do indiv-

    36 Cf. ConC. eCum. vat. ii, Const. sobre a sagrada Litur-gia Sacrosanctum Concilium, 59.

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    duo isolado, no um acto que o homem possarealizar contando apenas com as prprias foras,mas tem de ser recebida, entrando na comunhoeclesial que transmite o dom de Deus: ningumse baptiza a si mesmo, tal como ningum vemsozinho existncia. Fomos baptizados.

    42. Quais so os elementos baptismais que nosintroduzem nesta nova forma de ensino ? So-bre o catecmeno invocado, em primeiro lugar,o nome da Trindade: Pai, Filho e Esprito Santo.E deste modo se oferece, logo desde o princpio,uma sntese do caminho da f: o Deus que cha-mou Abrao e quis chamar-Se seu Deus, o Deusque revelou o seu nome a Moiss, o Deus que,ao entregar-nos o seu Filho, nos revelou plena-mente o mistrio do seu Nome, d pessoa bap-tizada uma nova identidade lial. Desta forma,se evidencia o sentido da imerso na gua que se

    realiza no Baptismo: a gua , simultaneamente,smbolo de morte, que nos convida a passar pelaconverso do eu tendo em vista a sua aberturaa um Eu maior, e smbolo de vida, do ventreonde renascemos para seguir Cristo na sua novaexistncia. Deste modo, atravs da imerso na

    gua, o Baptismo fala-nos da estrutura encarnadada f. A aco de Cristo toca-nos na nossa rea-lidade pessoal, transformando-nos radicalmente,tornando-nos lhos adoptivos de Deus, partici-pantes da natureza divina; e assim modica todasas nossas relaes, a nossa situao concreta naterra e no universo, abrindo-as prpria vida de

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    comunho dEle. Este dinamismo de transfor-mao prprio do Baptismo ajuda-nos a perce-ber a importncia do catecumenato, que hoje mesmo em sociedades de antigas razes crists,onde um nmero crescente de adultos se apro-xima do sacramento baptismal se reveste de

    singular relevncia para a nova evangelizao. o itinerrio de preparao para o Baptismo, paraa transformao da vida inteira em Cristo.

    Para compreender a ligao entre o Baptis-mo e a f, pode ajudar-nos a recordao de umtexto do profeta Isaas, que j aparece associadocom o Baptismo na literatura crist antiga: Tero seu refgio em rochas elevadas, ter () guaem abundncia (Is33, 16).37 Resgatado da mor-te pela gua, o baptizado pode manter-se de psobre rochas elevadas , porque encontrou a so-lidez qual conar-se; e, assim, a gua de mortetransformou-se em gua de vida. O texto grego

    descrevia-a como guapists, gua el : a guado Baptismo el, podendo conar-nos a elaporque a sua corrente entra na dinmica de amorde Jesus, fonte de segurana para o nosso cami-nho na vida.

    43. A estrutura do Baptismo, a sua congura-o como renascimento no qual recebemos umnome novo e uma vida nova, ajuda-nos a com-preender o sentido e a importncia do Baptismodas crianas. Uma criana no capaz de um acto

    37 Cf.Epistula Barnabae, 11, 5: SC172, 162.

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    livre que acolha a f: ainda no a pode confessarsozinha e, por isso mesmo, confessada pelosseus pais e pelos padrinhos em nome dela. A f

    vivida no mbito da comunidade da Igreja, inse-re-se num ns comum. Assim, a criana podeser sustentada por outros, pelos seus pais e pa-

    drinhos, e pode ser acolhida na f deles que af da Igreja, simbolizada pela luz que o pai tomado crio na liturgia baptismal. Esta estrutura doBaptismo pe em evidncia a importncia da si-nergia entre a Igreja e a famlia na transmissoda f. Os pais so chamados como diz San-to Agostinho no s a gerar os lhos para

    a vida, mas a lev-los a Deus, para que sejam,atravs do Baptismo, regenerados como lhos deDeus, recebam o dom da f.38 Assim, juntamentecom a vida, -lhes dada a orientao fundamentalda existncia e a segurana de um bom futuro;orientao esta, que ser ulteriormente corrobo-

    rada no sacramento da Conrmao com o seloindelvel do Esprito Santo.

    44. A natureza sacramental da f encontra a suamxima expresso na Eucaristia. Esta alimen-to precioso da f, encontro com Cristo presentede maneira real no seu acto supremo de amor:

    o dom de Si mesmo que gera vida. Na Eucaris-tia, temos o cruzamento dos dois eixos sobre osquais a f percorre o seu caminho. Por um lado,

    38 Cf. De nuptiis et concupiscentia, I, 4, 5: PL44, 413 ( Habentquippe intentionem generandi regenerandos, ut qui ex eis saecu-li lii nascuntur in Dei lios renascantur ).

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    o eixo da histria: a Eucaristia acto de mem-ria, actualizao do mistrio, em que o passado,como um evento de morte e ressurreio, mostraa sua capacidade de se abrir ao futuro, de anteci-par a plenitude nal; no-lo recorda a liturgia como seu hodie, o hoje dos mistrios da salvao.

    Por outro lado, encontra-se aqui tambm o eixoque conduz do mundo visvel ao invisvel: naEucaristia, aprendemos a ver a profundidade doreal. O po e o vinho transformam-se no Corpoe Sangue de Cristo, que Se faz presente no seucaminho pascal para o Pai: este movimento in-troduz-nos, corpo e alma, no movimento de todaa criao para a sua plenitude em Deus.

    45. Na celebrao dos sacramentos, a Igrejatransmite a sua memria, particularmente com aprosso de f. Nesta, no se trata tanto de pres-tar assentimento a um conjunto de verdades abs-

    tractas, como sobretudo fazer a vida toda entrarna comunho plena com o Deus Vivo. Podemosdizer que, no Credo, o el convidado a entrar nomistrio que professa e a deixar-se transformarpor aquilo que confessa. Para compreender osentido desta armao, pensemos em primeiro

    lugar no contedo do Credo. Este tem uma estru-tura trinitria: o Pai e o Filho unem-Se no Esp-rito de amor. Deste modo o crente arma que ocentro do ser, o segredo mais profundo de todasas coisas a comunho divina. Alm disso, o Cre-do contm uma consso cristolgica: repassam--se os mistrios da vida de Jesus at sua morte,

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    ressurreio e ascenso ao Cu, na esperana dasua vinda nal na glria. E, consequentemente,arma-se que este Deus-comunho, permuta deamor entre o Pai e o Filho no Esprito, capaz deabraar a histria do homem, de introduzi-lo noseu dinamismo de comunho, que tem, no Pai, a

    sua origem e meta nal. Aquele que confessa af sente-se implicado na verdade que confessa;no pode pronunciar, com verdade, as palavrasdo Credo, sem ser por isso mesmo transformado,sem mergulhar na histria de amor que o abra-a, que dilata o seu ser tornando-o parte de umagrande comunho, do sujeito ltimo que pronun-

    cia o Credo: a Igreja. Todas as verdades, em quecremos, armam o mistrio da vida nova da fcomo caminho de comunho com o Deus Vivo.

    F, orao e Declogo

    46. H mais dois elementos que so essenciaisna transmisso el da memria da Igreja. O pri-meiro a Orao do Senhor, o Pai Nosso; nela, ocristo aprende a partilhar a prpria experinciaespiritual de Cristo e comea a ver com os olhosdEle. A partir dAquele que Luz da Luz, do Fi-lho Unignito do Pai, tambm ns conhecemos

    a Deus e podemos inamar outros no desejo dese aproximarem dEle.Igualmente importante ainda a ligao en-

    tre a f e o Declogo. Dissemos j que a f seapresenta como um caminho, uma estrada a per-correr, aberta pelo encontro com o Deus vivo;por isso, luz da f, da entrega total ao Deus

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    que salva, o Declogo adquire a sua verdade maisprofunda, contida nas palavras que introduzemos Dez Mandamentos: Eu sou o Senhor, teuDeus, que te z sair da terra do Egipto (Ex20,2). O Declogo no um conjunto de precei-tos negativos, mas de indicaes concretas para

    sair do deserto do eu auto-referencial, fecha-do em si mesmo, e entrar em dilogo com Deus,deixando-se abraar pela sua misericrdia a mde a irradiar. Deste modo, a f confessa o amorde Deus, origem e sustentculo de tudo, deixa--se mover por este amor para caminhar rumo

    plenitude da comunho com Deus. O Declo-go aparece como o caminho da gratido, da res-posta de amor, que possvel porque, na f, nosabrimos experincia do amor de Deus que nostransforma. E este caminho recebe uma luz novade tudo aquilo que Jesus ensina no Sermo da

    Montanha (cf.Mt5 7).Toquei assim os quatro elementos que resu-mem o tesouro de memria que a Igreja transmite:a consso de f, a celebrao dos sacramentos, ocaminho do Declogo, a orao. volta deles seestruturou tradicionalmente a catequese da Igreja,

    como se pode ver no Catecismo da Igreja Catlica,instrumento fundamental para aquele acto comque a Igreja comunica o contedo inteiro da f, tudo aquilo que ela e tudo quanto acredita .39

    39ConC. eCum. vat. ii, Const. dogm. sobre a divina Reve-lao Dei Verbum, 8.

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    A unidade e a integridade da f

    47. A unidade da Igreja, no tempo e no espao,est ligada com a unidade da f: H um s Corpoe um s Esprito, (...) uma s f (Ef4, 4-5). Hojepoder parecer realizvel a unio dos homens combase num compromisso comum, na amizade, napartilha da mesma sorte com uma meta comum;mas sentimos muita diculdade em conceber umaunidade na mesma verdade; parece-nos que umaunio do gnero se oporia liberdade do pensa-mento e autonomia do sujeito. Pelo contrrio,a experincia do amor diz-nos que possvel ter-

    mos uma viso comum precisamente no amor:neste, aprendemos a ver a realidade com os olhosdo outro e isto, longe de nos empobrecer, enrique-ce o nosso olhar. O amor verdadeiro, medida doamor divino, exige a verdade e, no olhar comumda verdade que Jesus Cristo, torna-se rme eprofundo. Esta tambm a alegria da f: a unida-

    de de viso num s corpo e num s esprito. Nestesentido, So Leo Magno podia armar: Se a fno una, no f .40

    Qual o segredo desta unidade? A f una,em primeiro lugar, pela unidade de Deus conheci-do e confessado. Todos os artigos de f se referem

    a Ele, so caminhos para conhecer o seu ser e oseu agir; por isso, possuem uma unidade superiora tudo quanto possamos construir com o nossopensamento, possuem a unidade que nos enrique-ce, porque se comunica a ns e nos torna um.

    40 In nativitate Domini sermo, 4, 6: SC22, 110.

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    Depois, a f una, porque se dirige ao nicoSenhor, vida de Jesus, histria concreta queEle partilha connosco. Santo Ireneu de Lio dei-xou isto claro, contrapondo-o aos hereges gns-ticos. Estes sustentavam a existncia de dois tiposde f: uma f rude, a f dos simples, imperfeita,

    que se mantinha ao nvel da carne de Cristo eda contemplao dos seus mistrios; e outro tipode f mais profunda e perfeita, a f verdadeirareservada para um crculo restrito de iniciados,que se elevava com o intelecto para alm da carnede Jesus rumo aos mistrios da divindade des-conhecida. Contra esta pretenso, que ainda emnossos dias continua a ter o seu encanto e os seusseguidores, Santo Ireneu rearma que a f umas, porque passa sempre pelo ponto concreto daencarnao, sem nunca superar a carne e a hist-ria de Cristo, dado que Deus Se quis revelar ple-namente nela. por isso que no h diferena,

    na f, entre aquele que capaz de falar dela maistempo e aquele que fala pouco , entre aqueleque mais dotado e quem se mostra menos ca-paz: nem o primeiro pode ampliar a f, nem osegundo diminu-la.41

    Por ltimo, a f una, porque partilhadapor toda a Igreja, que um s corpo e um sEsprito: na comunho do nico sujeito que aIgreja, recebemos um olhar comum. Confessan-do a mesma f, apoiamo-nos sobre a mesma ro-cha, somos transformados pelo mesmo Esprito

    41 Cf. ireneu,Adversus haereses, I, 10, 2: SC264, 160.

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    de amor, irradiamos uma nica luz e temos umnico olhar para penetrar na realidade.

    48. Dado que a f uma s, deve-se confessarem toda a sua pureza e integridade. Precisamenteporque todos os artigos da f esto unitariamente

    ligados, negar um deles mesmo dos que pos-sam parecer menos importantes equivale a da-nicar o todo. Cada poca pode encontrar pon-tos da f mais fceis ou mais difceis de aceitar;por isso, importante vigiar para que se transmitatodo o depsito da f (cf. 1 Tm6, 20) e para que seinsista oportunamente sobre todos os aspectos daconsso de f. De facto, visto que a unidade da f a unidade da Igreja, tirar algo f faz-lo ver-dade da comunho. Os Padres descreveram a fcomo um corpo, o corpo da verdade, com diversosmembros, analogamente ao que se passa no corpode Cristo com o seu prolongamento na Igreja.42

    A integridade da f foi associada tambm com aimagem da Igreja virgem, com o seu amor espon-sal el a Cristo: danicar a f signica danicar acomunho com o Senhor.43 A unidade da f , porconseguinte, a de um organismo vivo, como bemevidenciou o Beato John Henry Newman, quandoenumera, entre as notas caractersticas para distin-guir a continuidade da doutrina no tempo, o seupoder de assimilar em si tudo o que encontra, nos

    42 Cf. ibid., II, 27, 1: o. c., 294, 264.43 Cf.agoStinho, De sancta virginitate, 48, 48: PL40, 424-

    425 ( Servatur et in de inviolata quaedam castitas virginalis,qua Ecclesia uni viro virgo casta cooptatur ).

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    diversos mbitos em que se torna presente, nas di-versas culturas que encontra,44 tudo puricando elevando sua melhor expresso. assim que a fse mostra universal, catlica, porque a sua luz cres-ce para iluminar todo o universo, toda a histria.

    49. Como servio unidade da f e sua trans-misso ntegra, o Senhor deu Igreja o dom dasucesso apostlica. Por seu intermdio, ca ga-rantida a continuidade da memria da Igreja, e possvel beber, com certeza, na fonte pura dondesurge a f; assim a garantia da ligao com a ori-gem -nos dada por pessoas vivas, o que equivale f viva que a Igreja transmite. Esta f viva assen-ta sobre a delidade das testemunhas que foramescolhidas pelo Senhor para tal tarefa; por isso, omagistrio fala sempre em obedincia Palavraoriginria, sobre a qual se baseia a f, e velporque se entrega Palavra que escuta, guarda

    e expe.45 No discurso de despedida aos anciosde feso, em Mileto, referido por So Lucas nos

    Actos dos Apstolos, So Paulo atesta que cum-priu o encargo, que lhe foi conado pelo Senhor,de lhes anunciar toda a vontade de Deus (cf.Act20, 27); graas ao magistrio da Igreja que nos

    pode chegar, ntegra, esta vontade e, com ela, aalegria de a podermos cumprir plenamente.

    44 Cf. An Essay on the Development of Christian Doctrine(Uniform Edition: Longmans, Green and Company, Londres1868-1881), 185-189.

    45 Cf. ConC. eCum. vat. ii, Const. dogm. sobre a divinaRevelao Dei Verbum, 10.

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    CaPtulo IV

    deuS PrePara Para eleS uma Cidade(cf. Heb11, 16)

    A f e o bem comum

    50. Ao apresentar a histria dos patriarcas edos justos do Antigo Testamento, a Carta aosHebreus pe em relevo um aspecto essencial dasua f; esta no se apresenta apenas como umcaminho, mas tambm como edicao, prepa-rao de um lugar onde os homens possam ha-bitar uns com os outros. O primeiro construtor No, que, na arca, consegue salvar a sua famlia(cf. Heb11, 7). Depois aparece Abrao, de quemse diz que, pela f, habitara em tendas, esperandoa cidade de alicerces rmes (cf. Heb11, 9-10). Ve-mos assim surgir, relacionada com a f, uma nova

    abilidade, uma nova solide