ordep josé trindade serra

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SERRA, OJT. O Encantamento de sua santidade: cancão de fogo [online]. Salvador: EDUFBA, 2006. 114 p. ISBN 85-232-0913-1. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. O encantamento de sua santidade cancão de fogo Ordep José Trindade Serra

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Page 1: Ordep José Trindade Serra

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SERRA, OJT. O Encantamento de sua santidade: cancão de fogo [online]. Salvador: EDUFBA, 2006. 114 p. ISBN 85-232-0913-1. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.

Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

O encantamento de sua santidade cancão de fogo

Ordep José Trindade Serra

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O encantamento de sua santidade

Cancão de fogoCancão de fogoCancão de fogoCancão de fogoCancão de fogo

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Universidade Federal da Bahia

ReitorNaomar de Almeida Filho

Vice-ReitorFrancisco José Gomes Mesquita

Editora da Universidade Federal da Bahia

DiretoraFlávia M. Garcia Rosa

Conselho EditorialAngelo Szaniecki Perret SerpaCarmen Fontes TeixeiraDante Eustachio Lucchesi RamacciottiFernando da Rocha PeresMaria Vidal de Negreiros CamargoSérgio Coelho Borges Farias

SuplentesBouzid IzerrougeneCleise Furtado MendesJosé Fernandes Silva AndradeNancy Elizabeth OdonneOlival Freire JúniorSílvia Lúcia Ferreira

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O encantamento de sua santidade

Cancão de fogoCancão de fogoCancão de fogoCancão de fogoCancão de fogo

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Cordéis de

Ordep Serra

EdufbaSalvador 2006

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©2006 by Ordep Serra

Direitos para esta edição, cedidos àEditora da Universidade Federal da Bahia.Feito o depósito legal.

Capa, projeto gráfico e editoraçãoLúcia Valeska de Souza Sokolowicz

RevisãoOrdep Serra

EDUFBARua Barão de Geremoabo, s/n Campus de Ondina40170-290 Salvador BahiaTel: (71) 3263-6160/[email protected] www.edufba.ufba.br

Biblioteca Central Reitor Macêdo Costa - UFBA �

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T833 Trindade-Serra, Ordep José, 1943- O Encantamento de sua santidade : canção de fogo / cordéis de Ordep

Serra. – Salvador : EDUFBA, 2006. 114 p.: il. ISBN 85-232-0424-5

1. Literatura de cordel. 2. Literatura de cordel brasileira. I. Título.

CDU - 398.51 CDD - 398..5

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A aparição misteriosa de sua santidade

Cancão de fogoCancão de fogoCancão de fogoCancão de fogoCancão de fogoem Cachoeira

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Tenho na boca a verdadeQue torna a mentira muda.Vá raspar-se quem acharEssa história cabeludaQue em Cachoeira me veioDurante a Festa da Ajuda.

Louvando Nossa SenhoraNa data miraculosaMascara-se muita genteDe uma forma pavorosaCom figura de demôniosPondo a rua em polvorosa.

Outros festejam a SantaCom diversas fantasiasA percorrer a cidadeCom batuques e foliaNa certeza de que a MãeD’Ajuda preza a alegria.

Certa vez na multidãoEu fui de devoto braboSapecava pela praçaCom uma tropa de diabos— O bom é que a mulheradaTambém sacudia o rabo.

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A amável bebida louraPor todo canto corria.Um riacho de cachaçaPor santas goelas desciaEnquanto as bandas tocavamAlimentando a folia.

Um grupo de mascaradosE uma renca de MandusCom os Cabeçorras na frenteFazia bate-baúSamba de roda e pagodeJunto do Paraguaçu.

Deus sabe como acabouAquele divertimento!É um mistério pra mimQue turva meu pensamentoO modo como chegueiÀ Pousada do Convento.

Na certa, fui ajudadoNas trevas da noite puraPor gente amiga da festa– Filhos de Nossa Senhora.Milagre da Mãe DivinaAbriu meus olhos na aurora.

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Me sinto na obrigaçãoDe o revelar a meu povo:Bem na janela do quartoVi um espetáculo novo— Um pássaro como o solQue voa no próprio ovo.

A luz que rompeu a cascaDourada desse animalTraçou-lhe com vivas chamasA imagem fenomenal:Forma de anjo pintadoCom tintas de carnaval.

Lembrava um pouco uma onçaA um curió misturadaNa pele de uma raposaDe asa fogueteadaOlhos de vaca paridaNuma expressão delicada

Jeito de cobra coralMas com rabo de pavãoAres de baleia mansaTraços de camaleão.— Ave de sol e de luaEscura feito um cancão.

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Com voz discreta de orquestraO bicho falou comigoMuito cortês e decenteSe declarou meu amigo.— O que me veio contarAgora mesmo lhes digo.

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A minha revelaçãoGrave na sua memória!Só para isso desciDe lá do Reino da Glória.Contigo, de hoje em diante,Vou repartir minha história!

Eu já vivi neste mundo!Há tempos, mudei de estado.Não sou nem vivo, nem morto— Passei pro terceiro lado.Diverso de antigamenteAgora sou Encantado.

Enquanto vivi na terraUsei de batota e logroFiz arrelia de tudoAmava demais o jogoO povo do meu rincãoChamou-me...Cancão de Fogo.Cancão de Fogo.Cancão de Fogo.Cancão de Fogo.Cancão de Fogo.

Eu enganei muita genteMas posso lhe dar certeza:Dos pobres, nunca tirei.Não fiz essa malvadeza!Só dei prejuízo a ricoUsando minha esperteza.

II [Fala Cancão]

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Também fui pobre na terraSofri a necessidadeA fome, a pinimba duraA falta de caridadeO orgulho dos poderososPisando na humanidade.

O fraco pode ser forte...Convém que não esmoreça.Pois quando eu era pequenoDiziam: “Talvez não cresça!”Mas a pomba do DivinoCagou na minha cabeça.

Embora miúdo e magroNo meu projeto de genteNascido de lavradoresNa seca da terra quenteA natureza tornou-meDanado de inteligente.

Não tinha nada por mimA não ser a malandragemE me apliquei com caprichoNas artes da vadiagemEstudei necessidadeTirei do medo coragem.

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Astucioso me fizBuscando a sobrevivência.Em escapar da desgraçaGanhei muita competênciaDe um modo sempre matreiroQue bolinava a decência.

A lei que persegue os fracosNos pés lhes coloca a travaBeneficia o graúdoMantém a negrada escrava— Essa justiça dos homensAlegremente eu burlava.

Fiz pouco da puta féQue aos ricos dá proteçãoE ensina ao povo miúdoFrouxa resignaçãoFazendo os pobres de bestasNo curral da devoção.

Jamais amaldiçoeiA carne que Deus me deuGozei o tanto que pudeE a sorte me ofereceu.Bendigo o corpo que tiveE o gosto que conheceu.

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A boca da hipocrisiaCom as ameaças do abismoVivia me condenandoEm nome do moralismo.Porém eu sigo dizendo:Mais limpo era meu cinismo!

Agora vivo no céuE disso também me espanto...Mas vou lhe mostrar, poeta,Que (antes do meu encanto)Na terra eu tive a primeiraExperiência de santo.

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III

Foi numa cidade grandeCom vasta populaçãoDe povo desmioladoQue se passou a funçãoEstando eu de passagemNo bico da ocasião.

De noite, eu ia na ruaNo rastro de uma sereia;Bateu uma tempestadeO rio teve uma cheiaNo mar uma tromba d’águaPintou uma cena feia.

Correndo mais que depressaPara escapar da agoniaEntrei numa igreja velhaNum morro que ali haviaPorque achei encostadaA porta da sacristia.

Lá dentro, acendi a luzE até descansei um pouco;Mas de repente, no alto,Ouvi um grande pipocoA terra deu um gemidoTremeu-se de um modo louco.

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Depois, quando acomodou-seA caroara do chãoChamei por minha coragemNas garras da precisãoAlumiei uma velaNos olhos da escuridão.

A pé do altar principalEu vi um quadro engraçadoO santo tinha caídoEstava em péssimo estado Na dura laje da igrejaFizera-se descarado.

Quem busca sua melhoriaA inteligência não poupaQue bem pensar é preciso— E a cada prego, uma estopa —:Joguei o santo no lixoPeguei pra mim sua roupa.

Era um vestido de sedaCom um manto de bom veludo(No carnaval, deixariaQualquer viado posudo);Estava enxuto, e aquecia...Na hora, pra mim, foi tudo.

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Faz muitas artes o homemQue a necessidade atiça... E eu, para defender-me,Não tive jamais preguiça:Tratei de aquecer os ossosBebendo o vinho da missa.

Depois, como estava mesmoCarente de descansarAproveitando o silêncioDaquele santo lugarTirei divina sonecaDeitado em cima do altar.

Não dormi muito, porém,Naquela oportunidade:Foi só acalmar-se o tempoNo gozo da claridadeQue vi correr para a igrejaO povo e as autoridades.

O templo estava esquecidoCom ares de pardieiroA vinda do cataclismoFoi um remédio certeiro:O povo desesperadoLembrou-se do padroeiro.

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Notando este movimentoEu me senti inspiradoDepressa, ao nicho subiQue eu tinha já despojadoAtrás de jarros de floresPlantei-me, bem camuflado.

O pobre do meu ouvidoNão descansou um segundoCom gritos, choros e precesDe um desespero profundo;A maioria clamavaTemores do fim do mundo.

Sentindo pena da raçaFalei com voz de trovão:“Acalme-se, povo meu!Não é fim de mundo, não!A gente boa se salva— Só há de morrer ladrão!”

Ouvi no fundo da igrejaSuspiros aliviadosDefronte de mim, porém,Cresceram tristonhos bradosE pavorosos gemidosDe homens alucinados.

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Governador soluçavaSe maldizia o PrefeitoJuizes descabeladosBerravam de horrível jeitoUm Senador se queixavaDando murraças no peito

Na irmandade dos ricosFoi a maior agoniaDesmaio, chilique e enfarteÀs dúzias aconteciaUm bando de deputadosChorava de encher a pia.

Um gordo de três papadasFalou-me num triste arranco:“Ó santo nosso querido!Perdoe, mas vou ser franco:O que será do mercadoCom o fim de todos os bancos?”

Um velho disse: “Estou frito!A situação é crítica!A nossa administraçãoPode ficar paralítica!Receio que ninguém sobrePara tratar de política!”

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Um homem muito alinhadoQueixou-se com desespero:“É grande a calamidadeDeste decreto agoureiro!O céu quer exterminarA raça dos empreiteiros!”

Mostrando misericórdiaBradei-lhes: “Pelo direitoNão escapava ninguémDa tropa que esmurra o peito;Mas para salvar algunsTalvez eu encontre um jeito.

“Aquele que depuserAqui, de bom coração,A praga do mau dinheiroQue causa sua perdiçãoNa certa será poupadoDa grande devastação.

“Mas vejam que corre o tempo!O prazo é de dez minutos.Depois, eu já não detenhoA mão do destino bruto.Quem não usar dessa chanceCobre a família de luto.”

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Com pouco, a meus pés ergueu-seFormosa pilha de granaTanta que não juntariaCassino em uma semanaE eu percebi que os pavoresGovernam a raça humana.

Mas prometi nova graça:“Venha, meu povo fiel!Os anjos estão cobrindoO nosso templo com um véuQuem permanecer aquiEu levo agora pro céu!”

Foi só eu falar assimA igreja se esvaziouHomem, menino e mulherNinguém no templo ficouO padre foi o primeiroQue para longe escapou.

Em minha filosofiaGanhei uma idéia claraNotei que o amor de DeusÉ de uma espécie bem rara:Se todos chamam por EleNinguém Lhe quer ver a cara.

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Vestindo minha roupa velhaEu rápido dei no péDe doações carregadoDa mais generosa féCom que dei muita alegriaÀs damas de cabaré.

Na vida tive riqueza... Jamais por um ano inteiro...Posso dizer que não fuiMuito apegado a dinheiroPois todo o que eu conseguiaDeixava escapar ligeiro.

Vivi como apreciava:Um pouco ao sabor do ventoFui leve de coraçãoLigeiro de pensamentoSó duas coisas juntei:Amor e contentamento.

Na terra fiquei banzandoAté que chegou a hora.Passei-me quando buscavaConsolo pra uma senhoraEsquivada do maridoPorém bela e sedutora.

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Por seu amor eu viviMeu derradeiro papelLutei em dura pelejaCom o Inimigo cruelMas esta grande passagemDeixe pra outro cordel...

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A grande peleja de sua Santidade

Cancão de fogoCancão de fogoCancão de fogoCancão de fogoCancão de fogo

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(Narrada por ele mesmoa um poeta cachoeiranoatravés de uma bela garrafa)

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I

O espanto começa aqui.Cheguei a sua cancela!Confirma-se pelo raioDe minha pássara estrela.A minha melhor passagemSe deve a senhora bela.

Viúva ela se sentiaCom seu esposo do ladoQue já pra nada serviaNa condição de casadoVivia a pobre de lutoChorando um pinto gelado.

Assim que fiquei sabendoDaquela calamidadeAinda mal conhecidaDo povaréu da cidadeA dama fui procurarE ofereci caridade.

A moça ficou alegreMostrou-me sua gratidão.Mas não tardou a falar-meCom verdadeira aflição.Provou que por seu maridoTinha consideração.

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Resolvida a ser sinceraAo gajo ela perguntouSe tinha alguma doençaOu já lhe perdera amorPorque na gostosa camaNunca mais a procurou.

O marido era homem fortePoderoso fazendeiroTinha peões empregadosTinha sacas de dinheiroMas andava ultimamenteEncorujado e banzeiro.

Quando foi questionadoAbriu a boca no choroDisse à mulher que a amavaAcima de seu tesouroMas, na aflição que viviaNão podia dar no couro.

Confessou-lhe, finalmente:“Estou preso pelo rabo!Na ganância escorregueiComo em baba de quiabo.Para ter minha riquezaFiz um trato com o Diabo.

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“Ele fez a sua parte!Pode-se verificar:Deu-me terras e riquezasJá difíceis de contarMas no fim desta semanaMinh’ alma virá buscar.”

A senhora, recordandoA triste revelaçãoQue o marido lhe fizeraChorava de compaixãoE uma súplica me fezAjoelhada no chão.

“Querido Cancão de FogoSinto dor na consciência...Tenho pena do infelizNessa horrível contingência.Vim lhe pedir que o ajudeCom a sua inteligência!”

Agora veja vocêA classe do meu transtorno:Em nome do pão-de-lóQuase me cozo no forno!Por devoção à mulherCismei de ajudar o corno.

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De fato, com aquela moçaFiquei muito admirado:Mostrava ter lealdadeA um homem desesperado.Senti grandeza de almaNum coração delicado.

Atender a seu pedidoPrometi que tentaria(Por amor estimuladoQue ela muito merecia)Desde quando o seu esposoFizesse o que eu lhe diria.

O tipo não discutiu:Os empregados chamouDeu-lhes terras e dinheiroMuitos pobres ajudou.A quem havia exploradoPediu perdão e pagou.

Vestindo tristes farraposDe forma nada bonitaSentado num tamboreteMostrando expressão aflitaNa noite determinadaEle esperou a visita.

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Na mesma sala fiqueiNa cabeceira da mesaCom as belas vestes do homemTrajes de sua riquezaAnéis de ouro nos dedosMuitos sinais de grandeza.

O meu plano era bem feito...Porém teria falhadoSe não fosse a boa sorteDe um apoio inesperadoQue me deu um preto velhoNesse dia libertado.

Enquanto eu me preparavaEle veio ter comigoE me deu um patuáPra livrar-me do perigoMais um laço especialPresente de bom amigo:

“Escute o que vou dizerPois é de conveniência:Pra derrotar o InimigoNão basta sua inteligência...Mas terá um grande apoioPorque mostrou consciência.

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“Ao exigir que a meu povo,Se desse reparação,Multiplicou sua força:Expandiu seu coração.— Agora, pegue essas armasE siga minha instrução.

“Bote logo no pescoçoEste belo patuá.Não tire a volta por nadaPorque lhe protegerá.Se o Inimigo lhe atacaEste laço o prenderá.”

Ao velho eu agradeciCom mostras de meu respeitoE na sala apavoradaEsperei o mau sujeitoCom meu baralho na mãoE o bom patuá no peito.

Sentado num tamboreteO fazendeiro tremiaCom sua pele franzidaDe tanto que se encolhiaSemelhando um caitituTodos os dentes batia.

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Com pouco se deu aliUm tormentoso debateQue exige para contarProfundo talento e arte— Mas isso nosso leitorVerá na Segunda Parte.

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II

No zero da meia noiteUma soturna pancadaOuviu-se bater na portaDaquela sala fechadaComo em tampa de caixãoQuando soa a martelada.

Gritei logo: “Pode entrar Quem agora está chegando.Em nome de Deus eternoVá logo se anunciando!”Rugido me respondeu:“Quem é que está me insultando?

“Sou um Anjo gloriosoQue gozo de independência!Nos acordos de LusbelNão se invoca outra potência!Vim buscar o que me devemResolver uma pendência.

“Não adianta conversaPois estou documentado.Pela regra do direitoFoi o trato combinado.Está tudo no papelNos infernos registrado!

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“Porém agora me digaQuem é Você, que me falaCom imprudência tamanhaSentado aí nesta sala... Enquanto que meu freguêsComo um tratante se cala?

Eu dei uma gargalhadaE disse, no mesmo instante:“Só posso rir da piada...De fato, é interessante— Alguém que não cumpre tratoChamar o outro tratante!

“No caso, sou eu quem podeFazer a reclamação.Quem entra na minha casaCarece ter permissão... E trato com meu cativoSó dando-me explicação!

“Se ainda não me conheceVou lhe mostrar num segundoA minha grande excelênciaE meu talento profundoEu sou o Cancão de FogoMaior jogador do mundo!Maior jogador do mundo!Maior jogador do mundo!Maior jogador do mundo!Maior jogador do mundo!”

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Piscando os olhos vermelhosO tipo ficou paradoPor fim, brotou-lhe um sorriso:“Confesso-me admirado!Na raça frágil dos homensEu vejo um malandro ousado!

“Pra começar pelo termo:Não sei se você já sabe...Talvez que me conhecendoA sua ousadia acabe...‘Maior jogador do mundo’É título que me cabe!

“Eu sou um anjo do infernoO Mestre da JogatinaAcostumado a enganarA sua raça mofinaQuem me desafia a mimProvoca a sorte malina.

“Agora explique direitoA graça do seu rompante...Porque se intitula donoDessa riqueza possante?Que fundamento teriaPra me chamar de tratante?”

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“É fácil — eu retruqueiFalando de modo exato — :O apelido que deiVocê merece, de fato— Pois vejo que não cumpriuOs termos de seu contrato.

A esse cabra infelizVocê prometeu riquezaAssegurou a fortunaCom expressão de grandezaMas ele caiu, por fim,Na mais completa pobreza.

Pagando o que era devidoNa conta da exploraçãoSeu capital encolheuPerdeu muita dimensão— E o resto ficou pra mimPor excelente razão.

Dinheiro, jóias, fazenda,Tudo que havia ajuntadoAs suas economiasOs seus rebanhos de gado— À parte as compensações —Ganhei-lhe no carteado.

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E como, depois de tudoAinda fica a deverNos termos de nosso acerto— Que tem de reconhecer —O gajo se pôs, agoraDebaixo do meu poder.”

O Demo disse: “TrapaçaEu noto aqui como fede!Embora ela seja belaSeu gosto não se concede...Tudo o que diz não é nada— Pois meu contrato precede!”

Mas eu atalhei de pronto:“Recolha seu estandarte!É força reconhecerQue não procedeu com arte.Não tem valor seu contratoPois não cumpriu sua parte.

Segundo seus próprios termos— Com legítima certeza —Para que o trato valesseTivesse plena firmezaDevia esse miserávelHoje gozar de riqueza.

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Eu sinto muito dizerA Vossa DiabolênciaQue sua causa é perdidaE cheia de impertinênciaPois um compromisso fezAlém de sua competência.”

O bicho ouvindo essa fraseRangiu os dentes raivosoBateu com seu pé no chãoFazendo um som pavorosoDas ventas soltou fumaçaFez cara de furioso.

Talvez ele me atacasseNão fosse meu patuá...Mas não podia vencerA força dos orixás.Mudou de tática logoTentando negociar.

“Eu reconheço que foiUm ótimo advogadoMerece palmas e glóriasPor ter de mim triunfadoMas quero ver se me venceDe fato, no carteado.

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“Você, ao se apresentar,Mostrou orgulho profundoQuerendo ser o primeiroOnde não tenho segundoDisse que é o porreta‘Maior jogador do mundo!”

Eu atalhei: “Ora essa!A tudo já me dispus!Espero que meu baralhoNessa questão faça luz.”Dizendo isso, na mesaBotei as cartas em cruz.

O demo careteouE estremeceu de surpresa— Buldogue com dor de dentesTeria maior beleza —E com um rugido ferozTentou rodear a mesa

Mas eu, que já esperavaTudo de seu embaraçoSaltei de banda ligeiroE dei no Cujo com o laçoUma lambada tão forteQue lhe estalou o espinhaço

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Enquanto o bicho berravaIgual a onça num fossoEstuporado e medonhoNo mais terrível sobroçoEu apertei com firmezaA corda no seu pescoço.

Nesse momento assistiUma tremenda foliaMostrou o Demo que temForça de grande magiaA se virar com visagensDe sua demagogia

Se transformou em leãoMacacos e javaliOnça pintada num fojoCem cascavéis a parirRinoceronte e cameloE búfalo, e sucuri.

Virou água de torrenteVirou labareda puraVirou tanta porra estranhaQue ainda tenho gasturaMas uma coisa não pôde:Foi livrar-se da apertura.

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Pois eu não soltei o laçoQue prendia o desgraçadoPor mais que ele revirasseCom artes de espiritado;Tanto que o bicho cansouTornando ao primeiro estado.

E declarou-me em seguidaCom toda a sinceridade:“Confesso que estou vencidoPor minha infelicidade!Desisto dessa disputaMas peço-lhe a liberdade.

“Entrego a alma compradaFazendo-lhe o juramentoDe nunca mais perturbarVocês em nenhum momento.Caindo nas suas unhasSó alcancei sofrimento!

Estou feito um camundongoPreso na boca do gatoEm prova de rendiçãoAgora passei ao fato:Com minhas unhas de ferroEstou rasgando o contrato.”

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Eu respondi ao danado:“Inda não sei se acredito...Está de conversa molePorque se sentiu aflito...Acho que vou te amarrarAos pés de São Benedito!”

O bicho deu caroaraSuas juntas amoleceuSua cabeleira douradaEm pregos se converteuCom voz de porca gripadaO desgraçado gemeu:

“Em qualquer coisa lhe atendoContanto que isto não faça...Juro que agora escuteiA mais cruel ameaça.Aquele negro tremendoAcaba com minha raça!”

“Então obedeça logoE faça minha vontadeMontado me leve bemCom toda a velocidadeÀ encruzilhada serenaDo tempo e da eternidade”.

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O bicho no mesmo instanteMe deu completa razãoSe transformou num cavaloCom asas de gavião.Montado nele partiAtravessando a amplidão.

Chegamos rapidamenteA um estranho lugarOnde parece que o céuÉ misturado com o marE sobre as ondas vadiasSe vê a terra nadar

Suave linha de luzNas brumas apareciaFeito um fiapo da auroraPassando entre a noite e o dia.Terrível é a sentinelaQue neste espaço vigia.

O bruto me disse então:“Aqui seu mundo termina!Não pode passar viventeAlém dessa linha fina.Quem vela pelo decretoTem natureza ferina.”

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Foi só ele dizer issoQue eu já me entusiasmei:A linha leve, de um saltoBem rápido ultrapassei.(Como é que pude fazê-loAté agora não sei).

Ainda hoje, lembrando,De me espantar não acabo:Um vulto logo surgiuEnorme, tremendo e braboCom uma foice na mãoInterpelando o diabo.

“Como é que você ousouEspírito impenitenteDesafiar minha leiQue é fruto do Onipotente?Não sabe que dessa linhaNão deve passar vivente?

“Agora o mal está feito!Não dá para corrigir.Não sei o que vai haverQue coisas estão por vir...Mas a você, desgraçadoEu não demoro a punir.”

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Falando assim, ferozmenteAquele vulto agitou-seO diabo tentou correrMas logo cantou a foiceTirou-lhe o chifre direito;O bruto quase acabou-se.

Porém ainda gritou:“A sorte é que sou eterno!Mas nunca anotei tamanhaDesgraça no meu caderno...Cancão, se mande pro alto...Não quero Você no inferno!”

Quem anda com poesiaFala a verdade, não erra...O resto dessa aventuraQue me retirou da terraEu conto em outro cordelNos versos de Ordep Serra.

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As ilustres peripécias de sua Santidade

Cancão de fogo no céuCancão de fogo no céuCancão de fogo no céuCancão de fogo no céuCancão de fogo no céu

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(reveladas por ele mesmoa um poeta cachoeiranoa um poeta cachoeiranoa um poeta cachoeiranoa um poeta cachoeiranoa um poeta cachoeiranoatravés de sete garrafas)

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Prólogo

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Saúdo o Divino AmorQue no céu é soberano.Por sua graça direiEm verso cachoeiranoComo é que Cancão de FogoPassou para outro plano.

A história bem começadaCompactamente acabo.Já noutro cordel narreiO lance do santo braboQue ao fim do mundo chegouAmontado no diabo.

Seguindo a prosopopéiaTremenda que inicieiDo grande Cancão de FogoJá muito me aproximei.Com suas próprias palavrasSeus feitos descreverei:

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I [Fala Cancão]

No limbo da barra azulPeguei a estrada diretaSubindo rapidamenteNos ares feito uma setaGraças à amável caronaDe um belíssimo cometa

Assim que o bicho passouPor mim, naquela amplidão,Saltei-lhe no lindo corpoCom toda a disposição(Sempre curti montariaDe cabeleira e rabão).

Passando perto da luaVi, num galope ligeiro,Seguido por jacaréCom ventas de fogareiroUm garanhão a levarFortíssimo Cavaleiro

Mais longe, vi uma rês— Aparição estrelada —Pela cintura do mundoTrotando relampejadaGritei:“Bom dia, São Jorge!Tá indo pr’a vaquejada?”

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O santo disse:“Que peçaMe vem do mundo rasteiro!Saiba que guardo poderesEternos de Cavaleiro.Deixei o altar da lua...Mas não para ser vaqueiro!

“A profissão é honrada,Não vejo nisso desdouro...Porém, nos campos agrestes,Não penso em cuidar de touroNem quero mudar a roupaTrocando ferro por couro.

“O Papa de lá da terraNegou minha consagraçãoTirou-me do calendárioDos santos de devoção;Na eternidade, contudoNão muda minha condição.

“Deixei a capela branca— A minha antiga morada —Pois vivo melhor sozinhoDo que em companhia errada.Com americano chegandoA lua tá esculhambada!

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Eu busco um astro no céuOnde em sossego morarCom grutas para o dragãoFazer seu pito e fumarRecuperando suas forçasDepois de a gente brigar.”

Eu respondi: “Ó meu santoEu sempre o venerarei!Não perde sua majestadeQuem claramente foi rei!De coração, um conselhoAceite que lhe darei:

“O seu dragão está velhoJá não agüenta maltrato...Pegue esse ferro compridoQue é perigoso de fatoE atoche no cu do PapaQue lhe cassou seu mandato!”

São Jorge disse:”É precisoDecência e moderação!Falar assim com um santoÉ falta de educação.Mas vá em paz! ReconheçoQue é boa sua sugestão.”

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Acelerou-se o cometaDe um modo fenomenal:Tanto, que logo me viNo lombo desse animalErguido à faixa formosaDa cinta zodiacal.

O que eu vivi no pedaçoDaqui a pouco direiSegundo o rito da pingaQue em vida já pratiqueiCom boca de poesiaContando tudo que sei

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II

Em astro vertiginosoNo céu imenso voandoEu fiz a curva do tempoA mundos claros chegandoDe uma beleza serenaQue sempre estou recordando.

Eu tinha muito desejoDe campear nesse espaçoEm busca do boi estreloQue vi trotar no compassoDa música das esferas— E de o pegar com meu laço.

Mas longe dele saltei,Numa baía estrelada.Foi onde vi criaturaEstranha de misturada:Bode com rabo de peixeE cara desaforada

Tem muito bicho esquisitoQue pelos astros passeia... Na terra nunca vi disso...... E quem quiser que me creia:Lá na maré do infinitoUm bode faz de sereia!

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O bicho me olhou de um jeitoQue abalou minha féE quase me põe em fuga.... Mas antes de dar no péNas suas ventas chegueiA caixa de meu rapé.

Foi tanto espirro cabralQue todo o mundo abalou.Atrás da curva do solNos astros se alevantouA ventania tremendaQue pelo céu me atirou.

Voando, bati nas costasDe formidável giganteQue um pote d’água inclinavaEntre seus braços possantesEu me assustei com a visãoDo brucutu faiscante

O camarada exclamou:“Quem é esse temerárioQue aqui me fez derramarMais água que o necessário?”Eu retruquei: “Vou buscarUns peixes pra seu aquário!”

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E logo saí nadandoNa vastidão sideral.Num instante cheguei à praiaDo mundo zodiacalNas ondas de luz deixandoParelha de bacalhaus.

Não tinha anzol nem caniçoTarrafa nem rede algumaDeixei morrer a promessaNas luminosas espumasQue o aguadeiro giganteSumira-se já na bruma.

Notei que em casal de peixesTambém se encontra caprichoPeguei no rabo da fêmeaO macho deu-me um esguichoVinguei-me chegando á margem:Mijei na boca do bicho.

Ainda bem que eu já tinhaPassado para a campina...O peixe do céu tem mesmoSangue na guelra ferina:De um pulo quase me arrancaA distinção masculina.

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Corri pelo campo astralQue parecia uma ilhaTremendo de apavoradoFechei a minha braguilhaQuase que as moças da terraPerdiam sua maravilha.

Com pouco me apareceuNuvem de lã flutuandoCom chifres em caracolOlhos de estrela brilhandoAdmirei-me de verCarneiro no céu brincando

Imagem de luz maciaCom graça de passarinho...Era tão lindo o animalQue provocou meu carinhoPeguei a faca depressaPara esfolar o bichinho

Minha intenção era essaQue francamente não negoTocou-me grande ambição(Na hora, deixou-me cego)Queria fazer bonitoUsando aquele pelego.

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As aparências enganam...De recordá-lo não canso;Engano meu foi acharQue aquele bicho era mansoMe fez passar da medidaNum rapidíssimo avanço:

Fugindo ao pai-de-chiqueiroCorri até que canseiE então terrível marradaNo meu traseiro leveiPor cima do boi estreloLéguas e léguas voei.

Por um azar esquisitoMeu plano se desmanchouO laço que eu empunhavaEm cima da rês tombouOs chifres dela cercandoA corda lá se ficou

O touro, com aquele tremTomou um susto retadoPendeu-lhe na cara a trançaDeixou o bicho irritadoA sacudir a cabeçaCom bufos de condenado

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Já eu, por um longo tempoCortando o celeste espaçoNa travessia do escuroDo mundo não via traçoPor fim, caí numa redeNa praia dos dois mabaços.

Um deles falou pro outro“Que meteoro esquisito!Tem pouca velocidadeNão faz um fogo bonitoÉ acanhado e miúdoParece mais um mosquito!”

O outro lhe respondeu“Aqui não se guarda lixo!Vamos jogar adianteEssa porqueira de bichoA fim de ver se depoisViaja com mais capricho!”

Sentindo o novo perigoNa minha grande aventuraEu procurei me safarCom sabedoria puraJoguei entre os dois garotosUm taco de rapadura.

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Bateu-lhes a gulodiceQue puxa o assanhamentoCom os dois disputando o doceEu pude tomar alentoSaltei da rede e partiSaboreando o momento.

Deixei os gêmeos pegadosNum grande turundumdumTratei de ganhar depressaA bela estrada incomum.Mais adiante topeiCom um puta de um guaiamum.

O bicho veio pra mimNaquele passo de bandaEu o imitei caminhandoDo jeito como ele andaMas para o lado contrárioEm formação de ciranda

Cantei um samba de rodaFicamos nós a dançarE eu alargando o raioTratava de me afastarSenão as terríveis pinçasPodiam me espedaçar

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Foi boa minha estratégiaE devo-lhe a salvaçãoMas logo um maior perigoMostrou-se a meu coraçãoNaquela dança eu entreiBem no quintal do leão

Desesperado da vidaCorri de volta pro brejoEmbora de modo algumFosse meu grande desejoTornar para a contradançaNo baile do caranguejo.

Na certa, salvou-me a sorteCom a graça do meu destinoPois o leão é valenteDestemeroso e ferinoMas nesse dia mostrouQue não é bom dançarino

Na gana de me pegarCom nada mais se importouNo território do outroRugindo ele penetrouE o guaiamum, arretado,A sua cauda pinçou.

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Urrando de horrendo jeitoO rei da raiva douradaSaltava feito um malucoFazia uma presepadaAtrás de seu próprio raboEm roda desabalada.

Depressa pus-me a correrE muitas léguas trilheiAté que à imagem serenaDe linda moça cheguei.De forma bem educadaA criatura saudei.

Com sua voz luminosaAssim me falou lá ela:“Quem é você? E que fazJunto de minhas estrelas?Varão aqui não penetraSou uma pura donzela!”

Eu respondi: “Deus te dêAmor, ó donzela pura!Que bem merece carinhoQuem goza de formosura.A virgindade é tristonhaPorém este mal tem cura!

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“Escute, porque lhe faloCom meu sentimento à vistaNo mal que há muito lhe afligeEu sou especialistaE a fim de lhe dar remédioTrilhei esta imensa pista!”

A moça desconfiadaFoi logo me replicando:“Você há de ter errado...Caminhos andou trocando.A minha saúde é boaNão sei de que está falando!”

Eu retruquei-lhe: “Não deixeQue a natureza se inflame!Se perde a oportunidade,Mais tarde talvez reclame!Quem quer a boa saúdeCarece fazer exame!

“Ouça o que diz o doutor:Tire sua roupa, mocinha!Encabulada não fiquePois não estará sozinha...Pra que não sinta vergonhaTambém tirarei a minha.”

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Mirando-se em meu exemploA moça tomou coragemEm pouco tempo passamosDo exame para a massagemE desta pra um tratamentoCompleto de sacanagem.

Eu quero usar de franquezaNa história que hoje lhe conto:Gastamos um tempo enormeNo amoroso confronto;Depois de muitos embatesFui eu que entreguei os pontos.

Pedi arreglo pra moçaPorque já não agüentavaQue quanto mais se faziaMais a danada animavaDe tanto amor e foliaPor pouco não me matava

Por fim eu lhe supliquei:“Minha querida senhoraVamos parar o brinquedoQue eu tenho de ir-me embora!Como se sabe, visitaDe médico não demora...”

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Mas ela me respondeu:“Que é isso, caro doutor?Acho-me ainda carenteDa medicina de amor!Pretende deixar-me agoraQue eu esquentei o motor?!”

Gemi: “Um intervalozinhoNão vai lhe matar de tédio...O esforço que tenho feitoPassou dez vezes do médio.Pra dar-lhe mais alegriaPreciso buscar remédio!”

Por fim, ela concordouE me ajudou de verdadePra que eu partisse e voltasseCom boa velocidadeDeu-me barquinha de estrelasE velas de claridade.

Eu naveguei pelo céuCom a máxima confiançaQue a barca era mesmo boaFormosa como a esperançaLevou-me com rapidezAo pé de grande balança

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Com um desacerto pequenoCausei um problema chatoParei de uma forma bruscaErgui-me de imediatoEm movimento importunoDei com a cabeça num prato

O mundo na mesma horaFicou desequilibradoFuturo saltou pra trásCaiu na frente o passadoO vento virou do avessoO fogo soprou molhado

Passei terríveis momentosVi coisas de arrepiarCom a claridade sombriaNo vácuo a se embaraçarAté que o prato de prataCessasse de balançar.

Tonto, saindo daí,Passei a outra regiãoOnde o terror tem moradaAo pé da desolaçãoHabita esta zona iradaHorrível escorpião

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Aproximou-se o lacrauDestruidor de alegria;Com a peçonha no raboGrande ameaça fazia.Confesso, amigo, que quaseMeu ânimo esmorecia

Mas tive uma inspiraçãoDivina que me valeu:Joguei-lhe perto um espelho— E veja o que sucedeu —Com a ferroada do bichoA sua imagem morreu.

Rapidamente fugi.Cheguei sem maior abaloA um pasto onde mora um tipoQue a outro nenhum igualo:Vive montado em si mesmo— É cavaleiro e cavalo.

Temível, ameaçouMudar meu itinerário.E pode crer, amizade,— Só minto se necessário —Senti um certo receioDas setas do Sagitário.

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Deteve-me na fronteiraAquele feroz sujeitoA distender o seu arcoMirando bem no meu peitoE me exigiu que daliDesse o recado direito

Eu lhe falei: “Caro amigo,Boa intenção é a minha!Por caridade aqui venhoMontado nessa barquinhaPedir-lhe que vá prestarSocorro a sua vizinha”.

O tipo me retrucouNum golpe de voz ferina“Qual é o mal que padeceAquela moça divina?Se alguém ofendeu a VirgemTerá tristíssima sina!

“Responda! De que é que sofreEssa donzela inocente?O que lhe deu nas estrelasE a torna assim padecente?”Eu disse: “Não sei ao certo...Parece muito carente.”

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O arqueiro mostrou-se logoCom o caso preocupadoPra visitar a colegaJá não se fez de rogadoPartiu num belo galopeDe passos acelerados.

Falei baixinho: “Vai fundoE tira-me do sufoco!A vossa lua de melHá de ser coisa de louco!Mas cuide-se bem, pai d’ égua...Cavalo, pra ela, é pouco!”

Entrei de novo na barcaVoltei à navegaçãoBuscando novas estrelasPor pura vadiaçãoMas adiante cercou-meUm poderoso esquadrão

A minha aventura extremaGanhava o maior alcance...Mas tenha calma, leitorQue vou lhe contar o lanceChegando à terceira parteDeste celeste romance

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III

Recomeçava no céuA minha navegaçãoQuando cercou-me voandoDe anjos um batalhãoE o sargento lá delesMe fez esta saudação:

“Ó vagabundo viventeEspécie de bagunceiro!Salte da barca e se entregueObedecendo ligeiroPois nós não admitimosNegaças de presepeiro!”

O seu convite aceiteiE a escolta arcangelicalQue bem depressa levou-meAo glorioso portalOnde São Pedro presideA lúcido tribunal.

O arcanjo me apresentou:“Este mané miserentoHá pouco nós detivemosNa volta do firmamento Onde fez muita desordemNum passeio turbulento.

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“O celeste CapricórnioDe espirrar quase matouA vasilha do AguadeiroPor pouco ele não quebrouIrados deixou os PeixesCom um jato que catingou.

“O Carneiro provocouPôs o Touro furiosoE os Gêmeos engalfinhadosNum tendepá horrorosoPôs Caranguejo e LeãoNum círculo vicioso.

“Motivou inusitadoEscândalo nas estrelas.Tremendo cabra da peste!Veneno das coisas belas!Por culpa do descaradoVirgem não é mais donzela!

“Esse malandro piradoNão usa de temperança:Desequilibrou o mundoDo tempo mudou a dançaCom um golpe que provocouA agitação da Balança.

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Fez desatinos sem contaEm cada constelaçãoNo zôo do céu zoouCom grande esculhambaçãoA ponto de envenenarO pobre do Escorpião.

“Causar confusão eternaParece que é sua meta...Fez Sagitário largarO arco, e perder a seta.Apaixonado, o centauroÉ hoje besta completa.”

São Pedro fez: “O que pensoDirei com sinceridadeAcho que o cabra é um malucoDe certa capacidade.Se a sua doideira é grandeNão vejo nele maldade.

“Se pôs a espirrar um bodeE um bacalhau perfumadoQuebrou o pote de um lerdoBotou um leão zangadoIrando touro e carneiroNão vejo grande pecado.

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“Segundo meu pensamentoTudo que fez é bobagemQue mexe com a fantasiaTem jeito de molecagem.Com isso não perco tempoNem cuido de vadiagem.

“Defloramento de moçaPra mim não é maravilha.Se consentiu no brinquedoA bela mulher que brilhaNão tenho nada com o caso:Não sou fiscal de braguilha!”

O anjo lhe retrucou:“Mas temos reclamaçãoDo povo da astrologiaQue quase perde a razãoNão tem horóscopo certoGerou-se uma confusão.

“No pessoal de CarneiroPerdeu-se toda a esperançaVive marrando e berrandoCom medo, nunca descansaAos cabeçudos agoraSó o chifre dá segurança.

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O Capricórnio tambémEstá num caos horrososoCom todos se encabritandoDo modo mais furiosoA espirrar e peidarMonte de corno nervoso.

O povo de Touro atéA sombra que vê atacaSó aquieta tomando ferroE quando não toma, empacaOs homens vivem bufandoAs donas passam de vacas.

Aquário só dá malucoQue vive num triste assanhoRaça de hippie caducoBestas de todo tamanhoQue contraditoriamenteNão querem saber de banho.

A condição piorouDo povo de SagitárioQue nunca acerta no alvoTem o juízo precário;É tudo cavalgaduraImenso bando de otários.

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O pessoal de BalançaFicou desequilibradoNão fala coisa com coisaTá sempre do lado erradoMetade é lelé da cucaMetade é avariado.

O povo de CaranguejoEstá que não se consertaPra trás procurando avançoCom a inteligência desertaSó acham contentamentoDançando de roda aberta.

Tristeza medonha causaO pessoal de LeãoQue agora só dá covardeSó prolifera cagãoPreguiça tem mais coragemAmeba tem mais tesão.

“Hoje, as pessoas de GêmeosNão têm, nem merecem fé:Com a cabeça trocadaCom o pensamento no péBrigando consigo mesmosNão sabe nenhum quem é.

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“Não há miséria que o povoDe Escorpião não mereçaTem suicida, assassinoDesatinados à beçaNos outros, que são tarados,O rabo sobe à cabeça.

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“Os Peixes vivem no nadaCom expressão de afogadosNão gostam de beber águaDe pinga vivem molhadosQuando não tomam cachaçaNo mínimo estão drogados.

“O povo da antiga VirgemEstá como quer o diaboTão grande é a safadezaQue muito me deixa brabo:Seja mulher, seja homemSó pensam em dar o rabo!”

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São Pedro lhe retrucou:“Arre, mas quanta agonia!Eu pouco estou me lixandoPra coisas de astrologia.Horóscopos não consulto.Bobo é quem nisto se fia!

Não quero deitar sentençaNo homem que aqui me trouxe.Não posso julgar um vivoComo se morto ele fosse.É fora de minha alçada.Nossa sessão acabou-se!”

O arcanjo falou então:“Com toda a sinceridadeO santo me escabreou...Mas ele fala a verdade.O jeito é levar o presoAo tribunal da Trindade.”

Escorreguei ao entrarNa grande Casa sagrada.Deus Pai coçou o bigodeO Filho deu uma risada.Eu me voltei pra Deus MãeQue é uma Senhora educada.

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Por fim Ela proclamouEm belos tons soberanos:“Este bichinho da terraCobriu-se de erros e enganosMas puro é ainda neleO espírito que sopramos.”

Com o hálito Seu divinoMeu corpo se incendiouA minha forma terrenaEm fogo se dissipouUma alegria profundaA alma me renovou.

E disse-me Deus:”TerásNova existência vadiaNa condição de encantadoNa forma da poesiaFazendo graças e dandoCombate à hipocrisia.”

Na terra devo buscarCumprindo eterna missãoPoetas em que hospedarMeu gozo e minha paixãoContente trago pra elesO fogo da criação.”

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Assim me falou o beloE extravagante animalCom chamas de bom perfume— Delírio mais que real —No meu juízo luzindoSua aparição musical.

Bendigo a bela visita!Sua acolhida garanto.Sou muito grato a CancãoPois gozo do seu encanto— E sempre que tomo pingaDerramo um pouco pro santo.

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Bodas de mangue:

A trágica história da gringa mal servida

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Eu vou contar uma históriaQue se passou na Bahia:Um caso internacionalQue a razão desafia.Exige meditaçãoE muita filosofia.

Leitor, prepare a cabeça!O assunto merece estudo.É esgalhada a matéria,Envolve um povo graúdo.É um capítulo estranhoDa Crônica dos Cornudos.

Tem tragédia com suspenseMuito fogo de paixãoCotovelo machucadoDesespero e frustraçãoUm espantoso romanceQue apavora o coração!

Incomoda a ConfrariaMuito antiga e atualQue dentre os machos humanos,De acordo com a lei fatal,Forma a maior legiãoDa História Universal.

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Apóia-se a dita cujaEm outra CongregaçãoMais delicada e formosaDe grande reputação— Um exército de damasDe tudo que é condição.

Misturam-se as duas tropasSem ter alguém que as comande;Mas elas não se dispersam:A sua atração é grande!— Se uma das duas cresceA outra inda mais se expande.

Neste progresso infinitoUma floresta se espalhaEm que a vergonha se perdeE a safadeza não falha:Já dá pra cercar o mundoCom sete cercas de galhas!

Os leitores podem crer— Não façam tanta careta! —A dupla instituiçãoÉ a mais velha do planeta:No mundo de Deus tem cornoDesde que existe buceta.

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Porém vou falar de um casoMuito excepcionalQue discrepa do comumNão segue a regra geralDialético e profundoDe base transcendental.

Na pensativa Alemanha(Onde a história principia)Os filósofos discutemSua grave antinomiaQue paradoxalmenteAssucedeu na Bahia.

Aviso logo ao leitorQue a questão é complicada.Pra nós, que somos caboclosDe uma terrinha atrasada,Não é fácil entenderA gente civilizada.

O alto refinamentoDesse povo todo chiqueTem lá suas nove-horas— Não vá me pedir que explique!Pois também desbundam muitoLá na Bundesrepublik.

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Tudo começa em BerlimCom um casal virtuosoComemorando entre beijosNum diálogo amorosoCinqüenta aninhos da esposaQuarenta e cinco do esposo

Tomaram a decisão— Depois da festa de amor —De ir ao terceiro mundoEm seu verão de esplendorGozar a tão proclamadaBeleza de Salvador.

A manhã em que chegaramRespirava poesia.Num bonito hotel de praiaFicaram, com alegriaDesfrutando o panoramaDo belo mar da Bahia.

Foi aí que a boa FrauEntabulou com o maridoUma conversa esquisitaQue quase o deixa aturdido.Mas por fim ela alcançouSucesso no seu pedido.

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Foi quando esse bom germanoTodo feliz e contentePerguntou a sua esposaDas bodas concelebranteQue presente ela queriaGanhar, no dia seguinte.

Disse a Frau: “Já que oferecesÓ querido esposo meu,Vou te abrir meu coraçãoQue sempre será só teuE revelar-te um desejoMuito mais forte do que eu.

“Não te pedi por acasoPra visitar a Bahia...Aqui, Você pode dar-meUm tesouro de alegriaFazendo realizarMinha maior fantasia.

“Vou confessar a VocêCom grande amor e paixãoA fantasia que tenho,Verdadeira obsessão: Eu quero passar um diaTrepando com um negão.

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“Será uma dia somente!Depois, juro pelo céuQue volto para teus braçosRetomo a lua de melE como até hoje fuiSempre te serei fiel!

“Dê-me uma prova de amorFazendo-me essa vontadePois isso acrescentaráA nossa felicidadeFicarei agradecidaA ti, pela eternidade.

“Mas se eu não realizarMinha única fantasia...Eu juro por nosso amor:Com forte melancoliaVou logo morrer frustradaNão terei mais alegria!”

O gringo, quando escutouDa amada este juramento,Sentiu um abalo grandeQuase que perde o alentoSeu rosto paralisou-seCom a expressão de um jumento.

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Por fim, recobrou a vozE disse: “Ué, Meine Frau!Você me disse loucurasOu eu é que te ouço mal?Você me pede um presenteDe bodas original!

“Eu sou tão feliz contigo!Não vou querer que me enganem!Em nossas bodas de prataQue nossas almas se irmanem!Não trouxe você aquiPara trepar com Negonen!

“Então que presente é esseQue eu darei a meu tesouro?!Me peça roupas de sedaJóias de prata e de ouro...Não venha me dar a mimUma peruca de touro!

“Mapé com LiebfraumilchTomei para dar TesãoScheribiten, KatuabenCombustíveis de Paixão...E agora você desejaBrindar-me com Traição?!”

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A gringa sentiu-se logoMuito ofendida e zangadaRetrucou a seu esposoCom uma voz alteradaE as lágrimas pipocandoPela cara esbraseada:

“Não me distorça a verdadeMarido! O que está falando?Eu te abri meu coraçãoMeu desejo revelando!Fui muito franca contigo...Quem é que está te enganando?

“Não me venha com sofismaNem se afaste da razão!Com a lógica, pelo menosTenha consideração!Onde há sinceridade,Como pode haver traição?

“Pense no caso direito!A bela filosofiaMostra que estou protegidaPela inocência mais pia— Pois quando se concretiza,Dissipa-se a fantasia.

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“A dialética é forte— Você tem de concordar —A essência do irrealÉ não se realizar;Se uma vez se realizaO seu ser já não será.

“Logo, a transa com NegonenÉ uma pura NegaçãoQue a si mesma anularáQuando entrarmos em açãoNa verdade inexistindoPelos termos da razão.

“Homem cruel e avarentoComo você, nunca vi!No dia das nossas bodas,— Segundo já entendi —Você me recusa atéO nada que lhe pedi!

“Eu vejo que seu problemaÉ um profundo egoísmoUm orgulho primitivoTemperado de machismo.Sua atitude mesquinhaEntre nós cava um abismo!”

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Vendo na cara da esposaQue a coisa não era graça(Saíam do seu narizUns vapores de fumaça)O gringo aflito rendeu-seÀquela dura ameaça.

“Meine Frau, não diga isso!Faço tudo o que quiserPra alegrar seu coraçãoDoa em mim o que doer!Você terá seu presente...Suceda o que suceder!”

A gringa, no que isso ouviuMudou o seu tom insanoMostrou as jóias do risoComo as teclas de um pianoE ao esposo retrucouCom gorjeios de soprano:

“Agora sim, reconheçoMeu marido muito amadoSolidário, generosoVerdadeiro, apaixonado!Se um presente quer me dar,Será muito apreciado!

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“O brinde que lhe pediÉ uma coisa normalPerfeitamente corretaSegundo a lei naturalDe acordo com a medicinaRevigora, não faz mal!

“Tendo seu consentimentoSerá um ato perfeitoEstribado na JustiçaApoiado no Direito!E ainda mostraremosQue não temos preconceito!

“Por outro lado, eu confirmoA ti minha fidelidade:A um anônimo escuroSó darei por caridade...De eu me apaixonar por negroNão há possibilidade!

Além do mais, moralmenteTenho um desejo profundoDe me mostrar generosaAqui no Terceiro MundoNão precisas ter ciúmesDe um latino vagabundo!

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“Ouça o que diz um poetaDa nossa terra, meu bem:Alle Menschen werden BrüderSein — os negões também!Haverá algum aquiQue me faça um vaivém...Quero confraternizarNas graças de Deus, amém!”

O gringo se convenceuCom essa argumentaçãoQue lhe fez sua mulherCom muita ponderaçãoPois ela invocou MoralDireito e Religião.

E ele mesmo, que era mestreEm Prática e TeoriaMais uma motivo lhe deuPra fazer o que queriaPonderando uma vantagemNos termos da Economia

Pois o ansiado presente— Pelo seu modo de ver —Neste Brasil da pobrezaBem pouco era de valer“Se a mão de obra é barata,O pau também deve ser!”

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Sua esposa concordouE cheia de gratidãoEntregou-lhe totalmenteO comando da missão:“Confio no seu critério:Vá procurar-me o negão!”

Lá se foi o nosso heróiMuito aplicado, caçandoUm macho para a mulherQue em casa deixou sonhando— Para ver a coisa pretaCom zelo se preparando.

Por fim, no Porto da BarraO gringo se achou servido:Achou um crioulo forteElegante e bem vestidoCom jeito de ser um bomAuxiliar de marido.

Chamou pra tomar um chopeO moço, e logo tratouDe lhe falar do assuntoQue até ali o levou.Rapidamente o criouloSua proposta aceitou:

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“Mein Herr, é comigo mesmo!Pode ficar sossegado.Já vi que é homem de tinoEntende desse babado.Sabe fazer uma escolhaAchar o mais preparado!

“Nem que passasse dois anosRodando pela BahiaDe norte a sul a buscarMelhor não escolheria.A sua sorte é perfeita!É boa a estrela que o guia.

“Somente por ser sinceroDeixo a modéstia de lado:Para tratar deste assuntoEu já nasci preparado!Fui, pela Mãe NaturezaMuitíssimo bem dotado.

“Eu sei que o bom instrumentoDe rígida consistênciaNão é a única coisaQue importa nesta emergência;Pra resolver o problema,Também possuo a ciência!

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“Pois desde cedo me aplicoE nunca me saio malTive um baita treinamentoDe fato internacional:Nessa orla da BahiaGlobalizei meu cacau.

“Treinei com damas francesas,Senhoras italianas,Tive mestras da AlemanhaRussas e belgas tiranas,Sem falar das exigentesInglesas e americanas.

“Mas uma coisa confesso(Pois sou um homem decenteE percebo que a franquezaÉ a prova do competente):Minha atual embalagemÉ indigna do presente.

“A ocasião é solene:Festeja-se um casamento!Eu julgo de obrigaçãoEstar vestido a contento...A fim de um banho de lojaPeço um adiantamento!”

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O alemão, concordandoRecomendou: “Não esqueça!Faça o serviço direitoE a recompensa mereça!Bunsenfunken ZakanischenE depois, desapareça!”

Acertaram logo a coisa.Ficou tudo combinado.O gringo disse à esposaComo ia ser o riscado.E afastou-se na horaQue o negão tinha marcado.

Passou a manhã na praiaFeito um camarão no vinhoAlmoçou num restauranteEntocou-se num barzinhoPara esfriar a cabeçaCom as espumas do chopinho.

O negão foi pontual.No hotel, depois do café,Nua, de corda na mãoJá o esperava a mulher:“Tome, querido!Me amarreE faça o que bem quiser!”

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O crioulo obedeceuQue vinha pronto pro dramaPegou a corda, e com jeitoAtou a gringa na cama.Deixou-a toda ansiosa— E logo mudou a trama.

Num instante achou um maloteEm que tratou de botarTodo o dinheiro que viuE a máquina de filmarCartões de crédito, jóias Relógios e celular.

A gringa, muito espantadaLhe disse: “O que está fazendo?Pra que guardar essa tralha?Bom tempo estamos perdendo!Vem logo abusar de mimDepressa, Negão horrendo!

“Estou à disposiçãoDe teu instinto malvado!No mais profundo vexameDo corpo meu delicadoPronta a sofrer o martírio De meu amor desonrado!

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“Na cama das minhas bodasEu devo ser violadaPor tua brutalidadeFerozmente maltratada.Não poderei reagirEstou toda dominada!”

O preto olhou para elaSorrindo com mansidãoE fez uma reverênciaMostrando sua educaçãoEm voz suave, depoisFalou-lhe de coração:

“Que é isto minha senhora?Sou homem de consciência!Nunca bati em mulherNão gosto de violência!Para falar a verdadeAcho isso uma indecência!

“Violar esposa alheiaÉ um pecado medonho!É crime que me apavora...Cometo não, nem por sonho!Se maltratei a senhoraEu juro que me envergonho!

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“Não faço o errado por gostoMadama! Vou ser sincero:Agir assim não me agrada...Sucede, porém não quero.Pra lhe obedecer, já fuiDemasiado severo.

“Eu a amarrei nessa camaTalvez causando-lhe dor;Tirei-lhe um dia de solNas praias de Salvador;Roubei-lhe dinheiro e jóias...Quer sacanagem maior?

“Vejo que é muito granfina...Não posso me dar ao luxo...Com dama de tal nobrezaNão vou queimar meu cartucho!Gozo de bom apetiteMas sou alérgico a bucho!”

Dizendo assim, o criouloSaiu pela porta aforaLevando o malote cheioDeixando louca a senhoraQue se torcia na camaPior que uma caipora.

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Passou-se a manhã e a tarde;Já a noite havia caídoQuando, conforme com o trato,Chegou-lhe ao quarto o maridoQue ao ver a cena medonhaFicou muito estarrecido.

“Você ainda na camaZoando com tal furor?Negonen se recupera?A festa não acabou?É tão comprido o presenteQue o dia não lhe bastou?”

A gringa urrou-lhe de voltaFeito uma onça ferida:“Kommen, corno desgraçadoVergonha de minha vida!Vem logo soltar os laçosDe tua mulher traída!

“Ande depressa, Bichischen!Não me atormente mais não!Você é o grande culpadoDessa má situação!Eu esperava um taradoVocê mandou-me um ladrão!

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“Eu quero vingança logoSem muita diplomacia: Saia daqui, vá correndoA uma delegaciaDenunciar o tratanteQue me deixou na agonia!”

O gringo atendeu depressaA tudo que ela mandava.A um delegado aturdidoDaí a pouco narravaO que lhe tinha ocorrido;Força de lei reclamava.

Porém não era uma coisaTão fácil de resolverCustou que o homem da leiPudesse a queixa entenderE quando atinou com a históriaMal soube como fazer.

“Meus homens talvez consigamPrender o tal do negãoNo entanto, o caso é enroladoEm termos de acusaçãoSerá difícil pra nósMantê-lo aqui na prisão.

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“Não dá pra falar de estuproQue ele não fez a besteira.Negar-se à fornicaçãoDe qualquer modo e maneiraNão é um crime previstoEm nossa lei brasileira.

“Registro a queixa de roubo.Mas temo que esta raposaDaí também nos escapeCom suas artes de prosa:Alegará que seguiuAs ordens de sua esposa.

“O senhor mesmo confirmaO que falou sua mulher:‘Amarre-me nesta camaE faça o que bem quiser!’O negro isso mesmo fez.Quem pode contradizer?”

O alemão protestou:“E o trato dele comigo?É certo que o descumpriuMostrando-se um falso amigo!Será que esse miserávelNão há de sofrer castigo?”

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O delegado porémTornou-lhe, de imediato“Tem o senhor testemunhas?Pôs no papel o contrato?Fez o registro em cartório?Tirou as cópias no ato?

“Responda de boa féUsando de consciência:Que multas estipulouEm caso de inadimplência?Se nada disso existiu,De provas temos carência!”

O gringo lhe retorquiuMuito vermelho e zangado:“No entanto, o fato é que fuiTerrivelmente lesado:O prometido não tiveMe sinto prejudicado!

“Um dia inteiro passeiDiscreto a me prepararPra ser um corno perfeitoDaqueles de admirarJá orgulhoso dos chifresQue nem cheguei a usar!”

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O delegado tornou-lhe:“Eu sinto! Mas ora, vamosReconhecer as lacunasDas leis pelas quais juramos:É um caso de habeas cornus— Que ainda não inventamos!”

Um preso, que atrás das gradesOuvia essa discussãoInterrompeu a conversaTomado de compaixão:“Saiba que estou solidárioMeu caro gringo alemão!

“Já viu como é a justiçaQue rege esses legalistas!Temos, do lado de cá,Um outro ponto de vista:Deviam tratar melhorOs nossos caros turistas!

“Nós cá não admitimosA falha do seu contratoQueremos lhe compensarAgora mesmo, de fato... Se o delegado nos derA permissão para o ato!

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“Basta que sua senhoraNos faça uma visitinha...Será muito bem servida!Garanto, por honra minha,Que sairá satisfeitaCom a festa na passarinha!

“Até que eu tire o atrasoFaremos grande viagemAqui, atrás dessas gradesLhe dobro a quilometragemMostrando como se fazA lei do peru selvagem!

“Ouvi dizer que a madamaO jogo duro apreciaGosta de uns catiripaposE curte pancadaria...Com um festival de sopaposGaranto sua alegria!

“Assim Vossa SenhoriaPor fim será coroado,Com a máxima galhardiaDevidamente enfeitadoVoltando pra sua terraEm muito melhor estado:

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“Sua testa se elevaráAcima da maioriaFazendo à Floresta NegraInveja sua galhariaE esquecerá o fracassoQue padeceu na Bahia.”

O delegado irritou-se:“Cale essa boca, mané!Já chega de malandragem!Ninguém aqui lhe dá fé!A minha delegaciaNão vai virar cabaré!

“E quanto ao senhor queixosoSugiro que agora váDe volta pra seu hotelSua mulher consolarNa certa, o que os dois procuramUm dia vão encontrar.”

Depois de ter o alemãoDessa maneira partidoA seu amigo escrivãoCom a triste queixa aturdidoO delegado falouAinda compadecido:

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“Amigo, também confessoA minha admiração.Da grande raça cornalJá vi uma multidãoJulgava ter esgotadoA sua variação.

“Já conheci corno alegreE triste, e resignado,Indiferente e discretoSereno e apavoradoReligioso e ateuProclamativo e calado.

“Já vi do manso e do braboDo furioso e do frouxoO pálido desmaiadoE o fulo com aquilo roxoO mais estranho que viFoi hoje: esse corno mocho.

“Demorarei a esquecerSua cara de depressãoPois ele esforçou-se tantoMostrou tanta devoçãoQue, sem querer, lamentamosA sua decepção.

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“Porém eu tenho certezaDe que pra ele é fatalChegar ao alto destinoTornado seu ideal.O mais ligeiro dos cornosSustento que é o virtual.”

Leitores, aqui terminoFazendo votos ao céu:No amor há de ser felizQuem compra do meu cordelDesfrutará do carinhoDe sua amada fiel.

Aos outros desejo sóQue achem graça na festaDe seus galhardos amoresEnriquecendo as florestasE lindos ramos de floresProtejam as suas testas.

Assim seja!

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Este livro foi publicado no formato 15 x 22 cmTipografia - ZapfHumnstDMBTMiolo em papel 75 g/m2

Tiragem - 200 exemplaresImpresso no setor de reprografia da EDUFBAImpressão de capa e acabamento:ESB Serviços Gráficos