o segundo consenso de washington

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3 Revista de Economia Política, vol. 23, nº 3 (91), julho-setembro/2003 O Segundo Consenso de Washington e a Quase-Estagnação da Economia Brasileira LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA* While in the social and ethical realms the Cardoso administration (1995-2002) was successful, its economic outcomes were frustrating. In these eight years the in- vestment rate did not increase and income per capita growth lagged, while public and foreign debts increased substantially. This poor economic performance may be ex- plained by three chained causes: a mistake in agenda setting, the adoption of the Sec- ond Washington Consensus, and the alienation of elites. The decision of setting high inflation as the major problem to be tackled instead of achieving equilibrium in for- eign accounts represented a major macroeconomic mistake, which can be explained by the Second Washington Consensus. This consensus proposed in the 1990s that highly indebted countries should grow counting on foreign savings, although this is not the experience among OECD countries. The outcome was to evaluate the real, to increase artificially wages and consumption, so that instead of growth we have been increasing indebtedness. Why this flopped strategy was adopted? Rich countries’ in- terests are not difficult to guess. On the part of Brazil, the only explanation is Brazil- ian elites’ alienation in relation to the country’s national interest. As a final outcome, the Cardoso administration ends with another balance of payments crisis. A atividade empresarial depende diretamente da possibilidade de financiamento. Marx dizia que os juros são o pagamento que os capitalistas ativos fazem aos ina- tivos pelo uso de seu capital. Schumpeter, por sua vez, definia o empresário como aquele que, possuindo crédito, utiliza-o para financiar suas inovações. Basta que a taxa de juros seja menor do que a taxa de lucro esperada para que faça sentido econômico o financiamento do investimento. Tudo isto é bem sabido. O que não é * Professor da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo. Trabalho baseado no artigo “Financiamento para o Subdesenvolvimento: O Brasil e o Segundo Consenso de Washington”, apresentado na comemoração dos 50 anos do BNDES, outubro de 2002. Revisado em dezembro de 2002.

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Consenso de Washington

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  • 3Revista de Economia Poltica, vol. 23, n 3 (91), julho-setembro/2003

    O Segundo Consenso de Washington e aQuase-Estagnao da Economia Brasileira

    LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA*

    While in the social and ethical realms the Cardoso administration (1995-2002)was successful, its economic outcomes were frustrating. In these eight years the in-vestment rate did not increase and income per capita growth lagged, while public andforeign debts increased substantially. This poor economic performance may be ex-plained by three chained causes: a mistake in agenda setting, the adoption of the Sec-ond Washington Consensus, and the alienation of elites. The decision of setting highinflation as the major problem to be tackled instead of achieving equilibrium in for-eign accounts represented a major macroeconomic mistake, which can be explainedby the Second Washington Consensus. This consensus proposed in the 1990s thathighly indebted countries should grow counting on foreign savings, although this isnot the experience among OECD countries. The outcome was to evaluate the real,to increase artificially wages and consumption, so that instead of growth we have beenincreasing indebtedness. Why this flopped strategy was adopted? Rich countries in-terests are not difficult to guess. On the part of Brazil, the only explanation is Brazil-ian elites alienation in relation to the countrys national interest. As a final outcome,the Cardoso administration ends with another balance of payments crisis.

    A atividade empresarial depende diretamente da possibilidade de financiamento.Marx dizia que os juros so o pagamento que os capitalistas ativos fazem aos ina-tivos pelo uso de seu capital. Schumpeter, por sua vez, definia o empresrio comoaquele que, possuindo crdito, utiliza-o para financiar suas inovaes. Basta que ataxa de juros seja menor do que a taxa de lucro esperada para que faa sentidoeconmico o financiamento do investimento. Tudo isto bem sabido. O que no

    * Professor da Fundao Getlio Vargas, So Paulo. Trabalho baseado no artigo Financiamento parao Subdesenvolvimento: O Brasil e o Segundo Consenso de Washington, apresentado na comemoraodos 50 anos do BNDES, outubro de 2002. Revisado em dezembro de 2002.

  • 4to evidente, porm, a relao inversa: o financiamento como causa de subdesen-volvimento. Neste trabalho vou tratar deste tema examinando o financiamentoexterno do Brasil de um ponto de vista macroeconmico. No apenas o financia-mento externo que pode ser causa de desastre econmico. Os tcnicos do BNDES,como de qualquer banco, certamente j tiveram a experincia de haver realizadoum financiamento a uma empresa e este financiamento t-la levado runa. Basta-va que o emprstimo financiasse projeto equivocado, que no tivesse a rentabilida-de prevista. Ou que a teria, se o projeto houvesse sido bem executado, se uma par-te dos recursos emprestados no houvessem sido desperdiados. Ora, se isto podeacontecer facilmente com empresas, e pode tambm acontecer com o Estado, quandoeste se endivida para financiar seus prprios projetos, poder acontecer tambm e argumentarei que isso ocorre com muito mais facilidade quando se trata deendividamento externo de um pas, quando alm de empresas se endividarem tam-bm a nao se endivida, na medida em que o pagamento dos financiamentos pas-sa a depender no apenas da liquidez das empresas mas tambm da disponibilida-de de divisas do pas.

    No vou tratar deste tema num nvel puramente terico porque neste nvel hpouco a dizer. O financiamento externo ser causa de subdesenvolvimento ao in-vs de desenvolvimento se os recursos emprestados para um pas acabarem sendoprincipalmente utilizados para consumo e no para investimento. Por isso, alm detratar desse tema no plano terico, vou examin-lo a partir da anlise da estrat-gia de desenvolvimento seguida pelo governo americano, pelo Fundo MonetrioInternacional e pelo Banco Mundial, nos anos 1990, e aceita de forma acrtica pelamaioria dos pases em desenvolvimento j altamente endividados, inclusive o Bra-sil. Esta estratgia, que afinal se revelou uma estratgia de subdesenvolvimento,afirma que esses pases poderiam desenvolver-se com poupana externa. E tor-nou-se de tal forma dominante nos anos 1990 que merece ser chamada de SegundoConsenso de Washington.

    Este trabalho est dividido em seis sees. Na primeira, mostro como os oitoanos do governo Fernando Henrique Cardoso foram frustrantes no plano econ-mico, enquanto era bem sucedido nos demais setores. Na segunda, inicio o estudodas causas do mau desempenho econmico pelo erro de agenda: ao invs de definiro desequilbrio externo como o principal problema a ser enfrentado, o governocontinuou a dar prioridade a um problema j basicamente equacionado o da altainflao. Por que esta pouca ateno ao desequilbrio externo? Na terceira seoatribuo este fato ao Segundo Consenso de Washington, e descrevo esta verdadeirareceita para o subdesenvolvimento. Mostro, ento, quais as condies para que ofinanciamento externo possa ser favorvel ao desenvolvimento condies estasque no existiam no Brasil. E por que se adotou esta estratgia proposta pelos pa-ses ricos, embora no por eles adotada? Na quinta seo atribuo o fato aliena-o de nossas elites, que, da mesma forma que reproduzem os padres de consumodo centro, reproduzem tambm suas idias. Finalmente, na sexta seo, examinoos desafios econmicos que se apresentam ao Brasil no momento em que escrevoeste trabalho. Discuto, especialmente, como um aprofundamento do ajuste fiscal

  • 5combinado com uma poltica de juros mais baixos e a manuteno do cmbio nonvel atual, depois da depreciao de 2002, podero evitar o default, e afinal per-mitir que se alcance o equilbrio macroeconmico.

    PERSPECTIVAS FRUSTRADAS

    Quando Fernando Henrique Cardoso assumiu a presidncia da repblica, emjaneiro de 1995, as perspectivas econmicas que se abriam para o pas pareciamas melhores possveis. Atravs do Plano Real, que ele prprio liderara enquantoministro da Fazenda, os preos haviam sido estabilizados, e muitos pensaram, in-clusive eu prprio, que isto significava que o pas, afinal, depois de quinze anosde alta inflao, alcanara a estabilidade macroeconmica, e que, portanto, esta-va pronto para retomar o crescimento econmico.1 Segundo, um partido moder-no e social democrtico, o PSDB, liderado por polticos competentes e honestos,comprometido com reformas orientadas para o mercado, assumia o poder, e po-deria, assim, assegurar ao pas, afinal um equilibrado desenvolvimento econmi-co e social, sem cair nas malhas do velho populismo, nem do novo neoliberalismoque vinha do Norte. Entre essas duas alternativas polares, o novo governo surgiacomo uma esperana.

    Em torno do novo presidente formou-se uma ampla coalizo poltico-socialcaracterizada pela participao de todas as classes sociais, principalmente da clas-se mdia profissional e da capitalista. Por outro lado, o novo governo logrou obtersubstancial maioria parlamentar na medida em que obteve o apoio de dois parti-dos de centro-direita o PFL e o PPS. Logo, era legtimo esperar que a nova coa-lizo poltica teria condies de permanecer no poder por muitos anos um dosseus mais importantes lderes chegou a falar em 20 anos promovendo o desen-volvimento econmico do pas e tornando-o, como o prprio presidente sempreassinalava, menos injusto. Na oposio ficava fundamentalmente o PT, represen-tando os trabalhadores e a classe mdia profissional sindicalizada.

    Quatro anos depois, em meio a uma crise econmica grave que s foi evitadagraas ao socorro do FMI, o presidente foi reeleito. Imediatamente em seguida dei-xou flutuar o cmbio, e o pas pareceu voltar em direo ao equilbrio econmico,e, possivelmente, retomada do desenvolvimento. Quatro novos anos esto agoraquase terminando de passar, e o que vemos? O pas novamente em crise de balanode pagamentos, e novamente socorrido pelo FMI.

    1 Embora o governo e a imprensa entendam o Plano Real como compreendendo toda a gesto econmi-ca do governo FHC, este um entendimento incorreto. O Plano Real que neutralizou a inrcia e ter-minou com a alta inflao no Brasil foi anunciado em dezembro de 1993, teve incio com a medidaprovisria que, em 1 de abril de 1994, introduziu a URV (o mecanismo de neutralizao da inrcia), ecompletou-se com a reforma monetria, em 1 de julho de 1994. Em 1 de janeiro de 1995, comea agesto econmica Pedro Malan, cujos resultados analiso neste trabalho.

  • 6Tabela 1Crescimento do PIB em trs dcadas

    Perodo PIB PIB por habitante1971-1980 8,63% 5,72%1981-1990 1,57% -0,37%1991-2000 2,65% 1,11%

    Fonte: Ipeadata www.ipeadata.org.br

    Nestes oito anos a taxa mdia de crescimento do PIB foi de apenas 2,1 por centoao ano, o que significa um crescimento da renda por habitante em torno de 1 porcento ao ano. O pas no se manteve, portanto, estagnado, mas quase-estagnado.Estes resultados no destoaram do mau desempenho de toda a dcada, como po-demos ver pela Tabela 1. Os anos 1970 foram os ltimos de crescimento. Nos anos1980 a economia brasileira estagnou devido crise da dvida externa e, mais am-plamente, crise do estado desenvolvimentista. A literatura econmica discutiuamplamente esta crise, havendo pouca discordncia sobre sua natureza.2 Nos anos1990 a economia brasileira permaneceu quase-estagnada, mas agora no havia umaexplicao simples para o fato. Alm de semi-estagnada, pela segunda vez em oitoanos essa economia enfrenta hoje uma crise de balano de pagamentos cuja rela-o com o alto endividamento interno e externo evidente, no podendo ser atri-buda apenas insegurana dos credores em relao s eleies presidenciais, nem tendncia da economia americana de incorrer em duas recesses seguidas. O queocorreu? Por que esse desastre econmico? E por que se revela to difcil eleger ocandidato do governo presidncia?

    No se pode falar em fracasso geral do governo Fernando Henrique. Grandesavanos ocorreram na rea social e na rea poltica. Embora obviamente o proble-ma da alta concentrao da renda no fosse resolvido, jamais os pobres contaramcom uma cobertura social to ampla. Os padres ticos do governo nunca foramto altos. A democracia foi respeitada e reafirmada. A popularidade de FernandoHenrique uma indicao deste fato.3 Os eleitores comportam-se de forma aparen-temente paradoxal, prezando seu presidente, mas criticando as altas taxas de de-semprego que caracterizaram seu governo, e, assim, recusando-se a votar em umcandidato que represente a continuidade desse governo. Esse comportamento apenas aparentemente paradoxal porque o presidente, nestes anos, assumiu a figu-ra presidencial de maneira impecvel. Em um cenrio internacional difcil, proje-tou uma imagem de estadista; em um pas cheio de problemas e contradies, de-monstrou notvel dedicao coisa pblica, honestidade, constante preocupaocom a justia, e grande capacidade de conciliao. Por isso, os brasileiros respei-tam seno admiram seu presidente. Mas, ao verificar que seus salrios no aumen-

    2 Eu a estudei em vrios trabalhos. Saliento apenas A Crise do Estado (1991b), uma coleo de papers.3 Segundo o Datafolha, a avaliao do governo FHC em setembro de 2002 era a seguinte: 26% de ti-mo e bom, 39% de regular, e 32% de ruim e pssimo.

  • 7taram, que suas oportunidades de emprego no aumentaram, mas diminuram,resistem em eleger um candidato que represente a continuidade de seu governo.

    A principal crtica que seu governo recebeu reiteradamente da oposio ade no se preocupar com o social afinal se revelou falsa. Seu governo foi social-democrata, pois, como tpico desse tipo de governo quando chega pela primeiravez ao poder, aumentou a carga tributria e gastou no social. Quando, por exem-plo, Portugal e Espanha transitaram para a democracia e foram governados porpartidos social-democratas, liderados, respectivamente, por Mrio Soares e FelipeGonzalez, suas cargas tributrias e seus gastos sociais aumentaram significativamen-te.4 Nos oito anos do governo Fernando Henrique a carga tributria cresceu de 28para 34 por cento do PIB, e grande parte deste excedente foi gasto em programassociais nas reas da educao, sade, renda mnima, assistncia social, reformaagrria, assistncia aos pequenos produtores rurais. No final de seu governo pre-ciso reconhecer que, embora o pas continue essencialmente injusto, avanos signi-ficativos foram realizados na rea social. A mortalidade infantil caiu de 48 para 30por mil nascidos vivos. A taxa de analfabetismo caiu de 19 por cento em 1991 para13 por cento em 2000. O sistema nacional de avaliao ficar como um marco daeducao nacional (ENEN, Provo, etc.). Imagino que a reforma gerencial da ges-to pblica de 1995-98, da qual participei, ser, por sua vez, um marco da admi-nistrao pblica brasileira. No plano poltico, o presidente revelou-se um demo-crata no mais alto nvel da palavra: respeitoso dos direitos humanos, tolerante esempre disposto ao debate e conciliao. E no plano tico, deu um exemplo paratodo o pas. Sua mulher, Ruth Cardoso, acompanhou-o em tudo, mas com luz pr-pria, e sua contribuio para o desenvolvimento do terceiro setor e para os orga-nismos de controle social da administrao pblica inestimvel. natural, por-tanto, que um poltico com qualidades pessoais deste porte termine seu governorespeitado pelo povo com bons ndices de apoio popular.

    Seu governo, entretanto, no ficar na histria como o grande governo quepoderia ter sido porque deixou a desejar no plano gerencial, como a crise da ener-gia de 2001 demonstrou, e principalmente porque fracassou no plano econmico.No apenas porque no logrou retomar o desenvolvimento: na verdade, no che-gou sequer a estabilizar macroeconomicamente o pas, de forma que deixa umaherana pesada para o futuro governo em termos de altas dvidas interna, ou doEstado, e externa, ou do pas e de altos dficits pblico ou do Estado, e exter-no, ou da nao. Dvidas e dficits que se espelham nas mais altas taxas de desem-prego que o pas j teve.

    Em termos de estoque, a dvida externa pblica, em setembro de 2002, era deUS$ 122 bilhes e a dvida privada, de US$ 91 bilhes. Descontadas as reservas deUS$ 38 bilhes, temos uma dvida externa financeira lquida de US$ 175 bilhes.Dadas as exportaes, em 2002, de US$ 60 bilhes, a relao dvida externa finan-ceira lquida/exportaes (que no Brasil mais significativa do que a relao dvi-

    4 Ver Maravall (1993).

  • 8da externa/PIB, dado o relativo fechamento da economia brasileira) est prximade 3: cerca do dobro do que seria uma dvida externa prudente. Uma questo queno final de 2002 os analistas econmicos se perguntavam se o Brasil entraria ouno em moratria (default).

    Embora seja indiscutvel a fragilidade financeira da economia brasileira, e doerro cometido em 2001, necessrio assinalar que desde a flutuao do cmbio dejaneiro de 1999 a situao da economia brasileira vem melhorando: o supervit co-mercial vem aumentando consistentemente, j se podendo esperar US$ 9 bilhesde saldo comercial em 2002; o dficit em conta corrente reduziu-se para cerca da me-tade em relao ao pico de 1998; e o pas vem alcanando as metas fiscais do FMI.Portanto, creio que existem bases reais para se evitar o default, mas isto dependermais dos credores do que do prprio pas. Depender, tambm, de quem for eleitopresidente da repblica, e de suas declaraes e atos nos meses que se seguirem.

    O ERRO DE AGENDA

    Os maus resultados econmicos do Brasil nos anos 1990, evidenciados pelabaixa taxa de crescimento, pelo grande aumento da dvida do Estado e do pas ou seja, da dvida pblica e da dvida externa e pelos altos nveis de desempre-go, e agora pela nova crise de balano de pagamentos, podem ser atribudos a trsordens de fatos inter-relacionados: (1) o equvoco em relao definio do pro-blema maior a ser enfrentado pelo governo a partir de 1995; (2) o Segundo Con-senso de Washington, segundo o qual deveramos nos desenvolver com apoio napoupana externa; e (3) a falta de conscincia nacional de nossas elites, que ao in-vs de aumentar seu grau de autonomia com a industrializao, diminuram-no aobuscar reproduzir os padres de consumo dos pases desenvolvidos e particularmentedos Estados Unidos.

    Um erro de agenda explica de forma imediata os maus resultados econmicosdos ltimos oito anos. O Brasil no conseguiu alcanar a estabilidade macroeco-nmica e retomar o desenvolvimento, depois de haver, em 1994, sob a liderana deFernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda, to brilhantemente logradoestabilizar uma alta inflao que assolava o pas desde 1980, porque em seguidaadotou uma poltica de cmbio e de juros equivocada. Porque, depois da valoriza-o ocorrida em seguida ao Plano Real durante o segundo semestre de 1994, foiincapaz de corrigir plenamente esse desequilbrio na medida em que, mesmo depoisde deixar flutuar o cmbio, manteve uma taxa de juros artificialmente alta. Destaforma, enquanto a taxa de cmbio sobrevalorizada promovia o consumo de bensimportados e impedia a estabilizao de suas contas externas, a taxa de juros ele-vada impossibilitava tanto que o pas retomasse os investimentos quanto alcanas-se o equilbrio fiscal. Em nome do combate alta inflao, e obedecendo ao convi-te ou proposta do Segundo Consenso de Washington de retomar o crescimentoatravs do recurso poupana externa, o Brasil alis, como um grande nmerode pases altamente endividados deixou de depreciar sua moeda para o nvel

  • 9compatvel com seu alto endividamento externo. Ao invs disso, manteve taxas dejuros elevadssimas que inviabilizaram os investimentos internos e fizeram explo-dir o dficit pblico e a dvida pblica.

    A definio da alta inflao como o principal inimigo a ser enfrentado consti-tuiu um grave erro de agenda. Ao invs de entender, como deveria t-lo feito, que oPlano Real se consumara com a reforma monetria de 1 de julho de 1994, ou, nomximo, nos seis meses seguintes, pretendeu continuar com ele. Embora essa es-tratgia pudesse ser politicamente atrativa, era incompetente em termos de polticaeconmica. Ao adot-la, o governo ignorou que a neutralizao da inrcia inflacio-nria operada pelo Plano Real, a eliminao de quase toda indexao de preos, ea abertura comercial que tornara os preos locais dos bens comercializveis expos-tos competio externa, j haviam logrado reduzir a taxa de inflao do pas paranveis aceitveis, de forma que, embora a inflao continuasse a merecer ateno,eram outros os desafios a serem enfrentados. Os dois principais inimigos, agora, apartir do Plano Real, eram o cmbio valorizado e a alta taxa real de juros ir-mos gmeos, conforme nos ensina a boa teoria macroeconmica.

    O cmbio valorizado leva ao aumento do consumo e diminuio da poupanainterna, e, afinal ao desequilbrio e crise de balano de pagamentos; a alta taxareal de juros dificulta os investimentos, promove o desequilbrio fiscal, e acaba emcrise financeira, quando os credores se do conta que as altas taxas de juros, ao invsde sinal de austeridade monetria, esto ameaando a capacidade de o Estado honrarsua dvida interna. Tudo isto, porm, foi ignorado, e a equipe econmica lideradapelo ministro Pedro Malan manteve o cmbio gravemente sobrevalorizado e a taxade juros artificialmente alta entre 1995 e 1998.

    Em janeiro de 1999, depois de uma longa luta interna dentro do governo, opresidente da Repblica, contrariando seu ministro da Fazenda, decidiu deixar flu-tuar o cmbio.5 A deciso corajosa revelou-se sbia.6 Depois de uma necessria ele-vao da taxa de juros, esta comeou a ser sistematicamente reduzida pelo novo

    5 Desta luta interna participamos Persio Arida, Jos Serra, Paulo Renato de Souza, e eu prprio. De nsquatro, apenas Arida e Serra participaram da equipe econmica, o primeiro como presidente do BancoCentral nos primeiros sete meses, o segundo, como ministro do Planejamento nos primeiros 15 mesesdo governo. Arida demitiu-se por discordar da poltica de cmbio, Serra, para ser candidato prefeitu-ra de So Paulo. Paulo Renato de Souza, como ministro da Educao, e eu, como ministro da Adminis-trao Federal e Reforma do Estado, fomos excludos da equipe econmica. Eu, porm, insisti muitas emuitas vezes com o presidente sobre a necessidade de desvalorizar ou deixar flutuar o real. Formalizeiminha posio com uma carta, em novembro de 1996, acompanhada de um pequeno paper, que depoispubliquei na Revista de Economia Poltica, As Trs Formas de Desvalorizao Cambial (1997), noqual no mencionava o Brasil devido minha condio de ministro do governo.6 Surpreendentemente, porm, apenas o presidente do Banco Central perdeu o cargo, enquanto o minis-tro Pedro Malan foi mantido apesar de ter sido desautorizado pelo presidente. O novo presidente doBanco do Central, Francisco Lopes, que, dentro da equipe econmica apoiara a flutuao do cmbio,permaneceu poucos dias no cargo. Sem o apoio do ministro, e enfrentando as naturais dificuldades quese seguiram flutuao do cmbio, foi substitudo por Armnio Fraga, que permanece no cargo. Todosos economistas citados so originrios ou fazem parte do corpo docente da PUC do Rio de Janeiro.

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    presidente do Banco Central. Entretanto, em 2001, um pequeno aquecimento daeconomia brasileira, o incio da recesso nos Estados Unidos, e a crise da Argenti-na, e principalmente a depreciao do cmbio, que chegou a R$ 2,80 por dlar, le-varam o Banco Central, em nome da meta de inflao, a novamente elevar a taxade juros bsica, fazendo-a voltar aos nveis mais elevados do mundo. Mais uma vezo Banco Central do Brasil quebrava a regra de ouro de qualquer poltica monetriacompetente a de estabelecer a taxa de juros mais baixa possvel consistente como equilbrio macroeconmico. Como a determinao da taxa de juros a nica armade que contam as autoridades monetrias para atingir suas metas, h sempre umaboa razo para elev-la. Em um momento o objetivo atrair capitais de curtoprazo, noutro, impedir que a economia se aquea e o dficit em conta correnteaumente em demasia, noutro ainda, a busca de controlar a inflao ainda que estano seja uma inflao de demanda. No Brasil sempre h uma boa razo para au-mentar a taxa de juros, sem falar na m razo: beneficiar os rentistas.

    Em 2001 a razo principal alegada para elevar a taxa de juros foi o cumpri-mento da meta inflacionria. A poltica de metas de inflao, adotada pelo BancoCentral em 2000, foi equivocadamente identificada com o xito da flutuao cam-bial de janeiro do ano anterior. E tornou-se uma espcie de tabu, ou de unanimida-de nacional, que ningum se sente autorizado a discutir. Coisa semelhante, mas maisgrave, aconteceu na Argentina, com o Plano de Covertibilidad, que se transfor-mou em verdadeiro tabu, com trgicas conseqncias para o pas. No nosso caso aproibio de debate no foi to grave, mas foi grave o suficiente para que, por exem-plo, nenhum dos principais candidatos presidncia da repblica em 2002 se dis-pusesse a criticar a adoo da poltica de metas. O mximo que se fez como, alis,tambm fizemos eu e Nakano em um documento de grande repercusso, UmaEstratgia de Desenvolvimento com Estabilidade, tornado pblico no incio de 2002 foi afirmar que a poltica de metas deveria levar em considerao um prazo maislongo e desconsiderar flutuaes temporrias da taxa de cmbio.7 A meta relevan-te de inflao deve ser a de mdio e longo prazo, pois aceleraes e desaceleraestransitrias no exigem mudana na taxa de juros. A taxa real de juros tem que reagirprimordialmente ao hiato do produto para controlar a inflao. Quando se introduza taxa de cmbio nesta funo de reao, preciso distinguir a natureza dos cho-ques externos, e a transitoriedade ou no da variao cambial. Reao de pronto aqualquer apreciao ou depreciao pode resultar em instabilidade desnecessria.8

    Na verdade, o Brasil em 2000 no estava pronto para uma poltica de meta deinflao porque esta s tem sentido quando se parte de uma situao de equilbriomacroeconmico e se quer evitar que o pas perca esse equilbrio. Ora, este no erao caso do Brasil. A taxa de juros elevadssima e a taxa de cmbio sobre-avaliada

    7 Ver Bresser-Pereira e Nakano (2002a). A repercusso do paper na imprensa encontra-se documentadaem dossi especial, em www.bresserpereira.org.br. O documento foi publicado na Revista de EconomiaPoltica, 21(3), julho 2002, e nesse nmero j esto publicados quatro papers comentando principal-mente a possibilidade de mltiplos equilbrios da taxa de juros.8 Ver Ball (2000), Taylor (2001).

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    eram indicao clara de que era necessrio, primeiro, resolver esses dois problemasgmeos, e depois consolidar a estabilizao macroeconmica atravs de uma pol-tica de meta de inflao. Quando a taxa de cmbio no de equilbrio ou seja,quando no garante a zeragem do dficit em conta corrente, em uma economia quej est altamente endividada no plano externo a elevao da taxa de cmbionecessria ter, por definio, um efeito inflacionrio.9 Um efeito inflacionrio tem-porrio, desde que a economia permanea desindexada, e a mudana de preosrelativos a favor dos bens comercializveis no seja anulada pela elevao dos pre-os no-comercializveis. Mas sempre um efeito inflacionrio que manteria apoltica de meta de inflao sob a ameaa de uma espada de Dmocles.

    A poltica de meta de inflao representou um grande avano em matria depoltica econmica dos pases desenvolvidos. Primeiro, porque foi uma opo prag-mtica. Ao invs de se afirmar, dogmaticamente, que a inflao era sempre causa-da pelo aumento da oferta de moeda, a causa da inflao ficou mais indefinida,deixando-se maior espao para as polticas econmicas a serem pragmaticamenteadotadas. verdade que esse pragmatismo comeou, em seguida, a ser perdido,quando os economistas dos bancos centrais no resistiram, e se puseram a adotarmodelos oficiais para a meta de inflao, nos quais as causas da inflao voltavama se tornar rgidas. Em segundo lugar, a poltica de meta de inflao foi um avanoporque a poltica monetria transformou-se na prtica em poltica de taxa de ju-ros, reconhecendo-se assim, keynesianamente, o carter exgeno da quantidademoeda e da taxa de juros.10 E tambm, porque nessa poltica a curva de Philips decurto prazo, inclinada, foi devidamente restabelecida.

    Todos esses mritos da poltica de meta de inflao, entretanto, no justifica-vam sua adoo pelo Brasil, em 2000, quando a taxa de cmbio estava ainda evi-dentemente sobrevalorizada devido alta taxa de juros. Tanto no justificavam queem 2001 o Banco Central equivocou-se gravemente em desencadear uma guerracontra a alta do cmbio envolvendo nova elevao da taxa de juros, venda dedlares no mercado financeiro local, e troca de ttulos federais no indexados porttulos indexados em dlares em nome do cumprimento da meta da inflao.Acabou, de qualquer forma, no a cumprindo, ao mesmo tempo em que aumenta-va a vulnerabilidade do pas a uma nova crise de balano de pagamentos, que acon-teceu no ano seguinte (quando tambm a meta de inflao no foi atingida).

    O cmbio valorizado, ao no garantir aos exportadores um cmbio mais com-pensador, reduzia as exportaes, e, ao aumentar os salrios da classe mdia artifi-cialmente, propiciava o aumento do consumo e a diminuio da propenso a pou-par. Esta diminuio, que pode ser derivada do conceito contbil de poupana, eraconfirmada, no plano da teoria keynesiana, pela queda dos investimentos e pela

    9 A taxa de cmbio de equilbrio no , por definio, a taxa que zera o dficit em conta corrente, a noser quando o pas j se encontra altamente endividado, e um objetivo central de poltica macroeconmicapassa a ser reduzir os ndices de endividamento externo.10 Isto est, por exemplo, bem claro na regra de Taylor (1993).

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    conseqente no realizao da renda potencial que a alta taxa de juros provoca.Como compensao perversa a taxa de cmbio artificialmente baixa, alm demanter os ricos artificialmente ricos em dlares, reduzia o valor em reais da dvidapblica indexada em dlares e sua porcentagem em relao ao PIB uma medidaque os economistas do sistema financeiro privilegiam em suas anlises...

    No plano monetrio, por sua vez, a taxa de juros elevada aumentava a dvidainterna do pas, e sinalizava para o exterior a insegurana das autoridades monet-rias locais quanto estabilidade da economia brasileira. Esta sinalizao, por suavez, legitimava o alto risco Brasil e, portanto a taxa de juros paga pelos em-prstimos do Brasil no exterior. E, o que mais grave, induzia ao aumento dessataxa de juros, que passava tambm a refletir a poltica de juros do Banco Centraldo Brasil: se suas autoridades se dispunham a pagar, por seus emprstimos de cur-to prazo, uma taxa de juros maior do que aquela paga pelos bancos centrais de pasescom o mesmo nvel de classificao de risco pelas agncias especializadas, isto sig-nificava uma desconfiana interna em relao capacidade de pagamento do pas,que podia ser partilhada pelos credores externos.11 No documento Bresser e Nakano(2002a), salientamos a existncia desse equilbrio mltiplo da taxa de juros, e doefeito perverso da alta taxa de juros. Ao afirmarmos que a poltica de altas taxasde juros, que o Banco Central do Brasil vem seguindo h muitos anos, tinha, entreoutros, o efeito de elevar o risco Brasil, no estvamos, com isto, dizendo que afixao da taxa de juros bsica pelo Banco Central fosse o nico determinante dataxa de juros internacional paga pelo Brasil. claro que os ndices de endividamentopblico e externo, e de dficit pblico e dficit em conta corrente que o pas apre-senta continuam a ser os fatores fundamentais. Mas est claro que ao adotarmosno Brasil uma taxa de juros bsica muito alta e estarmos sempre prontos a elev-la, estvamos indicando para o sistema financeiro internacional nossa prpria des-confiana na economia nacional. Por isso, mostramos naquele trabalho que enquantoa taxa de juros bsica (SELIC) paga pelo Banco Central do Brasil era duas a trsvezes maior do que as taxas pagas pelos bancos centrais de pases com classifica-o de risco igual, as taxas de juros pagas ao exterior pelas empresas brasileiras eramcerca de dois pontos percentuais mais altas do que as taxas pagas pelas empresasdaqueles pases.12 O efeito sobre a taxa de juros externa , portanto, menor do quea diferena relativa das taxas de juros bsicas: enquanto estas no Brasil tm varia-do entre 9 e 12% ao ano, contra uma taxa de juros paga por pases de classificao

    11 O efeito da taxa de juros bsica sobre a taxa internacional de juros paga pelo Brasil assim como oequilbrio perverso em que se encontra a taxa de juros no pas foram principalmente contribuies deNakano para nosso texto comum (2002a).12 preciso distinguir com clareza a classificao de risco de um pas, que feita por agncias comoa Moodys e a Standard & Poors, do risco-pas, que dado simplesmente pela subtrao, da taxa dejuros paga pelo pas no exterior, a taxa de juros paga pelos ttulos do Tesouro americano. Enquanto aclassificao de risco tem uma certa autonomia ou exogeneidade, o risco-pas totalmente endgeno.Mais do que isto, identifica-se com a taxa de juros paga.

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    de risco igual do Brasil de 4 a 6 por cento reais, o diferencial relativo de taxas dejuros externas bem menor.

    Ao tomar a deciso de elevar os juros em 2001, o Banco Central voltou, emnome da estabilidade de preos, a desestabilizar gravemente a economia brasileira.O equilbrio macroeconmico dado pelo nvel de preos, sem dvida, mas dadoprincipalmente pelo equilbrio intertemporal de suas contas externas. Uma econo-mia est equilibrada macroeconomicamente quando tem taxas de juros suficiente-mente baixas para poder investir e crescer, e, quando o faz, as exportaes crescemproporcionalmente s importaes, de forma que se possa manter sob controle ataxa de endividamento externo. A taxa de endividamento externo medida pelarelao dvida externa/PIB, e, no caso do Brasil, onde o coeficiente de exportaes muito baixo, principalmente pela relao dvida externa/exportaes.

    Graas interveno do Banco Central no mercado financeiro em 2001, ele-vando a taxa de juros, vendendo US$8 bilhes no mercado interno, e convertendoUS$20 bilhes de ttulos pblicos em ttulos indexados em dlares, as autoridadesmonetrias lograram baixar a taxa de cmbio, que se elevara de cerca R$2,40 noincio do ano para 2,80 por dlar em abril. Com isto evitou-se uma pequena e pro-visria elevao da taxa de inflao. Mas o custo dessa poltica foi alto, como severificaria no ano seguinte, quando nova crise cambial ameaou o pas, e s foimantida sob relativo controle graas a novo acordo com o FMI. Em decorrnciada crise a taxa de cmbio, entretanto que fora mantida baixa artificialmente graas taxa de juros elevada voltou a subir, agora para prximo de R$4,00 por dlar era o mercado que cobrava sua conta embora a taxa de juros continuasse emnveis exorbitantes.

    Por que a nova crise cambial? Procurou-se explicar o fato com a subida deLula nas pesquisas eleitorais. Entretanto, o candidato do PT j estava com inten-es de voto superiores a 30 por cento muito antes de a crise se desencadear. Naverdade, desde as eleies municipais de outubro de 2000, quando o PT alcanouampla vitria, principalmente nas grandes cidades, estava claro que a probabilida-de de eleio de um candidato de esquerda era muito grande. Por outro lado, antesda crise tambm ficou claro que, na busca da eleio, Lula moderou suas propos-tas, eliminando delas qualquer elemento radical. A dificuldade do candidato dogoverno em avanar nas pesquisas eleitorais pode ter sido um gatilho para desen-cadear a crise os mercados financeiros precisam de um gatilho qualquer mascertamente no foi sua causa. Esta tem que ser procurada na fragilidade financeirainternacional do pas, que a poltica equivocada de 2001 deixou novamente expos-ta aos analistas internacionais. Quando a crise econmica abateu-se sobre a Argentinamuita gente observou, corretamente, que o Brasil havia se descolado da sorte da-quele pas com a desvalorizao de janeiro de 1999. De fato, isto aconteceu. O Brasil,que seguia um caminho semelhante ao da Argentina, salvou-se de um desastre maiorquando deixou flutuar o cmbio. O grande erro da Argentina, naquele momento,foi no nos ter acompanhado. Mas esse descolamento era relativo. Quando o Bra-sil, nos primeiros meses de 2002, voltou a revelar supervits comerciais decepcio-nantes que poderiam ter sido evitados se as autoridades monetrias houvessem

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    sido mais realistas e mais respeitosas do mercado os analistas dos bancos inter-nacionais voltaram a se lembrar dos prejuzos realizados com a Argentina, e, naprimeira oportunidade, iniciaram seu ataque especulativo contra o real. A crise dedesconfiana, porm, teria sido facilmente contornada se no fossem as semelhan-as entre as duas economias, especialmente os supervits comerciais insuficientes,que apontavam para um futuro default.

    O socorro pronto do FMI evitou o pior, mas, ao mesmo tempo, confirmou umaverdade sempre esquecida: os credores internacionais e o prprio FMI s se preo-cupam e s falam no dficit pblico e na dvida interna, mas, quando acontece acrise, ela sempre ocorre pelo lado externo, medida que o dficit em conta corren-te e a dvida externa tornam-se, a seu ver, altos demais, e no mais se oferece a pers-pectiva de alta probabilidade de pagamento, ou, mais precisamente, de continui-dade do servio da dvida. Nesses momentos, nunca o pas devedor quem declaramoratria. So os agentes financeiros internacionais que suspendem a rolagem dadvida, e, se no houver interveno do agente de ltima instncia, o FMI, o defaulttorna-se inevitvel. Mesmo no caso do Brasil, em fevereiro de 1987, quando o mi-nistro da Fazenda Dlson Funaro declarou a moratria do pas, a iniciativa podeter parecido ser do Brasil: na verdade, o pas no tinha alternativa. Poderia ter sidomais prudente, e declarado uma moratria branca, parando de pagar por faltade reservas, mas em qualquer hiptese o default era inevitvel, e decorrera do endi-vidamento irresponsvel do pas, e da conseqente perda de confiana dos credores.

    O SEGUNDO CONSENSO DE WASHINGTON

    Creio ter deixado claro na seo anterior que o Brasil no alcanou a estabi-lidade macroeconmica depois de haver alcanado, em 1994, a estabilidade de pre-os, porque adotou uma agenda equivocada: no colocou como prioridade a es-tabilizao das suas contas externas. Cabe, agora, perguntar o porqu desse erro.Eu poderia responder, simplesmente, que o problema foi de incompetncia tcni-ca e emocional dos responsveis pelas decises de poltica econmica. Embora estaexplicao seja legtima, medida que muitas vezes os interesses esto neutraliza-dos, e, no obstante, o formulador de poltica econmica toma decises incompe-tentes, que no levam aos objetivos que ele prprio visa, vou aqui apresentar umarazo mais geral.13 Fomos vtimas do que proponho chamar o Segundo Consensode Washington.

    De acordo com o Segundo Consenso de Washington, formulado no incio dosanos 1990, pases altamente endividados, como o Brasil, poderiam desenvolver-serecorrendo poupana externa, ou seja, endividando-se ainda mais. preciso,portanto, no confundi-lo com Consenso de Washington, que resumiu a poltica

    13 Ver Bresser-Pereira, 2001. Verso ampliada, em portugus, est para ser publicada na Revista Brasi-leira de Economia.

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    americana em relao aos pases altamente endividados nos anos 1980. Creio tersido o primeiro no Brasil a ter desenvolvido uma crtica sistemtica das idias alipresentes.14 Este consenso, na forma pela qual foi expresso por John Williamson,em um paper de 1989, consistia de uma srie de princpios pregando o ajuste fiscale reformas orientadas para o mercado, ou no que foi tambm chamado de ajusteestrutural.15 Acabou se tornando um smbolo da poltica neoliberal daqueles anos,embora no propusesse necessariamente reformas ultraliberais visando reduzir oestado ao mnimo. E, principalmente, porque no inclua a abertura financeira, queWilliamson expressamente excluiu do Consenso.16 Era, entretanto, neoliberal namedida em que havia nele um claro vis pr-mercado. Este vis era compreensvel,dado o estatismo e o protecionismo que haviam caracterizado o perodo anterior.O Brasil, como a maioria dos pases em desenvolvimento altamente endividados,necessitava de ajustamento fiscal e de reformas orientadas para o mercado, espe-cialmente de maior abertura comercial. Mas era um consenso perigoso, na medidaem que ignorava a importncia de um Estado forte no plano administrativo e fi-nanceiro para se ter um mercado livre e atuante. Em outras palavras, ignorava queas reformas no deveriam visar enfraquecer o Estado, mas, pelo contrrio, fortalec-lo. O Primeiro Consenso de Washington est hoje morto, em parte porque muitasdas reformas foram feitas, em parte devido ao seu fracasso em promover o desen-volvimento na Amrica Latina, embora, na verdade, esse fracasso se explique mui-to mais pelo Segundo Consenso do que pelo primeiro, como procurarei argumen-tar neste trabalho. De qualquer forma, o apoio popular que os programas de pri-vatizao obtinham no incio dos anos 1990 desapareceu dez anos depois, em grandeparte porque monoplios naturais ou quase-naturais, como a produo hidreltri-ca de energia, a distribuio de energia, e os sistemas de telefonia fixa urbana fo-ram objeto de privatizao da mesma forma que setores competitivos.

    14 Refiro-me aula magna no Congresso Anual da ANPEC Associao Nacional de Ps-Graduaoem Economia, em dezembro de 1990, em Braslia. Esta aula foi depois publicada em Pesquisa e Plane-jamento Econmico (Bresser-Pereira, 1991a). No incio de 1999, alguns dias antes de desvalorizar o real,o presidente perguntou-me de quanto deveria ser a desvalorizao. Respondi, sem hesitar, que deveriaser de 25 por cento. Vrias vezes, mais tarde, Fernando Henrique Cardoso referiu-se a esta conversa,dizendo-me que fora eu aquele que mais seguro se revelara em relao ao problema. Deve-se assinalar,entretanto, que a mudana de posio do presidente deveu-se, em grande parte, ao fato de que um dosdiretores do Banco Central, Francisco Lafayette Lopes, proveniente da PUC do Rio de Janeiro, no lti-mo trimestre de 1998 mudou sua posio e passou a apoiar a flutuao do cmbio. Para efetiv-la eleassumiu a presidncia do Banco Central, substituindo Gustavo Franco, para ser logo em seguida, diantedas dificuldades momentneas da flutuao, ser substitudo por Armnio Fraga.15 Ver Williamson (1989). A carga ideolgica contra o texto de Williamson foi grandemente exagerada.Williamson no um ultraliberal, e o consenso que detectou em Washington, no era um consensoultraliberal, no visava reduzir o estado ao mnimo. Tinha apenas um vis liberal (ou neoliberal na ln-gua inglesa na qual liberal significa progressista). O que no impede que houvesse ultraliberais entreos que o adotavam.16 Em debate com Williamson, Stanley Fischer sugeriu a incluso da abertura financeira, e Williamsonrespondeu que no a considerava necessria nem includa no consenso.

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    No incio dos anos 1990, um outro consenso, que eu proponho chamar deSegundo Consenso de Washington, estava se formando um consenso que teriaefeitos mais devastadores sobre os pases em desenvolvimento altamente endivida-dos, inclusive o Brasil, quando comparado ao primeiro consenso. Um consenso es-tabelecido igualmente em Washington, o qual, entretanto, foi adotado pelas elitesda grande maioria dos pases em desenvolvimento econmico muito mais pronta-mente do que o primeiro porque, aparentemente, no implicava em nenhum custo apenas benefcios. Um consenso que surge depois que o Plano Brady equaciona(no resolve) a crise da dvida dos anos 1980. Um consenso que se forma para ex-plicar e justificar uma nova onda de fluxo de capitais que se dirigiu para os pasesem desenvolvimento.

    O Segundo Consenso de Washington a dimenso verdadeiramente interna-cional do primeiro. Ao invs de dizer o que os pases em desenvolvimento deveriamfazer para ajustar ou estabilizar suas economias, veio dizer o que devem fazer paracrescer, para se desenvolver. A receita era simples: bastaria completar o ajuste fiscale empreender as reformas neoliberais, e, em funo deste bom comportamento, usara poupana externa em um quadro de total abertura financeira. Ao invs do de-senvolvimento cum dvida dos anos 70, teramos agora o desenvolvimento cumpoupana externa. Para obter esta poupana era necessrio completar as reformasorientadas para o mercado com a abertura financeira.

    Sobre o tema da abertura financeira e dos fluxos de capital desenvolveu-se umamplo debate entre os economistas dos pases desenvolvidos alguns crticos daliberalizao, outros, entusiastas. Estes partiam do pressuposto neoclssico de quetoda liberalizao benfica, afirmavam que a liberalizao financeira to necess-ria para o desenvolvimento quanto a liberalizao comercial, e deve ocorrer ao mes-mo tempo. Entre os trabalhos crticos, um dos mais significativos foi o de Rodrik,que demonstrou no haver evidncia de que pases sem controles de capitais cresammais.17 Esta literatura muito interessante, mas no deve ser confundida com a crticaao Segundo Consenso de Washington. A crtica abertura financeira concentra-seprincipalmente no problema da instabilidade financeira internacional causada porfluxos de capital descontrolados, enquanto que a crtica ao Segundo Consenso deWashington que estou aqui propondo a crtica a uma idia mais geral a de queos pases j endividados possam desenvolver suas economias com base em poupanaexterna. O Segundo Consenso de Washington pressupe e faz o elogio da aberturafinanceira de forma que sua crtica implica no aceitar esse tipo de liberalizao,mas essa crtica mais ampla, porque pe em causa a idia at hoje no desafiadade que poupana externa seja a forma adequada de financiar o desenvolvimento.

    A estratgia de desenvolvimento econmico do Segundo Consenso de Washing-ton tinha (e tem ainda) um enunciado simples e claro e aparentemente razovel como toda ideologia bem sucedida. Pode ser resumida em uma frase que todosns, cidados dos pases em desenvolvimento ouvimos dezenas de vezes:

    17 Ver Rodrik (1998: 61).

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    Ns entendemos que vocs no tm mais recursos para financiar seudesenvolvimento, mas no se preocupem, faam o ajuste fiscal e as refor-mas, que ns financiaremos seu desenvolvimento com poupana externa,se possvel com investimentos diretos.18

    A sentena compe-se, portanto, de trs termos. O primeiro termo, ou a pre-missa, ns compreendemos que vocs no tm mais recursos para financiar seudesenvolvimento, falso, embora tivesse aparncia de verdade, dado o alto endi-vidamento externo dos pases. bvio que um pas como o Brasil, ou como o Mxico,ou como a China, tm recursos para se desenvolver. Mesmo depois de substituir umaparte da poupana interna por poupana externa, em decorrncia do Segundo Con-senso de Washington, quatro-quintos dos investimentos continuam a ser financia-dos por poupanas domsticas. O Brasil, como os demais, no conta com todosos recursos necessrios ou, mais precisamente, desejveis para financiar seu desen-volvimento. Mas quem os tem? , porm, um pas que j realizou sua acumulaoprimitiva e sua revoluo capitalista, de forma que j dispe de um Estado e de umaclasse de empresrios capazes de canalizar, atravs do sistema financeiro, poupan-as para o investimento.

    O segundo termo, ou as duas condies, mas no se preocupem, faam o ajustefiscal e as reformas, era o mais razovel dos trs termos, embora j vimos que podeenvolver prejuzos para os pases. A primeira condio, a de completar o ajuste fis-cal, ou de superar a crise fiscal, era correta: era e continua sendo para o Brasil umacondio para a reconstruo do Estado. As reformas orientadas para o mercadoeram tambm bem-vindas, desde que sensatas ao invs de pura ideologia ultraliberal.Era sensato, por exemplo, abrir mais as economias dos pases em desenvolvimen-to, reduzindo o alto grau de protecionismo que caracterizara o perodo de substi-tuio de importaes; era sensato privatizar setores competitivos ou razoavelmentecompetitivos; era sensato modernizar a administrao pblica, substituindo gra-dualmente a administrao pblica burocrtica por uma administrao pblicagerencial; era sensato eliminar privilgios no campo da previdncia social. No erasensato, entretanto, privatizar monoplios naturais, nem privatizar empresas quese beneficiassem de altas rendas ricardianas devido a um problema de monoplionatural (o caso, por exemplo, das usinas hidreltricas), nem fazia sentido privatizaruma atividade como a da previdncia bsica, que obrigao de um Estado demo-crtico porque corresponde a um direito social. Os pases desenvolvidos no fize-ram tais loucuras deixaram-nas por conta de alguns dos pases em desenvolvi-mento seguindo um velho princpio: faam o que eu digo, mas no o que eu fao.O Brasil no privatizou a previdncia bsica, mas privatizou monoplios naturaisou quase-naturais, e indstrias beneficirias de rendas ricardianas.

    18 Sobre a estratgia de crescimento com poupana externa ver Bresser-Pereira e Nakano (2002b). Deum modo geral, as teorias que aparecem no presente trabalho foram mais extensamente desenvolvidasnaquele paper.

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    No entanto, o erro mais grave do Segundo Consenso de Washington est noseu terceiro termo, na sua concluso. Cumpridas as duas condies, conclui o con-senso que ns financiaremos seu desenvolvimento com poupana externa, se pos-svel com investimento direto. A estava a armadilha que levou a maioria dos pa-ses em desenvolvimento j altamente endividados no final dos anos 1980 a poucocrescerem nos anos 1990; a est a origem das crises de balano de pagamentos cujocaso limite foi o da Argentina; a est uma causa bsica da equivocada deciso bra-sileira de desconsiderar o problema do desequilbrio externo em seguida ao PlanoReal; a est a explicao principal para o fato de o Brasil haver entrado em duascrises de balano de pagamentos: uma em 1998, no final do primeiro quadriniodo governo Fernando Henrique Cardoso, a outra em 2002, no final do segundoquadrinio.

    A poltica de crescimento com poupana externa contraria grande parte daexperincia internacional. Existe a clssica exceo dos Estados Unidos no sculoXIX, mas, de um modo geral, as pesquisas realizadas entre os pases da OCDE, apartir do paper original de Feldstein e Horioka, mostram que, embora esses pasesrecebam e faam investimentos diretos entre si, quase em cem por cento da acumu-lao de capital neles realizada resultado de poupana nacional.19 Em um primei-ro momento os economistas neoclssicos, presos a seus preconceitos sobre a mobi-lidade dos capitais, definiram os resultados como um quebra-cabea o Feldstein-Horioka puzzle. Entretanto, estudos posteriores demonstraram que no se trata-va de um quebra-cabeas, mas de um simples problema de restrio de solvncia(solvency constraint) de cada pas. Quer dizer, os pases da OCDE no se dispema se endividar para investir, ou se endividam limitadamente. Por isso os investimentosso financiados fundamentalmente por poupana nacional.20

    De acordo com o segundo consenso, o financiamento seria feito com poupanaexterna, se possvel com investimentos diretos. A dvida patrimonial decorrentedo investimento direto no conta no clculo dos ndices de endividamento, dadasua menor liquidez. No h dvida, portanto, que se o investimento direto vier, defato, financiar a acumulao de capital em plantas e equipamentos, excelente. Se,entretanto, o investimento vier para financiar consumo, j que a alta taxa de jurosdesestimula o investimento real do prprio investidor estrangeiro ou do capitalistanacional que vende sua empresa, esse financiamento apenas agrava a situao dopas. Nos pases ricos, o investimento direto no recebido para financiar dficitsem conta corrente, mas para que aproveitem mutuamente as vantagens tecnolgicasdas empresas multinacionais. O Brasil, porm, ao contrrio dos pases desenvolvi-dos, tem usado os investimentos diretos e os emprstimos, de acordo com o Segun-do Consenso de Washington, para financiar dficit em conta corrente, e, em conse-

    19 Ver Feldstein e Horioka (1980) e toda a literatura que esse paper provocou.20 Ver Rocha e Zerbini (2002) para uma survey da evidncia. Os autores citam os estudos de Sinn (1992)e Coakley et al. (1996) como evidncias adicionais, alm das do seu prprio estudo, de que a correlaoFeldstein-Horioka no um quebra-cabea mas exprime apenas uma solvency constraint.

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    qncia, para aumentar o consumo. Da mesma forma que muitas das reformas queos pases ricos aconselharam aos em desenvolvimento, como as reformas privatizandoa previdncia bsica, no foram por eles prprios adotadas, tambm no caso dofinanciamento dos seus investimentos eles no seguem os conselhos insistentemen-te dados aos pases intermedirios. a velha histria faa o que eu digo, no oque eu fao que se repete. Os pases ricos sabem que a poupana externa quevem com os financiamentos e investimentos diretos sai na forma de consumo namedida em que a taxa de cmbio artificialmente apreciada. Sabem tambm quaisso as suas restries de solvncia.

    Durante o governo Fernando Henrique Cardoso os investimentos direitos au-mentaram extraordinariamente: at 1994 o pas recebia no mximo 2 bilhes dedlares por ano de investimentos estrangeiros; depois do Real o pas passou a rece-ber, em mdia, 2 bilhes de dlares por ms em investimentos diretos. Mas, contra-riando o saber convencional, a taxa de formao de capital no aumentou e a taxade crescimento da renda por habitante permaneceu em torno de 1 por cento percapita. Durante os anos 1990, a produtividade aumentou extraordinariamente graas principalmente abertura comercial, mas a poltica macroeconmica basea-da em altas taxas de juros e em cmbio relativamente valorizado, impediu que oaumento da produtividade se transformasse em crescimento da renda por habitan-te. Por outro lado, as altas taxas de juros continuaram desestimulando o investi-mento real. Desta forma o aumento do endividamento externo patrimonial provo-cado pelo aumento dos investimentos diretos no teve como contrapartida aumen-to da acumulao de capital.

    A explicao para isto est no fato de que existe um mecanismo perverso quetransforma os financiamentos, inclusive os investimentos diretos das empresasmultinacionais, em consumo. Esse mecanismo no inevitvel, mas, se no hou-ver uma plena conscincia dele, e polticas macroeconmicas adequadas paraneutraliz-lo, os resultados podero ser desastrosos, como tm sido no Brasil. Omecanismo simples, e nada tem a ver com as prprias empresas, mas com a po-ltica macroeconmica do governo. O investimento direto um fluxo financeiroadicional para dentro do pas que, mantida a taxa de juros, baixa a taxa de cm-bio da economia, apreciando a moeda local. Com a valorizao aumentam, pordefinio, os salrios, j que a apreciao do cmbio uma mudana de preosrelativos a favor dos bens e servios no comercializveis, entre os quais o maisimportante a fora de trabalho. Aumentando os salrios em funo da aprecia-o da moeda local, aumenta o consumo, diminuindo, proporcionalmente, a pou-pana nacional. Foi o que aconteceu no Brasil: nos ltimos anos o nvel de inves-timentos cresceu muito pouco, enquanto que a poupana domstica caa propor-cionalmente ao dficit em conta corrente.

    Est, portanto, embutido no Segundo Consenso de Washington um elementode valorizao artificial da taxa de cmbio: quanto maiores os financiamentos ouos investimentos diretos, que aumentam o endividamento financeiro e patrimonialdo pas, mais apreciada tende a se tornar a taxa de cmbio, menos estimuladas asexportaes ou a substituio competitiva de importaes, maior (artificialmente)

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    o poder aquisitivo dos assalariados e maior seu consumo, e, portanto, menor apoupana interna, compensando-se, assim, a entrada da poupana externa com adiminuio da interna, e mantendo-se no mesmo nvel o dficit em conta corrente,ou seja, a necessidade de novos financiamentos.

    Mesmo que o investimento da multinacional tenha sido feito em prdios e equi-pamentos, a poupana externa embutida no investimento direto foi anulada pelareduo da poupana interna causada pelo aumento do consumo. Como o investi-mento direto financiou o dficit em conta corrente, o pas absorveu poupana ex-terna, ou seja, endividou-se, mas no cresceu, nem aumentou sua capacidade deremunerar o capital estrangeiro investido.

    O novo consenso interessava fundamentalmente os bancos comerciais e osbancos do investimento nos pases ricos, nos quais o excesso de capitais ou de pou-panas que buscam novos mercados lucrativos uma constante. Interessava maisamplamente os pases ricos, cuja poltica comercial sempre de aumentar saldoscomerciais. E contou, naturalmente, com o apoio das duas instituies financeirasinternacionais sediadas em Washington: o FMI e o Banco Mundial.

    Como o FMI compatibilizava o carter frouxo do Segundo Consenso de Wa-shington com sua poltica macroeconmica supostamente dura? Fundamentalmente,atravs da estratgia de concentrar toda a sua ateno nas contas fiscais do pas,deixando de lado as contas externas. Se examinarmos os acordos firmados pelo FMInos anos 1990, verificaremos que o dficit em conta corrente est sempre em se-gundo plano. Mal mencionado. Se o fosse, e o FMI estabelecesse metas rgidaspara o saldo comercial e a conta corrente, no teramos o Segundo Consenso deWashington. Concentrando-se no dficit pblico, o FMI continuava a merecer suafama de duro, embora, no plano externo, estivesse sendo frouxo. E justifica-va teoricamente essa poltica com a teoria dos dficits gmeos: se o pas controlavao dficit pblico estaria automaticamente controlando o dficit em conta corrente.Ora, sabemos que essa teoria s faz sentido quando a taxa de cmbio de equil-brio. Quando ela est valorizada, como tem sido o caso do Brasil desde 1994, opas pode ter dficits pblicos relativamente pequenos (seno supervits) e grandesdficits em conta corrente. E, certamente, a economia pode estar desaquecida, e,no obstante, manifestam-se os dois dficits.

    Fique claro que a poupana externa que um pas recebe , por definio, dfi-cit em conta corrente. Mantidas as reservas constantes, aumento de endividamentointernacional, seja na forma de dvida financeira, seja na forma de dvida patrimonialrepresentada pelo estoque de capital estrangeiro. O que dizia e ainda diz oSegundo Consenso de Washington, portanto, que era legtimo que pases j alta-mente endividados se endividassem ainda mais, desde que cumprissem os requisi-tos do Primeiro Consenso: ajuste fiscal e reformas orientadas para o mercado.21

    21 Vale observar que toda esta argumentao no leva concluso de que qualquer forma de poupanaexterna seja prejudicial ao pas. Desde que a poupana externa venha na forma de investimento diretoem bens comercializveis, ser bem-vinda. O essencial, para o pas, reduzir seus ndices de endividamento.Esse tipo de poupana pode contribuir nessa direo.

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    FINANCIAMENTO PARA O SUBDESENVOLVIMENTO

    Por que haveria a um erro de estratgia do ponto de vista do desenvolvimentodos pases altamente endividados? Por que uma certa apreciao do cmbio seriaperversa? Por que estaramos, nesse caso, diante de um tpico financiamento parao subdesenvolvimento?

    Em primeiro lugar, porque h um limite para o endividamento de um pas. Apartir de um certo limiar torna-se crescentemente perigoso continuar se endividan-do, principalmente em termos financeiros, mas tambm, ainda que em menor grau,em termos patrimoniais. Nos anos 1970, quando foi ministro da Fazenda, MarioHenrique Simonsen costumava dizer que o ndice dvida externa/exportao nodeveria superar 2. Alguns anos mais tarde, em seu livro-texto de macroeconomia,Simonsen foi mais preciso, mas menos severo: um pas devedor com um ndice d-vida externa/PIB inferior a 2 estaria em uma situao confortvel; entre 2 e 4 suasituao seria duvidosa; acima de quatro, crtica.22

    Pesquisas recentes confirmaram a primeira intuio de Simonsen. Embora sejaimpossvel defini-lo com preciso, as pesquisas empricas confirmam que h um limiaracima do qual a dvida se torna negativa para o pas. O Banco Mundial definiu esselimiar pelo ndice dvida/exportaes, que no deveria ultrapassar 2,2, e pela rela-o dvida/PIB, que seria de 80%. A maioria dos episdios de crise de dvida ocor-reu quando um desses dois limiares foi ultrapassado. No caso do Brasil, que umpas relativamente fechado para o exterior (seu ndice de exportaes sobre o PIBcontinua em torno de 10%), o ndice dvida externa/exportaes claramente o ndicecrtico. Cohen foi mais estrito. Segundo ele, quando o ndice de endividamento supera2 ou a porcentagem dvida externa/PIB supera 50%, a probabilidade de reestru-turao da dvida torna-se alta e o efeito negativo sobre o crescimento torna-se sig-nificativo.23 Finalmente, um estudo recente de trs economistas do FMI demonstraque, a partir do ndice de endividamento 1,6-1,7 e de 35-40% do PIB o impactomdio da dvida sobre o crescimento da renda por habitante parece se tornar nega-tivo. O estudo tambm mostra que quando a relao dvida-exportao aumentade 1 para 3, a taxa de crescimento declina 2 pontos percentuais por ano.24

    No caso do Brasil, o ndice de endividamento dvida externa/exportaes erasuperior a 3 no incio dos anos 1990. Uma poltica de crescimento com poupanaexterna era, portanto, altamente desaconselhvel apenas por essa razo. Hoje estendice j 4, no obstante uma parte considervel do endividamento ocorrido nadcada tenha sido feito atravs de investimentos diretos, que aumentam a dvidapatrimonial mas no influenciam os ndices de endividamento financeiro. O fatode parte da poupana externa ter vindo na forma de investimentos diretos , porum lado, favorvel para o pas na medida em que a liquidez desse tipo de dvida

    22 Ver Simonsen e Cysne (1995).23 Ver Cohen (1993).24 Ver Pattillo, Poirsin e Ricci (2002).

  • 22

    menor. Mas , por outro lado, negativa na medida em que esses investimentos noconsiderados nos ndices de endividamento externo envolvem, no obstante, o pa-gamento de servios ao exterior.

    Em segundo lugar, atendida a condio de no ultrapassar o limiar de endivida-mento externo, o financiamento com poupana externa poder ser favorvel desdeque o endividamento correspondente no provoque valorizao do cmbio. A va-lorizao, entretanto, tender a ocorrer no mercado j que, em princpio, a taxa decmbio de equilbrio inferior taxa de cmbio de equilbrio com zero de dficitem conta corrente, quando se admite ser aquele equilbrio compatvel com um d-ficit em conta corrente. Para impedir tal valorizao, que provocar a elevao ar-tificial dos salrios e, em conseqncia, do consumo, a soluo seria reduzir com-pensatoriamente a taxa de juros. Isto, entretanto, no foi considerado pela polticaeconmica adotada pelo Brasil. Ainda que houvesse baixa de taxa de juros real emrelao s taxas altssimas do perodo anterior a 1994, quando prevalecia a altainflao, a taxa de cmbio manteve-se valorizada, os salrios elevados artificialmente,o consumo igualmente elevado, e a taxa de poupana interna rebaixada.

    De fato, o que ocorreu no Brasil aps 1994 foi que os substanciais dficits emconta corrente, ou seja, a poupana externa aplicada no pas, parte da qual em in-vestimentos diretos, foi compensada pela diminuio da poupana interna, de for-ma que os investimentos totais no aumentaram no perodo, pelo contrrio, dimi-nuram, e, como j vimos, o desenvolvimento no foi retomado.

    Grfico 1Taxas de Investimento (1), de Poupana Domstica (2) e Taxa de Investimento

    Estrangeiro Direto (% sobre PIB; (1) - (2) = Taxa de Poupana Externa)

    Fonte: FIBGE e Banco Central do Brasil.

    5,0

    4,5

    4,0

    3,5

    3,0

    2,5

    2,0

    1,5

    1,0

    0,5

    0,0

    1965

    1967

    1969

    1971

    1973

    1975

    1977

    1979

    1981

    1983

    1985

    1987

    1989

    1991

    1993

    1995

    1997

    1999

    0

    5

    10

    15

    20

    25

    30

    Inve

    stim

    ento

    Dire

    to/P

    IB

    Inve

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    ento

    e P

    oupa

    na

    Investimento Total Poupana Domstica Investimento Estrangeiro Direto

  • 23

    O Grfico 1 muito expressivo a esse respeito. A poupana externa a dife-rena entre a curva de investimento total e a curva de poupana externa, ambasmedidas na escala da direita. Vemos, por ele, que a poupana externa, que estavazerada entre 1988 e 1992, e mesmo negativa entre 1993 e 1994 (o que significa queestvamos pagando dvida), torna-se positiva a partir de 1995. Ou seja, passamosa ter dficits em conta corrente, que so crescentes at 1999. A partir da estabili-zam-se e, em seguida passam a diminuir (o que o grfico j no mostra). No obstanteo aumento da poupana externa, os investimentos totais no aumentam. Pelo con-trrio, diminuem um pouco na medida em que a poupana domstica diminui devidoao aumento artificial dos salrios causado pela valorizao do cmbio. Vemos tam-bm que os investimentos totais no aumentam apesar da grande elevao dos inves-timentos diretos, medidos na escala da direita. Houve, portanto, uma completa eperversa compensao do aumento da poupana externa pela diminuio da interna.

    Existe ainda uma terceira condio para que o financiamento externo, ou apoupana externa promova o desenvolvimento do pas: que este, ao receber o finan-ciamento, esteja envolvido em um forte processo de desenvolvimento, e, portanto,esteja executando um grande nmero de investimentos privados e possivelmenteestatais com taxas de lucro previstas substancialmente maiores do que a taxa de jurosde mercado. Nos anos 1970 era isto o que ocorria. Por isso podemos ver no Grfico1 que a poupana externa foi sempre positiva nesse perodo, ou seja, o pas se endivi-dava, mas, em compensao, aumentava a taxa de investimento. De acordo, porm,com o Segundo Consenso de Washington, no importava que esses pases, alm deendividados externamente, no tivessem projetos de investimento. O mercado, trans-formado em um estranho agente social, encarregar-se-ia de criar as condies paraos investidores externos formularem e executarem os projetos de desenvolvimento.

    Ignorava-se, assim que a teoria econmica nos ensina que um dficit em contacorrente crnico est sempre associado a um cmbio valorizado. Ignorava-se, tam-bm, que a valorizao do cmbio uma forma artificial de elevar salrios, e, emconseqncia, de aumentar o consumo, principalmente da classe mdia e da classerica, cujo consumo tem significativo componente importado. Ignoravam-se ambasas coisas, enquanto o Brasil incorria em enormes dficits em conta corrente e au-mentava de forma irresponsvel seu endividamento externo nos anos 1990.

    Observe-se que no estou negando que a poupana externa possa ser til a umpas. Entretanto, ela s o ser se as trs condies que estabelecemos acima forematendidas. Ou seja, que o pas no tenha ultrapassado o limiar de endividamento,que no permita a valorizao do cmbio e o decorrente aumento do consumo, eque existam amplas oportunidades de investimento produtivo. Nenhuma das trscondies estava presente no Brasil, nos anos 1990. Por isso, o recurso poupanaexterna s representou endividamento foi um caso tpico de endividamento parao subdesenvolvimento.

    O que tivemos nos anos 1990, com o Segundo Consenso de Washington, foiuma poltica de populismo cambial com apoio do FMI e do Banco Mundial. Hduas formas de populismo econmico, o fiscal (gastar mais do que se arrecada) e ocambial (valorizar o cmbio). Canitrot deixou este assunto clarssimo em seu cls-

  • 24

    sico paper de 1975.25 A primeira forma mais bvia do que a segunda, ambas sodesastrosas, mas a segunda mais perigosa na medida em que as crises dos pasesem desenvolvimento comeam sempre por uma crise cambial. Crises de balano depagamentos podem tambm ocorrer em funo de grandes dficits pblicos e dodescontrole monetrio, mas isto s ocorrer se o pas estiver vivendo um perodode boom econmico, e, portanto, de excesso de demanda. Ora, desde os anos 1970o Brasil, como a maioria dos pases latino-americanos, no tm essa experincia.

    Mas, poderia perguntar algum, demonstrando uma certa ingenuidade, pou-pana externa recebida por um pas no sinnimo de investimentos diretos estran-geiros? Por que, ento, relacion-la com populismo cambial? Em primeiro lugar,porque poupana externa sinnimo de dficit em conta corrente; s sinnimode investimento direto estrangeiro para quem no conhece as contas do balano depagamentos. Mas, poderia continuar o perguntador ingnuo, se contabilmente sa-bemos que poupana igual investimento, poupana externa no financia apenasinvestimento? No, novamente. Pode financiar tanto investimento quanto consu-mo, mas geralmente financia consumo, j que, como vimos, aprecia o cmbio, e ocmbio valorizado estimula o consumo. Na verdade, poupana externa uma ex-presso marota. Ou marotamente usada, como acontece com muitos outros termosnesta cincia to ideolgica mas to orgulhosa de no s-lo como a cincia eco-nmica. Poupana externa simplesmente dficit em conta corrente, mas, como podeser financiada por investimentos diretos, facilmente confundida com estes.

    Quando o dficit em conta corrente (ou a poupana externa) financiado porinvestimentos diretos temos, sem dvida, uma situao mais favorvel do que quandofinanciado por emprstimos, mas nem por isso a poupana externa benfica. Se opas tiver grandes projetos de investimento, como era o caso dos Estados Unidosno sculo XIX, o financiamento do dficit em conta corrente com investimento di-reto poder ser benfico. Se, entretanto, este no for o caso, e o investimento diretoacabar financiando consumo, s aumentar a dvida do pas, j que o estoque decapitais externos no pas tambm dvida dvida patrimonial servida por re-messa de dividendos ao invs de remessa de juros.26

    No caso do Brasil, o investimento direto externo era cerca de US$2 bilhes porano no incio da dcada, e passou a ser os mesmos US$2 bilhes, mas por ms, nogoverno Fernando Henrique, mas nem por isso a taxa de acumulao de capital e ataxa de crescimento do pas aumentaram. A poupana externa foi compensada peladespoupana interna, dado que a poupana domstica caiu com a valorizao docmbio e o conseqente aumento da propenso mdia a consumir, de forma que ataxa de investimento no aumentou e o pas permaneceu semi-estagnado, crescen-do menos de 1 por cento per capita no perodo.

    25 La Experiencia Populista de Distribuicin de Renda (Canitrot, 1975).26 O total da dvida financeira e da dvida patrimonial do pas menos reservas e investimentos e emprs-timos ao exterior feitos pelo pas seu passivo externo lquido. Como as duas ltimas parcelas so pou-co importantes nos pases em desenvolvimento econmico, o passivo externo lquido corresponde d-vida total externa menos reservas.

  • 25

    ELITES ALIENADAS

    Cabe, porm, uma terceira questo encadeada. Se o erro de agenda, privile-giando o combate da inflao e no o desequilbrio externo, foi resultado do Se-gundo Consenso de Washington, por que o Brasil aceitou sem crtica esse consen-so? Minha resposta a esta pergunta s pode ser uma: porque no apenas as autori-dades econmicas, mas, mais geralmente, as elites brasileiras demonstraram-se alie-nadas, incapazes de definir e defender o interesse nacional. A poltica econmicano governo Fernando Henrique foi desastrosa na medida em que refletiu a incapa-cidade das elites brasileiras de pensar por conta prpria e de criticar o SegundoConsenso de Washington.

    Um pas, quando realiza sua revoluo capitalista, tende tambm a realizar suarevoluo nacional. Atravs da primeira, a apropriao do excedente passa a ocor-rer principalmente atravs do mercado, as instituies passam a garantir a proprie-dade e os contratos, e a acumulao de capital e a incorporao de progresso tcnicotornam-se processos intrnsecos ao sistema econmico. Atravs da segunda, as deci-ses do governo passam a responder aos interesses nacionais, ou seja, aos interes-ses do trabalho e do capital nacionais. O Brasil completou sua revoluo capitalistanos anos 1960, mas, no incio dos anos 1980, quando comea sua grande crise, suarevoluo nacional, ainda que houvesse avanado, no se havia completado. Inter-rompida pela crise da dvida externa e a crise fiscal do Estado, a revoluo nacionalcontinuou paralisada nos anos 90. Os brasileiros continuavam vtimas do complexode inferioridade colonial, ou da fracassomania de que nos falou Albert Hirschman.

    Este um problema cultural difcil de ser solucionado, especialmente enquan-to as elites brasileiras se revelarem incapazes de se identificar com a prpria nao.Minha impresso, entretanto, a de que os pobres, ou o povo, tm avanado nestamatria. So capazes de absorver a cultura estrangeira e incorpor-la criativamentena nossa prpria cultura. O caso do nosso mais bem-sucedido bem cultural de expor-tao a msica popular brasileira uma indicao positiva nesse sentido. Osnveis crescentes de educao, atingindo hoje a massa da populao brasileira, con-tribuem na direo de uma maior capacidade de valorizar o que nosso. Entretan-to, enquanto o povo avana, ainda que lentamente, na recusa do complexo de infe-rioridade colonial, nossas elites retrocederam dramaticamente nos ltimos 20 anos.

    As elites cafeeiras do Oeste paulista, alm de iniciar a Revoluo Capitalistabrasileira, na segunda metade do sculo XIX, contriburam de forma significativano sentido de definir a identidade nacional. A semana de arte moderna, de 1922, eo Manifesto Pau Brasil foram marcos dessa mudana. Em seguida, a elite industrialpaulista e a tecnocrtica do Rio de Janeiro, reunidas em torno dos governos Vargase Kubitschek, promoveram um enorme avano na afirmao dos interesses nacio-nais.27 A Revoluo Nacional avanou a passos largos a partir de ento. E, apesar

    27 No falo em elites tecnocrticas cariocas, mas do Rio de Janeiro, porque os membros dessa elite pro-vinham de todos os Estados do pas.

  • 26

    dos pesares, continuou a avanar durante o regime militar. Entretanto, quando oEstado desenvolvimentista, que fora to bem-sucedido em promover o desenvolvi-mento nacional, entrou em crise nos anos 80, nossas elites perderam rumo. Nessemomento, a ideologia neoliberal seno ultraliberal tornara-se dominante em Wa-shington e Nova York, e se transformava em ofensiva sobre os pases em desenvol-vimento. Dada a crise que estes pases viviam, especialmente na Amrica Latina, osarautos das novas ideologias encontraram aqui campo frtil. Mais frtil do que nosprprios pases ricos. Nos anos 1990, nossas elites, que desde os anos 1930 haviamaumentado significativamente sua capacidade de identificar e de defender o inte-resse nacional, retrocederam de forma dramtica. Diante da crise da estratgia an-terior de desenvolvimento, ao invs de pensar uma nova estratgia que consul-tasse os interesses nacionais, simplesmente se renderam ofensiva ideolgica vindado Norte.

    Em seu ltimo livro, Em Busca de Novo Modelo, Celso Furtado voltou a darnfase a um problema que se tornou central para as classes mdias e altas brasilei-ras pelo menos desde os anos 1960: a busca desenfreada de imitar os padres deconsumo dos pases centrais, particularmente dos Estados Unidos. Nesse livro,Furtado volta s razes do desenvolvimento econmico: a revoluo capitalista e arevoluo cientfica. A interao entre esses dois processos deve ser buscada, de umlado, na intuio de Galileu de que a natureza seria racional e poderia ser reduzidaa esquemas geometrizveis; de outro, ao processo de acumulao capitalista que tornaa racionalidade instrumental dominante. Neste processo, porm, a industrializaotardia de pases como o Brasil foi muito diferente da que ocorreu nos pases hojedesenvolvidos, porque enquanto nestes a inovao e a difuso combinam-se pararesponder s prprias necessidades das sociedades, naqueles a difuso marcadapela tentativa de imitao por parte das elites as classes altas e as mdias dospadres de consumo do centro.

    Esta reproduo dos padres de consumo vai continuar a determinar hoje asduas tendncias centrais das economias perifricas: (1) a propenso ao endividamentoexterno e (2) a propenso concentrao social da renda. Ambos os processos tmcomo matriz a alta propenso a consumir das elites brasileiras em sua ansiedadeem reproduzir o consumo central. Comparando o Brasil com a ndia, ele nos apre-senta dados poderosos em favor do seu argumento. Embora a ndia tenha uma rendapor habitante que um quinto da brasileira, sua taxa de poupana consideravel-mente maior do que a do Brasil. Como se explica isto? Porque a renda muito maisconcentrada no Brasil nas classes altas e mdias do que na ndia. Neste pas os 20por cento mais ricos controlam uma renda quatro vezes maior do que os 20 porcento mais pobres, enquanto que no Brasil essa relao 32!

    A busca da reproduo dos padres de consumo norte-americanos est na raizseja da concentrao de renda, seja da baixa taxa de poupana: desta, dada a pr-pria natureza da tentativa; daquela, na medida em que a demanda para os bens deconsumo de luxo produzidos depende dessa concentrao. A primeira relao pa-rece-me indiscutvel. J a segunda, eu creio que perdeu grande parte da sua valida-de. Nos anos 1960 e 1970, em um momento em que o acesso a muitos dos bens de

  • 27

    consumo de luxo estava restrito classe mdia e classe alta, a concentrao derenda j existente era reforada pelo tipo de bem produzido. Hoje, entretanto, quan-do as empresas buscam desesperadamente atingir os pobres com seus bens e servi-os, eu creio que o agravamento da concentrao de renda, que continua a ocorrer,deve ser buscado antes no enfraquecimento relativo dos pobres em defender seusinteresses, e no tipo de desenvolvimento tecnolgico, que aumentou a demanda detrabalho qualificado, enquanto que diminua o de trabalho no-qualificado.

    Mais importante na anlise de Furtado, entretanto, o fato de que as classesbeneficiadas com essa concentrao no se revelam altura de seu papel de elites.Ao copiarem os padres de consumo norte-americanos, no poupam para investir,e endividam o pas no exterior. A acusao de prtica do populismo econmico, queessas classes usam para atacar os polticos populares, indevida porque o consu-mo delas e no o dos pobres que leva ao dficit pblico e, principalmente, ao popu-lismo cambial: a valorizao artificial do cmbio, em nome do combate da infla-o, para facilitar o consumo de bens e servios com considervel componenteimportado. No so os pobres que adquirem bens importados, nem que viajam parao exterior.

    Celso Furtado concentra assim sua anlise no consumo das elites. Estou deacordo, mas seria ainda mais severo. pattico o fracasso poltico das elites atuais.Alienadas em um grau impensvel, fracassam na sua misso de dirigir o pas. Aoreproduzirem os padres de consumo do centro inclusive em suas tristes residn-cias neoclssicas que constituem uma irriso para a grande arquitetura brasilei-ra reproduzem tambm, de forma acrtica, a ideologia externa. Ao invs de de-finir, caso a caso, qual o interesse nacional, e defend-lo, dedicam-se apenas aoconfidence building. O que lhe interessa saber o que os estrangeiros pensamdo Brasil, no o que o Brasil pensa sobre seu futuro.

    O RISCO DA CRISE INTERNA

    A crise de balano de pagamentos poder ser agravada ou superada dependendoda forma que o governo enfrentar o problema interno. No plano externo, o gover-no fez o mais importante, logrou logo que a crise se tornou clara um novoacordo com o FMI. A perda de confiana dos credores estrangeiros no foi superada,j que a renovao dos crditos de longo prazo e das linhas de crdito comerciaisde curto prazo das empresas brasileiras continua suspensa, mas o governo e o FMIfizeram o que era obrigao de ambos no momento. Por outro lado, a iniciativa dopresidente Fernando Henrique de conversar com os candidatos presidncia sobreesse acordo, obtendo deles sua concordncia (o que no significava, naturalmente,que concordassem com a poltica econmica que tornou o acordo necessrio) era oque melhor poderia ter feito no plano poltico. O importante agora impedir que acrise externa se transforme em crise interna, uma passando a realimentar a outra.No momento em que escrevo, em dezembro de 2002, as empresas endividadas emdlares enfrentavam dificuldade em rolar suas dvidas, no apenas porque os credores

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    no renovam seus emprstimos, afetando sua liquidez, mas tambm porque a taxa decmbio subiu e provocou reduo de seus lucros seno prejuzos. Por outro lado, osempresrios naturalmente pessimistas diante dos fatos, reduziram seus investimentos.

    Diante desses fatos, necessrio que o governo assegure a devedores e espe-culadores que usar sem hesitao suas reservas para manter a taxa de cmbio emum nvel que leve ao equilbrio da conta corrente. Certamente no de R$ 2,40 pordlar, mas tambm no maior que a taxa atual, de aproximadamente R$ 3,50.Em lugar de uma meta de inflao, devemos, conservando flutuao do cmbio, terem vista um nvel de taxa de cmbio real para garantir exportadores e devedores.Imagino que esse nvel, que deveria ser assegurado atravs das medidas clssicas deuma flutuao suja, seria de cerca de R$ 3,00 reais por dlar. No momento, en-tretanto, seria inclusive razovel que as autoridades monetrias deixassem que a taxade cmbio suba para prximo de R$ 3,50: tal overshooting dever desestimular assadas e estimular as entradas (j que os agentes econmicos sabero ou descon-fiaro racionalmente que a taxa de equilbrio, para a qual a taxa mais afinalvoltar, menor). Mas a taxa de cmbio no dever subir alm desse nvel para seevitar uma debilidade adicional das empresas endividadas.

    Por outro lado, dada a suspenso da rolagem da dvida e as previses de dfi-cit em conta corrente e de amortizaes, a expectativa de que o pas, cujas reser-vas lquidas esto em torno de US$ 23 bilhes, termine o ano com reservas lquidasprximas de zero. O problema que se coloca para o governo saber at que pontodeve usar suas reservas para manter o cmbio no nvel que estimo de equilbrio, ouse deixa que ocorra o overshooting do cmbio. Em qualquer hiptese, a heranaque o atual governo deixa para o prximo de crise. O default s ser evitado se oFMI liberar o uso de seus recursos, que em princpio no devem ser usados, at omomento em que um aumento ou a perspectiva de um aumento do supervit co-mercial leve os credores a renovar suas linhas de crdito. Williamson realizou umcuidadoso estudo das perspectivas de default do Brasil, e chegou concluso de queh, de um lado um elemento de pnico por parte do mercado, que no se justificapelas declaraes dos candidatos; de outro, a prtica de elevadas taxas de jurosconspira para manter a dvida interna em elevao e a economia como um todo sobperigo, j que o supervit primrio tender a ser de R$53 bilhes em 2003 contraum total de juros internos de R$176 bilhes. Tudo, afinal, depender, de um lado,de como ser o comportamento do novo governo na rea fiscal e monetria, e, deoutro, dos credores externos.28

    Na rea interna, o problema fundamental o de enfrentar o pessimismo dosempresrios e reverter a queda dos investimentos que est provocando taxas dedesemprego recordes. Preocupado com uma elevao da taxa de inflao que tem-porria, decorrente da desvalorizao cambial, o governo insiste em continuar au-mentando a taxa de juros nominal. O prximo governo, assim que recupere ocrdito internacional, dever comear a reduzir a taxa de juros de forma determi-

    28 Ver Williamson (2002).

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    nada. No documento Bresser-Pereira e Nakano (2002a) demonstramos que a taxade juros bsica paga pelo Banco Central, ao contrrio do que se afirmava, no altssima devido classificao de risco do Brasil. Essa elevao explicada por umconservadorismo monetrio excessivo praticado h mais de dez anos pelo Ban-co Central. Muitos pases, com classificaes de risco iguais ou piores do que a doBrasil, apresentam, consistentemente taxas de juros bsicas duas a trs vezes me-nores. Entendamos, no incio de 2002, que a reduo da taxa de juros para cercada metade do nvel atual deveria ser adotada no prximo governo, dentro de umquadro de mudana de regime de poltica econmica, para, assim, se poder reto-mar o desenvolvimento. Dada, porm, a nova crise de confiana externa e recessointerna, que ameaam a solvabilidade das empresas, o governo Fernando HenriqueCardoso deveria comear imediatamente a baixar a taxa de juros.

    A alternativa ortodoxa, entretanto, continuou a ser praticada pelo BancoCentral at o final do governo Cardoso. Ao invs de baixar ou manter o BancoCentral continuou a aumentar a taxa de juros, para tentar reduzir o cmbio e ainflao. O prprio FMI pressionou o governo brasileiro nesse sentido quando daassinatura do ltimo acordo. Isto seria razovel caso a crise de balano de paga-mentos fosse resultado de excesso de demanda. No . resultado de excesso dedvida e da existncia de dficit em conta corrente ainda muito alto, embora comtendncia baixa. Elevar a taxa de juros em uma situao desse tipo foi o que feza Nova Zelndia, em 1997, como resposta crise dos pases asiticos que se refle-tia fortemente naquele pas. O resultado foi desastroso, levando inclusive o parti-do do governo a perder as eleies seguintes. A Austrlia, enfrentando o mesmoproblema, fez o oposto reduziu a taxa de juros e estimulou a economia voltan-do-se para o mercado externo. Foi um grande xito e o governo reelegeu-se.

    A diferena daqueles pases para o Brasil que suas economias no eram tofrgeis internacionalmente. Mas isto no significa que devamos, diante da crise debalano de pagamentos, nos amedrontar. Ao contrrio, os perigos que enfrentamosso maiores, exigindo maior determinao e coragem da nossa parte. O essencial,agora, fortalecer as empresas e os bancos nacionais. Estes esto slidos graas competente reestruturao realizada atravs do PROER e boa qualidade da suaadministrao, mas no h solidez que resista crise externa acoplada interna.29

    Ao mesmo tempo, o novo governo precisa aprofundar seu ajuste fiscal. Damesma forma que certa ortodoxia incompetente certamente propor elevar juros,outra heterodoxia igualmente incompetente propor gastar mais para aumentara demanda. Seria um erro igualmente grave. Quando o FMI assinou novo acordocom o Brasil, em agosto de 2002, contentou-se com um supervit primrio de 3,75por cento. Naquele momento vrios economistas e homens pblicos brasileiros la-

    29 O PROER, embora muito criticado pela oposio porque obviamente teve um custo, foi um progra-ma competente do Banco Central que logrou sanear o sistema financeiro brasileiro em 1996. Os bancosde varejo insolventes foram reestruturados, e os depsitos bancrios, preservados. Em compensao, osacionistas dos bancos reestruturados perderam seu controle e sua propriedade (dado que o patrimniolquido dos bancos havia se tornado negativo).

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    mentaram a dureza do FMI, que impediria o desenvolvimento do Brasil. Estetipo de keynesianismo equivocado no honra o grande economista ingls. apenassua traduo vulgar, populista.30

    Keynes defendia, sem dvida, uma poltica fiscal ativa quando o pas estivesseentrando em uma recesso. Hoje, este tipo de poltica universalmente aceito, ape-sar de toda a onda neoclssica contra o pensamento de Keynes. Entretanto, Keynessempre defendeu que se o pas partia de uma situao de equilbrio fiscal, deveriavoltar, imediatamente aps a adoo da poltica fiscal ativa, ao equilbrio fiscal tem-porariamente perdido. Para ele era inadmissvel um dficit pblico crnico. Almdisso, Keynes supunha que a recesso, e a conseqente tendncia deflao, resul-tavam de uma propenso a investir provisoriamente rebaixada devido inseguran-a quanto ao futuro dos investidores em ativos reais ou dos consumidores.

    Depois de Keynes, uma segunda coisa ficou clara em relao ao dficit pbli-co, demanda agregada, e inflao. Esta pode ocorrer em situao de insuficin-cia crnica de demanda e de dficit pblico tambm crnico. Nesses casos, a baixapropenso a investir dos empresrios conseqncia do dficit pblico e da infla-o que levam os produtores a formar perspectivas negativas em relao ao futuro.Ora, nestas circunstncias a melhor poltica de estmulo demanda agregada no aumentar o gasto fiscal mas diminu-lo. Nestas circunstncias, s uma poltica dessanatureza ser capaz de restabelecer a confiana dos empresrios e de lev-los a re-tomar os investimentos, porque a expectativa (racional) dos agentes econmicos a de que a continuidade do dficit pblico levar mais cedo ou mais tarde crisefiscal e financeira. O mesmo raciocnio se aplica para os investidores e credoresinternacionais. Considerando-se estas expectativas, seria adequado que o novogoverno, enquanto estivesse providenciando a baixa gradual dos juros, procurasseaumentar o supervit primrio para 5% do PIB. Sei que no fcil nem agradvel,mas jamais recuperaremos o crdito externo e a confiana dos empresrios inter-nos se afrouxarmos a poltica fiscal. Pelo contrrio, precisamos endurec-la.

    O compromisso informal com uma taxa de cmbio real igual ou um poucosuperior a R$ 3,00, a baixa gradual mas firme da taxa de juros e o aprofundamentodo ajuste fiscal mantero a economia no prximo ano desaquecida, crescendo apro-ximadamente mesma taxa deste ano (0 por cento de crescimento da renda porhabitante), mas, em compensao, poderemos esperar, dentro de um prazo razo-vel, a volta do crdito externo e da confiana interna.

    Mais do que isto, tornar-se- possvel, afinal, que o pas cresa sem o limite darestrio externa. Ou seja, dada a taxa de cmbio real mais alta, ser possvelque aumente o PIB sem que se produza um dficit em conta corrente que obrigueas autoridades monetrias a restringir o crescimento. No passado, usava-se a ex-presso restrio externa para significar a falta de acesso aos mercados financeirosinternacionais. Note-se, portanto, que estou usando essa expresso em um sentidoquase oposto. Foi o Segundo Consenso de Washington, e portanto, a falta de res-

    30 Ver Bresser-Pereira e DallAcqua (1991).

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    trio nesse sentido que nos levou crise atual. Dados os ndices elevados de endi-vidamento da economia brasileira, esta s voltar a crescer de forma sustentada,sem restrio externa, se a sua taxa de cmbio for a de equilbrio da conta corrente.

    CONCLUSO

    O governo Fernando Henrique Cardoso termina em um quadro de crise debalano de pagamentos. O presidente foi extremamente bem-sucedido quando, comoministro da Fazenda, liderou o Plano Real em 1994, e estabilizou os preos. A po-ltica que sua equipe econmica adotou nos anos seguintes, porm, ao invs de com-pletar a estabilizao macroeconmica, levou-a a deteriorar-se. A razo imediatadeste mau resultado foi o governo ter estabelecido como sua principal agenda eco-nmica a garantia da estabilidade de preos, ao invs de compreender que este ob-jetivo estava razoavelmente garantido, e tratar de priorizar o equilbrio das contasexternas.

    Os primeiros quatro anos de governo terminaram em crise cambial seja por-que o ajustamento fiscal insatisfatrio e as altas taxas de juros impediram o equil-brio fiscal, seja porque a taxa de cmbio sobrevalorizada levou a grandes dficitsem conta corrente, e o grande aumento da dvida externa e do passivo total lquidodo pas. O segundo perodo do governo foi inaugurado com uma corajosa e bem-sucedida flutuao do real, mas terminou igualmente em crise de balano de paga-mentos. Em seguida flutuao do cmbio a taxa de juros, que havia sido elevadano momento da desvalorizao, foi sendo reduzida pelo Banco Central, enquantoas metas fiscais eram atingidas graas principalmente ao aumento dos impostos. Ataxa de juros bsica, entretanto, mantinha-se em nvel muito superior ao que justi-ficariam as classificaes de risco do Brasil. No obstante, quando, no incio de 2001,diante do agravamento da crise da Argentina, e do fato de a economia brasileiradar modestos sinais de aquecimento, a taxa de cmbio subiu para prximo de R$3,00, o Banco Central cometeu o erro de novamente priorizar o combate infla-