"o fogo e as cinzas" & "amor agreste" - manuel da fonseca

5/16/2018 "O Fogo e as Cinzas" & "Amor Agreste" - Manuel da Fonseca

Mestre Poupa bombeiro, Andre Juliano e eu formavamosuma trindade falhada.Positivamente, tres velhos falhados e tontos.

Ha rnomentos em que vej0 isto com uma grande c1areza.Mas de nada me vale. Os factos miudos que me estragaram avida pegam de novo em mim e arrastam-me. Desviam-me cadavez mais de toda a gente e isolam-me numa apatia da qual naotenho forcas para escapar-me. Serei acaso um cobarde? Talvez.Ao certo, apenas sei que, volta nao volta, Antoninha das Doresme vern a memoria com uma nitidez atroz. Aparece-me, naorecatada e seria como ela sempre foi, mas em fralda de camisa.Sim, senhor; no meio da rua, ern fralda de camisa. E deitadanos braces do grandalhao do Chico Bilo!

Foi isto que me estragou trinta anos de vida.Ja a magoa que consumia mestre Poupa nao era de ordem amorosa. Lamentava a toda a hora quetivessem acabado os incendios grandes e devastadores, como havia antigamente. Vamos la a perceber

tal coisa! Podera acaso ser este 0 drama de urn chefe de bombeiros? Pois era. Quanto a Andre Julianoas razoes do seu desgosto toda a vila as sabe. Com cinquenta anos, e 0 pai, homem rico, ainda the naoconsentia mandasse tio que viria a ser seu, e apenas lhe dava vinte e cinco tostoes por dia.

Vinte e cinco tost6es!Enfim, eramos os tres inseparaveis, cada lUll roendo 0seu osso.Hoje, praticamente, so resto eu. Mestre Poupa morreu num incendio; lUll fogo dos bons, como ele

gostava. E Andre Juliano jaz, a espera da morte, no fundo de uma cadeia.No entanto, estao tao presentes na minha memoria que a todo 0 momento me parece natural ir

encontra-los, ao voltar duma esquina. E posso, sem 0minimo esforco, engendrar uma conversa. Sei eoico as suas respostas as minhas palavras, vejo as maneiras peculiares de mexerem os labios, desorrirem com tristeza, ou de ficarem tacitumos por largos espacos, De tal modo ainda fazem parte daminha vida que, todos os dias, mal acabo de almocar, saio de casa direitinho ao Cafe onde.costumavamos encontrar-nos. Hoje aconteceu atardar-me, interessado na leitura do jomaL Quandodei por mim e olhei para 0 relogio, ergui-me num salto, e 1:'1vim eu cheio de pressa pelas mas fora.Cheio de pressa, como se eles estivessem a minha espera ...

Mas, como sempre sucede, ao entrar, 0 entusiasmo arrefeceu e fui sentar-me, desconfiado, namesa do canto. Como sempre, pus-me a pensar por que seriam aquelas pressas. Para que faco eu istotodos os dias?- Vai 0 cafezinho do costume, senhor Portela?

Surpreendido, encaro 0 criado. E grito-lhe, sem querer, com a voz transtomada:- Han?l. ..- mas, logo, as palavras me ocorrem, submissas - Pois ... 0 cafezinho do costume ...Passava aqui todas as tardes com Andre Juliano e mestre Poupa bombeiro. Agora, sozinho, malo

Maneta poe sobre 0 marmore sujo a chavena fumegante e se afasta, eu comeco com as maniganciashabituais para matar 0 tempo. Demoro 0 cafe, adocando-o com pitadas, colher a colher; bebo-o apequenos goles. Isto da-me a volta de quinze minutos. De soslaio, lanco uma mirada pelos gruposque falam de mesa para mesa. Passeio 0 olhar pelo grande espelho suspenso da parede, pelas moscasque volteiam em redor dos nojentos cemiterios caidos do teto, em espiraL Belo, digo eu de mimpara mim, ja hi se foi lUll quarto de hora ... .o Fogo e as Cinzas Pagina 1


Segue-se 0 cigarro, muito embora 0 medico me aconselhe a nao furnar. Quero hi saber! Ai unsdois minutos lucro eu enquanto meta as maos pelos bolsos a procura das mortalhas, da onca e doisqueiro.

Coloco tudo isto em cima da mesa segundo uma ordem: 0 livro das mortalhas, a esquerda; aomeio, a onca; e 0 isqueiro, a direita, Despego a mortalha, dobro-lhe uma estreita tira no sentido longi-tudinal e rasgo-a, pois gosto do cigarro delgado. Abro a onca com uns vagares ronceiros e caleulosobre a palma da mao a quanti dade de tabaco precisa; cato entre os fios as impurezas, e so entao 0comeco a enrolar. Guardo as mortal has e a onca, pego no isqueiro e raspo lurne. Outros quinzeminutos!

Estas e outras coisas acarretarn-me a farna de ter 0 miolo avariado. Eu sei. Ate ha quem se ponhaa seguir as minhas manobras e sorria.

Que querem? Estou aqui, paguei 0 meu cafe, faco 0 que me apetece!E, de tronco direito, sopro para longe as primeiras fumacas. Mas ninguem se importa com estes

ares de desafio. Aos poucos, a cabeca vai-me tombando entre os ombros vergados pela vida. Os meusolhos, nevoentos, voltam-se para 0passado.o passado. Do fundo do tempo, aparecem pedacos de recordacoes. Demoram-se urn instante,doem-me suavemente e somem-se, num tropel, da memoria cansada. Caio numa complicada malhade coisas vagas e sem nexo. Para ali fico dobrado num sonolento quebranto. De subito, estremeco: lavern Antoninha das Dores semi-nua! La vern ela nos bravos do Chico Bil6 tardado de bombeiro!

Apavorado, ergo a cabeca e olho em roda. Nao, ninguem pode descobrir 0 que estou pensando. E,impune, revejo gulosamente a imagem da minha noiva em fraIda de camisa, As fontes vao-se-meperlando de urn suor gelado; amarfanha-me a raiva de nao poder voltar atras, mudar 0 tempo, erecomecar a vida. Se fosse possivel! Que me importava a mim 0 que aconteceul. .. Poltrao! Porquenao casei eu com Antoninha das Dores?

Enrolo novo cigarro. Mas, agora, com a pressa, caem-me pedacos de tabaco dos dedos trernulos.Firo lurne e sorvo urna ansiada fumaca. 0 espelho, em frente, mostra-me 0meu carao esverdinhadode velho, Vejo-me, de queixo caido, a apertar as maos uma na outra ate os ossos dos dedos estalarem.Poltrao. E isso: urn cobarde. Sempre 0 fui, e s6 a presenca dos meus amigos me ajudava a suportarmelhor a imagem tao odiada e tao querida de Antoninha das Dores.

Eu chegava sempre primeiro ao Cafe. Depois, mestre Poupa. Mal encetavamos a conversa,viamos atraves do vidro da montra, 0 corpo enorrne de Andre Juliana sair de casa e iniciar lentamentea custosa subida. Com alvoroco, eu dizia:

- La vern 0Andre!Nunca pas sou uma tarde sem que 0 dissesse. As vezes, pensava: Amanha, nao digo aquilo. Pois

se mestre Poupa 0 ve ao mesmo tempo que eu ... Ora bern; ao outro dia, a porta abria-se, 0 corpopachorrento saia para a ma, e era fatal a minha inquieta alegria:

- La vern 0Andrel..Agora mesmo ia jurar que 0 estou aver despegar-se com moleza dos umbrais. Mas, em realidade,

apenas vejo para la do vidro, ao fundo da rua, a casa destruida pelo fogo. Tudo tal qual como no fimdo incendio: a parede negra, sem portas nem janelas ...

Foi ai que mestre Poupa bombeiro morreu, lutando contra as chamas. Andre Juliano, esse aindaesta vivo; mas, em Lisboa, atras das grades da Penitenciaria,

DOli voltas na cadeira, torco-me, enterro 0 chapeu pela cabeca abaixo. Tudo ern vao. Antoninhadas Dores continua na minha frente, deitada nos bracos do Chico Bi16. Saem-Ihe da camisa as pernas,

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o ventre e urn pedaco do seio; de volta, 0 povo arregala os olhos. Vejo-os a todos, rosto a rosto, coma facilidade de quem esta olhando vagarosamente uma fotografia. Como os odeio!

- Depressa, Maneta, outro cafe!Espero, esfregando as maos, E, ao esvazia-lo, de queixo erguido, vejo no espelho 0meu carao de

tal forma espantado que me parece ter acabado de beber veneno. Coberto de suor, la YOU aos poucosserenando.

Andre Juliano, meu amigo de infancia, como nos mudamos ... Sim, senhor, como mudamos. Naescola eramos temidos. Passavamos as tardes de castigo e, urn dia, armamos urna desordemmedonha. Partimos carteiras, 0 quadro grande, e saimos cheios de trofeus: pedacos de bibes rasgados,os peitos das camisolas salpicados de medalhas de tinta. Fomos expulsos. Acabamos por aprender asletras, os numeros e urna fantastica Historia de Portugal com 0 bebedola do Jaime Ursulino, que nosia matando a varada e a quem, por fim, esmurramos de sociedade. Nossos pais considerarammaduramente no caso, e concluiram que estavamos quites com a cultura. Foi urn alfvio.o largo, e mais tarde os bailes desordeiros do campo e a noite sem lei das ruas da vila passaram aser 0 nosso mundo. Urn mundo cheio de sustos, mas mais leal que as aritmeticas do Ursulino e asfalinhas choronas dos mocos da escola.

Veio urn dia, e vimo-nos obrigados a mudar de rumo. Quisemos acertar 0 passo, segundo asregras, e comecaram as topadas, escorregadelas, desvios. No dia a dia enviusado e traicoeiro da vila,onde muitos dos choramingas da escola ganhavam dinheiro grosso e honestas reputacoes, nos caimosde desilusao em desilusao.

Nao sei como isto foi. Mas, anos depois, vencido, eu emagrecera; secara, nodoso e cheio derugas, como 0 tronco carcomido de urn sobreiro. Pelo contrario, derrotado na luta ingloria com 0forreta do pai, Andre Juliano engordou, engordou muito. Apesar disso, quando as vezes 0 olhava,com aquele olhar distraido mas que, de subito, parece atingir a verdade que ha nos homens e nascoisas, eu julgava estar aver-me diante de urn espelho concave. Sim, senhor, tal qual como eu: todasas raivas, todos os ciumes, as invejas, as fracassos - mas inchado e balofo.Nestes momentos, 0 odio contraia-me as feicoes, e largava urn palavrao, Fitava-o com 0 olharendurecido:

- Estamos tramados, Andre, estamos tramados!Nunca consegui saber se ele adivinhava os meus pensamentos; 0 certo, e que me respondia de

beico caido, como num eco:- Tramados, amigo, tramados ...Olho 0 relogio. Quatro horas. Doidas, as moscas tecem urn emaranhado de circulos em volta dos

cemiterios, Ponho-me a observa-las, e faco calculos sobre qual dos papeis cobertos de melacopeganhento atraira a prime ira. Por fim, cansado, caio nurna modorra. Um murmurio distante verndevagar, engrossa, ate soar nitidamente dentro de mim. E a voz autoritaria de mestre Poupabombeiro. Vejo-o e oico-o como se realmente e1e estivesse sentado a minha mesa.

- Fogo?! - exclama a voz. E, logo, desiludida -ja nao ha incendios ...Era 0 seu assunto preferido. Mestre Poupa tinha artes de ir desviando qualquer conversa ate

aparecer com naturalidade 0 caso de urn fogo.- Hoje em dia, ja nao ha incendios - comentava ele - Vejam voces: toea 0 sino da igreja; a auto-

bomba desce do quartel, puxa-se a mangueira e, pronto, esta 0 fogo apagado. Fogo? .. Qual fogo, senem deixamos atear nada!

- L a isso e verdade - concordava eu, inquieto. Vinha-me a ideia Antoninha das Dores e, muitoembora preferisse calar-me, era certo acrescentar - E isso mesmo ... Ja nao ha incendios ...o Fogo e as Cinzas Pagina 3


Como que saindo da nevoa do fumo do tabaco que enche 0 Cafe, Andre Juliano surge do outrolado da mesa. Emola urn cigarro entre os dedos enonnes, e os olhos, caidos, desaparecem-lhe sob agordura das palpebras. Abana a cabeca, suspirando:

- Ja nao ha nada ... Ate da doenca uma vida destasl, ..- Ora la disse voce uma verdade. Isto, hoje, ate da doenca,Porque seria que eu me fiz amigo de mestre Poupa? Sempre que me interrogo a este respeito,

ocorrem-me varias razoes capazes de justificar 0 facto. Mas, a todas abandono e acabo por concluirque foi obra do acaso.Por esse tempo, a vila andava acesa em discussoes originadas pela accao dos bombeiros

voluntaries As coisas nao podem continuar assiml , dizia-se alto e em born som. As coisas, eraisto: fogo que houvesse, os prejuizos maiores nao os faziam as chamas ruas os bombeirosirnprovisados, na ansia de tudo molharem e de tudo salvarem. Abriam caminho a machadada,arrombavam tabiques, partiam mobilias e loicas, sem do nem piedade. Estragos do lume apenas urnaque outra chamine, ou urn carunchoso soalho.

Enfim, chegaram a tais tennos que urn dia, ao declarar-se incendio na chamine do Elias Tarro,como alguem corresse a puxar 0 badalo da igreja velha, 0 homem postou-se entre os umbrais da portade espingarda em riste:

- Quem entrar, morre!E impediu que os bombeiros lhe assaltassem a casa, enquanto, com baldes de agua, pelo quintal, a

familia apagava as labaredas.Choveram arneacas e insultos, de parte a parte. A rna cara, os bombeiros abandonaram a pre sa. E,

nao era passada uma semana, quando 0 Elias Tarro apareceu com a cabeca cheia de pensos eataduras. Fora 0 Chico Bilo que 0 esmurrara, apos breve discussao.

Ao pagar a conta na farmacia do Duraes onde andara a tratar-se, Elias Tarro deu gracas peloprec;o em que the ficara 0 incendio,

- Va Ia... Antes isto que os malandros me terem invadido a casa.Mas a vila, aterrada, mudou a direccao dos bombeiros voluntaries. E, por cartas, ajustou com urntecnico de Lisboa a chefia da mal-afamada corporacao. Foi mestre Poupa quem apareceu.

Dias depois, ja eu passava horas a ouvi-Io. Ravia sido urn incendio que me arruinara a vida, epara ele os incendios, que 0 tinham enchido de gloria, eram agora a causa da sua amargura. 0material modemo, as muitas bocas de agua espalhadas pelas ruas e a tecnica moderna tomavam,conforme nos dizia, a extincao facil e rapida, 0 que era impossivel antigamente.

- S6 queria que voces assistissem ao incendio da rua de Madalena, la em Lisboa. Isso e que foiurn fogo born! - recordava ele, animado e feliz - Morreram dezenas de pessoas. As mulheresatiravam-se la de cima com as criancas ao colo e esborrachavam-se contra a calcada. E a gente, entreas chamas, todos chamuscados! As escadas partiam-se, nao havia agua: va de machadadas, va baldesde areia. Vi colegas com a farda a arder; salvei criancas, mulheres, e cai ferido e sem forcas, FUlparar ao hospital com uma clavicula fracturada e urn brace queimado. Mas apagamos aquilo,caramba! E eu ganhei urna medalha.

Aqui, mestre Poupa comecava a entristecer. Contava ainda outros casos: morria gente, elesalvava, apagava e era, de novo, condecorado - tinha 0 peito cheio de medalhas. Abria urn desgostososilencio, urn largo intervalo de anos.

- E agora? Agora, ja nao SiIVOpara nada; acabaram-se os bons fogosl. ..



o cigarro de Andre Juliano apagava-se sem que e1e desse por isso. Estou certo que nem ouvirauma unica palavra de mestre Poupa bombeiro, muito embora se lhe escapasse a costumada fraseagoniada e lenta:

- Estamos tramados ...Enrugava a venta solitaria no meio da face enorme; 0 beico decaia-lhe para a papada e, sem

esperar que 0assunto mudasse, comecava- La andei ... la andei toda a manha as voltas com ele. Ja nem sei que faca a minha vida. Corn arespiracao diflcil que the engorgitava as carnes e punha nos olhos 0 lucilar do terror, a voz escorria-

lhe, pastosa:- Esta cada vez pior, 0 meu pai. ..o pai. Urn miseravel dum avarento que, ultimamente, nem todos os dias dava ao filho os tristes

vinte e cinco tostoes do costume! Andre Juliano nem se podia mexer para lado nenhum. De casa parao Cafe, do Cafe para casa, e mais nada. Aquela penuria tolhia-o. Muitas modas haviam passadodepois que 0 Jeronimo alfaiate lhe talhara, ern rna fazenda, 0 unico fato que tinha. Estava a cair aospedacos, e ele supunha tapar aquela miseria trazendo sobre os ombros, mesmo no verao, a velhasamarra. A principio, admirei-me. Urn Sol de rachar, e Andre Juliano atravessando a rua num lago desuor, sob a samarra.

- Sei Ia - desculpou-se ele, de olhos baixos - Isto, as vezes, ate pode chover...Claro que era eu quem the pagava os cafes e, ainda por cima, emprestava dinheiro. Eu, este reles

amanuense reformado, a fazer emprestimos ao filho de urn homem rico! Pensava muito nisto.Parecendo que nao, dez tostoes hoje, cinco mil reis amanha, ao fim de anos perfazem uma somamedonha. Segundo as minhas contas, ia ja muito alem de quatro mil escudos. Quase cinco contos!Chegava a enfurecer-me:

- A culpa e tua! - gritava-lhe eu - Se soubesses impor-te, se soubesses encaminhar as coisas, jatinhas convencido 0 teu pai que isso nao pode continuar assim. E uma vergonha para nos todos.

I ' Principalrnente para mim, que sou teu amigo, bolas!Andre Juliano averrnelhava de panico:- Oh, homem, pois se nao se passa urn dia sem que eu batalhe com ele! ... Esta manha, ate nos

iamos pegando. Pos-se a berrar, como de costume: Tern tempo de gastar tudo quando eu morrerl. Agora, enquanto eu for vivo, nem mais urn tostaol .

Desolado, baixava os 01h05para 0 marmore da mesa:- Quando morrer ... Mas, quando e que 0 raio do velho morre, nao me dirac?'Calavarno-nos. E, por momentos, eu e mestre Poupa desejavamos que Andre Juliano, voltasse a

casa, fosse encontrar 0 pai na agonia. Mas, logo, para desviar este infeliz pensamento, ao mudar aconversa, eu caia noutro ainda mais penoso:

- Pois e - murmurava, olhando para mestre Poupa - Os incendios, agora, sao urn nada comparadoscom os de outrora.

E sentia-me descorar.Vai fazer trinta anos que a coisa aconteceu. Uma tarde, a arrecadacao da lenha, na casa de meu

padrinho, comeca a arder. No primeiro andar, apenas ern carnisa, sobre a cama, Antoninha das Doresdorrnia a sesta. A familia esquece-a, 0 sai para a rua enquanto 0 sino da igreja toea a rebate. Osvoluntaries largam 0 trabalho, vao a easa, vestem a farda e poem, com grandes vagares, 0 eapaeeteamarelo. Junta-se gente. A bomba, puxada a quatro homens, de see do alto de vila, e corneca abatalha.

Sob 0 olhar apavorado de meu padrinho, os bombeiros partem as janelas a machadada e atiramo Fogo e as Cinzas Pagina 5


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com os moveis para a rua.Eu chego a correr no momento preciso em que 0 Chico Bilo aparece a porta, transportando nos

bravos a minha noiva, que desmaiara ao subito fragor dos vidros e dos estilhacados, A camisa subira--lhe para a barriga e estava nua sob 0 reluzente capacete, no meio dos destrocos da mobilia.

Todos se aproximaram para ver de perto.Eu fiquei hirto, vazio, e de bravos abertos, como urn espantalho. E, ainda hoje, ainda agora, neste

mornento, me parece que la estou a olhar os homens, as mulheres, os rapazes extasiados em volta dascoxas, do ventre e do seio de Antoninha das Dores, minha noiva desgracadalA vila conheceu tudo isso de vista. Tudo.Do fogo ja ninguem fala, pois nao resistiu a seis baldes de agua. Mas, do resto ainda se record am

e contam, mesmo que nao venha a proposito. Eu sei.E poderia eu ter casado com Antoninha, depois de todos a observarem de barriga ao leu? Ainda

agora coro ao pensar que estive quase, quase a faze-Io.Tambem e certo que noutras ocasioes me amargura nao ter casado. Mudo de instante a instante.

Velho casmurro. Eu odiava e adorava 0 fogo, tal com 0mestre Poupa. S6 Andre Juliano se aborrecia.- Voces nao falam de outra coisa - repontava - Estao sempre no mesmo.Mas, chegou urn dia que it forca de tanto ouvir, ganhou interesse. Como eu, eIe fazia perguntas,

perguntas inquietas, seguidas de Iongos silencios. E, entre nos dois, mestre Poupa bombeiropontificava:

- Urn fogo comeca sempre sem que ninguem repare. E esta a primeira questao a atender. Portanto,quando notam, ja a coisa esta seria ...

E vinham exemplos: casas reduzidas a cinzas, gente morta, medalhas. E eu, amare1o, com aimagem de minha noiva diante dos olhos. Certa tarde, Andre Juliano levantou inesperadamente amao quadrada, e pediu, por tudo, que mudassemos de assunto. Foi uma admiracao.

- Oh, homem - ofendeu-se mestre Poupa - pois voce ja estava a gostar disto e, agora, sai-se-mecom essa!De olhos aflitos, Andre Juliano levantou 0 corpanzil redondo:

- A gostar, eu?! ...E como que desamparado, deixou-se cair sobre a cadeira.Surpreso, entrei a interroga-lo, Andre Juliano, de cabeca caida sobre a papada, apenas respondia:- Nada. Isto nao foi nada.Esteve dois dias sem aparecer; julgamo-lo doente. S6 quando voltou, soubemos que nao. Tive af

umas voltas a dar. .., informou. E passamos ao nosso assunto de todas as horas.Noites depois, acordei ao rebate do sino da igreja velha. Vesti-me rapidarnente, E fogo!, dizia

eu. E, ansiado de amargo prazer, corri para a rua, como sempre faco quando ha urn incendio. "Onde,onde sera?., indagava a todos que apareciam. E la fomos correndo; eu na frente de todos, pois nessasocasioes nao sei que forcas me renovam que me sinto jovem e agil. Cortei pela rua Direita, passei apraca, e desci para 0 lado do clarao.

Era na casa de Andre Juliano!As chamas saiam pelas janelas e pelo telhado fazendo dancar grandes sombras vermelhas sobre

os outros predios. As traves estalavam; ouviu-se um baque surdo e, da esquina da empena, soltou-seurn turbilhao de faiscas.

Procurei mestre Poupa entre os bombeiros. La estava ele. Parecia mais pequenino e mais escurodebaixo do enorme capacete amarelo.

- Belo fogo! - gritei-lhe eu.o Fogo e as Cinzas Pagina 6


S6 entao notei como ele tinha 0 rosto transtornado. Apitava sem energia, dava ordens gaguejadas,vinha-se desviando das chamas. Atravessei a rua para nao ver aquele corpo miudo e avelhentado atremer de susto. Mestre Poupa bombeiro tinha, afinal, medo do fogo! Ao chegar ao passeio do outrolado, descobri, no meio de urn grupo, a cara engelhada do Chico Bi16. Olhamo-nos com 0 mesmopensamento.

- E , sim, senhor - disse-me ele - Mestre Poupa esta com medo do fogo ... Coitado, ja nao servepara estas coisas. Deu uns passos em frente apoiado nas muletas, pois que 0 reumatismo e a velhicenao 0 deixam caminhar de outro modo. E, a olhar para as chamas, rnurmurou:

- Ah, que se fosse no meu tempo, ja estava tudo apagadol. ..No tempo dele! Afastei-me com a imagem de Antoninha das Dores a dancar-rne nos olhos

marejados. De repente, vi a cara desmaiada de Andre Juliano. Pus-Ihe a mao no ornbro e, como meacudisse uma certa ideia, disse-lhe:

- Deixa la, Ha incendios que desgracam urn homem para sempre, mas ha outros que salvam.Mas e1e nem me ouviu. Os queixos tremiam-lhe sobre a espessa papada, e cravava os olhos,

at6nitos, na casa incendiada. Recuei. Nesse momento, mestre Poupa passou-me pela frente. Decabeca erguida, pos-se a olhar com severidade para aquele rosto apavorado. E, lentamente, exclamou:

- Senhor Andre Julian l..;Pela primeira vez me ocorreu que 0 fogo irrompia por todos os lados da casa. Atemorizado, gritei- Andre! ...Andre Juliano dobrou-se, e escondeu a face nas maos papudas. Voltei-me:- Mestre Poupa, va salvar 0 velho! Corral Oica, eu sei que, se voce quiser, pode salva-lolMestre Poupa fitou-me, percebendo que eu me referia a todos os actos her6icos que the ouvira

narrar durante anos. Meteu-me do a sua expressao. Vi-o dar meia volta, atravessar a rua, edesaparecer entre 0 furno, pela porta da casa.

- Coragem, Andrel.;Ouvia-se 0 bater aspero dos jactos de agua contra 0 lume, Sobre as escadas, os bombeiroslutavam como podiam; outros andavam la por dentro. A espacos, apareciam silhuetas escuras arras

das janelas. Eu nunca tinha visto urn incendio assim.Houve urn afluir de gente; tres bombeiros saiam da porta transportando urna velha e estreita cama

de ferro. A roupa ardera quase completamente e, deitado ao comprido, via-se 0 corpo calcinado dopai de Andre Juliano.

A custo, aproximei-me.o velho tinha os pulsos e as pernas amarrados aos ferros. Estava hediondo. E ja eu, todo curvado,me preparava para afastar dali, quando dois outros bornbeiros apareceram. Traziam, agora, 0 corposem vida de rnestre Poupa. Entre os dedos enc1avinhados de uma das maos, viam-se ainda pedacos decorda que faltavam no leito.

Andei 0 resto da noite de rua em rua, como que embriagado. Hoje ja me pas sou mais a irnpressaoque tudo isso me causou. Somente ja nao consigo ir ver nenhum incendio, por rnais que a vontade mepuxe,

Nao faz maL Seja onde for, eu posso rever a minha desgraca.Sento-rne em qualquer parte - em casa ou, aqui, no Cafe - bebo a minha chicara, faco urn cigarro.

Logo comeco a apertar as maos ate os ossos estalarern. E Antoninha das Dores vern. Vern com 0corpo moreno e fresco de jovem, mal coberto pela brancura da carnisa. E assim fica horas diante dosmeus olhos rasos de agua.



Ultimamente, ja nao e Chico Bilo quem a traz nos bravos. E mestre Poupa bombeiro. A seu lado,esta Andre Juliano, meu amigo de infancia.

E e tudo isto 0 que eu leva da vida!. ..

Era meio-dia quando 0 Elias Carrusca chegou ao Monte deAlba Grande. A casa, de janelas e portas fechadas, pareceu-Ihedeserta; apenas 0 Maia, urn velho criado da herdade, atraidopelo tropear do cavalo, apareceu entre as ombreiras do largoportae da adega. Desmontou. E, de redea sobre 0 bravo, a passosduramente marcados no terreiro de chao batido, a sua alta epoderosa figura cresceu sobre 0 campones, Brusco, indagou:

- 0 filho do teu patrao?o Maia observou-Ihe atentamente 0 rosto demudado, onde abarb a de dias negrejava.

- Foram todos, ontem, para a vila ...- respondeu com vozapreensiva, Ienta. - Mas 0 patrao Antonio ainda ca volta.

- Hoje?- Sim, senhor.

Os olhos de Elias Carrusca, grandes e salientes, erraram, indecisos, pelo chao.- Hi algurna novidade? prosseguiu 0 velho Maia.Como nao obtivesse resposta, fingindo-se alheado, sacou da onca e do livro de mortalhas. Com

gestos vagarosos pos-se a enrolar 0 cigarro. Preparava-se para petiscar lume na acendalha de cordaoamarelo quando, erguendo a cabeca, semicerrou os olhos sob a grande aba do chapeu todo deformadopelo uso:

- Creio que e ele que at vern.Elias Carrusca voltou-se.Sobre 0 plaino batido pela luz crua do Sol, urn cavaleiro avancava para 0 monte. Ao chegar a

azinheira, solitaria naquele ponto cia herdade, meteu a galope. Inesperadamente, quase a entrada doterreiro, 0 animal tropecou e caiu sobre as patas, de focinho estendido. Destribado, 0 cavaleiro roloupelo chao fora.

Abrindo os bravos numa expectativa, 0 velho Maia deu dois passos em frente. Elias Carruscacontinuou imovel, como se nada tivesse acontecido.

Rapido, Antonio de Alba Grande ergueu-se. No rosto magro, ossudo, os olhos resplandeciam-lhenuma expressao feroz. Deu urn puxao as redeas e, atirando um pontape ao cavalo, obrigou-o alevantar-se. De pescoco esticado para 0 alto, sacudindo a cabeca, 0 animal recuava, coxeando. Comurn assobio modulado, 0 Alba Grande aquietou-o. Ajoelhou-se e, segurando-lhe a perna, dobrou-lharepetidas vezes pelo jarrete, tenteando.- Eu estava a espera disto! - exc1amou para 0Maia, que se aproximava. - Leva-o la!



Endireitou-se, caminhando para 0 terreiro. Era alto, de ombros largos. Tal como Elias Carrusca,vestia jaqueta justa, botas caneleiras. Da emocao da queda, os seus olhos, muito negros, aindarebrilhavam, irados.

- 0 estupor fez-me cair, hem!Mas ao atentar melhor no rosto de Elias Carrusca estacou, concentrando-se, como se

instintivamente deparasse com urn inimigo.- Que ha. ..?Elias Carnisca deixou que 0 velho Maia se afastasse com 0 cavalo. S6 entao respondeu:- Tenho que falar conti go - disse. - Vim aqui para falar contigo.Frente a frente, os dois homens encaravam-se de olhar fixo.- Ouve - recomecou pausadamente Elias Carrusca. - Tu namoras a minha irma; ja toda a gente 0

sabe ... Mas andas metido com a filha dos lavradores da Pedrosa, essa a que chamam a Zabela ...Como duas asas esgalhadas, os asperos sobrolhos do Alba Grande ergueram-se, agressivos:- Que tens tu com isso?- Nada, por enquanto ...- volveu Elias Carrusca. - Mas vieram contar-me que ela ia hoje a minha

casa para por tudo a limpo ... Agora, ouve-me bern: eu nao quero escandalos, Se tal acontecer, tensque entender- te comigo. S6 te queria dizer isto.

Deu urn passo, como que para afastar-se.- Espera urn poucol- exc1amou Ant6nio de Alba Grande. - Decerto nao vieste aqui com a intencao

de me meteres medo, como se faz aos garotos ...Elias Carrusca virou-se, De cabeca enterrada nos ombros salientes, aguardou.- Sabes bem que, quando e onde quiseres, eu nao sou homem que te volte a cara.- Sei - respondeu Elias Carrusca. - Como mais velho que tu, tambem sei que estes assuntos se nfio

resolvem por imposicao. S6 a ti compete resolve-los. Mas 0 que disse esta dito de uma vez por todas.- Entao, ouve-me tu agora.o Alba Grande avancou de braces arqueados:- Namoro a tua irma ha tun mes; a Zabela conheco-a ha muito rnais tempo. E yOU ser-te franco:

ainda nao sei de qual gosto rnais. Quando 0 souber, fico com essa.Elias Carrusca estrerneceu. De maxilares cerrados, so dai a pouco conseguiu articular, com voz

rouca:- Pois entao eseolhe depressa, Ant6nio de Alba Grande. Escolhe antes que seja tarde.De salto, subiu para 0 cavalo, e galopou pelo campo fora.Cabeca alta, olhos num desafio, 0Alba Grande, especado a beira do terreiro, ficou-se a observa-lo

com os cantos da boca arrepanhados num distante sorriso.Para hi do portae, rneio oeulto na sombra, 0 velho Maia espiava.Vagaroso, Ant6nio de Alba Grande voltou-se e entrou na cavalarica. Deu uma olhadela a perna

do cavalo, ja envolvida pelo jarrete num pano esbranquicado, e quedou-se, apreensivo.De face enrugada pela curiosidade, 0Maia nao se conteve:- Que foi que aconteceu ...?Como se s6 naquele instante tivesse dado pela sua presenca, 0Alba Grande fitou-o.- Ouve ca - disse -, 0 cavalo esta incapaz de andar?o velho encolheu os ombros, despeitado:- Agora? ... Nern da urn. passo: ja esfriou.- Bern. Nao ha outra coisa a fazer... Engata as rnulas ai no carro. Isso para ja,- Mas ... - interpos 0Maia - aonde vai 0 patrao Ant6nio?



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- Deixa-te de perguntas, hornern. Faz 0 que te digo.E, saindo da cavalarica, atravessou 0 terreiro.Entrou em casa. Foi ao quarto, tirou urn revolver da mesa-de-cabeceira e, depois de observar

miudamente 0 tambor, meteu-o no bolso da jaqueta.Quando voltou, 0 carro aguardava-o. Arras, 0 velho Maia, como homem que sabe do seu oficio,

amarrava criteriosamente nas pontas dos varais a golpelha, 0 largo saco de palma onde e costumetransportar a palha para as mulas. Antonio de Alba Grande subiu para 0 churriao. De pe, esticando asredeas, ergueu 0 chi cote e fustigou os animais. Aos solavancos, 0 carro deixava para tras uma nuvemde poeira.

Ap6s meia hora de marcha, parou num cruzamento, junto dum sobreiral. Era por ali que Zabelahavia de passar se fosse ao Monte da Carrusca. Meteu 0 carro debaixo da copa rala de urn enormesobreiro, de forma a que as muares ficassem menos expostas ao calor violento do Sol, e sentou-se nochao com as costas apoiadas ao tronco da arvore. Sempre atento ao caminho que entrava pelosobreiral, acendeu urn cigarro, impassivel e im6vel, de expressao parada, aguardando, sem que 0 seuespirito obstinado desse mostras de impaciencia ou 0 corpo de cansaco.

Aquela hora, na agreste solidao dos campos, sequer uma asa cruzava 0 ceu esbranquicado etremulo de lume. No entanto, pressentia-se vagamente 0 aparecer da tarde: a calma esmorecia urnpouco e a sombra dos troncos alongava-se pela terra gretada e poeirenta. A espacos, as mulassacudiam a cabeca, afastando as moscas, e as guiseiras retiniam, vibrantes, quebrando violentamenteo prof undo silencio,

De subito, Antonio de Alba Grande levantou-se; Zabela aparecera ao longe, por entre ossobreiros. Poi esconder-se atras do carro - e, mal a rapariga chegou ao cruzamento, saiu a cortar-Ihe 0passo:

- Aonde vais?Zabela fitou-o. Era ainda muito nova. Embora esguia, as ancas arqueavam-se-Ihe sob a sara

rodada, e 0 xaile, tracado, desenhava os seios erectos. Trazia na cabeca urn chapeu de homern; pOIbaixo, 0 lenco envolvia-lhe 0 rosto afogueado. Os olhos rasgados, negros, brilhavam intensamente.- A ti; que te importa?- Eu sei, Zabela.- Pois se sabes, deixa-me passar.- Nao. Eu nao quero que tu vas.- Como te enganas! ...Os labios carnudos de Zabela tremiam ao de leve. Na expressao, voluntariosa, transparecia urn

designio inabalavel. Respirou profundamente, soerguendo 0peito:- Hi-de ser hoje. Ou eu, ou ela.Afastou-se para 0 lado, e avancou. Ao sentir-se agarrada pelo bravo proCUIOUsafar-se num

movimento brusco; 0 chapeu caiu-Ihe para 0 chao. De queixo esticado sobre 0 ombro, olhos aguados,murmurou com a voz estrangulada:

- Nem que me mates!Entao, Antonio de Alba Grande sentiu que eram inuteis todos os seus esforcos; Zabe1a iria, de

qualquer modo, ao Monte da Carrusca. A ira toldou-Ihe 0 rosto. De novo, os cantos da boca se lheenrugaram, como num distante sorriso. Rapido, levantou-a ao ar e correu com ela para 0 carro. Meteua mao dentro da enorme golpelha amarrada aos varais, e tirou uma corda. Deitando a rapariga aochao, cornecou a atar-lhe os bravos e as pemas.

- Sou eu quem te vai levar - gritou. - Ficaras a saber que quem manda sou eu!o Fogo e as Cinzas Pagina 10


Tirou 0 lenco do bolso, enrolou-o numa estreita tira.- Sou eul- repetia, tornado de raiva. - Eu e que resolvo as coisas da minha vida! Eu!A forca, abriu a boca da rapariga; meteu-lhe a tira do lenco entre os dentes, e apertou-o com urn

no atras da nuca. Nos olhos escancarados de Zabel a lucilava um misto de espanto e de odio.Abrindo a vasta golpelha, Antonio de Alba Grande meteu la dentro a namorada. Foi apanhar-lhe

o chapeu, atirou-o para 0 fundo do carro, tapando-o com uma saca, e pos-se a caminho.Ao chegar ao Monte da Carrusca paroujunto do barranco. Saltou do carro e subiu a encosta.Malo reconheceram, dois criados foram-se chegando para 0 terreiro, Entre os umbrais da porta,

Adriana esperava-o, No fundo do corredor, ao lado de Elias Carrusca, apareceu a mae, gorda e baixa,toda vestida de negro.

- Vern dai comigo - intimou Antonio de Alba Grande. - Preciso de dizer-te uma coisa.Adriana desceu da soleira. Inquieta, olhava de soslaio para 0 rosto do Alba Grande como que a

estudar-lhe a expressao. Era de mediana estatura, olhos azuis, cabelos loiros e ondeados. De feicoesdelicadas, pele muito branca, as asas do nariz, fino e pequeno, moviam- se com um tique nervoso deanimal que fareja. E, embora tudo nela denotasse precaucao, os seus passos eram leves, graciosos. Aseu lado, 0 Alba Grande, muito alto, mexia-se com desenvoltura: a cada passo, os tacoes das botascaneleiras batiam contra 0 chao e as esporas tilintavam.A porta do monte, de onde a mae a espreitava, apareceu Elias Carrusca. Do terreiro, os doiscriados olhavam-no como se esperassem uma ordem. Elias Carrusca aquietou-os com urn aceno decabeca, Os homens recuaram para a sombra do terreiro, e ai ficararn, atentos.

Antonio de Alba Grande levou Adriana para junto de uma das rodas do carro, procurando que elaficasse de costas para onde a golpelha pendia, amarrada,- Venho falar-te de uma coisa que tu ja sabes - cornecou ele. - A minha pena e de nao ter sido eu 0

primeiro a contar-te, Mas, umas vezes por isto, outras por aquilo, nunca calhou. E, agora, 0 teu irmaofoi-me com uma conversa de que nada gostei.De olhos baixos, Adriana murrnurou com voz macia:- Nao te entendo, Antonio ...- Qual que! Estas facta de entender-mel - disse 0 Alba Grande, erguendo-Ihe 0 queixo. - Levanta

os olhos e olha-me de frente: quero que compreendas por inteiro 0 que te YOU dizer.Largou-Ihe 0 queixo, e recomecou:- E isto apenas: eu ainda nao sei se gosto mais da Zabela ou de ti. Ora como sou eu quem

escolhe, nao admito que ninguem se meta neste assunto.Adriana recuou, voltando a cabeca para 0 lado. Mas, contendo-se, ciciou com voz monocordica,

surda:- Tu atreves-te a comparar-me com essa ...essa do Monte da Pedrosa ...?A golpelha rnexeu-se com um rumor de palha. Adriana voltou-se desconfiada.- Nao procures ofender a quem nao conheces - disse pausadarnente 0Alba Grande. - Ela esta tao

pura como tu. Nada devo a nenhuma: sou livre de fazer 0 que quero.Adriana fitou-o, baixando urn pouco a cabeca, como que it escuta. Parecia presa de uma remota

desconfianca.- E vieste aqui apenas para me humilhares ...- Humilhar-te? - fez 0 Alba Grande, numa surpresa. - Nunca pela cabeca me passou tal coisa.

Vim so para saberes da minha boca 0 que se passa. Agora, you-me.Como se nao acreditasse na simplicidade daquelas palavras, Adriana, de rosto ensombrado,

aguardava ainda 0 que quer que fosse. Novamente Ihe chegou aos ouvidos 0 rumor da palha, logoo Fogo e as Cinzas Pagina 11


abafado pelo tilintar metalico das guizeiras. Deu a volta ao carro e olhou. Dentro da golpelha alguemse movia com dificuldade; por fora, notavam-se nitidamente as saliencias de umcorpo. E a remota desconfianca ganhava vulto aos olhos de Adriana. As narinas arfavam-lhenervosamente. Olhou para 0 namorado numa imperio sa e muda interrogacao.

Os labios grossos do Alba Grande distenderam-se, sorrindo. Todo 0 seu rosto, normalmente duro,se iluminou, cheio de ingenuidade e de franqueza:

- Nao tenhas receio: e uma cabrinha montesa que apanhei no caminho! Esta amarrada; nao te faradano, nem a ti nem aos teus!. ..A golpelha ondeou de uma ponta a outra. Por entre 0 rumor da palha, ouviu-se urn som

inarticulado, rouco. A face de Adriana contraiu-se, num assomo de raiva. Impotente, voltou-se, ecomecou a subir a encosta, muito devagar.

Antonio de Alba Grande subiu para 0 carro e tornou ao caminho por onde viera.Sentado junto da lanca, com as pernas bamboleantes, caidas para fora, acendia urn cigarro, ja

distante do Monte da Carrusca, quando ouviu 0 tropear de um cavalo. Sem se voltar, tirou 0 revolverdo bolso interior da jaqueta e entalou-o entre a camisa e 0 cos das calcas.

Ao chegar perto do carro, Elias Carrusca refreou 0 galope e apeou-se, correndo ainda uns passosao lade do cavalo:

- Que disseste a minha irma - gritou ele - que la ficou lavada em pranto, e nao ha quem lhearranque urna palavra?

Antonio de Alba Grande deixou-se escorregar para 0 chao; passou por detras da mula, eencostou-se ao taipaL Muito sossegadamente, respondeu:

- Isso e comigo e com ela. Se ficou a chorar, nao tern importancia: sao armfos de namorada ...Com urn movimento brusco, 0 irmao de Adriana recuou a mao para a algibeira atras das calcas. 0

Alba Grande ergueu urn pouco os bracos; as pontas da jaqueta afastaram-se, deixando ver 0 cabo dorevolver:

- Faz - como entenderes, Elias Carruscal - exclamou de dentes arreganhados. - Eu estou por tudo!De corpos imobilizados, rigidos, quedaram-se longamente, com os rostos contraidos pela atencao.E to do 0 sotumo silencio da planicie parecia arrastar-se plainos fora, deixando como que 0 eco deuma apavorada expectativa. Por fim, Elias Carrusca afastou a mao do bolso das calcas,

- 0 que te vale a ti sei eu! - disse, olhando de traves. - Anda a minha irma metida no caso,percebes? Mas toma cuidado que pode vir urn dia que eu esqueca tudo! - E ficou-se, inquieto, deolhos esbugalhados, perante a calma do Alba Grande. - 13 te podes ir - tornou. - Par que esperas?

- Par nada. Estou aqui porque quero.Elias Carrusca abanou a cabeca, torcendo 0 tronco sobre as pernas subitamente inseguras.

Desorientado, rodou nos calcanhares. Saltou para 0 cavalo e, de punhos cerrados, estendido sabre 0pescoco do animal, vibrou-lhe duas violentas esporadas, Tinha a ar de quem se afasta 0 maisdepressa que pode de modo a que nao 0 obriguem a praticar urn crime.

Quando Antonio de Alba Grande chegou ao cruzamento dos caminhos, pos-se em pe sobre acarro e olhou atentamente em roda.

A tarde ia em meio. Dentro do sobreiral fazia uma penumbra de troncos retorcidos, com asramos, nodosos e duros, apontando para 0 alto. Pela lomba das encostas reluziam pedregulhosnegros; de onde em onde, azinheiras desgarradas, de copa a banda, pareciam debrucar-se numaatitude de escuta. Urn passaro, rapido, riscou 0 ceu com um pia longo e triste. E logo a agrestesolidao se reconcentrou, mais pesada e carrancuda.



Antonio de Alba Grande, que tirara a namorada de dentro da golpeada, livrou-a da mordaca e dacorda que the tolhia os membros. Afastou-se urn pouco para 0 lado.

Atordoada, Zabela cambaleou, sem tino. Sentia 0peito oprimido por uma profunda angustia, umagrande vontade de chorar. Doiam-lhe as pemas e os braces, os olhos arrasavam-se-lhe de lagrimas, eurn fio de sangue escorria-lhe de urn canto da boca. Incerta, cheia de pedacitos de palha que se lhehaviam pegado ao vestido e aos cabelos, deu uns passos. Fechou 0 punho enfraquecido, e comecou aatirar murros ao acaso contra 0 tronco de Alba grande.

Exausta, tomada de desalento, agarrou-se-lhe a cintura. E, encostando a cabeca ao largo peito donamorado, 0 pranto reprimido correu, abundante, entrecortado de solucos,o homem envolveu-a nos braces.

- Zabela, parece-me que ja escolhi ... - murmurou ele. ~ Tu, ao menos, es da minha raya: tudoquanto sentes se espelha nos teus olhos!

E, baixando a cabeca, de labios estendidos, Antonio de Alba Grande procurou a boca da rapariga.


"o fogo e as cinzas" & "amor agreste" - manuel da fonseca

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e posso

o fogo e

onca e doisqueiro

e gritolhe

gente e isolam

manobras e sorria

e deitadanos braces

suavemente e somemse