o auto da morte e da vida
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
O AUTO DA MORTE E DA VIDA:
JOÃO CABRAL DE MELO NETO E A FORMA DRAMÁTICA
Maria José Acioly Paz de Moura
João Pessoa, PB Maio, 2006
MARIA JOSÉ ACIOLY PAZ DE MOURA
O AUTO DA MORTE E DA VIDA:
JOÃO CABRAL DE MELO NETO E A FORMA DRAMÁTICA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras (área de concentração: Literatura e Cultura).
Prof. Dr. Diógenes André Vieira Maciel - Orientador
João Pessoa, PB Maio, 2006
O AUTO DA MORTE E DA VIDA:
JOÃO CABRAL DE MELO NETO E A FORMA DRAMÁTICA
Por
MARIA JOSÉ ACIOLY PAZ DE MOURA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras (área de concentração: Literatura e Cultura), aprovada pela Banca Examinadora formada por:
Prof. Dr. Diógenes André Vieira Maciel/UFPB – Orientador
Profa. Dra. Valéria Andrade/UFPB – Examinadora
Profa. Dra. Márcia Tavares Silva/UFRN - Examinadora
Profa. Dra. Ana Cristina Marinho Lúcio/UFPB - Suplente
Profa. Dra. Íris Helena Guedes de Vasconcelos/UFCG - Suplente
Dedico este trabalho ao meu esposo, Francisco Alberto de Moura, in memoriam por tudo o que ele me proporcionou para que eu pudesse realizar este sonho. Impossibilitada, agora, de celebrar com ele esta realização pessoal e profissional, mas acreditando que, num outro plano, ele está feliz por mim.
AGRADECIMENTOS
A dissertação, apesar de ser encarada por muitos como uma tarefa solitária, é o
resultado de uma conjunção de forças e incentivos que não partem única e
exclusivamente do autor, mas de um conjunto de pessoas que acreditaram e vibraram a
cada passo e etapa vencida. É exatamente para estes indivíduos que nos apoiaram em
cada uma das fases transpostas que dirigimos os nossos agradecimentos. Em primeiro
lugar agradeço àquele que desde o inicio acreditou na potencialidade da minha
pesquisa, ainda quando se tratava de um simples projeto, o meu orientador e professor
Diógenes André Vieira Maciel, com quem aprendi muito, despertando em mim uma
grande admiração pelo seu empenho, dedicação e profissionalismo na condução das
atividades de orientação.
Outra instância importante, para a realização do presente trabalho, foi o
Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba, aqui
representado pela coordenadora Profa. Dra. Elisalva de Fátima Madruga Dantas e
demais professores que desempenham um papel importante, contribuindo de forma
efetiva para a produção e difusão do conhecimento científico. Ao CNPq, órgão de
fomento, responsável pela concessão de uma bolsa de pesquisa para o desenvolvimento
deste estudo. Outro órgão importante para o pleno desenvolvimento da minha pesquisa,
foi a Autarquia Educacional de Afogados da Ingazeira, por ter concedido o afastamento
de minhas atividades pedagógicas para que fosse possível a dedicação integral às
atividades de reflexão e pesquisa indispensáveis para a produção de um trabalho
científico.
A Meus pais, meus irmãos e toda a minha família (tios, tias, primos, primas,
sobrinhos e sobrinhas), pessoas importantes e que estiveram presentes nos momentos
mais difíceis dessa caminhada. Em especial às minhas quatro filhas: Milena,
Geovanna, Giselle, Marilia, e ao sobrinho Augusto César que estiveram ao meu lado
nos momentos de tristeza e felicidade. Essa dissertação tem um pouco de cada um
deles, pois confiaram e me incentivaram durante esta fase. Aos amigos e colegas de
6
trabalho, especialmente Maria de Fátima Oliveira, que comigo dividiram alegrias e
sofrimentos. Ao Pe. Macílio, pela amizade e apoio dispensados durante esses dois anos
de idas e vindas a João Pessoa. Enfim, agradeço a Deus, fonte inesgotável de fé, que
me deu a força e a confiança necessária para vencer os desafios que surgiram na minha
caminhada, especialmente, nesses dois anos de perdas e ganhos.
RESUMO Trata-se de uma análise-interpretação do texto dramático Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, que considera tanto os aspectos externos (sociológicos) quantos os internos (estruturais), a partir de uma perspectiva dialética, que considera esta dinâmica como essencial à percepção da integridade da obra. Estuda-se o caráter híbrido da obra, tanto no que diz respeito aos aspectos formais, principalmente no que diz respeito à questão dos gêneros literários, como também no que concerne aos usos do “popular” e do “erudito”, a partir de uma perspectiva “nacional-popular”, visto apresentar um afinamento com as visões de mundo e de vida das classes subalternas, conforme propõe o filósofo italiano Antonio Gramsci. No transcorrer da análise-interpretação, enfatiza-se a tessitura do auto, a partir da perspectiva histórica e daquela mais comumente destacada pela crítica de que há “um auto dentro do Auto”, constituído de elementos laicos e populares, somados a elementos de ordem litúrgica. Portanto, neste trabalho, propõe-se a leitura de dois autos dentro do Auto: um que trata das circunstâncias, personagens e espaços da retirada do Sertão para o Litoral, no qual a morte se apresenta em sua perspectiva trágica e simbólica (o auto da morte), e um outro circunscrito à esfera celebrativa dos autos natalinos tradicionais, em torno do nascimento de uma criança (o auto da vida). Palavras-chave: dramaturgia brasileira – literatura brasileira – auto – Morte e vida severina – João Cabral de Melo Neto – nacional-popular
ABSTRACT The present research intends to carry out a survey of the analysis-interpretation of the text Morte e Vida Severina by João Cabral de Melo Neto. It considers the external aspects (sociological) as the interns (structural), from a dialectic perspective, that looks at this dynamic as essencial to the perception of the integrity of the works. This text studies the hybrid character of the works, either in that says respect to the formal aspects, mainly in that is says respect to the question of the literary genus, as also in reference to the use of the popular and erudite, from a National-popular perspective, which aim to present an harmony with the views of world and life of the subordinate classes, as considers the Italian philosopher Antonio Gramsci. Throughout of the analysis-interpretation, it is emphasized the building of the auto, from the historical perspective and from that one detached by the critics that there is an “auto inside of the auto”, made of lay and popular elements, added the elements of liturgical order. Therefore, in this work, the porpuse is the reading of two autos: one that deals with the circumstances, characters and space of the withdrawal from semi-desertic-region (sertão) to the coast, in with the death presents itself in a tragic and symbolic perspective (the auto of the dead) and another one circumscribed to the celebratory sphere of traditional Christmas auto, around the birth of a child (the auto of life). Key-words: dramaturgi-brazilian, brazilian-literature, auto, Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto, national-popular
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
CAPÍTULO 1 – Morte e Vida Severina: singular, plural 14
1.1. Fazer poético, gêneros e traços estilísticos 14
1.2. A (aparentemente) difícil definição de gênero em Morte e Vida Severina 19
1.3. Cultura popular: visões teóricas visões de mundo 24
1.4. João Cabral de Melo Neto: entre o popular e popularidade 32
CAPÍTULO 2 – Morte e Vida Severina: um auto entre o popular e o nacional-
popular 38
2.1. Limites: teatro popular, teatro folclórico, teatro nacional-popular 38
2.2. Em torno do auto 41
2.3. Um auto: popular, nacional-popular 44
2.4. Pessoas e personagens do auto 54
CAPÍTULO 3 – O auto da morte e o da vida 58
3.1. O externo e o interno: processo social e forma literária 58
3.2. Percursos da morte e da vida: (autos) 66
3.2.1. O auto da morte 67
3.2.2. O auto da vida 79
CONSIDERAÇÕES FINAIS 88
BIBLIOGRAFIA 90
ANEXO 95
INTRODUÇÃO
A década de 1950 consolida a maturidade do teatro brasileiro, com a estréia de
peças que trazem temas nacionais. Em 1955, estréia A Moratória, de Jorge Andrade;
em 1956, no Recife, Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna; em 1958, Eles não
usam Black-Tie , de Gianfrancisco Guarnieri; em 1960, O pagador de promessas, de
Dias Gomes, e Revolução na América do Sul, de Augusto Boal. Em média, tinha-se a
revelação de um autor importante por ano, tendo eles em comum a militância e a
posição que afirmava a necessidade de se nacionalizar o nosso teatro.
A obra que será objeto do nosso estudo, a peça Morte e Vida Severina (um auto
de natal pernambucano), de João Cabral de Melo Neto,1 faz parte desse contexto.
Escrita entre 1954-1955, a pedido de Maria Clara Machado para ser encenada no teatro
Tablado, a montagem não acontecera naquele momento porque, segundo Maria Clara
ela não era um autêntico Auto de Natal. A montagem de sucesso só veio em 1966, dez
anos depois de sua publicação em livro. Esta obra acrescenta um elemento
fundamental à linguagem poética de João Cabral de Melo Neto: a leitura da realidade
social. E nesse sentido ela se identifica com o tipo de teatro em voga, na época.
Segundo Décio de Almeida Prado, o nosso teatro precisou progredir muito, no
sentido de quebra de convenções realistas, para que pudesse evidenciar a
dramaticidade latente de um texto como Morte e Vida Severina, em que predomina o
coletivo, sem enredo dramático claramente delineado e quase sem personagens
individualizados. Foi o que conseguiu compreender e realizar a belíssima, a 1 Para este trabalho nos valeremos da seguinte edição: MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina e outros poemas para vozes. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. Em alguns momentos utilizaremos a sigla MVS, seguida da paginação.
11
forçosamente original – não havia modelos – encenação feita pela TUCA, sob a
direção de Silvei Siqueira.2
Considerando a importância da obra Morte e Vida Severina, tanto pelos
aspectos estruturais e formais de composição, como pela abordagem da temática
voltada para questões de ordem social, quais sejam: a seca, o latifúndio e a exclusão
social em que vive grande parte da população nordestina, é que escolhemos o auto de
natal pernambucano como objeto do nosso estudo.
A temática da seca tem sido, historicamente, recorrente em nossa literatura. Na
prosa regionalista de 1930, destacou-se em obras importantes que abordam este tema:
A Bagaceira de José Américo de Almeida, publicado em 1928; O Quinze de Rachel de
Queiroz, em 1930; Vidas Secas de Graciliano Ramos, em 1938. A produção literária
que trata desta temática é bastante ampla, tendo sido trabalhada por romancistas,
poetas e compositores da Canção Popular. Assim, é feita uma transposição da
realidade para a ficção, numa perspectiva de denúncia social. Os romancistas e poetas,
ao traduzirem os sentimentos, os sonhos e as frustrações das personagens, em suas
obras, buscam aproximar-se dos dramas reais vividos pelos homens, confirmando a
imbricação entre criação artística e realidade.
Trabalhando esta temática, o auto cabralino dialoga, em termos formais, com os
autos ibéricos, de tradição medieval e popular, além daqueles que se desenvolveram no
Brasil, em termos de danças dramáticas, embora haja uma desconstrução destas formas
tradicionais, no que se refere, por exemplo, às unidades de tempo/espaço: Severino,
desenraizado, faz um longo percurso desde o sertão até o Recife; durante a viagem do
retirante aparecem vários espaços, inclusive o rio Capibaribe que, como tantos rios
periódicos do sertão, se corta, frustrando o personagem que seguia o seu curso. Outro
aspecto divergente entre o auto de natal pernambucano e os autos tradicionais é que
estes apresentam uma visão otimista enquanto aquele ressalta a negatividade, “as
coisas do não”, os maus presságios de uma vida severina, embora no final haja a
celebração da vida, mesmo que raquítica, franzina.
2 Cf. PRADO, Décio de Almeida. O teatro moderno brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. p. 86.
12
A análise-interpretação que estamos propondo irá considerar essa relação com a
tradição, a fim de entendermos como, na tessitura deste auto de natal pernambucano,
há não só um auto dentro do Auto, como sempre é destacado pela crítica, mas dois: um
circunscrito às circunstâncias, personagens e espaços da retirada do sertão para o
litoral, no qual há uma encenação da morte em toda a sua dimensão simbólica e
trágica, e um outro, inscrito numa atmosfera alegre e celebrativa do nascimento de uma
criança na periferia de Recife, no qual destacaremos as relações com o Pastoril de
origem popular, marcado por elementos étnicos e folclóricos próprios da realidade
nordestina.
Considerar-se-á, ainda, as características formais do texto, que o tornam atípico
pela pluralidade de traços estilísticos nele existentes. Trata-se, portanto, de uma obra
híbrida no que se refere aos gêneros e formas, mas que apresenta uma harmonia
perfeita entre a forma, o conteúdo e a linguagem, que se tornam um todo indissociável.
Nossa dissertação se estrutura em três capítulos. No primeiro, intitulado “Morte
e Vida Severina: singular, plural”, discutimos o fazer poético, através de uma
retrospectiva histórica da origem dos gêneros literários, considerando a pluralidade dos
gêneros e traços estilísticos presentes na obra em análise, buscando definir a
preponderância do gênero nesta obra. Ainda neste capítulo, apresentamos um estudo
sobre o cruzamento das culturas erudita e popular, numa sociedade dialeticamente
construída, marcada pelos influxos externos e internos.
O segundo capítulo, intitulado “Morte e Vida Severina: um auto entre o popular
e o nacional-popular”, apresenta-se os limites entre o teatro popular, o teatro folclórico
e o teatro nacional-popular, buscando inserir o auto cabralino nessas modalidades de
teatro. Faz-se, também, um estudo sobre a origem do auto tradicional e do auto
popular, caracterizado pelos Pastoris e Lapinhas cultivados no Nordeste do Brasil e
trazido para a obra de João Cabral. Outro aspecto analisado é o perfil dos personagens,
marcadamente, populares.
O terceiro e último capítulo, intitulado “O auto da morte e da vida”, faz uma
análise da obra, considerando os elementos internos e externos do texto, numa
perspectiva de análise global da obra, em que os aspectos sociológicos e externos
13
transformam-se em elementos estruturais e internos, tal como define Antonio Candido.
Outro aspecto analisado neste capítulo é a forma dramática do auto, apresentada em
dois movimentos: o auto da morte e o auto da vida.
14
CAPÍTULO 1
Morte e Vida Severina:
singular, plural
1.1 Fazer poético, gêneros e traços estilísticos
As primeiras considerações feitas na Grécia Antiga acerca do fazer poético são
marcos das primeiras reflexões sobre a arte literária em termos de teoria e de crítica, de
onde, normalmente, parte-se da obra de Homero, escrita há cerca de três mil anos. O
fazer poético era descrito como encantador, instrutivo, produto natural que tem de ser
apreendido como arte, a partir de uma escolha inteligente das palavras. No entanto,
esta não era a visão de alguns filósofos moralistas, que o viam como algo suspeito, já
que não expressava a verdade literal dos fatos, tendo de ser questionado. Outra maneira
de depreciar a poesia partia da idéia de que o poeta era inspirado pelos deuses. Tal
visão retirava do humano a sua capacidade de inspiração e a atribuía, exclusivamente,
ao divino. Assim, o poeta seria um “possesso”, que não se utilizava das palavras como
os seres comuns, mas em delírio, inspirado pelos deuses imortais. 3
Platão e Aristóteles foram os filósofos que mais contribuíram e deram
consistência às primeiras reflexões em torno do fazer poético e, conseqüentemente, ao
estudo e classificação das obras literárias em gêneros.
3 Cf. DAICHES. David. Posições da crítica em face da literatura. Trad. Thomaz Newlands Neto. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1967.
15
Platão advoga a necessidade de opor a razão às paixões. A sua objeção à poesia
pode ser considerada, a priori, de natureza epistemológica, derivando-se de sua teoria
do conhecimento: se a verdadeira realidade consiste nas idéias das coisas, das quais os
objetos individuais são meros reflexos ou imitações, assim, quem imita um objeto
estará copiando uma imitação, dessa forma, produzindo algo afastado da realidade.4 A
poesia, segundo ele, estaria distanciada da realidade pondo-se em terceiro grau. Este
afastamento a torna inferior, porque o poeta não compreende o que descreve.
É evidente desde logo que o poeta imitador não nasceu com inclinação para essa disposição de alma, nem a sua arte foi moldada para lhe agradar, se quiser ser apreciado pela multidão, mas sim com tendência para o caráter arrebatado e variado, devido, à facilidade que há em o imitar [...] E assim teremos desde já razão para não o recebermos numa cidade que vai ser bem governada, porque desperta aquela parte da alma e a sustenta, e, fortalecendo-a, enfraquece a razão, tal como acontece num Estado, quando alguém torna poderosos os malvados e lhes entrega a soberania, ao passo que destruiu os melhores. Da mesma maneira, afirmaremos que também o poeta imitador instaura na alma de cada indivíduo um mau governo, lisonjeando a parte irracional, que não distingue entre o que é maior, mas julga, acerca das mesmas coisas, ora são grandes, ora são pequenas, que esta sempre a forjar fantasias, a uma enorme distância da verdade.5
4 No Íon, de Platão, se tenta atingir a poesia, utilizando-se do seu representante mais frágil, o rapsodo: “[...] porque o poeta é uma coisa leve, alada e sagrada, e não é capaz de ser inspirado, antes de estar fora de si e não ser senhor de sua razão; antes de atingir este estado, encontra-se desprovido de qualquer poder e é incapaz de dar voz aos seus oráculos” [Cf. WINSATT, JR. William; K. BROOS, Cleanth. Crítica literária: breve história. Pref. Eduardo Lourenço. Trad. Ivette Centeno e Armando de Morais. Lisboa: Fundação Caluste Gulbenkian, 1971. p. 16] É, assim, possível depreendermos que, nos diálogos platônicos, há uma tendência à não exaltação da poesia, o que se intensifica no Livro II da República, no qual se julga a poesia de forma negativa e opta-se pela expulsão do poeta da polis, além de exercer uma censura, quando se classificam algumas narrativas como sendo “perigosas” e outras como “impróprias”. Vejamos: “Por conseguinte, teremos de começar pela vigilância sobre os criadores de fábulas, para aceitarmos as boas e rejeitarmos as ruins. De seguida, recomendaremos às mães que contem a seus filhos somente as que lhes indicarmos e procurem amoldar por meio delas as almas das crianças com mais carinho do que por meio das mãos fazem com o corpo. A maioria das que estão presentemente em voga deve ser rejeitada.” [PLATÃO. A República. Livro II. Trad. Pietro Nasseti. São Paulo: Editora Martim Claret, 2000. p. 66] 5 PLATÃO, op. cit., p. 304.
16
Aristóteles, porém, na Poética,6 se contrapõe a essa postura, ao examinar a
natureza e os atributos da literatura, visando provar que é “verdadeira, séria e útil”, ao
contrário de Platão que havia mostrado que era “falsa, trivial e nociva”.7 Para constatar
essa posição, ele faz uma análise minuciosa das várias espécies de poesia, a fim de
estabelecer o que possuem em comum e quais os pontos em que divergem umas das
outras. Todas as espécies de poesia – a épica, a trágica, a cômica e a ditirâmbica –,
conforme afirma Aristóteles, envolvem mimese, ou seja, envolvem uma
imitação/representação da natureza. A partir dessa constatação, ele caracteriza a
poesia, quanto à natureza, quanto à estrutura da obra e quanto à sua função.
A natureza da poesia define o conceito fundamental: a literatura é imitação. Esta
imitação se dá através de meios diversos (a linguagem, a harmonia e o ritmo), de
objetos diversos (seres superiores na tragédia e seres inferiores na comédia) e modos
diversos (a narrativa e a representação de uma ação – a primeira através de um
discurso; a segunda, através de atores). A estrutura da obra literária diz respeito à sua
organização, que se dá através da unidade e da tensão, constituindo um todo. Quanto à
função da literatura, Aristóteles utiliza-se de um termo já usado pela medicina, para
dizer sobre a função da arte: a catarse. Essa sua posição, novamente, se contrapõe à
noção platônica de que a arte corrompe, nutrindo as paixões:
Longe de nutrir as paixões, oferece-lhes a arte inócua ou até mesmo útil purgação. Excitando dentro de nós a piedade e o temor, a tragédia nos permite sair do teatro “calmos de espírito, consumidas todas as paixões”.8
Tais concepções fundam o estudo das obras literárias em gêneros, questão que
continua suscitando, nos estudiosos, o empenho para a definição de uma categorização
adequada. Entre divergências e oscilações, o assunto atravessa a história da literatura e
da crítica literária. Platão, no Livro III, da República, nos deixou a primeira referência
sobre os gêneros literários:
6 ARISTÓTELES. A Poética. Trad. e notas de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1981. p. 26 7 Cf. DAICHES, op. cit., p. 31. 8 Cf. DAICHES, op. cit.
17
[...] em poesia e em prosa há uma espécie que é toda de imitação, como tu dizes que é a tragédia e a comédia; outra, de narração pelo próprio poeta – é nos ditirambos que pode encontrar-se de preferência; e outra ainda constituída por ambas, que se usa na composição da epopéia e de muitos outros gêneros.9
Dessa forma depreendemos que, segundo Platão, a comédia e a tragédia se
constituem inteiramente por imitação, o que seria o gênero dramático; os ditirambos
pela exposição “pelo próprio poeta”, o que seria um germe do gênero lírico; e a
epopéia pela combinação dos dois processos, o que seria o gênero épico.
Platão foi o primeiro a buscar uma sistematização dos gêneros literários, mas
coube a Aristóteles o lançamento de suas bases fundamentais na Poética, que continua
sendo o texto básico para o enfoque dos gêneros. No capítulo I da Poética, Aristóteles
apresenta três diferenças da obra literária quanto à representação da realidade, a fim de
identificar as diferentes modalidades ou gêneros da poesia:
A epopéia, o poema trágico, bem como a comédia, o ditirambo e, em sua maior parte, a arte do flauteiro e do citaredo, todas vêm a ser de modo geral, imitações. Diferem entre si em três pontos: imitam ou por meios diferentes ou objetos diferentes ou de maneira diferente e não a mesma.10
A imitação, segundo os meios, distingue a poesia ditirâmbica da tragédia e da
comédia, pois utilizam o ritmo, a melodia e o verso de formas diferentes. Enquanto a
poesia ditrâmbica utiliza esses meios de forma simultânea, a tragédia e a comédia
empregam-nos separadamente. A imitação, segundo o objeto da representação
distingue a tragédia da comédia. A primeira se assemelha à epopéia apresentando
homens “melhores” do que nós, enquanto que a segunda, apresenta homens “piores”
do que nós. Quanto à imitação, segundo o modo, distingue-se a narrativa épica, da
tragédia e da comédia. No primeiro caso, o poeta narra em seu nome ou assumindo
diferentes personalidades; no segundo caso, os atores “agem”.
9 PLATÃO, op. cit., p. 85. 10 ARISTÓTELES, op. cit., p.19.
18
Os críticos renascentistas, retomando o postulado dos antigos, iniciaram a
divisão da produção literária, em três gêneros: Lírico, Épico, Dramático. No entanto,
esta divisão não dá conta da multiplicidade da criação literária, na medida em que se
torna impossível encaixar, nesses três compartimentos, uma obra que apresenta
características estilísticas híbridas, como certos contos que adotam o procedimento de
puro diálogo, próprio do drama; ou certas composições dramáticas nas quais apenas
comparece uma personagem em extenso monólogo, recurso próprio da poesia lírica; e
as obras líricas de cunho narrativo ou em diálogo.
Os escritores modernos tendem cada vez mais a libertar-se desses limites
estritos, em nome de uma originalidade que derruba a ordem preestabelecida, e
instauram novas modalidades, cada vez mais difíceis de serem classificadas nas
fronteiras dos gêneros. Nesta perspectiva, o ensaio “A teoria dos gêneros”, de Anatol
Rosenfeld,11 é bastante elucidativo e esclarecedor ao tratar dos gêneros e de seus traços
estilísticos.
O gênero, segundo Anatol Rosenfeld, tem valor substantivo, ou seja, primário;
enquanto o traço estilístico tem valor adjetivo, secundário. Daí conclui-se não haver
gênero puro, o que há é a preponderância de determinados traços estilísticos e de certos
aspectos formais que nos ajudam a definir se a obra é Lírica, Épica ou Dramática. Para
entendermos melhor os significados substantivo e adjetivo dos gêneros, vejamos o que
diz Anatol Rosenfeld:
A teoria dos gêneros é complicada pelo fato de os termos “lírico” “épico” e “dramático” serem empregados em duas acepções diversas. A primeira acepção – mais de perto associada à estrutura dos gêneros poderia ser chamada “substantiva”. Para distinguir essa acepção da outra, é útil forçar um pouco a língua e estabelecer que o gênero lírico coincide com o substantivo “A Lírica’, o épico com o substantivo “A Épica” e o dramático com o substantivo “A Dramática”. [...] A segunda acepção dos termos lírico, épico, dramático de cunho adjetivo, refere-se aos traços estilísticos de que uma obra pode ser imbuída em grau maior ou menor, qualquer que seja o seu gênero ( no sentido substantivo).12
11 ROSENFELD, Anatol. A teoria dos gêneros. In: __. O teatro épico. 4. ed. São Paulo: Editora Perspectiva. 2002. p.15-26. 12 Ibidem, p. 17.
19
Assim, depreendemos que há uma aproximação entre a idéia classificatória de
estrutura dos gêneros e seus traços estilísticos; de outro lado, em meio à idéia de um
gênero dominante há, também, traços estilísticos mais típicos dos outros gêneros. Esta
proposta de visão da teoria dos gêneros, apresentada por Rosenfeld, permite o
entendimento das relações entre a divisão das obras em gêneros e seus traços
estilísticos fundamentais, o que, claramente, contribui para uma melhor compreensão
das obras literárias, dando-nos a possibilidade de enxergar a multiplicidade de traços
estilísticos, em sentido substantivo e adjetivo. É assim que estudaremos Morte e Vida
Severina: um auto de natal pernambucano, de João Cabral de Melo Neto. Neste
sentido, a obra que será objeto de nosso estudo traz, em si, uma série de elementos, na
medida em que compreendemos que se trata de um texto com estrutura dramática, no
entanto, guardando traços estilísticos próprios da Lírica e da Épica, seja no que diz
respeito ao meio verbal - a utilização dos diálogos e dos monólogos - seja no que diz
respeito à forma em versos e à utilização da instância narrativa presente em muitos
momentos.
1.2 A (aparentemente) difícil definição de gênero em Morte e Vida Severina
Com base na discussão acima, é possível afirmar que Morte e Vida Severina
apresenta múltiplos traços estilísticos que a tornam híbrida, não permitindo um estudo
voltado para um gênero literário puro e absoluto. Por isso a análise que iremos propor
nos capítulos seguintes, fará um mapeamento das características dos três gêneros
literários presentes, nesta obra, em sentido adjetivo, buscando destacar os caracteres de
um gênero preponderante, em sentido substantivo. Se podemos encontrar traços
estilísticos próprios do gênero épico, também poderemos encontrar aspectos líricos,
que se apresentam tanto no conteúdo, quanto na forma. De outro lado, esse texto
apresenta uma interligação profunda entre o enredo, os personagens, o tempo e o
ambiente. Tais elementos se apresentam de tal maneira indissociáveis, que ao
analisarmos um, naturalmente, faremos referência aos demais, pois quando tratamos do
20
enredo, tratamos, simultaneamente, das personagens, da vida que vivem, traçada
dentro de uma duração temporal e num determinado ambiente. Todos esses elementos
são próprios dos gêneros dramático e épico.
Há, portanto, um núcleo comum entre o romance e a peça de teatro. Ambos
“narram” fatos possíveis de acontecer em algum espaço e num determinado tempo.
Porém o que, definitivamente, os distingue é a personagem. No romance, a
personagem é um elemento entre vários outros, sendo normalmente apresentada ao
leitor através de um narrador que aparece enquanto mediador. No teatro, o mundo
aparece emancipado e a personagem constitui quase que a totalidade da obra. É o que
ocorre em Morte e Vida Severina, visto que Severino é aquele através do qual o
leitor/espectador toma conhecimento dos fatos, mesmo quando ele se afasta da ação e
passa a ser espectador, como ocorre em diversas passagens de sua trajetória. É a partir
dessa presença de Severino que destacamos a preponderância da Dramática no auto
cabralino. Décio de Almeida Prado ao tratar da personagem do teatro, ressalta esta
distinção entre o romance e o teatro.
A personagem do teatro, portanto, para dirigir-se ao público, dispensa a mediação do narrador. A história não nos é contada, mas mostrada como se fosse de fato a própria realidade. Essa é de resto, a vantagem específica do teatro, tornando-o particularmente persuasivo às pessoas sem imaginação suficiente para transformar, idealmente, a narração em ação: frente ao palco, elas são por assim dizer obrigadas a acreditar nesse tipo de ficção que lhes entra pelos olhos e pelos ouvidos.13
Assim, podemos verificar que em Morte e Vida Severina há preponderância do
gênero dramático, visto que temos tanto no personagem central como nos demais,
todas as características de personagem do teatro, que dispensa a mediação do narrador
e ele mesmo se apresenta ao leitor/espectador, definindo mais claramente a diferença
entre o texto narrativo e a peça de teatro. Outro aspecto importante, no texto, é que os
13 PRADO, Décio de Almeida. A personagem do teatro. In: CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. 10. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 85.
21
quadros ou cenas que entremeiam os monólogos de Severino também apresentam
características predominantemente dramáticas.
Dessa maneira, mesmo que tenhamos a presença de traços estilísticos próprios
da Épica e da Lírica, o subtítulo “auto de natal pernambucano” aparece-nos como um
dos índices de características próprias do gênero dramático, que, claramente, se destaca
como preponderante – em sentido substantivo. Ou seja, estaremos, quase sempre,
lançando mão de discussões que nos auxiliem a classificar este texto enquanto uma
obra do gênero dramático. Basta considerarmos a maneira como o próprio autor
enxergava esta sua obra: “O auto de natal Morte e Vida Severina possui estrutura
dramática: é uma peça de teatro. Por isso fico um pouco aborrecido quando ouço ou
leio ‘adaptação do poema de João Cabral’. Isso é bobagem, pois Morte e Vida Severina
já é uma peça: não precisa de adaptação.”14
Assim, a nossa proposta de análise-interpretação dessa obra de João Cabral de
Melo Neto se dará a partir do entendimento do diálogo com a tradição dos autos
medievais ibéricos e dos pastoris nordestinos, nos quais o autor encontra as suas fontes
e as suas referências formais, como já bem aponta a sua fortuna crítica. A posição em
torno desse diálogo, pela crítica, é consensual: os autores apontam que há na
constituição desta obra uma articulação dialética entre “forma” e “tema”, que tem
antecedentes no auto popular, a partir da soma de elementos de ordem litúrgica
(principalmente, no que se refere às partes – anunciação, loas, a adoração dos reis e
pastores) e de elementos laicos (os tipos populares, a representação da cultura e do
nível prosódico dos personagens, que não são apenas episódios “decorativos”).15
Luís da Costa Lima, em texto publicado em 1968, no livro Lira e antilira,
enfatiza a importância da obra, mesmo reconhecendo que não se trata de uma produção 14 Cf. NADAI, José Fulaneti de (org.). João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Abril Educação, 1982. p. 45. (Coleção Literatura Comentada.) 15 Sobre isso ver NUNES, Benedito. Morte e vida Severina (1954-1955). In: __. João Cabral de Melo Neto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1974. p. 82-89, que é um dos primeiros textos a tratar dessa analogia entre a tradição peninsular e a tradição nordestina, além de mostrar como João Cabral desenvolve isso em seu trabalho. Veja-se, também, o texto de SECCHIN, Antonio Carlos. Do concreto ao concreto (Morte e vida severina). In: __. João Cabral: a poesia do menos. São Paulo: Duas Cidades; Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1985. p. 107-117, no qual cotejando o texto de Benedito Nunes aponta para a interessante chave de análise do “auto dentro do Auto”, a qual retornaremos posteriormente.
22
representativa do estilo desenvolvido, posteriormente, por Cabral em sua poesia.
Menos complexa, mais comunicativa, próxima da oralidade, compartilha com O Rio e
O cão sem plumas uma temática regional. Segundo o crítico: “A intenção oral da peça
se mostra ora pelo prosaísmo voluntário da linguagem, pela seqüência quase uniforme
dos versos de redondilha, comuns no romanceiro popular do Nordeste, ora pela
maneira como o personagem se interroga e responde os espectadores.”16
Alguns anos depois, em 1974, Benedito Nunes retoma o texto de Costa Lima e
avança na análise de Morte e Vida Severina, elaborando a compreensão de que há um
“auto dentro do auto”, compreendendo dois movimentos: o da morte, pesado e sombrio
representado pela viagem de Severino até o Recife; e o da vida, leve e alegre,
representado pelo nascimento da criança. O crítico faz uma analogia entre os
tradicionais quadros e personagens do pastoril e o auto cabralino:
Podemos, até mesmo, estabelecer, quase que de cena a cena, os traços analógicos desse parentesco formal, que as mudanças de figuras e situações apenas conseguem disfarçar: uma mulher do povo substitui o anjo da Anunciação; os vizinhos com os seus elogios, tomam o lugar dos anjos que guardam e adoram o menino, e, com os seus presentes, o dos reis magos; o mocambo é o presépio do Menino Deus, e seu José, São José.17
Outros aspectos abordados pelo crítico são: a ambivalência de estrutura, a
ironia, a comunicabilidade e a temática regional. Nesse sentido, o crítico reitera o que
já fora apresentado por Costa Lima. Essa chave de análise, sempre considerada pela
crítica posterior, acaba destacando os últimos episódios da ação como a parte mais
importante do poema dramático-narrativo. Nancy Maria Mendes,18 por sua vez,
pondera essa afirmação destacando que o Auto, sempre encontrado pela crítica,
formado pelos elementos de ordem litúrgica, que já destacamos, divide espaço com o
desenvolvimento da ação que enfatiza o modo de vida e os problemas de Severino, o 16 LIMA, Luis Costa. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. 2. ed. revista. Rio de Janeiro: Topbooks,1995. p. 267. 17 NUNES, op. cit., p. 86. 18 MENDES, Nancy Maria. Um texto parodístico: Morte e vida severina. In:__. Ironia, sátira, paródia e humor na poesia de João Cabral de Melo Neto. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1980. p. 15-29.
23
protagonista-retirante, procedimento este também recorrente aos autos de tradição
ibérica, como os de Gil Vicente, notadamente, o Auto de Mofina Mendes, no qual há
grande ênfase na vida da pastora, entremeada pela expressão litúrgica do nascimento
do Menino Jesus.
Outro texto que se deve considerar é o de Antônio Carlos Secchin,19 em João
Cabral: a poesia do menos, de 1985. Reiterando os estudos de Costa Lima e de
Benedito Nunes, Secchin fala da importância da transparência do discurso e das raízes
populares. Reafirma, ainda, a forma teatral do auto dentro do auto, defendida por
Benedito Nunes.
Por último, veja-se o ensaio de Manuel G. Simões,20 que se inicia tratando de
uma conferência pronunciada por João Cabral em 1952, na Biblioteca de São Paulo, na
qual ele falava sobre o seu conceito de poesia de circunstância. O crítico retoma esse
conceito para classificar a peça Morte e Vida Severina como sendo uma obra de
encomenda21 e que estava plenamente inserida no conceito defendido por Cabral, em
1952. Outro aspecto destacado no texto é o diálogo existente entre as obras: O cão sem
plumas (1950), O rio (1952) e Morte e Vida Severina (1955). Nessas três obras se dá a
introdução de um elemento novo no fazer poético do autor: a fusão do sujeito com o
objeto, no caso o rio Capibaribe. Há, portanto, segundo o crítico, uma relação profunda
entre estas obras, sendo o rio e a morte os elementos que se cruzam, ora de forma
explícita, ora metaforicamente, em que o caminhante é representado pelo rio.
Como os demais críticos analisados, Simões faz referência à estrutura do auto
popular de origem litúrgica que assume a forma de manifestação laica. Como Benedito
Nunes, ele faz uma analogia entre o auto cabralino e o auto tradicional de origem
ibérica, comparando os personagens e apontando para algumas transgressões do
19 SECCHIN, op. cit. 20 SIMÕES, Manuel G. “Morte e vida severina”: da tradição popular à invenção poética. Colóquio/Letras, Lisboa, n. 157/158, p. 99-103, jul.-dez. 2000. [Paisagem tipográfica. Homenagem a João Cabral de Melo Neto (1920- 1995) 21 Esta obra foi escrita a pedido de Maria Clara Machado, para ser encenada no Teatro Tablado. O texto, porém, não foi montado porque Maria Clara machado não o considerava um “autêntico” Auto de Natal e, ainda, porque o Tablado não tinha os recursos técnicos necessários para a encenação.
24
modelo canônico presente nas figuras de Seu José mestre carpina, que naturalmente
estaria representando São José, como também da mulher que anuncia o nascimento da
criança em substituição ao anjo que anuncia o nascimento de Cristo, as cenas dos
presentes que lembram a visita dos Reis Magos e as loas que são cantadas para louvar
o recém-nascido. Segundo o crítico, esses elementos mostram claramente a colagem do
auto cabralino ao modelo litúrgico.
Mediante o cotejo desses vários textos verificamos que, na verdade, não há
oposição entre as análises críticas. O que se registra são avanços resultantes das
diversas leituras. Algumas dessas posições serão retomadas nos capítulos de análise-
interpretação. Passemos, agora, a um entendimento mais amplo das relações de Morte
e Vida Severina com a cultura popular, já tantas vezes referida.
Nesta obra, a cultura popular se apresenta em suas diversas manifestações: seja
através das referências diretas aos cânticos populares e a aspectos da religiosidade
popular, como também pela re-elaboração de costumes e práticas, notadamente, o
pastoril ou a lapinha, além de um irmanamento com as experiências de mundo e de
vida das classes subalternas, trazidas à tona pelos personagens e pelos espaços
representados no texto.
1.3 Cultura popular: visões teóricas, visões de mundo
Para entendermos as representações da cultura popular em Morte e Vida
Severina, faz-se necessário um entendimento mais amplo sobre a cultura,
especialmente no Brasil, como resultado do processo de colonização e de
transplantação de outras culturas para este espaço. A cultura popular é marcada por
processos de mistura (ou hibridização), nos limites entre popular e erudito. Sobre isto,
Maria Ignez Novais Ayala, em seu artigo “Riqueza de pobre”, afirma:
A literatura popular, como as outras práticas culturais, se nutre da mistura. Seu fazer precisa da mescla, e esse processo de hibridização talvez seja um dos seus comportamentos mais duradouros e mais característicos. O sério se mesclando com o
25
cômico; o sagrado com o profano; o oral com o escrito; elementos de uma manifestação cultural, transpostos para outra... A literatura popular não conhece delimitações e é isso que torna difícil seu estudo. Impossível compartimentá-la em gêneros, espécies, tipos rígidos; tampouco é possível definir quando e onde se encontra a literatura popular.22
Este posicionamento sobre a “mistura” mostra a importância do processo de
hibridização de culturas, na medida em que permite uma (re)composição e impulsiona
os artistas a construírem, no seu tempo, linguagens artísticas resultantes de fragmentos
de algo anterior com marcas de contemporaneidade. Este fazer novo, do artista
individual, está respaldado na base coletiva que dá sustentação à cultura popular.
Assim procede João Cabral de Melo Neto em Morte e Vida Severina, na medida em
que faz uma mescla de diferentes práticas culturais e re-elabora uma forma dramática,
marcadamente medieval, como a do auto, contudo compreendendo a atualização dessa
forma no auto popular, neste caso específico, a lapinha.23
Alfredo Bosi24 estabelece uma relação entre os termos colo-cultus-cultura,
expressando as marcas existentes em termos lingüísticos ao longo do tempo. Na língua
romana, colo significou “eu moro”, “eu ocupo a terra”, e, por extensão, “eu trabalho”,
“eu cultivo o campo”. A explicação da origem etimológica dessas palavras elucida a
compreensão do processo de colonização e de transplantação da cultura de um povo
para outro: este processo não se dá apenas através da reiteração dos esquemas
originais, mas há sempre uma mistura de valores culturais pré-existentes, no espaço
que está sendo ocupado. É importante ressaltar que há uma predominância da cultura
daqueles que detêm o poder, no caso, os colonizadores, mas há, também, uma
resistência dos colonizados em preservar a sua cultura. Isso fica evidente na forma
como Bosi apresenta o processo de colonização, vejamos:
22 AYALA, Maria Ignez Novais. Riqueza de pobre. Literatura e sociedade, Revista de teoria literária e literatura comparada, Universidade de São Paulo, n.2, p.160-9, 1997. 23 Voltaremos a esta discussão no segundo capítulo. 24 BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 4 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 11.
26
A colonização é um projeto totalizante cujas forças matrizes poderão sempre buscar-se no nível do colo: ocupar um novo chão, explorar os seus bens, submeter os seus naturais. Mas os agentes desse processo não são apenas suportes físicos de operações econômicas; são também crentes que trouxeram nas marcas da memória e da linguagem aqueles mortos que não devem morrer.25
Nesta perspectiva, Aderaldo Castello26 dialoga com Alfredo Bosi, quando
estabelece a periodização da literatura brasileira como resultado da dinâmica entre os
“influxos externos”, tudo o que resulta da ação adventícia, e os “influxos internos”,
tudo o que resulta da reação autóctone, brasileira e mestiça. Como Bosi, Castello
apresenta a preponderância do colonizador no Período Colonial, mas, com o passar do
tempo, impõe-se a interação, o que acaba resultando no sincretismo que hoje se faz
presente na religião, nas danças, na alimentação, enfim na cultura popular do Brasil.
Desse conflito de forças surge o sincretismo, que permite uma convivência de culturas
diferentes, com marcas que as caracterizam como sendo erudita ou popular, numa
sociedade de classes. Esse embate de forças resulta no que Alfredo Bosi define como
uma dialética do culto e da cultura na condição colonial.
Nesta perspectiva, este autor apresenta uma distinção entre os termos condição
e sistema para marcar, claramente, a diferença que existe entre um e outro. O sistema
estaria ligado a certas estruturas da economia, enquanto o termo condição se refere ao
modo de viver e de sobreviver dos indivíduos. Por isso, fala-se em condição humana e
não em sistema humano. Ao estabelecermos um paralelo entre o que Alfredo Bosi
define como condição humana, e o entendimento que temos de cultura, percebemos a
aproximação existente entre ambas.
Condição traz em si as múltiplas formas concretas de existência interpessoal e subjetiva, a memória e o sonho, as marcas do cotidiano no coração e na mente, o modo de nascer, de comer, de morar, de dormir, de amar, de chorar, de rezar, de cantar, de morrer e ser sepultado.27
25 Ibidem, p.15. 26 Cf. CASTELLO, Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade (1500-1960). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999. 27 BOSI, op. cit., p. 27.
27
O processo de aculturação e de resistência da cultura decorre da condição em
que se vive. A cultura erudita, historicamente construída, vai ocupando o seu espaço e
absorvendo os valores da cultura popular, da mesma forma que esta, vai se mesclando
com marcas da cultura erudita. Por isso, diante do cruzamento de culturas, torna-se
difícil distinguir o que é erudito e o que é popular nas formas simbólicas de fronteira,
visto que ambas se fundem em obras de arte, onde o tosco e o sofisticado guardam a
mesma face. Aparentemente, a cultura erudita se impõe, mas, diante das formas de
cultura autóctone ou mestiça, ela busca uma ressignificação. Como exemplo, podemos
citar Anchieta, o nosso primeiro aculturador, quando compõe em latim clássico o seu
poema à Virgem Maria, enquanto aprende tupi e faz cantar e rezar em nossa língua, os
anjos e santos do catolicismo medieval nos autos que encena com os curumins.28
Assim, a cultura híbrida vai ocupando o seu espaço, tornando-se cada vez mais viva,
dinâmica e universal.
Nesse caldeirão, falar de cultura negra, ou de cultura branca, ou mesmo de
cultura indígena, torna-se difícil, pois, na verdade o que existe é uma mistura das
diversas culturas. Na verdade, o colonizador nunca perdoou a co-presença de
dominantes e de dominados. A sua intolerância diante da convivência com o diferente
e, sobretudo, a sobrevivência da cultura dos dominados reforça a luta e os conflitos
vividos no processo de colonização.
Historicamente, a cultura popular nem sempre serviu de foco para os estudiosos
e intelectuais, o que se constata, desde os mais remotos registros, é que a prioridade
dos estudiosos não era investigar os costumes e usos das classes subalternas como algo
importante, mas buscavam, sobretudo, reprimir, apontando erros e superstições,
exercendo sobre elas uma censura em nome da “moralidade”. No entanto, é importante
ressaltar que os folcloristas foram os primeiros estudiosos que tiveram os olhos
voltados para a cultura popular.29
28 Ibidem, p.31. 29 Cf. ORTIZ, Renato. Cultura Popular: Românticos e Folcloristas. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1985.
28
O folclore como forma de conhecimento “científico” surge no século XIX, a
partir da filosofia positivista de Augusto Comte e do evolucionismo inglês de Darwin e
Herbert Spencer; e, também, de uma necessidade histórica da burguesia: determinar o
conhecimento peculiar do povo através dos elementos materiais e não-materiais que
constituíam a sua cultura. A partir desta visão burguesa sobre a cultura do povo,
muitos foram os estudos realizados sobre o folclore e a cultura popular, no entanto,
ainda hoje, persistem algumas divergências entre os estudiosos e a compreensão por
parte do povo, do que seja folclore e cultura popular, sem o rótulo de uma cultura
“inferior”. No Brasil, com o advento do Romantismo, além da filosofia positivista, os
estudos sobre o folclore ganharam impulso, já que uma das características do
Romantismo era a busca da identidade cultural através da memória coletiva.
Renato Ortiz reconhece, embora com algumas restrições, a importância do
trabalho dos folcloristas sobre cultura popular e assim se posiciona:
Qualquer estudioso que tenha lido os livros dos folcloristas, partilha desta insatisfação que se esconde por trás da disparidade dos dados sobre as manifestações populares, que dizem pouco sobre a realidade das classes populares e, muito sobre a ideologia daqueles que a coletaram. No entanto, é inevitável nos voltarmos para os folcloristas, pois foram eles os primeiros a se ocuparem de forma sistemática do estudo da cultura popular. 30
Evidencia-se, dessa forma que, apesar dos obstáculos, são os folcloristas os
responsáveis pela primeira sistematização dos estudos da cultura popular, ainda que
impregnados do olhar e da ideologia deste tipo de intelectual e, portanto, da classe
dominante. Constata-se, ainda, que há uma delimitação das fronteiras entre as demais
ciências sociais e o folclore, já que este não alcançou o estatuto de disciplina científica,
tal como pretenderam alguns de seus estudiosos e defensores. No século XX, a palavra
folclore se desdobrou; remetendo, por um lado, a um conceito muito vago, ao qual
vários etnólogos negam qualquer valor científico e, por outro lado, às diversas práticas
de recuperação dos regionalismos e de animação turística até significados de conotação
pejorativa. Esta postura tem marcas de uma visão capitalista e burguesa que, de forma 30 Ibidem, p.1.
29
estereotipada, coloca a cultura popular como sendo “inferior” à cultura das elites, que é
tida como “superior”.
Essa dicotomia existente entre cultura de elite e cultura das classes populares se
radicaliza no século XIX, na medida em que o folclore se propõe a estudar os modos
de ser, de pensar e de agir peculiares ao povo, entendendo o conhecimento empírico,
como técnicas de trabalhar a roça ou manipular metais, de transporte ou de esculpir
objetos, etc.; e de natureza não-material como as lendas, as superstições, as danças, as
adivinhas, os provérbios, etc.
Luis da Câmara Cascudo define, através de um verbete, do seu Dicionário do
folclore brasileiro, o que é folclore:
É a cultura do popular, tornada normativa pela tradição. Compreende técnicas e processos utilitários que se valorizam numa ampliação emocional, além do ângulo do funcionamento racional. A mentalidade móvel e plástica torna tradicional os dados recentes, integrando-os na mecânica assimiladora do fato coletivo, como a imóvel enseada dá a ilusão de permanência estática, embora renovada na dinâmica das águas vivas.31
Câmara Cascudo estabelece uma visão que define folclore como “cultura do
popular” (grifos nossos), usando a metáfora da enseada que dá a impressão de
estagnação e de imobilidade, mas é renovada na dinâmica das “águas vivas”. Desta
forma, podemos entender a visão que se tem do folclore nesta perspectiva de
cristalização, de antiquário que procura preservar as mesmas marcas e características
do passado, não admitindo mudanças. A cultura popular caracteriza-se pela movência,
pela representação da vivência, do cotidiano e da interação, neste sentido corresponde
às águas vivas da enseada, já destacadas por Câmara Cascudo. Nessas definições,
quase sempre, repousam aspectos da luta de classes, tendo em vista que o termo
“cultura” significa o patrimônio cultural das classes mais elevadas; seria,
necessariamente, uma cultura transmitida por meios escritos, compreendendo todos os
conhecimentos científicos, as artes em geral e a religião oficial. O folclore se
31 CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. ed. 11. São Paulo: Global, 2002. p. 240.
30
relacionaria, portanto, à cultura popular, das classes subalternas, transmitida
oralmente.32
O embate de forças entre dominantes e dominados não se restringe, portanto, ao
período da colonização, ele perdura até os nossos dias. Mudam-se as formas, a
aparência, mas a essência permanece, ou seja, antes o poder do colonizador sobre o
colonizado; hoje, o poder do aparelho estatal sobre as classes subalternas. Nesta
perspectiva, é que Marilena Chauí33 mostra como o poder do Estado e o poder
econômico tentam sufocar a cultura do povo, ora como forma de “controle”, ora como
forma de “proteção”. Essa prática torna-se bastante evidente nos diversos programas e
projetos promovidos pelo Estado, na perspectiva de proteção da cultura popular.
Vejamos:
[...] Cremos, pois, que o que permite a absorção contínua da Cultura Popular pela imagem nacional é a mitologia verde-amarela, cimento ideológico inquebrantável. Tanto mais quando considerarmos as várias formas tomadas pela ideologia dos grupos dirigentes do país, desde os inícios deste século, e nas quais a idéia da Nação, como resultado da ação do Estado sobre a sociedade, sempre foi fundamental. Assim, durante os anos 10, o slogan dominante era: Consolidar a Nação (o que legitimou o extermínio dos rebeldes de Canudos e do Contestado); durante os anos 20 e 30: Construir a Nação (o que permitiu a absorção de todas as manifestações culturais pelo Estado); durante os anos 40 e 50: Desenvolver a Nação (fazendo com que a Cultura Popular fosse considerada atraso, ignorância e folclore); no início dos anos 60: Conscientizar a Nação (levando o populismo a produzir a imagem dupla da Cultura Popular como boa-em-si e alienada-em-si, precisando de condução de vanguardas tutelares e revolucionárias); durante os anos 60 e 70: Proteger e Integrar a Nação (o que levou às práticas “modernas” de controle estatal da Cultura Popular); e agora: Conciliar a Nação (o que talvez seja feito num grande festim onde comeremos broa de milho).34
32 Retornaremos a esta discussão mais adiante, quando começarmos a apresentar a perspectiva gramsciana para a análise da cultura subalterna. 33 CHAUÍ, Marilena. Ainda o nacional e o popular. In: __. Conformismo e resistência. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 87-120. 34 Ibidem, p. 99.
31
Como podemos atestar, essa “proteção” transforma-se em “controle” do
aparelho estatal sobre a cultura popular. Isso ocorre de diversas formas e nas mais
variadas manifestações culturais: no plano da alimentação, da música, da dança, do
esporte, da religião. Há, portanto, um deslizamento dos sentidos do popular para o
nacional, na medida em que se transformam manifestações populares em
manifestações nacionais, como se fossem a “marca” do Brasil, consolidando caracteres
de uma identidade nacional.
Assim, podemos compreender que este desejo de controlar a cultura popular
começou no início do século XX, mas se intensificou nas décadas de 1930 e 1940 com
o Estado Novo; fez parte da ideologia do Brasil-Potência ou da ideologia da
“integração nacional” da ditadura dos anos 1970, que incorporou duas atividades
populares para a glorificação do Estado: o carnaval e o futebol.35
A partir disso, podemos perceber uma amostragem do poder que exerce o
Estado sobre as classes subalternas, pois embora sofra alguns abalos provocados pela
resistência popular, ele não desaparece. Somada a essa postura autoritária do Estado,
surgem, nos anos 1960, os CPCs – Centros Populares de Cultura. Devotos de uma
prática populista exacerbada, instrumentalizavam a cultura, notadamente, o teatro.
Alguns ensinavam ao povo desde canto coral e dramaturgia, até arte culinária caseira.
Os espetáculos teatrais tratavam dos problemas populares mais importantes e urgentes.
Em alguns casos, os próprios operários escreviam os textos, ou forneciam os subsídios
para que outros escrevessem. Apesar dessa preocupação dos Centros em fortalecer a
cultura do povo, subjaz a esta prática uma ideologia autoritária e populista que se
traduz no Manifesto do CPC de 1962. Esse grupo de vanguarda, colocando-se no lugar
dos ilustrados, define a cultura como: cultura alienada (a da classe dominante); a
cultura do povo (tosca, desajeitada, atrasada, trivial, ingênua, lúdica, sem dignidade
artística nem intelectual, conformista); a cultura popular revolucionária (produzida
pela vanguarda que vê o povo como herói, combatente do exército revolucionário de
libertação nacional e popular).36 Esta visão normativa e prescritiva revela um discurso
35 Ibidem. 36 Ibidem, p. 108.
32
reacionário e populista que reforça as formas autoritárias da sociedade brasileira e, em
particular, de alguns intelectuais que percebem o mundo de maneira unilateral e
estática.
O nosso estudo, porém, volta-se para o trabalho de intelectuais que se
identificam com o povo, no caso, João Cabral de Melo Neto que, em Morte e vida
severina, filia-se a uma perspectiva nacional-popular, num entendimento dessa
categoria de análise a partir do pensamento de Antonio Gramsci. Convém explicitar,
agora, o que seria popular na perspectiva que pretendemos encaminhar o nosso estudo,
visto que este termo tem sofrido um certo desgaste ao longo do tempo. Popular como
sinônimo de povo ou daquilo que tem popularidade? Ou, ainda, popular é igual a
populismo ou popularesco?
1.4 João Cabral de Melo Neto: entre o popular e popularidade
Em determinado contexto político “cultura popular” e/ou “cultura do povo”,
devido ao uso abusivo dessas expressões, confundem-se com “populismo”, que, em
qualquer de suas modalidades, seja justiceira ou paternalista, denota uma política de
manipulação das massas, às quais são imputadas passividade, imaturidade,
desorganização e, conseqüentemente, um misto de inocência e de violência que
justificam a necessidade de educá-las para que possam ser reconhecidas pela história.
Na busca de uma explicação da expressão popular e, por conseguinte, da
compreensão de cultura popular na perspectiva gramsciana, é que encaminhamos o
nosso trabalho. O que seria, então, o nacional-popular para Gramsci? E como essas
análises estão postas no contexto da cultura no Brasil?
As análises políticas gramscianas tomam o popular de acordo com as análises
econômicas e sociais da divisão social de classe e enfatizam a opacidade das classes
populares no contexto italiano. Segundo Gramsci,37 existem uma religião e uma moral
37 Cf. GRAMSCI, Antônio. Literatura e vida nacional. 2.ed. Trad. e sel. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978 (principalmente, os capítulos “Literatura popular” e
33
do povo que divergem daquelas organizadas pelos intelectuais da hierarquia
eclesiástica e da classe dominante, fazendo com que existam crenças e imperativos
muito mais fortes, tenazes e eficientes que os da religião e moral oficiais. Distingue-se,
então, a partir desta perspectiva, três estratos: os fossilizados, que refletem condições
de vida passada e que, por isso, são reacionários e conservadores; os inovadores e
progressistas, determinados espontaneamente pelas condições atuais de vida e,
finalmente, aqueles que estão em contradição com a religião e a moral vigentes. São
estes que devem mais interessar a quem se ocupa com o nacional-popular.
Nacional como resgate de uma tradição não trabalhada ou manipulada pela
classe dominante; popular, como expressão da consciência e dos sentimentos
populares, feita seja por aqueles que se identificam com o povo, seja por aqueles
saídos organicamente do próprio povo. Assim, a cultura nacional-popular, de acordo
com o pensamento gramsciano, possui um aspecto pedagógico que não pode ser
negligenciado. Todavia, essa proposta em torno de um projeto cultural nacional-
popular se distingue de um entendimento sobre a cultura popular, tal como se exprime
nos cantos populares que se distingue de outros pelo modo de conceber o mundo e a
vida, em contraste com a sociedade oficial. Nisto – e tão somente nisto – deve ser
buscada a coletividade do canto popular e do próprio povo, ainda que este não forme
uma coletividade homogênea e imediatamente identificável.38
Para Gramsci, o termo popular possui vários significados, sendo por isso
multifacetado. Significa, por exemplo: a capacidade de um intelectual ou de um artista
para apresentar idéias, situações, sentimentos, paixões, e anseios universais que, por
serem universais, o povo reconhece, identifica e compreende espontaneamente (é o
caso de Shakespeare); a capacidade para captar no saber e na consciência popular
instantes de “revelação” que alteram a visão de mundo do artista ou do intelectual que,
não se colocando numa atitude paternalista ou tutelar face ao povo, transforma em obra
o conhecimento assim adquirido (é o caso de Tolstoi e de Vitor Hugo); a capacidade
para transformar situações produzidas pela formação social em temas de crítica social “Observações sobre o folclore”); conferir, também, CHAUÍ, Marilena. Considerações sobre o nacional-popular. In: __. Cultura e Democracia. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2003. p. 87. 38 GRAMSCI, op. cit.
34
pelo povo (é o caso de Goldoni e de Dostoievski); a sensibilidade de um intelectual ou
de um artista capaz de ligar-se aos sentimentos populares, exprimi-los artisticamente,
para apresentar idéias, situações, não interessando, no caso, qual o valor artístico da
obra (é o caso do melodrama e do folhetim, ambos considerados, por Gramsci,
estímulos à imaginação popular e ao sonhar acordado, como forma de compensação
para as misérias reais). Dessa maneira, na perspectiva gramsciana, o popular, na
cultura, significa a transfiguração expressiva de realidades vividas, conhecidas,
reconhecíveis e identificáveis, cuja interpretação pelo artista e pelo povo coincidem.
Essa transfiguração pode ser realizada tanto pelos intelectuais “que se identificam com
o povo” quanto por aqueles que saem do próprio povo, na qualidade de seus
intelectuais orgânicos.39
No Brasil, alguns estudos realizados em torno das análises gramscianas sobre o
nacional-popular trouxeram contribuições importantes para a contextualização do
nacional-popular na política cultural brasileira. Diógenes Maciel faz uma análise a
partir das determinações de Carlos Nelson Coutinho40 sobre o nacional-popular,
ampliando essa visão para além da política cultural do PCB – Partido Comunista
Brasileiro, no contexto das décadas de 1950/60. O autor identifica, por exemplo,
características do nacional-popular presentes na obra de Martins Pena, no século XIX,
considerando o ângulo de abordagem e a introdução de personagens populares. 41 Ou
seja, segundo Diógenes Maciel, a introdução dos nossos costumes na produção
dramatúrgica, através da obra de Martins Pena, vai imprimindo, gradativamente, a
nossa marca, até chegarmos ao amadurecimento na expressão da realidade nacional,
que atinge seu clímax a partir dos anos 1950, marcadamente na obra de Gianfrancesco
Guarnieri e nas demais peças encenadas no Teatro de Arena de São Paulo.
Para entendermos a presença do nacional-popular na produção cultural, faz-se
necessária a compreensão das determinações apresentadas por Carlos Nelson 39 CHAUÍ, op. cit. 40 COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas. 2 ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: DPGA, 2000. 41 MACIEL, Diógenes André Vieira. Um teatro sobre desclassificados: o nacional-popular como perspectiva de análise da dramaturgia brasileira. In: AQUINO, Ricardo Bigi de, MALUF, Sheila Diab (Orgs.) Dramaturgia e Teatro. Maceió: EDUFAL, 2004. p. 137.
35
Coutinho,42 especialmente quando ele afirma que “o nacional-popular não se manifesta
na temática, mas no ângulo de abordagem, no ponto de vista a partir do qual o criador
estrutura sua obra”; ou ainda, “não pode ser identificado com um determinado estilo ou
com uma determinada temática no plano estético, ou com uma única posição
ideológica, no plano do pensamento social” e, também, “não pode ser entendido como
algo oposto ao universal”. Dessa forma, é possível encontrar essas marcas em obras
que não estejam apenas inseridas no período em que a política cultural do PCB deu
ênfase ao nacional-popular, mais especificamente nas peças apresentadas no Teatro
Arena, nas décadas de 1950/60.
Essa questão se clarifica quando compreendemos que o uso desta expressão, no
Brasil daquele contexto, tanto se refere à categoria do filósofo Antônio Gramsci, que
objetivava um modelo de organização da cultura baseado no “comprometimento dos
intelectuais-artistas com as classes subalternas”, como também relacionava-se com “a
política cultural do PCB dos anos 50/60, quando este partido, ainda sob a vigência do
stalinismo, acreditava que a ‘revolução democrática’ iria ocorrer, como decorrência da
política de aliança de classes”.43
Na verdade, a ação da política cultural, na área teatral, do PCB, inicia-se,
efetivamente, em 1958, com a estréia de Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco
Guarnieri, enquanto a recepção real de Gramsci, no Brasil, só se dá a partir dos anos
1970. Ao explicar esse impasse, Diógenes Maciel faz uma abordagem sobre um
conjunto de produções que vai além da atividade programática do Arena. É nesta
perspectiva, e respaldado nas determinações de Carlos Nelson Coutinho, que ele
identifica o teatro de Martins Pena, já no século XIX, como nacional-popular. Isso
mostra, portanto, que em termos de cultura brasileira, o nacional-popular não é
exclusivo de um determinado momento histórico, embora tenha sido mais enfatizado,
em termos de crítica de teatro, por exemplo, nos anos 1950/60.
A partir dessas análises podemos compreender Morte e Vida Severina como
uma obra com marcas do nacional-popular, pois considerando os vários significados
42 COUTINHO, op. cit. 43 MACIEL, op. cit., p. 135.
36
atribuídos, por Antonio Gramsci, ao popular, João Cabral se insere como um
intelectual que se identifica com o povo na fatura de sua obra. O texto em análise,
embora apresente um tema ligado a questões regionais, no que se refere à forma de
abordagem destas questões ultrapassa os limites desse regional e torna-se universal, na
medida em que traz reflexões bem mais profundas sobre a condição humana e o estar
no mundo, tratando da vida e da morte, do sofrimento humano, mas também da
esperança e dos sonhos acalantados por milhares de homens e mulheres que lutam por
melhores condições de vida. Os problemas vividos pelos personagens não são
exclusivos dos sertanejos nordestinos, mas refletem questões existenciais bem mais
profundas, vividas pelo ser humano, independentemente da região em que vive. Neste
sentido, a obra torna-se ontológica e universal.
Outro aspecto que se identifica no poema é a capacidade do autor em captar no
saber e na consciência popular instantes de revelação destas visões e concepções de
mundo e de vida, o que faz com que a obra não se torne paternalista ou tutelar, mas
contribua para uma crítica capaz de despertar no povo (ou no público leitor ou de
teatro) o desejo de transformação da realidade. Apresenta, ainda, pelo uso da forma
dramática do auto, características que o tornam popular do mesmo modo que o
melodrama e o folhetim, visto serem estas formas reconhecidas pelo povo.44
Este “auto de natal pernambucano” escrito por João Cabral de Melo Neto
alcançou enorme popularidade quando da sua montagem teatral pelo Teatro da
Universidade Católica – PUC/SP (TUCA), em 1965. O espetáculo dirigido por
Roberto Freire e Silnei Siqueira, musicado por Chico Buarque de Hollanda, foi visto
por mais de cem mil pessoas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Já encenada,
anteriormente, por um grupo amador e premiada em 1958, projetava agora o nome de
44 Popular, aqui, é tomado a partir da perspectiva gramsciana, que considera “a sensibilidade capaz de ‘ligar-se aos sentimentos populares’, exprimi-los artisticamente, não interessando no caso qual o valor artístico da obra (é o caso do melodrama e do folhetim, ambos considerados por Gramsci estímulos à imaginação popular e ao sonhar acordado como forma de compensação para as misérias reais). Na perspectiva gramsciana, o popular na cultura significa, portanto, a transfiguração expressiva de realidades vividas, conhecidas, reconhecíveis e identificáveis, cuja interpretação pelo artista e pelo povo coincidem. [...]” Cf. CHAUÍ, Marilena. Seminário I (primeiro semestre de 1980). In: __. Seminários. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 17. (Col. O nacional e o popular na cultura brasileira)
37
João Cabral de Melo Neto também internacionalmente: a peça levada ao Festival de
Teatro Universitário de Nancy, na França, é também premiada e entusiasticamente
aclamada pelo público. Este texto alcançou, ainda, outros meios com mais força de
divulgação que o teatro: a gravação em disco do espetáculo do TUCA, com a parte
musical de Chico Buarque, um dos nossos mais conhecidos e respeitados artistas,
como também a sua adaptação televisiva, veiculada pela Rede Globo de Televisão em
1981, que trouxe esta obra para dentro da casa de milhares de espectadores por todo o
Brasil. 45
45 O especial da TV Morte e vida Severina. Adaptação da peça. Direção de Walter Avancini. TV Globo, 1981. A referência do disco é a que segue: O teatro da Universidade Católica de São Paulo apresenta Morte e vida Severina. Música de Chico Buarque, Philips, 1966.
38
CAPÍTULO 2
Morte e Vida Severina: um auto natalino
entre o popular e o nacional-popular
2.1 Limites: teatro popular, teatro folclórico, teatro nacional-popular
O entendimento sobre o que seja, de fato, teatro popular no Brasil é algo
bastante difícil. O termo popular está sempre no limite entre “do povo”, “aquilo que
tem popularidade” e “populista”. De outro lado, certas manifestações dramáticas tidas
como “populares” – caso do teatro de um autor como Ariano Suassuna, por exemplo –,
nem sempre são produzidas pelo povo, nem a ele se destinam, dado que muitos
intelectuais se inspiram na cultura popular para produzirem suas obras, mas nem
sempre conseguem ficar isentos, trazendo para suas composições valores da classe
social a que pertencem, bem como a sua própria visão de mundo.
A luta de classes, também no âmbito da arte, restringe a participação popular e,
no que se refere ao teatro, há, efetivamente, uma luta de certas elites intelectuais contra
este segmento – por exemplo, quando não se entende as formas dramáticas populares,
como teatro, conforme discutiremos adiante –, como se o povo não tivesse a
sensibilidade, ou ainda, a compreensão e a capacidade para fruir. Neste sentido,
Augusto Boal se posiciona da seguinte forma:
Na verdade, certos teóricos recentes camuflam seu pensamento antipovo negando a participação do povo no teatro, como fenômeno estético, enquanto o povo permanecer povo – mas estão dispostos a
39
aceitar “representantes” do povo na sala destinada às pequenas elites. Isto é, desde que esses “representantes” do povo se apresentem como elite. Assim se nega a possibilidade de teatro popular, assim se rouba do povo a possibilidade de ter a sua arte teatral, que é transferida como tudo o mais, para as elites, sejam elas burguesas, aristocráticas, oligárquicas ou estéticas.46
Ao estabelecer uma diferença fundamental entre povo e população, Boal deixa,
ainda mais claro, essa segregação entre teatro popular e elites. Segundo ele, população
é a totalidade de habitantes de um país ou região: a todos inclui. Já o conceito de povo
é mais restrito, incluindo apenas aqueles que alugam a força do trabalho. Portanto,
estão inseridos neste conceito, os operários, os camponeses: “Os homens são o povo;
população inclui os senhores”.47 A partir dessa definição, o autor apresenta três
categorias de teatro popular, como veremos a seguir.
A primeira categoria é aquela que compreende a produção de um teatro do povo
e para o povo. Nela estão os traços eminentemente populares. O espetáculo é
apresentado segundo a perspectiva transformadora do povo, que também é seu
destinatário. São os espetáculos feitos em geral para grandes concentrações de
trabalhadores, nos sindicatos, nas ruas, nas praças.
A segunda categoria do teatro popular é o teatro de perspectiva popular para
outro destinatário que não o povo. Trata-se do teatro que, para subsistir, necessita do
apoio de uma platéia burguesa ou de subvenções provenientes dos governos
constituídos. Há questionamentos em torno desse tipo de teatro por não se dirigir ao
povo. Mas há, também, o argumento de que nenhuma platéia é eminentemente
burguesa, há sempre pessoas do povo, como estudantes, bancários, professores,
profissionais liberais – todos passíveis de transformação; ou seja, nestes espetáculos os
problemas sociais podem ser analisados noutra perspectiva que não a da classe
dominante. Há, portanto, três razões pelas quais se pode e se deve fazer teatro de
perspectiva popular para platéias que não são constituídas pelo próprio povo: o
capitalismo no Brasil faz com que a obra de arte seja vendida como mercadoria às
46 BOAL, Augusto. Técnicas latino-americanas de teatro popular. São Paulo: HUCITEC, 1979. p. 23. 47 Ibidem, p. 25
40
platéias pagantes ou ao governo; não existe uma platéia propriamente burguesa em
nosso país; mesmo aquela parte da platéia mais intimamente associada ao pensamento
burguês ou à condição burguesa pode e deve ser atingida pelo pensamento popular.
Numa terceira categoria, Boal apresenta o teatro de perspectiva antipovo e cujo
destinatário infelizmente é o povo. Esta categoria é amplamente patrocinada pelas
classes dominantes e nada tem de popular, a não ser na aparência. Como exemplo,
temos a quase totalidade das telenovelas e também dos filmes e peças de teatro
associados à indústria cultural. Há uma ausência de temas que tratem de questões
sociais importantes, contribuindo para a permanência do status quo. A valorização de
idéias e características que contribuem para a perpetuação da mesma realidade, ora se
apresenta de forma explícita, ora de forma implícita. A ideologia subjacente às peças e
às telenovelas constitui um maior perigo para que o povo seja “massa de manobra”,
muito mais do que as explícitas, que apresentam os propósitos antipovo de forma
bastante evidente.
Outro aspecto importante e que merece reflexão são os interesses que regem as
modalidades de teatro popular no Brasil. Há, portanto, diferentes formas: (1) o teatro
popular folclórico, feito pelo povo e para o povo, em que encontramos interesse lúdico
e religioso, tornando-se difícil precisar qual é o interesse predominante; (2) teatro
popular que se baseia na cultura popular ou na visão do povo, sendo levado ao povo e
visando popularização/popularidade; (3) teatro de perspectiva popular que é
apresentado para o povo ou para um público que não é o povo, mas que com ele se
identifica, havendo um interesse de divulgação e outro que é didático; (4) teatro
popularesco, em que as peças possuem valores subjacentes que não são do povo, com
fins comerciais e de propaganda que não correspondem aos interesses do povo.
Outro ponto que ainda precisa ser ressaltado é a questão que envolve o público a
quem se destina o teatro popular. Precisamente, nem sempre é o povo, visto a
mediação da bilheteria ou os locais onde esse tipo de espetáculo é apresentado, que
tornam esses produtos culturais inacessíveis às classes populares.
As modalidades de teatro popular apresentadas por Boal, com exceção do teatro
popularesco, se enquadram na perspectiva de teatro que estamos trabalhando. O teatro
41
popular e o nacional-popular, na verdade se fundem numa mesma perspectiva, partindo
sempre da visão de intelectuais que se identificam com o povo, tal como Gramsci
coloca. No entanto, a modalidade de teatro folclórico diz respeito à visão de mundo do
povo, pois é por ele produzido e a ele se destina, sem o olhar do intelectual. Nisto,
difere do teatro popular e do nacional-popular.
Morte e Vida Severina além de apresentar características do nacional-popular,
de acordo com o que vimos no capítulo anterior, apresenta traços aproveitados do
teatro popular/folclórico, na medida em que o autor utiliza os textos dos pastoris, além
de outros elementos da cultura popular pernambucana. No entanto, ele traz marcas
preponderantes do nacional-popular, pois é o olhar do intelectual, no caso, o poeta
pernambucano João Cabral de Melo Neto, que se identifica com o povo, ao tratar de
temas próprios e das condições de vida das classes subalternas. Mas, na verdade, a
obra não é folclórica, ela tem uma perspectiva popular ou nacional-popular, mesmo
que se trate de um texto direcionado a um público que pode ser o povo, mas quase
nunca o é – visto a intermediação, quase sempre excludente, do livro ou da sala de
teatro.
2.2 Em torno do auto
Se buscarmos, mesmo que rapidamente, entender o desenvolvimento histórico
da forma do auto teremos ferramentas que nos possibilitam compreender em que
medida o auto cabralino se aproxima mais do auto popular sem deixar de apresentar
elementos dos autos tradicionais litúrgicos, que também apresentavam características
populares. Iniciaremos pela definição apresentada por Massaud Moisés, no Dicionário
de termos literários:
Auto - Latim actu(m) realização, execução, ação, ato. Vinculado aos mistérios e moralidade, e talvez deles proveniente, o auto designa toda peça breve, de tema religioso ou profano, em circulação durante
42
a Idade Média: equivaleria a um ato que integrasse espetáculo maior e completo; daí o apelativo que recebeu: auto.48
O auto é, por excelência, de origem ibérica e remonta aos fins do século XII,
quando da elaboração do espécime mais antigo que se conhece, O Auto de los Reyes
Magos. Desenvolvido por Juan Del Encina no século XV, o auto chegou a Portugal em
1502, quando Gil Vicente representou O Monólogo do vaqueiro ou Auto da visitação.
No século XVI, o auto alcançou o seu ponto máximo, sendo cultivado, também, por
Camões apesar de sua cosmovisão clássica. No Brasil, o modelo vicentino já era
conhecido desde o século XVI, graças ao Padre José de Anchieta que se utilizava do
gênero para os trabalhos catequéticos do nativo e do colono. Aos poucos o auto vai se
mesclando com a cultura indígena e africana, assumindo um caráter popular, como
afirma Câmara Cascudo:
Auto – forma teatral de enredo popular, com melodias cantadas tratando de assunto religioso ou profano, representada no ciclo das festas do Natal (dezembro-janeiro). Lapinhas pastoris, fandango, ou marujada, chegança ou chegança de mouros, Bumba-meu-boi, boi de Reis, congada ou congos etc. Desde o século XVI os padres jesuítas usaram o auto religioso, aproveitando figuras clássicas e entidades indígenas, como poderoso elemento de catequese. As crianças declamavam, dançavam, cantavam ao som de pequenos conjuntos orquestrais, sempre com intenção apologética. O gênero popularizou-se. Dos autos populares brasileiros, o mais nacional como produção é o Bumba-meu-boi, resumo dos reisados e romances sertanejos do Nordeste, diferenciados e amalgamados, com modificações locais, pela presença de outras personagens no elenco. Quanto à origem erudita do auto ligar-se-á sempre aos autos de enredo religioso, aos miracles, e mystères, estes saídos da liturgia das festas de Natal e da Páscoa, e aqueles em louvor dos santos, materializações de cenas de suas vidas, populares desde o século XII na França, Inglaterra, Itália, Alemanha, etc. 49
Os autos portugueses eram escritos em forma poética de sete sílabas, redondilha
e quintilha com influência castelhana. No Brasil, as mais antigas menções informam
que os autos eram cantados à porta das igrejas, em louvor de Nossa Senhora do
48 MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 11. ed. São Paulo: Cultrix, 2002. p. 49. 49 CASCUDO, Luis da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Global, 2002. p. 29.
43
Rosário (quando dirigidos por escravos ou libertos), ou na matriz. Depois levaram o
enredo, com as danças e os cantos, nas residências de amigos ou na praça pública, num
tablado. Alguns autos reduziram-se à coreografia, sem assunto figurado.50
Ao fazer uma exposição histórica sobre a origem dos autos de Natal, Margot
Berthold51 diz que o tempo todo as paixões, os mistérios e as lendas foram
acompanhados pelos ofícios e ciclos relacionados com o Natal. Originaram-se do
mesmo Quem quaritis oratorial, que é o germe do auto pascal: “A quem buscais”?,
pergunta dirigida tanto às três Marias, no domingo de Páscoa, como aos pastores que
chegavam à manjedoura, na noite de Natal. Ainda discorrendo sobre a origem do auto,
Berthold afirma que os autos são um outro exemplo de intromissão, desde muito cedo,
do mimo na solenidade da igreja, as cenas básicas eram cada vez mais enriquecidas
com detalhes episódicos, embora, ao mesmo tempo, nenhum esforço fosse poupado
para apresentar provas teológicas do milagre do Natal.
Com a expansão dos idiomas vernáculos, o caráter dogmático das peças foi,
gradualmente, perdendo terreno para cenas populares, centradas na manjedoura e na
figura do Menino Jesus, conforme sobrevivem até hoje. Aos poucos, essas peças vão
se ressignificando de forma que passam a ter um caráter mais profano do que religioso,
chegando muitas vezes à zombaria, diante de algumas encenações nas quais José
assume uma postura mais humana, como quando aviva o fogo e se ocupa de foles e
velas, prepara o mingau para o infante e flerta com as servas. Assim, os autos de Natal
são cultivados pelo teatro desde a Idade Média, apresentando dramas essencialmente
eclesiais e de caráter pedagógico, voltados para temas religiosos, especialmente nas
festas cristãs: a Páscoa e o Natal, representados nas igrejas. Com o passar do tempo, o
teatro toma nova forma e colorido, passando a ser representado fora das igrejas.
Diferentemente do que correntemente se diz sobre a Idade Média e o seu teatro, o
comentário feito por Margot Berthold mostra a dinâmica e o colorido desse tipo de
arte, neste contexto histórico:
Assim como a Idade Média não foi mais “escura” do que qualquer outra época, tampouco seu teatro foi cinzento e monótono. Mas suas formas
50 Ibidem. p. 30. 51 BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 233.
44
de expressão não foram as mesmas da Antigüidade e, pelos padrões desta, foram “não clássicas”. Sua dinâmica desafiou a disciplina das proporções harmoniosas e preferiu a exuberância completa. É por isso que o teatro medieval é tão difícil de ser estudado, e é por isso que freqüentemente ocupa um lugar inferior no certame das formas rivais do teatro mundial.52
O drama natalino mal necessitava de equipamentos técnicos especiais, por isso,
em alguns lugares, ele manteve-se dentro das igrejas, mesmo quando os autos da
Paixão e das lendas começaram a expandir-se pelos pátios dos mosteiros e praças dos
mercados. O desenvolvimento posterior do auto de Natal não sofreu influência das
disputas teológicas, desvencilhou-se de todo o lastro do Velho Testamento,
conservando a magia da manjedoura de Belém até os nossos dias, enriquecida pelos
mais diversos costumes populares locais.
Assim é que poetas contemporâneos, como João Cabral de Melo Neto,
recompõem essa forma dramática, utilizando-se da cultura popular e do folclore, mas
sem perder os traços originais.
2.3 Um auto: popular, nacional-popular
Conhecidos alguns apontamentos em torno da forma do auto, retomaremos a
afirmação colocada no capítulo anterior sobre o Auto de Natal Pernambucano, escrito
por João Cabral de Melo Neto. Segundo Benedito Nunes, há em Morte e Vida Severina
“um auto de Natal dentro do Auto propriamente dito”.53 Essa afirmação fica bastante
evidente quando analisamos os dois movimentos no desenvolvimento da obra: a
primeira parte, voltada para a morte e a negação da vida; a segunda, celebração da
vida, em forma de auto de Natal. Essa chave de análise, sempre considerada pela
crítica posterior, acaba destacando os últimos episódios da ação como a parte mais
importante dessa obra. Nancy Maria Mendes,54 por sua vez, pondera essa afirmação
52BERTHOLD, op. cit., p. 185. 53 NUNES, op. cit, p. 82-89. 54 MENDES, op. cit., p. 15-29.
45
destacando que o auto dentro do Auto divide espaço com o desenvolvimento da ação
que enfatiza o modo de vida e os problemas de Severino, o protagonista-retirante.
A análise-interpretação que estamos propondo irá considerar essa relação com a
tradição, a fim de entendermos como, na tessitura deste “auto de natal pernambucano”,
há não só um auto dentro do Auto, mas dois: um circunscrito às circunstâncias,
personagens e espaços da retirada do Sertão para o litoral, no qual há uma “encenação”
da morte em toda a sua dimensão simbólica, diante da qual Severino, na maior parte
das vezes, é espectador; e outro, já destacado pela crítica, inscrito numa atmosfera
alegre e celebrativa do nascimento de uma criança na periferia de Recife, no qual
destacaremos as relações com o auto natalino popular das lapinhas e pastoris.
Consideremos, pois, os dois movimentos que aparecem no título: “morte e
vida”. No primeiro, temos o trajeto de Severino, personagem-protagonista, para o
Recife em busca de sobrevivência, deparando-se, porém, neste trajeto, sempre com a
morte. No segundo movimento, o da vida, o autor, mesmo utilizando a forma do auto,
não enfoca apenas a euforia diante da vida como temos nos autos tradicionais, o
otimismo que aí se verifica é sobre a confiança no homem, em sua capacidade de
sobreviver a todos os problemas sociais.
O enredo inicia-se com um monólogo de Severino, personagem central, que
tenta explicar ao leitor/espectador quem ele é, qual a sua origem e a que veio. Esse
procedimento é próximo ao prólogo das tragédias clássicas, quando um personagem ou
o coro narra os fatos anteriores à ação, situando o espectador. Na tentativa de encontrar
uma forma de se identificar, ele se caracteriza como um personagem típico, coletivo.
Tal qual Fabiano, de Vidas secas, ele representa todos os sertanejos retirantes em busca
de sobrevivência. São, portanto, Severinos todos os retirantes que “a seca expulsa do
sertão e que o latifúndio expulsa da terra”.55
Severino passa de substantivo próprio a comum, perdendo o seu caráter de
substância e passando a assumir uma função adjetiva que qualifica a existência negada.
Dessa forma, a vida severina designa, igualmente, todo aquele que vive numa situação
55 NUNES, op. cit., p. 82.
46
de carência e de negação da vida. Há, portanto, um nivelamento de muitos sertanejos
severinos:
[...] Iguais em tudo na vida: Na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta. [...] (MVS, p. 46)
Esta primeira parte do texto é constituída de seis monólogos de Severino,
entremeados de quadros e diálogos com outros personagens, como: 1) o encontro com
dois homens carregando um defunto numa rede; 2) a casa onde o retirante chega e
estão cantando excelências para um defunto, enquanto um homem ao lado vai
parodiando as palavras dos cantadores; 3) a mulher da janela, com quem Severino
trava um longo diálogo; 4) o enterro de um trabalhador do eito; 5) a chegada ao Recife
e a conversa de dois coveiros; 6) o encontro com seu José mestre carpina. Em todos
esses quadros, através das falas das personagens, nos são apresentadas as suas
condições de vida, a relação dos indivíduos com o espaço, a maneira como se
processam as relações sociais, etc.
Os monólogos, através dos quais nos é dado conhecer as concepções de mundo
e de vida dos personagens, sem mediação, garantem, ainda que de forma descontínua,
o desenvolvimento ascendente da ação, que atinge o seu clímax quando o personagem
procura uma saída: a de “saltar numa noite fora da ponte e da vida”, ou seja, quando
ele busca na morte, solução para os seus problemas imediatos. Esse clímax se
intensifica com o diálogo entre Severino e seu José, habitante dos mangues, e se
interrompe de maneira brusca, quando uma mulher anuncia-lhe o nascimento de uma
criança. A partir desse momento, Severino se retira da ação da qual é protagonista e
passa a presenciar uma outra – a comemoração do nascimento – representada para ele
e para o leitor/espectador como um Auto de Natal.
47
Quanto ao espaço, esta categoria aparece no texto de forma concreta,
dimensional, constituindo os cenários onde os personagens vivem seus atos e seus
sentimentos: o sertão, com sua terra ressequida, o agreste e a zona da mata, onde o
retirante imagina que seja uma terra “doce para os pés e para a vista”; o rio Capibaribe
que, como tantos outros rios periódicos, se corta, frustrando o retirante; o Recife com
os mangues e palafitas e toda a miséria humana que acompanha o personagem desde o
Sertão.
[...] Vejo que o Capibaribe, como os rios lá de cima, é tão pobre que nem sempre pode cumprir sua sina e no verão também corta, com pernas que não caminham tenho de saber agora qual a verdadeira via entre essas que escancaradas frente a mim se multiplicam [...] (MVS, p.51)
[...] Bem me diziam que a terra se faz mais branda e macia quando mais do litoral a viagem se aproxima agora afinal cheguei nessa terra que diziam. Como ela é uma terra doce Para os pés e para a vista. [...] (MVS, p 38) [...] Sabia que no rosário de cidades e de vilas e mesmo aqui em Recife ao acabar minha descida, não seria diferente a vida de cada dia: que sempre pás e enxadas
48
foices de corte e capina, ferros de cova, estrovengas o meu braço esperariam. (MVS, p. 69)
Todo este espaço dramático, peculiar por se apresentar como uma espécie de
continuum entre o sertão e o litoral, funciona como pano de fundo dos acontecimentos,
constituindo referências que situam as ações dos personagens e prestam-se à
construção de sentido dentro do enredo como índices da condição social do
personagem e de seu estado de espírito. No fragmento seguinte, o retirante faz menção
aos espaços percorridos, afirmando a permanência da sua condição social. Ao
descrever as diferentes regiões por ele percorridas, sem que haja nenhuma melhora na
condição de vida, verifica-se que o problema social do Nordeste é bem mais complexo
do que a falta de chuva, pois regiões que não sofrem o problema da estiagem também
padecem da mesma miséria e da desigualdade social, de forma que o retirante não
percebe nenhuma diferença em termos de melhoria da qualidade de vida.
[...] Mas não senti diferença Entre o Agreste e a Caatinga E entre a Caatinga e aqui a Mata A diferença é a mais mínima. (MVS, p.63)
A categoria tempo é outro componente na composição da obra,
determinando as relações passado-presente-futuro. Os valores cronológicos são regidos
pelo princípio da causalidade, sendo a seca e o latifúndio a causa inicial da saída de
Severino do sertão. A partir daí, desencadeiam-se acontecimentos marcados pela
causalidade, visto que a cada um desses movimentos da obra – o da morte e o da vida –
pertence um certo tipo de temporalidade.
O da primeira é o tempo do sofrimento e do desgaste dos seres, um tempo
destrutivo e não cumulativo, onde a aproximação da morte não se dá de forma natural,
mas sim como antecipação dela. No monólogo que marca o clímax, Severino exprime
49
essa temporalidade que é marcada pelo sofrimento e pela negação da vida, tantas vezes
encarada em sua retirada:
[...] E chegando, aprendo que, nessa viagem que eu fazia, sem saber desde o sertão, meu próprio enterro eu seguia. Só que devo ter chegado Adiantado de uns dias; O enterro espera na porta: O morto ainda está com vida. (MVS, p.69)
O segundo tipo de temporalidade é a suspensão mítica do tempo no instante
festivo de uma epifania, no momento em que Severino se afasta da ação e assiste à
celebração do nascimento da criança. Percebemos, nesta passagem, que há uma
abolição das fronteiras entre passado – presente – futuro. É, principalmente nela, que
este “auto de Natal pernambucano” retoma os tradicionais quadros e personagens da
Lapinha ou do Auto Medieval de tradição ibérica. De forma análoga, podemos
estabelecer relações entre as figuras que aparecem no auto de natal e as passagens
bíblicas que são representadas nos autos tradicionais. Nas louvações e loas, as
personagens utilizam-se dos monólogos para expor o movimento esperança-
continuidade em torno da figura do menino. Essa proliferação de loas, portanto, indica
uma interpenetração de traços líricos, presentes nos pastoris e, agora, em Morte e Vida
Severina, que assume, neste momento e, com maior consistência, a estrutura do auto de
Natal, as lapinhas e os pastoris.56
As lapinhas ou pastoris – nome que aparece na maioria dos compêndios
sobre tradições populares – têm sua origem mais remota, segundo Mário de Andrade,57
no Tropo de Natal criado pelo monge alemão Tuotilo, no século X. Trata-se de um tipo
de canção que acrescentava aos textos sagrados, referentes à Natividade, diálogos
apresentados por coros. Essas canções natalinas, já com caráter dramático, foram-se
56 Cf. NUNES, op. cit. 57 ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil. 1º Tomo. Belo Horizonte: Itatiaia Ltda, 1982.
50
divulgando pela Europa Ocidental, enquanto na Itália se difundia a representação
dramática do nascimento de Jesus, o presépio, instituído, segundo a tradição, por São
Francisco de Assis, no século XII. Os dramas litúrgicos surgidos na Península Ibérica,
nesse mesmo século, se enriquecem com essas duas vertentes, dando origem aos autos
natalinos e aos vilhancicos – cantigas a solo e refrão coral, cantadas provavelmente por
populares encarnando pastores nas representações da Natividade. Em Portugal, essas
representações caracterizadas por cantos e danças diante do presépio intitularam-se, a
partir do século XVIII, “autos pastoris” ou “presepes”. Sua introdução no Brasil
remonta ao século XVI, fixando-se apenas no Nordeste, onde floresceram até o século
XIX.
Segundo Câmara Cascudo,58 Lapinha é a denominação popular do pastoril,
com a diferença de ser representada como uma série de pequeninos autos diante do
presépio. Os presépios foram armados em Portugal desde 1391, quando as freiras do
Salvador, em Lisboa, fizeram o primeiro. No século XVI, o assunto foi dramatizado no
plano popular, transformando-se o drama hierático em auto religioso, mas de
movimentação contemporânea portuguesa.
Na verdade, desde o primeiro século, tivemos pastoris na Colônia, mas o século
XIX é o período de afloração máxima dos bailes pastoris. Na Bahia e em Pernambuco
eles se desenvolveram numa produção vastíssima. No entanto, é curioso observar que
os pastoris nunca tiveram repercussão verdadeiramente nacional. Conservaram-se,
ainda segundo Mário de Andrade, no Nordeste. Se em todo o Brasil há festas de Natal
e o Presépio é uso nacional, o pastoril não se estendeu para o Centro e Sul do País.
Diferentemente de outras danças como Cheganças, Congos, Caboclinhos, Bumbas, que
apesar de sua expansão e florescimento terem se dado no Nordeste, se encontra rastros
em todo o Brasil. Embora as representações de Natal sejam essencialmente religiosas,
a profanização do pastoril principiou desde sua origem ibérica, ou seja, unem-se aos
temas religiosos dados da vida profana.
58 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Ed. 11. São Paulo: Global, 2002. p. 325.
51
A obra de Pereira da Costa, Folk-lore pernambucano,59 serve de fonte
bibliográfica para João Cabral de Melo Neto. Percebemos a aproximação através do
cotejo das duas obras, identificando semelhanças tanto no plano da sintaxe, como no
vocabulário. Em cinco cenas, o poema apresenta aproximação com as loas dos pastoris
de Pernambuco presentes na obra de Pereira da Costa. 60
A mulher anuncia a chegada Loa do anjo anunciando Do filho do mestre Carpina às pastoras o nascimento do Messias. Comprade, José, comprade Pastoras, belas pastoras, que na relva estais deitado: que na relva estais deitadas conversais e não sabeis descansais e não sabeis que vosso filho é chegado? que a luz do Céu é chegada? (MVS,72) ( Folk-lore, 471)
Nessa passagem, os dois fragmentos aproximam-se dos textos bíblicos que
tratam do nascimento do Menino Deus. Embora haja a presença do profano, há no
texto de João Cabral marcas bastante fortes de religiosidade, a exemplo do personagem
Mestre Carpina, que, como São José, é também carpinteiro, que provém da cidade
nordestina de Nazaré da Mata, além de ser chamado de José. Há, portanto uma
intencionalidade por parte do autor de manter essas semelhanças com o texto sagrado.
Quanto à semelhança com as loas citadas por Pereira da Costa, apresenta uma
transcrição quase que literal.
Falam ciganas que haviam Buenadicha das ciganas aparecido com os vizinhos Atenção peço, senhores, Atenção, peço, senhores Para esta breve leitura; Para essa breve leitura, Somos ciganas do Egito, E uma atenção piedosa Lemos a sorte futura. A toda e qualquer criatura. (MVS,75) (Folk-lore, 484)
59 COSTA, Pereira da. Folk-lore Pernambucano. Recife: Edição autônoma/Arquivo Público Estadual, 1974. 60 MENDES, op. cit., já destacou essas aproximações.
52
As ciganas tanto em Morte e Vida severina, quanto nas Loas, utilizam-se de
meios de quiromancia e predizem o futuro dos recém-nascidos. No caso do filho de
Mestre Carpina, a previsão é de sofrimentos e de negação da vida, com poucas
possibilidades de melhoria de qualidade de vida. Quanto à previsão das jornadas,
anunciam os sofrimentos de Jesus, mas insistem na redenção e na vitória final.
Falam os vizinhos, amigos.... Jornadas De sua formosura Da sua formosura já venho dizer: eu já vou dizer é um menino magro algumas cousinhas de muito peso não é do meu entender. mas tem o peso do homem, (...) de obra de ventre de mulher (...) Todo o céu e a terra Todo céu e a terra lhe cantam louvor vos cantam louvor. foi por ele que a maré o menino Deus esta noite não baixou. Nosso redentor. (MVS,77) (Folk-lore,484)
As jornadas que tratam da beleza e da formosura do recém-nascido fazem uma
oposição em relação às loas transcritas por Pereira da Costa. As jornadas, quando
fazem referência ao menino-Deus, exaltam-lhe a beleza física; já, em Morte e Vida
Severina, o autor descreve uma criança raquítica e franzina, pondo em evidência toda a
fragilidade das crianças moradoras do mangue. No entanto, o poeta enaltece a vida,
mesmo uma vida severina.
Começam chegar pessoas trazendo Oferta das pastoras presentes para o recém nascido
Minha pobreza tal é Minha pobreza tal é Que não trago presente grande: Que oferta não achei! Trago para a mãe caranguejos Na aldeia não encontrei Pescados por esses mangues; Cousa que fizesse fé; Mamando leite de lama Eu ofereço a São José
53
Conservará nosso sangue. Estes dois inocentinhos, (MVS, p. 74) São precisos, coitadinhos, No dia d’Apresentação, Aceitai meu coração, Aceitai: são dois pombinhos. (Folk-lore, p.486)
Os versos iniciais da cena das ofertas são retirados dos pastoris, por isso ao
optar por objetos da terra, além de fazer um jogo poético com o trocadilho entre os
produtos e os lugares de origem (“Eis tamarindos da Jaqueira/e jaca da Tamarineira./
Mangabas do Cajueiro/ e cajus da Mangabeira”), o poeta faz alusão aos pastoris que,
em suas oferendas, sempre apresentam elementos da tradição judaica, como os
pombinhos que levam os pais do Menino Jesus, no dia de sua apresentação no Templo.
É importante observar que as loas do pastoril têm um caráter mais religioso,
voltado para os textos bíblicos enquanto o auto cabralino trata mais das questões
humanas, em que o recém-nascido representa todo o sofrimento e a insalubridade dos
moradores do mangue. No entanto, guarda também semelhanças com o texto bíblico.
Outro aspecto interessante é a presença de personagens que saem do meio do povo, das
classes subalternas.
Nesse sentido, é possível afirmar que todos os personagens de Morte e Vida
Severina são efetivamente populares, como o retirante Severino, protagonista da peça;
a mulher da janela, as mulheres que cantam excelências, os coveiros, os moradores do
mangue. Este é um ponto que aproxima o auto cabralino dos autos de Gil Vicente: a
presença de tipos populares. O povo é trazido para as peças através dos personagens
que desempenham papéis importantes, se contrapondo à elite que quase sempre é
representada através de personagens que reafirmam a ideologia da classe dominante.
Sobre a presença desses tipos populares, por exemplo, na obra de Gil Vicente,
Cleonice Bernadinelli assim se posiciona:
Tem-se dito e repetido que o papel do povo é fundamental na obra de Fernão Lopes. Assim também na de Gil Vicente, com uma particularidade: o seu povo se constitui, quase de rústicos – pastores, lavradores e vilões, pastores, sobretudo. Simples, às vezes ingênuos, mas não tolos, dota-os o dramaturgo de uma risonha malícia e de uma
54
forte dose de crítica que se exerce principalmente contra o clero, a classe poderosa que, por seu procedimento infrator das próprias regras, mas se expunha ao ataque e à chacota.61
Embora os personagens nas obras dos dois autores sejam populares, o que os
diferencia é o comportamento. Enquanto em Gil Vicente há uma dose de humor e
sátira bastante acentuada, no auto de João Cabral há uma crítica que, sutil e bastante
elaborada, não leva ao riso, mas a uma reflexão sobre a realidade social do Nordeste. O
vilão representado pelo latifúndio, aparece como uma alegoria e não como um
personagem comum. Também na obra de Gil Vicente os personagens alegóricos
aparecem com muita freqüência, representando o Mal, o Bem, a Igreja, o Céu, o
Inferno. Assim, também ocorre no auto cabralino: a morte Severina, que ataca em
qualquer idade, o êxodo rural, a inchação dos grandes centros urbanos (representados
pelo Recife), a divisão de classes, até nos enterros, como fica evidenciada no diálogo
dos coveiros, a concentração de renda nas mãos dos poderosos são alguns dos temas
desenvolvidos em Morte e Vida Severina. A força dos temas não permite um humor
exacerbado como ocorre em alguns autos vicentinos. Há, portanto, uma crítica que
desperta o leitor/espectador, levando-o a uma tomada de consciência e incitando-lhe o
desejo de mudanças urgentes nas políticas sociais do Brasil.
2.4 Pessoas e personagens do auto
Neste tópico, traçaremos um perfil geral dos personagens representados, com
especial destaque para alguns, a fim de levantarmos marcas da cultura popular na
constituição dos mesmos. Iniciaremos com o protagonista, o retirante Severino que
representa um arquétipo de todo sertanejo desenraizado que busca em outras terras
meios de subsistência. Já no início do poema, ele se apresenta, trazendo em sua
descrição pessoal, características comuns a tantos sertanejos migrantes como, por
exemplo, a falta de identidade. 61 BERNADINELLI, Cleonice. O rústico no teatro vicentino. Semear: Revista da Cátedra Padre Antônio Vieira de Estudos Portugueses. Rio de Janeiro v.1, n.1, 1997. p.126
55
Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta. [...] Mas para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra. (MVS, p. 46. )
O anonimato de Severino é algo patente nesse fragmento, pois a tentativa de
identificação torna-se quase impossível, visto que, como tantos Severinos, se igualam
em tudo: na falta de identidade, nos aspectos físicos, na migração em busca de
sobrevivência, enfim ele é um personagem tipo, representando toda uma classe
social. Segundo Secchin,62 a auto-apresentação do personagem mostra um Severino
que, quando mais se define, menos se individualiza, pois seus traços biográficos são
sempre partilhados por outros homens.
A rezadeira é outra figura muito importante no meio popular, sobretudo nas
áreas mais carentes, onde ela representa a figura do médico, do farmacêutico, enfim
daqueles que deveriam garantir um direito essencial do ser humano: a saúde. Na fala
do personagem existe uma crítica social contundente.
— Como aqui a morte é tanta, só é possível trabalhar nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar. Imagine outra gente de profissão similar, farmacêuticos, coveiros doutor de anel no anular, remando contra a corrente
62 SECCHIN, op. cit., p.
56
da gente que baixa ao mar, retirantes às avessas, sobem do mar para cá. (MVS, p. 57 )
Acrescenta-se a esses personagens, as mulheres carpideiras que cantam
excelências, seguindo uma tradição cultivada pelo povo nordestino e que tem sua
origem em Portugal. Trata-se de uma prática do catolicismo popular relativamente
freqüente em Pernambuco, no interior, de modo especial. São cantos entoados à
cabeceira dos moribundos ou dos mortos. Uma espécie de ritual de velório, com
benditos e frases apenas rimadas. Chamadas também de “incelências” ou “incelenças”,
estas práticas escapam à ortodoxia católica. As excelências são cantadas ao pé do
morto, enquanto os benditos são cantados à sua cabeça, rimados sempre em número de
1 a 12, quando se trata de adulto, e, de 1 a 9, quando se trata de criança. Em Morte e
Vida Severina, as excelências vêm seguidas de uma denúncia social que se apresenta
na voz do homem que vai parodiando os versos.
Outros personagens, também oriundos do povo, são os coveiros. No diálogo
apresentado por eles, percebe-se uma crítica social bastante elaborada, em que fica
muito clara a divisão de classes e o alto índice de mortalidade entre as classes menos
favorecidas, o que não ocorre nas classes que detêm o poder. No fragmento que segue,
os coveiros fazem uma alusão aos enterros realizados nos cemitérios de Casa Amarela,
bairro pobre do Recife, e os realizados em Santo Amaro, cemitério onde as pessoas
que pertencem à classe social mais privilegiada se enterram.
- É que o colega ainda não viu o movimento: não é o que vê. Fique-se por aí um momento E não tardarão a aparecer os defuntos que ainda hoje vão chegar (ou partir, não sei). As avenidas do centro, onde se enterram os ricos, são como o porto do mar; não é muito ali o serviço: no máximo um transatlântico chega ali cada dia,
57
com muita pompa, protocolo, e ainda mais cenografia. Mas este setor de cá é como a estação de trens: diversas vezes por dia chega o comboio de alguém. (MVS, p. 64)
Todos esses personagens apresentados estão ligados à morte e se apresentam na
primeira parte do auto que, neste trabalho, definimos como o auto da morte. Na
segunda parte, que definimos como o auto da vida, encontram-se outros personagens
muito populares: as ciganas. A presença das ciganas, no poema, pode ser identificada
com os Severinos, pela marginalização em que vivem os ciganos, pelo nomadismo e
pela exclusão social a que foram submetidos, historicamente. O fato de alimentarem
práticas de quiromancia e adivinhação fez com que fossem repudiados pela Igreja
Católica e pelas diferentes religiões cristãs. A partir daí, a perseguição aos ciganos, na
Europa, não se fez esperar. Foram proibidos de usar os seus trajes típicos, de falar a
sua língua, de viajar, de exercer os seus ofícios tradicionais ou até mesmo de casarem
com pessoas do mesmo grupo étnico. Esta perseguição se acentuou na Segunda Guerra
Mundial, quando juntamente com os judeus estima-se que cerca de meio milhão tenha
perecido no Holocausto nazista. Apesar da perseguição, os ciganos resistiram e hoje,
são considerados o maior grupo de minoria da Europa. Este breve comentário sobre os
ciganos objetiva reiterar a importância desses personagens no auto. O motivo de se
introduzirem tais personagens está ligado ao caráter místico desse povo e à hipótese de
serem eles originários do Egito, terra considerada sagrada para o cristão, por ter sido o
refúgio de Jesus durante a perseguição de Herodes.
No início deste capítulo nos propusemos a identificar as marcas da cultura
popular em Morte e Vida Severina. Encontra-se nesta obra a presença de elementos da
cultura popular, do nacional-popular (a partir de uma visão gramsciana), além das
personagens que têm sua origem no meio popular. Isto reitera o que afirmamos,
inicialmente, sobre o cruzamento das diversas culturas existentes, sendo difícil
estabelecer um limite entre o erudito e o popular, pois estes se mesclam de tal forma,
58
que se torna impossível falar de formas puras, principalmente num país como o Brasil,
cujo processo de colonização foi dialeticamente construído.
59
CAPÍTULO 3
O auto da Morte e o da Vida
3.1 O externo e o interno: processo social e forma literária
A análise-interpretação que está sendo empreendida busca compreender
como a “substância de expressão” da obra Morte e Vida Severina – ou seja, como
os aspectos sociológicos, portanto externos, que representam a realidade em suas
múltiplas dinâmicas sociais, tipos e espaços – transformam-se em “forma de
expressão”, tornando-se fatores internos e estruturais da obra. Portanto, destacamos
os aspectos sociais não apenas como algo exterior, ou como simples referências
para identificação de um modelo de sociedade, neste caso, marcada pelas
contradições sociais; mas, sim, como fator determinante da própria construção
artística, em que os elementos sociológicos não se apresentam apenas no nível
ilustrativo, como afirma Antonio Candido:
A obra depende estritamente do artista e das condições sociais que determinam a sua posição. Por motivo de clareza, todavia, preferi relacionar ao artista os aspectos estruturais propriamente ditos; quanto à obra, focalizemos o influxo exercido pelos valores sociais, ideologias e sistemas de comunicação, que nela se transmudam em conteúdo e forma, discerníveis apenas logicamente, pois na realidade decorrem do impulso criador como unidade inseparável. Aceita, porém, a divisão, lembremos que os valores e ideologias contribuem principalmente para o conteúdo,
60
enquanto as modalidades de comunicação influem mais na forma.63
Diferentemente de outras obras de João Cabral de Melo Neto, que se voltam
à reflexão sobre o fazer poético, como quase sempre a crítica destaca, por exemplo,
Morte e Vida Severina apresenta uma temática voltada, entre outras coisas, para a
denúncia social, com especial destaque para a questão agrária, a luta pela posse da
terra e a morte como conseqüência dessa luta.
O texto, tal como a realidade, mostra a luta cíclica de Severino, não
procurando apresentar nenhuma solução para o problema da concentração de terra e
de poder. Na verdade, em algumas passagens fica registrada a impotência do
retirante frente à realidade, de forma que a história se repete e o grito dos excluídos,
aqui representado pelo protagonista, fica “parado no ar”, sem uma resposta concreta
ou objetiva. A busca de Severino, pela sobrevivência, se dá de forma pacífica,
através de um discurso marcado por reflexões que levam o leitor/espectador a
posicionar-se sobre os problemas sociais que afetam grande parte da população
brasileira, independentemente da região geográfica, pois, no texto, a miséria está
presente no Sertão, no Agreste, na Zona da mata e, também, no Litoral. O texto
literário, mais uma vez, trata de temas sociais importantes, mas não consegue
transformar a realidade apenas através da palavra, pondo-se em cheque, como já
afirmou Pilati:
Se a literatura pode ser um local em que a voz do oprimido se manifesta, estabelece-se um problema cruel. Se a voz do oprimido pode ser ouvida em termos literários, o caminho está aberto para que se estetize o grito do vencido, tornando-o peça de museu ou objeto pitoresco.
Mas no poema de Cabral, Severino, o oprimido, o vencido pelo processo modernizador, não pode falar, sua voz é silêncio. A literatura, então, nesse caso, questiona a si própria, pois assume em sua constituição suas falhas e contradições históricas, que, de resto, pertencem à constituição da própria sociedade brasileira. Se Severino não fala, a literatura impõe-se a si mesma como um problema para o próprio escritor, que não vê outra saída senão
63 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade estudos de teoria e história literária. 8. ed. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 2000. p. 30.
61
perceber e assumir que a literatura em um país como o Brasil é um beco sem saída, é eco de voz nenhuma.64
Assim, também, reconhece-se, nessa tomada de consciência, mesmo que de
um “beco sem saída”, algo como um “salto participante” nos textos de João Cabral
da década de 1950, visto que, em sua obra, se dá um esforço para uma apreensão da
realidade modulada pela poesia. Morte e Vida Severina, além da temática, se
diferencia de outras obras do autor em certos aspectos lingüísticos e formais.
Quanto à forma, como já demonstramos, o autor trabalha com uma mescla de
gêneros que torna esta obra singular, ao escolher o auto com seus caracteres
dramáticos entremeado de trechos narrativos e líricos.
Nesse sentido o crítico pernambucano Sebastião Uchôa Leite afirma que o
poeta João Cabral estava pronto para dar seu “salto participante”, tomando a poesia
como instrumento de conhecimento da realidade brasileira,65 levando a termo as
tensões expostas em obras anteriores como, por exemplo, Psicologia da
composição, em que se percebe uma intensa negatividade acerca das relações entre
poeta e poesia.66 Isso reforça os argumentos de Benedito Nunes, quando ele afirma
que a crítica cometeu alguns equívocos, quando da classificação da obra de João
Cabral em primeira e segunda água. O livro Duas águas inclui-se na “primeira
água”, juntamente com os livros Pedra do sono, O Engenheiro, Psicologia da
composição, ao lado de O cão sem plumas, Uma faca só lâmina e Paisagens com
figuras. Já a “segunda água” se compõe de Os três mal-amados, ao lado de O rio e
Morte e Vida Severina...67 Vejamos:
O primeiro equívoco é considerar os dois tipos de dicção como espécies distintas de poesia, uma fácil e outra difícil, uma acessível e penetrável, outra requintada e super elaborada. O segundo equívoco diz respeito à temática e o terceiro à participação [...] Nem a
64 PILATI, Alexandre. Pode o Severino falar? Estudos de Literatura Brasileira contemporânea, n. 13. Brasília, maio/junho de 2001. p. 04. 65 LEITE, Sebastião Uchoa. Participação da palavra poética. Petrópolis: Vozes, 1966. 66 Cf. PILATI, op. cit., p. 3. 67 NUNES, op. cit., p. 71.
62
temática social nem o alcance participante são privilégio de uma só água. Ambas atendem a uma perspectiva de construção, pela qual o poeta se distancia de si mesmo e das coisas, tornando-se um agente do discurso, liberado da voz pessoal de seus sentimentos. O grau de construtividade é que varia de uma para outra, não chegando em Morte e vida severina ou em O rio a um mesmo adensamento temático e ao mesmo controle lógico do mecanismo das imagens, que podemos notar em O cão sem plumas.68
Podemos depreender que aquilo que estava definido como uma divisão de
temas sociais na obra de João Cabral, torna-se inconsistente a partir da leitura mais
acurada de Paisagens com figuras, em que a temática social se faz presente, ora de
forma isolada, ora em conjunto com outros assuntos. Assim, o que parecia ser
exclusividade de uma só água, transita para obras que se voltam para o exercício do
fazer poético marcado pela “poesia da poesia”. Desta forma, criou-se, naturalmente,
uma espécie de divisão entre aqueles que defendem o fazer poético mais elaborado,
como a construção da inteligência, e aqueles que acreditam que a elaboração
poética intelectualmente conduzida causa um distanciamento, dificultando a
compreensão da obra. Na visão dos primeiros, obras como Morte e Vida Severina e
O rio apresentam um desvio do rigor formal. Na visão da segunda corrente, estas
obras apresentam autenticidade, garantida pela denúncia social e pelo espírito
participante. Vejamos o que nos diz Benedito Nunes:
Se a poesia participante, no sentido comum do termo, é aquela que se define pelo seu uso prático, como arma de crítica social, a obra de João Cabral pode ser considerada uma arma de longo alcance, que mantém a realidade sob a mira de uma visão não convencional, atingindo-a com os tiros certeiros da sátira.69
É nesta perspectiva de apreensão da realidade e de poesia participante que
buscaremos compreender como essa realidade social pode se transformar em
elementos estruturais e internos da obra, apreensíveis pelo analista literário,
conforme o entendimento proposto por Antonio Candido:
68 Ibidem, p. 72. 69 Ibidem, p. 73
63
Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou da história sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação que assimilou a dimensão social como fator de arte. Quando isto se dá, ocorre o paradoxo assinalado inicialmente: o externo torna-se interno e a crítica deixa de ser sociológica, para ser apenas crítica. O elemento social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos, lingüísticos e outros. Neste nível de análise, em que a estrutura constitui o ponto de referência, as divisões pouco importam, pois tudo se transforma, para o crítico, em fermento orgânico de que resultou a diversidade coesa do todo.70
Além dos aspectos sociais, são evidenciados outros elementos que
constituem a obra literária e que lhe conferem coerência e harmonia, quais sejam,
os aspectos psicológicos dos personagens, os aspectos religiosos e o registro
lingüístico. Todos esses elementos são muito bem trabalhados em Morte e vida
Severina. A realidade social na qual estão inseridos os personagens determina o
comportamento dos mesmos, que muda em conformidade com essa mesma
realidade.
Para uma melhor compreensão do que estamos querendo destacar, faz-se
necessário o registro de algumas passagens em que, subitamente, Severino muda de
expressão, naquilo que se refere à sua relação com o mundo circundante, quando
vislumbra alguma mudança para algo melhor do que o que tem encontrado. Ou seja,
a psicologia da personagem também se relaciona com dados externos, seja outras
personagens, seja as mudanças espaciais, tudo torna o seu caráter dinâmico. Ora o
seu encontro com as mulheres que cantam para um defunto e que ele confunde com
cantoria ou novena, ora o momento em que ele vê a mulher na janela e espera que
ela possa lhe dar trabalho, ora a esperança que lhe enche a alma com a proximidade
do litoral. Vejamos:
Ouço somente à distância O que seria cantoria. Será novena de santo, Será algum mês-de-Maria;
70 CANDIDO, op. cit.. p. 7.
64
Quem sabe até uma festa Ou uma dança não seria? (MVS, p. 51) Vejo uma mulher na janela, Ali, que se não é rica, Parece remediada Ou dona de sua vida: Vou saber se de trabalho Poderá me dar notícia. (MVS, p. 53-54). Bem me diziam que a terra se faz mais branda e macia quanto mais do litoral a viagem se aproxima. Agora afinal cheguei nessa terra que diziam. Como ela é uma terra doce para os pés e para a vista. Os rios que correm aqui têm a água vitalícia. (MVS, p. 58).
O aspecto religioso é bem presente, no que tange às relações entre a
realidade social e o texto. Podemos constatar isso em passagens em que a
religiosidade popular e os aspectos culturais da região fundem-se, como veremos
adiante, ao destacarmos as incelenças, os funerais, o diálogo com a mulher da
janela, a celebração do nascimento da criança no mangue. Quanto ao registro
lingüístico, percebe-se que é feita uma seleção vocabular que contempla os diversos
segmentos sociais e culturais das personagens, pois, considerar os diversos falares
numa obra literária, significa associar os elementos externos e, portanto,
sociológicos, aos elementos internos e estruturais, tal como Antonio Candido nos
ensina.
Voltemos, agora, ao ponto que escolhemos neste trabalho, como chave – a
questão da forma dramática do auto, escolhida por João Cabral para tratar de um
tema social próprio da realidade do Nordeste brasileiro. Dentre os conflitos sociais
abordados, um diz respeito ao paradoxo da modernidade, representada no texto pela
chegada das usinas, em substituição aos engenhos, versus à estagnação social,
65
resultante da falta de trabalho manual para os que cultivam a terra e do monopólio
desta nas mãos dos latifundiários. Isso, na verdade, representa o atraso e a ausência
do progresso, num país marcado pelas diferenças e pela exclusão. Neste aspecto é
que Alexandre Pilati afirma que:
A escolha da forma auto, com todos os seus matizes ibéricos arcaizados, pode ser um sintoma de que a modernidade, não pode chegar onde não há modernização material. Uma forma literária arcaica é, pois, um modo de denunciar a perpetuação da exploração operada pelas formas de como se deu a colonização. Sejam elas estéticas, sociais, políticas ou econômicas. [...] Pode-se encontrar a prova disso na própria estrutura do texto. Acrescentando-se ao combate cultural entre centro e periferia a questão da luta de classes, pode-se perceber que as formas arcaizadas em Morte e vida Severina, mais do que resistência popular ao impacto externo, são denúncias da forma como se deu, cultural ou economicamente, a modernização na região nordeste do Brasil.71
No que se refere à possibilidade de se retratar uma realidade genuinamente
brasileira em estilo “ibérico”, Marly de Oliveira comenta:
Morte e vida Severina é uma homenagem às várias leituras ibéricas: os monólogos do retirante têm em comum com o romanceiro ibérico o uso de heptassílabo e a assonância; a cena do irmão das almas homenageia o romance catalão do conde Arnand; a cena do velório é pernambucana; a da mulher na janela é um poema narrativo em português e arcaico, incorporado ao folclore pernambucano. A cena dos coveiros é, curiosamente, escrita em verso livre, quem sabe com a intenção de continuar a levar adiante uma conquista modernista. O diálogo do retirante com o mestre carpina segue os processos de tenção galega; o resto é ‘romance’ castelhano. O nascimento de Cristo se tornou um fato realista; a cena dos presentes, como outras, tem relação com os autos pernambucanos do século passado. As ciganas estão nos autos antigos prevendo o futuro nascimento da criança. Estão em Pereira da Costa, nas obras sobre o folclore pernambucano.72
71 PILATI, op. cit, p. 14 72 OLIVEIRA, Marly. Prefácio. In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 18.
66
Assim, entendemos que esses elementos de ordem temática ou social estão
de tal maneira formalizados na estrutura da obra, conferindo-lhe coerência e
unidade, que as escolhas formais do autor se relacionam intimamente às formas
arcaicas às quais eles também se relacionam, seja pelo espaço ao qual se refere a
obra, seja pelos tipos humanos representados, ainda vivendo num mundo que
dialoga com uma Ibéria antiga, mesmo que atualizada e reconstruída no Nordeste.
De outro lado, embora haja ambivalência de estrutura narrativa, quanto ao
encadeamento e ao caráter episódico das cenas que a compõe; da estrutura
dramática, quanto ao caráter geral da ação que se desenrola através das cenas; há,
também, passagens líricas, traduzidas, sobretudo, através dos monólogos, nos quais
a voz do retirante confunde-se com o eu lírico-épico, ora expressando suas dores,
sofrimentos, frustrações; ora relatando fatos e antecipando situações.
O próprio título da obra Morte e Vida Severina encerra uma ambigüidade
que parece intencional, pois o trabalho com a linguagem é bastante elaborado.
Mesmo se tratando de uma obra popular e, portanto, de fácil compreensão, o autor
utiliza uma espécie de trocadilho com o substantivo ‘Severino’, nome próprio, e o
adjetivo ‘severina’, tornando a forma e o conteúdo da obra um todo harmonioso, em
que “a palavra perde então o seu caráter de substantivo, e o ser que ela designa a
sua substância: <severino> adjetivo qualifica a existência negada.”73 Numa análise
mais acurada, reflete o dizer de Antonio Candido sobre os aspectos externos e
internos da obra literária.
Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e que só a podemos entender fundindo texto e contexto como momentos numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo.74
73 NUNES, op. cit, p. 82. 74 CANDIDO, op. cit, p. 6.
67
Os vocábulos Severino e severina mudam, assim, de função. Ao exercer a
função adjetiva, severina qualifica a vida de tantos Severinos, que, como o
protagonista, vivem numa situação de penúria e de exclusão social. Os elementos
sociológicos e, portanto, externos tornam-se internos, constituindo elementos
estruturadores do texto. Essa forma de utilização dos recursos lingüísticos revela o
trabalho artístico do poeta e traduz toda a harmonia existente entre os elementos
externos e os elementos internos e estruturais da obra. O trabalho de seleção
vocabular e a busca de tornar concreto o significado das palavras, transformando a
substância do ser em algo palpável é próprio do estilo de João Cabral.
3.2 Percursos da Morte e da Vida: auto(s)
A morte que precede a vida, no poema, prenuncia a subversão que vai estar
se espraiando na forma do auto, que ora se aproxima dos autos medievais, ora
apresenta uma ruptura, na medida em que não apresenta a euforia e o otimismo
existente naqueles, atualizando-se, ainda, a partir do uso de elementos do folclore
pernambucano, daí o subtítulo auto de natal pernambucano.
Ainda sobre o título, como discutimos anteriormente, o que causa
estranhamento ao leitor é o fato de a palavra morte anteceder a palavra vida. Esta
oposição numa sociedade em que a vida se sobrepõe à morte, naturalmente, causa
um certo estranhamento. A conotação dada pelo autor através do adjetivo
<severina> qualifica tanto a vida quanto a morte. Após a tentativa de identificação,
Severino explica o que é a “morte severina”:
[...] que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta de emboscada antes dos vinte, (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). (MVS, p. 46.)
68
Quanto à “vida severina”, o autor apresenta toda a forma de negação dos
direitos essenciais da pessoa humana. É o caso da dificuldade de identificação
anunciada no início do primeiro monólogo, no qual Severino tenta se apresentar ao
leitor/espectador, mas, os recursos de que dispõe, não o diferencia de tantos outros
Severinos, que como ele vivem em condições de indigência. Esta negação da vida
vai se intensificando ao longo do poema de forma que o encontro com a morte é
mais freqüente do que com a vida, embora haja uma alternância em algumas
passagens em que o encontro com a vida muda a perspectiva do retirante.
A partir dessa definição do que seja a morte e a vida severina, dividiremos a
nossa análise em dois blocos: o que reitera o encontro de Severino com a morte e o
que celebra a vida. Conforme discutimos no capítulo anterior, estamos
considerando a configuração de dois autos dentro do Auto: o da morte e o da vida,
que serão aqui analisados a partir do ponto de vista do protagonista, diante das
“representações” que se dão diante de seus olhos, de um e de outro movimento,
como se ele fosse espectador. Seguindo a ordem como os fatos acontecem, na obra,
identificaremos, primeiramente, o encontro com a morte.
3.2.1. O auto da Morte
Já no início de sua trajetória, o retirante se depara com a morte quando
encontra dois homens carregando um defunto numa rede, aos gritos de: “Ó irmão
das almas! Irmão das almas! Não fui eu que matei não!”. No diálogo que estabelece
com os que conduzem o morto, Severino vai tomando conhecimento das causas que
levam à morte prematura, que ataca em qualquer idade, sempre por motivo de
concentração de terras. A “morte severina” é vista pelos que sobrevivem como
sendo bem mais amena do que a “vida severina”, pois o morto já não terá que fazer
o percurso de volta para casa. Assim eles explicam:
- E um de nós pode voltar, irmão das almas,
69
pode voltar daqui mesmo para sua casa. -Vou eu que a viagem é longa, irmão das almas, é muito longa a viagem e a serra é alta. - Mais sorte tem o defunto, irmão das almas,
pois já não fará na volta a caminhada. (MVS, p. 50)
Ao interrogar os irmãos das almas sobre o motivo da morte, percebe-se tanto
na fala de Severino como nas respostas dadas pelos homens, que há uma
banalização da morte. Isso fica registrado no uso de imagens utilizadas pelo autor,
em que as verdadeiras causas da morte aparecem metaforizadas nas expressões
[morte causada por] “ave-bala”, “pássara”, na realidade, por tiro, emboscada. O
instrumento que causa a morte é bem mais eficaz do que outros métodos utilizados
em homicídios, além de contribuir para a impunidade dos responsáveis pelo crime.
Isto se comprova na passagem na qual Severino questiona o motivo real da morte,
transferindo a responsabilidade humana para o instrumento (a “ave-bala”) quando
diz: “e o que havia ele feito / contra a tal pássara?” A ambigüidade da linguagem
metaforizada contribui tanto para a beleza poética do texto, como expressa,
também, certa isenção daqueles que estabelecem o diálogo, visto que a denúncia
apresenta-se marcada por uma certa ironia e de forma velada, havendo nos
implícitos e nas entrelinhas muito mais denúncia social do que aquilo que se
apresenta na superfície do texto. Este recurso é utilizado caracterizando uma
espécie de censura, ante a violência instalada em meio às questões da terra.
Outro aspecto que merece destaque é a identificação de Severino retirante
com Severino lavrador, irmanados não apenas pelo nome, mas também pelas
condições impostas pela “vida severina”. Todas as vezes que Severino se depara
com a morte, é como se fosse uma antecipação da sua própria morte, da qual ele
tenta fugir descendo ao litoral. Ao revelar as causas da morte do lavrador, os irmãos
70
das almas incorporam o discurso de outrem, ou seja, daqueles que detêm o poder.
Assim, de forma clara, eles vão enumerando os motivos:
- Ter uns hectares de terra, irmão das almas, de pedra e areia lavada que cultivava. - Nos magros lábios de areia, irmão das almas, dos intervalos das pedras, plantava palha. - E era grande sua lavoura, irmão das almas, lavoura de muitas covas, tão cobiçadas.
- Tinha somente dez quadras, irmão das almas, todas nos ombros da serra, nenhuma várzea.
- Mas então porque o mataram, irmão das almas, mas então porque o mataram com espingarda? - Queria mais espalhar-se, irmão das almas queria voar mais livre essa ave-bala. (MVS, p. 48-49)
A “ave-bala”, nesse contexto, representa o latifundiário, o poder, a morte. O
discurso de dissimulação dos sentidos, conforme empreendido pelos irmãos das
almas reforça esse poderio exercido pelo latifúndio. Essa postura, no entanto, não
significa que eles, interiormente, não tenham clareza da exploração sofrida, ao
contrário, ela aparece muito mais como um elemento que garante a coerência na
construção do texto, marcada pela ambigüidade e pela ironia. A perspectiva
bakhtiniana sobre o discurso de outrem, dentre outras questões, destaca que:
71
Toda a essência da apreensão apreciativa da enunciação de outrem, tudo o que pode ser ideologicamente significativo tem sua expressão no discurso interior. Aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário um ser cheio de palavras interiores. Toda a sua atividade mental, o que se pode chamar “o fundo perceptivo”, é mediatizado para ele pelo discurso interior e é por aí que se opera a junção com o discurso apreendido do exterior. A palavra vai à palavra.75
A dissimulação do discurso traduzido pelos irmãos das almas é recebida pelo
interlocutor de forma natural, estabelecendo uma interação dentro do universo
lingüístico criado por ambos, pois Severino compreende perfeitamente as causas
reais da “morte severina”. Há uma intencionalidade ao interrogar os irmãos das
almas, ou seja ele induz as respostas através de suas perguntas. Esse recurso da
ironia e da dissimulação é utilizado para conferir coerência ao texto. O autor, em
entrevista concedida aos Cadernos de Literatura, fala dessa passagem:
A crítica nunca se preocupou com o humor negro de minha poesia. [...] Em Morte e vida severina, também existe humor negro. Você lembra daquele trecho: “Mais sorte tem o defunto/ irmão das almas/ pois já não fará na volta/ a caminhada?” Pois bem! A origem disso é uma história que me contaram na Espanha. Dizem que, na época de Franco, ele mandava fuzilar seus inimigos num lugar chamado Sória, que é o mais frio do país. Conta-se que, um dia, um condenado virou-se para os soldados que iam executá-lo e disse: “Puxa, como faz frio nesse lugar”. Ao que um soldado respondeu: “Sorte tem você, que não precisa fazer o caminho de volta”. Foi assim que essa frase foi parar em Morte e vida severina. Há mais humor negro que isso?76
Esse depoimento reitera o que afirmamos, anteriormente, sobre a ironia e a
ambigüidade presentes no texto, aqui traduzidas pelo autor como “humor negro”.
Verifica-se, portanto, que a utilização do discurso de outrem não significa dizer que
os interlocutores não tenham formalizado, interiormente, o seu próprio discurso
75 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 11. ed. São Paulo: Editora HUCITEC, 2004. p. 147. 76 CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. João Cabral de Melo Neto. São Paulo, n. 01, Instituto Moreira Sales, 1998. p. 27.
72
sobre as verdadeiras causas da morte, mas funciona como elemento de construção
do texto.
Continuando o seu destino, Severino encontra-se com a “morte do rio
Capibaribe”, que como tantos rios do sertão “no verão também corta com pernas
que não caminham”, dificultando o caminhar do retirante, que segue o seu curso. E
nisso, a pobreza do rio se iguala à de Severino, que nem sempre pode cumprir o seu
destino. Há, nessa passagem, uma identificação do personagem com a natureza,
com o espaço geográfico, pois ambos sofrem com a estiagem e com as
conseqüências trazidas pela seca. Para essa proximidade entre homem e rio,
Secchin usa a seguinte imagem: “A liquidificação do homem e a humanização do
líquido serão procedimentos recorrentes: tais operações observarão o que há de
menos, de frágil incompletude, no outro elemento.”77
Como já destacamos no capítulo anterior, há uma interação bastante
significativa entre O cão sem plumas, O rio e Morte e Vida Severina, havendo uma
homorfização do rio Capibaribe, de forma que no discurso do retirante percebemos
imagens de morte com as quais ele se depara, transmutadas no rio seco. Na obra O
rio, há, na verdade, uma antecipação do mesmo percurso que Severino realiza,
estabelecendo uma relação paralela da viagem realizada por ambos.
No percurso feito pelo rio, desde a nascente até o Recife, são evidenciados
os elementos áridos e mórbidos. O rio que seria, naturalmente, sinônimo de vida,
naquele contexto evidencia os sinais de morte. É nesse sentido que falamos em
imagens de morte. A repetição dos termos “cana” e “caminho” denota a monotonia
da viagem, e a usina aparece como elemento devorador do homem. Portanto,
depreendemos que, a usina está para O Rio, como o latifúndio para Morte e Vida
Severina. “Fala-nos o rio dos imensos partidos, a serviço das usinas. Seu relato que
não enfeita a paisagem com o róseo do pitoresco, possui os tons ásperos e
monocórdios que insistem na monotonia das coisas presentes.”78 Esses mesmos
tons, em nosso entendimento, aparecem no discurso de Severino, daí porque
77 SECCHIN, op. cit., 109. 78 NUNES, op. cit. p. 76.
73
estabelecemos essa relação entre as duas obras sobretudo no que se refere às
imagens de morte.
A cena seguinte exclui o discurso de Severino e dá voz aos cantadores de
excelências que velam um morto, ressaltando a religiosidade popular. No entanto,
as recomendações feitas pelas rezadeiras são rebatidas por outro personagem que
enfatiza “as coisas do não”, as privações e o sofrimento em vida, como veremos nos
fragmentos que seguem:
- Finado Zacarias, quando passares em Jordão e os demônios te atalharem perguntando o que é que levas... - Dize que levas cera, capuz e cordão mais a Virgem da Conceição. [...] - Dize que levas somente coisas de não: fome, sede, privação. [...]
- Dize que coisas de não, ocas, leves: como o caixão que ainda deves. (MVS, 52)
A frustração de Severino diante do encontro com a morte, visto que pensava
encontrar vida, lhe desperta o desejo de interromper a viagem, assim como
acontecera com o rio.
Só morte tenho encontrado quem pensava encontrar vida, e o pouco que não foi morte foi de vida severina [...] Penso agora: mas por que
74
parar aqui eu não podia e como o Capibaribe interromper minha linha? (MVS, 53)
Na seqüência do texto, aparece o terceiro diálogo. Neste, Severino não se
depara diretamente com a morte, há apenas referência a ela, na fala de sua
interlocutora. Percebe-se no diálogo travado entre o protagonista e a mulher da
janela, que ele é excluído literalmente do trabalho que deseja realizar, já que o
modelo de produção, trazido pelas usinas substitui a mão-de-obra humana. Como já
afirmou Alexandre Pilati, lendo Antonio Candido, temos em Morte e Vida Severina
uma “formalização das contradições do processo modernizador no Brasil, que
estabeleceram relação muito peculiar entre oprimidos e opressores, entre centro e
periferias entre ambiente rural e ambiente urbano.”79
Esse diálogo é uma amostragem de tudo o que Severino se dispõe a fazer,
todos os ofícios por ele anunciados, como sejam: lavrar a terra, tratar de lavouras,
combater aves de rapina, tratar de gado, cuidar da moenda, enfim, nada do que é
proposto interessa à mulher, porque representam produção enquanto que a
economia do lugar não permite progresso, visto que é baseada na morte. Portanto,
só existe trabalho para aqueles que vivem de “a morte ajudar”.
Sobreviver da morte, eis um paradoxo que se apresenta de forma
contundente na fala da mulher da janela. Ao utilizar uma seqüência de
interrogações, ela consegue eliminar de forma implacável todas as possibilidades de
vida defendidas por Severino. Segundo Secchin,80 a rezadeira utiliza uma
imagística do concreto colhida na realidade contígua (a lavoura), e declarando a
morte através do mesmo léxico (com leitura invertida) que define a vida:
Só os roçados da morte compensam aqui cultivar, e cultivá-los é fácil: simples questão de plantar, não se precisa de limpa,
79 PILATI, op. cit, p. 04. 80 SECCHIN, op. cit., p. 110.
75
de adubar nem de regar; as estiagens e as pragas fazem-nos mais prosperar; e dão lucro imediato nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear. (MVS, p. 58)
O discurso da mulher da janela é constituído por inversões, que contradizem
tudo o que o retirante esperava ouvir. Quando ela se refere aos retirantes “às
avessas” que, num movimento inverso, sobem do mar para o sertão, está se
referindo aos profissionais que, como ela, sobrevivem da morte: médicos,
farmacêuticos, coveiros, afirmando que trabalho e prosperidade, no local, somente
existem para esses profissionais. Da mesma forma, quando utiliza a expressão
“roçados da morte” denota uma inversão do que comumente se espera da colheita
de um roçado. Na verdade, o lucro auferido é decorrente das intempéries
provocadas pela natureza, facilitando a vida de profissionais que sobrevivem da
morte, da doença alheias.
Nesse aspecto, o texto lembra o trabalho das mulheres carpideiras que
também sobreviviam da morte. Elas eram responsáveis em dar o primeiro anúncio
do luto, se apresentando nos velórios com choros convulsivos. Essa tradição
mediterrânea (mas também africana e indígena) funcionava como uma convocação,
prontamente atendida pelos vizinhos. Assim fala João José Reis sobre o ofício
dessas mulheres:
[...] Havia, é claro, o choro emocionado das mulheres da família e vizinhas, que expressavam a dor da perda, ou a solidariedade na dor. Mas, tal como as profissionais, essas carpideiras também representavam um sentimento obrigatório, e faziam uma obrigação ritualística. O comportamento objetivava, por exemplo, afastar os maus espíritos de perto do morto e a própria alma deste de perto dos vivos. Se acontecia como no Minho, a lamentação era ainda mais vigorosa quando o falecido fosse jovem, aumentando em intensidade se a morte fosse violenta.81
81 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. 2. reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 114.
76
Embora, no Brasil, não tenha existido a carpideira profissional, a mulher da
janela como foi afirmado anteriormente lembra essas profissionais da morte que
choravam o defunto alheio mediante pagamento. Portugal conheceu as antigas
carpideiras:
Choram o meu e o alheio,
Por uma quarta de centeio82
A tradição de chorar, cantar, dançar e ter uma refeição dedicada aos mortos é
possivelmente universal e milenar. No Brasil ainda resiste o “chorar o defunto”, por
pessoas ligadas por laços de parentesco ou amizade, diante do cadáver, exercitando
as lágrimas da família com frases exaltadas e gesticulação inimitável e dramática.83
Essa tradição, no entanto, é cultivada pela amizade e não por remuneração, de
forma que não se pode falar da existência de carpideiras profissionais no Brasil. As
incelências, (excelências) entoadas nos velórios e sentinelas, assim como as rezas e
cantos são marcas da religiosidade e crença dos familiares e amigos.
É importante ressaltar a forma como o texto é construído, entremeado por
monólogos e diálogos. Mas tanto numa forma como na outra, as reflexões sobre a
morte estão presentes, como nesta passagem em que o retirante assiste ao funeral de
um lavrador sem participar efetivamente da ação, como simples espectador. Esta
passagem traz questionamentos muito fortes sobre a concentração de terra e o poder
exercido pelo latifúndio. No entanto, na fala dos que realizam o funeral, percebe-se
a sublimação da morte em relação à vida. Esta visão é reiterada em várias passagens
do texto, em que a morte aparece como algo necessário, porque ameniza o
sofrimento daqueles que buscam sobreviver em condições tão adversas. No entanto,
é importante destacar que mesmo considerando a morte como uma solução dos
problemas advindos da terra, os vários discursos daqueles que realizam o funeral
são questionadores e contundentes, de forma que não se pode imaginar uma atitude
82 CASCUDO, op. cit., p. 117. 83 CASCUDO, op. cit., p. 117.
77
conformista por parte daqueles que defendem uma distribuição mais justa de bens,
numa sociedade de classes.
- Viverás e para sempre na terra que aqui aforas: e terás enfim tua roça. - Aí ficarás para sempre, livre do sol e da chuva, criando tuas saúvas.
- Agora trabalharás só para ti, não a meias como antes em terra alheia. - Trabalharás uma terra da qual, além de senhor serás homem de eito e trator. (MVS, p. 60) [...] - Esse chão te é bem conhecido (bebeu teu suor vendido). - Esse chão te é bem conhecido (bebeu o moço antigo). - Esse chão te é bem conhecido (bebeu tua força de marido). - Desse chão és bem conhecido (através de parentes e amigos) - Desse chão és bem conhecido (vive com tua mulher, teus filhos). - Desse chão és bem conhecido (te espera de recém-nascido). (MVS, p. 61)
Percebe-se nesses fragmentos que, embora Severino se apresente como mero
espectador, é através dele que tomamos conhecimento dos vários discursos
daqueles que realizam o funeral. Nessa passagem, mais uma vez, constata-se a
resistência dos que lutam por uma distribuição mais justa da terra. O problema da
reforma agrária está muito bem colocado nessa passagem, registrando-se uma
denúncia da concentração de terra, reiterando mais uma vez o referido “salto
participante” na poesia de João Cabral.
78
Seguindo sua caminhada, Severino chega ao Recife, ponto final de sua via
crucis sem que algo de positivo lhe tenha acontecido. Sua expectativa de vida é
cada vez menor, pois diferentemente do que esperava encontrar, o espaço com o
qual se depara é de morte e de miséria. O retirante ouve um diálogo entre dois
coveiros, no qual eles reiteram a diferença existente entre os mortos que provêm da
periferia e os que desfrutam de uma situação econômica mais estável. Estes
apresentam uma maior longevidade, de forma que os enterros são menos
freqüentes, enquanto aqueles morrem de forma precoce e, portanto, com maior
freqüência.
No diálogo dos coveiros percebe-se uma profunda análise social, na qual eles
sugerem que os cemitérios, tal como a sociedade, dividem-se em níveis de acordo
com a condição social de cada um. A miséria a que os coveiros se referem aparece
de maneira gradativa e vai se intensificando dependendo do bairro de onde provém
o morto: no cemitério de Santo Amaro os corpos são comparados a comboios que
chegam à estação dos trens, a morte é mais freqüente no cemitério de Casa
Amarela, comparada a “parada de ônibus/com filas de mais de cem”. Em proporção
ainda maior de miséria, “ocupando a base da pirâmide, surgem os retirantes
severinos: “E a gente de enterros gratuitos/ e de defuntos ininterruptos.” Para esses
expulsos do interior e marginalizados na capital o coveiro apresenta uma sugestão:
- Na verdade seria mais rápido e também muito mais barato que os sacudissem de qualquer ponte dentro do rio e da morte. - O rio daria a mortalha e até um macio caixão de água; e também um acompanhamento que levaria com passo lento o defunto ao enterro final a ser feito no mar de sal. (MVS, p. 68)
Essa passagem é decisiva para Severino, pois a partir de então passa a
defender um discurso de morte, ele que sempre lutou de forma obstinada pela vida.
79
Diante de tanta frustração torna-se quase impossível lutar pela sobrevivência, de
forma que o retirante incorpora o discurso do coveiro:
A solução é apressar a morte a que se decida e pedir a este rio, que me faça aquele enterro que o coveiro descrevia: caixão macio de lama, mortalha macia e líquida, coroa de baronesa junto com flores de aninga, e aquele acompanhamento
de água que sempre desfila (que no rio aqui em Recife, não seca, vai toda a vida).
(MVS, p.69)
Percebe-se claramente que há uma tomada de consciência por parte do
retirante, de que desde o início da sua trajetória, embora ele lutasse de forma
obstinada pela vida, só encontrara a morte. Isso contribui para que ele opte por um
discurso de renúncia e de morte, culminando com a seguinte decisão:
- Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de continuar tomasse a melhor saída: a de saltar uma noite, fora da ponte e da vida (MVS, p. 72)
Nesta cena, Severino decide sobre o suicídio como forma de abreviar o
sofrimento. Essa passagem constitui o clímax das ações até então desenvolvidas,
quando o retirante resolve “pular fora da ponte e da vida”. É importante ressaltar,
nessa passagem, que mais uma vez o rio Capibaribe surge como um elemento
importante no percurso realizado por Severino. No entanto, para combater esse
discurso negativo, surge um novo personagem, seu José, mestre carpina, que
persuade o retirante a lutar pela vida, mesmo que seja uma vida severina. Os
80
argumentos utilizados pelo mestre carpina em favor da vida marcam a mudança de
perspectiva de Severino, iniciando-se a partir de então o auto da vida.
Os quadros até então apresentados marcam as diversas formas da morte, mas
sempre tendo em comum características de uma “morte severina”, tal como o
retirante a descrevia no início da sua retirada. Os motivos ou causas da morte são
sempre os mesmos: de emboscada, de fome, de luta pela posse da terra. Esta
sucessão de quadros, conforme temos proposto, marca a edificação de um outro
auto, para além daquele que trataremos no tópico seguinte, visto Severino deparar-
se com a morte em sua dimensão espetacular, ora interagindo ora estando apenas
como espectador silencioso, tal qual acontecerá em seu encontro com a vida.
3.2.2. O auto da Vida
No segundo capítulo desse trabalho fizemos uma exposição sobre o auto de
natal tradicional e o auto numa perspectiva popular, voltado para assuntos profanos
buscando entender melhor a composição de Morte e Vida Severina, que utiliza
elementos do auto tradicional litúrgico, mesclado com características do auto
popular com marcas do folclore pernambucano, daí o subtítulo: auto de natal
pernambucano. É nessa parte final que a peça toma a forma do “auto propriamente
dito”, como nos ensina Benedito Nunes. Inicia-se, agora, a celebração da vida em
meio a tantos desencontros que marcaram a trajetória de Severino até o Recife.
Assim, verificamos que em cenas anteriores, Severino faz referência à vida,
mas é na parte final que a vida se sobrepõe à morte e é celebrada de forma festiva, o
que faz com que o retirante desista de saltar fora da ponte e da vida. É o mestre
carpina que o leva a refletir sobre a importância de lutar pela sobrevivência. Os
fragmentos abaixo confirmam estes argumentos.
-Severino, retirante, sei que a miséria é mar largo, não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la
81
vale bem qualquer esforço. (MVS, p. 71)
[...]
-Severino,retirante, muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las pra trás porque ao menos esse mar não pode adiantar-se mais. (MVS, p. 71)
[...]
-Severino, retirante,
sou de Nazaré da Mata, mas tanto lá como aqui jamais me fiaram nada: a vida de cada dia cada dia hei de comprá-la.
(MVS, p. 72)
As reflexões feitas pelo mestre carpina para dissuadir o retirante da idéia de
suicídio, condenam toda a forma de acomodação, no que se refere à diferença entre
lutar com as mãos e abandoná-las pra trás, mesmo num mar largo de miséria, há um
chamamento a lutar em favor da vida. Em meio ao diálogo travado entre Severino e
Seu José, mestre carpina, surge uma mulher que vem anunciar o nascimento da
criança, estabelecendo uma ruptura com o ciclo da morte, até então, predominante,
no texto. Há, neste momento, uma suspensão do tempo marcado pelo desgaste e
pela negação da vida, dando início à celebração do nascimento da criança por meio
dos elementos tomados da tradição que já destacamos. Os moradores do mangue
representam a visita dos pastores ao estábulo de Belém, trazendo as ofertas, os
louvores, os pedidos de bênção, entoados por meio das loas e das jornadas.
As loas cantadas pelos vizinhos lembram os pastoris que comemoram o
nascimento de Cristo, porém com traços muito fortes de exaltação do espaço
ocupado pelos moradores do mangue, como também da natureza. Nessa passagem
82
das loas e das jornadas evidenciam-se os traços líricos da obra, marcados pela
linguagem poética.
-Todo o céu e a terra lhe cantam louvor. Foi por ele que a maré esta noite não baixou. -Foi por ele que a maré fez parar o seu motor: a lama ficou coberta o mau-cheiro não voou. -E a alfazema do sargaço, ácida desinfetante, veio varrer nossas ruas enviada do mar distante. -E a língua seca de esponja que tem o vento terral veio enxugar a umidade do encharcado lamaçal.
(MVS, p. 73)
-Todo céu e a terra lhe cantam louvor. e cada casa se torna um mocambo sedutor. -Cada casebre se torna no mocambo modelar que tanto celebram os sociólogos do lugar. -E a banda de maruins que toda noite se ouvia por causa dele, esta noite, creio que não irradia. -E este rio de água cega, ou baça, de comer terra, que jamais espelha o céu, hoje enfeitou-se de estrelas.
(MVS, p. 73-74)
No auto litúrgico um dos sinais do nascimento de Cristo é a estrela que guia
os Reis Magos até à manjedoura. No auto cabralino, os sinais apresentados estão
muito próximos tanto dos moradores do mangue, como da criança recém-nascida.
Há uma exaltação traduzida pela linguagem, mostrando uma positividade dos
83
elementos da natureza que transformam o ambiente, tornando-o mais ameno. Estes
sinais são evidenciados quando o canto de louvor diz que “a maré não baixou”, “o
mau-cheiro não voou”, “a alfazema do sargaço desinfetou as ruas”, e “o vento terral
enxugou o lamaçal”. Toda essa transformação se dá para celebrar a vida. Do mesmo
modo, os casebres se transformam em “mocambos sedutores”, os maruins, nesta
noite, não incomodam os moradores, o rio sempre embaçado, espelha o céu,
enfeitando-se de estrelas. Aí, o autor reforça a idéia transmitida no refrão: “Todo o
céu e a terra/ lhe cantam louvor.” Pois o céu ao espelhar-se no rio, forma um todo
indissociável para celebrar o nascimento da criança, de forma que tudo contribui
para a harmonia e o equilíbrio do ambiente.
Outra passagem que merece uma análise mais aprofundada é a que descreve
a formosura da criança. O trabalho com a linguagem é feito pela oposição, na qual
os traços físicos, marcados pela fragilidade do menino, retomam as marcas de uma
“vida severina”, mas são rebatidos com elementos de superação da vida. Apesar de
ser uma criança raquítica, guenza, franzina, tem a marca de homem, de humana
oficina, tem mãos que criam, que produzem. A primeira parte enaltece o humano,
enquanto que, na segunda parte, a exaltação da beleza confunde-se com os
elementos da natureza, caracterizando uma integração do homem com a natureza,
mesmo a mais hostil, representada pelas diversas regiões nas quais Severino fez a
sua travessia: “belo como o coqueiro/que vence a areia marinha, belo como o
avelós contra o agreste de cinza, belo como a palmatória na caatinga sem saliva.”
Essa passagem revela a resistência tanto daqueles que têm uma “vida severina”, tão
“severina” quanto a natureza que resiste às condições mais adversas.
No final, o canto de louvor e de exaltação à beleza do menino expressa a
transformação trazida pelo “novo”, com uma força motivadora capaz de modificar,
ainda que instantaneamente, essa realidade, em virtude da força do nascimento.
Nessa passagem, a linguagem poética registra a “eficácia da surpresa e da frescura
metafórica pelo desvio inesperado do campo semântico, em sentido radicalmente
oposto à normalidade lingüística, na criação de metáforas vivas.”84 Destaque-se as
84 SIMÕES, op. cit.
84
combinações surpreendentes com que o poeta utiliza os lexemas contagia,
corrompe, infecciona, dando-lhes novos significados.
-Belo porque tem do novo a surpresa e a alegria. -Belo como a coisa nova na prateleira vazia. -Como qualquer coisa nova inaugurando o seu dia. -Ou como um caderno novo quando a gente o principia. -É belo porque o novo
todo o velho contagia. -Belo porque corrompe com sangue novo a anemia. -Infecciona a miséria com vida nova e sadia. -Com oásis, o deserto, com ventos a calmaria. (MVS, p.79)
Na cena seguinte, aparecem os vizinhos com os seus presentes que lembram
os Reis Magos quando visitam o Menino-Deus. Os presentes que eles ofertam ao
recém-nascido são próprios do lugar. Há uma valorização dos frutos da terra que
são descritos de forma poética. -Minha pobreza tal é que grande coisa não trago: trago este canário da terra que canta corrido e de estalo -Minha pobreza tal é que minha oferta não é rica: trago daquela bolacha d’água que só em Paudalho se fabrica. -Minha pobreza tal é que melhor presente não tem: dou este boneco de barro de Severino de Tracunhaém. -Minha pobreza tal é que pouco tenho o que dar: dou da pitu que o pintor Monteiro fabricava em Gravatá. (MVS, p. 75)
85
Completando o quadro, surgem, também, as ciganas para predizerem o
futuro da criança, aproximando, assim, ainda mais o auto cabralino dos autos
populares ou pastoris. No entanto, a predição feita por elas não indica um futuro
promissor para a criança, mas a continuação da miséria já existente. Na verdade, ele
será mais um sobrevivente a dividir com tantos outros a vida infecta do mangue.
Mesmo as predições feitas pela segunda cigana, sendo menos trágicas, apenas
sugerem que o menino poderá mudar de um bairro para outro, ou ser um operário
de fábricas, o que nem sempre garante uma vida digna. Nisso, há diferença entre os
autos natalinos que, embora tratem do sofrimento de Jesus, caracterizam-se pela
vitória e redenção final. -Atenção peço, senhores, pra esta breve leitura: somos ciganas do Egito, lemos a sorte futura. Vou dizer todas as coisas que desde já posso ver na vida desse menino acabado de nascer: aprenderá a engatinhar por aí, com aratus, aprenderá a caminhar na lama, com guaiamuns, e a correr o ensinarão os anfíbios caranguejos, pelo que será anfíbio como a gente daqui mesmo. Cedo aprenderá a caçar: primeiro, com as galinhas, que é catando pelo chão tudo que cheira a comida depois, aprenderá com outras espécies de bichos: com os porcos nos monturos, com os cachorros no lixo. [...] Minha amiga se esqueceu de dizer todas as linhas; não pensem que a vida dele há de ser sempre daninha. Enxergo daqui a planura que é a vida do homem de ofício,
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bem mais sadia que os mangues, tenha embora precipícios. Não o vejo dentro dos mangues Vejo-o dentro de uma fábrica: se está negro não é lama, é graxa de sua máquina, coisa mais limpa que a lama do pescador da maré que vemos aqui, vestido de lama da cara ao pé. (MVS, p. 76-77)
O início da fala das ciganas corresponde textualmente aos versos dos
pastoris: “somos ciganas do Egito”. Esses textos predizem os sofrimentos de Jesus,
mas sempre insistem em sua vitória final. Já em Morte e Vida Severina, as
predições feitas pelas ciganas são impregnadas de maus presságios para com o
recém-nascido. Na verdade não há nenhum prenúncio de vitória para a criança do
mangue. A fala da segunda cigana, inicialmente, apresenta um certo otimismo, que
logo se desfaz com o anúncio, apenas, de mudança de um mangue para outro, e em
vez de catador de caranguejo seria um operário, mas sem nenhuma perspectiva de
mudança de condição social.
Minha amiga se esqueceu de dizer todas as linhas; não pensem que a vida dele há de sempre ser daninha. [...] E mais: para que não pensem que em sua vida tudo é triste, vejo coisa que o trabalho talvez até lhe conquiste: que é mudar destes mangues aqui do Capibaribe para um mocambo melhor dos mangues do Beberibe. (MVS, p. 77)
A mudança de espaço geográfico em nada contribui para a melhoria da
condição de vida dos moradores do mangue, como verificamos com a retirada de
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Severino, do sertão para os mangues da capital. Na verdade, o nascimento da
criança representa a perpetuação das mazelas vividas por tantos homens e mulheres
que, como Severino, estão condenados a viverem excluídos socialmente.
Ao término da celebração do nascimento do filho de seu José, o diálogo
recomeça e o espetáculo da vida a que o retirante assistiu consegue modificar o seu
pensamento de saltar fora da ponte e da vida. Essa resposta se dá pela própria vida.
A passagem seguinte representa a vitória da vida sobre a morte.
-Severino, retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e da vida; nem conheço essa resposta, com se quer mesmo que lhe diga; é difícil defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê, Severina; mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a respondeu sua presença viva. (MVS, p. 80) E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é uma explosão como há de pouco, franzina; mesmo quando a explosão de uma vida Severina. (MVS, p. 80)
Essa fala do final do texto reafirma a força vital que Severino sempre
defendeu e acreditou, desde o início de sua retirada. A máquina humana mesmo
fragilizada pelas condições adversas, resultantes do meio em que vive, encontra em
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si mesma uma força propulsora que a renova e a faz prosseguir. E nesse sentido de
renovação da vida é que o texto traz uma mensagem de esperança, pois a vida
independe de forças externas, ela mesma se fabrica, teimosamente e de forma
paciente, igualando a todos, pelo menos nesse aspecto, pois uma vida mesmo
severina não se diferencia de outras vidas menos corroídas pela miséria e pela
negação dos direitos essenciais.
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Considerações Finais Neste trabalho, nos propusemos a estabelecer, no âmbito da análise-
interpretação, uma relação dialética entre o texto literário e a realidade
representada, numa perspectiva nacional-popular, analisando em que medida a obra
literária se atrela às concepções de mundo e de vida das classes subalternas.
Encontramos, na obra analisada, elementos consistentes que respondem a esta
proposição, sobretudo no que se refere à temática social e sua identificação com
problemas advindos das classes subalternas, tal como Gramsci analisa, ou seja, sob
a ótica de um intelectual que mesmo não pertencendo a um grupo social, com ele se
identifica, a fim de representar, artisticamente, suas visões de mundo e de vida.
Outra abordagem feita e que contempla o nosso propósito inicial diz respeito
à análise empreendida em torno do aspecto formal e estrutural da obra,
considerando o seu caráter híbrido quanto ao gênero e traços estilísticos. Diante de
tantas denominações como: poema narrativo, poema dramático, peça de teatro, auto
de natal, conseguimos enfim chegar à conclusão de que o gênero preponderante e
com valor substantivo, na obra, é o dramático, apresentando traços estilísticos dos
gêneros lírico e épico. A forma dramática do auto já indica a preponderância do
gênero dramático, no entanto, acreditamos ter ampliado a discussão ao
identificarmos traços de ligação da obra com o teatro folclórico, o popular e o
nacional-popular.
Enfim, compreendemos que, não obstante a fortuna crítica existente em
torno de Morte e Vida Severina, acreditamos ter contribuído e ampliado as
possibilidades de análise-interpretação da obra, visto que fizemos algumas
abordagens até então inexploradas pela crítica, como a identificação de marcas do
nacional-popular e a pluralidade de gêneros e traços estilísticos.
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No que se refere à forma de auto, existem vários trabalhos que tratam desse
aspecto da obra, tendo como referência Benedito Nunes que considera a existência,
em Morte e Vida Severina , de um auto de natal dentro do Auto propriamente dito.
Nessa perspectiva, ele aponta para a compreensão mista que perfaz dois
movimentos simétricos nos limites da oposição entre a Morte e a Vida
compreendida pelo próprio título do Auto: o da viagem de Severino até o Recife,
marcada por desencontros e negações, que corresponde à morte; o do auto natalino,
alegre e festivo que corresponde à vida. Seguindo essa linha de análise é que
estruturamos o terceiro capítulo desta dissertação, evidenciando a existência de dois
autos.
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ANEXO
POEMA MORTE E VIDA SEVERINA (auto de natal pernambucano)
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
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