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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS DISCIPLINA: LEITURA E PRODUÇÃO DE TEXTO I CARGA HORÁRIA: 60 h/a – Período: 2010.2 Nº. DE CRÉDITOS: 04 SOBRE O NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO E AGORA, PORTUGAL? É preciso esclarecer as informações desencontradas antes de dar o próximo passo na unificação da grafia do idioma José Luiz Fiorin (USP) A língua portuguesa tem dois sistemas ortográficos: um vigora no Brasil e outro, em Portugal e nos demais países lusófonos (Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau e Timor Leste). Essas duas ortografias são oficializadas por dispositivos legais. No Brasil, a grafia é regida pela lei 2.623, de 21 de outubro de 1955, que restabeleceu a vigência do Formulário Ortográfico de 12 de agosto de 1943, e pela lei 5.765, de 18 de dezembro de 1971. Essa situação de não unidade se deve ao fato de que, logo depois da independência do Brasil, os escritores diziam que não bastava que houvesse uma independência política de Portugal, era preciso também estabelecer uma independência cultural. Por isso, o Brasil nunca reconheceu a autoridade lingüística de Portugal. As divergências ortográficas foram ocorrendo e, desde 1924, procura-se uma ortografia comum. Em 1945, chega-se a um acordo de unificação, que se tornou lei em Portugal no mesmo ano. No entanto, como o Congresso Nacional Brasileiro não o ratificou, a ortografia brasileira continua a ser regida pelas disposições de 1943. As diferenças entre as duas ortografias não são substanciais, não impedindo a compreensão dos textos grafados numa ou noutra. Entretanto, a duplicidade ortográfica dificulta a difusão internacional do português, na medida em que os documentos dos organismos internacionais que adotam o português como língua oficial precisam ser duplicados, pois devem ser publicados numa e noutra ortografia; em que a certificação

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NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA

CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

DISCIPLINA: LEITURA E PRODUO DE TEXTO I

CARGA HORRIA: 60 h/a Perodo: 2010.2N. DE CRDITOS: 04 SOBRE O NOVO ACORDO ORTOGRFICO

E AGORA, PORTUGAL?

preciso esclarecer as informaes desencontradas antes de dar o prximo passo na unificao da grafia do idiomaJos Luiz Fiorin (USP)

A lngua portuguesa tem dois sistemas ortogrficos: um vigora no Brasil e outro, em Portugal e nos demais pases lusfonos (Angola, Moambique, Cabo Verde, So Tom e Prncipe, Guin Bissau e Timor Leste). Essas duas ortografias so oficializadas por dispositivos legais. No Brasil, a grafia regida pela lei 2.623, de 21 de outubro de 1955, que restabeleceu a vigncia do Formulrio Ortogrfico de 12 de agosto de 1943, e pela lei 5.765, de 18 de dezembro de 1971. Essa situao de no unidade se deve ao fato de que, logo depois da independncia do Brasil, os escritores diziam que no bastava que houvesse uma independncia poltica de Portugal, era preciso tambm estabelecer uma independncia cultural. Por isso, o Brasil nunca reconheceu a autoridade lingstica de Portugal. As divergncias ortogrficas foram ocorrendo e, desde 1924, procura-se uma ortografia comum. Em 1945, chega-se a um acordo de unificao, que se tornou lei em Portugal no mesmo ano. No entanto, como o Congresso Nacional Brasileiro no o ratificou, a ortografia brasileira continua a ser regida pelas disposies de 1943.

As diferenas entre as duas ortografias no so substanciais, no impedindo a compreenso dos textos grafados numa ou noutra.

Entretanto, a duplicidade ortogrfica dificulta a difuso internacional do portugus, na medida em que os documentos dos organismos internacionais que adotam o portugus como lngua oficial precisam ser duplicados, pois devem ser publicados numa e noutra ortografia; em que a certificao de proficincia de lngua portuguesa no pode ser unificada; em que os materiais didticos e os instrumentos lingsticos, como dicionrios e gramticas, produzidos numa ortografia no servem para os pases que adotam a outra e assim sucessivamente. Para acabar com essa situao esdrxula, os pases lusfonos assinaram, em 1990, em Lisboa, um acordo ortogrfico. Estipulou-se que ele entraria em vigor em 1 de janeiro de 1994, depois de sua ratificao pelos diferentes estados nacionais. Como a ratificao no se deu, conforme se previa, ele no pde entrar em vigncia e se acordou, em 2004, que ele passaria a vigorar depois de ser ratificado por trs dos oito pases. At o momento aprovaram o acordo o Brasil, Cabo Verde e So Tom e Prncipe. Assim, em princpio, ele est vigente. No entanto, se os outros pases no o adotarem, frustra-se a idia de unificao. Por isso, estamos em compasso de espera.

Equvocos

Nos ltimos tempos, diferentes manifestaes tm surgido sobre o assunto e mesmo pessoas consideradas especialistas na matria tm incidido em quatro equvocos. preciso afast-los para evitar que toldem nossa apreciao desse objeto.O primeiro que se est fazendo uma unificao da lngua portuguesa. Isso no verdade. O que se deseja fazer uma unificao da ortografia, ou seja, da conveno por meio da qual se representam graficamente as formas faladas da lngua, se escrevem as formas da lngua. O que se pretende unificar a escrita e no a lngua, que varia de regio para outra, de um grupo social para outro, de uma situao de comunicao para outra, de uma faixa etria para outra. A variao um fenmeno inerente lngua, porque a sociedade em que falada heterognea. impossvel uniformizar a lngua. Repetimos, o que se pode e se quer tornar una a ortografia.

O segundo equvoco que a reforma tmida, dever-se-ia fazer uma mudana radical para simplificar a ortografia e aproxim-la da maneira como falamos. Na verdade, aqui h dois erros. Primeiramente, no se est fazendo propriamente uma reforma ortogrfica e sim um acordo de unificao ortogrfica e, portanto, atinge basicamente os pontos de divergncia das duas ortografias e no faz reforma profunda na maneira de grafar as palavras. Depois, enganam-se os que pensam que se pode escrever como se fala, pois a pronncia varia, por exemplo, de regio para regio em cada pas e, por isso, no se pode grafar tal como se fala. Alm disso, cabe perguntar por que pases em que se falam lnguas, como o francs ou o ingls, cuja ortografia reflete um estado lingstico muito mais antigo ou a origem da palavra, no fazem uma reforma ortogrfica drstica. Porque no mais possvel, uma vez que mudar completamente a ortografia significa condenar obsolescncia todo o material impresso. Em duas geraes ningum mais ser capaz, sem preparo especfico, de ler tudo o que foi impresso at o momento. Ora, isso impossvel. Podia-se fazer reforma ortogrfica radical at o incio do sculo passado. Depois, com o crescimento das bibliotecas, dos acervos etc. no se pode mais pensar em alterar totalmente a ortografia.

Meia-sola

O terceiro erro sobre o acordo que ele, de fato, no unifica a ortografia. Como disse um conhecido professor de portugus, "uma reforma meia-sola". Os que afirmam isso se fundamentam no fato de que o tratado permite dupla ortografia nos casos em que no Brasil se acentua com acento circunflexo e em Portugal, com acento agudo, refletindo a diferena de timbre fechado e aberto (econmico/ econmico; fmur/ fmur; beb/ beb; gnio/ gnio) e nos casos em que uma consoante seguida de outra no pronunciada no Brasil, mas falada em Portugal (por exemplo, facto/ fato; seco/ seo; sector/ setor; amnistia/ anistia; sbdito/ sdito; assumpo/ assuno). Afirmar que no houve a unificao um erro porque as duas grafias passam a ser corretas no territrio da lusofonia. Hoje, errado escrever ceptro e gnero no Brasil ou cetro e gnero nos outros pases lusfonos. A partir da entrada em vigor do acordo, as duas grafias sero corretas em todos os pases de lngua portuguesa. Isso quer dizer que, com muita sabedoria, unificou-se, respeitando-se a diversidade de pronncia refletida em formas histricas de grafar.

Finalmente, muitos dizem que h coisas mais importantes a fazer do que tornar uniformes as ortografias. Poderia at ser verdade se pensarmos apenas do ponto de vista das carncias educacionais nos pases lusfonos. No entanto, para efeitos de difuso internacional e de implantao de uma poltica lingstica comum, a unificao importante. Para os brasileiros, no entanto, est em jogo outra coisa. Em Portugal, muitos falam em recusar o acordo, em nome da manuteno da pureza da lngua original, porque ele representa a "brasilianizao da ortografia", "a colonizao dos ex-colonizados". Os argumentos desses portugueses no tm fundamento na realidade. So fantasias.

Impasse

No entanto, apesar do que dizem as autoridades portuguesas, eles tiveram forte acolhida, pois Portugal, pas depositrio do acordo, nem sequer fez o comunicado aos pases signatrios, conforme determina o artigo 77 da Conveno de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23/05/1969, de que ele est em vigor, por ter sido alcanado o nmero mnimo de ratificaes. Esse comunicado uma obrigao do pas depositrio, mas nem isso Portugal fez para no dizer oficialmente que ele est em vigncia. A partir da, o acordo passa a ser muito importante para o Brasil, pois o que est em questo o fato de que Portugal pretende manter-se na posio de padro de lngua para os pases lusfonos de frica e de sia, de que Portugal nega ao Brasil um papel pleno no intercmbio cultural e cientfico entre os pases lusfonos e na difuso do portugus no mundo, na medida em que no reconhece, por exemplo, a certificao de proficincia brasileira ou a legitimidade de seus materiais didticos e instrumentos lingsticos. Portugal pretende ter um monoplio da poltica lingstica de propagao do portugus; Portugal deseja manter o mito de que o guardio da pureza do idioma. Por essas razes, do ponto de vista simblico, o acordo de unificao relevante para o Brasil.

Artigo publicado na revista LNGUA PORTUGUESA, fevereiro de 2008. Disponvel no site: http://www.marcosbagno.com.br/conteudo/arquivos/for_fiorin.htm

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA

CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

DISCIPLINA: LEITURA E PRODUO DE TEXTO I

CARGA HORRIA: 60 h/a Perodo: 2010.2N. DE CRDITOS: 04 SOBRE O NOVO ACORDO ORTOGRFICO

NO REFORMA, MINHA GENTE, S UM ACORDO!

Me espanta sempre a falta de criatividade (se esse o nome do problema) dos jornalistas quando o assunto lngua. Existem temas interessantssimos e questes cruciais para a compreenso das complexas relaes entre lngua e sociedade, mas esses profissionais da mdia s querem tratar do bvio. E, para piorar, no lem o que seus colegas publicam, procuram os especialistas (ou os falsos especialistas, na maioria dos casos) e perguntam as mesmas coisas, para obter as mesmas respostas j impressas e reimpressas. Como sou um dos rarissssimos linguistas brasileiros que descem da torre de marfim acadmica e do a cara a tapa na divulgao cientfica e na disposio ao debate em terreno leigo (s consigo pensar num nico outro colega que tambm faz isso, Srio Possenti, da Unicamp, em suas colunas semanais na internet), recebo todos os dias pelo menos um pedido de entrevista. E todos s querem saber de trs entidades fabulosas: a "reforma" ortogrfica (que no existe); o "gerundismo" (que tambm no existe) e a "lngua" da internet (que existe tanto quanto a mula-sem-cabea). As palavras empregadas j indicam, de sada, a absoluta falta de informao de quem faz as perguntas. Com isso, num exerccio de pacincia que, espero, vai acumular pontos no meu carto-fidelidade para participar da comunho dos santos, tento, primeiro, desmontar as perguntas para depois responder. Haja!

A quantidade de declaraes infelizes, quando no francamente burras, que circulam hoje em dia sobre a questo ortogrfica mereceria uma boa investigao sociolgica. Por que esses discursos so to refratrios a qualquer racionalidade mnima? Por que que pessoas, aparentemente inteligentes, tm coragem de dizer que a partir de agora no vamos mais dizer "lingia" mas "linghia", porque o trema foi abolido? Que a supresso do acento em "ideia" vai dificultar saber se a vogal tnica aberta ou fechada? Ora, no existe acento que diferencie "velha" de "telha", "a corte" e "o corte", "a cerca" e "ele cerca", e no entanto ningum confunde o grau de abertura das vogais tnicas dessas palavras. Vamos estudar um pouquinho, gente?

Antes de tudo, preciso bradar aos quatro ventos que no se trata de uma "reforma", mas simplesmente de um acordo que elimina as pequeninas diferenas que existem entre as duas convenes ortogrficas que vigoram no mundo de lngua portuguesa: a brasileira e a lusitana, que impera em Portugal e nos demais pases ditos lusfonos. Uma reforma, para merecer esse nome, implicaria em alteraes radicais na aparncia escrita da lngua, como aconteceu, por exemplo, em 1945, quando "physica" virou "fsica" e "rhythmo" virou "ritmo". Nada disso est sendo proposto agora. So apenas alguns poucos acentos grficos que deixaro de ser usados, junto com o trema (que, pelo amor de Deus, no um acento!), alm de uma regulao do uso do hfen. Com isso, somente 0,5% das palavras escritas em portugus brasileiro sofrem alguma alterao. muito, muito pouco para algum falar de "reforma". Mas muita gente fala! Perdoa, Pai, eles no sabem o que fazem...

Para no repetir o que j foi dito por outras pessoas mais competentes do que eu, remeto os leitores a dois textos primorosos, facilmente acessveis. O primeiro de Jos Luiz Fiorin e est disponvel no meu site (www.marcosbagno.com.br) com o ttulo "E agora, Portugal?". O outro de Carlos Alberto Faraco e est no site do Museu da Lngua Portuguesa (www.estacaodaluz.org.br) com o ttulo "Uma mudana necessria". Nesses dois textos, o que se destaca a anlise poltica que eles fazem do Acordo. essa que deveria interessar aos jornalistas, e no as novas regras de acentuao, que so pouqussimas e podem ser aprendidas de cor em meia hora. Como escreve C. A. Faraco, "Portugal transformou a duplicidade de ortografias num instrumento poltico para embaraar a presena brasileira seja nas relaes com os demais pases lusfonos, seja na promoo internacional da lngua". E isso mesmo. Muita gente naquele pas totalmente desimportante na geopoltica global teme que o Brasil assuma, de fato e de direito, as rdeas na conduo dos destinos da lngua portuguesa no mundo, como se isso no fosse inevitvel. Com o apego ortografia que vigora l e nos demais pases, Portugal impede a livre circulao de material impresso no Brasil, sobretudo livros didticos e dicionrios; no reconhece os diplomas de proficincia em lngua portuguesa que ns expedimos; exige que os organismos internacionais publiquem todos os seus documentos segundo as normas da grafia institudas por l etc. Trata-se de uma poltica lingustica tacanha, que tenta encobrir o sol brasileiro com a peneira minscula da ortografia lusa. No Brasil vivem 90% dos falantes de portugus de todo o mundo. O portugus brasileiro (e no simplesmente "o portugus") a terceira lngua mais falada no Ocidente (depois do espanhol e do ingls). Se todos os habitantes de Portugal e dos outros pases "lusfonos" (que de lusfonos no tm nada: neles s uma minoria fala portugus) deixassem de usar a lngua, ainda assim essa posio do portugus brasileiro no se alteraria no panorama lingustico global.

Defender a validade e a necessidade do Acordo ortogrfico defender a importncia do Brasil e do portugus brasileiro no cenrio mundial. conferir autoestima a um povo que, h meio milnio, vem sendo acusado de "arruinar" o "idioma de Cames". Arruinamos mesmo, pronto, e da? Mas sobre essas runas que estamos erguendo uma lngua surpreendente, que deixa os linguistas fascinados com as inovaes sintticas que estamos introduzindo, uma lngua que a cara do nosso povo, como tm quer ser (e de fato so) todas as lnguas do mundo.

Artigo de Marcos Bagno publicado na Revista Caros Amigos- Novembro de 2008. Disponvel no site do autor (http://www.marcosbagno.com.br/conteudo/arquivos)