nota sobre a natureza da mulher na comunidade nota …

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Direito autoral e licença de uso: Este artigo está licenciado sob uma Licença Creative Commons. NOTA SOBRE A NATUREZA DA MULHER NA COMUNIDADE NOTA NOTA SOBRE A NATUREZA DA MULHER NA COMUNIDADE FAMILIAR E POLÍTICA SEGUNDO PLATÃO, ARISTÓTELES E HEGEL 1 SOME REMARKS ON WOMAN’S NATURE IN THE FAMILY AND POLITICAL COMMUNITY ACCORDING TO PLATO, ARISTOTLE AND HEGEL MARINA DOS SANTOS 2 (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil) RESUMO Este artigo pretende mapear, comparativamente, o lugar destinado à mulher no interior dos sistemas políticos de Platão, Aristóteles e Hegel a partir de um breve esboço de suas concepções sobre a natureza humana e a natureza feminina. Pretender-se-á indicar em que medida há uma relação, ora de tensão, ora de complementaridade, no modo como elementos descritivos e prescritivos operam para circunscrever o espaço da mulher à esfera privada do lar, no caso das perspectivas aristotélica e hegeliana, e como a subordinação de elementos descritivos a elementos prescritivos permitem que a mulher ascenda à esfera pública sob a perspectiva platônica. Após traçar esse esboço, buscar-se-á sugerir como essa tensão, no caso da filosofia política de Hegel, resultará, por um lado, numa explícita negação dos direitos políticos da mulher e, por outro, na possibilidade de vislumbrar a igualdade civil e política entre homens e mulheres a partir de um dispositivo interno e inerente ao sistema hegeliano, a saber, a noção de “segunda natureza” como reposição ética do natural. Palavras-chave: Natureza humana. Mulher. Família. Comunidade política. Eticidade. ABSTRACT The aim of this paper is to examine, comparatively, women’s place within the political systems of Plato, Aristotle and Hegel from a brief sketch of their conceptions about human nature and feminine nature. It will be intended to indicate to what extent there is a relation, sometimes of tension, sometimes of complementarity, in the way descriptive and prescriptive elements function to circumscribe the space of women from the household private sphere, from Aristotelian and Hegelian perspectives, and how the subordination of descriptive elements to prescriptive elements allow woman to ascend in the public sphere under the Platonic perspective. After tracing this sketch, it will be suggested how this tension, in the political philosophy of Hegel, will result, in a way, in an explicit denial of women's political rights and, in another way, in the possibility of envisioning civil and political equality between men and women from an internal and inherent device of the Hegelian system, the notion of “second nature” as ethical reposition of the natural. Keywords: Human nature. Woman. Family. Political community. Ethical life. http://dx.doi.org/10.5007/1677-2954.2018v17n2p159

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Direito autoral e licenccedila de uso Este artigo estaacute licenciado sob uma Licenccedila Creative Commons

NOTA SOBRE A NATUREZA DA MULHER NA COMUNIDADE NOTA

NOTA SOBRE A NATUREZA DA MULHER NA COMUNIDADE FAMILIAR E

POLIacuteTICA SEGUNDO PLATAtildeO ARISTOacuteTELES E HEGEL1

SOME REMARKS ON WOMANrsquoS NATURE IN THE FAMILY AND POLITICAL

COMMUNITY ACCORDING TO PLATO ARISTOTLE AND HEGEL

MARINA DOS SANTOS2

(Universidade Federal de Santa Catarina Brasil)

RESUMO

Este artigo pretende mapear comparativamente o lugar destinado agrave mulher no interior dos sistemas poliacuteticos de

Platatildeo Aristoacuteteles e Hegel a partir de um breve esboccedilo de suas concepccedilotildees sobre a natureza humana e a natureza

feminina Pretender-se-aacute indicar em que medida haacute uma relaccedilatildeo ora de tensatildeo ora de complementaridade no

modo como elementos descritivos e prescritivos operam para circunscrever o espaccedilo da mulher agrave esfera privada

do lar no caso das perspectivas aristoteacutelica e hegeliana e como a subordinaccedilatildeo de elementos descritivos a

elementos prescritivos permitem que a mulher ascenda agrave esfera puacuteblica sob a perspectiva platocircnica Apoacutes traccedilar

esse esboccedilo buscar-se-aacute sugerir como essa tensatildeo no caso da filosofia poliacutetica de Hegel resultaraacute por um lado

numa expliacutecita negaccedilatildeo dos direitos poliacuteticos da mulher e por outro na possibilidade de vislumbrar a igualdade

civil e poliacutetica entre homens e mulheres a partir de um dispositivo interno e inerente ao sistema hegeliano a

saber a noccedilatildeo de ldquosegunda naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural

Palavras-chave Natureza humana Mulher Famiacutelia Comunidade poliacutetica Eticidade

ABSTRACT

The aim of this paper is to examine comparatively womenrsquos place within the political systems of Plato

Aristotle and Hegel from a brief sketch of their conceptions about human nature and feminine nature It will be

intended to indicate to what extent there is a relation sometimes of tension sometimes of complementarity in

the way descriptive and prescriptive elements function to circumscribe the space of women from the household

private sphere from Aristotelian and Hegelian perspectives and how the subordination of descriptive elements

to prescriptive elements allow woman to ascend in the public sphere under the Platonic perspective After tracing

this sketch it will be suggested how this tension in the political philosophy of Hegel will result in a way in an

explicit denial of womens political rights and in another way in the possibility of envisioning civil and political

equality between men and women from an internal and inherent device of the Hegelian system the notion of

ldquosecond naturerdquo as ethical reposition of the natural

Keywords Human nature Woman Family Political community Ethical life

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Introduccedilatildeo

O objetivo do presente artigo eacute traccedilar um breve esboccedilo sobre o lugar destinado agrave

mulher no interior dos sistemas poliacuteticos de Platatildeo Aristoacuteteles e Hegel e tentar achar espaccedilo

dentro da teoria deste uacuteltimo para vislumbrar a possibilidade da equidade civil e poliacutetica entre

mulheres e homens atraveacutes da noccedilatildeo de vida eacutetica como segunda natureza A marca desses

sistemas filosoacuteficos como pretenderemos mostrar consiste na postulaccedilatildeo que a natureza

humana possui caracteriacutesticas essenciais as quais natildeo podem ser totalmente satisfeitas pelas

mulheres Tal marca funda-se sobre a crenccedila que o ser humano e a mulher possuem

caracteriacutesticas que lhe pertencem de necessidade e que a mulher dada a sua natureza

essencialmente determinada natildeo eacute capaz de satisfazer plenamente os requisitos da natureza

humana

Pretender-se-aacute mostrar primeiramente como para Platatildeo conceder agrave mulher a mesma

educaccedilatildeo concedida ao varatildeo da comunidade dos guardiotildees da poacutelis em vez de mantecirc-la em

condiccedilotildees totalmente aculturais eacute condiccedilatildeo sine qua non para a realizaccedilatildeo da poacutelis ideal Tais

concessotildees que Platatildeo pretendia fazer ao sexo feminino como veremos natildeo tornam Platatildeo

um ldquofeministardquo pois de nenhum modo o filoacutesofo ateniense parece defender a tese que as

mulheres satildeo iguais aos homens em virtudes intelectuais ou morais ou que elas possam

preencher os requisitos necessaacuterios e suficientes para a satisfaccedilatildeo do ideal da natureza

humana

Nessa mesma linha poreacutem extraindo consequecircncias mais cerceadoras e opressivas

que as platocircnicas podemos localizar a visatildeo aristoteacutelica sobre o papel da mulher Segundo o

Estagirita como veremos a mulher eacute inferior ao homem sob o aspecto bioloacutegico aniacutemico (ou

psicoloacutegico) e ontoloacutegico o que ldquolegitimardquo aos olhos do Filoacutesofo a exclusatildeo feminina do

acircmbito poliacutetico jaacute que essa esfera estaacute fundada sobre o governo da racionalidade e das

virtudes intelectuais as quais o sexo feminino eacute naturalmente inapto a comportar e por isso a

mulher natildeo eacute plenamente digna da condiccedilatildeo de cidadatilde da poacutelis

Hegel por sua vez parece sustentar uma posiccedilatildeo sobre a natureza feminina bastante

proacutexima de Aristoacuteteles distanciando-se assim de Platatildeo visto que segundo Hegel a

determinaccedilatildeo substancial da mulher daacute-se no acircmbito da famiacutelia pois eacute proacuteprio da natureza do

caraacuteter feminino natildeo se comportar segundo as exigecircncias da universalidade mas segundo

opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes engendradas pela fragilidade caracteriacutestica do sentimento

a qual deve ser eliminada no processo de desdobramento do conceito de eticidade para que a

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realizaccedilatildeo plena da ideia da liberdade se decirc No entanto mesmo que a letra do proacuteprio texto

de Hegel pareccedila tatildeo contraacuteria agrave igualdade civil e poliacutetica entre homens e mulheres a noccedilatildeo de

vida eacutetica como segunda natureza permite como pretender-se-aacute mostrar vislumbrar a

possibilidade da equidade de direitos e deveres civis e poliacuteticos entre os sexos atraveacutes da

reposiccedilatildeo eacutetica daquilo que eacute meramente sensiacutevel e natural mediante o engendramento de

costumes que superem tais elementos contingentes conduzindo assim agravequilo que eacute universal

e necessaacuterio

A educaccedilatildeo e o papel da mulher na comunidade dos guardiotildees da poacutelis ideal de Platatildeo

Repuacuteblica3 V 449a-457c

A partir de 449a Platatildeo aborda a questatildeo da educaccedilatildeo das mulheres e das crianccedilas

pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees da poacutelis (minoria dominante chamada a defender a

comunidade poliacutetica) delineando assim o papel que tal questatildeo representa na configuraccedilatildeo

do seu Estado ideal Tal discussatildeo centrar-se-aacute em determinar o regime mais adequado a ser

adotado para a formaccedilatildeo das mulheres e da prole dessa comunidade visto que tal formaccedilatildeo

ldquoarrastaraacute consigo alteraccedilotildees grandes e ateacute radicais conforme for bem ou mal realizadardquo

conforme 449d5-6

O fato de chamar mulheres a defender a poacutelis provendo-as assim do tiacutetulo de

guardiatildes jaacute coloca Platatildeo numa situaccedilatildeo embaraccedilosa frente agrave opiniatildeo sustentada pelo senso

comum acerca da mulher visto que a marca da situaccedilatildeo do sexo feminino em Atenas por

exemplo eacute a da marginalidade e da passividade que o submetem agrave incultura fiacutesica e

intelectual Tendo isso em vista a defesa da tese que eacute preciso conceder agraves mulheres a mesma

educaccedilatildeo dispensada aos varotildees da comunidade dos guardiotildees eacute um embaraccedilo ainda maior

para Platatildeo pois tal tese confronta radicalmente os costumes vigentes em Atenas e o modo

como o fenocircmeno do comportamento moral feminino era observado Assim eacute revisando e se

afastando do modo empiricamente dado e constataacutevel do comportamento da mulher que a

teoria platocircnica natildeo pretende tatildeo somente descrever a realidade sensiacutevel mas prescrever uma

nova realidade de acordo com o necessaacuterio desenvolvimento loacutegico da ideia de poacutelis Isso

talvez explique o rodeio que Soacutecrates tece no iniacutecio do livro V antes de expor tese tatildeo

arrojada a qual ele teme ser ridicularizada por aqueles que ldquocolhem imaturo o fruto da

sabedoriardquo (citaccedilatildeo de Piacutendaro que ocorre em 457b34) e que soacute eacute trazida agrave baila depois de

reiteradas exortaccedilotildees dos interlocutores socraacuteticos que prometem consideraacute-la com sabedoria

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e credulidade

O primeiro argumento introduzido por Soacutecrates eacute de que em todos os casos em que

se exige de indiviacuteduos de uma mesma espeacutecie mas de sexos diferentes que exerccedilam

atividades idecircnticas faz-se necessaacuterio conceder a eles a mesma criaccedilatildeo e educaccedilatildeo Aplicando

tal regra ao caso da classe guardiatilde infere-se necessariamente que as mulheres devendo

cumprir as mesmas funccedilotildees que os varotildees tecircm de receber a mesma educaccedilatildeo concedida a

eles isto eacute tecircm de ser educadas na ginaacutestica na muacutesica e na arte beacutelica Sobre essa inferecircncia

incide a questatildeo de saber como eacute possiacutevel designar as mesmas funccedilotildees a seres de naturezas

diferentes como parece ser o caso de homens e mulheres jaacute que como jaacute foi estabelecido

anteriormente a justiccedila consiste em designar a naturezas iguais funccedilotildees iguais e a diferentes

funccedilotildees diferentes A estrateacutegia utilizada por Platatildeo para responder a tal questatildeo consistiraacute em

esclarecer que a diferenccedila sexual natildeo eacute tatildeo profunda e essencial a ponto de interferir

negativamente na realizaccedilatildeo das funccedilotildees e dos deveres de guardiotildees do mesmo modo como

por exemplo natildeo eacute possiacutevel afirmar que um homem que tenha cabelo em abundacircncia e outro

que sofra de calviacutecie natildeo possam realizar a funccedilatildeo de sapateiro por possuiacuterem naturezas

(capilares) diferentes Platatildeo prossegue afirmando que o que impede indiviacuteduos de exercerem

uma mesma funccedilatildeo eacute o fato de uns possuiacuterem aptidatildeo para exercecirc-la e outros natildeo mas tal

restriccedilatildeo eacute imposta pelas diferentes aptidotildees naturais5 que cada indiviacuteduo possui e natildeo pela

diferenccedila sexual Assim o uacutenico justo criteacuterio que impede uma mulher de exercer as funccedilotildees

e deveres de guardiatilde eacute a falta de uma natural aptidatildeo para isso e natildeo simplesmente por natildeo

ser do sexo masculino ou seja as diferenccedilas constitutivas de cada sexo natildeo satildeo relevantes

para que o exerciacutecio giacutemnico musical e beacutelico possa ou natildeo ser realizado de modo perfeito

Platatildeo prevendo a ridicularizaccedilatildeo da qual seraacute viacutetima tal tese em virtude de ser tatildeo contraacuteria

aos costumes de sua eacutepoca aduz o argumento que agrave luz da razatildeo muitas praacuteticas que

pareciam agrave primeira vista ridiacuteculas foram reveladas como o que havia de melhor a ser feito

Nota-se entatildeo que a educaccedilatildeo das mulheres eacute implicada de modo necessaacuterio pelo

sistema concebido por Platatildeo da comunidade dos guardiotildees pois se a funccedilatildeo desta elite

dominante eacute defender a poacutelis e para que isso seja feito de modo perfeito eacute preciso que essa

classe seja constituiacuteda pelos melhores indiviacuteduos entatildeo as mulheres guardiatildes tambeacutem teratildeo

de ser as melhores dentre as demais mulheres e desse modo poder-se-iam gerar a partir

desses melhores outros guardiotildees aprimorando assim a raccedila dessa classe Tal

aprimoramento aos olhos de Platatildeo daacute maior legitimidade ao governo dos guardiotildees sobre os

seus governados

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Deixando em segundo plano as teses eugenistas e autoritaacuterias que vecircm de contrabando

com a defesa da tese da educaccedilatildeo das mulheres pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees

gostariacuteamos de ressaltar um outro aspecto esse sim filosoficamente relevante implicado

pela defesa da tese da formaccedilatildeo feminina a saber a aboliccedilatildeo da vida familiar e da

propriedade privada pois segundo Platatildeo tais elementos constituiriam um entrave agrave

dedicaccedilatildeo total e incondicionada ao bem coletivo a qual eacute exigida pelo cumprimento perfeito

da funccedilatildeo de guardiatildeo da poacutelis Ora natildeo havendo varotildees dotados de propriedade e de vida

privada natildeo seraacute possiacutevel que cada um deles governe uma famiacutelia e portanto tenha mulher e

filhos sob seu comando nem nutra interesses egoiacutestas A supressatildeo das preocupaccedilotildees ligadas agrave

vida familiar particular eacute o que permite aos guardiotildees da poacutelis dedicarem-se

incondicionalmente agrave busca e defesa do bem comum o que segundo Platatildeo eacute condiccedilatildeo de

possibilidade para o estabelecimento duma unidade absoluta do corpo poliacutetico Eacute interessante

notar como Platatildeo parece antever uma preocupaccedilatildeo filosoacutefica que seraacute cara agrave filosofia poliacutetica

moderna e contemporacircnea a saber como compreender a natureza e a subordinaccedilatildeo existente

entre as esferas puacuteblica e privada bem como os papeacuteis atribuiacutedos a homens e mulheres nessas

esferas atraveacutes da adoccedilatildeo do criteacuterio do sexo ou do gecircnero sejam eles compreendidos como

naturais ou como construtos sociais Ao suprimir a propriedade privada e a instituiccedilatildeo familiar

(concebida como uma ceacutelula privada no interior da comunidade poliacutetica portadora de um

papel desviante em relaccedilatildeo agrave perseguiccedilatildeo e realizaccedilatildeo do interesse puacuteblico) e ao delegar agrave

classe dos artesatildeos e agricultores o cultivo de alimentos e a produccedilatildeo de artefatos necessaacuterios

agrave satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas Platatildeo consegue alccedilar a mulher pertencente agrave classe dos

guardiotildees agrave esfera puacuteblica

Deve-se observar entatildeo que as concessotildees que Platatildeo pretendia fazer ao sexo

feminino natildeo consistem em benevolecircncia nem simpatia pessoal as quais Platatildeo poderia nutrir

contingentemente pelas mulheres mas sim que tais concessotildees satildeo uma consequecircncia

necessaacuteria do modelo de formaccedilatildeo dos guardiotildees requerido pela efetivaccedilatildeo da poacutelis ideal

Parece claro assim que a defesa de tal tese natildeo nos permite imputar a Platatildeo o tiacutetulo de

precursor da defesa da tese da igualdade sem qualificaccedilatildeo entre os sexos nem no

reconhecimento da mulher como detentora tal como o homem de iguais direitos-deveres

virtudes e dignidade fundados sobre uma concepccedilatildeo paradigmaacutetica da natureza humana que a

mulher eacute capaz de satisfazer Em nenhum momento pois a letra do texto do proacuteprio filoacutesofo

permite-nos sequer inferir que as mulheres possam ser consideradas iguais aos homens em

inteligecircncia caraacuteter e entendimento mas pelo contraacuterio poderiacuteamos ter a letra do texto

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contra noacutes como eacute o caso das passagens 431b-c6 469d7 557c8 563b-d9 Nesse sentido ldquoo

feminismo platocircnicordquo natildeo pode ser explicado em termos de uma primeira tentativa de

suprimir integralmente a base da opressatildeo feminina fundada numa concepccedilatildeo paradigmaacutetica

de natureza humana a qual a mulher natildeo poderia satisfazer mas eacute sobretudo uma

consequecircncia necessaacuteria de sua concepccedilatildeo poliacutetica sobre a comunidade ideal a qual exige a

igualdade de formaccedilatildeo entre varotildees e mulheres no interior da classe dos guardiotildees Assim

educar as mulheres natildeo eacute uma finalidade ou bem intriacutenseco dentro da perspectiva teoacuterica do

platonismo mas uma condiccedilatildeo sine qua non do desenvolvimento loacutegico da Ideia de Poacutelis

Eacute interessante notar que os sistemas de filosofia poliacutetica modernos e contemporacircneos

necessitaratildeo de seus maiores esforccedilos e enfrentaratildeo grandes desafios para compreender

descrever criticar e prescrever qual o papel da mulher no interior da famiacutelia do mercado de

trabalho da sociedade civil e do Estado Seratildeo tais sistemas capazes sem prescrever a

supressatildeo da propriedade privada e da famiacutelia nem tornar a realizaccedilatildeo das accedilotildees poliacuteticas e

tarefas produtivas excludentes entre si de compatibilizar os papeacuteis que a mulher desempenha

nesses diferentes meios e ainda assim garantir sua ativa participaccedilatildeo na esfera puacuteblica como

fizera Platatildeo Parece-nos que caberaacute agrave filosofia poliacutetica debruccedilar-se incansavelmente sobre as

condiccedilotildees e as bases da opressatildeo da mulher que lhe impede de constituir-se como sujeito de

sua autonomia e de atualizar seus potenciais emancipatoacuterios no interior de cada uma dessas

instacircncias pois sem isso a pretensatildeo mesma de universalidade da categoria de autonomia do

sujeito estaria fadada ao fracasso Assim sendo se o iniacutecio da era contemporacircnea eacute marcado

pela inserccedilatildeo massiva da matildeo de obra feminina no mercado de trabalho a filosofia poliacutetica

contemporacircnea natildeo poderaacute escapar ao desafio de responder pela possibilidade ou

impossibilidade da compatibilizaccedilatildeo entre as demandas da reproduccedilatildeo bioloacutegica ligada agrave

natalidade e agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie e da famiacutelia e da produccedilatildeo de alto rendimento ligada

ao mercado de trabalho dado o atual estaacutegio de desenvolvimento do modo capitalista de

produccedilatildeo o qual natildeo pode dispensar a matildeo de obra feminina e ao mesmo tempo impotildee

severos limites agraves poliacuteticas de accedilatildeo do Estado de bem estar social que poderia vir a viabilizar

uma inserccedilatildeo sustentaacutevel da mulher no mercado de trabalho diante de sua tripla jornada a

saber a criaccedilatildeo dos filhos a conservaccedilatildeo da casa e a produccedilatildeo do trabalho

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A submissatildeo da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles e sua suposta legitimaccedilatildeo sob

os aspectos bioloacutegico aniacutemico e ontoloacutegico

Aristoacuteteles crecirc dentro dos limites de uma visatildeo segundo a qual a estrutura das relaccedilotildees

mantidas no interior da famiacutelia e da comunidade poliacutetica repercutem as relaccedilotildees fundadas na

ldquonaturezardquo (physis) que a inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao varatildeo o que a exclui da

participaccedilatildeo na vida poliacutetica e a impede de alcanccedilar uma vida plenamente feliz possui

sustentaccedilatildeo a partir da articulaccedilatildeo de teses de cunho bioloacutegico e psicoloacutegico as quais por sua

vez fundam-se em uacuteltima instacircncia sobre pressupostos de caraacuteter ontoloacutegico

O papel da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles eacute trazido agrave baila quando o

Estagirita opera em Poliacutetica10 I a descriccedilatildeo dos trecircs tipos de relaccedilotildees constitutivas da famiacutelia

e da casa e que segundo ele engendram-se naturalmente a saber i) a relaccedilatildeo entre marido e

mulher tal uniatildeo daacute-se em funccedilatildeo do instinto natural de reproduccedilatildeo que estaacute presente em

todos os seres naturais animados dado que todos esses seres ldquoo mais natural dos atos eacute

produzir outro ser igual a si mesmo o animal um animal a planta uma planta a fim de que

participem do eterno e do divino como podem pois todos desejam isto e em vista disto fazem

tudo o que fazem por naturezardquo De Anima11 II 4 415a28-b2 ou de acordo com Poliacutetica I 2

1252a27-30 o instinto de preservaccedilatildeo da espeacutecie eacute inerente e natural ao homem assim como

o eacute em todos os outros seres naturais animados ii) a relaccedilatildeo entre senhor e escravo a qual

tambeacutem eacute natural pois aquele que eacute capaz de bem deliberar e agir de acordo com aquilo que

foi posto pela boa deliberaccedilatildeo eacute senhor e mestre por natureza enquanto aquele que dispotildee

apenas de forccedila corporal para executar tais coisas antevistas pelo senhor eacute naturalmente

escravo iii) relaccedilatildeo entre pai e filhos tal relaccedilatildeo eacute marcada pelo domiacutenio monaacuterquico do pai

sobre os filhos em funccedilatildeo do respeito e do amor agrave idade paterna a qual segundo Aristoacuteteles

eacute no mais das vezes sinocircnimo de sabedoria

Todas essas trecircs espeacutecies de relaccedilatildeo familiar pertencem agrave esfera da vida privada ou

seja dizem respeito ao domiacutenio da casa e natildeo ainda da poacutelis O varatildeo soacute possuiraacute uma

segunda espeacutecie de vida a vida poliacutetica quando do surgimento da poacutelis12 O poder de

administraccedilatildeo da casa atraveacutes da dominaccedilatildeo sobre a mulher os escravos e os filhos deve ser

do varatildeo que eacute respectivamente marido senhor e pai A justificaccedilatildeo aristoteacutelica do porquecirc

isso deve ser assim baseia-se na afirmaccedilatildeo de que a constituiccedilatildeo psicoloacutegica (aniacutemica) dos

escravos da mulher e dos filhos impele-os naturalmente agrave subordinaccedilatildeo No caso pois da

relaccedilatildeo senhor-escravo um naturalmente eacute talhado ao comando (uma vez que eacute detentor da

capacidade de bem deliberar e agir de acordo com o que foi posto pela deliberaccedilatildeo) enquanto

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o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui

forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo

Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo

vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda

pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes

morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da

alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a

faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente

inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena

realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por

isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o

escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste

caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional

da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela

ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade

deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a

mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo

sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto

quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir

segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para

cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem

razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a

exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave

felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma

segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o

exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a

mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a

autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto

sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida

confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um

conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia

antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo

tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas

nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute

diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito

homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua

sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada

ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e

conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves

partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita

estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os

gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem

isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na

medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o

discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades

intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a

mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim

tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher

pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo

podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de

satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo

suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees

judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14

Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e

elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal

I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido

menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento

material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando

ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um

varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau

de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade

do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de

indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo

que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da

forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher

portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa

168 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute

anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme

Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade

ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute

biologicamente e ontologicamente inferior a ele

Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem

fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-

3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute

respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da

naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida

matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia

desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-

se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes

das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida

familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger

2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as

ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a

mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da

inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar

Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia

sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como

outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de

ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos

sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho

bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se

apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do

modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de

Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres

satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a

ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos

aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos

aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo

feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre

169 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura

fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida

em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como

fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do

acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse

mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo

sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo

sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais

acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as

condiccedilotildees a que eram submetidos

A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166

da Filosofia do Direito de Hegel

A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do

universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve

restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de

eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento

do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir

da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees

complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual

confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo

exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas

pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a

espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e

por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia

do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a

espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da

individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria

segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e

contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao

exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas

necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e

consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior

170 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

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ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do

sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres

possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave

incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais

caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo

aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a

impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de

igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo

expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a

concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos

da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca

espaccedilo para uma forma de opressatildeo

No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade

da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo

indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee

de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre

homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do

espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute

engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza

eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais

universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu

desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade

pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees

comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute

portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos

como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de

mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a

qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que

o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o

natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais

transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o

engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel

aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias

171 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

perpassadas por eles

Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com

a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela

(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da

ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee

agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto

supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a

capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo

ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida

social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como

naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural

parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa

hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos

civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de

participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta

pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia

especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito

proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo

com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda

naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem

exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo

do espiacuterito

Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um

antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de

tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave

coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do

princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam

considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o

argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si

a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem

mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute

atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se

reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa

Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana

acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico

desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam

elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas

de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o

problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza

humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de

sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal

Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de

capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave

anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente

marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o

afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres

ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum

(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles

considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da

funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral

justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a

levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees

A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os

elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo

ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de

deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da

classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista

em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente

destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser

confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e

morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como

estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

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Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

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WOOD A Hegelrsquos ethical thought Cambridge CUP 1990

Recebido em 28122017

Aprovado em 19092018

160 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Introduccedilatildeo

O objetivo do presente artigo eacute traccedilar um breve esboccedilo sobre o lugar destinado agrave

mulher no interior dos sistemas poliacuteticos de Platatildeo Aristoacuteteles e Hegel e tentar achar espaccedilo

dentro da teoria deste uacuteltimo para vislumbrar a possibilidade da equidade civil e poliacutetica entre

mulheres e homens atraveacutes da noccedilatildeo de vida eacutetica como segunda natureza A marca desses

sistemas filosoacuteficos como pretenderemos mostrar consiste na postulaccedilatildeo que a natureza

humana possui caracteriacutesticas essenciais as quais natildeo podem ser totalmente satisfeitas pelas

mulheres Tal marca funda-se sobre a crenccedila que o ser humano e a mulher possuem

caracteriacutesticas que lhe pertencem de necessidade e que a mulher dada a sua natureza

essencialmente determinada natildeo eacute capaz de satisfazer plenamente os requisitos da natureza

humana

Pretender-se-aacute mostrar primeiramente como para Platatildeo conceder agrave mulher a mesma

educaccedilatildeo concedida ao varatildeo da comunidade dos guardiotildees da poacutelis em vez de mantecirc-la em

condiccedilotildees totalmente aculturais eacute condiccedilatildeo sine qua non para a realizaccedilatildeo da poacutelis ideal Tais

concessotildees que Platatildeo pretendia fazer ao sexo feminino como veremos natildeo tornam Platatildeo

um ldquofeministardquo pois de nenhum modo o filoacutesofo ateniense parece defender a tese que as

mulheres satildeo iguais aos homens em virtudes intelectuais ou morais ou que elas possam

preencher os requisitos necessaacuterios e suficientes para a satisfaccedilatildeo do ideal da natureza

humana

Nessa mesma linha poreacutem extraindo consequecircncias mais cerceadoras e opressivas

que as platocircnicas podemos localizar a visatildeo aristoteacutelica sobre o papel da mulher Segundo o

Estagirita como veremos a mulher eacute inferior ao homem sob o aspecto bioloacutegico aniacutemico (ou

psicoloacutegico) e ontoloacutegico o que ldquolegitimardquo aos olhos do Filoacutesofo a exclusatildeo feminina do

acircmbito poliacutetico jaacute que essa esfera estaacute fundada sobre o governo da racionalidade e das

virtudes intelectuais as quais o sexo feminino eacute naturalmente inapto a comportar e por isso a

mulher natildeo eacute plenamente digna da condiccedilatildeo de cidadatilde da poacutelis

Hegel por sua vez parece sustentar uma posiccedilatildeo sobre a natureza feminina bastante

proacutexima de Aristoacuteteles distanciando-se assim de Platatildeo visto que segundo Hegel a

determinaccedilatildeo substancial da mulher daacute-se no acircmbito da famiacutelia pois eacute proacuteprio da natureza do

caraacuteter feminino natildeo se comportar segundo as exigecircncias da universalidade mas segundo

opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes engendradas pela fragilidade caracteriacutestica do sentimento

a qual deve ser eliminada no processo de desdobramento do conceito de eticidade para que a

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realizaccedilatildeo plena da ideia da liberdade se decirc No entanto mesmo que a letra do proacuteprio texto

de Hegel pareccedila tatildeo contraacuteria agrave igualdade civil e poliacutetica entre homens e mulheres a noccedilatildeo de

vida eacutetica como segunda natureza permite como pretender-se-aacute mostrar vislumbrar a

possibilidade da equidade de direitos e deveres civis e poliacuteticos entre os sexos atraveacutes da

reposiccedilatildeo eacutetica daquilo que eacute meramente sensiacutevel e natural mediante o engendramento de

costumes que superem tais elementos contingentes conduzindo assim agravequilo que eacute universal

e necessaacuterio

A educaccedilatildeo e o papel da mulher na comunidade dos guardiotildees da poacutelis ideal de Platatildeo

Repuacuteblica3 V 449a-457c

A partir de 449a Platatildeo aborda a questatildeo da educaccedilatildeo das mulheres e das crianccedilas

pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees da poacutelis (minoria dominante chamada a defender a

comunidade poliacutetica) delineando assim o papel que tal questatildeo representa na configuraccedilatildeo

do seu Estado ideal Tal discussatildeo centrar-se-aacute em determinar o regime mais adequado a ser

adotado para a formaccedilatildeo das mulheres e da prole dessa comunidade visto que tal formaccedilatildeo

ldquoarrastaraacute consigo alteraccedilotildees grandes e ateacute radicais conforme for bem ou mal realizadardquo

conforme 449d5-6

O fato de chamar mulheres a defender a poacutelis provendo-as assim do tiacutetulo de

guardiatildes jaacute coloca Platatildeo numa situaccedilatildeo embaraccedilosa frente agrave opiniatildeo sustentada pelo senso

comum acerca da mulher visto que a marca da situaccedilatildeo do sexo feminino em Atenas por

exemplo eacute a da marginalidade e da passividade que o submetem agrave incultura fiacutesica e

intelectual Tendo isso em vista a defesa da tese que eacute preciso conceder agraves mulheres a mesma

educaccedilatildeo dispensada aos varotildees da comunidade dos guardiotildees eacute um embaraccedilo ainda maior

para Platatildeo pois tal tese confronta radicalmente os costumes vigentes em Atenas e o modo

como o fenocircmeno do comportamento moral feminino era observado Assim eacute revisando e se

afastando do modo empiricamente dado e constataacutevel do comportamento da mulher que a

teoria platocircnica natildeo pretende tatildeo somente descrever a realidade sensiacutevel mas prescrever uma

nova realidade de acordo com o necessaacuterio desenvolvimento loacutegico da ideia de poacutelis Isso

talvez explique o rodeio que Soacutecrates tece no iniacutecio do livro V antes de expor tese tatildeo

arrojada a qual ele teme ser ridicularizada por aqueles que ldquocolhem imaturo o fruto da

sabedoriardquo (citaccedilatildeo de Piacutendaro que ocorre em 457b34) e que soacute eacute trazida agrave baila depois de

reiteradas exortaccedilotildees dos interlocutores socraacuteticos que prometem consideraacute-la com sabedoria

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e credulidade

O primeiro argumento introduzido por Soacutecrates eacute de que em todos os casos em que

se exige de indiviacuteduos de uma mesma espeacutecie mas de sexos diferentes que exerccedilam

atividades idecircnticas faz-se necessaacuterio conceder a eles a mesma criaccedilatildeo e educaccedilatildeo Aplicando

tal regra ao caso da classe guardiatilde infere-se necessariamente que as mulheres devendo

cumprir as mesmas funccedilotildees que os varotildees tecircm de receber a mesma educaccedilatildeo concedida a

eles isto eacute tecircm de ser educadas na ginaacutestica na muacutesica e na arte beacutelica Sobre essa inferecircncia

incide a questatildeo de saber como eacute possiacutevel designar as mesmas funccedilotildees a seres de naturezas

diferentes como parece ser o caso de homens e mulheres jaacute que como jaacute foi estabelecido

anteriormente a justiccedila consiste em designar a naturezas iguais funccedilotildees iguais e a diferentes

funccedilotildees diferentes A estrateacutegia utilizada por Platatildeo para responder a tal questatildeo consistiraacute em

esclarecer que a diferenccedila sexual natildeo eacute tatildeo profunda e essencial a ponto de interferir

negativamente na realizaccedilatildeo das funccedilotildees e dos deveres de guardiotildees do mesmo modo como

por exemplo natildeo eacute possiacutevel afirmar que um homem que tenha cabelo em abundacircncia e outro

que sofra de calviacutecie natildeo possam realizar a funccedilatildeo de sapateiro por possuiacuterem naturezas

(capilares) diferentes Platatildeo prossegue afirmando que o que impede indiviacuteduos de exercerem

uma mesma funccedilatildeo eacute o fato de uns possuiacuterem aptidatildeo para exercecirc-la e outros natildeo mas tal

restriccedilatildeo eacute imposta pelas diferentes aptidotildees naturais5 que cada indiviacuteduo possui e natildeo pela

diferenccedila sexual Assim o uacutenico justo criteacuterio que impede uma mulher de exercer as funccedilotildees

e deveres de guardiatilde eacute a falta de uma natural aptidatildeo para isso e natildeo simplesmente por natildeo

ser do sexo masculino ou seja as diferenccedilas constitutivas de cada sexo natildeo satildeo relevantes

para que o exerciacutecio giacutemnico musical e beacutelico possa ou natildeo ser realizado de modo perfeito

Platatildeo prevendo a ridicularizaccedilatildeo da qual seraacute viacutetima tal tese em virtude de ser tatildeo contraacuteria

aos costumes de sua eacutepoca aduz o argumento que agrave luz da razatildeo muitas praacuteticas que

pareciam agrave primeira vista ridiacuteculas foram reveladas como o que havia de melhor a ser feito

Nota-se entatildeo que a educaccedilatildeo das mulheres eacute implicada de modo necessaacuterio pelo

sistema concebido por Platatildeo da comunidade dos guardiotildees pois se a funccedilatildeo desta elite

dominante eacute defender a poacutelis e para que isso seja feito de modo perfeito eacute preciso que essa

classe seja constituiacuteda pelos melhores indiviacuteduos entatildeo as mulheres guardiatildes tambeacutem teratildeo

de ser as melhores dentre as demais mulheres e desse modo poder-se-iam gerar a partir

desses melhores outros guardiotildees aprimorando assim a raccedila dessa classe Tal

aprimoramento aos olhos de Platatildeo daacute maior legitimidade ao governo dos guardiotildees sobre os

seus governados

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Deixando em segundo plano as teses eugenistas e autoritaacuterias que vecircm de contrabando

com a defesa da tese da educaccedilatildeo das mulheres pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees

gostariacuteamos de ressaltar um outro aspecto esse sim filosoficamente relevante implicado

pela defesa da tese da formaccedilatildeo feminina a saber a aboliccedilatildeo da vida familiar e da

propriedade privada pois segundo Platatildeo tais elementos constituiriam um entrave agrave

dedicaccedilatildeo total e incondicionada ao bem coletivo a qual eacute exigida pelo cumprimento perfeito

da funccedilatildeo de guardiatildeo da poacutelis Ora natildeo havendo varotildees dotados de propriedade e de vida

privada natildeo seraacute possiacutevel que cada um deles governe uma famiacutelia e portanto tenha mulher e

filhos sob seu comando nem nutra interesses egoiacutestas A supressatildeo das preocupaccedilotildees ligadas agrave

vida familiar particular eacute o que permite aos guardiotildees da poacutelis dedicarem-se

incondicionalmente agrave busca e defesa do bem comum o que segundo Platatildeo eacute condiccedilatildeo de

possibilidade para o estabelecimento duma unidade absoluta do corpo poliacutetico Eacute interessante

notar como Platatildeo parece antever uma preocupaccedilatildeo filosoacutefica que seraacute cara agrave filosofia poliacutetica

moderna e contemporacircnea a saber como compreender a natureza e a subordinaccedilatildeo existente

entre as esferas puacuteblica e privada bem como os papeacuteis atribuiacutedos a homens e mulheres nessas

esferas atraveacutes da adoccedilatildeo do criteacuterio do sexo ou do gecircnero sejam eles compreendidos como

naturais ou como construtos sociais Ao suprimir a propriedade privada e a instituiccedilatildeo familiar

(concebida como uma ceacutelula privada no interior da comunidade poliacutetica portadora de um

papel desviante em relaccedilatildeo agrave perseguiccedilatildeo e realizaccedilatildeo do interesse puacuteblico) e ao delegar agrave

classe dos artesatildeos e agricultores o cultivo de alimentos e a produccedilatildeo de artefatos necessaacuterios

agrave satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas Platatildeo consegue alccedilar a mulher pertencente agrave classe dos

guardiotildees agrave esfera puacuteblica

Deve-se observar entatildeo que as concessotildees que Platatildeo pretendia fazer ao sexo

feminino natildeo consistem em benevolecircncia nem simpatia pessoal as quais Platatildeo poderia nutrir

contingentemente pelas mulheres mas sim que tais concessotildees satildeo uma consequecircncia

necessaacuteria do modelo de formaccedilatildeo dos guardiotildees requerido pela efetivaccedilatildeo da poacutelis ideal

Parece claro assim que a defesa de tal tese natildeo nos permite imputar a Platatildeo o tiacutetulo de

precursor da defesa da tese da igualdade sem qualificaccedilatildeo entre os sexos nem no

reconhecimento da mulher como detentora tal como o homem de iguais direitos-deveres

virtudes e dignidade fundados sobre uma concepccedilatildeo paradigmaacutetica da natureza humana que a

mulher eacute capaz de satisfazer Em nenhum momento pois a letra do texto do proacuteprio filoacutesofo

permite-nos sequer inferir que as mulheres possam ser consideradas iguais aos homens em

inteligecircncia caraacuteter e entendimento mas pelo contraacuterio poderiacuteamos ter a letra do texto

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contra noacutes como eacute o caso das passagens 431b-c6 469d7 557c8 563b-d9 Nesse sentido ldquoo

feminismo platocircnicordquo natildeo pode ser explicado em termos de uma primeira tentativa de

suprimir integralmente a base da opressatildeo feminina fundada numa concepccedilatildeo paradigmaacutetica

de natureza humana a qual a mulher natildeo poderia satisfazer mas eacute sobretudo uma

consequecircncia necessaacuteria de sua concepccedilatildeo poliacutetica sobre a comunidade ideal a qual exige a

igualdade de formaccedilatildeo entre varotildees e mulheres no interior da classe dos guardiotildees Assim

educar as mulheres natildeo eacute uma finalidade ou bem intriacutenseco dentro da perspectiva teoacuterica do

platonismo mas uma condiccedilatildeo sine qua non do desenvolvimento loacutegico da Ideia de Poacutelis

Eacute interessante notar que os sistemas de filosofia poliacutetica modernos e contemporacircneos

necessitaratildeo de seus maiores esforccedilos e enfrentaratildeo grandes desafios para compreender

descrever criticar e prescrever qual o papel da mulher no interior da famiacutelia do mercado de

trabalho da sociedade civil e do Estado Seratildeo tais sistemas capazes sem prescrever a

supressatildeo da propriedade privada e da famiacutelia nem tornar a realizaccedilatildeo das accedilotildees poliacuteticas e

tarefas produtivas excludentes entre si de compatibilizar os papeacuteis que a mulher desempenha

nesses diferentes meios e ainda assim garantir sua ativa participaccedilatildeo na esfera puacuteblica como

fizera Platatildeo Parece-nos que caberaacute agrave filosofia poliacutetica debruccedilar-se incansavelmente sobre as

condiccedilotildees e as bases da opressatildeo da mulher que lhe impede de constituir-se como sujeito de

sua autonomia e de atualizar seus potenciais emancipatoacuterios no interior de cada uma dessas

instacircncias pois sem isso a pretensatildeo mesma de universalidade da categoria de autonomia do

sujeito estaria fadada ao fracasso Assim sendo se o iniacutecio da era contemporacircnea eacute marcado

pela inserccedilatildeo massiva da matildeo de obra feminina no mercado de trabalho a filosofia poliacutetica

contemporacircnea natildeo poderaacute escapar ao desafio de responder pela possibilidade ou

impossibilidade da compatibilizaccedilatildeo entre as demandas da reproduccedilatildeo bioloacutegica ligada agrave

natalidade e agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie e da famiacutelia e da produccedilatildeo de alto rendimento ligada

ao mercado de trabalho dado o atual estaacutegio de desenvolvimento do modo capitalista de

produccedilatildeo o qual natildeo pode dispensar a matildeo de obra feminina e ao mesmo tempo impotildee

severos limites agraves poliacuteticas de accedilatildeo do Estado de bem estar social que poderia vir a viabilizar

uma inserccedilatildeo sustentaacutevel da mulher no mercado de trabalho diante de sua tripla jornada a

saber a criaccedilatildeo dos filhos a conservaccedilatildeo da casa e a produccedilatildeo do trabalho

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A submissatildeo da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles e sua suposta legitimaccedilatildeo sob

os aspectos bioloacutegico aniacutemico e ontoloacutegico

Aristoacuteteles crecirc dentro dos limites de uma visatildeo segundo a qual a estrutura das relaccedilotildees

mantidas no interior da famiacutelia e da comunidade poliacutetica repercutem as relaccedilotildees fundadas na

ldquonaturezardquo (physis) que a inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao varatildeo o que a exclui da

participaccedilatildeo na vida poliacutetica e a impede de alcanccedilar uma vida plenamente feliz possui

sustentaccedilatildeo a partir da articulaccedilatildeo de teses de cunho bioloacutegico e psicoloacutegico as quais por sua

vez fundam-se em uacuteltima instacircncia sobre pressupostos de caraacuteter ontoloacutegico

O papel da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles eacute trazido agrave baila quando o

Estagirita opera em Poliacutetica10 I a descriccedilatildeo dos trecircs tipos de relaccedilotildees constitutivas da famiacutelia

e da casa e que segundo ele engendram-se naturalmente a saber i) a relaccedilatildeo entre marido e

mulher tal uniatildeo daacute-se em funccedilatildeo do instinto natural de reproduccedilatildeo que estaacute presente em

todos os seres naturais animados dado que todos esses seres ldquoo mais natural dos atos eacute

produzir outro ser igual a si mesmo o animal um animal a planta uma planta a fim de que

participem do eterno e do divino como podem pois todos desejam isto e em vista disto fazem

tudo o que fazem por naturezardquo De Anima11 II 4 415a28-b2 ou de acordo com Poliacutetica I 2

1252a27-30 o instinto de preservaccedilatildeo da espeacutecie eacute inerente e natural ao homem assim como

o eacute em todos os outros seres naturais animados ii) a relaccedilatildeo entre senhor e escravo a qual

tambeacutem eacute natural pois aquele que eacute capaz de bem deliberar e agir de acordo com aquilo que

foi posto pela boa deliberaccedilatildeo eacute senhor e mestre por natureza enquanto aquele que dispotildee

apenas de forccedila corporal para executar tais coisas antevistas pelo senhor eacute naturalmente

escravo iii) relaccedilatildeo entre pai e filhos tal relaccedilatildeo eacute marcada pelo domiacutenio monaacuterquico do pai

sobre os filhos em funccedilatildeo do respeito e do amor agrave idade paterna a qual segundo Aristoacuteteles

eacute no mais das vezes sinocircnimo de sabedoria

Todas essas trecircs espeacutecies de relaccedilatildeo familiar pertencem agrave esfera da vida privada ou

seja dizem respeito ao domiacutenio da casa e natildeo ainda da poacutelis O varatildeo soacute possuiraacute uma

segunda espeacutecie de vida a vida poliacutetica quando do surgimento da poacutelis12 O poder de

administraccedilatildeo da casa atraveacutes da dominaccedilatildeo sobre a mulher os escravos e os filhos deve ser

do varatildeo que eacute respectivamente marido senhor e pai A justificaccedilatildeo aristoteacutelica do porquecirc

isso deve ser assim baseia-se na afirmaccedilatildeo de que a constituiccedilatildeo psicoloacutegica (aniacutemica) dos

escravos da mulher e dos filhos impele-os naturalmente agrave subordinaccedilatildeo No caso pois da

relaccedilatildeo senhor-escravo um naturalmente eacute talhado ao comando (uma vez que eacute detentor da

capacidade de bem deliberar e agir de acordo com o que foi posto pela deliberaccedilatildeo) enquanto

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o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui

forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo

Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo

vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda

pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes

morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da

alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a

faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente

inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena

realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por

isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o

escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste

caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional

da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela

ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade

deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a

mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo

sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto

quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir

segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para

cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem

razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a

exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave

felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma

segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o

exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a

mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a

autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto

sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida

confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um

conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia

antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo

tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas

nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e

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consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute

diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito

homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua

sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada

ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e

conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves

partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita

estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os

gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem

isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na

medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o

discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades

intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a

mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim

tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher

pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo

podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de

satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo

suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees

judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14

Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e

elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal

I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido

menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento

material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando

ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um

varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau

de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade

do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de

indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo

que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da

forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher

portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa

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inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute

anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme

Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade

ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute

biologicamente e ontologicamente inferior a ele

Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem

fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-

3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute

respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da

naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida

matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia

desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-

se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes

das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida

familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger

2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as

ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a

mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da

inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar

Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia

sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como

outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de

ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos

sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho

bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se

apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do

modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de

Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres

satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a

ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos

aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos

aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo

feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura

fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida

em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como

fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do

acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse

mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo

sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo

sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais

acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as

condiccedilotildees a que eram submetidos

A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166

da Filosofia do Direito de Hegel

A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do

universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve

restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de

eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento

do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir

da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees

complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual

confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo

exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas

pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a

espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e

por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia

do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a

espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da

individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria

segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e

contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao

exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas

necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e

consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior

170 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do

sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres

possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave

incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais

caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo

aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a

impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de

igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo

expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a

concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos

da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca

espaccedilo para uma forma de opressatildeo

No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade

da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo

indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee

de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre

homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do

espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute

engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza

eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais

universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu

desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade

pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees

comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute

portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos

como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de

mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a

qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que

o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o

natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais

transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o

engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel

aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias

171 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

perpassadas por eles

Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com

a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela

(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da

ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee

agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto

supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a

capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo

ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida

social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como

naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural

parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa

hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos

civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de

participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta

pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia

especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito

proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo

com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda

naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem

exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo

do espiacuterito

Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um

antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de

tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave

coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do

princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam

considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o

argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si

a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem

mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute

atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se

reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa

Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana

acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico

desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam

elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas

de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o

problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza

humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de

sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal

Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de

capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave

anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente

marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o

afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres

ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum

(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles

considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da

funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral

justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a

levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees

A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os

elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo

ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de

deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da

classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista

em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente

destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser

confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e

morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como

estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema

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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

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Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

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Recebido em 28122017

Aprovado em 19092018

161 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

realizaccedilatildeo plena da ideia da liberdade se decirc No entanto mesmo que a letra do proacuteprio texto

de Hegel pareccedila tatildeo contraacuteria agrave igualdade civil e poliacutetica entre homens e mulheres a noccedilatildeo de

vida eacutetica como segunda natureza permite como pretender-se-aacute mostrar vislumbrar a

possibilidade da equidade de direitos e deveres civis e poliacuteticos entre os sexos atraveacutes da

reposiccedilatildeo eacutetica daquilo que eacute meramente sensiacutevel e natural mediante o engendramento de

costumes que superem tais elementos contingentes conduzindo assim agravequilo que eacute universal

e necessaacuterio

A educaccedilatildeo e o papel da mulher na comunidade dos guardiotildees da poacutelis ideal de Platatildeo

Repuacuteblica3 V 449a-457c

A partir de 449a Platatildeo aborda a questatildeo da educaccedilatildeo das mulheres e das crianccedilas

pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees da poacutelis (minoria dominante chamada a defender a

comunidade poliacutetica) delineando assim o papel que tal questatildeo representa na configuraccedilatildeo

do seu Estado ideal Tal discussatildeo centrar-se-aacute em determinar o regime mais adequado a ser

adotado para a formaccedilatildeo das mulheres e da prole dessa comunidade visto que tal formaccedilatildeo

ldquoarrastaraacute consigo alteraccedilotildees grandes e ateacute radicais conforme for bem ou mal realizadardquo

conforme 449d5-6

O fato de chamar mulheres a defender a poacutelis provendo-as assim do tiacutetulo de

guardiatildes jaacute coloca Platatildeo numa situaccedilatildeo embaraccedilosa frente agrave opiniatildeo sustentada pelo senso

comum acerca da mulher visto que a marca da situaccedilatildeo do sexo feminino em Atenas por

exemplo eacute a da marginalidade e da passividade que o submetem agrave incultura fiacutesica e

intelectual Tendo isso em vista a defesa da tese que eacute preciso conceder agraves mulheres a mesma

educaccedilatildeo dispensada aos varotildees da comunidade dos guardiotildees eacute um embaraccedilo ainda maior

para Platatildeo pois tal tese confronta radicalmente os costumes vigentes em Atenas e o modo

como o fenocircmeno do comportamento moral feminino era observado Assim eacute revisando e se

afastando do modo empiricamente dado e constataacutevel do comportamento da mulher que a

teoria platocircnica natildeo pretende tatildeo somente descrever a realidade sensiacutevel mas prescrever uma

nova realidade de acordo com o necessaacuterio desenvolvimento loacutegico da ideia de poacutelis Isso

talvez explique o rodeio que Soacutecrates tece no iniacutecio do livro V antes de expor tese tatildeo

arrojada a qual ele teme ser ridicularizada por aqueles que ldquocolhem imaturo o fruto da

sabedoriardquo (citaccedilatildeo de Piacutendaro que ocorre em 457b34) e que soacute eacute trazida agrave baila depois de

reiteradas exortaccedilotildees dos interlocutores socraacuteticos que prometem consideraacute-la com sabedoria

162 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

e credulidade

O primeiro argumento introduzido por Soacutecrates eacute de que em todos os casos em que

se exige de indiviacuteduos de uma mesma espeacutecie mas de sexos diferentes que exerccedilam

atividades idecircnticas faz-se necessaacuterio conceder a eles a mesma criaccedilatildeo e educaccedilatildeo Aplicando

tal regra ao caso da classe guardiatilde infere-se necessariamente que as mulheres devendo

cumprir as mesmas funccedilotildees que os varotildees tecircm de receber a mesma educaccedilatildeo concedida a

eles isto eacute tecircm de ser educadas na ginaacutestica na muacutesica e na arte beacutelica Sobre essa inferecircncia

incide a questatildeo de saber como eacute possiacutevel designar as mesmas funccedilotildees a seres de naturezas

diferentes como parece ser o caso de homens e mulheres jaacute que como jaacute foi estabelecido

anteriormente a justiccedila consiste em designar a naturezas iguais funccedilotildees iguais e a diferentes

funccedilotildees diferentes A estrateacutegia utilizada por Platatildeo para responder a tal questatildeo consistiraacute em

esclarecer que a diferenccedila sexual natildeo eacute tatildeo profunda e essencial a ponto de interferir

negativamente na realizaccedilatildeo das funccedilotildees e dos deveres de guardiotildees do mesmo modo como

por exemplo natildeo eacute possiacutevel afirmar que um homem que tenha cabelo em abundacircncia e outro

que sofra de calviacutecie natildeo possam realizar a funccedilatildeo de sapateiro por possuiacuterem naturezas

(capilares) diferentes Platatildeo prossegue afirmando que o que impede indiviacuteduos de exercerem

uma mesma funccedilatildeo eacute o fato de uns possuiacuterem aptidatildeo para exercecirc-la e outros natildeo mas tal

restriccedilatildeo eacute imposta pelas diferentes aptidotildees naturais5 que cada indiviacuteduo possui e natildeo pela

diferenccedila sexual Assim o uacutenico justo criteacuterio que impede uma mulher de exercer as funccedilotildees

e deveres de guardiatilde eacute a falta de uma natural aptidatildeo para isso e natildeo simplesmente por natildeo

ser do sexo masculino ou seja as diferenccedilas constitutivas de cada sexo natildeo satildeo relevantes

para que o exerciacutecio giacutemnico musical e beacutelico possa ou natildeo ser realizado de modo perfeito

Platatildeo prevendo a ridicularizaccedilatildeo da qual seraacute viacutetima tal tese em virtude de ser tatildeo contraacuteria

aos costumes de sua eacutepoca aduz o argumento que agrave luz da razatildeo muitas praacuteticas que

pareciam agrave primeira vista ridiacuteculas foram reveladas como o que havia de melhor a ser feito

Nota-se entatildeo que a educaccedilatildeo das mulheres eacute implicada de modo necessaacuterio pelo

sistema concebido por Platatildeo da comunidade dos guardiotildees pois se a funccedilatildeo desta elite

dominante eacute defender a poacutelis e para que isso seja feito de modo perfeito eacute preciso que essa

classe seja constituiacuteda pelos melhores indiviacuteduos entatildeo as mulheres guardiatildes tambeacutem teratildeo

de ser as melhores dentre as demais mulheres e desse modo poder-se-iam gerar a partir

desses melhores outros guardiotildees aprimorando assim a raccedila dessa classe Tal

aprimoramento aos olhos de Platatildeo daacute maior legitimidade ao governo dos guardiotildees sobre os

seus governados

163 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Deixando em segundo plano as teses eugenistas e autoritaacuterias que vecircm de contrabando

com a defesa da tese da educaccedilatildeo das mulheres pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees

gostariacuteamos de ressaltar um outro aspecto esse sim filosoficamente relevante implicado

pela defesa da tese da formaccedilatildeo feminina a saber a aboliccedilatildeo da vida familiar e da

propriedade privada pois segundo Platatildeo tais elementos constituiriam um entrave agrave

dedicaccedilatildeo total e incondicionada ao bem coletivo a qual eacute exigida pelo cumprimento perfeito

da funccedilatildeo de guardiatildeo da poacutelis Ora natildeo havendo varotildees dotados de propriedade e de vida

privada natildeo seraacute possiacutevel que cada um deles governe uma famiacutelia e portanto tenha mulher e

filhos sob seu comando nem nutra interesses egoiacutestas A supressatildeo das preocupaccedilotildees ligadas agrave

vida familiar particular eacute o que permite aos guardiotildees da poacutelis dedicarem-se

incondicionalmente agrave busca e defesa do bem comum o que segundo Platatildeo eacute condiccedilatildeo de

possibilidade para o estabelecimento duma unidade absoluta do corpo poliacutetico Eacute interessante

notar como Platatildeo parece antever uma preocupaccedilatildeo filosoacutefica que seraacute cara agrave filosofia poliacutetica

moderna e contemporacircnea a saber como compreender a natureza e a subordinaccedilatildeo existente

entre as esferas puacuteblica e privada bem como os papeacuteis atribuiacutedos a homens e mulheres nessas

esferas atraveacutes da adoccedilatildeo do criteacuterio do sexo ou do gecircnero sejam eles compreendidos como

naturais ou como construtos sociais Ao suprimir a propriedade privada e a instituiccedilatildeo familiar

(concebida como uma ceacutelula privada no interior da comunidade poliacutetica portadora de um

papel desviante em relaccedilatildeo agrave perseguiccedilatildeo e realizaccedilatildeo do interesse puacuteblico) e ao delegar agrave

classe dos artesatildeos e agricultores o cultivo de alimentos e a produccedilatildeo de artefatos necessaacuterios

agrave satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas Platatildeo consegue alccedilar a mulher pertencente agrave classe dos

guardiotildees agrave esfera puacuteblica

Deve-se observar entatildeo que as concessotildees que Platatildeo pretendia fazer ao sexo

feminino natildeo consistem em benevolecircncia nem simpatia pessoal as quais Platatildeo poderia nutrir

contingentemente pelas mulheres mas sim que tais concessotildees satildeo uma consequecircncia

necessaacuteria do modelo de formaccedilatildeo dos guardiotildees requerido pela efetivaccedilatildeo da poacutelis ideal

Parece claro assim que a defesa de tal tese natildeo nos permite imputar a Platatildeo o tiacutetulo de

precursor da defesa da tese da igualdade sem qualificaccedilatildeo entre os sexos nem no

reconhecimento da mulher como detentora tal como o homem de iguais direitos-deveres

virtudes e dignidade fundados sobre uma concepccedilatildeo paradigmaacutetica da natureza humana que a

mulher eacute capaz de satisfazer Em nenhum momento pois a letra do texto do proacuteprio filoacutesofo

permite-nos sequer inferir que as mulheres possam ser consideradas iguais aos homens em

inteligecircncia caraacuteter e entendimento mas pelo contraacuterio poderiacuteamos ter a letra do texto

164 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

contra noacutes como eacute o caso das passagens 431b-c6 469d7 557c8 563b-d9 Nesse sentido ldquoo

feminismo platocircnicordquo natildeo pode ser explicado em termos de uma primeira tentativa de

suprimir integralmente a base da opressatildeo feminina fundada numa concepccedilatildeo paradigmaacutetica

de natureza humana a qual a mulher natildeo poderia satisfazer mas eacute sobretudo uma

consequecircncia necessaacuteria de sua concepccedilatildeo poliacutetica sobre a comunidade ideal a qual exige a

igualdade de formaccedilatildeo entre varotildees e mulheres no interior da classe dos guardiotildees Assim

educar as mulheres natildeo eacute uma finalidade ou bem intriacutenseco dentro da perspectiva teoacuterica do

platonismo mas uma condiccedilatildeo sine qua non do desenvolvimento loacutegico da Ideia de Poacutelis

Eacute interessante notar que os sistemas de filosofia poliacutetica modernos e contemporacircneos

necessitaratildeo de seus maiores esforccedilos e enfrentaratildeo grandes desafios para compreender

descrever criticar e prescrever qual o papel da mulher no interior da famiacutelia do mercado de

trabalho da sociedade civil e do Estado Seratildeo tais sistemas capazes sem prescrever a

supressatildeo da propriedade privada e da famiacutelia nem tornar a realizaccedilatildeo das accedilotildees poliacuteticas e

tarefas produtivas excludentes entre si de compatibilizar os papeacuteis que a mulher desempenha

nesses diferentes meios e ainda assim garantir sua ativa participaccedilatildeo na esfera puacuteblica como

fizera Platatildeo Parece-nos que caberaacute agrave filosofia poliacutetica debruccedilar-se incansavelmente sobre as

condiccedilotildees e as bases da opressatildeo da mulher que lhe impede de constituir-se como sujeito de

sua autonomia e de atualizar seus potenciais emancipatoacuterios no interior de cada uma dessas

instacircncias pois sem isso a pretensatildeo mesma de universalidade da categoria de autonomia do

sujeito estaria fadada ao fracasso Assim sendo se o iniacutecio da era contemporacircnea eacute marcado

pela inserccedilatildeo massiva da matildeo de obra feminina no mercado de trabalho a filosofia poliacutetica

contemporacircnea natildeo poderaacute escapar ao desafio de responder pela possibilidade ou

impossibilidade da compatibilizaccedilatildeo entre as demandas da reproduccedilatildeo bioloacutegica ligada agrave

natalidade e agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie e da famiacutelia e da produccedilatildeo de alto rendimento ligada

ao mercado de trabalho dado o atual estaacutegio de desenvolvimento do modo capitalista de

produccedilatildeo o qual natildeo pode dispensar a matildeo de obra feminina e ao mesmo tempo impotildee

severos limites agraves poliacuteticas de accedilatildeo do Estado de bem estar social que poderia vir a viabilizar

uma inserccedilatildeo sustentaacutevel da mulher no mercado de trabalho diante de sua tripla jornada a

saber a criaccedilatildeo dos filhos a conservaccedilatildeo da casa e a produccedilatildeo do trabalho

165 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

A submissatildeo da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles e sua suposta legitimaccedilatildeo sob

os aspectos bioloacutegico aniacutemico e ontoloacutegico

Aristoacuteteles crecirc dentro dos limites de uma visatildeo segundo a qual a estrutura das relaccedilotildees

mantidas no interior da famiacutelia e da comunidade poliacutetica repercutem as relaccedilotildees fundadas na

ldquonaturezardquo (physis) que a inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao varatildeo o que a exclui da

participaccedilatildeo na vida poliacutetica e a impede de alcanccedilar uma vida plenamente feliz possui

sustentaccedilatildeo a partir da articulaccedilatildeo de teses de cunho bioloacutegico e psicoloacutegico as quais por sua

vez fundam-se em uacuteltima instacircncia sobre pressupostos de caraacuteter ontoloacutegico

O papel da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles eacute trazido agrave baila quando o

Estagirita opera em Poliacutetica10 I a descriccedilatildeo dos trecircs tipos de relaccedilotildees constitutivas da famiacutelia

e da casa e que segundo ele engendram-se naturalmente a saber i) a relaccedilatildeo entre marido e

mulher tal uniatildeo daacute-se em funccedilatildeo do instinto natural de reproduccedilatildeo que estaacute presente em

todos os seres naturais animados dado que todos esses seres ldquoo mais natural dos atos eacute

produzir outro ser igual a si mesmo o animal um animal a planta uma planta a fim de que

participem do eterno e do divino como podem pois todos desejam isto e em vista disto fazem

tudo o que fazem por naturezardquo De Anima11 II 4 415a28-b2 ou de acordo com Poliacutetica I 2

1252a27-30 o instinto de preservaccedilatildeo da espeacutecie eacute inerente e natural ao homem assim como

o eacute em todos os outros seres naturais animados ii) a relaccedilatildeo entre senhor e escravo a qual

tambeacutem eacute natural pois aquele que eacute capaz de bem deliberar e agir de acordo com aquilo que

foi posto pela boa deliberaccedilatildeo eacute senhor e mestre por natureza enquanto aquele que dispotildee

apenas de forccedila corporal para executar tais coisas antevistas pelo senhor eacute naturalmente

escravo iii) relaccedilatildeo entre pai e filhos tal relaccedilatildeo eacute marcada pelo domiacutenio monaacuterquico do pai

sobre os filhos em funccedilatildeo do respeito e do amor agrave idade paterna a qual segundo Aristoacuteteles

eacute no mais das vezes sinocircnimo de sabedoria

Todas essas trecircs espeacutecies de relaccedilatildeo familiar pertencem agrave esfera da vida privada ou

seja dizem respeito ao domiacutenio da casa e natildeo ainda da poacutelis O varatildeo soacute possuiraacute uma

segunda espeacutecie de vida a vida poliacutetica quando do surgimento da poacutelis12 O poder de

administraccedilatildeo da casa atraveacutes da dominaccedilatildeo sobre a mulher os escravos e os filhos deve ser

do varatildeo que eacute respectivamente marido senhor e pai A justificaccedilatildeo aristoteacutelica do porquecirc

isso deve ser assim baseia-se na afirmaccedilatildeo de que a constituiccedilatildeo psicoloacutegica (aniacutemica) dos

escravos da mulher e dos filhos impele-os naturalmente agrave subordinaccedilatildeo No caso pois da

relaccedilatildeo senhor-escravo um naturalmente eacute talhado ao comando (uma vez que eacute detentor da

capacidade de bem deliberar e agir de acordo com o que foi posto pela deliberaccedilatildeo) enquanto

166 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui

forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo

Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo

vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda

pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes

morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da

alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a

faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente

inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena

realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por

isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o

escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste

caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional

da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela

ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade

deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a

mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo

sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto

quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir

segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para

cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem

razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a

exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave

felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma

segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o

exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a

mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a

autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto

sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida

confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um

conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia

antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo

tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas

nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e

167 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute

diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito

homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua

sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada

ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e

conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves

partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita

estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os

gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem

isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na

medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o

discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades

intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a

mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim

tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher

pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo

podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de

satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo

suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees

judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14

Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e

elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal

I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido

menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento

material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando

ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um

varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau

de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade

do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de

indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo

que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da

forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher

portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa

168 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute

anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme

Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade

ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute

biologicamente e ontologicamente inferior a ele

Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem

fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-

3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute

respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da

naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida

matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia

desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-

se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes

das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida

familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger

2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as

ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a

mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da

inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar

Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia

sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como

outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de

ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos

sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho

bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se

apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do

modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de

Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres

satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a

ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos

aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos

aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo

feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre

169 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura

fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida

em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como

fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do

acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse

mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo

sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo

sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais

acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as

condiccedilotildees a que eram submetidos

A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166

da Filosofia do Direito de Hegel

A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do

universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve

restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de

eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento

do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir

da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees

complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual

confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo

exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas

pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a

espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e

por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia

do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a

espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da

individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria

segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e

contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao

exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas

necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e

consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior

170 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do

sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres

possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave

incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais

caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo

aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a

impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de

igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo

expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a

concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos

da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca

espaccedilo para uma forma de opressatildeo

No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade

da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo

indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee

de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre

homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do

espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute

engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza

eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais

universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu

desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade

pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees

comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute

portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos

como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de

mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a

qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que

o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o

natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais

transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o

engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel

aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias

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perpassadas por eles

Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com

a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela

(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da

ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee

agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto

supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a

capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo

ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida

social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como

naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural

parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa

hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos

civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de

participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta

pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia

especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito

proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo

com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda

naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem

exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo

do espiacuterito

Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um

antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de

tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave

coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do

princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam

considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o

argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si

a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem

mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute

atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se

reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma

172 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa

Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana

acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico

desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam

elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas

de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o

problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza

humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de

sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal

Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de

capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave

anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente

marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o

afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres

ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum

(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles

considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da

funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral

justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a

levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees

A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os

elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo

ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de

deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da

classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista

em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente

destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser

confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e

morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como

estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema

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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

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Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

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Recebido em 28122017

Aprovado em 19092018

162 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

e credulidade

O primeiro argumento introduzido por Soacutecrates eacute de que em todos os casos em que

se exige de indiviacuteduos de uma mesma espeacutecie mas de sexos diferentes que exerccedilam

atividades idecircnticas faz-se necessaacuterio conceder a eles a mesma criaccedilatildeo e educaccedilatildeo Aplicando

tal regra ao caso da classe guardiatilde infere-se necessariamente que as mulheres devendo

cumprir as mesmas funccedilotildees que os varotildees tecircm de receber a mesma educaccedilatildeo concedida a

eles isto eacute tecircm de ser educadas na ginaacutestica na muacutesica e na arte beacutelica Sobre essa inferecircncia

incide a questatildeo de saber como eacute possiacutevel designar as mesmas funccedilotildees a seres de naturezas

diferentes como parece ser o caso de homens e mulheres jaacute que como jaacute foi estabelecido

anteriormente a justiccedila consiste em designar a naturezas iguais funccedilotildees iguais e a diferentes

funccedilotildees diferentes A estrateacutegia utilizada por Platatildeo para responder a tal questatildeo consistiraacute em

esclarecer que a diferenccedila sexual natildeo eacute tatildeo profunda e essencial a ponto de interferir

negativamente na realizaccedilatildeo das funccedilotildees e dos deveres de guardiotildees do mesmo modo como

por exemplo natildeo eacute possiacutevel afirmar que um homem que tenha cabelo em abundacircncia e outro

que sofra de calviacutecie natildeo possam realizar a funccedilatildeo de sapateiro por possuiacuterem naturezas

(capilares) diferentes Platatildeo prossegue afirmando que o que impede indiviacuteduos de exercerem

uma mesma funccedilatildeo eacute o fato de uns possuiacuterem aptidatildeo para exercecirc-la e outros natildeo mas tal

restriccedilatildeo eacute imposta pelas diferentes aptidotildees naturais5 que cada indiviacuteduo possui e natildeo pela

diferenccedila sexual Assim o uacutenico justo criteacuterio que impede uma mulher de exercer as funccedilotildees

e deveres de guardiatilde eacute a falta de uma natural aptidatildeo para isso e natildeo simplesmente por natildeo

ser do sexo masculino ou seja as diferenccedilas constitutivas de cada sexo natildeo satildeo relevantes

para que o exerciacutecio giacutemnico musical e beacutelico possa ou natildeo ser realizado de modo perfeito

Platatildeo prevendo a ridicularizaccedilatildeo da qual seraacute viacutetima tal tese em virtude de ser tatildeo contraacuteria

aos costumes de sua eacutepoca aduz o argumento que agrave luz da razatildeo muitas praacuteticas que

pareciam agrave primeira vista ridiacuteculas foram reveladas como o que havia de melhor a ser feito

Nota-se entatildeo que a educaccedilatildeo das mulheres eacute implicada de modo necessaacuterio pelo

sistema concebido por Platatildeo da comunidade dos guardiotildees pois se a funccedilatildeo desta elite

dominante eacute defender a poacutelis e para que isso seja feito de modo perfeito eacute preciso que essa

classe seja constituiacuteda pelos melhores indiviacuteduos entatildeo as mulheres guardiatildes tambeacutem teratildeo

de ser as melhores dentre as demais mulheres e desse modo poder-se-iam gerar a partir

desses melhores outros guardiotildees aprimorando assim a raccedila dessa classe Tal

aprimoramento aos olhos de Platatildeo daacute maior legitimidade ao governo dos guardiotildees sobre os

seus governados

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Deixando em segundo plano as teses eugenistas e autoritaacuterias que vecircm de contrabando

com a defesa da tese da educaccedilatildeo das mulheres pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees

gostariacuteamos de ressaltar um outro aspecto esse sim filosoficamente relevante implicado

pela defesa da tese da formaccedilatildeo feminina a saber a aboliccedilatildeo da vida familiar e da

propriedade privada pois segundo Platatildeo tais elementos constituiriam um entrave agrave

dedicaccedilatildeo total e incondicionada ao bem coletivo a qual eacute exigida pelo cumprimento perfeito

da funccedilatildeo de guardiatildeo da poacutelis Ora natildeo havendo varotildees dotados de propriedade e de vida

privada natildeo seraacute possiacutevel que cada um deles governe uma famiacutelia e portanto tenha mulher e

filhos sob seu comando nem nutra interesses egoiacutestas A supressatildeo das preocupaccedilotildees ligadas agrave

vida familiar particular eacute o que permite aos guardiotildees da poacutelis dedicarem-se

incondicionalmente agrave busca e defesa do bem comum o que segundo Platatildeo eacute condiccedilatildeo de

possibilidade para o estabelecimento duma unidade absoluta do corpo poliacutetico Eacute interessante

notar como Platatildeo parece antever uma preocupaccedilatildeo filosoacutefica que seraacute cara agrave filosofia poliacutetica

moderna e contemporacircnea a saber como compreender a natureza e a subordinaccedilatildeo existente

entre as esferas puacuteblica e privada bem como os papeacuteis atribuiacutedos a homens e mulheres nessas

esferas atraveacutes da adoccedilatildeo do criteacuterio do sexo ou do gecircnero sejam eles compreendidos como

naturais ou como construtos sociais Ao suprimir a propriedade privada e a instituiccedilatildeo familiar

(concebida como uma ceacutelula privada no interior da comunidade poliacutetica portadora de um

papel desviante em relaccedilatildeo agrave perseguiccedilatildeo e realizaccedilatildeo do interesse puacuteblico) e ao delegar agrave

classe dos artesatildeos e agricultores o cultivo de alimentos e a produccedilatildeo de artefatos necessaacuterios

agrave satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas Platatildeo consegue alccedilar a mulher pertencente agrave classe dos

guardiotildees agrave esfera puacuteblica

Deve-se observar entatildeo que as concessotildees que Platatildeo pretendia fazer ao sexo

feminino natildeo consistem em benevolecircncia nem simpatia pessoal as quais Platatildeo poderia nutrir

contingentemente pelas mulheres mas sim que tais concessotildees satildeo uma consequecircncia

necessaacuteria do modelo de formaccedilatildeo dos guardiotildees requerido pela efetivaccedilatildeo da poacutelis ideal

Parece claro assim que a defesa de tal tese natildeo nos permite imputar a Platatildeo o tiacutetulo de

precursor da defesa da tese da igualdade sem qualificaccedilatildeo entre os sexos nem no

reconhecimento da mulher como detentora tal como o homem de iguais direitos-deveres

virtudes e dignidade fundados sobre uma concepccedilatildeo paradigmaacutetica da natureza humana que a

mulher eacute capaz de satisfazer Em nenhum momento pois a letra do texto do proacuteprio filoacutesofo

permite-nos sequer inferir que as mulheres possam ser consideradas iguais aos homens em

inteligecircncia caraacuteter e entendimento mas pelo contraacuterio poderiacuteamos ter a letra do texto

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contra noacutes como eacute o caso das passagens 431b-c6 469d7 557c8 563b-d9 Nesse sentido ldquoo

feminismo platocircnicordquo natildeo pode ser explicado em termos de uma primeira tentativa de

suprimir integralmente a base da opressatildeo feminina fundada numa concepccedilatildeo paradigmaacutetica

de natureza humana a qual a mulher natildeo poderia satisfazer mas eacute sobretudo uma

consequecircncia necessaacuteria de sua concepccedilatildeo poliacutetica sobre a comunidade ideal a qual exige a

igualdade de formaccedilatildeo entre varotildees e mulheres no interior da classe dos guardiotildees Assim

educar as mulheres natildeo eacute uma finalidade ou bem intriacutenseco dentro da perspectiva teoacuterica do

platonismo mas uma condiccedilatildeo sine qua non do desenvolvimento loacutegico da Ideia de Poacutelis

Eacute interessante notar que os sistemas de filosofia poliacutetica modernos e contemporacircneos

necessitaratildeo de seus maiores esforccedilos e enfrentaratildeo grandes desafios para compreender

descrever criticar e prescrever qual o papel da mulher no interior da famiacutelia do mercado de

trabalho da sociedade civil e do Estado Seratildeo tais sistemas capazes sem prescrever a

supressatildeo da propriedade privada e da famiacutelia nem tornar a realizaccedilatildeo das accedilotildees poliacuteticas e

tarefas produtivas excludentes entre si de compatibilizar os papeacuteis que a mulher desempenha

nesses diferentes meios e ainda assim garantir sua ativa participaccedilatildeo na esfera puacuteblica como

fizera Platatildeo Parece-nos que caberaacute agrave filosofia poliacutetica debruccedilar-se incansavelmente sobre as

condiccedilotildees e as bases da opressatildeo da mulher que lhe impede de constituir-se como sujeito de

sua autonomia e de atualizar seus potenciais emancipatoacuterios no interior de cada uma dessas

instacircncias pois sem isso a pretensatildeo mesma de universalidade da categoria de autonomia do

sujeito estaria fadada ao fracasso Assim sendo se o iniacutecio da era contemporacircnea eacute marcado

pela inserccedilatildeo massiva da matildeo de obra feminina no mercado de trabalho a filosofia poliacutetica

contemporacircnea natildeo poderaacute escapar ao desafio de responder pela possibilidade ou

impossibilidade da compatibilizaccedilatildeo entre as demandas da reproduccedilatildeo bioloacutegica ligada agrave

natalidade e agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie e da famiacutelia e da produccedilatildeo de alto rendimento ligada

ao mercado de trabalho dado o atual estaacutegio de desenvolvimento do modo capitalista de

produccedilatildeo o qual natildeo pode dispensar a matildeo de obra feminina e ao mesmo tempo impotildee

severos limites agraves poliacuteticas de accedilatildeo do Estado de bem estar social que poderia vir a viabilizar

uma inserccedilatildeo sustentaacutevel da mulher no mercado de trabalho diante de sua tripla jornada a

saber a criaccedilatildeo dos filhos a conservaccedilatildeo da casa e a produccedilatildeo do trabalho

165 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

A submissatildeo da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles e sua suposta legitimaccedilatildeo sob

os aspectos bioloacutegico aniacutemico e ontoloacutegico

Aristoacuteteles crecirc dentro dos limites de uma visatildeo segundo a qual a estrutura das relaccedilotildees

mantidas no interior da famiacutelia e da comunidade poliacutetica repercutem as relaccedilotildees fundadas na

ldquonaturezardquo (physis) que a inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao varatildeo o que a exclui da

participaccedilatildeo na vida poliacutetica e a impede de alcanccedilar uma vida plenamente feliz possui

sustentaccedilatildeo a partir da articulaccedilatildeo de teses de cunho bioloacutegico e psicoloacutegico as quais por sua

vez fundam-se em uacuteltima instacircncia sobre pressupostos de caraacuteter ontoloacutegico

O papel da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles eacute trazido agrave baila quando o

Estagirita opera em Poliacutetica10 I a descriccedilatildeo dos trecircs tipos de relaccedilotildees constitutivas da famiacutelia

e da casa e que segundo ele engendram-se naturalmente a saber i) a relaccedilatildeo entre marido e

mulher tal uniatildeo daacute-se em funccedilatildeo do instinto natural de reproduccedilatildeo que estaacute presente em

todos os seres naturais animados dado que todos esses seres ldquoo mais natural dos atos eacute

produzir outro ser igual a si mesmo o animal um animal a planta uma planta a fim de que

participem do eterno e do divino como podem pois todos desejam isto e em vista disto fazem

tudo o que fazem por naturezardquo De Anima11 II 4 415a28-b2 ou de acordo com Poliacutetica I 2

1252a27-30 o instinto de preservaccedilatildeo da espeacutecie eacute inerente e natural ao homem assim como

o eacute em todos os outros seres naturais animados ii) a relaccedilatildeo entre senhor e escravo a qual

tambeacutem eacute natural pois aquele que eacute capaz de bem deliberar e agir de acordo com aquilo que

foi posto pela boa deliberaccedilatildeo eacute senhor e mestre por natureza enquanto aquele que dispotildee

apenas de forccedila corporal para executar tais coisas antevistas pelo senhor eacute naturalmente

escravo iii) relaccedilatildeo entre pai e filhos tal relaccedilatildeo eacute marcada pelo domiacutenio monaacuterquico do pai

sobre os filhos em funccedilatildeo do respeito e do amor agrave idade paterna a qual segundo Aristoacuteteles

eacute no mais das vezes sinocircnimo de sabedoria

Todas essas trecircs espeacutecies de relaccedilatildeo familiar pertencem agrave esfera da vida privada ou

seja dizem respeito ao domiacutenio da casa e natildeo ainda da poacutelis O varatildeo soacute possuiraacute uma

segunda espeacutecie de vida a vida poliacutetica quando do surgimento da poacutelis12 O poder de

administraccedilatildeo da casa atraveacutes da dominaccedilatildeo sobre a mulher os escravos e os filhos deve ser

do varatildeo que eacute respectivamente marido senhor e pai A justificaccedilatildeo aristoteacutelica do porquecirc

isso deve ser assim baseia-se na afirmaccedilatildeo de que a constituiccedilatildeo psicoloacutegica (aniacutemica) dos

escravos da mulher e dos filhos impele-os naturalmente agrave subordinaccedilatildeo No caso pois da

relaccedilatildeo senhor-escravo um naturalmente eacute talhado ao comando (uma vez que eacute detentor da

capacidade de bem deliberar e agir de acordo com o que foi posto pela deliberaccedilatildeo) enquanto

166 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui

forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo

Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo

vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda

pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes

morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da

alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a

faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente

inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena

realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por

isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o

escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste

caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional

da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela

ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade

deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a

mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo

sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto

quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir

segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para

cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem

razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a

exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave

felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma

segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o

exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a

mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a

autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto

sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida

confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um

conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia

antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo

tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas

nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e

167 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute

diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito

homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua

sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada

ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e

conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves

partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita

estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os

gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem

isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na

medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o

discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades

intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a

mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim

tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher

pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo

podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de

satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo

suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees

judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14

Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e

elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal

I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido

menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento

material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando

ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um

varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau

de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade

do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de

indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo

que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da

forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher

portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa

168 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute

anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme

Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade

ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute

biologicamente e ontologicamente inferior a ele

Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem

fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-

3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute

respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da

naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida

matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia

desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-

se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes

das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida

familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger

2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as

ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a

mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da

inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar

Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia

sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como

outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de

ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos

sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho

bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se

apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do

modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de

Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres

satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a

ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos

aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos

aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo

feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre

169 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura

fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida

em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como

fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do

acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse

mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo

sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo

sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais

acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as

condiccedilotildees a que eram submetidos

A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166

da Filosofia do Direito de Hegel

A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do

universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve

restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de

eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento

do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir

da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees

complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual

confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo

exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas

pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a

espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e

por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia

do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a

espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da

individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria

segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e

contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao

exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas

necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e

consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior

170 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do

sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres

possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave

incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais

caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo

aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a

impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de

igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo

expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a

concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos

da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca

espaccedilo para uma forma de opressatildeo

No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade

da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo

indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee

de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre

homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do

espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute

engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza

eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais

universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu

desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade

pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees

comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute

portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos

como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de

mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a

qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que

o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o

natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais

transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o

engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel

aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias

171 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

perpassadas por eles

Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com

a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela

(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da

ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee

agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto

supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a

capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo

ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida

social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como

naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural

parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa

hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos

civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de

participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta

pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia

especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito

proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo

com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda

naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem

exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo

do espiacuterito

Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um

antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de

tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave

coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do

princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam

considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o

argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si

a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem

mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute

atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se

reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma

172 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa

Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana

acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico

desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam

elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas

de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o

problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza

humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de

sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal

Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de

capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave

anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente

marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o

afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres

ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum

(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles

considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da

funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral

justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a

levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees

A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os

elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo

ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de

deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da

classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista

em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente

destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser

confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e

morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como

estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema

173 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

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Recebido em 28122017

Aprovado em 19092018

163 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Deixando em segundo plano as teses eugenistas e autoritaacuterias que vecircm de contrabando

com a defesa da tese da educaccedilatildeo das mulheres pertencentes agrave comunidade dos guardiotildees

gostariacuteamos de ressaltar um outro aspecto esse sim filosoficamente relevante implicado

pela defesa da tese da formaccedilatildeo feminina a saber a aboliccedilatildeo da vida familiar e da

propriedade privada pois segundo Platatildeo tais elementos constituiriam um entrave agrave

dedicaccedilatildeo total e incondicionada ao bem coletivo a qual eacute exigida pelo cumprimento perfeito

da funccedilatildeo de guardiatildeo da poacutelis Ora natildeo havendo varotildees dotados de propriedade e de vida

privada natildeo seraacute possiacutevel que cada um deles governe uma famiacutelia e portanto tenha mulher e

filhos sob seu comando nem nutra interesses egoiacutestas A supressatildeo das preocupaccedilotildees ligadas agrave

vida familiar particular eacute o que permite aos guardiotildees da poacutelis dedicarem-se

incondicionalmente agrave busca e defesa do bem comum o que segundo Platatildeo eacute condiccedilatildeo de

possibilidade para o estabelecimento duma unidade absoluta do corpo poliacutetico Eacute interessante

notar como Platatildeo parece antever uma preocupaccedilatildeo filosoacutefica que seraacute cara agrave filosofia poliacutetica

moderna e contemporacircnea a saber como compreender a natureza e a subordinaccedilatildeo existente

entre as esferas puacuteblica e privada bem como os papeacuteis atribuiacutedos a homens e mulheres nessas

esferas atraveacutes da adoccedilatildeo do criteacuterio do sexo ou do gecircnero sejam eles compreendidos como

naturais ou como construtos sociais Ao suprimir a propriedade privada e a instituiccedilatildeo familiar

(concebida como uma ceacutelula privada no interior da comunidade poliacutetica portadora de um

papel desviante em relaccedilatildeo agrave perseguiccedilatildeo e realizaccedilatildeo do interesse puacuteblico) e ao delegar agrave

classe dos artesatildeos e agricultores o cultivo de alimentos e a produccedilatildeo de artefatos necessaacuterios

agrave satisfaccedilatildeo das necessidades baacutesicas Platatildeo consegue alccedilar a mulher pertencente agrave classe dos

guardiotildees agrave esfera puacuteblica

Deve-se observar entatildeo que as concessotildees que Platatildeo pretendia fazer ao sexo

feminino natildeo consistem em benevolecircncia nem simpatia pessoal as quais Platatildeo poderia nutrir

contingentemente pelas mulheres mas sim que tais concessotildees satildeo uma consequecircncia

necessaacuteria do modelo de formaccedilatildeo dos guardiotildees requerido pela efetivaccedilatildeo da poacutelis ideal

Parece claro assim que a defesa de tal tese natildeo nos permite imputar a Platatildeo o tiacutetulo de

precursor da defesa da tese da igualdade sem qualificaccedilatildeo entre os sexos nem no

reconhecimento da mulher como detentora tal como o homem de iguais direitos-deveres

virtudes e dignidade fundados sobre uma concepccedilatildeo paradigmaacutetica da natureza humana que a

mulher eacute capaz de satisfazer Em nenhum momento pois a letra do texto do proacuteprio filoacutesofo

permite-nos sequer inferir que as mulheres possam ser consideradas iguais aos homens em

inteligecircncia caraacuteter e entendimento mas pelo contraacuterio poderiacuteamos ter a letra do texto

164 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

contra noacutes como eacute o caso das passagens 431b-c6 469d7 557c8 563b-d9 Nesse sentido ldquoo

feminismo platocircnicordquo natildeo pode ser explicado em termos de uma primeira tentativa de

suprimir integralmente a base da opressatildeo feminina fundada numa concepccedilatildeo paradigmaacutetica

de natureza humana a qual a mulher natildeo poderia satisfazer mas eacute sobretudo uma

consequecircncia necessaacuteria de sua concepccedilatildeo poliacutetica sobre a comunidade ideal a qual exige a

igualdade de formaccedilatildeo entre varotildees e mulheres no interior da classe dos guardiotildees Assim

educar as mulheres natildeo eacute uma finalidade ou bem intriacutenseco dentro da perspectiva teoacuterica do

platonismo mas uma condiccedilatildeo sine qua non do desenvolvimento loacutegico da Ideia de Poacutelis

Eacute interessante notar que os sistemas de filosofia poliacutetica modernos e contemporacircneos

necessitaratildeo de seus maiores esforccedilos e enfrentaratildeo grandes desafios para compreender

descrever criticar e prescrever qual o papel da mulher no interior da famiacutelia do mercado de

trabalho da sociedade civil e do Estado Seratildeo tais sistemas capazes sem prescrever a

supressatildeo da propriedade privada e da famiacutelia nem tornar a realizaccedilatildeo das accedilotildees poliacuteticas e

tarefas produtivas excludentes entre si de compatibilizar os papeacuteis que a mulher desempenha

nesses diferentes meios e ainda assim garantir sua ativa participaccedilatildeo na esfera puacuteblica como

fizera Platatildeo Parece-nos que caberaacute agrave filosofia poliacutetica debruccedilar-se incansavelmente sobre as

condiccedilotildees e as bases da opressatildeo da mulher que lhe impede de constituir-se como sujeito de

sua autonomia e de atualizar seus potenciais emancipatoacuterios no interior de cada uma dessas

instacircncias pois sem isso a pretensatildeo mesma de universalidade da categoria de autonomia do

sujeito estaria fadada ao fracasso Assim sendo se o iniacutecio da era contemporacircnea eacute marcado

pela inserccedilatildeo massiva da matildeo de obra feminina no mercado de trabalho a filosofia poliacutetica

contemporacircnea natildeo poderaacute escapar ao desafio de responder pela possibilidade ou

impossibilidade da compatibilizaccedilatildeo entre as demandas da reproduccedilatildeo bioloacutegica ligada agrave

natalidade e agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie e da famiacutelia e da produccedilatildeo de alto rendimento ligada

ao mercado de trabalho dado o atual estaacutegio de desenvolvimento do modo capitalista de

produccedilatildeo o qual natildeo pode dispensar a matildeo de obra feminina e ao mesmo tempo impotildee

severos limites agraves poliacuteticas de accedilatildeo do Estado de bem estar social que poderia vir a viabilizar

uma inserccedilatildeo sustentaacutevel da mulher no mercado de trabalho diante de sua tripla jornada a

saber a criaccedilatildeo dos filhos a conservaccedilatildeo da casa e a produccedilatildeo do trabalho

165 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

A submissatildeo da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles e sua suposta legitimaccedilatildeo sob

os aspectos bioloacutegico aniacutemico e ontoloacutegico

Aristoacuteteles crecirc dentro dos limites de uma visatildeo segundo a qual a estrutura das relaccedilotildees

mantidas no interior da famiacutelia e da comunidade poliacutetica repercutem as relaccedilotildees fundadas na

ldquonaturezardquo (physis) que a inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao varatildeo o que a exclui da

participaccedilatildeo na vida poliacutetica e a impede de alcanccedilar uma vida plenamente feliz possui

sustentaccedilatildeo a partir da articulaccedilatildeo de teses de cunho bioloacutegico e psicoloacutegico as quais por sua

vez fundam-se em uacuteltima instacircncia sobre pressupostos de caraacuteter ontoloacutegico

O papel da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles eacute trazido agrave baila quando o

Estagirita opera em Poliacutetica10 I a descriccedilatildeo dos trecircs tipos de relaccedilotildees constitutivas da famiacutelia

e da casa e que segundo ele engendram-se naturalmente a saber i) a relaccedilatildeo entre marido e

mulher tal uniatildeo daacute-se em funccedilatildeo do instinto natural de reproduccedilatildeo que estaacute presente em

todos os seres naturais animados dado que todos esses seres ldquoo mais natural dos atos eacute

produzir outro ser igual a si mesmo o animal um animal a planta uma planta a fim de que

participem do eterno e do divino como podem pois todos desejam isto e em vista disto fazem

tudo o que fazem por naturezardquo De Anima11 II 4 415a28-b2 ou de acordo com Poliacutetica I 2

1252a27-30 o instinto de preservaccedilatildeo da espeacutecie eacute inerente e natural ao homem assim como

o eacute em todos os outros seres naturais animados ii) a relaccedilatildeo entre senhor e escravo a qual

tambeacutem eacute natural pois aquele que eacute capaz de bem deliberar e agir de acordo com aquilo que

foi posto pela boa deliberaccedilatildeo eacute senhor e mestre por natureza enquanto aquele que dispotildee

apenas de forccedila corporal para executar tais coisas antevistas pelo senhor eacute naturalmente

escravo iii) relaccedilatildeo entre pai e filhos tal relaccedilatildeo eacute marcada pelo domiacutenio monaacuterquico do pai

sobre os filhos em funccedilatildeo do respeito e do amor agrave idade paterna a qual segundo Aristoacuteteles

eacute no mais das vezes sinocircnimo de sabedoria

Todas essas trecircs espeacutecies de relaccedilatildeo familiar pertencem agrave esfera da vida privada ou

seja dizem respeito ao domiacutenio da casa e natildeo ainda da poacutelis O varatildeo soacute possuiraacute uma

segunda espeacutecie de vida a vida poliacutetica quando do surgimento da poacutelis12 O poder de

administraccedilatildeo da casa atraveacutes da dominaccedilatildeo sobre a mulher os escravos e os filhos deve ser

do varatildeo que eacute respectivamente marido senhor e pai A justificaccedilatildeo aristoteacutelica do porquecirc

isso deve ser assim baseia-se na afirmaccedilatildeo de que a constituiccedilatildeo psicoloacutegica (aniacutemica) dos

escravos da mulher e dos filhos impele-os naturalmente agrave subordinaccedilatildeo No caso pois da

relaccedilatildeo senhor-escravo um naturalmente eacute talhado ao comando (uma vez que eacute detentor da

capacidade de bem deliberar e agir de acordo com o que foi posto pela deliberaccedilatildeo) enquanto

166 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui

forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo

Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo

vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda

pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes

morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da

alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a

faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente

inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena

realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por

isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o

escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste

caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional

da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela

ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade

deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a

mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo

sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto

quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir

segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para

cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem

razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a

exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave

felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma

segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o

exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a

mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a

autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto

sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida

confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um

conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia

antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo

tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas

nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e

167 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute

diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito

homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua

sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada

ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e

conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves

partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita

estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os

gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem

isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na

medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o

discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades

intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a

mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim

tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher

pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo

podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de

satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo

suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees

judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14

Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e

elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal

I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido

menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento

material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando

ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um

varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau

de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade

do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de

indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo

que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da

forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher

portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa

168 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute

anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme

Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade

ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute

biologicamente e ontologicamente inferior a ele

Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem

fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-

3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute

respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da

naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida

matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia

desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-

se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes

das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida

familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger

2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as

ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a

mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da

inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar

Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia

sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como

outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de

ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos

sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho

bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se

apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do

modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de

Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres

satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a

ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos

aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos

aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo

feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre

169 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura

fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida

em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como

fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do

acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse

mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo

sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo

sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais

acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as

condiccedilotildees a que eram submetidos

A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166

da Filosofia do Direito de Hegel

A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do

universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve

restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de

eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento

do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir

da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees

complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual

confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo

exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas

pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a

espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e

por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia

do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a

espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da

individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria

segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e

contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao

exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas

necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e

consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior

170 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do

sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres

possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave

incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais

caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo

aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a

impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de

igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo

expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a

concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos

da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca

espaccedilo para uma forma de opressatildeo

No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade

da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo

indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee

de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre

homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do

espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute

engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza

eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais

universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu

desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade

pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees

comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute

portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos

como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de

mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a

qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que

o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o

natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais

transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o

engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel

aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias

171 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

perpassadas por eles

Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com

a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela

(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da

ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee

agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto

supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a

capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo

ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida

social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como

naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural

parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa

hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos

civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de

participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta

pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia

especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito

proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo

com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda

naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem

exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo

do espiacuterito

Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um

antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de

tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave

coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do

princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam

considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o

argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si

a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem

mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute

atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se

reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa

Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana

acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico

desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam

elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas

de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o

problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza

humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de

sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal

Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de

capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave

anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente

marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o

afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres

ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum

(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles

considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da

funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral

justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a

levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees

A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os

elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo

ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de

deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da

classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista

em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente

destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser

confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e

morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como

estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema

173 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

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Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

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Recebido em 28122017

Aprovado em 19092018

164 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

contra noacutes como eacute o caso das passagens 431b-c6 469d7 557c8 563b-d9 Nesse sentido ldquoo

feminismo platocircnicordquo natildeo pode ser explicado em termos de uma primeira tentativa de

suprimir integralmente a base da opressatildeo feminina fundada numa concepccedilatildeo paradigmaacutetica

de natureza humana a qual a mulher natildeo poderia satisfazer mas eacute sobretudo uma

consequecircncia necessaacuteria de sua concepccedilatildeo poliacutetica sobre a comunidade ideal a qual exige a

igualdade de formaccedilatildeo entre varotildees e mulheres no interior da classe dos guardiotildees Assim

educar as mulheres natildeo eacute uma finalidade ou bem intriacutenseco dentro da perspectiva teoacuterica do

platonismo mas uma condiccedilatildeo sine qua non do desenvolvimento loacutegico da Ideia de Poacutelis

Eacute interessante notar que os sistemas de filosofia poliacutetica modernos e contemporacircneos

necessitaratildeo de seus maiores esforccedilos e enfrentaratildeo grandes desafios para compreender

descrever criticar e prescrever qual o papel da mulher no interior da famiacutelia do mercado de

trabalho da sociedade civil e do Estado Seratildeo tais sistemas capazes sem prescrever a

supressatildeo da propriedade privada e da famiacutelia nem tornar a realizaccedilatildeo das accedilotildees poliacuteticas e

tarefas produtivas excludentes entre si de compatibilizar os papeacuteis que a mulher desempenha

nesses diferentes meios e ainda assim garantir sua ativa participaccedilatildeo na esfera puacuteblica como

fizera Platatildeo Parece-nos que caberaacute agrave filosofia poliacutetica debruccedilar-se incansavelmente sobre as

condiccedilotildees e as bases da opressatildeo da mulher que lhe impede de constituir-se como sujeito de

sua autonomia e de atualizar seus potenciais emancipatoacuterios no interior de cada uma dessas

instacircncias pois sem isso a pretensatildeo mesma de universalidade da categoria de autonomia do

sujeito estaria fadada ao fracasso Assim sendo se o iniacutecio da era contemporacircnea eacute marcado

pela inserccedilatildeo massiva da matildeo de obra feminina no mercado de trabalho a filosofia poliacutetica

contemporacircnea natildeo poderaacute escapar ao desafio de responder pela possibilidade ou

impossibilidade da compatibilizaccedilatildeo entre as demandas da reproduccedilatildeo bioloacutegica ligada agrave

natalidade e agrave preservaccedilatildeo da espeacutecie e da famiacutelia e da produccedilatildeo de alto rendimento ligada

ao mercado de trabalho dado o atual estaacutegio de desenvolvimento do modo capitalista de

produccedilatildeo o qual natildeo pode dispensar a matildeo de obra feminina e ao mesmo tempo impotildee

severos limites agraves poliacuteticas de accedilatildeo do Estado de bem estar social que poderia vir a viabilizar

uma inserccedilatildeo sustentaacutevel da mulher no mercado de trabalho diante de sua tripla jornada a

saber a criaccedilatildeo dos filhos a conservaccedilatildeo da casa e a produccedilatildeo do trabalho

165 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

A submissatildeo da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles e sua suposta legitimaccedilatildeo sob

os aspectos bioloacutegico aniacutemico e ontoloacutegico

Aristoacuteteles crecirc dentro dos limites de uma visatildeo segundo a qual a estrutura das relaccedilotildees

mantidas no interior da famiacutelia e da comunidade poliacutetica repercutem as relaccedilotildees fundadas na

ldquonaturezardquo (physis) que a inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao varatildeo o que a exclui da

participaccedilatildeo na vida poliacutetica e a impede de alcanccedilar uma vida plenamente feliz possui

sustentaccedilatildeo a partir da articulaccedilatildeo de teses de cunho bioloacutegico e psicoloacutegico as quais por sua

vez fundam-se em uacuteltima instacircncia sobre pressupostos de caraacuteter ontoloacutegico

O papel da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles eacute trazido agrave baila quando o

Estagirita opera em Poliacutetica10 I a descriccedilatildeo dos trecircs tipos de relaccedilotildees constitutivas da famiacutelia

e da casa e que segundo ele engendram-se naturalmente a saber i) a relaccedilatildeo entre marido e

mulher tal uniatildeo daacute-se em funccedilatildeo do instinto natural de reproduccedilatildeo que estaacute presente em

todos os seres naturais animados dado que todos esses seres ldquoo mais natural dos atos eacute

produzir outro ser igual a si mesmo o animal um animal a planta uma planta a fim de que

participem do eterno e do divino como podem pois todos desejam isto e em vista disto fazem

tudo o que fazem por naturezardquo De Anima11 II 4 415a28-b2 ou de acordo com Poliacutetica I 2

1252a27-30 o instinto de preservaccedilatildeo da espeacutecie eacute inerente e natural ao homem assim como

o eacute em todos os outros seres naturais animados ii) a relaccedilatildeo entre senhor e escravo a qual

tambeacutem eacute natural pois aquele que eacute capaz de bem deliberar e agir de acordo com aquilo que

foi posto pela boa deliberaccedilatildeo eacute senhor e mestre por natureza enquanto aquele que dispotildee

apenas de forccedila corporal para executar tais coisas antevistas pelo senhor eacute naturalmente

escravo iii) relaccedilatildeo entre pai e filhos tal relaccedilatildeo eacute marcada pelo domiacutenio monaacuterquico do pai

sobre os filhos em funccedilatildeo do respeito e do amor agrave idade paterna a qual segundo Aristoacuteteles

eacute no mais das vezes sinocircnimo de sabedoria

Todas essas trecircs espeacutecies de relaccedilatildeo familiar pertencem agrave esfera da vida privada ou

seja dizem respeito ao domiacutenio da casa e natildeo ainda da poacutelis O varatildeo soacute possuiraacute uma

segunda espeacutecie de vida a vida poliacutetica quando do surgimento da poacutelis12 O poder de

administraccedilatildeo da casa atraveacutes da dominaccedilatildeo sobre a mulher os escravos e os filhos deve ser

do varatildeo que eacute respectivamente marido senhor e pai A justificaccedilatildeo aristoteacutelica do porquecirc

isso deve ser assim baseia-se na afirmaccedilatildeo de que a constituiccedilatildeo psicoloacutegica (aniacutemica) dos

escravos da mulher e dos filhos impele-os naturalmente agrave subordinaccedilatildeo No caso pois da

relaccedilatildeo senhor-escravo um naturalmente eacute talhado ao comando (uma vez que eacute detentor da

capacidade de bem deliberar e agir de acordo com o que foi posto pela deliberaccedilatildeo) enquanto

166 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui

forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo

Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo

vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda

pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes

morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da

alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a

faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente

inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena

realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por

isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o

escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste

caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional

da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela

ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade

deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a

mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo

sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto

quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir

segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para

cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem

razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a

exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave

felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma

segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o

exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a

mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a

autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto

sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida

confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um

conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia

antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo

tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas

nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e

167 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute

diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito

homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua

sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada

ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e

conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves

partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita

estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os

gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem

isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na

medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o

discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades

intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a

mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim

tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher

pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo

podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de

satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo

suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees

judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14

Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e

elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal

I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido

menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento

material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando

ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um

varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau

de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade

do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de

indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo

que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da

forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher

portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa

168 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute

anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme

Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade

ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute

biologicamente e ontologicamente inferior a ele

Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem

fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-

3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute

respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da

naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida

matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia

desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-

se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes

das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida

familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger

2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as

ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a

mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da

inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar

Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia

sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como

outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de

ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos

sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho

bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se

apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do

modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de

Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres

satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a

ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos

aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos

aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo

feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre

169 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura

fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida

em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como

fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do

acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse

mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo

sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo

sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais

acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as

condiccedilotildees a que eram submetidos

A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166

da Filosofia do Direito de Hegel

A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do

universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve

restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de

eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento

do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir

da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees

complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual

confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo

exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas

pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a

espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e

por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia

do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a

espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da

individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria

segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e

contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao

exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas

necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e

consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior

170 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do

sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres

possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave

incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais

caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo

aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a

impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de

igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo

expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a

concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos

da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca

espaccedilo para uma forma de opressatildeo

No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade

da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo

indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee

de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre

homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do

espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute

engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza

eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais

universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu

desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade

pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees

comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute

portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos

como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de

mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a

qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que

o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o

natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais

transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o

engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel

aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias

171 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

perpassadas por eles

Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com

a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela

(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da

ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee

agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto

supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a

capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo

ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida

social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como

naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural

parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa

hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos

civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de

participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta

pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia

especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito

proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo

com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda

naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem

exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo

do espiacuterito

Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um

antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de

tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave

coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do

princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam

considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o

argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si

a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem

mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute

atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se

reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma

172 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa

Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana

acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico

desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam

elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas

de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o

problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza

humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de

sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal

Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de

capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave

anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente

marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o

afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres

ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum

(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles

considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da

funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral

justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a

levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees

A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os

elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo

ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de

deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da

classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista

em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente

destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser

confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e

morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como

estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema

173 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

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Recebido em 28122017

Aprovado em 19092018

165 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

A submissatildeo da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles e sua suposta legitimaccedilatildeo sob

os aspectos bioloacutegico aniacutemico e ontoloacutegico

Aristoacuteteles crecirc dentro dos limites de uma visatildeo segundo a qual a estrutura das relaccedilotildees

mantidas no interior da famiacutelia e da comunidade poliacutetica repercutem as relaccedilotildees fundadas na

ldquonaturezardquo (physis) que a inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao varatildeo o que a exclui da

participaccedilatildeo na vida poliacutetica e a impede de alcanccedilar uma vida plenamente feliz possui

sustentaccedilatildeo a partir da articulaccedilatildeo de teses de cunho bioloacutegico e psicoloacutegico as quais por sua

vez fundam-se em uacuteltima instacircncia sobre pressupostos de caraacuteter ontoloacutegico

O papel da mulher no sistema poliacutetico de Aristoacuteteles eacute trazido agrave baila quando o

Estagirita opera em Poliacutetica10 I a descriccedilatildeo dos trecircs tipos de relaccedilotildees constitutivas da famiacutelia

e da casa e que segundo ele engendram-se naturalmente a saber i) a relaccedilatildeo entre marido e

mulher tal uniatildeo daacute-se em funccedilatildeo do instinto natural de reproduccedilatildeo que estaacute presente em

todos os seres naturais animados dado que todos esses seres ldquoo mais natural dos atos eacute

produzir outro ser igual a si mesmo o animal um animal a planta uma planta a fim de que

participem do eterno e do divino como podem pois todos desejam isto e em vista disto fazem

tudo o que fazem por naturezardquo De Anima11 II 4 415a28-b2 ou de acordo com Poliacutetica I 2

1252a27-30 o instinto de preservaccedilatildeo da espeacutecie eacute inerente e natural ao homem assim como

o eacute em todos os outros seres naturais animados ii) a relaccedilatildeo entre senhor e escravo a qual

tambeacutem eacute natural pois aquele que eacute capaz de bem deliberar e agir de acordo com aquilo que

foi posto pela boa deliberaccedilatildeo eacute senhor e mestre por natureza enquanto aquele que dispotildee

apenas de forccedila corporal para executar tais coisas antevistas pelo senhor eacute naturalmente

escravo iii) relaccedilatildeo entre pai e filhos tal relaccedilatildeo eacute marcada pelo domiacutenio monaacuterquico do pai

sobre os filhos em funccedilatildeo do respeito e do amor agrave idade paterna a qual segundo Aristoacuteteles

eacute no mais das vezes sinocircnimo de sabedoria

Todas essas trecircs espeacutecies de relaccedilatildeo familiar pertencem agrave esfera da vida privada ou

seja dizem respeito ao domiacutenio da casa e natildeo ainda da poacutelis O varatildeo soacute possuiraacute uma

segunda espeacutecie de vida a vida poliacutetica quando do surgimento da poacutelis12 O poder de

administraccedilatildeo da casa atraveacutes da dominaccedilatildeo sobre a mulher os escravos e os filhos deve ser

do varatildeo que eacute respectivamente marido senhor e pai A justificaccedilatildeo aristoteacutelica do porquecirc

isso deve ser assim baseia-se na afirmaccedilatildeo de que a constituiccedilatildeo psicoloacutegica (aniacutemica) dos

escravos da mulher e dos filhos impele-os naturalmente agrave subordinaccedilatildeo No caso pois da

relaccedilatildeo senhor-escravo um naturalmente eacute talhado ao comando (uma vez que eacute detentor da

capacidade de bem deliberar e agir de acordo com o que foi posto pela deliberaccedilatildeo) enquanto

166 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui

forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo

Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo

vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda

pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes

morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da

alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a

faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente

inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena

realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por

isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o

escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste

caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional

da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela

ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade

deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a

mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo

sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto

quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir

segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para

cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem

razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a

exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave

felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma

segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o

exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a

mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a

autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto

sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida

confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um

conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia

antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo

tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas

nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute

diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito

homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua

sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada

ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e

conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves

partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita

estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os

gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem

isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na

medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o

discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades

intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a

mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim

tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher

pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo

podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de

satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo

suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees

judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14

Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e

elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal

I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido

menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento

material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando

ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um

varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau

de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade

do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de

indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo

que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da

forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher

portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute

anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme

Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade

ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute

biologicamente e ontologicamente inferior a ele

Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem

fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-

3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute

respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da

naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida

matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia

desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-

se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes

das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida

familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger

2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as

ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a

mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da

inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar

Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia

sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como

outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de

ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos

sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho

bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se

apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do

modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de

Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres

satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a

ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos

aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos

aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo

feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre

169 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura

fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida

em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como

fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do

acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse

mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo

sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo

sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais

acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as

condiccedilotildees a que eram submetidos

A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166

da Filosofia do Direito de Hegel

A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do

universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve

restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de

eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento

do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir

da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees

complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual

confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo

exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas

pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a

espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e

por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia

do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a

espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da

individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria

segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e

contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao

exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas

necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e

consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior

170 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do

sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres

possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave

incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais

caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo

aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a

impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de

igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo

expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a

concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos

da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca

espaccedilo para uma forma de opressatildeo

No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade

da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo

indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee

de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre

homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do

espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute

engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza

eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais

universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu

desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade

pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees

comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute

portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos

como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de

mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a

qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que

o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o

natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais

transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o

engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel

aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias

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perpassadas por eles

Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com

a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela

(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da

ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee

agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto

supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a

capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo

ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida

social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como

naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural

parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa

hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos

civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de

participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta

pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia

especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito

proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo

com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda

naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem

exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo

do espiacuterito

Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um

antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de

tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave

coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do

princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam

considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o

argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si

a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem

mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute

atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se

reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma

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pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa

Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana

acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico

desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam

elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas

de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o

problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza

humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de

sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal

Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de

capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave

anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente

marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o

afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres

ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum

(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles

considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da

funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral

justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a

levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees

A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os

elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo

ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de

deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da

classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista

em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente

destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser

confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e

morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como

estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema

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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

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Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

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ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

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Recebido em 28122017

Aprovado em 19092018

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

o outro o eacute a obedecer (uma vez que natildeo possui a capacidade de deliberar mas apenas possui

forccedila fiacutesica para a execuccedilatildeo das tarefas deliberadas pelo senhor) Isso eacute assim segundo

Aristoacuteteles visto que no escravo a parte irracional da alma (constituiacuteda pela funccedilatildeo

vegetativo-reprodutiva e pelo desejo irracional) suplanta a parte racional da alma (constituiacuteda

pela razatildeo a qual consistiraacute no princiacutepio racional praacutetico que operaraacute no interior das virtudes

morais e seraacute responsaacutevel pela deliberaccedilatildeo e pela escolha deliberada conforme a divisatildeo da

alma apresentada em Eacutetica Nicomaqueia I 13 1102a27-1103a10) Aristoacuteteles crecirc que a

faculdade deliberativa encontra-se ausente do escravo de modo a tornaacute-lo naturalmente

inferior ao senhor e subordinado a este pois natildeo possui as condiccedilotildees exigidas para a plena

realizaccedilatildeo da funccedilatildeo humana que eacute fazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem razatildeo Por

isso ele necessita por questotildees de sobrevivecircncia estar sob o jugo do senhor pois por si soacute o

escravo natildeo pode manter-se dado que o escravo eacute anaacutelogo13 a parte irracional da alma (neste

caso da famiacutelia) isto eacute o escravo tem de ser capaz de obedecer naturalmente agrave parte racional

da famiacutelia a saber o senhor A mulher por seu turno difere do escravo natildeo apenas por ela

ser livre enquanto o escravo eacute propriedade do senhor mas tambeacutem porque a faculdade

deliberativa estaacute presente nela mas segundo Aristoacuteteles eacute inoperante na medida em que a

mulher natildeo consegue agir de acordo com aquilo que delibera pois haacute sobreposiccedilatildeo do desejo

sensiacutevel sobre o objeto racional do querer Se a razatildeo no sexo feminino natildeo eacute operativa isto

quer dizer que as mulheres satildeo incapazes de possuir virtudes intelectuais e de escolher e agir

segundo deliberaccedilatildeo Assim sendo a mulher natildeo dispotildee das condiccedilotildees necessaacuterias para

cumprir a finalidade do ser humano a saber ldquofazer tudo com razatildeo ou pelo menos natildeo sem

razatildeordquo (conforme Eacutetica Nicomaqueia I 7 1098a7) Essa privaccedilatildeo da vida racional agrave mulher a

exclui bem como exclui tambeacutem o escravo dentro do sistema aristoteacutelico do acesso agrave

felicidade humana perfeita ou completa visto que este bem supremo eacute uma atividade da alma

segundo a virtude mais perfeita a qual possui um viacutenculo intrinsecamente necessaacuterio com o

exerciacutecio perfeito do uso deliberativo da razatildeo Disso segue-se aos olhos de Aristoacuteteles que a

mulher natildeo pode encontrar sua finalidade especiacutefica na vida da poacutelis encontrando aiacute a

autarquia necessaacuteria a sua felicidade como eacute o caso do varatildeo (marido senhor e pai) Portanto

sendo a mulher sempre inferior ao homem natildeo haacute outra vida possiacutevel agrave mulher aleacutem da vida

confinada ao lar (oikos) e a da obediecircncia ao marido Essa teoria parece conduzir a um

conformismo descritivista da condiccedilatildeo na qual a mulher encontrava-se imersa na Greacutecia

antiga a saber excluiacuteda do exerciacutecio da cidadania tomada em seu sentido estrito e ao mesmo

tempo remete a um prescritivismo conservador com consequecircncias poliacutetico-filosoacuteficas

nefastas na medida em que ldquolegitimardquo a privaccedilatildeo do seu acesso agrave cidadania e

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute

diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito

homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua

sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada

ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e

conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves

partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita

estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os

gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem

isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na

medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o

discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades

intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a

mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim

tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher

pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo

podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de

satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo

suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees

judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14

Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e

elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal

I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido

menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento

material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando

ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um

varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau

de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade

do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de

indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo

que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da

forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher

portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa

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inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute

anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme

Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade

ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute

biologicamente e ontologicamente inferior a ele

Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem

fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-

3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute

respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da

naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida

matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia

desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-

se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes

das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida

familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger

2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as

ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a

mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da

inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar

Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia

sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como

outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de

ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos

sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho

bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se

apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do

modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de

Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres

satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a

ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos

aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos

aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo

feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre

169 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura

fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida

em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como

fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do

acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse

mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo

sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo

sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais

acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as

condiccedilotildees a que eram submetidos

A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166

da Filosofia do Direito de Hegel

A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do

universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve

restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de

eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento

do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir

da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees

complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual

confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo

exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas

pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a

espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e

por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia

do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a

espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da

individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria

segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e

contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao

exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas

necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e

consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior

170 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do

sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres

possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave

incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais

caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo

aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a

impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de

igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo

expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a

concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos

da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca

espaccedilo para uma forma de opressatildeo

No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade

da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo

indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee

de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre

homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do

espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute

engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza

eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais

universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu

desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade

pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees

comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute

portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos

como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de

mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a

qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que

o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o

natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais

transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o

engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel

aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias

171 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

perpassadas por eles

Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com

a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela

(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da

ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee

agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto

supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a

capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo

ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida

social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como

naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural

parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa

hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos

civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de

participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta

pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia

especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito

proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo

com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda

naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem

exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo

do espiacuterito

Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um

antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de

tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave

coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do

princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam

considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o

argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si

a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem

mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute

atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se

reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa

Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana

acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico

desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam

elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas

de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o

problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza

humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de

sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal

Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de

capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave

anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente

marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o

afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres

ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum

(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles

considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da

funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral

justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a

levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees

A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os

elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo

ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de

deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da

classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista

em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente

destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser

confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e

morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como

estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema

173 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

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Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

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Recebido em 28122017

Aprovado em 19092018

167 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

consequentemente a exclui do domiacutenio propriamente humano Um homem fora da poacutelis eacute

diz-nos Aristoacuteteles como uma parte ou um oacutergatildeo apartado do corpo e nesse sentido eacute dito

homem apenas por homoniacutemia por semelhanccedila assim como uma matildeo decepada continua

sendo dita lsquomatildeorsquo apenas por possuir ainda uma conformaccedilatildeo externa semelhante agrave matildeo ligada

ao corpo o qual confere a ela a funcionalidade que lhe permite subsistir ser definida e

conhecida como algo especiacutefico Com a aplicaccedilatildeo da tese da anterioridade do todo frente agraves

partes agrave explicaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre os conceitos de cidadania e poacutelis Aristoacuteteles acredita

estar fundamentando do ponto de vista filosoacutefico uma crenccedila bem compartilhada entre os

gregos que foi cristalizada pelo ditado ldquoum homem nenhum homemrdquo pois um homem

isolado da comunidade poliacutetica natildeo pode viver como um homem em sentido estrito na

medida em que natildeo poderaacute atualizar as capacidades caracterizadoras da humanidade o

discurso a persuasatildeo a deliberaccedilatildeo a decisatildeo e a accedilatildeo poliacutetica enquanto atividades

intrinsecamente vinculadas ao exerciacutecio pleno do uso deliberativo da razatildeo Uma vez que a

mulher eacute incapaz de satisfazer as notas caracteriacutesticas do conceito de humanidade assim

tomado poderiacuteamos dizer seguindo o espiacuterito do texto que segundo Aristoacuteteles a mulher

pode ser considerada um ser humano apenas em sentido frouxo ou derivado do termo natildeo

podendo assim participar daquelas atividades definidoras do cidadatildeo o uacutenico capaz de

satisfazer os requisitos necessaacuterios (em que pese sob a perspectiva aristoteacutelica natildeo

suficientes) agrave natureza humana a administraccedilatildeo da justiccedila (tribunais julgamentos e decisotildees

judiciais) e do governo (assembleia deliberativa cargos deliberativos)14

Aristoacuteteles vai mais fundo na tentativa de embasar teoricamente seus preconceitos e

elabora uma embriologia capaz de suportaacute-los Nesse sentido afirma em Da geraccedilatildeo animal

I 18 que a concepccedilatildeo daacute-se mediante a simbiose entre o esperma masculino e o liacutequido

menstrual feminino O esperma era considerado o elemento formal que punha o elemento

material o mecircnstruo fornecido pela mulher em movimento Segundo Aristoacuteteles quando

ocorria um predomiacutenio pleno do elemento formal sobre o material entatildeo seria gerado um

varatildeo Assim sendo a geraccedilatildeo de uma mulher jaacute configura para o filoacutesofo um primeiro grau

de imperfeiccedilatildeo pelo fato da forma (que eacute princiacutepio de determinaccedilatildeo atualidade e efetividade

do ser possuindo primazia ontoloacutegica total em relaccedilatildeo agrave mateacuteria a qual eacute sinocircnimo de

indeterminaccedilatildeo potencialidade e passividade) ser suplantada pela mateacuteria Eacute visiacutevel entatildeo

que a mulher eacute considerada um mero receptaacuteculo de esperma e o homem o transmissor da

forma e o introdutor do princiacutepio aniacutemico no embriatildeo (conforme II 3 737a9) sendo a mulher

portanto biologicamente inferior em relaccedilatildeo ao homem A explicaccedilatildeo uacuteltima dessa

168 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute

anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme

Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade

ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute

biologicamente e ontologicamente inferior a ele

Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem

fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-

3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute

respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da

naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida

matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia

desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-

se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes

das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida

familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger

2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as

ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a

mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da

inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar

Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia

sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como

outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de

ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos

sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho

bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se

apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do

modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de

Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres

satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a

ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos

aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos

aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo

feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre

169 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura

fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida

em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como

fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do

acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse

mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo

sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo

sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais

acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as

condiccedilotildees a que eram submetidos

A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166

da Filosofia do Direito de Hegel

A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do

universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve

restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de

eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento

do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir

da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees

complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual

confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo

exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas

pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a

espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e

por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia

do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a

espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da

individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria

segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e

contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao

exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas

necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e

consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior

170 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

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ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do

sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres

possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave

incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais

caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo

aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a

impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de

igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo

expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a

concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos

da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca

espaccedilo para uma forma de opressatildeo

No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade

da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo

indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee

de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre

homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do

espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute

engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza

eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais

universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu

desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade

pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees

comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute

portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos

como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de

mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a

qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que

o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o

natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais

transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o

engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel

aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

perpassadas por eles

Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com

a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela

(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da

ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee

agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto

supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a

capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo

ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida

social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como

naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural

parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa

hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos

civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de

participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta

pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia

especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito

proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo

com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda

naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem

exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo

do espiacuterito

Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um

antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de

tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave

coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do

princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam

considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o

argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si

a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem

mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute

atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se

reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa

Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana

acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico

desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam

elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas

de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o

problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza

humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de

sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal

Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de

capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave

anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente

marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o

afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres

ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum

(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles

considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da

funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral

justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a

levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees

A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os

elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo

ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de

deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da

classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista

em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente

destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser

confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e

morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como

estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema

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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

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Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

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168 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

inferioridade bioloacutegica repousa sobre a tese da anterioridade do ato sobre a potecircncia O ato eacute

anterior agrave potecircncia segundo a natureza o tempo a definiccedilatildeo e o conhecimento (conforme

Metafiacutesica X 815) Ora se o varatildeo eacute identificado como o fornecedor do princiacutepio de atualidade

ao embriatildeo e a mulher como fornecedora do princiacutepio de potencialidade e passividade ela eacute

biologicamente e ontologicamente inferior a ele

Contudo mesmo a inferioridade feminina estando aos olhos de Aristoacuteteles ldquotatildeo bem

fundamentadardquo dentro de seu sistema filosoacutefico o Estagirita afirma em Poliacutetica I 12 1259b2-

3 que ldquoo homem eacute mais talhado ao poder do que a mulher e a relaccedilatildeo superior-inferior eacute

respectivamente permanente entre eles a menos que ocorram ldquoexceccedilotildees de ordem da

naturezardquo16 Tais exceccedilotildees satildeo mencionadas por Aristoacuteteles no contexto de sua criacutetica agrave vida

matrimonial espartana (Poliacutetica II 9 1269b12-37) visto que em Esparta a famiacutelia

desempenhava um papel quase nulo na vida do homem da classe dominante o qual dedicava-

se inteiramente ao cumprimento dos deveres ciacutevicos e militares tendo tambeacutem os costumes

das mulheres espartanas fama de licenciosos entre os gregos No que tange agrave ausecircncia de vida

familiar na classe dominante Esparta assemelha-se ao sistema proposto por Platatildeo (Jaeger

2010 p813-814) Parece que essas duas poacuteleis oferecerem as condiccedilotildees para que as

ldquoexceccedilotildees de ordem da naturezardquo das quais Aristoacuteteles fala realizem-se jaacute que nelas a

mulher desempenha um papel poliacutetico e natildeo estaacute totalmente submetida agrave forccedila da

inferioridade que lhe foi imposta nem suas accedilotildees estatildeo circunscritas agrave esfera do lar

Simone de Beauvoir (1976 vol I p41) bem marca que Aristoacuteteles (cuja embriologia

sobreviveu durante toda a idade meacutedia e soacute veio a ser revista na era moderna) assim como

outros filoacutesofos e cientistas tentou distinguir o papel dos sexos na reproduccedilatildeo atraveacutes de

ldquoopiniotildees desprovidas de qualquer fundamento cientiacutefico as quais refletem apenas mitos

sociaisrdquo Nessa mesma linha podemos concluir que Aristoacuteteles tentou deduzir teses de cunho

bioloacutegico a partir da observaccedilatildeo da condiccedilatildeo (a)cultural da mulher tal como ela se

apresentava em geral na Greacutecia A tentativa de explicar porque as coisas nos aparecem do

modo como elas nos aparecem eacute uma metodologia recorrente na investigaccedilatildeo filosoacutefica de

Aristoacuteteles Nesse sentido Aristoacuteteles crecirc que eacute tarefa do filoacutesofo explicar porque as mulheres

satildeo submissas incultas talhadas antes ao silecircncio do que ao discurso e propensas mais a

ouvir as paixotildees do que a razatildeo E caso a sua essecircncia ou natureza natildeo seja tal qual ela nos

aparece cabe ao filoacutesofo o ocircnus de mostrar porque uma vez que ela natildeo eacute assim ela nos

aparece assim O Estagirita tomou em relaccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo do comportamento e da condiccedilatildeo

feminina uma decisatildeo filosoacutefica mais cocircmoda e menos revisionista que a do seu mestre

169 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura

fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida

em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como

fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do

acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse

mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo

sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo

sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais

acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as

condiccedilotildees a que eram submetidos

A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166

da Filosofia do Direito de Hegel

A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do

universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve

restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de

eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento

do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir

da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees

complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual

confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo

exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas

pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a

espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e

por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia

do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a

espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da

individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria

segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e

contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao

exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas

necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e

consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do

sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres

possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave

incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais

caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo

aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a

impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de

igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo

expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a

concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos

da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca

espaccedilo para uma forma de opressatildeo

No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade

da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo

indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee

de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre

homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do

espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute

engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza

eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais

universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu

desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade

pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees

comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute

portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos

como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de

mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a

qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que

o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o

natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais

transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o

engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel

aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias

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perpassadas por eles

Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com

a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela

(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da

ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee

agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto

supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a

capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo

ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida

social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como

naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural

parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa

hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos

civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de

participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta

pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia

especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito

proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo

com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda

naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem

exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo

do espiacuterito

Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um

antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de

tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave

coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do

princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam

considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o

argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si

a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem

mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute

atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se

reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma

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pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa

Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana

acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico

desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam

elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas

de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o

problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza

humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de

sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal

Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de

capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave

anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente

marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o

afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres

ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum

(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles

considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da

funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral

justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a

levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees

A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os

elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo

ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de

deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da

classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista

em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente

destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser

confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e

morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como

estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

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Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

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Aprovado em 19092018

169 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

buscando ldquosalvar as aparecircnciasrdquo ou explicar o fenocircmeno da condiccedilatildeo de submissatildeo e incultura

fiacutesica e intelectual da mulher na Greacutecia antigo no sentido pejorativo da expressatildeo na medida

em que natildeo se propocircs a aventar outras causas explicativas para esse fenocircmeno tais como

fatores acidentais relativos a costumes marcados pela opressatildeo sujeiccedilatildeo e pela privaccedilatildeo do

acesso a condiccedilotildees iguais agraves masculinas de formaccedilatildeo intelectual moral fiacutesica cultural Esse

mesmo comodismo parece marcar a anaacutelise do fenocircmeno da escravidatildeo pois o Estagirita natildeo

sugere que tais convicccedilotildees poderiam natildeo estar fundamentadas de modo inteiramente legiacutetimo

sob a perspectiva da proacutepria natureza humana mas que se fundamentavam sobre algo mais

acidental do que isso o modo mediante o qual escravos e mulheres eram tratados e as

condiccedilotildees a que eram submetidos

A circunscriccedilatildeo da determinaccedilatildeo substancial da mulher agrave famiacutelia segundo os sectsect165-166

da Filosofia do Direito de Hegel

A legitimaccedilatildeo da tese hegeliana que o caraacuteter feminino natildeo eacute dado agrave consideraccedilatildeo do

universal e nem provido de grandes dotes intelectuais e por isso a sua atuaccedilatildeo deve

restringir-se agrave vida familiar estaacute fundamentada no modo mediante o qual o conceito de

eticidade articula-se em sua determinaccedilatildeo imediata a famiacutelia O processo de desdobramento

do conceito de eticidade do qual a famiacutelia configura o primeiro momento constitui-se a partir

da conciliaccedilatildeo e uniatildeo orgacircnica de indiviacuteduos diferenciados que exercem funccedilotildees

complementares Tal diferenciaccedilatildeo existe tambeacutem entre os sexos e eacute fundada na razatildeo a qual

confere a essa diferenciaccedilatildeo uma significaccedilatildeo intelectual e eacutetica Assim sendo a devoccedilatildeo

exclusiva da mulher agrave famiacutelia fundamenta-se segundo Hegel sobre razotildees profundas dadas

pelo desenrolar do conceito de eticidade na relaccedilatildeo homem-mulher aquele ldquoeacute a

espiritualidade que se desdobra por um lado na independecircncia pessoal que existe por si e

por outro lado se desdobra no saber e no querer da livre universalidade na autoconsciecircncia

do pensamento conceitual e o querer do fim objetivo e uacuteltimordquo enquanto essa ldquoeacute a

espiritualidade que se manteacutem na unidade como saber e querer do substancial na forma da

individualidade concreta e sentimentordquo Segue-se disso de maneira logicamente necessaacuteria

segundo o sistema hegeliano natildeo soacute como resultado de preconceitos morais datados e

contingentes que o homem sendo uma espiritualidade poderosa e ativa com referecircncia ao

exterior eacute naturalmente superior agrave mulher no que concerne agraves capacidades reflexivas

necessaacuterias agrave vida social e poliacutetica ao estudo da ciecircncia e agrave luta com o mundo exterior e

consigo mesmo enquanto a mulher sendo uma espiritualidade subjetiva e passiva eacute superior

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do

sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres

possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave

incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais

caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo

aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a

impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de

igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo

expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a

concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos

da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca

espaccedilo para uma forma de opressatildeo

No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade

da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo

indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee

de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre

homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do

espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute

engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza

eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais

universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu

desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade

pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees

comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute

portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos

como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de

mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a

qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que

o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o

natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais

transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o

engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel

aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

perpassadas por eles

Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com

a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela

(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da

ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee

agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto

supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a

capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo

ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida

social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como

naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural

parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa

hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos

civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de

participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta

pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia

especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito

proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo

com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda

naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem

exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo

do espiacuterito

Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um

antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de

tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave

coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do

princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam

considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o

argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si

a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem

mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute

atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se

reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa

Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana

acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico

desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam

elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas

de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o

problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza

humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de

sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal

Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de

capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave

anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente

marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o

afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres

ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum

(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles

considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da

funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral

justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a

levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees

A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os

elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo

ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de

deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da

classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista

em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente

destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser

confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e

morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como

estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

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ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

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170 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ao homem no que diz respeito agraves capacidades requeridas pela subjetividade eacutetica do

sentimento Faz-se claro entatildeo que sob a perspectiva do filoacutesofo alematildeo as mulheres

possuem um caraacuteter naturalmente mais ligado ao sentimento agrave submissatildeo agrave fraqueza e agrave

incapacidade intelectual agindo segundo opiniotildees e inclinaccedilotildees contingentes Tais

caracteriacutesticas imputadas por Hegel agraves mulheres conflagra a desigualdade delas em relaccedilatildeo

aos homens A afirmaccedilatildeo da inferioridade da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a

impossibilidade dela ter acesso a direitos civis e poliacuteticos torna evidente que a relaccedilatildeo de

igualdade externa entre as famiacutelias tomadas enquanto ldquopersonalidades substanciaisrdquo natildeo

expressa uma relaccedilatildeo de igualdade interna a qual se era de esperar para que houvesse a

concretizaccedilatildeo dos princiacutepios universais da liberdade atraveacutes do desenvolvimento dos direitos

da pessoa para aleacutem das diferenccedilas de sexo o que faz com que nesse caso a liberdade perca

espaccedilo para uma forma de opressatildeo

No entanto mesmo que o movimento argumentativo no qual se afirma a inferioridade

da mulher em relaccedilatildeo ao homem e a sua exclusatildeo da vida social e poliacutetica conjugue de modo

indissociaacutevel preconceitos morais datados e necessidade loacutegica o sistema hegeliano dispotildee

de uma noccedilatildeo que nos permite vislumbrar a possibilidade da igualdade civil e poliacutetica entre

homens e mulheres a saber o conceito de reposiccedilatildeo eacutetica do natural atraveacutes da objetivaccedilatildeo do

espiacuterito A noccedilatildeo hegeliana de segunda natureza tal como ela aparece nos sectsect142 e 151 eacute

engendrada mediante a objetivaccedilatildeo que o espiacuterito cumpre quando desenvolve sua natureza

eacutetica a qual toma o lugar da primeira vontade meramente natural e enquanto modo mais

universal de agir aparece como costume Nessa segunda natureza o espiacuterito realiza em seu

desenvolvimento uma natureza eacutetica na qual a liberdade assume a forma da necessidade

pois eacute em tal natureza que a realidade eacutetica eacute necessariamente o mundo das relaccedilotildees

comunitaacuterias e da organicidade da liberdade Tal realidade eacutetica ou segunda natureza eacute

portanto a histoacuteria do movimento ativo dos indiviacuteduos chegando agrave consciecircncia de si mesmos

como membros duma comunidade A segunda natureza configura assim um processo de

mediaccedilatildeo daquilo que eacute imediato ou natural por meio da autoconsciecircncia dos indiviacuteduos a

qual penetra na totalidade dos costumes produzidos pela objetivaccedilatildeo do espiacuterito e faz com que

o desdobramento da racionalidade opere transformaccedilotildees nas combinaccedilotildees entre o eacutetico e o

natural as quais satildeo processos constitutivos da tessitura dos elementos eacuteticos Tais

transformaccedilotildees operadas atraveacutes da mediaccedilatildeo do natural pela racionalidade eacutetica permitem o

engendramento de novos costumes na medida em que os antigos natildeo tornam mais possiacutevel

aos indiviacuteduos reconhecerem a si mesmos como membros de relaccedilotildees comunitaacuterias

171 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

perpassadas por eles

Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com

a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela

(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da

ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee

agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto

supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a

capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo

ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida

social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como

naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural

parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa

hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos

civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de

participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta

pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia

especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito

proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo

com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda

naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem

exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo

do espiacuterito

Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um

antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de

tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave

coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do

princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam

considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o

argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si

a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem

mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute

atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se

reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma

172 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa

Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana

acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico

desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam

elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas

de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o

problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza

humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de

sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal

Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de

capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave

anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente

marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o

afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres

ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum

(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles

considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da

funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral

justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a

levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees

A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os

elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo

ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de

deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da

classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista

em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente

destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser

confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e

morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como

estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema

173 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

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ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

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Fontes Satildeo Paulo 2001

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Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1985

WOOD A Hegelrsquos ethical thought Cambridge CUP 1990

Recebido em 28122017

Aprovado em 19092018

171 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

perpassadas por eles

Nesse sentido Kerveacutegan (1995 p15) afirma que a relaccedilatildeo que o espiacuterito manteacutem com

a natureza eacute de sucessatildeo e oposiccedilatildeo A sucessatildeo se daacute porque ele eacute mais elevado que ela

(Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas sect440) na medida em que ele corresponde ao retorno da

ideia sobre si mesma a partir de sua exteriorizaccedilatildeo A oposiccedilatildeo se daacute porque o espiacuterito se opotildee

agrave natureza assim como a liberdade agrave necessidade pois ele soacute alcanccedila sua efetivaccedilatildeo enquanto

supera a natureza isto eacute enquanto eacute outro em relaccedilatildeo a ela Nesse sentido o espiacuterito tem a

capacidade de constituir por si mesmo uma segunda natureza o haacutebito que lhe permite natildeo

ter somente uma liberdade abstrata mas efetivada e objetivada graccedilas agraves instituiccedilotildees da vida

social do direito positivo e do Estado Portanto ainda que a mulher pudesse ser tomada como

naturalmente inferior ao homem sob algum aspecto a noccedilatildeo de reposiccedilatildeo eacutetica do natural

parece constituir uma alternativa interpretativa agrave desalentadora e preconceituosa defesa

hegeliana da inferioridade das mulheres em relaccedilatildeo aos homens e sua exclusatildeo dos direitos

civis e poliacuteticos pois ela permite que a ldquopropensatildeo natural imediatardquo que as impede de

participar da vida poliacutetica e as confina agrave famiacutelia por exemplo possa ser mediada e reposta

pelos costumes Eacute importante notar que a letra do texto no qual Hegel se pronuncia

especificamente sobre a natureza inferior da mulher parece ainda adotar uma posiccedilatildeo muito

proacutexima daquela defendida por Aristoacuteteles No entanto acreditamos que estaria de acordo

com o espiacuterito de seu texto assentado sobre sua letra acerca do conceito de ldquosegunda

naturezardquo como reposiccedilatildeo eacutetica do natural que nada impede que a opressatildeo que o homem

exerce sobre a mulher seja necessaacuteria ou permanente em relaccedilatildeo ao movimento de objetivaccedilatildeo

do espiacuterito

Nossa interpretaccedilatildeo aliaacutes poderia tornar a argumentaccedilatildeo hegeliana provida de um

antiacutedoto que o proacuteprio Hegel parece natildeo ter utilizado explicitamente para esse fim capaz de

tornaacute-la imune agravequilo que Wood (1990 p93) chama de uma limitaccedilatildeo concernente agrave

coadunaccedilatildeo de sua posiccedilatildeo sobre a condiccedilatildeo da mulher e dos escravos e sua adoccedilatildeo do

princiacutepio da sociedade moderna que prescreve que todos os seres humanos sejam

considerados pessoas dotadas de direitos e liberdade Nesse sentido o uacutenico modo de fazer o

argumento que preconiza que natildeo podemos efetivar o auto-reconhecimento ou a certeza de si

a natildeo ser enquanto membros de uma comunidade de pessoas livres que reconhecem

mutuamente os direitos umas das outras prescindir de qualquer premissa arbitraacuteria seraacute

atraveacutes da admissatildeo da tese que o auto-reconhecimento implica de necessidade que se

reconheccedila a todos inclusive mulheres e escravos como pessoas Do contraacuterio poderia uma

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pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa

Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana

acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico

desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam

elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas

de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o

problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza

humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de

sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal

Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de

capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave

anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente

marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o

afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres

ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum

(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles

considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da

funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral

justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a

levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees

A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os

elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo

ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de

deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da

classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista

em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente

destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser

confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e

morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como

estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema

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poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Referecircncias bibliograacuteficas

ARENDT H A condiccedilatildeo humana Traduccedilatildeo de Roberto Raposo Forense Universitaacuteria Rio

de Janeiro 10a ediccedilatildeo 2001

ARISTOTE LrsquoEacutethique agrave Nicomaque Traduccedilatildeo notas e comentaacuterios de R Gauthier amp J

Jolif 2 tomos Peeters Leuven 2002

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica [Edicioacuten trilingue por Valentiacuten Garciacutea Yebra] Madrid Gredos

1998

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral

e Carlos de Carvalho Gomes Vega Lisboa 1998

ARISTOTLE De Anima Traduccedilatildeo de R D Hicks Prometheus Books New York 1991

ARISTOTLE ldquoGeneration of animalsrdquo In BARNES J (org) The Complete Works of

Aristotle Princeton University Press 1995 pp1111-1218

BEAUVOIR S Le Deuxiegraveme Sexe (2 vol) Gallimard Paris 1976

DOS SANTOS M ldquoNotas sobre a prova aristoteacutelica do ato sobre a potecircncia em Metafiacutesica

Theta 8rdquo In STORCK A amp ZILLIG R (Orgs) Aristoacuteteles Ensaios de Eacutetica e Metafiacutesica

Linus Porto Alegre 2011

HEGEL G W F Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas em epiacutetome 3 volumes Traduccedilatildeo

para a liacutengua portuguesa de Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 Lisboa 1989

HEGEL G W F Principes de la philosophie du droit Gallimard Paris 1989

JAEGER W Paideacuteia A formaccedilatildeo do homem grego Traduccedilatildeo de Artur Parreira Martins

Fontes Satildeo Paulo 2001

KERVEacuteGAN J ldquoToute vraie philosophie est un ideacutealisme - Lrsquoesprit et ses lsquonaturesrsquo rdquo In

MALER H (Org) Hegel passeacute Hegel agrave venir Harmattan Paris 1995 pp 11-28

177 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

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NUSSBAUM M ldquoAristotle on human nature and the foundations of ethicsrdquo In ALTHAM

J amp HARRISON R (Orgs) World Mind and Ethics Essays on the Ethical Philosophy of

Bernard Williams Cambridge CUP 1995 pp 86-131

PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1985

WOOD A Hegelrsquos ethical thought Cambridge CUP 1990

Recebido em 28122017

Aprovado em 19092018

172 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

pessoa alcanccedilar o reconhecimento e certeza de si atraveacutes de uma natildeo-pessoa

Atraveacutes dessa breve nota sobre as perspectivas platocircnica aristoteacutelica e hegeliana

acerca da condiccedilatildeo feminina e o lugar destinado agraves mulheres no interior do sistema poliacutetico

desses trecircs filoacutesofos esperamos ter conseguido sugerir que o modo como eles articulam

elementos descritivos e prescritivos na construccedilatildeo das categorias de anaacutelise de seus sistemas

de filosofia poliacutetica lhes permitem propor teses capazes de enfrentar melhor ou pior o

problema da sujeiccedilatildeo da mulher como um dos fatores que tornam o conceito de natureza

humana fundado sobre a exclusatildeo de certos grupos de indiviacuteduos por criteacuterios arbitraacuterios de

sexo gecircnero cor etnia incapaz de alcanccedilar o estatuto de plenamente universal

Segundo nosso esboccedilo o sistema aristoteacutelico parece ter sido o menos dotado de

capacidade de superaccedilatildeo desse problema na medida em que pelo menos relativamente agrave

anaacutelise da natureza e condiccedilatildeo femininas suas decisotildees filosoacuteficas foram fortemente

marcadas pela subordinaccedilatildeo de elementos prescritivos a elementos descritivos No entanto o

afatilde aristoteacutelico de ldquosalvar as aparecircnciasrdquo de modo algum implica ou legitima que as mulheres

ou os escravos devam ser tratados com vilania ou violecircncia Como sugere Martha Nussbaum

(1995 p122) qualquer modo aviltante de tratamento dirigido agravequeles que Aristoacuteteles

considera dotados de uma natureza deficitaacuteria em relaccedilatildeo ao paradigma da natureza e da

funccedilatildeo humanas natildeo poderia ser deliberado escolhido nem praticado pelo bom agente moral

justamente na medida em que cabe ao prudente conduzir os menos dotados intelectualmente a

levar a melhor vida possiacutevel dentro de suas intriacutensecas limitaccedilotildees

A tendecircncia fortemente idealista de Platatildeo a qual o faz sempre privilegiar os

elementos prescritivos em detrimentos dos descritivos parece ter permitido ao filoacutesofo

ateniense ser o primeiro a conceder agrave mulher a sua inserccedilatildeo na esfera puacuteblica e dotaacute-la de

deveres poliacuteticos e de igual acesso agrave formaccedilatildeo fiacutesica e intelectual destinada aos varotildees da

classe dos guardiotildees da poacutelis Tese que como vimos era considerada altamente revisionista

em razatildeo de seu caraacuteter totalmente avesso ao lugar de confinamento ao oikos comumente

destinado agrave mulher nas poacuteleis gregas No entanto as pretensotildees platocircnicas natildeo podem ser

confundidas com uma consideraccedilatildeo da mulher como portadora de virtudes intelectuais e

morais que pudessem ser equiparaacuteveis agravequelas dos homens mas devem ser lidas como

estritamente vinculadas ao papel necessaacuterio que as mulheres devem cumprir para que sistema

173 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Referecircncias bibliograacuteficas

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de Janeiro 10a ediccedilatildeo 2001

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Jolif 2 tomos Peeters Leuven 2002

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1998

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral

e Carlos de Carvalho Gomes Vega Lisboa 1998

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Aristotle Princeton University Press 1995 pp1111-1218

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DOS SANTOS M ldquoNotas sobre a prova aristoteacutelica do ato sobre a potecircncia em Metafiacutesica

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para a liacutengua portuguesa de Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 Lisboa 1989

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JAEGER W Paideacuteia A formaccedilatildeo do homem grego Traduccedilatildeo de Artur Parreira Martins

Fontes Satildeo Paulo 2001

KERVEacuteGAN J ldquoToute vraie philosophie est un ideacutealisme - Lrsquoesprit et ses lsquonaturesrsquo rdquo In

MALER H (Org) Hegel passeacute Hegel agrave venir Harmattan Paris 1995 pp 11-28

177 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

NEWMAN W L The politics of Aristotle 4 Vol Ayer Company New Hampshire 1991

NUSSBAUM M ldquoAristotle on human nature and the foundations of ethicsrdquo In ALTHAM

J amp HARRISON R (Orgs) World Mind and Ethics Essays on the Ethical Philosophy of

Bernard Williams Cambridge CUP 1995 pp 86-131

PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1985

WOOD A Hegelrsquos ethical thought Cambridge CUP 1990

Recebido em 28122017

Aprovado em 19092018

173 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

poliacutetico de Platatildeo possa funcionar

Hegel pareceu-nos transitar entre o descritivismo e prescritivismo na medida em que

ora se aproxima de Aristoacuteteles defendendo velhos preconceitos que descrevem de alguma

maneira o modo como o fenocircmeno do comportamento feminino era observado tambeacutem na

era moderna ora mostra-se fortemente revisionista ou ldquoidealistardquo para usar a expressatildeo cara a

Kerveacutegan (1995) na medida em que propotildee que nenhuma ldquocondiccedilatildeo naturalrdquo alcanccedila

objetivaccedilatildeo se natildeo for revestida pela racionalidade intriacutenseca agrave eticidade dos costumes Assim

sendo ainda que houvesse sob a perspectiva hegeliana algum motivo para se crer que a

natureza das mulheres eacute sob algum aspecto inferior a dos homens isso natildeo impede que por

meio da reposiccedilatildeo eacutetica do natural a mulher venha a ser dotada de uma segunda natureza na

qual ela tambeacutem possa se reconhecer e ser reconhecida

174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Referecircncias bibliograacuteficas

ARENDT H A condiccedilatildeo humana Traduccedilatildeo de Roberto Raposo Forense Universitaacuteria Rio

de Janeiro 10a ediccedilatildeo 2001

ARISTOTE LrsquoEacutethique agrave Nicomaque Traduccedilatildeo notas e comentaacuterios de R Gauthier amp J

Jolif 2 tomos Peeters Leuven 2002

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica [Edicioacuten trilingue por Valentiacuten Garciacutea Yebra] Madrid Gredos

1998

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral

e Carlos de Carvalho Gomes Vega Lisboa 1998

ARISTOTLE De Anima Traduccedilatildeo de R D Hicks Prometheus Books New York 1991

ARISTOTLE ldquoGeneration of animalsrdquo In BARNES J (org) The Complete Works of

Aristotle Princeton University Press 1995 pp1111-1218

BEAUVOIR S Le Deuxiegraveme Sexe (2 vol) Gallimard Paris 1976

DOS SANTOS M ldquoNotas sobre a prova aristoteacutelica do ato sobre a potecircncia em Metafiacutesica

Theta 8rdquo In STORCK A amp ZILLIG R (Orgs) Aristoacuteteles Ensaios de Eacutetica e Metafiacutesica

Linus Porto Alegre 2011

HEGEL G W F Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas em epiacutetome 3 volumes Traduccedilatildeo

para a liacutengua portuguesa de Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 Lisboa 1989

HEGEL G W F Principes de la philosophie du droit Gallimard Paris 1989

JAEGER W Paideacuteia A formaccedilatildeo do homem grego Traduccedilatildeo de Artur Parreira Martins

Fontes Satildeo Paulo 2001

KERVEacuteGAN J ldquoToute vraie philosophie est un ideacutealisme - Lrsquoesprit et ses lsquonaturesrsquo rdquo In

MALER H (Org) Hegel passeacute Hegel agrave venir Harmattan Paris 1995 pp 11-28

177 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

NEWMAN W L The politics of Aristotle 4 Vol Ayer Company New Hampshire 1991

NUSSBAUM M ldquoAristotle on human nature and the foundations of ethicsrdquo In ALTHAM

J amp HARRISON R (Orgs) World Mind and Ethics Essays on the Ethical Philosophy of

Bernard Williams Cambridge CUP 1995 pp 86-131

PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1985

WOOD A Hegelrsquos ethical thought Cambridge CUP 1990

Recebido em 28122017

Aprovado em 19092018

174 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Notas

1 Gostaria de agradecer ao Professor Joseacute Pinheiro Pertille do Departamento de Filosofia da UFRGS por me

incentivar mesmo que indiretamente e a distacircncia a desengavetar este texto cuja primeira versatildeo redigi

originalmente como trabalho de conclusatildeo de um seminaacuterio de filosofia poliacutetica ministrado por ele haacute mais de

uma deacutecada Agradeccedilo tambeacutem agrave minha colega Maria de Lourdes Alves Borges do Departamento de Filosofia da

UFSC pela sororidade em tempos em que me fora difiacutecil crer no ldquoespiacuterito absolutordquo mas que graccedilas ao seu

coleguismo puderam ser transformados na necessidade de publicar um texto sobre feminismo

2 Profordf Dra do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianoacutepolis

Brasil E-mail santosmarinaufscbr

3 Todas as citaccedilotildees da Repuacuteblica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira (Platatildeo1985)

4 ltσοφίας δρέπων καρπόνgt

5 Natildeo eacute nosso objetivo aqui explorar ou refutar a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo nem identificar as razotildees que

impediram Platatildeo e Aristoacuteteles de antever que mesmo que a tese das ldquoaptidotildees naturaisrdquo pudesse ser aceita elas

natildeo poderiam ser descobertas e desenvolvidas caso os cidadatildeos natildeo desfrutassem de igual oportunidade de

acesso agraves mais diversas atividades no interior da poacutelis

6 Repuacuteblica IV 431b-c estaacute imersa no contexto de anaacutelise da natureza e estruturaccedilatildeo da comunidade dos

guardiotildees que inicia na segunda metade do Livro II e se estende ateacute o Livro V Essa anaacutelise gravita em torno da

questatildeo da educaccedilatildeo que deve ser assegurada agrave classe guardiatilde e de que a distribuiccedilatildeo das tarefas que lhe cabem

deve ser feita atraveacutes da adoccedilatildeo de criteacuterios ligados agraves virtudes dos guardiotildees Platatildeo compara a estruturaccedilatildeo da

cidade com a estruturaccedilatildeo da alma humana notando que os elementos ou funccedilotildees racionais da psycheacute humana

devem governar o homem assim como os homens cuja alma eacute governada pela razatildeo e natildeo se deixa subjugar e

escravizar pelos prazeres e desejos sensiacuteveis devem governar os homens cujas almas satildeo tiranizadas pelas

inclinaccedilotildees sensiacuteveis Nesse sentido Soacutecrates em sua discussatildeo com Glauco e Adimanto afirma em 431b9-c3

ldquoOra desejos prazeres e penas em grande nuacutemero e de todas as espeacutecies seria coisa faacutecil de encontrar

sobretudo nas crianccedilas mulheres criados e nos muitos homens de pouca monta a que chamam livresrdquo Καὶ μὴν

καὶ τάς γε πολλὰς καὶ παντοδαπὰς ἐπιθυμίας καὶ ἡδονάς τε καὶ λύπας ἐν παισὶ μάλιστα ἄν τις εὕροι καὶ γυναιξὶ

καὶ οἰκέταις καὶ τῶν ἐλευθέρων λεγομένων ἐν τοῖς πολλοῖς τε καὶ φαύλοις Grifos nossos

7 Repuacuteblica V 469d situa-se no contexto de criacutetica agrave praacutetica da rapina (para aleacutem das armas) junto aos cadaacuteveres

dos inimigos mortos em combate Nesse contexto Soacutecrates afirma em 469d6-e2 ldquoNatildeo parece coisa baixa e

gananciosa despojar um cadaacutever e proacutepria duma mulher e de quem tem pouco entendimento considerar inimigo

o corpo de um morto quando o inimigo jaacute se evolou deixando ficar o invoacutelucro com que combatia Ou julgas

que haacute alguma diferenccedila entre a atitude destas pessoas e a dos catildees que se enfurecem com as pedras que lhes

atiram e natildeo tocam em quem lhas lanccedilourdquo Ἀνελεύθερον δὲ οὐ δοκεῖ καὶ φιλοχρήματον νεκρὸν συλᾶν καὶ

γυναικείας τε καὶ σμικρᾶς διανοίας τὸ πολέμιον νομίζειν τὸ σῶμα τοῦ τεθνεῶτος ἀποπταμένου τοῦ ἐχθροῦ

λελοιπότος δὲ ᾧ ἐπολέμει ἢ οἴει τι διάφορον δρᾶν τοὺς τοῦτο ποιοῦντας τῶν κυνῶν αἳ τοῖς λίθοις οἷς ἂν

βληθῶσι χαλεπαίνουσι τοῦ βάλλοντος οὐχ ἁπτόμεναι Grifos nossos

8 Repuacuteblica VIII 557c encontra-se no contexto de discussatildeo das formas de governo e da transiccedilatildeo da oligarquia agrave

democracia Nesse contexto Soacutecrates afirma ironicamente na beliacutessima descriccedilatildeo platocircnica da forma

democraacutetica de governo em 557c4-9 ldquoTal constituiccedilatildeo eacute muito capaz de ser a mais bela das constituiccedilotildees Tal

como um manto de muitas cores matizado com toda a espeacutecie de tonalidades tambeacutem ela matizada com toda a

espeacutecie de caracteres apresentaraacute o mais formoso aspecto E talvez que embevecidas pela variedade do

colorido tal como as crianccedilas e as mulheres muitas pessoas julguem esta forma de governo a mais belardquo

Κινδυνεύει ἦν δ ἐγώ καλλίστη αὕτη τῶν πολιτειῶν εἶναι ὥσπερ ἱμάτιον ποικίλον πᾶσιν ἄνθεσι πεποικιλμένον

οὕτω καὶ αὕτη πᾶσιν ἤθεσιν πεποικιλμένη καλλίστη ἂν φαίνοιτο καὶ ἴσως μέν ἦν δ ἐγώ καὶ ταύτην ὥσπερ οἱ

παῖδές τε καὶ αἱ γυναῖκες τὰ ποικίλα θεώμενοι καλλίστην ἂν πολλοὶ κρίνειαν Grifos nossos

9 Repuacuteblica VIII 563b prossegue ainda com a discussatildeo das formas degeneradas de governo agora analisando a

transiccedilatildeo da democracia agrave tirania Nesse contexto Soacutecrates afirma em 563b4-d1 ldquoMas o extremo excesso de

liberdade meu amigo que aparece num Estado desses eacute quando homens e mulheres comprados natildeo satildeo em

nada menos livres do que os compradores Mas por pouco me esquecia de dizer ateacute que ponto vai a igualdade e

liberdade nas relaccedilotildees das mulheres com os homens e destes com aquelasrdquo Ao que Glauco responde ldquoEntatildeo

vamos como Eacutesquilo ldquodizer o que nos acudiu agora mesmo aos laacutebiosrdquo Soacutecrates entatildeo completa

175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Referecircncias bibliograacuteficas

ARENDT H A condiccedilatildeo humana Traduccedilatildeo de Roberto Raposo Forense Universitaacuteria Rio

de Janeiro 10a ediccedilatildeo 2001

ARISTOTE LrsquoEacutethique agrave Nicomaque Traduccedilatildeo notas e comentaacuterios de R Gauthier amp J

Jolif 2 tomos Peeters Leuven 2002

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica [Edicioacuten trilingue por Valentiacuten Garciacutea Yebra] Madrid Gredos

1998

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral

e Carlos de Carvalho Gomes Vega Lisboa 1998

ARISTOTLE De Anima Traduccedilatildeo de R D Hicks Prometheus Books New York 1991

ARISTOTLE ldquoGeneration of animalsrdquo In BARNES J (org) The Complete Works of

Aristotle Princeton University Press 1995 pp1111-1218

BEAUVOIR S Le Deuxiegraveme Sexe (2 vol) Gallimard Paris 1976

DOS SANTOS M ldquoNotas sobre a prova aristoteacutelica do ato sobre a potecircncia em Metafiacutesica

Theta 8rdquo In STORCK A amp ZILLIG R (Orgs) Aristoacuteteles Ensaios de Eacutetica e Metafiacutesica

Linus Porto Alegre 2011

HEGEL G W F Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas em epiacutetome 3 volumes Traduccedilatildeo

para a liacutengua portuguesa de Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 Lisboa 1989

HEGEL G W F Principes de la philosophie du droit Gallimard Paris 1989

JAEGER W Paideacuteia A formaccedilatildeo do homem grego Traduccedilatildeo de Artur Parreira Martins

Fontes Satildeo Paulo 2001

KERVEacuteGAN J ldquoToute vraie philosophie est un ideacutealisme - Lrsquoesprit et ses lsquonaturesrsquo rdquo In

MALER H (Org) Hegel passeacute Hegel agrave venir Harmattan Paris 1995 pp 11-28

177 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

NEWMAN W L The politics of Aristotle 4 Vol Ayer Company New Hampshire 1991

NUSSBAUM M ldquoAristotle on human nature and the foundations of ethicsrdquo In ALTHAM

J amp HARRISON R (Orgs) World Mind and Ethics Essays on the Ethical Philosophy of

Bernard Williams Cambridge CUP 1995 pp 86-131

PLATAtildeO A Repuacuteblica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Maria Helena da Rocha

Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1985

WOOD A Hegelrsquos ethical thought Cambridge CUP 1990

Recebido em 28122017

Aprovado em 19092018

175 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

ldquoAbsolutamente Eu por mim vou falar dessa maneira Efetivamente ateacute que ponto os animais submetidos ao

homem satildeo mais livres aqui do que em qualquer outro siacutetio eacute coisa que ningueacutem acreditaria sem o experimentar

Eacute que as cadelas conforme o proveacuterbio satildeo como as donas e tambeacutem os cavalos e burros andam pelas ruas

acostumados a uma liberdade completa e altiva embatendo sempre em quem vier em sentido contraacuterio a menos

que saiam do caminho e tudo o mais eacute assim repleto de liberdaderdquo

SOK Τὸ δέ γε ἦν δ ἐγώ ἔσχατον ὦ φίλε τῆς ἐλευθερίας τοῦ πλήθους ὅσον γίγνεται ἐν τῇ τοιαύτῃ πόλει ὅταν

δὴ οἱ ἐωνημένοι καὶ αἱ ἐωνημέναι μηδὲν ἧττον ἐλεύθεροι ὦσι τῶν πριαμένων ἐν γυναιξὶ δὲ πρὸς ἄνδρας καὶ

ἀνδράσι πρὸς γυναῖκας ὅση ἡ ἰσονομία καὶ ἐλευθερία γίγνεται ὀλίγου ἐπελαθόμεθ εἰπεῖν

GLA Οὐκοῦν κατ Αἰσχύλον ἔφη ldquoἐροῦμεν ὅτι νῦν ἦλθ ἐπὶ στόμαrdquo

SOK Πάνυ γε εἶπον καὶ ἔγωγε οὕτω λέγω τὸ μὲν γὰρ τῶν θηρίων τῶν ὑπὸ τοῖς ἀνθρώποις ὅσῳ ἐλευθερώτερά

ἐστιν ἐνταῦθα ἢ ἐν ἄλλῃ οὐκ ἄν τις πείθοιτο ἄπειρος ἀτεχνῶς γὰρ αἵ τε κύνες κατὰ τὴν παροιμίαν οἷαίπερ αἱ

δέσποιναι γίγνονταί τε δὴ καὶ ἵπποι καὶ ὄνοι πάνυ ἐλευθέρως καὶ σεμνῶς εἰθισμένοι πορεύεσθαι κατὰ τὰς

ὁδοὺς ἐμβάλλοντες τῷ ἀεὶ ἀπαντῶντι ἐὰν μὴ ἐξίστηται καὶ τἆλλα πάντα οὕτω μεστὰ ἐλευθερίας γίγνεται

10 Todas as citaccedilotildees da Poliacutetica utilizaratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral e

Carlos de Carvalho Gomes (Aristoacuteteles 1998)

11 Todas as citaccedilotildees do De Anima seguiratildeo a traduccedilatildeo para a liacutengua inglesa de Hicks (Aristoacuteteles 1991)

12 Para a distinccedilatildeo entre esfera puacuteblica e privada ver Arendt (2001 p33)

13 Poderiacuteamos pensar numa analogia de proporccedilatildeo para explicar tais passagens de Poliacutetica I 5

senhor marido pai funccedilatildeo racional da alma_

escravo mulher e filhos funccedilatildeo irracional da alma

14 Em Poliacutetica III 1 1275a22-23 πολίτης δ ἁπλῶς οὐδενὶ τῶν ἄλλων ὁρίζεται μᾶλλον ἢ τῷ μετέχειν κρίσεως καὶ

ἀρχῆς

15 Para um breve esboccedilo sobre os sentidos da prioridade do ato sobre a potecircncia ver Dos Santos (2011)

16 Sobre as dificuldades de traduccedilatildeo e interpretaccedilatildeo dessa passagem ver Newman (1991 Vol II p210)

176 DOS SANTOS M Nota sobre a natureza da mulher na comunidade familiar e poliacutetica

ethic - Florianoacutepolis Santa Catarina Brasil v 17 n 2 p 159 ndash 177 Dez 2018

Referecircncias bibliograacuteficas

ARENDT H A condiccedilatildeo humana Traduccedilatildeo de Roberto Raposo Forense Universitaacuteria Rio

de Janeiro 10a ediccedilatildeo 2001

ARISTOTE LrsquoEacutethique agrave Nicomaque Traduccedilatildeo notas e comentaacuterios de R Gauthier amp J

Jolif 2 tomos Peeters Leuven 2002

ARISTOacuteTELES Metafiacutesica [Edicioacuten trilingue por Valentiacuten Garciacutea Yebra] Madrid Gredos

1998

ARISTOacuteTELES Poliacutetica Traduccedilatildeo para a liacutengua portuguesa de Antoacutenio Campelo de Amaral

e Carlos de Carvalho Gomes Vega Lisboa 1998

ARISTOTLE De Anima Traduccedilatildeo de R D Hicks Prometheus Books New York 1991

ARISTOTLE ldquoGeneration of animalsrdquo In BARNES J (org) The Complete Works of

Aristotle Princeton University Press 1995 pp1111-1218

BEAUVOIR S Le Deuxiegraveme Sexe (2 vol) Gallimard Paris 1976

DOS SANTOS M ldquoNotas sobre a prova aristoteacutelica do ato sobre a potecircncia em Metafiacutesica

Theta 8rdquo In STORCK A amp ZILLIG R (Orgs) Aristoacuteteles Ensaios de Eacutetica e Metafiacutesica

Linus Porto Alegre 2011

HEGEL G W F Enciclopeacutedia das ciecircncias filosoacuteficas em epiacutetome 3 volumes Traduccedilatildeo

para a liacutengua portuguesa de Artur Moratildeo Ediccedilotildees 70 Lisboa 1989

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Pereira Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1985

WOOD A Hegelrsquos ethical thought Cambridge CUP 1990

Recebido em 28122017

Aprovado em 19092018

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Aprovado em 19092018