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Robin Moore Professor de Etnomusicologia da School of Music da University of Texas at Austin. Autor, entre outros livros, de Nationalizing blackness: afrocubanismo and artistic revolution in Havana (1920-1940). Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, 1998. [email protected] Música e crise ideológica em Cuba de 1990 em diante Ilustração: Eduardo Warpechowski.

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Robin MooreProfessor de Etnomusicologia da School of Music da University of Texas at Austin.Autor, entre outros livros, de Nationalizing blackness: afrocubanismo and artisticrevolution in Havana (1920-1940). Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, [email protected]

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Música e crise ideológica em Cuba de 1990 em dianteRobin Moore

Tradução: Edinan J. Silva*Revisão técnica da tradução: Adalberto Paranhos**Consultoria: Martha Tupinambá de Ulhôa***

Na virada do milênio, Cuba passa por mudanças rápidas que afe-taram quase todos os setores da sociedade. Em cerca de apenas 15 anos,tornou-se menos socialista do ponto de vista militante — se nãodiscursivamente, pelo menos na prática — e está em contato mais próxi-mo com países capitalistas. Slogans ideológicos pró-socialismo, virtual-mente as únicas mensagens vistas em espaços públicos e ouvidas no rá-dio, competem agora com comerciais publicitários. A estabilidade noemprego é coisa do passado; a ênfase está na competência e eficiência notrabalho. Os cubanos adquiriram muitos produtos de uso doméstico apreços de mercado internacional, embora não consigam pagar por elescom facilidade. Há oportunidades de negócios privados além das que oEstado oferece. Salários e padrão de vida variam muito mais do que an-tes, contribuindo para o surgimento da diferença de classe. O país todomudou mais no último decênio do que nas três décadas anteriores1.Embora os líderes demorem em admiti-lo, aos poucos Cuba abraça umaeconomia capitalista mista.

Este texto reconhece que a Cuba do passado, com freqüência, asse-melha-se à do presente e examina mais detalhadamente as mudançasna música da década de 1990 em diante. Informa sobre os piores anosda crise político-econômica e descreve como o governo reagiu; tambémressalta o papel proeminente da música na expansão do turismo e seatém ao destaque internacional ainda maior que músicos cubanos al-cançaram desde os anos 1990 em relação a décadas anteriores. Por fim,detalha as reformas legais que afetaram a indústria da música e avaliaas composições de artistas que passaram por esse período.

Transformações sociais e econômicas

Com a queda da União Soviética, em 1989, aos poucos Cuba per-deu subsídios e acordos de negócio que chegavam a quase US$ 6 bilhõesao ano, assim como US$ 1,2 bilhão em ajuda militar2. Isso representavacerca de 75% de seus negócios internacionais. Sem reservas adequadasde energia ou produtos manufaturados, a economia altamente depen-dente da ilha teve uma queda de 40% em seu produto nacional bruto em1999. A situação esteve crítica nos primeiros meses de 1992: longosapagões, crise nos transportes, racionamento de água; era comum e alar-mante faltar comida e suprimentos domésticos. Esse “período especial”de miséria não é mais tão severo, mas a economia do país continua instá-

* Tradutor e editor de textos.Formado em Letras pela Uni-versidade Federal de Uber-lândia (UFU). [email protected]

** Professor do Departamen-to de Ciências Sociais, do Pro-grama de Pós-graduação emHistória e do curso de Músicada Universidade Federal deUberlândia (UFU). [email protected]

*** A editoria de ArtCulturaagradece à musicóloga Mar-tha Tupinambá de Ulhôa, daUniversidade Federal do Es-tado do Rio de Janeiro (Uni-rio), a indicação deste textopara publicação. [email protected]

1 Cf. KIRK, John e PADURAFUENTES, Leonardo. Cultureand the Cuban revolution: con-versations in Havana. Gaines-ville: University Press of Flo-rida, 2001, p. xxiv.

2 Cf. FREY JR., Louis Chair.Report by the delegation of theU. S. Association of FormerMembers of Congress visit toCuba, December 9-14, 1996.Washington, The United Sta-tes Association of FormerMembers of Congress, 1997,p. 3.

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traduçãovel. Carente de uma base industrial que assegurasse mais auto-suficiên-

cia e com pouca coisa a negociar no mercado internacional, Cuba mu-dou do dia para a noite sua condição de um dos países emergentes daAmérica Latina para um dos mais pobres.

Por conseqüência, as calamidades econômicas do início da décadade 1990 levaram ao surgimento de outros problemas. Durante anos, gran-de parte da população não tinha opções viáveis de emprego porque oscentros de trabalho não conseguiam funcionar sem eletricidade e maté-rias-primas apropriadas. Epidemias de doenças físicas como as da visãose desenvolveram por causa de dietas restritas ou do consumo de águapotável não tratada. Assaltos e violência física eram freqüentes numanação que um dia foi umas das mais seguras. As pessoas começaram ase roubar e a roubar as empresas estatais para sobreviver num sistemaque não funcionava.

Os líderes do país reconheceram a necessidade urgente de animara economia. Como passo inicial, cortaram gastos militares. Também co-meçaram a fazer empréstimos pesados de agências internacionais e plei-tear investimentos de empreendedores estrangeiros. As reformas recebe-ram suplementos vindos de fora: o dinheiro de exilados cubanos queentrava no país aumentou exponencialmente à medida que percebiam aextensão das necessidades de suas famílias. As remessas mensais agoraacrescentam centenas de milhões de dólares ao produto nacional brutomediante a compra de produtos pelos consumidores em lojas do gover-no.3

A crise econômica teve efeitos adversos na vida de muitos músicos.Num país que experimentou escassez de suprimentos antes mesmo de1989, equipamento para gravação e amplificação, transporte e os pró-prios instrumentos raramente são postos à disposição pelo governo. Asescolas de música careciam de materiais básicos (instrumentos, óleo deválvula, cordas, papel pautado, lápis) para seus alunos; em muitos ca-sos, eles tinham de usar seus materiais. Artistas consagrados podem vi-ver bem, mas quem lutava para começar sua carreira se deparava commuitos obstáculos, inclusive concorrência selvagem. A música represen-ta um terreno potencial para a salvação econômica aberto a qualquerum. Por decorrência disso, as cidades cubanas foram inundadas commúsicos amadores e semiprofissionais. Tocam por gorjetas, oferecemaulas de música e dança, vendem instrumentos ou gravações caseiras etêm a esperança de, enfim, atrair a atenção de empreendedores estran-geiros.

Tais tendências econômicas foram ideologicamente duras de su-portar até para apoiadores leais da revolução. Quem se sacrificou pordécadas para construir uma sociedade melhor com base, sobretudo, emprincípios marxistas agora vive num contexto radicalmente distinto. Aspolíticas são incertas, e as promessas de mudanças progressivas feitaspelos líderes parecem ser contraditas por ações recentes. Fidel e RaúlCastro denunciam o imperialismo ianque, porém, ao mesmo tempo, fa-zem concessões a Sol Meliá Investments, da Espanha, a Sherritt In-ternational, do Canadá, e a outros inumeráveis conglomerados. Ao lon-go do espectro político, os cubanos não sabem no que acreditar ou mes-mo como descrever a sociedade em torno deles. O resultado tem sido osurgimento de uma crise de valores fundamental.

3 Cf. MONREAL, Pedro. Lasremesas familiares en la eco-nomia cubana. Encuentro, v.14, out. 1999, p. 50. Aparen-temente, o valor das remes-sas chegou a U$ 800 milhõesem 1996, mas tem decrescidoum pouco desde então, cf.LYNN, Sophia (ed.). Cuba/Info, v. 9, n. 1, Washington D.C., John Hopkins UniversityCuba Exchange Program, 15jan.1997, p. 7. Entretanto, ain-da hoje Monreal observa queo montante de dinheiro estran-geiro remetido a Cuba a cadaano é uma soma muito maisalta do que o total de saláriospagos pelo Estado aos funci-onários no mesmo período.Até o momento, não está cla-ro se a legislação de Bush dejulho de 2004 vai restringir ofluxo de remessas.

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Crescimento do turismo

Tão impressionante quanto a capitalização da economia foi a rápi-da expansão do turismo. Na maior parte do período socialista, o PartidoComunista Cubano (PCC) desaprovou o contato com visitantes estran-geiros. As autoridades sugeriam que interações desnecessárias poderi-am comprometer a segurança nacional. Também acreditavam que osturistas poderiam difundir valores capitalistas prejudiciais ou outras ide-ologias que poderiam impedir o progresso do futuro comunista. Pelo quese diz, a indústria do turismo das décadas de 1970 e 1980 foi mínima enão muito favorável. O governo cobrava pouco pelos quartos de hotéis,mas oferecia um serviço ruim e nada fazia para estimular visitas. Houvepoucos intercâmbios acadêmicos com países capitalistas.

No começo da década de 1990, o turismo surgiu como estratégiapara a sobrevivência da economia. Em vez de desencorajar visitas es-trangeiras, o governo reverteu tal política e começou a incentivá-las, in-clusive as da comunidade de exilados. Alguém familiarizado com a Cubade épocas anteriores ficará chocado com o grau de desenvolvimento re-cente nesse setor. No decênio de 1990, o Aeroporto Internacional JoséMartí se tornou uma estrutura multiterminal três a quatro vezes maiorque seu tamanho original. A empresa Cubana de Aviación não usa maisos obsoletos aviões de passageiro soviéticos, e sim aeronaves novas e re-luzentes de fabricação francesa. Casas noturnas, bares e restaurantessão inaugurados com freqüência. O governo vende pacotes turísticos forade Cuba, atraindo visitantes potenciais com panfletos e websites agradá-veis e de estilo ocidental.

O número crescente de visitantes beneficiou os anfitriões, resultan-do noutras oportunidades de emprego. Contudo, produziu conseqüên-cias desagradáveis para a população. Havana e outras cidades são cadavez mais divididas em áreas de entretenimento para moeda estrangeiradestinadas, primeiramente, a turistas e em áreas para cubanos. As me-lhores praias, hotéis, cabarés e casas noturnas, outrora disponíveis a to-dos, agora são “zonas dolarizadas”. O resultado é um sistema de apartheidmusical em que muitos shows não podem ser vistos pelos moradores dailha simplesmente porque custam muito. Esse tipo de segregação come-çou nos anos 1980, todavia se acentuou muito mais na década passada.

Espaços de entretenimento mais populares em Havana (as casasde cultura, o café Hurón Azul, na Unión de Escritores y Artistas de Cuba/Uneac, La Tropical, o pátio do Conjunto Folklórico Nacional, os showsde matinê nas Casas de Música no centro de Havana e Miramar) agoracobram a entrada de estrangeiros em dólar, mas permitem que cubanospaguem para entrar com moeda nacional. Esses são alguns dos únicoslocais onde cubanos e outras pessoas podem ir juntos ver os eventos comcerta facilidade. O igualitarismo deles é atraente, porém ainda assim fo-ram afetados negativamente. Às vezes paira uma tensão no ar das casasnoturnas menores que afeta as relações pessoais. Há os aproveitadoresque as freqüentam a fim de vender charutos ou rum roubados de lojasdo governo. Outros chegam com a intenção explícita de fazer amizadecom um estrangeiro que lhes pague bebida ou os convide para comer.Garotas procuram homens propensos a retribuir sexo com dinheiro oupresentes4. Em geral, ficou cada vez mais difícil para um estrangeiro

4 Desde a década de 1990, aprostituição em Cuba recebeuuma significativa atenção aca-dêmica. É um tópico pertinen-te a este estudo porque a pros-tituição ganha espaço no con-texto dos eventos musicais eporque o país ficou conheci-do em certos círculos comoum destino para o “turismosexual”. Contudo, é difícil fa-zer generalizações sobre aprostituição cubana. Nem to-das as mulheres (ou todos oshomens) têm uma atitude in-flexível e mercenária em rela-ção a seus eventuais clientes,exigindo pagamentos especí-ficos em dinheiro. Algumasestão honestamente interessa-das em fazer um amigo es-trangeiro; outras talvez quei-ram se apaixonar e se casarcom um estrangeiro a fim dedeixar a ilha. As “prostitu-tas”, portanto, comportamuma gama imensa de expec-tativas. Uma complicação ex-tra é que as atitudes relativasà sexualidade nem sempre sãotão conservadoras em Cubacomo em muitas partes daAmérica Latina.

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traduçãoestabelecer relações pessoais normais e sem interesses com cubanos nos

lugares onde ele mais os encontra.Ariana Hernández-Reguant concluiu recentemente seu estudo so-

bre uma emissora cubana, a Radio Taíno, e sua transição para o formatocomercial, em 1994. Seu trabalho é uma excelente introdução em minia-tura ao tipo de mudanças que acontecem na indústria do entretenimen-to. A autora descreve o propósito da nova rádio Taíno de apresentaruma imagem de “normalidade” ao mundo capitalista e entreter turistas.Diferentemente das outras rádios, ela não veicula notícias políticas e toca,em primeiro lugar, música dançante. Foi a primeira a se capitalizar ven-dendo anúncios publicitários desde os anos 1960. Inesperadamente, opúblico principal da Taíno passou a ser não os estrangeiros, mas jovenscubanos “cansados das batalhas ideológicas” e que “apreciavam o tomsuperficial da rádio”5. A história da Taíno é um olhar fascinante para omodo como administradores indicados pelo governo lutam para equili-brar os interesses de seus patrões comerciais (estrangeiros donos de ho-téis, distribuidores de cerveja, agentes de turismo) e as ordens do ComitêCentral do PCC.

Expansão da indústria musical cubana

Uma das ironias dos últimos dez anos é que o início da crise econô-mica mostrou ser, em muitos sentidos, a sorte na desgraça na indústriamusical cubana. A venda de fitas cassetes e CDs fora de Cuba aumentousignificativamente, apesar do embargo comercial. Nas principais lojasinternacionais de discos, os lançamentos cubanos representam hoje umaporcentagem relevante dos produtos latinos disponíveis — cerca de 25%nos Estados Unidos, onde virtualmente não existiam antes de 1990. Emparte, tais mudanças resultam de transformações políticas na ilha. Ossocialistas estão francamente interessados em atender ao mercado capi-talista; e isso nunca fora objeto de preocupação para eles, muito menosuma meta prioritária. O aumento na circulação da música resultou, tam-bém, da decisão do Congresso dos Estados Unidos (EUA) de facilitar aregulamentação da cultura cubana nesse país. Surpreendentemente, taispolíticas tiveram apoio da direita e da esquerda do sistema político dosEUA.

Em 1988, o deputado democrata Howard Berman, da Califórnia,apresentou uma emenda à Trading with the Enemy Act (lei de comérciocom o inimigo), legislação primária que impõe restrições à atividadecomercial com Cuba. Aprovada como parte do Omnibus Trade Bill (pro-jeto de lei do comércio) desse ano6, a emenda foi criada por ele parafacilitar o intercâmbio de idéias entre Cuba e EUA. Conhecida comoEmenda Berman, ela isentou produtos informativos do embargo e per-mitiu a venda direta de livros, trabalhos artísticos, filmes e música entreos dois países pela primeira vez desde o início da década de 1960. Bermane seus apoiadores abriram caminho para que gravadoras dos EUA e deoutros países começassem a lançar a música cubana nos EUA e para quegrupos cubanos se apresentassem lá mais facilmente.

Quase ao mesmo tempo, Cuba começou a reestruturar sua indús-tria musical como parte de uma estratégia para sobreviver ao colapso dobloco oriental. Em 1989, criou uma agência, a Artex, que permitiu às

5 HERNÁNDEZ-REGUANT,Ariana. Radio Taíno and theglobalization of the cuban cultureindustries. PhD dissertation –University of Chicago, Chica-go, 2002, p. 77.

6 Ver Sec. 2502 (P.L. 100–418).Para maiores informações,acessar: <http://www.afrocubaweb.com/bermanamendment.htm>

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gravadoras estrangeiras adquirir e relançar músicas guardadas nos co-fres da gravadora nacional Egrem7. A Artex tinha uma considerávelautonomia e começou a recolher agressivamente direitos autorais nou-tros países e a supervisionar novos contratos. O licenciamento de músi-cas continuou a se expandir; o próprio Fidel Castro reconheceu o poten-cial econômico da indústria musical em 1993 e incentivou seu desenvol-vimento8. Mais recentemente, o governo criou várias subdivisões da Artex,incluindo a BIS Music9, estimulado pela explosão do interesse no reper-tório criado pelo documentário Buena Vista Social Club. Sem conseguircompetir com o enorme investimento de capital de firmas estrangeiras ede seus crescentes lucros, essas agências se concentraram no licen-ciamento de músicas da década anterior. As gravações domésticas au-mentaram em anos recentes, porém mais pela produção caseira dorap, do reggae e da trova acústica, e menos pelas iniciativas estatais.

Um resultado inesperado da capitalização da produção musical éque gravações de artistas exilados raramente ouvidas na ilha desde adécada de 1960 estão mais acessíveis. Durante anos, os cubanos que es-cutavam Osvaldo Farrés, Celia Cruz, Olga Guillot, Rolando Laserie eoutros tiveram de ouvi-los em suas casas, a portas fechadas; a músicadeles agora aparece nas prateleiras das lojas e nas ruas, em gravaçõespiratas. Lançamentos de salseros de Nova Iorque estão disponíveis tam-bém; em alguns casos, até discos de cubano-estadunidenses como GloriaEstefan e Willie Chirino, anticomunistas devotos! As forças do mercadoparecem ter rompido o que os cubanos chamam de “auto-isolamento”:políticas estatais que restringem a circulação doméstica de certos produ-tos. Na maioria dos casos, a preocupação com as vendas teve precedên-cia sobre o conteúdo ideológico das gravações.

A reintegração de Cuba às redes de comércio internacional foi umprocesso gradual que começou para valer nos anos 1980 e continua a seacelerar. Como era de se esperar, os primeiros selos musicais a promoverartistas contemporâneos foram europeus ou latino-americanos comoFonomusic, na Espanha, e Messidor, na Alemanha. O Fonomusic come-çou comprando licenças e lançando música revolucionária gravada an-teriormente; seu primeiro elepê foi um relançamento de Dias y flores, deSilvio Rodríguez, no fim da década de 1970. O Messidor deu um passoainda maior: produziu novos elepês, a começar dos anos 1980, com dis-cos dos músicos de jazz latinos Gonzalo Rubalcaba, Chucho Valdés eArturo Sandoval10. O British World Circuit, especializado na cultura ediáspora africanas, fez contatos na ilha por volta de 199011. Depois vie-ram Real World Records, de Peter Gabriel (1991), Corasón (México, 1992),Artcolor (Colômbia, 1993), Magic Music (Barcelona, 1994), Nubenegra(Madrid, 1994) e Eurotropical, subsidiária do selo Manzana, de Santia-go Auserón (Ilhas Canárias, 1996). Um panorama abrangente das dúzi-as de selos que assinaram contratos de negócio com Cuba na década de1990 vai além do escopo deste ensaio, mas incluiria a Caribe Productions,subsidiária da EMI, o selo Milan, subsidiário da BMG com sede em Paris,Aro, da Colômbia, Changó Records e Top Hits. Muitos colaboradoresantigos do Estado cubano, como Milan e Artcolor, encerraram seu con-tratos com a Egrem12, porém outros continuam a assiná-los.13

7 Cf. CANTOR, Judy. Bring onthe Cubans! Miami New Times,19-25 jun., 1997, p. 17.

8 Cf. PERNA, Vincenzo A.Timba, the sound of the Cubancrisis: back dance music inHavana during the períodoespecial. Doctoral thesis –University of London, Lon-don, 2001, p. 79.

9 Bis Music: estabelecida em1994, especializa-se em gra-vações mais antigas de artis-tas que moravam fora deCuba já em 1959 ou que dei-xaram o país desde então. Cf.DÍAZ AYALA, Cristóbal. Lamúsica cubana como pro-ducto exportable. Paper pre-sented at the Cuban ResearchInstitute conference, at Flori-da International University,2002.

10 É óbvio que, desde a déca-da de 1960, existiam outrosselos empenhados em relan-çar material pré-revolucioná-rio (Harlequin, Tumbao, Cu-banacán etc.). Em muitos ca-sos, não se tinham contatosoficiais com o governo, mas,em vez disso, acordos de ne-gociação de licença com com-panhias internacionais queoriginalmente gravaram osdiscos pré-revolucionários outratam as gravações comodomínio público.

11 Cf. REYES, José “Pepe” (au-tor e pesquisador). Entrevistaconcedida ao autor em 21 fev.2001 em Havana.

12 Cf. SUBLETTE, Ned et al.The missing Cuban musicians.Albuquerque: Cuban Rese-arch and Analysis Group, 2004(texto não publicado).

13 Ver DÍAZ AYALA, Cristó-bal. Música cubana: del areytoal rap cubano. 4. ed. San Juan:Fundación Musicalia, 2003, p.420–432, para outros comen-tários sobre o licenciamento damúsica cubana no exterior.

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traduçãoMudanças legais na produção musical em Cuba

A tendência a se autorizar os músicos a negociarem seus contratosde trabalho externos com liberdade foi controversa; mas começou antesque noutros setores da economia, simplesmente porque os músicos via-javam com mais freqüência. O contato com o mundo capitalista resultouinevitavelmente de propostas para tocarem e gravarem, muitas vezescom compensação mais alta do que a que recebiam em casa. Duranteanos, o Estado proibiu muitos artistas de aceitar esses convites. Todavia,na década de 1980, com a dissolução do monolítico Centro deContratações Artísticas e a criação de múltiplas empresas de adminis-tração musical, houve certa flexibilidade14. As agências do governo co-meçaram a oferecer benefícios especiais aos músicos mais proeminentesa fim de compensá-los pelo seu excepcional potencial de ganho. As con-cessões se consolidaram, no início dos anos 1990, como uma política maisou menos coerente aplicável a qualquer um.

Antes da descriminalização da moeda estrangeira, em 1993, asagências do governo agiram como representantes exclusivos dos artistasno exterior; obtiveram ganhos e fizeram acordos de venda e distribuiçãode música com pouco investimento individual. As autoridades sustenta-vam que, uma vez que o Estado pagava pela formação dos músicos esupria suas necessidades em Cuba, ele tinha o direito de se apropriar dosproventos da moeda forte deles e usá-los como quisesse. Para os músi-cos, muitas vezes a situação parecia ser de exploração e era motivo paradeserção. Quem ganhava dinheiro sem o governo saber se deparava comalternativas difíceis. Poderia tentar trazer o dinheiro clandestinamentepara Cuba; se fosse bem-sucedido, isso lhe permitiria gastá-lo no merca-do negro. Tal opção envolvia o risco de detenção e aprisionamento. Tam-bém poderia declarar o lucro para um agente alfandegário e receber umaporcentagem de volta em forma de títulos resgatáveis em lojas dolarizadasdo governo destinadas a diplomatas e turistas.

Desde a descriminalização, artistas que faziam turnês consegui-ram reconhecimento como trabalhadores independentes, um tipo espe-cial de cuentapropista15. O Estado não reclama mais direito a toda a ren-da que obtinham fora de Cuba; só uma porcentagem, em geral entre10% e 50%16. Os índices de tributação variam ostensivamente em funçãodo serviço fornecido pelos sindicatos dos grupos quando viajam (hospe-dagem, alimentação, seguro, roupas, transporte de equipamento, apoiotécnico). Em meados da década de 1990, quando as particularidades donovo sistema foram estabelecidas, muitos músicos o descreveram comoinjusto, reclamando dos ganhos líquidos baixos e da “corrupção bestial”de muitas autoridades17. Hoje em dia, a maior parte do sistema de tribu-tação funciona mais diplomaticamente e continua a melhorar.

Os artistas que produzem lucros fora de Cuba agora podem recla-mar pelo menos uma parcela dessa renda, mas o Estado ainda paga amaioria dos músicos que trabalham na ilha com a moeda nacional. Issovale independentemente de quem seja o público de seus shows/grava-ções ou se eles geram vendas em pesos ou dólares18, e vale, igualmente,para outros trabalhadores intelectuais: se alguém publica um livro ou dáuma palestra fora de Cuba deve declarar legalmente a renda de suamoeda forte, porém pode ficar com boa parte dela. Por contraste, se es-

14 Cf. ACOSTA, Leonardo(musicólogo e autor). Entre-vista concedida ao autor em6 fev. 2001 em Havana.

15 Que trabalha por conta pró-pria (N. T.).

16 CANTOR, Judy. Bring onthe Cubans!, op. cit., p. 24,aponta uma porcentagem deaproximadamente 10% a15%, contudo os documentosque vi sugerem que pode serconsideravelmente mais alta.WATROUS, Peter. A hip-swaying state-sponsoredexport. The New York Times,23 mar. 1997, p. 32, e RO-BINSON, Eugene. Last dancein Havana: the final days ofFidel and the start of the newCuban revolution. New York:Free Press, 2004, p. 171, sus-tentam que a arrecadação es-tatal pode chegar a quase 50%,com um adicional de 20% amais da renda bruta deduzi-do em muitas casas noturnasde propriedade do Estado pa-ra pagar quem trabalha nelas.Os contratos que regulam es-ses acordos são de difícil aces-so e por vezes variam de agên-cia para agência.

17 Considerem-se os comentá-rios do baixista Rafael Alma-zán citados em D’RIVERA,Paquito. Mi vida saxual. Puer-to Rico: Editorial Plaza Mayor,1998, p. 54: “Esses ‘convêni-os de trabalho’ são mecanis-mos de extorsão que o gover-no cubano aplica a sua gentepara conseguir dólares. Meuscompromissos eram: custearas passagens de avião, alo-jamento, manutenção, meusbens de trabalho, um repre-sentante artístico, o vestuárioetc., pelos quais a Egrem re-ceberia meu salário mensal emdólares em Cuba. Houvessetrabalho ou não.” Ao que sesupõe, Almazán quer dizercom essas palavras que aEgrem exigia que o equivalen-te de seu salário normal cu-bano em pesos fosse pago aela em dólares como pré-re-quisito para a autorização deviagem.

18 Cf. CASTAÑEDA, Mireya.Musical confrontation. Gran-ma International, 9 abr. 1997,p. 12.

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tão envolvidos na mesma atividade em Cuba mediante uma instituiçãodo governo, com freqüência recebem um valor em pesos cubanos relati-vamente baixo. Tal fato continua a motivar debate, em especial junto apessoas que trabalham no setor de turismo ou produzem mercadoriaspara serem vendidas em lojas dolarizadas. Lázaro Ros, por exemplo,afirmou que não conseguiu receber uma compensação justa por seusCDs e vídeos resultantes de contratos mediados por agências estatais19.Uma leitura cuidadosa dos contratos usados pelo Sindicato Nacional deTrabajadores de Cultura e pelo Consejo Nacional de Artes Escénicassugere que há tentativas de se dividir uma parte dos lucros da moedaforte com os artistas que trabalham dentro de Cuba; planos similaresestão sendo debatidos noutras áreas. Ao menos alguns artistas que seapresentam em espaços de perfil fundamentalmente turístico já recebemem dólares.

Comparativamente a outros setores, foram tantos os músicos po-pulares a ganhar ao menos parte de seus salários em moeda estrangeira,por meio de turnês e contratos estrangeiros, que eles logo se tornaramuma espécie de novos ricos. Membros de grupos de destaque na área damúsica dançante (dance bands) são imediatamente reconhecíveis por causado tipo de roupa que vestem, de suas casas suntuosas, de seus carrosnovos e importados, e assim por diante. Eles se situam no topo da ordemsocial existente, acumulando mais riqueza pessoal que músicos clássi-cos, médicos e até políticos e militares. Discrepâncias como essas, é ób-vio, ocorrem no mundo capitalista também; na verdade, derivam deste.Entretanto, em Cuba representam uma nova situação e criaram tensões.Cardiologistas não aceitam tranqüilamente viver em relativa pobrezaenquanto jovens cantores e dançarinos com pouca educação formal os-tentam sua opulência. Atitudes negativas em relação aos músicos, têmcom freqüência, implicações raciais também, pois a maioria das dancebands são compostas por cubanos negros. Um dentista branco que co-nheci em 1996, almoçando num quiosque, falava à exaustão sobre esseassunto para quem quisesse ouvir. Indignado, denunciava que muitos“ negritos batedores de tambores” viviam melhor do que ele como profis-sional liberal. Embora se possa admitir que isso seja um acontecimentoisolado, a experiência sugere que tais opiniões não são incomuns.

Como quem trabalha no exterior tende a ganhar mais do que quemtrabalha em Cuba, virtualmente todos os músicos tentam viajar. Obterpermissão para deixar o país é um processo entediante que envolve en-traves burocráticos, atrasos e altas comissões em dólares. Cantor20 obser-va que o Ministério da Cultura tem leis e regulamentos às vezes tão ca-prichosos que os artistas jocosamente se referem a ele como “Mistério daCultura”. Porém, desde 1995, verificaram-se, ao que tudo indica, núme-ros recordes de turnês estrangeiras. Mais de 3,5 mil dos quase 11,6 milgrupos musicais do país patrocinados pelo Estado — quase um terço —estiveram no exterior só em 199621. Em 1999, esses números tinham apa-rentemente duplicado, e os grupos que tocavam fora eram compostos,sobretudo, por músicos de salsa, son e música tradicional22. Van Van,Charanga Habanera, Irakere e outros grupos agora passam a maior par-te do ano na estrada; suas apresentações em Cuba se limitam a algunscompromissos23. E mais: musicólogos notáveis publicaram no exterior24,também por razões econômicas. Ganharam mais de editoras espanholas

19 Cf. HAGEDORN, KatherineJ. Anatomía del proceso fol-klórico: the ‘folkloricization’ ofafro-cuban. In: Religious perfor-mance in Cuba. Dissertation –Brown University, 1995, p.274.

20 CANTOR, Judy. A portraitof the artist as a communistbureaucrat. Miami New Times,v. 14, n. 11, jun. 1999, p. 22.

21 Cf. WATROUS, Peter., op.cit., p. 34.

22 Cf. PERNA, Vincenzo A.Timba: the sound of the cubancrisis, op. cit., p. 80.

23 Cf. ACOSTA, Leonardo. Elambiente musical en La Ha-bana de hoy. Texto mão publi-cado, s/d, p. 5.

24 Por exemplo, a antologia deGIRO, R. (ed.). Panorama de lamúsica popular cubana. Cali:Editorial de la Universidaddel Valle, 1995, lançada naColômbia, DÍAS PÉREZ, Cla-ra. Silvio Rodríguez: hay quienprecisa. Madrid: Música Mun-dana, 1995, e a colaboraçãode LINARES, María Teresa eNÚÑEZ, Faustino. La músicaentre Cuba y España. Madrid:Fundación Autor, 1998.

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traduçãoe mexicanas e evitaram os anos de espera para serem acomodados pela

indústria doméstica, desesperadamente carente de suprimentos. Pesqui-sadores proeminentes aceitaram convites para lecionar ou viver noutrospaíses e comumente passavam a metade do ano ou mais fora de Cuba.

Enfim, uma grande porcentagem de músicos cubanos decide, porbem, deixar seu país; opta pelo exílio oficial ou de fato25. O saxofonistaPaquito D’Rivera, ele mesmo um exilado, sugere que o governo contribuipara essa tendência ao dificultar as viagens26. O desejo frustrado dosmúsicos de ter mais contato internacional, combinado com os incentivoseconômicos, fez da vida no exterior uma obsessão. O número absolutode artistas que decidiram sair de Cuba em anos recentes é surpreenden-te. Os exemplos incluem Gonzalo Rubalcaba, que mora na RepúblicaDominicana e em Fort Lauderdale; o cantor de nueva trova Virulo, noMéxico; o trombonista Juan Pablo Torres, que foi para a Espanha em1992 e agora mora nos EUA; vários membros da dance band Dan Den,que desertaram quando estavam na Colômbia em 199327; o cantor Albita,que se mudou primeiramente para o México, depois para Miami28; oartista da nueva trova Donato Poveda, em Miami; os saxofonistas CarlosAberhoff (em Miami desde 1997) e Yosvanny Terry, em Nova Iorque;Alejandro Leyva, do NG La Banda, que desertou após um show noLincoln Center, Nova Iorque, em 199729; Manolín, “o médico da salsa”,que desertou em Atlanta, Georgia, em maio de 2001; Carlos Manuel, quedesertou através do México, em junho de 2003; e quatro membros de umgrupo de entretenimento, que desertaram em Berlin e Las Vegas, emnovembro de 200430. Note-se que, enquanto alguns indivíduos denunci-am a revolução e prometem nunca mais voltar, outros agem mais discre-tamente: mantém vínculos e retornam à ilha com alguma freqüência. Asrazões para sua deserção claramente são mais econômicas que políticas.Às voltas com tais problemas, o governo cubano, de início preocupadocom a eventual perda dos talentos, agora parece ter aceitado o “drenomusical”. Os formuladores das políticas de Estado entendem que o paístem muitos músicos aspirantes e que sempre aparece alguém para assu-mir o lugar de quem foi embora.31

Outra tendência desde os anos 1990 foi a erosão gradual do siste-ma de plantilla32, com todas as vantagens e desvantagens, e o movimentode volta à situação pré-1968, quando os artistas trabalhavam como agen-tes comissionados. Como reação aos salários relativamente altos dosmúsicos e sua tendência a evitar trabalhar para o governo, este gradual-mente está lhes oferecendo menos trabalho e reduzindo seus saláriosmensais pagos em pesos. A partir de 1999, ele não deu salário algum aartistas de maior destaque33. Essa mudança é uma bênção contraditória.Significa que as bandas estão mais livres para achar seus próprios em-pregos, trabalhar quando quiserem e determinar seus salários; mas tam-bém que a rede de seguridade à disposição delas está sumindo34. Cadavez mais os músicos fazem sucesso ou fracassam em função de seus es-forços, e não do esforço de sua união35. A mudança significa ainda que opapel do governo mudou: de patrão e protetor social para a de quemvive à custa alheia, muito mais próximo do papel da Internal RevenueService (IRS) nos EUA. As comissões que as bandas pagam às agênciasdo governo supostamente lhes dão direito a serviços promocionais, po-rém, na verdade, a maior parte desse fardo agora recai sobre os artistas.

25 Cf. ACOSTA, Leonardo, jácit. Entrevista concedida aoautor em 1 set. 1996 em Ha-vana.

26 Ver D’RIVERA, Paquito, op.cit., p. 176.

27 Cf. OROVIO, Helio (musi-cólogo). Entrevista concedidaao autor em 9 fev. 2001 emCuba.

28 Cf. GRAU, Adriene. Albitomostra que Cuba não é só sal-sa. Folha Ilustrada. 15 nov.1994, p. 10.

29 Cf. LYNN, Sophia (ed.). Cu-ba/Info, v. 9, n. 10, Washing-ton D. C.: John Hopkins Uni-versity Cuba Exchange Pro-gram, 31 jul. 1997, p. 9.

30 Informações sobre deserçãoem massa estão no The NewYork Times, 5 nov. 2004, p.A12. DÍAZ AYALA, Cristó-bal. Música cubana del areyto alrap cubano, op. cit., p. 404, con-tém uma lista mais completade artistas exilados.

31 Cf. ACOSTA, Leonardo, op.cit.

32 Os “músicos de plantilla”são empregados em tempointegral que se vinculam auma agência de contrataçãoartística do Estado que funci-ona como uma empresa. Emtroca de uma quantidade fixade apresentações (geralmenteentre 6 e 16), eles recebem umaremuneração mensal bastan-te significativa. A empresa,por sua vez, determina ondee com que freqüência os artis-tas atuam.

33 Cf. CANTOR, Judy. A por-trait of the artist as a commu-nist bureaucrat, op. cit., p. 22.

34 Cf. VALDÉS SANTAN-DREU, Celso (violinista daOrquestra Aragón). Entrevis-ta concedida ao autor em 28fev. 2001 em Havana.

35 ROBINSON, Eugene. Lastdance in Havana, op. cit., p. 91–94 e p. 181–185, apresenta umrelato interessante de um gru-po — o Ébano — e suas tenta-tivas de se estabelecer e man-ter uma orquestra nos anos de1990.

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Um desdobramento interessante foi a recente criação da Fundação deDesenvolvimento Cultural pelo Ministério da Cultura, a fim de redire-cionar os ganhos da música comercial para empresas artísticas que nãogeram muita moeda estrangeira. Aí estão incluídas as artes clássicas, oteatro experimental e o folclore regional.36

Composições do período especial

No contexto da crise econômica, a música popular se tornou umveículo importante para expressar as preocupações com o futuro do país.A relevância da música como forma de arte geradora de renda resultouem novas oportunidades para a crítica social. Como foi dito, mais que seconteúdo ideológico, a mercantilidade e as vendas são hoje fatores cen-trais para se determinar se uma música será gravada ou divulgada37.Por causa disso, uma variedade maior de gêneros comerciais surgiu, fre-qüentemente com influências externas, e mais assuntos são discutidos nasletras das músicas. Uma liberdade de expressão maior se evidencia empublicações “intelectualizadas” como Temas e La gaceta de Cuba38 e nou-tras mídias como o cinema39. O próprio ministro da Cultura falou comliberdade e sem medo contra a censura; manifestou interesse em mantervínculos com artistas exilados e, de certa forma, ajudou a mudar o tom dodiscurso cultural40. As contradições entre a ideologia socialista e as realida-des culturais do presente foram assunto de muitas discussões também.41

Várias tendências são evidentes nas letras da música popular cu-bana hoje. Como foi sugerido, foram escritas músicas que trataram maisdiretamente das dificuldades enfrentadas pela população. Referênciasao desespero, ao isolamento e ao sentimento de insignificância, ao crimeou à violência, às tensões raciais, à perda de esperança e à direção polí-tica são bastante comuns, em especial no rock e na novíssima trova42.Relações de gênero são outro tópico que surgiu, por alusão a relaçõesentre homem e mulher e homossexualidade. Alan West-Durán analisoucomposições de rap — um movimento novo importante — que incluemcomentários mordazes sobre as relações raciais, algo a que ele se referecomo “chacota com consciência”43. Hermanos de Causa, Los Paisanos,Obsesión e muitos dos mais de 500 grupos similares que existem hojemostram um alto grau de consciência racial44, criticando as doenças queos afetam mais de perto que a pessoas de gerações anteriores. Fundemlivremente influências musicais estrangeiras com ritmos e instrumentoslocais. Outra abordagem da tendência recente na produção musical foievitar temas políticos e ter um foco exclusivo em músicas com letra deconteúdo pessoal. A apresentação de boleros, de arranjos da trova tra-dicional e repertório de dança com ênfase em experiências subjetivas eemocionais pode ser vista como relevante: uma rejeição a políticas cultu-rais que superpriorizavam a política.

À tendência dos compositores de se expressarem de um modo po-tencialmente controverso correspondeu um público que, com freqüên-cia, lia as letras da cultura pop como subversivas ou paródicas, indepen-dentemente da intenção do autor. Um exemplo de 1996 é “El baile deltoca-toca”, de Adalberto Alvarez, cuja letra muitos entenderam comouma referência ao “contato” financeiro associado com suborno e con-tratos de negócio ilícitos. Da mesma maneira, os ouvintes adotaram a

36 Cf. CANTOR, Judy. A por-trait of the artist as a commu-nist bureaucrat, op. cit., p. 22.

37 Cf. ACOSTA, Leonardo, jácit. Entrevista concedida ao au-tor em 1 set. 1996 em Havana.

38 Temas, em especial, desdo-brou-se num jornal acadêmi-co ativo que regularmente pu-blica discussões sobre assun-tos anteriormente tidos comotabus (as novas ondas de exí-lios, o futuro do pensamentomarxista, as relações raciaisdomésticas, a censura). Acres-cente-se à sua atratividade ofato de que ele pede contri-buições de muitos estudiososestrangeiros (Noam Choms-ky, Jorge Duany, Louis Pérez,Marifeli Pérez-Stable), bemcomo de cubanos. Um artigosobre música que mostra o es-pírito de abertura intelectualdo jornal é HERNÁNDEZ,Rafael (ed.). La música popu-lar como espejo social. Temas,n. 29, abr.-jun. 2002..

39 Diane Soles escreveu um re-lato fascinante da criação eexibição de Alicia en el pueblode maravillas, filme do começoda década de 1990, dirigidopor Daniel Díaz Torres. O tra-balho dela demonstra tanto aliberdade maior dos artistaspara criarem trabalhos contro-versos quanto as restriçõesartísticas contínuas a que elesestão sujeitos. Soles observaque, graças à crítica à buro-cracia, “Alicia levou o Parti-do Comunista Cubano a mo-bilizar centenas de [membros]do partido a lotar os cinemasde Havana e zombar do fil-me.” Depois de quatro dias,os membros do partido o reti-raram dos cinemas. SOLES,Diane. She who laughs with,laughs best: Bakhtin, Alice inwondertown, and evolutio-nary panic in Cuba, 1991 Ma-nuscrito não publicado, 1997,p. 1. A liderança do InstitutoCubano del Arte e IndustriaCinematográficos (Icaic) su-portou bem o protesto dosconservadores e, desde então,mostrou o filme repetidas ve-zes em festivais de cinema.

40 Ver, por exemplo, DÍAZ,Elisabet e DEL PINO, Ama-do. Oficialismo o herejía? En-trevista a Abel Prieto. Revo-lución y cultura 1996, n. 1-2,1996.

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traduçãofrase “prepare-se para o que vai vir”, da música de Manolín “Voy a mi”,

de 1995, como referência irônica ao estilo autocrático de liderança deCastro no período especial. Em alguns casos, as músicas populares dopassado também serviram como veículos para a sátira. O bolero “Y”, deMario de Jesus, de início circulou no período pré-revolucionário, masadquiriu novo significado na Havana da década de 1990. Vizinhos queconheci cantavam uma versão cuja letra mostrava ansiedade quanto àfalta de alimento barato. Alguns versos bastam para evidenciar a essên-cia da mudança.

Eis a letra original:

¿Y qué hiciste del amor que me juraste E o que você fez com o amor que me[ jurou?

Y qué has hecho de los besos que te dí? E o que você fez dos beijos que te dei?¿Y qué excusa puedes darme si faltaste? E que desculpa vai me dar se você

[ desapareceu?Y mataste la esperanza que hubo en mí E você matou a esperança que eu tinha

Eis a letra modificada:

¿Y qué hiciste de los pollos que ofreciste E o que você fez da galinha que me[ ofereceu?

Y qué has hecho de la carne que había aquí? E o que você fez da carne que estava aqui?¿Y qué excusa puedes darme de la leche? E que desculpa vai me dar se o leite

[ acabou?Y me matas hoy de hambre porque sí E hoje me mata de fome assim

O tema do consumismo apareceu em muitas músicas. Em algu-mas, notadamente naquelas de artistas da nova e da novísima trova, asalusões às vendas se misturam com sugestões de que Cuba pode estar se“vendendo” conceitualmente ou espiritualmente, perdendo o compassomoral. Os não envolvidos com música dançante são especialmente críti-cos nesse sentido, talvez porque se sintam marginalizados pelacentralidade do repertório da dança na nova economia ou porque vêemo espírito da trova como antítese da comercialização. Exemplos de músi-cas que abordam as implicações da economia dolarizada incluem “Pala-dar”, de Silvio Rodríguez, um bolero introspectivo do álbum Dominguez,e “Tropicollage”, de Carlos Varela, um rock que usa piano montunos emestilo son como meio de se referir iconicamente ao negócio do turismo.As músicas dançantes que tratam do consumismo tendem a apresentaresse tema com humor, como seria de se esperar. A letra de “La turísti-ca”, da Charanga Habanera, fala de uma mulher adorável que ignora oshomens, exceto os que podem levá-la a espaços dolarizados e caros. Amídia estatal baniu o álbum onde ela apareceu pela primeira vez, emparte porque a arte da capa consistia de uma nota de US$ 100. Van Vangravou uma música similar de Rodolfo Cárdenes, “Maníaca por com-pras”45, na qual um homem reclama dos gastos sem-fim de sua namora-da em lojas dolarizadas.

Por causa do grande número de músicos em Cuba e o acesso limi-tado a estúdios, muitos nunca gravaram. Por ironia, muitas vezes sóapós terem deixado o país é que jovens compositores conseguiram gra-

41 Ver, por exemplo, FAYA,Alberto et. al. Controvérsia: lamúsica y el mercado. Temas,n. 66, abr.-jun. 1996..

42 HERNÁNDEZ, Rafael (ed.).La música popular como es-pejo social”, op. cit., p. 66, fazreferências a músicas e discosespecíficos em que esses te-mas aparecem.

43 WEST-DURÁN, Alan.Rap’s diasporic dialogues:Cuba’s redefinition of black-ness. Journal of Popular MusicStudies, v. 16, n. 1, Malden,Blackwell, 2004, p. 21.

44 Ver idem, ibidem, p. 9. Verainda FERNANDES, Sujatha.Fear of a black nation: localrappers, transnational cros-sings, and state power in con-temporary Cuba. Anthropolo-gical Quarterly, v. 76, n. 4, Fall2003..

45 In Juan Formell y Los VanVan. CD Te pone la cabeza mala.Madri, Emi-Odeon, 1997.

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var músicas sobre sua experiência em casa. Uma antologia de Madri46,por exemplo, adequadamente chamada Habana oculta, foi constituída demúsicas de um coletivo livre de entusiastas cubanos do rock47. Esses eoutros lançamentos posteriores48 resumem as composições da juventudeda década de 1990 em diante: são ecléticas e cosmopolitas; bebem norhythm & blues, no son, no pop panlatino-americano e noutras fontes deinspiração fundidas com elementos do folclore tradicional. Embora vi-vam no exterior, esses artistas têm um público ávido em Cuba que, nainformalidade, faz circular cópias de seus discos, e muitos deles voltamocasionalmente à ilha para tocar. Sua popularidade no país mostra atéque ponto a “música nacional” é cada vez mais parte de um diálogointernacional mais amplo que inclui a diáspora cubana.

Músicos mais jovens tendem a usar harmonias estendidas, de in-fluência jazzística e ritmos complexos. Vários tipos de ostinatos apare-cem com destaque, um indício das influências estéticas derivadas daÁfrica. Exemplo destas são o acompanhamento de guitarra em “Gua-guancó para Daniela”, do disco Habana oculta, e o acompanhamento im-provisado de quatro tempos que serve de base para “Chachachá cachy-bache”, dos Los Chachivache49. A improvisação vocal e instrumentalainda é um traço central em muitas músicas, a despeito de sua elabora-ção em estúdio. Os músicos criam estilos individuais que revelam umamálgama pós-moderno agressivo. Os padrões de acompanhamento dabossa nova brasileira em “Con tanta presión”, as batidas de reggae em“Paula”, as fusões de jazz-rock à la Santana, com guitarra alta em“Enfermera”, o baixo funk em “La cara de mi suerte”, o som padrão dorhythm & blues de “Quien pedirá”, complementado pelo órgão estilo BillyPreston, e as adaptações dos gêneros de percussão folclórica para violãoem “La conga” representam só uma fração de muitos outros sons conti-dos em Habana oculta. O grupo Angelitos Negros, também, é algo típicodos artistas recentes, e suas músicas se embasam, em parte, no soul e nogospel afro-americano.

Além do mais, as letras no álbum Habana oculta são sofisticadas,aferindo os ganhos da revolução nas artes e na educação, embora mui-tas músicas critiquem aspectos da experiência socialista. O excerto a se-guir vem da canção “Ritmo sabroso”, de José Luís Medina, uma dasmais agudas politicamente.

Está este ritmo sabroso Este ritmo está saborosoMe robaron la cartera y el carnet Roubaram minha carteira e minha

[ identidadeEstá este ritmo sabroso Este ritmo está saborosoSubieron las tarifas de nuevo este mes Aumentaram as tarifas de novo este mêsEstá este ritmo sabroso Este ritmo está saborosoEstá la gente idiota inventando qué Essa gente idiota está inventando o que

[ hacer [ fazerEstá este ritmo sabroso Este ritmo está saborosoViolaron a una niña y no llegaba a diez Violaram uma menina que nem

[ completou 10 anosEstá este ritmo sabroso Este ritmo está saborosoEstá una suicida colgando de mí pared Tem um suicida dependurado no meu

[ muro

46 Luís Alberto Barbería et. al.CD Habana oculta. Madrid,Nubenegra, 1995.

47 Como foi dito, muitos mú-sicos cubanos talentosos hojevivem no exterior. São os can-tores e instrumentistas ouvi-dos em Habana oculta, assimcomo os artistas da novíssimatrova Gema e Pavel, José LuísEstrada, do duo Los Cachiva-che, e o grupo Orichas.

48 A exemplo de Luís AlbertoBarbería et. al. CD Habana abi-erta. Madrid, BMG, 1997, e oCD Habana abierta: 24 horas.Madrid, BMG, 1999, produ-zido por Gema Corredera ePavel Urkiza para o selo Ario-la. Em conversa comigo, amusicóloga Susan Thomas,da University of Georgia, lem-brou que muitas dessas pes-soas aparecem em todos es-ses CDs e que a mudança denome do grupo apenas refletedisputas legais entre Nube-negra e BMI.

49 Ouvir José Luís Estrada eEugenio Carbonell. CD. Loscachivache. Madrid, EstudiosSonoland, 1994 (não disponí-vel comercialmente).

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traduçãoEstá este ritmo sabroso Este ritmo está saboroso

Está un balsero despidiéndose otra vez Tem um balsero se despedindo de novo

Está el poder ahogándose entre la verdad O poder está afundando entre as verdadesEstá la bolsa negra cerrando la llave O mercado negro está fechando as portasEstá una madre llorando qué cocinar Uma mãe está chorando: nada para

[ cozinharEstá un viejo borracho tirado en la calle Tem um velho bêbado estirado na ruaEstá hablando en la tele quien tú sabes ... Na tevê está falando você sabe quem...

Artistas mais novos “representam” o repertório tradicional demaneiras fascinantes, demonstrando grande interesse em músicas dopassado, porém alterando-as radicalmente. No caso de grupos comoVocal Sampling50 ou Vocal LT51, isso pode envolver a adaptação deboleros pré-revolucionários, rumbas folclóricas ou músicas dançantes paraum grupo a cappella52 e imitação de sons de percussão e instrumentosmelódicos com a boca. O duo Cachivache se inspira em “Son de la loma”,de Miguel Matamoros, mas a transforma numa composição modal len-ta. O Orichas, radicado em Paris, cria misturas notáveis de material nor-te-americano e cubano, sampleando “guajeos” (ostinatos dançantes) doperíodo pré-revolucionário e usando-os como base para vocais de rap53.Instinto, outro grupo de rap, composto só por mulheres, lança mão demúsicas da década de 1930 como a composição de Guillén e Grenet,“Quirino con sus tres”, como meio de reforçar a importância das artistasem geral e de religiões afro-cubanas na cultura de Cuba.54

Impasses da vida cultural cubana

A Cuba socialista sobreviveu à dissolução da União Soviética, po-rém a transição para a independência fiscal não foi fácil. Sob a influên-cia soviética, o país produziu basicamente açúcar, rum e charutos, envi-ando-os para o bloco soviético em troca de produtos manufaturados. Aperda de seus antigos parceiros de negócio deixou a economia cubanaduplamente prejudicada. Sua falta de diversificação significa que o Es-tado não pode mais oferecer produtos antes importados do Leste Euro-peu. Seu isolamento na “nova ordem mundial” mostrou que estabelecervínculos comerciais alternativos foi problemático. Por conseqüência, apopulação sofreu como nunca com o embargo dos EUA. O governo seviu forçado a fazer empréstimos pesados de agentes europeus e asiáti-cos, aumentando o déficit nacional em níveis perigosos55. Furacões, se-cas e escassez de equipamentos e materiais se combinaram para reduziros ganhos da produção de açúcar56. Esses problemas estruturais são difí-ceis de serem superados com rapidez, em que pese a nova renda geradapelo turismo e pelas remessas estrangeiras.

Muito do que o socialismo já significou para Cuba — igualdade derenda, sacrifício para o bem comum, criação gradual de uma sociedademais humana — agora está posto em questão à medida que o país adotaum sistema econômico misto. A fé na experiência revolucionária arrefe-ceu precisamente porque, com o passar dos dias, seus princípios refleti-ram menos diretamente as experiências das pessoas. O discurso políticoe a realidade diária tendem a ser conflitantes cada vez com mais fre-

50 Ouvir, por exemplo, RenéBaños et al. CD Vocal Sampling:una forma más. New York,Warner, 1995.

51 Ouvir Carlos Díaz Lapor-tilla. Cassete Vocal LT. Hava-na: Artex, 2000.

52 Sem acompanhamento ins-trumental (N. T.).

53 Ouvir Nicolas Noochi et. al.CD Orichas: a lo cubano. MiamiBeach, Universal Latino Mu-sic, 2000.

54 Cf. WEST-DURÁN, Alan,op. cit., p. 28 e 29.

55 As estimativas feitas tem-pos atrás sugeriam que a dí-vida externa total, em 1999,ultrapassava 11 bilhões e que76% do pagamento de jurosestava em atraso. Cf. Cuba-News, v. 9, n. 2, fev. 2001, p. 4.

56 A produção de 3,2 milhõesde toneladas de açúcar em1997 e 1998 apresentou umaqueda de 50% ao ano. Cf. CubaInfo, v. 10, n. 3, fev. 1998, p. 9e 10.

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qüência. Como reação, os indivíduos se preocupam mais com seu bem-estar e o de suas famílias, e menos com outros problemas. A revoluçãopolitizou a vida tão completamente e por tanto tempo que muitos cuba-nos reagiram rejeitando a política por completo. Quem tem idade inferi-or a 40 anos — a maioria da população — revela muito pouco interesseem ideais sociais. Não tem nenhuma experiência com o passado capita-lista e considera como certas muitas mudanças positivas da revolução.Contudo, mais do que perceber as possibilidades para o futuro no siste-ma vigente, a maioria reconhece, acima de tudo, suas limitações e difi-culdades.

Os músicos estiveram à frente das mudanças econômicas recentes;em razão de seus vínculos com o setor turístico e o comércio internacio-nal, eles obtiveram uma proeminência inesperada e são vistos como apersonificação do capitalismo nascente57. Com efeito, muitos músicosligados à dança geraram controvérsias por causa de seu estilo de vidapretensioso e do modo como suas composições celebram o consumismo.Em geral, os debates atuais sobre a política para as artes tratam de ques-tões sobre como adaptar melhor o socialismo às novas condições que seseguiram ao colapso da União Soviética. O fato de o governo ter conce-dido aos músicos um controle maior sobre sua propriedade reflete tantoo envolvimento crescente do país com o mundo capitalista quanto a ten-são progressiva entre direitos individuais e coletivos.

Leonardo Padura Fuentes caracteriza as tendências culturais des-de a década de 1990 em três fatores fundamentais: a crise geral de pro-dução em setores não comerciais, uma certa ampliação da liberdade deexpressão e a crescente onda de exílios58. No que se refere à música, pode-se acrescentar a essa lista um fascínio intensificado pela cultura estran-geira e pelo potencial comercial da expressão artística, bem como o mo-vimento de licenciamento de música, as vendas e a distribuição parafora do país. A indústria musical se ampliou, mas seu crescimento resul-tou, em grande parte, do investimento estrangeiro, e não do governolocal. A gravação profissional de músicas, que esteve firme nas mãos dogoverno nacional, é agora cada vez mais controlada por empresários daEspanha, da França, da Grã-Bretanha e dos EUA. Por exemplo, no pre-sente, Cuba não tem condições para produzir CDs e precisa terceirizaresse serviço.

Os músicos ganharam e perderam de forma inesperada como par-te das mudanças dos últimos 15 anos. Os envolvidos com gêneros popu-lares levaram vantagem. Conseguem tocar uma gama mais variada deestilos, em particular os provenientes dos EUA, ao menos com a aprova-ção tácita do governo. Têm uma liberdade maior para enfocar critica-mente preocupações sociais. As possibilidades de viagem aumentaram.De fato, os músicos bem-sucedidos se tornaram a nova elite: estrelas defeição capitalista no meio de um país que luta para permanecer socialis-ta. Todavia, os músicos também perderam em certo sentido. Figurasmenos conhecidas enfrentam as dificuldades experimentas por todos oscubanos desde o início dos anos 1990: padrões de vida inferiores, salári-os inadequados, falta de moradia e suprimentos. Instrumentos e outrosprodutos ficaram mais escassos. Um governo que um dia apoiou umamplo espectro de atividades culturais, independentemente de seu po-tencial de venda, agora embasa suas decisões em fatores mais pragmáti-

57 Cf. HERNÁNDEZ-RE-GUANT, Ariana. Copyrigh-ting Che: art and authorshipunder cuban late socialism.Public Culture, v. 16, n. 1, 2004,p. 3.

58 Ver KIRK, John e PADURAFUENTES, Leonardo, op. cit.,p. 181.

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traduçãocos; e muito da rede de seguridade social que garantia saúde adequada e

cuidados após a aposentadoria aos músicos acabou.A quantidade de música ao vivo e casas noturnas aumentou, em-

bora a maioria dos espaços cobre ingresso em dólar. A disparidade declasse é visível: turistas e cubanos mais abastados freqüentam eventosmusicais; os desprovidos são excluídos. Estabelecimentos menores, mui-tas vezes, se associam à prostituição e outras atividades consideradasmoralmente condenáveis. Embora pareça exagerada, a citação a seguir,de Rafael Rojas, faz paralelos provocativos entre a Cuba da década de1950 e a do presente: “nesses tempos difíceis, vemos a ressurreição docabaré e do carnaval, da sensualidade e do hedonismo, do turista lascivoe da nudez do nativo, do prostíbulo e da loteria... Uma ponte é visívelentre a velha Cuba e a nova: o cadáver da revolução.”59

Ninguém refuta as mudanças radicais na produção cultural ao lon-go da década passada, porém alguns representantes do Ministério daCultura não admitem a contradição entre as políticas do presente e asdo passado. Alicia Perea, ex-diretora do Instituto Cubano de la Música,afirmou que socialismo e comunismo “não estão em conflito com con-sumismo”. Ela assevera que o socialismo significa “justiça na distribui-ção de riquezas”60, mas enfatiza a necessidade de gerar riquezas a fimde prover o povo com elas. A visão de Perea demonstra um pragmatismoque bem pode se provar vantajoso no futuro. Entretanto, muitas ques-tões que vêm à mente merecem mais discussão: o domínio atual de grava-doras estrangeiras na indústria musical cubana é inevitável? É possívelreavivar a indústria doméstica? Se sim, como situá-la e situar sua produ-ção em face das empresas estrangeiras? Qual é papel — se é que há um— da ideologia cubana na música do novo milênio? E qual é o papel dascríticas incontáveis à produção musical capitalista que os formuladoresdas políticas de Estado fizeram durante anos em documentos da plata-forma do Partido Comunista Cubano? Como o país vai evitar problemasrelativos à influência do consumismo em anos vindouros?

As tensões políticas com os EUA continuam a restringir a expan-são comercial, inclusive a dos artistas. Carlos Varela, resumidamente,parafraseou a visão de quase todos os cubanos no que se refere a esseaspecto da política internacional norte-americana, na canção “La políti-ca no cabe en la azucarera”, com a repetida frase “foda-se seu bloqueio”61.Longe de promover a democracia e o respeito aos direitos humanos, talantagonismo serve apenas para legitimar as limitações do governo soci-alista ao ativismo político e à liberdade de expressão. Por outro lado, ogoverno de Cuba toma igualmente decisões caprichosas e míopes. Nodomínio da cultura, elas incluem sua indisposição, até pouco tempo atrás,a apoiar intensivamente a projeção da cultura cubana no mundo capita-lista via turnês e licenciamentos. Artistas e músicos que há muito deseja-vam se promover não podiam fazê-lo até recentemente. O Estado criououtras oportunidades de carreira, mas elas, em larga medida, foram di-tadas mais pela necessidade econômica do que por uma bem refletidaredefinição de rumos. É preciso que um novo conjunto de diretrizesabrangentes e amistosas, do ponto de vista socialista, libere a atividadeartística individual e permita à própria Cuba permanecer com um papelvital na produção musical e salvaguardar continuamente os gêneros lo-cais e as instituições educacionais das influências negativas do mercado.

59 ROJAS, Rafael. El arte de laespera: notas al margen de lapolítica cubana. Madrid: Coli-brí, 1998, p. 134.

60 Apud CANTOR, Judy. Aportrait of the artist as a com-munist bureaucrat, op. cit., p.18.

61 Carlos Varela. CD Como lospeces. 1994. Havana, Bis Mu-sic, 1994.

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Nota: Este ensaio é uma versão mais curta, elaborada especialmen-te para a ArtCultura, de um capítulo do livro Music and revolution: cultu-ral change in socialist Cuba, publicado em 2006 pela University of Cali-fornia Press. O projeto da obra enfoca as políticas culturais da revoluçãocubana em geral. Seus objetivos centrais são: 1) documentar o impactoda turbulência política e social na esfera cultural, observando-se suasdistintas fa-ses e as mudanças políticas no governo; 2) comparar as me-tas culturais e as iniciativas discutidas em documentos e materiais relati-vos à plataforma do Partido Comunista com comentários de artistas eintelectuais que vivem na ilha; 3) analisar a música como espaço de ne-gociação estética e ideológica entre os indivíduos (com seus gostos, seusinteresses e sua visão política singulares) e as instituições estatais. O ca-pítulo introdutório oferece um panorama desses temas, abordando pri-meiramente o discurso do governo cubano sobre a cultura e discutindotanto as artes expressivas locais no contexto revolucionário quanto a per-cepção oficial de Cuba sobre a produção musical em países capitalistas.

Os capítulos 1 a 3 são organizados cronologicamente e forneceminsights da natureza radical da reorganização musical que acompanhoutransformações políticas como as dos anos de 1950. O capítulo 1 se voltapara a década de 1950. Discute a natureza da produção e gravação demúsicas à época e indaga como um país em meio a uma guerra civilcada vez mais violenta poderia, ao mesmo tempo, ter desenvolvido talabundância de gêneros musicais de influência internacional. O capítulo2 documenta as várias mudanças culturais que ocorreram nos primeirosanos da revolução. A criminalização do jogo, a abolição dos acordosinternacionais relativos a direitos autorais, o declínio do turismo e rela-ções internacionais cada vez mais tensas são alguns dos fatores que leva-ram à reorganização das artes. O capítulo 3 investiga o desenvolvimentodas iniciativas governamentais e agências ligadas à cultura, as quais in-cluem a criação do Ministério da Cultura e de um sistema nacional deeducação musical, bem como diversas tentativas de inspiração marxistade integrar arte e música à vida do cidadão médio. Esse capítulo tam-bém avalia as vantagens e desvantagens da vida do músico na Cubasocialista, inclusive questões pertinentes à liberdade artística.

Os capítulos 4 a 7 apresentam uma série de estudos de casos degêneros ou repertórios musicais particulares, oferecendo insights das ex-periências de músicos individuais no contexto revolucionário. O capítu-lo 4 retoma a história da música dançante desde 1959. Assinala que, aolongo dos anos, a liderança cubana efetivamente tinha visões am-bivalentes da diversão, da música e, com freqüência, preferia apoiar ou-tros estilos. O capítulo 5 privilegia a ascensão da canção de protesto comconsciência social, identificada hoje como nueva trova: a forma de músi-ca cubana revolucionária que mais se conhece atualmente. O capítulo 6explora atitudes do governo relativas à percussão folclórica afro-cubanaao examinar a carreira de grupos e artistas de “alto nível” dos anos de1960 em diante, tais como Pedro Izquierdo e o Conjunto Folklórico Naci-onal. O capítulo 7 mantém o foco na cultura afro-cubana ao observar asmuitas dificuldades que praticantes de música religiosa enfrentaram desde1959, em parte por causa da orientação anti-religiosa da doutrina mar-

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traduçãoxista. O ensaio apresentado aqui saiu do capítulo 8 e é seguido por um

epílogo que descreve as tensões entre Havana, Miami e Washington D.C., visíveis na política cultural internacional. (R. M.)

Tradução e publicação autorizadas pelo autor em novembro de 2007.