morte e vida nos contos de clarice lispector

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  • 8/17/2019 Morte e Vida Nos Contos de Clarice Lispector

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    MORTE E VIDA NOS CONTOS DE CLARICE LISPECTOR: REFLEXÕES SOBREAS POTENCIALIDADES DA LITERATURA E OS LIMITES DA FORMAÇÃO

    CULTURAL

    Sandra Faria de Resende1 

    Kety Valéria Simões Franciscatti2

     

    Como entender-me? Por que de início aquela cega integração?

     E depois, a quase alegria da libertação? De que matéria sou

     feita onde se entrelaçam mas não se fundem os elementos e a

    base de mil outras vidas? Sigo todos os caminhos e nenhum

    deles é ainda o meu. Fui moldada em tantas estátuas e ainda

    não me imobilizei...Clarice Lispector, Obsessão.

    O presente texto apresenta as proposições básicas da pesquisa de Iniciação Científica

    intitulada “Morte e Vida nos Contos de Clarice Lispector: reflexões sobre as potencialidades

    da literatura e os limites da formação cultural”, desenvolvida no Laboratório de Pesquisa e

    Intervenção Psicossocial (LAPIP) do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de

    São João Del-Rei (DPSIC) – Universidade Federal de São João Del-Rei (UFSJ). Este estudo,

     parte da pesquisa “Psicologia e Arte: reflexões acerca da subjetividade obstada”3, assim como

    os demais trabalhos que decorrem da mesma, visa investigar o processo de formação por meio

    da articulação do conhecimento proveniente da psicologia e a potencialidade epistemológica

    da arte diante dos obstáculos impostos pela ideologia da racionalidade tecnológica.

    Com o objetivo de investigar sobre as possibilidades de formação do indivíduo na

    articulação com aquilo que a arte literária – em sua negatividade, como “antítese social da

    sociedade” (ADORNO, 1970/1988, p. 19) – possa desvelar dos impedimentos objetivos e

    1  Bolsista PIBIC/ FAPEMIG – Graduanda em Psicologia - Universidade Federal de São João Del-Rei –

    UFSJ/DPSIC/LAPIP

    2 Doutora em Psicologia – Orientadora - Universidade Federal de São João Del-Rei – UFSJ/DPSIC/LAPIP

    3 Esta pesquisa tem como base a Teoria Crítica da Sociedade e estrutura-se na relação mútua de três eixos deinvestigação: a formação e criação artística na tensão forma-conteúdo, forma-expressão; a formação e a recepçãona tensão estímulo e resposta; e a reflexão sobre os impedimentos subjetivos e objetivos à formação ocasionados pela Indústria Cultural. Os trabalhos que decorrem dessa pesquisa e também participam do II Colóquio dePsicologia da Arte “A correspondência das artes e a unidade dos sentidos” são: “Contraponto entre Arte,

    artesanato e trabalho: a falsa diferenciação e a atrofia da fantasia”, de Mara Salgado; “O fazer cego da expressão:estudos sobre a fatalidade do processo de criação artístico”, de Cynthia Maria Jorge Viana – ambos comorientação da Profa. Dra. Kety Valéria Simões Franciscatti.

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    subjetivos à formação cultural, tomou-se como foco de pesquisa os contos literários de

    Clarice Lispector. Ao considerar o processo de formação da subjetividade e as potencialidades

    da literatura, pretende-se a análise do entrelaçamento vida e morte, refletindo se e como a

    literatura desvela uma vida que não é adquirida quando se nasce, mas sim, quando esta se

    realiza. Entendendo que a sociedade e a cultura exigem uma adaptação do homem que não

     preza pela sua individuação e o ameaça constantemente com a impossibilidade de autonomia,

     pode-se perceber que as obras de Clarice Lispector revelam o cotidiano de vidas alienadas,

    num confronto de uma vida que não é vida e de uma morte que não é morte: morte e vida

    assumem um caráter dialético. Porém, a crescente racionalidade tecnológica que impede a

    liberdade, a felicidade e embota a capacidade do homem de viver, faz com que haja a

     preponderância da morte sobre a vida e, assim, obnubilando o seu sentido. Considera-se,

    então, neste contexto, a morte como algo que vai além da destruição do corpo: ela é também

    reflexo de uma vida alienada e pautada no sobreviver.

    Pretende-se discorrer, portanto, se e como os contos de Clarice Lispector se revelam

     potencializadores da vida, num contraponto desta com os episódios de morte e de morte-em-

    vida, considerando-a tanto em sua conotação de destruição física quanto de enrijecimento

    resultante de uma existência circunscrita à esfera da sobrevivência. No entendimento de que

    vida e morte são delimitações da subjetividade e de que esta é constituída por meio da cultura,

    a formação do indivíduo (autoconsciente e autodeterminado) traz também a possibilidade

    deste ir além daquela que o formou, ou seja, da própria cultura. Entretanto, na realização deste

     processo, é necessário que a vida dos homens tenha um fim em si mesma, para que a morte

    seja a finalização da vida realizada.

    Ao pensar a literatura como reveladora da dialética existente entre a vida e a morte

    (considerando que este contraste pode contribuir para a elaboração do medo) e como parte do

    método para estudar o processo de formação, ressalta-se o potencial crítico que esta

    articulação pode trazer ao conhecimento científico da psicologia, desvelando sofrimentosinjustificados e fortalecendo vestígios que indiquem a sua superação. Para Adorno

    (1970/1988, p. 291), “valia mais desejar que um dia melhor a arte desapareça do que ela

    esquecer o sofrimento, que é sua expressão e na qual a forma tem a sua substância. Esse

    sofrimento é o conteúdo humano, que a servidão falsifica em positividade”. É o sofrimento

    acumulado na arte que atribui a esta uma profundidade crítica à ordem opressiva.

    Em uma carta enviada a Clarice Lispector, Fernando Sabino comentou sobre o conto

    que Clarice havia lhe enviado anteriormente e disse-lhe:

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    [...] gostei muito do seu conto: admiravelmente bem escrito, não falta nemsobra nada. [...] Por ele posso perceber uma coisa muito mais importante doque a própria importância do conto: que você está escrevendo bem, comcalma, estilo seguro sem precipitação. Talvez porque agora você já nãoesteja sofrendo muito, mas sofrendo bem: é uma diferença bem importante, para a qual o Mário sempre me chamava a atenção. A gente sofre muito: oque é preciso é sofrer bem, com discernimento, com classe, com serenidadede quem já é iniciado no sofrimento. Não para tirar dele uma compensação,mas um reflexo. É o reflexo disso que vejo no seu conto, você procuraescrever bem, e escreve bem. (SABINO; LISPECTOR, 2002, p. 60; grifo nooriginal.)

    Seria, então, este um dos empreendimentos presentes na literatura: manter a tensão

    entre o “sofrer muito” e o “sofrer bem”. Seria também esta possibilidade, presente na

    expressão artística e na experiência estética, que traz condições para o enfrentamento da

    morte em vida e para que, deste estado, a vida seja potencializada (FRANCISCATTI, 2005,

    2006)4. 

    Caminho Metodológico

    Para os autores que constituem o marco teórico desta pesquisa – Adorno, Horkheimer,

    Marcuse – é a tensão e o confronto entre diferentes elementos, na busca pelo conhecimento,

    que pode garantir o estabelecimento da verdade histórica de um determinado objeto. Com

     base nesta perspectiva, considera-se que a subjetividade humana, dimensão que se define a

     partir do mundo externo e com possibilidade de diferenciar-se deste (formação cultural),

    assim como a morte, fenômeno da natureza que, para o homem, assume novas características,

    só podem ser esclarecidos se analisados na condição de objetos historicamente determinados.

    Considerando a historicidade dos fatos, a arte (neste caso, a literatura), a filosofia e a ciência

    também devem ser consideradas como acontecimentos, testemunhos do espírito de sua época

    e, mantida a distinção entre eles, podem ser vistos como frutos da cisão de seus objetos desdea origem, com expressão e forma diferentes.

    4 Franciscatti (2005, p. 163 e p. 164), discorrendo acerca dos sofrimentos ocasionados por se estar na “maldiçãoda individuação” e sobre as potencialidades presentes na arte literária, ressalta a exatidão com que, em umdeterminado tempo, esta é capaz de revelar algo que, no particular, consegue dizer de um momento histórico:“[...] escrever bem – entre o sofrer muito e o sofrer bem – corresponde dizer o que se tem a dizer de acordo como reflexo da realidade, pensando sobre o movimento do objeto, tomando a si mesmo como objeto [...]”; alémdisso, a tensão entre essas duas dimensões “[...] pode trazer a possibilidade, para quem escreve e para quem lê,de encarar as cicatrizes e os fragmentos ocasionados pelos impedimentos culturais que em vez de proporcionar a

    individuação levam a uma pseudoformação. Sofrer bem como expressão literária é encarar a morte em vida paraque deste estado a vida seja potencializada”. Esta discussão é retomada no texto “Clandestino querer na fuga dashoras: arte como expressão da vida danificada” (FRANCISCATTI, 2006).

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    Dessa maneira, o método de investigação utilizado na realização da pesquisa envolve a

    seleção, a leitura e a sistematização do marco teórico, bem como de autores que contribuem à

    compreensão da temática e do objeto de estudo, tanto no levantamento de dados acerca da

    morte e da vida quanto na contextualização histórico literária da obra de Clarice Lispector. A

     partir da leitura da obra em conto de Lispector, considerando a dificuldade de acesso aos

    livros com edição esgotada5, estão sendo estabelecidos os critérios para a caracterização e

    análise dos episódios de vida e morte encontrados em seus escritos. Porém, este processo é

    demorado, visto que não apenas a morte física é foco de estudo, mas principalmente a morte

    que se impõe ainda em vida, diante da impossibilidade de uma vida plena e satisfatória.

    Em uma organização preliminar da obra em conto, pode-se dividir até o momento os

    contos em três grupos: 1. Contos em que humanos são o foco central da narrativa; 2. Contos

    em que animais, na relação com os humanos, possuem lugar de destaque na narrativa; 3.

    Contos que centralizam a narrativa em objetos ou seres inanimados. A partir desses grupos,

     busca-se as categorias para análise dos contos, que envolvem critérios de seleção como: o

    aparecimento de morte física, seja ela descrita nos contos ou subentendida; a morte

    intencionada, ou seja, os personagens desejam a morte de alguém ou a sua própria; e, os

    relatos de morte em vida.

     Nos estudos realizados até o momento, pode-se observar um aparecimento

    significativo de animais como foco central na narrativa dos contos: os animais, vertebrados e

    invertebrados, estabelecem com os personagens humanos dos contos importantes relações

    que, neste texto, numa breve análise dos contos “O crime do professor de matemática ”6  e

    “Macacos”7, estão sendo consideradas como aspectos relevantes para a consecução dos

    objetivos propostos.

    Medo e culpa: a destruição contida no sofrimento

     No livro “A dialética do esclarecimento”, Horkheimer e Adorno (1944/1985) indicam

    que na ausência de condições que permitam o entendimento do homem com o mundo, há um

    desequilíbrio na tensão interno-externo que impede os movimentos de identificação e

    diferenciação, fundantes na formação do indivíduo. O desenvolvimento da natureza histórica

    5 “Alguns Contos”, publicado originalmente em 1952 e “A imitação da Rosa”, publicado originalmente em 1973,são exemplares que não foram encontrados até o momento, o que dificulta a leitura de toda a obra em conto de

    Clarice Lispector.6 Conto publicado no livro “Laços de família” em 1960.7 Conto publicado no livro “Felicidade Clandestina” em 1971.

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    no homem, que possibilitou o rompimento com a mera satisfação dos instintos no

    desenvolvimento de uma vida afetiva e intelectual, deveria proporcionar-lhe também maior

    capacidade de percepção do mundo que o cerca. Segundo Horkheimer e Adorno (1944/1985,

     p. 175), “perceber é projetar” e, desse modo, a percepção dos sentidos presente nos animais

    deveria, pela ampliação e plasticidade proporcionada pela cultura, estar mais bem elaborada

    nos homens, considerando a formação do indivíduo como fruto da mediação social.

    Diante do fracasso da civilização na obtenção de uma vida satisfatória, o que

     predomina, entretanto, é uma “falsa projeção”. Para Horkheimer e Adorno (1944/1985, p.

    176) “a profundidade interna do sujeito não consiste em nada mais senão a delicadeza e a

    riqueza do mundo da percepção externa. Quando o entrelaçamento é rompido, o ego se

     petrifica”. A falsa projeção diz, portanto, de uma tentativa desesperada do ego que, ao

     proteger-se apenas do mundo externo, despreza aquilo que conquistou com base em sua

    natureza histórica: a percepção de si mesmo. Neste sentido, a natureza humana historicamente

    constituída, permite agora o vislumbre de duas possibilidades de morte: a morte do corpo

    (física) e a ausência, dado o enrijecimento do eu ante o mundo, de autonomia, liberdade ou

    felicidade.

    Mesmo com a constatação de um existir que se restringe miseravelmente à

    sobrevivência, não se trata, porém, de esquecer ou banalizar a morte. Esta deve ser enfrentada

    tanto na representação do fim, comum a todos os seres viventes, com em sua presença

    impondo-se sobre a vida que se revela, nos domínios de uma ordem social opressora, muito

    aquém de suas possibilidades. Para Marcuse (1955/1981, p. 203), aqueles que morrem após

    terem tido uma vida de sofrimento e dor tornam-se “a grande acusação lavrada contra a

    civilização”, a denúncia do quanto foi desnecessária a carga de violência infringida sobre si

    mesmo e sobre os outros. Também para Horkheimer e Adorno (1944/1985, p. 200), os mortos

    trazem à lembrança dos vivos a parcela de culpa que lhes cabe diante do suplício

    injustificado, da dominação que atinge o homem e sua natureza:

    O ódio pelos mortos é, ao mesmo tempo, ciúme e sentimento de culpa.Quem ficou para trás sente-se abandonado e imputa sua dor ao morto,tomando-o como sua causa. [...] A consciência não consegue pensar a mortecomo um nada absoluto, pois o nada absoluto não é algo que se pense. Equando o fardo da vida pesa de novo sobre os que ficaram, é compreensívelque a situação do morto lhe pareça como preferível.

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    A partir das proposições freudianas a respeito do sentimento de culpa e do parricídio

    ocorrido na horda primeva8, Marcuse (1955/1981) acrescenta que a morte e a repressão atuam

     juntas. O sentimento de culpa que se faz presente após o parricídio original é um sentimento

    ambíguo, porque tanto diz do crime cometido contra a figura do pai quanto da promessa de

    liberdade que, com o crime, foi abandonada. O crime cometido contra o pai, quando

    realizado, é prenúncio do crime a ser cometido contra o filho, pois, na promessa de libertação

    não realizada, a autoridade do pai é resgatada e aloja-se em cada homem, que volta-se contra

    si mesmo. Considerando ainda que o crime contra o pai déspota pode ser eximido dada a sua

    responsabilidade na dominação e sofrimento de todos, o crime contra o princípio de prazer

    não é perdoável, visto que impede a fruição do prazer e o movimento de libertação. É um

    crime cometido contra o próprio corpo (autodestruição), dada a angústia da culpa, o remorso

     pela destruição da vida não realizada e a ausência de prazer em tempos de esforço excessivo

    na manutenção da sobrevivência.

    Se, conforme dizem Horkheimer e Adorno (1944/1985), o prazer é social, pode-se

    considerar o prazer como algo que distingue a humanidade dos animais. A satisfação dos

    instintos presente na natureza não se prolonga para além da necessidade, enquanto no homem,

    o prazer tem origem na alienação e “[...] mesmo quando o gozo ignora a proibição que

    transgride, ele tem sempre por origem a civilização, a ordem fixa, a partir da qual aspira

    retornar à natureza, da qual aquela o protege” (HORKHEIMER; ADORNO, 1944/1985, p.

    100). E assim como o prazer está presente na constituição do indivíduo, o medo também está:

    em sua origem, refere-se ao perigo de destruição, de aniquilamento de si e da espécie. Porém,

    conforme indica Adorno (1955/1991), as transformações ocasionadas pela cultura na natureza

    humana, levam o medo mais originário, que é o medo de ser aniquilado (morte), a fusionar-se

    com um medo mais recente: no homem ele diz também do perigo de não pertencimento à

    unidade social. Considerando-se que é a cultura (e para além dela) o ponto de mediação que

    forma o indivíduo, o não pertencimento ao social é contrário à natureza histórica do homem. Neste sentido, o medo da morte pode levar à obediência cega ao que é imposto socialmente,

    trabalhando também contra o prazer e as possibilidades de uma vida satisfatória. “Não é na

    certeza não afetada pelo pensamento, nem na unidade pré-conceptual da percepção e do

    8 Freud (1921/1976), no texto “Psicologia de grupo e a análise do ego”, indica que em 1912 utilizou a conjecturade Darwin sobre a horda primeva para analisar quais conseqüências os destinos dessa horda deixaram nadescendência humana. Trata-se de um grupo primitivo de pessoas cuja maior autoridade, o pai, possuía asmulheres do grupo e com elas gerava filhos e filhas. O pai déspota detinha com exclusividade o prazer, enquanto

    os filhos trabalhavam para manter o sustento do grupo. O parricídio surge pelo desejo de liberdade e satisfaçãodos filhos.

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    objeto, mas em sua oposição refletida que se mostra a possibilidade da reconciliação”

    (HORKHEIMER; ADORNO, 1944/1985, p. 176).

    Enquanto o sentimento de culpa colabora no enrijecimento do ego, fazendo com o que

    o homem perca a sua capacidade de “oposição refletida” e desequilibre a tensão formativa

    identificação-diferenciação, o medo da morte, renovado a cada dia pela ordem social, mantém

    a renúncia à liberdade. Como em um círculo vicioso, esse movimento resulta sempre em ódio

    e destruição. Para Horkheimer e Adorno (1944/1985, p. 186), “o ódio é o negativo da

    reconciliação”, pois, enquanto esta se baseia na espera pela reorganização das coisas com a

     paciência de quem sabe agir, o ódio é a tentativa desesperada de projetar no outro a culpa e o

    medo, destruindo-o.

     Numa sociedade que já não tem por característica contestar, cega diante das propostas

    de um “bem-estar administrado”, apresenta-se a morte em vida. O corpo é objetificado,

    multifacetado e rende-se aos excessos de uma organização que lhe exige produtividade e

    consumo. O avanço científico que festeja o cada vez mais próximo controle sobre a vida e a

    morte, não dá ao homem a segurança de que ele precisa para lidar com sua finitude. Fecham-

    se os olhos, para não se enxergar a morte, mas ela já chegou. O indivíduo não existe no

    mundo da individualidade. O particular cede para uma instância maior, a do “bem comum” do

    inanimado, que dita como regra a todos os seres que estes sejam singulares e que até nisso

    sejam iguais.

    Na denúncia do olhar: o animal e o homem

     Nestas condições, quando no convívio com os homens, os animais são alvo de ódio e

    de hostilidade. Os olhos dos inocentes tornam-se ameaçadores porque, na falta de gratuidade

    de uma vida que serve a si própria, projeta-se aquilo que não foi realizado. O cachorro José,

    no conto “O crime do professor de matemática”, tornou-se uma presença insuportável para oseu dono porque, enquanto o professor dava-lhe um nome humano, tentava incutir-lhe alma,

    dar-lhe intencionalidade, fazê-lo obedecer aos mesmos princípios que ele servia, José era

    apenas um cão. Ser cão lhe bastava e, ao mesmo tempo, exigia do professor uma condição que

    ele não conhecia: ser homem.

     Numa cultura que rebuscadamente preparou seus métodos de uniformização tanto de

    homens quanto de animais domésticos, são os traços puros de animais como José que dizem

    da natureza mutilada do homem. O animal que, em sua natureza, conduz sua vida semmáscaras, conserva os traços nobres que, no homem, estão uniformizados. O que José, com

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    seus olhos de cão, dizia a seu dono era uma grave ameaça. Para Horkheimer e Adorno

    (1944/1985, p. 235), a natureza “é para a práxis algo que está por fora e por baixo, um objeto”

    e, por isso, sua destruição tornou-se justificável. O professor reconhece que abandonou José

     para não cometer um crime ainda maior.

    Para Crochík (1999, p.39), a escolha pelo mal menor diz das concessões feitas em prol

    da manutenção da sobrevivência, porém, esta opção apenas retarda a aparecimento do mal

    maior, ainda latente, pois “elimina a possibilidade de elaborar o passado e, com isso, de evitar

    repetí-lo”. O abandono de José, por parte do professor, não apenas diz da escolha pelo mal

    menor, mas também do sentimento de culpa pelo crime maior, não cometido, mas em

     potencial na intenção, subentendido nos gestos carinhosos que o professor dispensava ao

    cachorro:

    Lembro-me de ti quando eras pequeno”, pensou divertido, “tão pequeno, tão bonitinho e fraco, abanando o rabo, me olhando, e eu surpreendendo em tiuma nova forma de ter minha alma. Mas desde então, já começavas a sertodos os dias um cachorro que se podia abandonar. Enquanto isso, nossas brincadeiras tornavam-se perigosas de tanta compreensão”, lembrou ohomem satisfeito, “tu terminavas me mordendo e rosnando, eu terminava jogando um livro sobre ti e rindo. Mas quem sabe o que já significava o meuriso sem vontade. Eras todos os dias um cão que se podia abandonar.(LISPECTOR, 1960/1990, p. 151; grifos no original)

    Horkheimer e Adorno (1944/1985) consideram que a devoção pela natureza, manifesta

    tanto nas crianças quanto nos animais, diz também do potencial destrutivo, da necessidade de

     perseguir. “A carícia negligente da mão que roça os cabelos de uma criança ou o pêlo de um

    animal significa: esta mão pode destruir” (p. 236), destruição que diz tanto da saudade de algo

    que não foi realizado (realização da cultura) quanto do ódio do que foi deixado para trás

    (natureza). Ao ver seu fracasso na busca da vida com um fim em si mesma – através da

    realização da cultura, dada a natureza histórica adquirida – o homem volta-se contra a

    natureza e, nisto, contra a promessa de realização da cultura. Perde-se a capacidade de

    respeitar o que está à sua volta e a violência sofrida numa realidade social que se mantém

    aquém de suas possibilidades materiais recai sobre os mais fracos, não porque realmente o

    são, mas porque fazem lembrar a fragilidade do homem.

    O preço que o homem paga pela civilização, a contenção do prazer em prol de um

    coletivo e de um comum irracionais, agravado pelo esforço contínuo de prover o sustento a si

    e aos seus, transforma em utópica qualquer iniciativa de conciliação entre liberdade e

    sobrevivência. E nos contos, como em um jogo de contradições, o fracasso de um personagemrevela a possibilidade de vida ao outro; a alegria de um personagem revela a mortificação em

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    que o outro está. O confronto entre os personagens – humano e animal – permite a

    visualização da doença que corrói o homem, no esvaecer da força vital pelas lacunas da

    fragmentação que o constitui. A agonia de morte da macaca Lisette, no conto “Macacos”,

     pode ser o retrato desse esvaecimento:

    E com o sopro de vida, subitamente revelou-se a Lisette quedesconhecíamos. De olhos muito menos redondos, mais secretos [...]; um pouco mais de oxigênio, e deu-lhe uma vontade de falar que ela malagüentava ser macaca; era, e muito teria a contar. Breve, porém, sucumbiade novo, exausta. (LISPECTOR, 1971/1987, p. 98)

    Com seus brincos, pulseiras e saia, Lisette é também o exemplo da natureza

    expropriada9: um fantoche gracioso que o homem fabricou à sua imagem e semelhança. No

    conto, todos os membros da casa onde fora morar ficaram encantados com sua delicadeza.Porém, Lisette estava doente de morte; a violência com que fora tirada de sua condição e

    transformada em caricatura humana arrancava-lhe também o ar vital. Debalde foi a tentativa

    de curá-la, fazê-la respirar por aparelhos, aceitar que os mesmos algozes que a destruíam eram

    os que tentavam salvá-la. A mulher e a macaca do conto eram muito parecidas: ambas tinham

    as marcas de resignação do corpo escanhoado, abatido. Mas se a mulher conhecia as

     possibilidades de vida, sua apatia era uma autopunição. E foi com hostilidade e incômodo que

    abrigou o antecessor de Lisette, um gorila. O cachorro José e o gorila incomodavam seusdonos porque mostravam o tamanho da fragilidade que possuíam e que não queriam ver. Os

    homens procuram anular a sua história, esquecê-la, porque esta os lembra da ruína que foram

    suas vidas.

    Segundo Horkheimer e Adorno (1944/1985, p. 201), “o que o indivíduo foi e

    experimentou no passado é anulado em face daquilo que ele agora é, daquilo que ele agora

    tem e eventualmente daquilo para o que pode agora ser utilizado”. No conto “O crime do

     professor de matemática”, parecem ter sido os instantes de libertação oferecidos pela punição

    que o professor se impôs que deram coragem de pensar no cão, em José, no ato que cometera

    9 Crochík (1999), ao discutir em seu texto sobre a propriedade, indica sua relação com a identidade do indivíduo burguês, representado por Ulisses, personagem da “Odisséia” de Homero. A identidade de Ulisses, definida pela propriedade (era o rei de Ítaca), é ameaçada quando o personagem começa a sua viagem. A partir de então, anatureza que se apresenta ameaçadora é dominada, assim como os sentimentos e emoções. A propriedade privada, porém, só é possível a partir de um contato coletivo e os que fazem de seus interesses particularesinteresses universais, retiram a possibilidade dos outros tanto de propriedade quanto de individuação: “[...] se a propriedade é base para a formação do indivíduo, a felicidade e liberdade devem ir além dela, no reconhecimento

    da igualdade dos proprietários; mas para isso ela precisa ser garantida desde o início. Quando a propriedade nãoé base, mas o fim, o desenvolvimento da consciência deve buscar aquilo de que foi expropriado” (CROCHÍK,1999, p. 42).

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    e em sua vida. Frente ao medo exacerbado e à destruição da culpa, o “ir para”10, movimento

    que diz da possibilidade de vida autodeterminada e consciente, é sempre com passos

    ferruginosos e muito lentos.

    Para os que se assustam com a crueza da vida enredada em seu contraste, que tiveram

    suas garras lixadas e não perderam o nojo da dor 11, não há como arrancar a flecha mortal e

    fazer nascer a vida. Em tempos de pseudoformação, às vezes o contato com este estado

    aparece com extrema rudeza. Poderia a força desta revelação contribuir para a manutenção do

    endurecimento que acomete os homens de fora para dentro e de dentro para fora? Talvez o

    esclarecimento sobre o que transforma o movimento da vida em imagem congelada de uma

    cena exaustivamente assistida e os homens em dezenas de estátuas que se espalham rígidas12,

    traga consigo possibilidades de transformação do existente.

    Referências Bibliográficas

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     Actualidad de la filosofía. Tradução para o espanhol José Luis Arantegui. Barcelona:

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    em Psicologia: Psicologia Social) – Programa de Prós-Graduação em Psicologia Social,

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     ______. Clandestino Querer na Fuga das Horas: arte como expressão da vida danificada. In:

    CONGRESSO INTERNACIONAL “A INDÚSTRIA CULTURAL HOJE”, 2006,

    10 Menção ao trecho do livro “A descoberta do mundo”, que traz contribuições de Clarice Lispector ao Jornal do Brasil entre1967 e 1973: “Essa noite um gato chorou tanto que tive uma das mais profundas paixões pelo que é vivo. Parecia dor e, emnossos termos humanos e animais, era. Mas seria dor, ou era “ir”, “ir para”? Pois o que é vivo vai para.” (LISPECTOR,1984/1999, p. 33)11 Menção ao trecho do conto “Os desastres de Sofia”: “Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar deseu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera com mão dura, e para que eu nascera sem nojo dador. Para que te servem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar teus espinhos mortais, diz o lobo dohomem.” (LISPECTOR, 1971/1987, p. 119)12 Expressão utilizada por Lispector (1971/1987, p155 e p.156) no conto “A quinta história”: quando descreve a morte das baratas após terem comido a mistura mortal de farinha, açúcar e cal: “E na escuridão da aurora, um arroxeado que distanciatudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. [...] Em algumas o gesso teráendurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente

    intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. [...] Outras – subitamente assaltadas pelo próprioâmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava! – essas de súbito se cristalizam, assimcomo a palavra é cortada da boca: eu te ...”

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  • 8/17/2019 Morte e Vida Nos Contos de Clarice Lispector

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    Piracicaba/SP.  Anais... Piracicaba/SP: GEP-Teoria Crítica e Educação

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