merleau-ponty, fenomenologia e psicanálise

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    MERLEAU-PONTY, FENOMENOLOGIAE PSICANLISE

    Claudinei Aparecido de Freitas da Silva1

    AYOUCH, THAMY. MAURICE MERLEAU-PONTY ET LAPSYCHANALYSE: LACONSONANCEIMPARFAITE. PARIS: LEBORDDELEAU, 2012, 201P.

    O livro Maurice Merleau-Ponty et la psychanalyse: la consonanceimparfaite, pela Editora Le Bord de LEau constitui, seguramente, um marcona literatura filosfica francesa atual. rata-se da obra de Tamy Ayouch,psicanalista, professor de psicopatologia clnica da Universidade de Lille 3 epesquisador na Universidade Paris 7 Denis Diderot. Como o ttulo sugere,

    o trabalho explora um dos temas candentes ao longo de toda a reflexodo filsofo francs Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), que parece terconcedido, cada vez mais, um certo lugar de honra da psicanlise naquilo queela permite redimensionar questes tericas decisivas. Em tal contexto, quealcance maior o livro de Ayouch projeta, em meio fortuna crtica literria emtorno da obra fenomenolgica de Merleau-Ponty?

    Ao prefaciar o livro do psicanalista Angelo Hesnard, L uvre de Freud et

    son importance pour le monde moderne, em 1960, pela Payot de Paris, Merleau-Ponty no deixa de observar que [...] pelo que a fenomenologia subentendeou desvela em seu limite por seu contedo latente ou inconsciente que estem consonncia com a psicanlise. Essa observao explora, a bem da verdade,o estatuto de uma singular eufonia entre duas disciplinas habitualmenteopostas em suas definies. Quer dizer, uma delas centra, com efeito, suaspesquisas sobre o fluxo da conscincia, visando, a princpio, a descrever, deum modo mais rigoroso possvel, o que aparece; a outra busca, sobre a camada

    do inconsciente, instituir um peso terico s tendncias supostas base dos1 Professor dos Cursos de Graduao e de Ps-Graduao (Mestrado) em Filosofia da UNIOESE Campus oledo com Ps-Doutorado pela Universit Paris 1 Panthon-Sorbonne (2011/2012).E-mail: [email protected].

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    fenmenos percebidos. Ora, prescrever qualquer analogia dessa ordem parece, primeira vista, um tanto descabido, ainda mais se se levar a srio o argumentode Pontalis de que se est diante de um juzo que carece de maior comprovao

    junto prpria prtica clnica. al , segundo ele, o caso mais flagrante emque se situa a descrio fenomenolgica de Merleau-Ponty. afastando essahabitual crtica que Ayouch chama a ateno para o fato de que Merleau-Ponty no estuda a psicanlise como doutrina luz da filosofia [...]; ele sereserva ao direito de no se pronunciar sobre a prtica analtica, inscrevendo seudiscurso no campo terico unicamente (AYOUCH, 2012, p. 93). O que estem jogo, na proposio da consonncia, a sondagem de uma racionalidadeprpria e, portanto, mais alargada que tornaria convergente, ambas as

    disciplinas. Para melhor compreender o alcance dessa tese aqui advogada pelofilsofo, ser preciso, antes, situar qual fenomenologia incorporada, porMerleau-Ponty, em suas relaes para com a psicanlise. Como j sublinharaLevinas, em seu instrutivo ensaio Reflexes sobre a Tcnica Fenomenolgica,[...] a fenomenologia um mtodo eminente, na medida em que se encontraessencialmente aberta. Nessa direo, [...] a obra de Husserl no parece haveratuado pelas suas consideraes metodolgicas, j que, na maioria das vezes,[...] elas expressam muito mais posies e respostas a problemas, que regras

    sobre a arte de trat-las. Se no h, conforme a apreciao levinasiana, umadireo unvoca na qual o movimento fenomenolgico se orienta (sobretudo,em sua herana ps-husserliana), porque se revive, agora, outro projeto tocomplexo e de mltiplas facetas; programa esse, para parafrasear Ricur,propositalmente hertico em relao sua fundao mais filialmenteortodoxa. sob tal critrio que a fenomenologia, em Merleau-Ponty, pareceganhar nova projeo, a ponto de se reformular radicalmente em meio a ummovimento de franca abertura no s para com a psicanlise, mas para comoutros setores do conhecimento. Nessa perspectiva, ela possui uma vocaotransdisciplinar, de modo que Freud, ao lado de tantos outros, passaria a figurarcomo um de seus mais autnticos precursores quanto compreenso ltimada natureza humana. Seria esse, ento, um gnero de leitura completamentedeslocado ou apressadamente ingnuo? em meio a essa atmosfera de debateque o provocativo livro de Ayouch transporta o leitor e que, aqui, pretende-se,sumariamente, apreciar.

    A princpio, bem verdade que a premissa de uma fenomenologia doinconsciente no repercute qualquer consonncia em meio audincia dasobras, no s de Husserl, mas igualmente de Heidegger ou at mesmo deSartre. al abertura fenomenolgica seria, de sada, facilmente refutada, pois

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    muito se conhece a filiao terminolgica da noo de inconsciente para como vocabulrio tradicional da metafsica, em sua herana mais espiritualmentecartesiana. Esse legado, alis, o prprio Merleau-Ponty no deixar tambm

    de inventariar como um estigma ainda recalcitrante do idealismo clssico.Cumpre observar que a obra de Freud guarda, sobretudo, num primeiromomento, uma indisfarvel cumplicidade para com o naturalismo. Afinal, nose pode esquecer que o pai da psicanlise um herdeiro direto do sculo XIX,momento esse em que se culmina um modelo explicativo predominantementecausalista, no que tange a certa cosmoviso de mundo e de homem.

    Ora, para alm desse legado consentido do freudismo, Merleau-Ponty

    quer mostrar o outro lado da moeda. rata-se de abrir outra leitura indita dapsicanlise, naquilo que ela parece intuir de mais radicalmente fenomenolgico.Na verdade, o que est em questo, nessa pauta, uma releitura que vise aexplorar no mais apenas um Freud naturalista, cartesiano de formao, masum Freud devotado ou consagrado em conferir estatuto a uma dimenso docomportamento humano em sua mais plena fenomenalidade, at ento noentrevista pela literatura mdica de seu tempo. odo ato humano tem umou vrios sentidos, postula ele. A sexualidade no um ciclo autnomo: ela

    possui uma estrutura ontolgica de primeira grandeza, e esse domnio maisprprio que torna o projeto psicanaltico, uma filosofia da carne, comoiria caricaturar, anos mais tarde, Merleau-Ponty. Essa significao metafsicado corpo e da sexualidade no prescinde, portanto, de uma descrio tantomais crtica quanto promotora no que concerne ao alcance conceitual doinconsciente. Se o termo parece imprprio, se essa frmula signatria da teoriafreudiana ainda se enuncia como um tanto restritiva, observa Merleau-Ponty,cumpre reconhecer, todavia, a que alcance ontofenomenolgico ela visa ou, se

    quiser, qual a sua maior inteno de princpio. Essa uma crucial ordem dequesto posta pelo livro de Ayouch: se, com efeito, a tentativa da fenomenologiaconsiste em ir do indeterminado determinao ou, at mesmo, de instituiro sentido acerca do que aparentemente se revela inconsciente, como aplicaresta visada ao inconsciente psicanaltico sem, no entanto, reduzi-lo? O quesignifica, a rigor, um inconsciente paradoxalmente descrito, como propeMerleau-Ponty, a partir da percepo?

    O livro de Ayouch quer explorar, conforme seu subttulo expressa, atonde essa suposta consonncia entre a fenomenologia e a psicanlise, defato, perfeitamente se legitima. esse o pano de fundo da 2 Parte da obra,De la Psychanalyse la Phnomnologie: Scansion du Contrepoint. No intuito

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    de testar melhor essa hiptese interpretativa, o autor passa a examinar, dessavez, a posio que assumir o prprio movimento psicanaltico, trazendo, paraa arena de combate, quatro grandes figuras de peso: Pontalis, Green, Lacan

    e Castoriadis. A eleio desses interlocutores no casual, uma vez que, sobperspectivas diferentes, ora realam a originalidade e o alcance do programafenomenolgico merleau-pontyano, ora sublinham o que este poderia manterou guardar, como limite, do ponto de vista de uma confluncia para com apsicanlise. Pontalis e Green observam, conjuntamente, que a indistinoentre o inconsciente como ausncia de tematizao e o inconscientepropriamente psicanaltico que se torna um problema incontornvel, pondoem xeque a tese da consonncia. Sob tal medida, se bem-vinda a intuio

    merleau-pontyana de um simbolismo originrio do sonho que se inscrevecorporal ou carnalmente junto ao mundo, esse alcance, por outro lado, nose obtm, sem limites. O olho clnico de Pontalis foca um problema queparece irremedivel: a tese da indiviso. udo se passa como se Merleau-Ponty confundisse estrutura e significao. Pois bem, Ayouch chamaa ateno para o quanto esse tipo de crtica no se aplica justo no caso deMerleau-Ponty, na medida em que [...] uma filosofia do sentido no aceita oinconsciente seno integrando-o a uma teoria do corpo sensvel e da expresso

    (AYOUCH, 2012, p. 133). Merleau-Ponty opera outra ideia de estruturaque difere, substancialmente, do estruturalismo, vindo a se aproximar, bemmais, da Gestalttheorie, resguardando-se, aqui, claro, daquilo que estaainda conservaria do realismo. O problema da indiviso, destaca Pontalis, aquele a partir do qual Merleau-Ponty v o inconsciente como o outrolado (Husserl) e no como a outra cena (Freud) de nossa existncia. Essecontrassenso, igualmente observado por Green, atesta uma dificuldade que,alis, se prolongaria na obra tardia de Merleau-Ponty: a anlise do corpovidente-visvel enquanto concepo tributria de uma filosofia da conscincia,de maneira que o inconsciente no somente o invisvel, como tambm oque no participa daquele simbolismo primordial. O desejo no passa de umainterpretao; pior, ele o fantasma mesmo de uma construo, o simbolismosecundrio da linguagem. Dessa forma, enquanto, para Freud, o corpopermanece inteiramente libidinal, ele no seno secundariamente libidinal,em Merleau-Ponty. Green, ento, remata: a ontologia da indiviso de O

    Visvel e o Invisvel no atende a uma camada mais elementar e, portanto,originria, ao abstrair os lugares dessa camada com o desejo. E a concluso qual chega Pontalis no poderia ser outra: no h experincia do sujeito dodesejo, em Merleau-Ponty. Para fechar essa mtua leitura, a aporia calcada

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    na ruptura entre consciente e inconsciente s pode situar o discurso merleau-pontyano acerca da psicanlise como, flagrantemente, antifenomenolgico.

    Frente a tais objees, Ayouch mobiliza um cuidado todo exegticoem relao tese merleau-pontyana da indiviso. preciso reconhecer, letra mesma do texto de Merleau-Ponty, que o invisvel no se define comouma falta, mas como o inverso constitutivo do visvel. Nessa redefinio, oconceito kantiano de grandeza negativa que recebe uma audincia decisivana obra do filsofo francs, no momento em que articulada a sua concepode inconsciente, para alm de qualquer pressuposio simtrica. Ao mesmotempo, a crtica quanto omisso da especificidade do desejo se mostra uma

    exegese insustentvel ante aquela referida obra. Assim que, em seus cursossobre a natureza (prolongando, em vrios aspectos, o captulo V, O Corpo comoSer Sexuado da Fenomenologia da Percepo), Merleau-Ponty pe em cursouma teoria do desejo. Como bem nota Ayouch, [...] a sexualidade revela,aqui, uma corporeidade produtora de sentido (p. 62). Num daqueles cursos,o fenomenlogo francs chegaria, inclusive, a problematizar o que seria o eudo desejo? Ora, esse eus pode ser o corpo, isto , o corpo em seu movimentomais ontologicamente radical deflagrado pela relao de princpio de nossa

    carnalidade com o mundo e com outrem. aqui que o carter indiviso doSer como experincia cria e tece, a todo tempo, aquela promiscuidadecarnal. nesse instante que a metfora do quiasma entra em cena, figurandocomo a verdade da harmonia preestabelecida que torna reversvel e no maiscontraditrio, o latente e o manifesto, a figura e o fundo de onde emerge.Sob esse ngulo, volta a observar Ayouch, a teoria merleau-pontyana dodesejo parece central e decisiva: Assim, em O Visvel e o Invisvel, o desejono omitido, mas concebido ontologicamente: no se trata aqui de libido,

    de pulso ou da perda do objeto primrio, mas dessa abertura do corpo aomundo [...]. O encontro com outrem me abre a um outro vidente que me uneao Ser e me torna visvel a mim-mesmo; o desejo no se origina aqui de umaperda, mas de um encontro (p. 149).

    No iremos pontuar, aqui, outras crticas disparadas de Green ede Pontalis comentadas por esse belssimo ensaio de Ayouch. No restritoespao do que aqui se resenha, cabe apenas situar essas j assinaladaspor parecer estratgicas, na medida em que abrem ou estendem, maisproximamente, o canal de debate com Lacan e Castoriadis, ao advogarem atese da inconsonncia. Lacan, nota Ayouch, acredita flagrar certo impassedo imaginrio na fenomenologia de Merleau-Ponty. Esta se condenaria a

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    ultrapassar o seu campo propriamente metodolgico, tornando inacessvel,a bem da verdade, uma experincia que lhe estranha. Dessa feita, afundao merleau-pontyana do primado da percepo que torna inexequvel

    ou mal sucedida a pretensa tentativa fenomenolgica de atribuir estatuto aoinconsciente. que, para Lacan, a percepo se torna, ela mesma, imaginria,de modo que a partir da estrutura simblica que o evento perceptivo deve,por fim, assentar-se. Qual o limite dessa leitura? Ayouch indica: essa crticaidentifica o Imaginrio em tudo onde no aparece, justo, o significante. A, arelao com outrem, por exemplo, se mostra impossvel. Ou seja, Lacan tornaessa relao como ilusria, condenando-a, junto com o corpo, a toda estruturaimaginria; relao, como se sabe, particularmente cara fenomenologia.

    Castoriadis, por sua vez, tambm pe em questo a teoriafenomenolgica do inconsciente, na medida em que Merleau-Ponty no teriainteiramente se libertado do peso da herana clssica da ontologia. Expressodisso o que ocorre, na emblemtica passagem de O Visvel e o Invisvel,em quea percepo apresentada como sendo o arqutipo do encontro originrio;encontro esse, imitado e renovado no passado, pelo imaginrio, pela ideia.

    Aos olhos de Castoriadis, haveria aqui o flagrante delito de uma equivalncia

    entre a noo merleau-pontyana de percepo e a ordem da representao.Merleau-Ponty ento censurado por no proceder radicalmente experinciafilosfica do Ser, a partir do sonho. A esse modo, supe o psicanalista, omodelo do fantasmagrico que sustenta, a rigor, a realidade. o domnio deuma imaginao radical, articulada instituio social-histrica que constituio primeiro plano do invisvel, do inconsciente. Em tal escopo, a dificuldadedessa leitura patente, como no deixa de argumentar Ayouch: Merleau-Ponty v claramente [...] uma homologia entre o Logos primeiro do perceber

    e o Logos segundo do pensar (p. 180). O que carece ser reconhecido que,para o fenomenlogo, o inconsciente no se descompromete com o simblico,de maneira que a percepo revela o objeto em carne e osso, diversamente deuma funo representacional tomada em sentido estrito. O mundo percebidono rivaliza com o mundo histrico, j que a ciso entre natureza e cultura nopassa de uma definio arbitrria, abstrata e, portanto, dogmtica.

    Em face desse balano crtico da obra fenomenolgica de Merleau-Ponty reapresentado, aqui, sumariamente por Ayouch, uma ordem de questoparece inevitvel: a partir de qual base exegtica se entende ser insustentvela tese da consonncia? A nosso ver, ela parece derivar de um incontornvelvcio de leitura que se tornou praticamente cannico, aps os anos 1960,

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    Normas para apreentao de originais

    sobre o quadro mais geral da fenomenologia e, particularmente, da produofilosfica de Merleau-Ponty. Essa prtica exegtica consiste em ignorar,surpreendentemente, que cada um cada um, ou seja, que Merleau-Ponty no

    Husserl, a ponto de se tornar um crtico visceral da prpria fenomenologia,sem, no entanto, se desfiliar dela. O que tal exegese camufla , pois, o avanoe o alcance programtico da obra mesma de Merleau-Ponty, de modo que mediante o [...] desvio fenomenologia husserliana acena Ayouch [...] que pode surgir uma convergncia entre fenomenologia e psicanlise(p. 12). Assim, se for verdade, conforme se prefacia, na Fenomenologia daPercepo, que a fenomenologia um estilo ou movimento antes mesmo devir adquirir maior conscincia filosfica; se for verdade, ainda, que ela no se

    resume, apenas, a uma descrio de essncias, mas recoloca as essncias naexistncia, sob este pano de fundo que a psicanlise pode, enfim, convergir,numa direo oposta no s a de Husserl, mas tambm de Heidegger e ade Sartre. Ser preciso, ento, admitir que essa reorientao fenomenolgicalevada a cabo por Merleau-Ponty atesta o quanto ele um autor atento daobra de Freud naquilo que esta, progressivamente, vai se revelando comoprojeto autocrtico. Como Ayouch observa, Merleau-Ponty alarga a sualeitura de Freud (p. 29), convidando a rel-lo como um clssico. O que

    Merleau-Ponty parece no perder de vista o que Freud teria explorado demais interessante, isto , o de [...] formular o tesouro de experincia que seoculta na comunicao psicanaltica, a partir de um maior contato com ascoisas, tornando-se, por conseguinte, [...] soberano nessa escuta dos rumoresde uma vida. Ora, o que haveria de menos fenomenolgico nisso? nesseponto, precisamente, que a psicanlise no constitui um domnio parte,sem qualquer ressonncia com os fenmenos. Na medida, portanto, em queamadurece, ela se exprime igualmente como uma filosofia da carne, ou seja,promove aquela reabilitao ontolgica do sensvel, instituindo outra ideiade homem e de verdade. Por isso, muito mais que um problema resoluto, aquesto do inconsciente se apresenta como o ndice dessa metamorfose, oenigma mesmo de uma ordem de experincia no mais locada no fundo daconscincia, atrs de ns, mas, lateralmente, em nosso campo perceptivo.Esse inconsciente ser um inconsciente carnal, a inscrio circundante deuma indiviso entre o interior e o exterior, o mundo e o corpo, eu e outrem.

    Ele a prefigurao concreta de uma articulao de nosso campo; o sentirmesmo em sua primordialidade radical. No mais um objeto, mas aquiloque torna possvel os objetos. Guardadas, portanto, as devidas distncias, sea psicanlise nunca mais foi a mesma aps Freud, a fenomenologia outra,

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    aps Husserl. sob esse horizonte aberto de leitura que se pode medir o realalcance da incurso fenomenolgica de Merleau-Ponty no subsolo da prxispsicanaltica. nesse entremeio que a inopinada (im)perfeita consonncia se

    torna passvel de ser discutida, como faz, exemplarmente, o livro de Ayouch.2

    Submisso: 08/01/2013

    Aceito em: 02/03/2013