mentira

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Projeto editorial alusivo que aborda contos escritos por Luís Fernando Veríssimo.

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Escola Superior de Propaganda e Marketing

Curso de Graduação em Design

com Habilitação em Comunicação Visual e Ênfase em Marketing

Projeto Integrado

Projeto III | Cultura e Informação | Professora Marise de Chirico

Língua Portuguesa III | Professora Regina Ferreira de Novaes

Produção Gráfica | Professor Antonio Celso Collaro

Projeto Gráfico:

Bianca Taipina, Felipe Castellari, Gabriela Sumodjo, Rafael Ochoa e Thais Jacoponi

___________________________________________________________________________

V5 16m

Veríssimo, Luis Fernando

As mentiras que os homens contam/ Luis Fernando Veríssimo.

- Rio de Janeiro : Objetiva, 2001

166 p.: ilustr. ISBN 85-7302-338-4

1. Literatura brasileira - Crônica. I. Título

CDD B.869.4

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Dedicamos este livro a todos aqueles que não mentem.

Mentir de forma consciente e voluntária tem mais valor do que dizer a verdade de forma involuntária.

Platão

SUMÁRIO

Prefácio

A Mentira

Farsa

Homem que é Homem

Bibliografia

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PREFÁCIOQuerido leitor,

Antes de começar, gostaria de perguntar para você, por que todo mundo faz careta ao ler a palavra prefácio? Quer dizer, nunca conheci nenhum admirador de prefácios, ou qualquer pessoa que tenha orgulho de assumir que tenha lido um prefácio inteirinho sem ter dado uma piscadinha mais lenta de algumas horas. Mas, e se eu disser que é nele que estão contidas todas as informações sobre o livro. Alguém o leria? Neste caso você ficaria menos sem graça quando perguntassem sobre o tema do livro, ao invés de demorar um minuto na tentativa de inventar uma história depois de disfarçadamente ler o título.

Aliás, falando em situações constrangedoras, me diga quem nunca con-tou uma mentirinha fajuta em horas desesperadoras? Como aquela típica cena de filme em que o casal é pego em flagrante pelo policial e alega firmemente que não estava fazendo nada demais, “era só um beijo de despedida”. E quando você está atrasado pro trabalho e põe a culpa no trânsito de São Paulo? Ou então, se você mora no Paraná e chegou atras-ado em casa, sempre tem aquela desculpa ”Mulher,fiquei parado ali na marginal, perdi a hora para chegar em Congonhas porque estava fechado

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de novo devido a chuvas constantes”. Lógico que com uma dessas, não tem nem como argumentar, né? Ninguém bota fé na previsão do tempo. Agora, colocar um homem com uma cruz na mão na frente da tevê o torna incontestável, ele é de fato um enviado de Deus, afinal ele sabe fazer o sinal da cruz e falar em diferentes tonalidades.

Mas não vamos nos desviar de nosso assunto principal… Este livro foi criado a partir de pequenos contos sobre a mentira criados por um escri-tor muito simpático que toca jazz e diz não ser nada engraçado. Ou seja, Luis Fernando Veríssimo.

Depois que ler esses contos, sua vida nunca mais será a mesma.

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João chegou em casa cansado e disse para a mulher, Maria, que queria tomar um banho, jantar e ir direto para a cama. Maria lembrou a João

que naquela noite eles tinham ficado de jantar na casa de Pedro e Luíza. João deu um tapa na testa, disse um palavrão e declarou que, de maneira

nenhuma, não iria jantar na casa de ninguém. Maria disse que o jantar estava marcado há uma semana e seria uma falta de consideração com Pedro e Luíza, que afinal eram seus amigos, deixar de ir. João reafirmou

que não ia. Encarregou Maria de telefonar para Luíza e dar uma desculpa qualquer. Que marcassem o jantar para a noite seguinte.

Maria telefonou para Luíza e disse que João chegara em casa muito abatido, até com um pouco de febre, e que ela achava melhor não tirá-lo

de casa àquela noite. Luíza disse que era uma pena, que tinha preparado uma Blanquette de Veau que era uma beleza, mas que tudo bem.

Importante é a saúde e é bom não facilitar. Marcaram o jantar para a noite seguinte, se João estivesse melhor.

João tomou banho, jantou e foi deitar. Maria ficou na sala vendo televisão. Ali pelas nove bateram na porta. Do quarto, João, que ainda não dormira, deu um gemido. Maria, que já estava de camisola, entrou no quarto para

pegar seu robe de chambre. João sugeriu que ela não abrisse a porta. Naquela hora só podia ser chato. Ele teria que sair da cama. Que deixasse

bater. Maria concordou. Não abriu a porta.

Meia hora depois, tocou o telefone, acordando João. Maria atendeu. Era Luíza, querendo saber o que tinha acontecido.

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— Por quê ?— perguntou Maria.

— Nós estivemos aí há pouco, batemos, batemos e ninguém atendeu.

— Vocês estiveram aqui?

— Para saber como estava o João. O Pedro disse que andou sentindo a mesma coisa há alguns dias e queria dar umas dicas. O que houve?

— Nem te conto — contou Maria, pensando rapidamente. — O João deu uma piorada. Tentei chamar um médico e não consegui. Tivemos que ir a

um hospital.

— O quê? Então é grave.

— A febre aumentou. Ele começou a sentir dores no corpo.

— Apareceram pintas vermelhas no rosto — sugeriu João, que agora estava ao lado do telefone, apreensivo.

— Estava com o rosto coberto de pintas vermelhas.

— Meu Deus. Ele já teve sarampo, catapora, essas coisas?

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— Já. O médico disse que nunca tinha visto coisa igual.

—Como é que ele está agora?

— Melhor. O médico deu uns remédios.Ele está na cama.

— Vamos já para aí.

— Espere!

Mas Luíza já tinha desligado. João e Maria se entreolharam. E agora? Não podiam receber Pedro e Luíza. Como explicar a

ausência das pintas vermelhas?

— Podemos dizer que o remédio que o médico deu foi milagroso. Que eu estou bom. Que podemos até sair para

jantar - disse João, já com remorso.

— Eles iam desconfiar. Acho que já estão desconfiados. É por isso que vêm para cá. A Luíza não acreditou em nenhuma

palavra que eu disse.

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Decidiram apagar todas as luzes do apartamento e botar um bilhete na porta. João ditou o bilhete

para Maria escrever. —Bota aí: 'João piorou subitamente. O médico achou

melhor interná-lo. Telefonaremos do hospital”.

— Eles são capazes de ir ao hospital à nossa procura.

— Não vão saber que hospital é.

— Telefonarão para todos. Eu sei. A Luíza nunca nos perdoará a Blanquette de Veau perdida.

— Então bota aí:''João piorou subitamente. Médico achou melhor interná-lo na sua clínica particular.

O telefone lá é 236 - 6688.''

—Mas esse é o telefone do seu escritório.

— Exato. Iremos para lá e esperaremos o telefonema deles.

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— Mas até que a gente chegue ao seu escritório...

—Vamos embora!

Deixaram o bilhete preso na porta. Apertaram o botão do elevador. O elevador já estava subindo. Eram eles!

— Pela escada, depressa!

O carro de Pedro estava barrando a saída da garagem do edifício. Não podiam usar o carro. Demoraram para conseguir um táxi. Quando chegaram ao escritório de

João, que perdeu mais tempo explicando ao porteiro a sua presença ali no meio da noite, o telefone já

estava tocando.Maria apertou o nariz para disfarçar a voz e atendeu:

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— Clínica Rochedo.

“Rochedo?! ''espantou-se João, que se atirara, ofegante, numa poltrona.

—Um momentinho, por favor— disse Maria.

Tapou o fone e disse para João que era Luíza. Que mulherzinha! O que a gente faz para preservar uma amizade. E não passar

por mentiroso. Maria voltou ao telefone.

— O Sr. João está no quarto 17, mas não pode receber visitas. Sua senhora? Um

momentinho, por favor.

Maria tapou o fone outra vez.

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— Ela que falar comigo.

Atendeu com a sua voz normal.

—Alô, Luíza? Pois é. Estamos aqui. Ninguém sabe o que é. Está

com pintas vermelhas por todo o corpo e as unhas estão ficando

azuis. O quê? Não, Luíza, vocês não precisam vir para cá.

— Diz que é contagioso — sussurrou João, que com

a cabeça atirada para trás preparava-se para retomar o

sono na poltrona.

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— É contagioso. Nem eu posso chegar perto dele. Aliás, eles vão evacuar toda a clínica e colocar barreiras em todas as ruas aqui perto. Estão desconfiados que é

um vírus africano que...

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Quando ouviu o ruído da porta do apartamento

sendo aberta, a mulher soergueu-se ligeiro na

cama e disse, ela realmente disse:

— Céus, meu marido! O amante ergueu-se também, espantado,

menos com o marido do que com a frase.

— O que foi que você disse? — Eu disse “Céus, meu marido!”

— Foi o que eu pensei, mas não quis acreditar.

— Ele me disse que ia para São Paulo!

— Talvez não seja ele. Talvez seja um ladrão.

— Seria sorte demais. É ele. E vem vindo para o

quarto. Rápido, esconda-se dentro do armário!

— O quê? Não. Tudo menos o armário!

— Então embaixo da cama. — O armário é melhor.

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O amante pulou da cama, pegou sua roupa de

cima da cadeira e entrou no armário, pensando

“isto não pode estar acontecendo”. Começou a rir,

descontroladamente. Até se lembrar que tinha

deixado seus sapatos ao lado da cama. Ouviu a

porta do quarto se abrir. E a voz do marido.

-— Com quem você estava conversando?

— Eu? Com ninguém. Era a televisão. E você

não disse que ia para São Paulo?

— Espere. Aqui no quarto não tem televisão.

— Não mude de assunto. O que é que você

está fazendo em casa?

O amante começou a rir. Não podia se conter;

mesmo sentindo que assim fazia o armário

sacudir. Tapou a boca com a mão.

Ouviu o marido perguntar:

— Que barulho é esse?

— Não interessa. Por que você não está em São

Paulo?

— Não precisei ir, pronto. Estes sapatos...

O amante gelou. Mas o marido se referia aos

próprios sapatos, que estavam apertados.

Agora devia estar tirando os sapatos. Silêncio.

O ruído da porta do banheiro sendo aberta e

depois fechada.

Marido no banheiro. O amante ia começar a

rir outra vez quando a porta do armário se

abriu subitamente e ele quase deu um berro.

Era a mulher para lhe entregar seus sapatos.

Ela fechou a porta do armário e se atirou de novo na cama antes que ele pudesse avisar que aqueles sapatos não eram os dele, eram os do marido.

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Porta do banheiro se abrindo. Marido

de volta ao quarto. Longo silêncio. Voz

do marido:

— Estes sapatos...

— O que é que tem?

— De quem são?

— Como, de quem são? São os seus. Você

acabou de tirar.

— Estes sapatos nunca foram meus.

Silêncio. Mulher obviamente examinado

os sapatos e dando-se conta do seu

erro. O amante, ainda por cima, com

falta de ar. Voz da mulher, agressiva:

— Onde foi que você arranjou estes sapatos? — Estes sapatos não são meus, eu já disse!

— Exatamente. E de quem são? Como é que você sai de casa com um par de sapato e chega com outro? — Espera aí... — Onde foi que você andou? Vamos, responda!

— Eu cheguei em casa com os mesmos sapatos que saí. Estes é que não são os meus sapatos. — São os sapatos que você tirou. Você mesmo disse que

estavam apertados. Logo, não eram os seus. Quero explicações. — Só um momentinho. Só um momentinho!

Silêncio. Marido tentando pensar em alguma coisa para dizer. Finalmente, a voz da mulher, triunfante:

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— Estou esperando.

Marido reagrupando as suas forças. Passando

para o ataque.

— Tenho certeza absoluta — absoluta! — que

não entrei neste quarto com estes sapatos.

E olhe só, eles não podiam estar apertados

porque são maiores do que o meu pé.

Outro silêncio. A mulher, friamente:

— Então só há uma explicação.

O marido:

— Qual?

— Eu estava com outro homem aqui dentro

quando você chegou. Ele pulou para dentro

do armário e esqueceu os sapatos.

Silêncio terrível. O amante prenderia a respiração se não precisasse de ar. A mulher continuou: — Mas, nesse caso, onde é que estão os seus sapatos? O homem, sem muita convicção: — Você poderia ter entregue os meus sapatos para o homem dentro do armário, por engano. — Muito bem. Agora, além de adúltera, você está me chamando de burra. Muito obrigada. — Não sei não, não sei não. E eu ouvi vozes aqui dentro... — Então faz o seguinte. Vai até o armário e abre a porta.

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O amante sentiu que o armário sacudia.

Mas agora não era o seu riso. Era o

seu coração. Ouviu os pés descalços

do marido aproximando-se do armário.

Preparou-se para dar um pulo e sair

correndo do quarto e do apartamento

antes que o marido se recuperasse.

Derrubaria o marido na passagem. Afinal,

tinha os pés maiores. Mas a mulher falou:

— Você sabe, é claro, que no momento em que abrir essa porta estará

arruinando o nosso casamento. Se

não houver ninguém aí dentro, nunca

conseguiremos conviver com o fato de

que você pensou que havia. Será o fim.

— E se houver alguém?

— Aí será pior. Se houver um amante

de cuecas dentro do armário, o nosso

casamento se transformará numa farsa

de terceira categoria. Em teatro barato.

Não poderemos conviver com o ridículo.

Também será o fim.

Depois de alguns minutos,

o marido disse:

— De qualquer maneira, eu preciso abrir

a porta do armário para guardar

a minha roupa...

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— Abra. Mas pense no que eu disse.

Lentamente, o marido abriu a porta

do armário. Marido e amante se

encararam. Nenhum dos dois disse

nada. Depois de três ou quatro

minutos o marido disse: “Com licença”

e começou a pendurar sua roupa.

O amante saiu lentamente de dentro

do armário, também pedindo licença,

e se dirigiu para a porta. Parou

quando ouviu um “Psiu”. Disse:

— É comigo?

— É — disse o marido — Os meus sapatos. O amante se lembrou que estava com os sapatos errados na mão, juntou com o resto da sua roupa. Colocou os sapatos do marido no chão e pegou os seus. Saiu pela porta e não se falou mais nisso.

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Homem que é Homem não usa camiseta sem manga, a n ã o s e r para jogar basquete. Homem que é Homem não gosta d ecanapés, de cebolinhas em conserva ou de qualquer o u t r a c o i s a que leve menos de 30 segundos para mastigar e engo l i r . H o m e m que é Homem não come suflê. Homem que é Homem — d e agora em diante chamado HQEH — não deixa sua mu l h e r mostrar a bunda para ninguém, nem em baile de carnava l . H Q E H não mostra a sua bunda para ninguém. Só no vest iár io , p a r aoutros homens, e assim mesmo, se olhar por mais d e 3 0 segundos, dá briga.

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HQEH só vai ao cinema ver filme do Franco Zef f i re l l i quando a mulher insiste muito, e passa t o d o o tempo tentando ver as horas no escuro. H Q E H não gosta de musical, filme com a J i l l C layburgh ou do Ingmar Bergman. Prefere filmes com o LeeMarvin e Charles Bronson. Diz que ator m e s m o era o Spencer Tracy, e que dos novos, t i r a n d o o Clint Eastwood, é tudo veado.

HQEH não vai mais a teatro porque também n ã o gosta que mostrem a bunda à sua mulher. S e v o c ê quer um HQEH no momento mais baixo de s u a vida, precisa vê-lo no balé. Na saída e le d iz q u e até o porteiro é veado e que se enxergar ma i s alguém de malha justa, mata.

E o HQEH tem razão. Confesse, você está c o m e l e . Você não quer que pensem que você é um p r i m i t i v o , um retrógrado e um machista, mas lá no fu n d o v o c êtorce pelo HQEH. Claro, não concorda com t u d o o q u eele diz. Quando ele conta tudo o que vai fa z e r c o m a Feiticeira no dia em que a pegar, você sac o d e a cabeça e reflete sobre o componente de mi s o g i n i a patológica inerente à jactância sexual do ho m e m latino. Depois começa a pensar no que far i a c o m a Feiticeira se a pegasse.

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Existe um HQEH dentro de cada brasi le i ro , s e p u l t a d o sob camadas de civilização, de falsa sof ist ic a ç ã o ,de propaganda feminina e de acomodação. S i m , d e acomodação. Quantas vezes, atirado na f re n t e d e u m aparelho de TV vendo a novela das 8 — um a h i s t ó r i a invariavelmente de humilhação, renúncia e s u p e r a ç ã o femininas — você não se perguntou o que e s t a v a fazendo que não dava um salto, vencia a re s i s t ê n c i a da família a pontapés e procurava uma repr i s e d o Manix em outro canal? HQEH só vê futebol n a T V. Bebendo cerveja. E nada de cebolinhas em c o n s e r v a ! HQEH arrota e não pede desculpas.

Se você não sabe se tem um HQEH dentro d e v o c ê , faça este teste. Leia esta série de situações. E s t u d e - a s ,pense, e depois decida como você reagir ia e m c a d a situação. A resposta dirá o seu coefic iente d e H Q E H .Se pensar muito, nem precisa responder: vo c ê n ã o éHQEH. HQEH não pensa muito!

Situação 1

Você está num restaurante com nome franc ê s . O cardápio é todo escrito em francês. Só o pr e ç o e s t áem reais. Muitos reais. Você pergunta o que s i g n i f i c a o nome de um determinado prato ao maîtr e . V o c ê tem certeza que o maître está se esforçando p a r a n ã o rir da sua pronúncia. O maître levará mais t e m p o p a r a descrever o prato do que você para comê-l o , p o i s o que vem é uma pasta vagamente mar inha e m c i m a d e uma torrada do tamanho aproximado de um a m o e d a de um real, embora custe mais de cem. Voc ê c o m ede um golpe só, pensando no que os operá r i o s s ã o obrigados a comer. Com inveja. Sua acompa n h a n t e

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pergunta qual é o gosto e você responde qu e não deu tempo para saber. O prato pr incipa lvem trocado. Você tem certeza que pediu u m “Boeuf à quelque chose” e o que vem é um a fatia de pato sem qualquer acompanhamen t o . Só. Bem que você tinha notado o nome:“Canard melancolique”. Você a princípio s e n t e pena do pato, pela sua solidão, mas muda d e idéia quando tenta cortá-lo. Ele é um duro, pode agüentar. Quando vem a conta, você n o t a que cobraram pelo pato e pelo “boeuf ’ que não veio. Você: a) paga assim mesmo para n ã o dar à sua acompanhante a impressão de qu e s e preocupa com coisas vulgares como o dinhe i r o , ainda mais o brasileiro; b) chama discretam e n t e o maître e indica o erro, sorrindo para dar aentender que, “Merde, alors”, estas coisas acontecem; ou c) vira a mesa, quebra uma garrafa de vinho contra a parede e, seguran d o o gargalo, grita: “Eu quero o gerente e é m e l h o r ele vir sozinho!

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Situação 2

Você foi convencido pela sua mulher, namo r a d a ou amiga — se bem que HQEH não tem “amigas”, quem tem “amigas” é veado — a entrar para um curso de Sensitivação Or ient a l . Você reluta em vestir a malha preta, mas acaba sucumbindo. O curso é dado por um japonê s , provavelmente veado. Todos sentam num cí r c u l o em volta do japonês, na posição de lótus. M e n o s você, que, como está um pouco fora de for m a , só pode sentar na posição do arbusto despencado pelo vento. Durante 15 minut o s todos devem fechar os olhos, juntar as pon t a s dos dedos e fazer “rom”, até que se integ r e m na Grande Corrente Universal que vem do Tibete, passa pelas cidades sagradas da Índ i a e do Oriente Médio e, estranhamente, bem e m cima do prédio do japonês, antes de voltar p a r a o Oriente. Uma vez atingido este estágio, t o d o s devem virar para a pessoa ao seu l a d o e

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estudar seu rosto com as pontas dos dedos . Não se surpreendendo se o japonês chegar p o r trás e puxar as suas orelhas com força p a r a lembrá-lo da dualidade de todas as c o i s a s . Durante o “rom” você faz força, mas n ã o consegue se integrar na grande corren t e universal, embora comece a sentir uma sens a ç ã o diferente que depois revela-se ser câimbra. V o c ê : a) finge que atingiu a integração para não c o r t a r a onda de ninguém; b) finge que não enten d e u bem as instruções, engatinha fazendo “rom ” até o lado daquela grande loura e, na h o r a de tocar o seu rosto, erra o alvo e agarra os seios, recusando-se a soltá-los mesmo que o japonês quase arranque as suas orelhas; c) d iz que não sentiu nada, que não vai seguir adiante com aquela bobagem, ainda mais de ma l h a preta, e que é tudo coisa de veado.

S i tuação 3

Você está numa daquelas reuniões em q u e h á lugares de sobra para sentar, mas todo mun d o senta no chão. Você não quis ser di ferente, s e atirou num almofadão colorido e tarde dem a i s descobriu que era a dona da casa. Sua mulh e r está tendo uma conversa confidencia l , de m ã o s dadas, com uma moça que é a cara do Cha r l t o n Heston, só que de bigode. O jantar é àamericana e você não tem mais um joelho p a r a colocar o seu copo de vinho enquanto usa o s outros dois para equilibrar o prato e cortar o pedaço de pato, provavelmente o mesmo d o restaurante francês, só que algumas seman a s mais velho. Aí o cabeleireiro de cabelo mec h a d oao seu lado oferece:

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— Se quiser usar o m e u . . .

— O s e u . . . ?

— Joel h o .

— Ah. . .

— Ele e s t á d e s o c u p a d o .

— Mas eu não o conheço.

— Eu apresento. Este é o meu joelho.

— Não. Eu digo, você. . .

— Eu, hein? Quanta formal idade. Aposto que se eu est ivesse oferecendo a perna toda você ia pedir referências. Ti -au.

Você: a) resolve entrar no espírito da festa e c o m e ç a a tirar as calças; b) leva seu copo de v inho p a r a u m canto e fica, entre divertido e irônico, obser v a n d oaquele curioso painel humano e organizand o u m pensamento sobre estas sociedades tropica i s , q u e passam da barbárie para a decadência sem a e t a p a intermediária da civilização; ou c) pega sua m u l h e r o u namorada e dá o fora, não sem antes derru b a r o Charlton Heston com um soco.

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Se você escolheu a resposta a para todas as s i t u a ç õ e s , não é um HQEH. Se você escolheu a respos t a b , n ã o é um HQEH. E se você escolheu a resposta c, t a m b é m não é um HQEH. Um HQEH não responde a t e s t e s .

Um HQEH acha que teste é coisa d e v e a d o .

Este país foi feito por Homens que eram Ho m e n s . O s desbravadores do nosso interior bravio não t i n h a m nem jeans, quanto mais do Pierre Cardin. O q u e s e r i a deste pais se Dom Pedro I tivesse se atrasad o n o d i a 7 em algum cabeleireiro, fazendo massagem f a c i a l e cortando o cabelo à navalha? E se t ivesse g r i t a d o , e m vez de “Independência ou Morte”, “ Indepe n d ê n c i a o u Alternativa Viável, Levando em Consideraçã o T o d a sas Variáveis!”? Você pode imaginar o Rui B a r b o s a d e sunga de crochê? O José do Patrocínio d e c o l a n t ? O Tiradentes de kaftan e brinco numa orelha s ó ? H o m e n s que eram Homens eram os bandeirantes. C o m o s e sabe, antes de partir numa expedição, os ba n d e i r a n t e s

subiam num morro em São Paulo e abr iam a bragui lha. Esperavam até ter uma ereção e depois seg u i a m n a direção que o pau apontasse. Profissão par a u m H Q E H é motorista de caminhão. Daqueles que, de p o i s d e comer um mocotó com duas Malzib ier, dor m e m n a estrada e, se sentem falta de mulher, l igam o m o t o r e trepam com o radiador. No futebol HQEH é b e q u e central, cabeça-de-área ou centroavante. M e i o - d e - campo é coisa de veado. Mulher do amigo d e H o m e m que é Homem é homem. HQEH não tem am i z a d e colorida, que é a sacanagem por outros me i o s . H Q E H não tem um relacionamento adulto, de con f i a n ç a mútua, cada um respeitando a liberdade do o u t r o , n u m a transa, assim, extraconjugal mas assu m i d a , e n t e n d e ? Que isso é papo de mulher pra dar p r a t o d o m u n d o . HQEH acha que movimento gay é coisa de v e a d o .

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HQEH nunca vai a vernissage.

HQEH não está lendo a Marguer i te Y o u r c e n a r ,não leu a Marguerite Yourcenar e n ã o v a i l e ra Marguerite Yourcenar.

HQEH diz que não tem preconceito m a s q u ese um dia estivesse numa mesma s a l a c o m t o d a s as cantoras da MPB, não desencos t a r i a d a p a r e d e .

Coisas que você jamais encontrará em um H Q E H : batom neutro para lábios ressequidos, pas t i l h a s para refrescar o hálito, o te lefone do Gabe i r a , entradas para um espetáculo de mímica.

Coisas que você jamais deve dizer a um HQ E H : “Ton sur ton”, “Vamos ao balé?”, “Prove estas cebolinhas”.

Coisas que você jamais vai ouvir um H Q E H d i z e r : “Assumir”, “Amei”, “Minha porção mulher” , “A c h o q u e o bordeau fica melhor no sofá e a ráf ia e m c i m a d o p u f ” .

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Não convide para a mesma mesa: u m H Q E H e o S i l v i n h o .

HQEH acha que ainda há tempo de s a l v a r o B r a s i l e j á conseguiu a adesão de todos os H o m e n s q u e s ã o H o m e n s que restam no país para uma camp a n h a d e r e g e n e r a ç ã o do macho brasileiro.

Os quatro só não têm se reunido m u i t oseguidamente porque pode parecer coisa d e v e a d o .

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A mentira é um agente infeccioso dispersando-se pelos falsos caminhos da sociedade.Vaga sem destino, critério ou seleção.

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BIBlIOgRaFIaInstituto Estadual do Livro. Luis Fernando Veríssimo. Porto Alegre: IEL, 3ªed. 1991.

VERÍSSIMO, Luis Fernando. As Mentiras que os Homens Contam. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

LUIS FERNANDO VERÍSSIMO. Literal Terra. Disponível em <http://literal.terra.com.br/verissimo>

REVISTA ÉPOCA.Por que as pessoas mentem. Solange Azevedo, Celso Masson, Andres Vera com Danilo Soares.Disponível em < http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI27316-15228,00-POR+QUE+AS+PESSOAS+MENTEM.html>

Esta obra foi composta em Glypha 35 Thin, Frutiger Bold e Frutiger Extra Black Condensed.

Foi impressa com o miolo em papel Couché fosco 150 g/m2 na gráfica Power Graphics, em abril de 2011.

Capa revestida com papel Supreme Duo Design 300g/m2.