luminária - a educação escolar de adolescentes e a formação da individualidade para-si

18
Luminária Revista da Universidade Estadual do Paraná UNESPAR Campus de União da Vitória. n. 15 v. 1 União da Vitória, 1° semestre de 2013. A EDUCAÇÃO ESCOLAR DE ADOLESCENTES E A FORMAÇÃO DA INDIVIDUALIDADE PARA-SI 1 SCHOOL EDUCATION OF ADOLESCENTS AND THE DEVELOPMENT OF INDIVIDUALITY FOR ITSELF Ricardo Eleutério dos Anjos 2 RESUMO: O presente artigo é parte integrante de uma pesquisa de mestrado que apresenta aportes teóricos para a educação escolar de adolescentes, por meio da aproximação entre a psicologia histórico-cultural e a teoria filosófico-ontológica da individualidade para-si. A adolescência é aqui apresentada como uma fase privilegiada, no desenvolvimento humano, para a formação do pensamento por conceitos, o qual capacita o adolescente a apropriar-se adequadamente das objetivações genéricas para-si como a ciência, a arte e a filosofia. O estudo conclui que a educação escolar dos adolescentes deve ser um processo mediador entre a esfera da vida cotidiana e as esferas não cotidianas da prática social, corroborando o desenvolvimento psíquico dos adolescentes, conduzindo-os no processo da formação da individualidade para-si. Palavras-chave: Adolescência. Educação Escolar. Individualidade para-si. ABSTRACT: This article is part of a research that has theoretical support for school education of adolescents, through the integration between cultural-historical psychology and the philosophical-ontological theory of individuality for itself. Adolescence is presented here as a privileged stage in human development, for the development of thought by concepts, which enables adolescents to properly take ownership of generic objectifications for itself, like science, art and philosophy. The study concludes that education of adolescents should be a mediating process between the spheres of daily life and non-daily social practice, corroborating the psychological development of adolescents, leading them in the process of developing individuality for itself. Keywords: Adolescence. School Education. Individuality for Itself. 1 Este artigo é parte integrante de uma pesquisa de mestrado que contou com o apoio financeiro da CAPES, sob a orientação do professor Dr. Newton Duarte, livre docente do Departamento de Psicologia da Educação da Fclar/UNESP de Araraquara-SP e coorientação da professora Drª. Lígia Márcia Martins, livre docente em Psicologia da Educação pela UNESP de Bauru-SP. 2 Psicólogo, mestre em Educação Escolar e Doutorando em Educação Escolar pela UNESP de Araraquara. Integrante do grupo de pesquisa cadastrado no CNPq com o título “Estudos Marxistas em Educação”, ligado ao Departamento de Psicologia da Educação da UNESP de Araraquara. Professor de Psicologia na UNIP, campus de Araçatuba-SP e na FATEB em Birigui-SP. E-mail: [email protected]

Upload: ricardo-eleuterio

Post on 19-Dec-2015

213 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Aportes teóricos para educação escolar de adolescentes III

TRANSCRIPT

  • Luminria Revista da Universidade Estadual do Paran UNESPAR Campus de Unio da

    Vitria. n. 15 v. 1 Unio da Vitria, 1 semestre de 2013.

    A EDUCAO ESCOLAR DE ADOLESCENTES E A FORMAO DA

    INDIVIDUALIDADE PARA-SI1

    SCHOOL EDUCATION OF ADOLESCENTS AND THE DEVELOPMENT OF

    INDIVIDUALITY FOR ITSELF

    Ricardo Eleutrio dos Anjos2

    RESUMO: O presente artigo parte integrante de uma pesquisa de mestrado que apresenta

    aportes tericos para a educao escolar de adolescentes, por meio da aproximao entre a

    psicologia histrico-cultural e a teoria filosfico-ontolgica da individualidade para-si. A

    adolescncia aqui apresentada como uma fase privilegiada, no desenvolvimento humano,

    para a formao do pensamento por conceitos, o qual capacita o adolescente a apropriar-se

    adequadamente das objetivaes genricas para-si como a cincia, a arte e a filosofia. O

    estudo conclui que a educao escolar dos adolescentes deve ser um processo mediador entre

    a esfera da vida cotidiana e as esferas no cotidianas da prtica social, corroborando o

    desenvolvimento psquico dos adolescentes, conduzindo-os no processo da formao da

    individualidade para-si.

    Palavras-chave: Adolescncia. Educao Escolar. Individualidade para-si.

    ABSTRACT: This article is part of a research that has theoretical support for school

    education of adolescents, through the integration between cultural-historical psychology and

    the philosophical-ontological theory of individuality for itself. Adolescence is presented here

    as a privileged stage in human development, for the development of thought by concepts,

    which enables adolescents to properly take ownership of generic objectifications for itself,

    like science, art and philosophy. The study concludes that education of adolescents should be

    a mediating process between the spheres of daily life and non-daily social practice,

    corroborating the psychological development of adolescents, leading them in the process of

    developing individuality for itself.

    Keywords: Adolescence. School Education. Individuality for Itself.

    1 Este artigo parte integrante de uma pesquisa de mestrado que contou com o apoio financeiro da CAPES, sob a

    orientao do professor Dr. Newton Duarte, livre docente do Departamento de Psicologia da Educao da

    Fclar/UNESP de Araraquara-SP e coorientao da professora Dr. Lgia Mrcia Martins, livre docente em

    Psicologia da Educao pela UNESP de Bauru-SP. 2 Psiclogo, mestre em Educao Escolar e Doutorando em Educao Escolar pela UNESP de Araraquara.

    Integrante do grupo de pesquisa cadastrado no CNPq com o ttulo Estudos Marxistas em Educao, ligado ao Departamento de Psicologia da Educao da UNESP de Araraquara. Professor de Psicologia na UNIP, campus

    de Araatuba-SP e na FATEB em Birigui-SP. E-mail: [email protected]

  • Introduo

    Vigotski3 e outros autores de sua poca chamavam a adolescncia de idade de

    transio, ou seja, ela estaria entre a infncia e a vida adulta. O prprio conceito de

    desenvolvimento psicolgico carrega o pressuposto de que o adulto um ser mais

    desenvolvido do que a criana e o adolescente. Nesse sentido, a infncia e a adolescncia no

    existem em si mesmas, mas em relao com o seu vir a ser, ou seja, em relao com o adulto.

    Vigotski (2000, p. 27) afirma que, no desenvolvimento cultural do indivduo, a relao

    entre ontognese e filognese distinta daquela que ocorre no desenvolvimento orgnico: L

    a filognese est includa em potencial e se repete na ontognese, ao passo que no

    desenvolvimento cultural haveria uma inter-relao real entre filognese e ontognese. Mas

    por que inter-relao real? Porque no h verdadeira interao entre o embrio e a me, entre

    o ser j desenvolvido e o ser em formao, ao passo que [...] no desenvolvimento cultural,

    essa inter-relao a fora motriz bsica do desenvolvimento.

    Decorre, entretanto, dessa premissa, o questionamento sobre o que caracteriza esse

    desenvolvimento, isto , o que um ser humano plenamente desenvolvido. J de partida

    esclarece-se que a resposta a essa pergunta no dever ser encontrada num modelo metafsico

    de ser humano, mas na perspectiva do materialismo histrico-dialtico, ou seja, na concepo

    marxista da histria humana. Nada disso faz sentido na perspectiva do relativismo ps-

    moderno no qual perde todo significado a prpria ideia de desenvolvimento. Essa questo j

    seria por si mesma suficiente para desautorizar todas as tentativas de incorporao da

    psicologia vigotskiana ideologia ps-moderna, analisadas criticamente por Duarte (2000).

    O prprio Vigotski, ao analisar o desenvolvimento da personalidade na adolescncia,

    indicou a direo na qual ocorreria o desenvolvimento que vai da infncia vida adulta, bem

    como a funo da adolescncia como fase de transio:

    A frase de J. J. Rousseau referente ao perodo de maturao sexual, de que o

    homem nasce duas vezes, primeiro para existir e depois para continuar a

    espcie, pode aplicar-se tambm ao desenvolvimento psicolgico e cultural

    do adolescente. To somente ento, ao chegar a esse ponto de viragem,

    comea o adolescente a prosseguir a vida da humanidade, a vida do gnero

    humano. Para expressar melhor a diferena entre a criana e o adolescente

    utilizaremos a tese de Hegel sobre a coisa em si e a coisa para si. Ele dizia

    que todas as coisas existem no comeo em si, por com isto a questo no se

    esgota e no processo de desenvolvimento a coisa se converte em coisa para

    si. O homem, dizia Hegel, em si uma criana cuja tarefa no consiste em

    permanecer no abstrato e incompleto em si, mas em ser tambm para si,

    3 O nome Vigotski encontrado na literatura de vrias formas, tais como Vygotsky, Vygotski, Vigotskii. A

    grafia Vigotski ser padronizada neste trabalho, porm, quando tratar-se de referncia a uma edio especfica, ser preservada a grafia usada naquela edio.

  • isto , converter-se em um ser livre e racional. Pois bem, essa

    transformao da criana do ser humano em si em adolescente o ser humano para si configura o contedo principal de toda a crise da idade de transio. (VYGOTSKI, 1996, p. 200, grifos meus).

    Mas a passagem do em-si ao para-si no um processo simples e tranquilo, nem na

    histria do gnero humano, nem na formao dos indivduos. A prpria humanidade no seu

    todo ainda no se converteu plenamente em humanidade para-si, pelo simples fato de se

    encontrar dividida em classes sociais e todas as demais divises e diferenas sociais da

    decorrentes. Isso tem impactos sobre o desenvolvimento psicolgico da criana e do

    adolescente, pois o prprio ser humano adulto se apresenta desigualmente desenvolvido.

    Sem se considerar a luta de classes e sem se utilizar a categoria de contradio, torna-

    se impossvel compreender a inter-relao entre o adolescente e o adulto, ou o processo que

    vai do em-si ao para-si. Como afirmou Vygotski (1991, p. 406), Ser donos da verdade sobre

    a pessoa e da prpria pessoa impossvel enquanto a humanidade no for dona da verdade

    sobre a sociedade e da prpria sociedade.

    Considerando-se que ainda vivemos na sociedade capitalista na qual a humanidade

    no dona nem da verdade sobre a sociedade nem da prpria sociedade, no seria de esperar

    que houvesse clareza quanto ao que a pessoa e que se tivesse pleno domnio da nossa

    prpria pessoa (o para-si). Nesse contexto no surpreende que haja tanta dificuldade por parte

    de especialistas e da sociedade em geral no que se refere tanto compreenso do que a

    adolescncia quanto s prprias relaes entre adultos e adolescentes, seja na escola, na

    famlia ou em outros contextos. Enfrentar essa situao requer, entre outras coisas, uma teoria

    marxista da individualidade para-si.

    A formao histrico-cultural do ser humano

    A psicologia histrico-cultural, escola psicolgica que surgiu na Unio Sovitica no

    incio do sculo XX, embasada no materialismo histrico-dialtico, concebe o ser humano

    como um produto scio-histrico. A partir do Homo sapiens constituiu-se uma nova etapa na

    formao do gnero humano. Antes desse estgio, a evoluo humana estava dependente

    apenas das leis biolgicas, caracterizada pelas alteraes anatmicas que herdavam de

    geraes precedentes por meio da hereditariedade.

    O Homo sapiens representa o momento na evoluo no qual o ser humano se liberta

    das leis naturais e, conforme Leontiev (1978, p. 263), [...] apenas as leis scio-histricas

    regero doravante a evoluo do homem. (grifo no original). O ser humano atual

    considerado pelo autor como definitivamente formado e, em consequncia, [...] possui j

  • todas as propriedades biolgicas necessrias ao seu desenvolvimento scio-histrico

    ilimitado. (Idem, p. 263).

    Segundo Leontiev, os seres humanos so de natureza essencialmente social e tudo o

    que neles h de propriamente humano provm da sua vida em sociedade, por meio da

    apropriao da cultura objetivada ao longo da histria desta sociedade. Segundo o autor,

    Podemos dizer que cada indivduo aprende a ser um homem. O que a

    natureza lhe d quando nasce no lhe basta para viver em sociedade. -lhe

    ainda preciso adquirir o que foi alcanado no decurso do desenvolvimento

    histrico da sociedade humana. O indivduo colocado diante de uma

    imensidade de riquezas acumuladas ao longo dos sculos por inumerveis

    geraes de homens, os nicos seres, no nosso planeta, que so criadores.

    As geraes humanas morrem e sucedem-se, mas aquilo que criaram passa

    s geraes seguintes que multiplicam e aperfeioam pelo trabalho e pela

    luta as riquezas que lhes foram transmitidas e passam o testemunho do desenvolvimento da humanidade. (LEONTIEV, 1978, p. 267, grifos no

    original).

    Aquilo que muitas vezes chamado de natureza humana um resultado da

    objetivao histrica da cultura e sua apropriao pelas novas geraes, as quais tambm

    produzem novas objetivaes, num processo que s pode ter fim com o desaparecimento da

    espcie humana. Por meio da atividade de trabalho, isto , de produo dos meios necessrios

    existncia social, ocorre o processo de humanizao da natureza e do prprio ser humano.

    A formao social do ser humano ocorre por meio do processo dialtico entre

    objetivao e apropriao das produes humanas ao longo da histria. Pelo trabalho, ou seja,

    por meio de sua atividade vital, o ser humano apropriou-se da natureza e a objetivou, ou seja,

    criou, a partir da natureza, objetos culturais para seu uso. O ser humano, portanto, ao

    apropriar-se da natureza (apropriao), produz objetos culturais (objetivao) para a satisfao

    de suas necessidades. Por sua vez, outros indivduos se apropriaro dessas produes

    humanas (apropriao) e, a partir delas, tambm se objetivaro (objetivao), e assim

    sucessivamente (DUARTE, 1993; HELLER, 1991).

    O que a natureza concede ao ser humano, portanto, no suficiente para uma vida em

    sociedade. H a necessidade do ser humano aprender a ser humano, por meio da

    apropriao das produes culturais objetivadas ao longo do processo scio-histrico da

    humanidade.

    Neste ponto urge distinguir as categorias espcie humana e gnero humano: De acordo

    com Duarte (1993), todo ser vivo faz parte de uma espcie. O ser humano faz parte da espcie

    humana, contendo suas especificidades inatas, caracterizadas pelos aspectos biolgicos que

  • diferenciam o ser humano dos demais animais. Esses aspectos biolgicos so transmitidos aos

    seres humanos por meio da herana gentica.

    No entanto, diferentemente da espcie humana, o gnero humano no transmitido ao

    indivduo por meio do cdigo gentico. Gnero humano, portanto, uma categoria constituda

    por caractersticas humanas formadas no processo scio-histrico, ou seja, gnero humano

    constitui as produes culturais da humanidade. Tais produes culturais s podem ser

    transmitidas aos outros indivduos pelo j citado processo dialtico entre apropriao e

    objetivao.

    A apropriao da cultura humana, segundo Leontiev (1978), constitui trs importantes

    caractersticas: a primeira que toda apropriao de uma produo humana implica a ao do

    indivduo. Isto quer dizer que o indivduo no passivo na apropriao da cultura, pois ele

    deve aprender a linguagem, o uso dos objetos e utenslios e os costumes de uma determinada

    sociedade de maneira adequada, ou seja, de acordo com a especificidade de cada objetivao.

    Essa apropriao adequada das produes humanas proporciona a segunda caracterstica da

    apropriao, qual seja: a partir da apropriao das produes humanas, o crtex cerebral

    tornou-se um rgo capaz de formar novos rgos funcionais.

    Esses novos rgos funcionais desenvolvidos a partir do processo de apropriao da

    cultura humana no so de origem biolgica, mas sim, culturais. So neoformaes, nos

    termos de Leontiev, ou funes psicolgicas superiores, nos termos de Vigotski, que se

    constituem no processo histrico-cultural, caracterizadas por serem funes especificamente

    humanas como a ateno voluntria, a memria lgica, o pensamento abstrato, o autodomnio

    da conduta, entre outras.

    Como a apropriao dessas objetivaes do gnero humano proporciona o

    desenvolvimento de neoformaes especificamente humanas? O ser humano, pela atividade,

    pelo trabalho, modifica a natureza para suprir suas prprias necessidades. Ocorre que, a cada

    necessidade suprida, surgem novas necessidades. Essas novas necessidades so mais

    complexas e, consequentemente, exigem do ser humano um psiquismo mais complexo, mais

    sofisticado. Essa complexidade do psiquismo humano caracterizada pelo desenvolvimento

    de funes psicolgicas superiores, funes especificamente humanas, conforme j citadas.

    A terceira e ltima caracterstica da apropriao da cultura humana, de acordo com

    Leontiev (1978), que o processo de apropriao das produes culturais das sociedades

    precedentes (levando em conta que tais contedos no podem ser transmitidos pelo cdigo

    gentico), s pode ocorrer por meio da transmisso desse saber por parte dos indivduos mais

    experientes. Essa transmisso da cultura humana s novas geraes pode ser denominada

    educao.

  • Contudo, o conjunto das objetivaes do gnero humano no se apresenta ao homem

    de forma homognea e direta. Para Heller (1991), essas objetivaes genricas, isto , essas

    produes do gnero humano, estruturam-se em nveis distintos dos quais se destacam dois, a

    saber, as objetivaes genricas em-si e as objetivaes genricas para-si.

    As objetivaes genricas em-si ocorrem no mbito da vida cotidiana. Tais

    objetivaes so produzidas e reproduzidas espontaneamente na vida cotidiana e so, de

    acordo com Heller (1991), de trs tipos. O primeiro caracteriza-se pelos utenslios e

    instrumentos; o segundo, pelos usos e costumes; e o terceiro pela linguagem falada. So

    consideradas cotidianas e espontneas, pois no exigem uma anlise crtica e ou cientfica, por

    parte de quem delas se apropria. No exigem reflexo, simplesmente esto dadas ao ser

    humano, desde o momento de seu nascimento. Por exemplo, ningum, que ensina uma

    criana de tenra idade a falar, ensinar, simultaneamente, as regras da gramtica. Alis,

    muitos adultos e muitas sociedades convivem normalmente sem o uso da gramtica, da

    semntica, da exegese etc.

    A apropriao das objetivaes genricas em-si acontece desde o incio da vida do

    indivduo, por meio da insero no meio cultural e se estende por toda a vida. Essas

    objetivaes em-si so resultantes das atividades do indivduo pela mediao com outros

    indivduos. Nesta esfera, o indivduo apropria-se dos instrumentos culturais, dos usos e

    costumes e da linguagem de sua sociedade. Faz-se necessrio dizer que, sem a apropriao

    dos objetos, da linguagem e dos usos e costumes de uma determinada cultura, seria

    impossvel a existncia do indivduo, bem como sua convivncia em uma sociedade humana.

    J as objetivaes genricas para-si so esferas no cotidianas e so constitudas a

    partir de objetivaes humanas superiores, a saber: a cincia, a filosofia e a arte. Heller (1991)

    diz que essas objetivaes so ontologicamente secundrias, ou seja, surgem num perodo

    tardio da histria humana e vrias formas de sociedade existiram ou existem sem esse tipo de

    objetivaes. As esferas de objetivaes genricas para-si tm sua gnese histrica nas

    objetivaes em-si, e a existncia das primeiras caracteriza certo estgio de desenvolvimento

    da sociedade. Essas objetivaes esto em constante processo de transformao de acordo

    com o desenvolvimento humano. As objetivaes genricas para-si, no entanto, compem

    esferas no cotidianas da vida social e representam o grau mximo de desenvolvimento at

    aqui alcanado historicamente pela humanidade (DUARTE, 1993; HELLER, 1991).

    A formao do indivduo consiste na apropriao de objetivaes genricas e na sua

    objetivao a partir do que fora apropriado. De acordo com a esfera de objetivao genrica

    com a qual o indivduo se relacione em um dado momento histrico, e conforme a natureza

  • das relaes que desse processo se estabelece, podemos falar da formao de uma

    individualidade em-si e de uma individualidade para-si.

    A formao da individualidade para-si

    De acordo com Duarte (1996), pode-se compreender que todo ser humano um

    indivduo, pois, ao se apropriar das objetivaes genricas em circunstncias singulares e se

    objetivar tambm em circunstncias singulares, cada ser humano constitui sua

    individualidade. A formao da individualidade um processo que tem seu incio desde o

    nascimento do ser humano e tem sua continuidade ao longo de toda a vida.

    A vida cotidiana a esfera da vida social na qual todo indivduo inicia sua formao.

    Segundo Duarte (1993; 1996), o indivduo aprende a viver sua cotidianidade e forma sua

    individualidade em-si. Porm, segundo este autor, o processo histrico de objetivao do

    gnero humano deve ser ascendente, ou seja, deve caminhar da genericidade em-si

    genericidade para-si. O indivduo s se desenvolve de modo pleno quando, a partir de sua

    individualidade em-si, formar sua individualidade para-si.

    A individualidade em-si espontnea, ou seja, no h reflexo nem relao consciente

    para com essa individualidade. O fato da formao do indivduo ter incio na esfera da

    individualidade em-si no expressa problema algum. Porm, o problema incide medida que

    o indivduo, durante toda sua vida, no consegue avanar da esfera da genericidade em-si

    genericidade para-si, ou seja, quando sua individualidade cristaliza-se enquanto

    individualidade em-si. Nesse caso, trata-se de uma individualidade em-si alienada.

    Faz-se necessrio destacar que o plano do em-si no deve ser identificado com a

    alienao. Podemos chamar de alienao, portanto, quando a vida toda do indivduo no

    ultrapassar o plano do em-si. O indivduo torna-se alienado quando sua vida gira em torno

    apenas da cotidianidade. O indivduo torna-se alienado quando as relaes sociais no

    permitem que as objetivaes no cotidianas, isto , a cincia, a arte e a filosofia, sejam

    utilizadas por ele como meio fundamental no processo de conscincia de sua prpria vida.

    Deste modo, o indivduo em-si alienado no pode conduzir a vida cotidiana, mas pelo

    contrrio, a vida cotidiana que o conduz. O indivduo em-si alienado assume, por

    consequncia, como natural, a hierarquia espontnea das atividades cotidianas que esto

    prontas em seu meio social imediato (DUARTE, 1993).

    Porm, deve-se ressaltar que o mbito do em-si necessrio a todos os indivduos.

    Duarte (1993; 1996) assevera que no podemos refletir o tempo todo sobre nossas aes e

    exemplifica tal assero numa ilustrao sobre o uso da linguagem. Para este autor, no se faz

  • necessrio requerer que uma criana, ao se apropriar da linguagem, reflita sobre esta

    linguagem. Da mesma maneira que o adulto, em sua cotidianidade, no reflete sobre a

    linguagem que utiliza.

    Continuando o exemplo de utilizao da linguagem, Duarte (1996) salienta que, por

    outro lado, numa atividade cientfica como ministrar aulas, por exemplo, um professor no

    deveria utilizar a espontaneidade, pois esta pertencente ao mbito do em-si. Neste caso, essa

    linguagem deveria ser uma linguagem para-si, ou seja, o professor deveria refletir sobre a

    linguagem utilizada, deveria ter uma relao consciente com essa linguagem.

    Desse modo, o indivduo que ascende condio de uma individualidade para-si no

    elimina de sua vida a cotidianidade, isto , o mbito da individualidade em-si. O que acontece

    que esse indivduo passa a controlar e guiar sua cotidianidade mediada pelas relaes

    conscientes que estabelece com as objetivaes genricas para-si.

    Neste mesmo contexto, faz-se necessrio ressaltar que a passagem do cotidiano ao no

    cotidiano na vida dos seres humanos, bem como o controle do para-si sobre o em-si, um

    processo dialtico de superao por incorporao. No h como considerar uma separao

    rgida entre o em-si e o para-si, pois ambas as esferas de objetivaes genricas no possuem

    uma existncia autnoma. O homem, ao superar sua cotidianidade, incorpora-a e avana s

    esferas no cotidianas, num processo de sntese dialtica entre ambas as esferas.

    O indivduo para-si pode dirigir sua vida cotidiana e fazer com que recuem as

    barreiras naturais, conforme apontam Heller (1991) e Duarte (1993), ambos baseados em

    Marx, sendo que, neste contexto, Duarte analisa de forma detalhada a questo dos trs

    estgios do desenvolvimento histrico da individualidade humana.

    Duarte parte dos pressupostos de Marx, nos Grundrisse, onde feita uma anlise

    histrica sobre o desenvolvimento da individualidade humana. Trata-se de um processo que

    tem caminhado de uma individualidade quase inexistente, situada no incio da histria

    humana, [...] criao, no capitalismo, das condies objetivas e subjetivas da

    individualidade livre e universal (ainda que sob a forma alienada de universalizao da

    relao mercantil). (DUARTE, 1996, p. 29).

    Portanto, o primeiro estgio do desenvolvimento histrico da humanidade, conforme

    Duarte, baseado em Marx, acontece nas sociedades pr-capitalistas, cuja individualidade

    humana caracterizava-se de maneira limitada e particular. Duarte (1993) afirma que as

    sociedades pr-capitalistas podem ser denominadas sociedades naturais pelo fato de que,

    nelas, os seres humanos se relacionam [...] com as condies sociais de sua existncia (seu

    corpo inorgnico) da mesma forma que se relacionam com as condies naturais-biolgicas

    de sua existncia (seu corpo orgnico). (p. 163). Alm dos meios de trabalho, tambm se

  • constitua, em parte dessas condies naturais, o fato do indivduo pertencer a uma

    comunidade. Tais condies eram, nessas sociedades, pressupostos da prpria existncia de

    todas as pessoas. Alm disso, o carter esttico da individualidade nessas sociedades era

    caracterizado pela predominncia da tradio, pelo pensamento de que a idade adulta marca o

    fim do desenvolvimento individual e pela no aceitao de princpios que ultrapassem a

    experincia local.

    O segundo estgio do desenvolvimento da individualidade humana em Marx o

    capitalismo. Duarte (1993) relata que a sociedade burguesa caracterizada por romper a

    relao natural entre indivduo, comunidade e condies objetivas de produo. Ao romper

    esses limites presentes nas sociedades naturais, o capitalismo cria possibilidades para o

    desenvolvimento da individualidade livre e universal.

    O capitalismo o ltimo estgio da pr-histria da humanidade, pois nele ocorre o

    que se pode chamar de uma unificao em-si da humanidade, uma unificao da qual os seres

    humanos no so sujeitos coletiva e conscientemente organizados. O ser humano, no

    capitalismo, unifica-se por esse lao alienado que so as relaes mercantis. A verdadeira

    histria da humanidade comear com a superao do capitalismo.

    A verdadeira histria da humanidade unificada, para Marx, trata-se da histria onde os

    seres humanos podem objetivar-se de forma plena e rica, sem obstculos, relacionando-se

    com as objetivaes genricas de forma consciente, ao ponto de se tornarem indivduos livres

    e universais. Segundo Duarte (1993, p. 169), isso no poderia acontecer sem a passagem das

    sociedades naturais para as sociedades sociais. Porm, no capitalismo, esse processo no se

    realiza plenamente.

    O capitalismo no se realiza plenamente como sociedade social. Ele se estrutura sobre

    as relaes entre capital e trabalho, baseando-se na extrao da mais-valia e universalizando o

    valor de troca como mediao nas relaes entre os seres humanos. Tudo isso naturalizado

    pela conscincia fetichista que prevalece na cotidianidade capitalista. Caracterizado por sua

    contradio, o capitalismo promove, ao mesmo tempo, a mxima alienao e a possibilidade

    de desenvolvimento livre e universal. Duarte (1993) afirma que a partir dessa contradio do

    segundo estgio do desenvolvimento da individualidade humana que ser possvel encontrar

    os pressupostos para a passagem ao terceiro estgio.

    O terceiro estgio do desenvolvimento da individualidade humana o da sociedade

    comunista, na qual, entre outras coisas, sero criadas as condies para a apropriao

    socializada das objetivaes mais desenvolvidas at aqui produzidas pelo gnero humano, que

    possibilitem o desenvolvimento de um ser livre e universal. Para tanto, Duarte (1993, p. 174)

    ressalta a necessidade premente de [...] um difcil e contraditrio, porm necessrio, processo

  • de elevao da individualidade em-si individualidade para-si, buscando-se conduzir esse

    processo, em todos os mbitos da vida humana, aos mximos limites possveis nas condies

    da sociedade alienada.

    Para Duarte (1993, p. 175):

    [...] a passagem para o terceiro estgio do desenvolvimento da individualidade humana no se realizar se os homens no se apropriarem

    das possibilidades j existentes de ascenso individualidade para-si. A

    criao de uma sociedade social na qual singularidade seja sinnimo de

    individualidade livre e universal, no se realizar a no ser enquanto uma

    obra coletiva de indivduos que se unam para criar conscientemente formas

    de vida no alienada e lutar por uma sociedade na qual essas formas de vida

    possam se desenvolver livremente.

    Na citao acima o autor remete a dois importantes aspectos da passagem ao terceiro

    estgio do desenvolvimento da individualidade humana. O primeiro diz respeito necessidade

    da apropriao das esferas das objetivaes para-si existentes na sociedade capitalista e no

    esperarmos outra sociedade para que isso acontea. O segundo aspecto est relacionado

    necessidade de uma obra coletiva de indivduos que lutem por um processo de superao das

    relaes sociais de dominao. E a condio fundamental para que isso acontea a formao

    da individualidade para-si.

    Neste sentido que a contribuio da educao escolar para esse processo ressaltada

    como produo das possibilidades de apropriao, por parte dos indivduos, das objetivaes

    genricas para-si. Portanto,

    Fazer avanar essa individualidade, ainda dentro dos limites da sociedade

    capitalista, no significa resignar-se com as possibilidades existentes nessa

    sociedade, mas a partir delas construir uma nova sntese do mudar a vida e do mudar a sociedade. (SVE, 1989, p. 172).

    A liberdade do indivduo jamais ser plena numa sociedade dividida em classes.

    Somente com a superao do capitalismo, da propriedade privada, da diviso social do

    trabalho e, por conseguinte, da alienao, podero os indivduos alcanar a verdadeira

    liberdade. Porm, acredita-se que o trabalho educativo possa contribuir, mesmo no interior

    das relaes sociais de dominao, para o avano da individualidade humana, na busca da

    superao, por incorporao, da individualidade em-si ao desenvolvimento da individualidade

    para-si. Ou seja, na formao de um indivduo que tenha uma relao consciente com o

    gnero humano. Segundo Duarte (1993, p. 185),

  • [...] o processo educativo escolar no pode ser visto apenas como um

    processo que coloca o indivduo em contato com as objetivaes genricas

    para-si, mas tambm e no secundariamente, como um processo que torna as

    objetivaes genricas para-si uma necessidade para o pleno

    desenvolvimento do indivduo.

    nesse contexto que se pode inferir que a especificidade da educao escolar a de

    criar necessidades de apropriao, por parte do indivduo, das objetivaes genricas para-si.

    Para tanto, a educao escolar deve ultrapassar os limites da cotidianidade e transmitir o

    conhecimento sistematizado, atuando, portanto, na Zona de Desenvolvimento Iminente do

    aluno, de acordo com os pressupostos de Vigotski4.

    Os elementos fundamentais para a formao da individualidade para-si devem ser

    observados como um processo em movimento, como um processo dialtico. A partir da

    apropriao das objetivaes genricas para-si, desenvolve-se no indivduo a concepo de

    mundo para-si, ou seja, uma concepo de mundo que ultrapassa os limites cotidianos e

    espontneos da cotidianidade. A partir da concepo de mundo para-si, o indivduo comea a

    relacionar-se com sua cotidianidade de maneira cada vez mais consciente. Isto quer dizer que

    o indivduo para-si torna-se capaz de hierarquizar, de maneira consciente, suas atividades

    cotidianas. O processo, como foi dito, dialtico, pois, consequentemente, tal hierarquizao

    da vida cotidiana possibilita uma nova estruturao da concepo de mundo, que, por sua vez,

    promover uma relao cada vez mais consciente com a atividade cotidiana etc. (ANJOS,

    2013; DUARTE, 1993).

    O indivduo para-si no retirado de sua vida cotidiana. Heller (1991) assevera que o

    indivduo, ou, na expresso de Duarte (1993), o indivduo para-si, assim como o indivduo

    em-si, tambm vive sua cotidianidade. Ele se apropria da linguagem especfica de uma

    sociedade, internaliza as vrias maneiras de utilizao dos utenslios e instrumentos, alm de

    assimilar os costumes impostos no mundo em que vive. A diferena reside em que, alm da

    genericidade em-si, a vida do indivduo para-si tambm edificada sobre os postulados da

    genericidade para-si.

    Com isso, o indivduo para-si tem uma relao consciente com sua cotidianidade, ao

    ponto de aceitar ou rechaar algumas prticas e pensamentos impostos pela vida cotidiana.

    Principalmente quando as produes, os pensamentos, os preconceitos, a linguagem etc. da

    vida cotidiana apresentam-se de forma oposta aos pressupostos da genericidade para-si. O

    indivduo para-si pode, ento, hierarquizar sua atividade, ele pode escolher, dentre vrias

    atividades da vida cotidiana, as atividades que lhe aprazem e as que mais lhe proporcionaro

    4 A discusso desse tema no ser possvel dentro dos limites de um artigo. Recomendamos a leitura de Martins

    (2012).

  • desenvolvimento. A capacidade de hierarquizar, de maneira consciente, as atividades da vida

    cotidiana, Heller (2004) denominou de conduo da vida.

    Como o indivduo para-si sabe qual atitude tomar diante das diversas atividades da

    vida cotidiana? Ele s pode hierarquizar suas atividades a partir da relao consciente que tem

    com as objetivaes genricas para-si. A vida cotidiana no mais conduz a vida do indivduo,

    pois ele a conduz de maneira consciente, libertando-se do senso comum.

    A partir do estudo dessa categoria, esta pesquisa apresenta contribuies para a

    educao escolar de adolescentes. O objetivo desta pesquisa que os professores tenham em

    mos aportes tericos que no apenas descrevam como so os adolescentes, mas,

    parafraseando Duarte (1996, p. 30), sobretudo tragam uma reflexo sobre o que eles, os

    adolescentes, podem vir a ser.

    A educao escolar de adolescentes e a formao da individualidade para-si

    A aproximao da psicologia histrico-cultural com a teoria filosfico-ontolgica da

    individualidade para-si, no objetivo de contribuir para a educao escolar de adolescentes,

    deu-se, neste artigo, a partir da importncia que Vygotski (1996, p. 200) deu passagem do

    em-si ao para-si no desenvolvimento do ser humano. Ou seja, no processo de

    desenvolvimento da infncia para a adolescncia, pois essa transformao da criana do ser

    humano em si em adolescente o ser humano para si configura o contedo principal de toda

    a crise da idade de transio.

    Diante da citao acima, destaca-se o ponto fulcral para a educao escolar de

    adolescentes: a cincia, a arte, a filosofia e demais esferas de objetivaes genricas para-si

    podero ser apropriadas de forma aprofundada somente a partir da adolescncia, por meio do

    pensamento conceitual. Esse raciocnio pode ser dividido em dois pontos: o primeiro seria o

    de que o conhecimento dos processos essenciais da realidade s possvel por meio das

    abstraes (DUARTE, 2000) e, portanto, nos termos de Vigotski, somente quando o indivduo

    torna-se capaz de pensar por conceitos que ele pode compreender a realidade para alm das

    aparncias, para alm do imediato; o segundo raciocnio refere-se a quando o indivduo, na

    ontognese, desenvolve o pensamento por conceitos e, para Vigotski, a partir da

    adolescncia.

    Isso no significa, porm, que tais mudanas tenham incio somente na adolescncia.

    Pensar dessa forma seria adotar uma atitude que desconsidera a processualidade, isto , a

    gnese, o que seria profundamente oposto atitude metodolgica preconizada por Vigotski.

    Na adolescncia ocorre um salto qualitativo nas transformaes que se iniciam na infncia.

  • Portanto, preciso sinalizar que o desenvolvimento, segundo Vigotski, superao

    por incorporao tanto do legado da natureza quanto da prpria cultura. Isso quer dizer que a

    formao de conceitos, a viso de mundo, a estabilizao dos traos de personalidade, o

    autodomnio da conduta, no principiam na adolescncia. Nela, assumem seu auge formativo

    devido ao desenvolvimento do pensamento por conceitos. Faz-se necessrio destacar esse

    assunto a fim de no parecer que este trabalho compreende a adolescncia como uma fase

    isolada do desenvolvimento humano.

    O pensamento por conceitos no se desenvolve de forma natural, inata, como algo

    inerente ao ser humano. Tampouco se manifesta de forma pronta e acabada. Trata-se,

    portanto, de um processo dialtico a partir do pensamento sincrtico, passando ao pensamento

    por complexos e deste ao pensamento por conceitos; sendo que este ltimo a forma superior

    de pensamento, o qual se refere nova forma de pensamento na adolescncia (ANJOS, 2013).

    Porm, a formao dos verdadeiros conceitos, dos conceitos cientficos, s possvel

    por meio da educao escolar. Para Vygotski (2001), os conceitos cotidianos so frutos da

    atividade cotidiana, da vida espontnea da criana, ao passo que a formao dos conceitos

    cientficos se d por meio da educao escolar. Os conceitos cientficos so frutos, portanto,

    da transmisso de conhecimentos sistematizados, por parte do trabalho pedaggico, e da

    apropriao desse contedo por parte do adolescente escolar.

    Considerando-se que, para a psicologia histrico-cultural, a adolescncia um

    momento privilegiado tanto pelo desenvolvimento do pensamento por conceitos como pela

    consequente formao da concepo de mundo e desenvolvimento da autoconscincia; e que

    para a teoria da individualidade para-si, um dos fatores decisivos na formao humana o

    desenvolvimento de relaes conscientes entre o indivduo e as esferas mais elevadas de

    objetivao do gnero humano como a cincia, a arte e a filosofia; pode-se inferir que a

    educao escolar contribui decisivamente, por meio do ensino do conhecimento

    sistematizado, para o desenvolvimento psquico e para a formao da individualidade dos

    adolescentes no sentido da superao dos limites da vida cotidiana.

    Diante da especificidade da educao escolar, qual seja, a socializao do

    conhecimento sistematizado, este artigo defende que a prtica pedaggica caracterizada pela

    transmisso de contedos clssicos, o saber sistematizado, pode proporcionar o

    desenvolvimento psquico do aluno, conduzindo-o no processo de superao por incorporao

    das funes psicolgicas espontneas s funes psicolgicas voluntrias, ou seja, a passagem

    do em-si ao para-si. De acordo com Saviani (2011, p. 14),

  • [...] a escola uma instituio cujo papel consiste na socializao do saber

    sistematizado. Vejam bem: eu disse saber sistematizado; no se trata, pois,

    de qualquer tipo de saber. Portanto, a escola diz respeito ao conhecimento

    elaborado e no ao conhecimento espontneo; ao saber sistematizado e no

    ao saber fragmentado; cultura erudita e no cultura popular.

    importante dizer que, ao transmitir o saber no cotidiano, isso no significa que a

    educao escolar deva anular o cotidiano do aluno, alis, isso seria impossvel. O objetivo de

    transmitir, ao aluno, os contedos no cotidianos a possibilidade de formao de indivduos

    que mantenham uma relao cada vez mais consciente com a cotidianidade, mediada pela

    apropriao das objetivaes genricas para-si. Trata-se, portanto, de abrir possibilidades para

    que o indivduo no seja mais conduzido por sua cotidianidade, favorecendo a formao de

    uma individualidade que hierarquize conscientemente a atividade da vida cotidiana.

    Ao contrrio de algumas pedagogias contemporneas que defendem o cotidiano e a

    espontaneidade como pressupostos indispensveis educao escolar, considera-se, neste

    estudo, que o trabalho educativo deve diferenciar-se do cotidiano. A escola deve afastar o

    aluno da vida cotidiana e formar um espao diferenciado para o estudo do conhecimento

    sistematizado, possibilitando a ampliao das necessidades do indivduo para alm daquelas

    limitadas esfera da vida cotidiana e daquelas pautadas apenas nas competncias de alunos e

    professores, a fim de suprirem as necessidades do capital.

    Esse afastamento no significa, de maneira alguma, uma fuga da realidade. Trata-se

    da construo das mediaes entre a prtica cotidiana e a teoria, de maneira que aquela no

    seja guiada pura e simplesmente pelo pragmatismo imediatista e esta no se transforme em

    pura especulao metafsica e at mesmo transcendente.

    O processo de distanciamento do cotidiano para que, em ltima instncia, supra as

    necessidades do prprio cotidiano, no um processo to simples para ambos os lados, ou

    seja, tanto para o professor, quanto para o aluno, porm, necessrio. Tal processo exige

    teleologia. Lukcs (2004, p. 105) afirma que [...] a posio teleolgica conscientemente

    executada produz um distanciamento no reflexo da realidade; que com este distanciamento

    nasce a relao sujeito-objeto no sentido estrito do termo. A cincia, por exemplo, deve

    distanciar-se do senso comum para, justamente, analisar suas mltiplas determinaes, a fim

    de suprir as necessidades do prprio senso comum.

    Para conduzir o aluno na formao da individualidade para-si, o professor deve

    romper com o conhecimento imediato do fenmeno e isso s pode acontecer a partir da

    mediao das objetivaes genricas para-si. Como foi dito, tal processo no condiz com as

    hegemnicas prticas pedaggicas voltadas ao cotidiano do aluno. Isso exige um grau maior

  • de abstrao por parte do professor, bem como por parte do adolescente, cuja fase do

    desenvolvimento humano est propcia para o desenvolvimento do pensamento conceitual.

    O desenvolvimento do ser humano, nas suas mximas possibilidades, no se d de

    maneira espontnea e nem pode ser considerado um fenmeno natural, biolgico. Os

    conceitos cientficos se formam precisamente durante o processo de ensino de um

    determinado sistema de conhecimentos no cotidianos. Luria (2010, p.70) afirma que no h

    dvida de que a transio do pensamento situacional para o pensamento taxonmico

    conceitual est relacionada a uma mudana bsica no tipo de atividade em que o indivduo

    est envolvido. Ou seja, enquanto os conceitos espontneos se formam na prtica cotidiana

    da criana, o desenvolvimento dos conceitos cientficos, do pensamento conceitual, depender

    das operaes tericas que a criana aprende a realizar na escola. O autor prossegue dizendo

    que, como o professor programa esse treinamento, ele resulta na formao de conceitos

    cientficos e no cotidianos.

    Pode-se inferir, portanto, que a formao dos conceitos cientficos depender da

    atividade na qual o indivduo estiver inserido. E, de acordo com Luria, o professor deve

    programar esse contedo, ou seja, a atividade docente deve ser intencional, direta e no

    espontnea. No se trata de qualquer contedo, mas se o objetivo a formao de conceitos

    cientficos, os contedos escolares devem ser aqueles j discutidos nesse trabalho, qual seja:

    os saberes clssicos dos quais falou Saviani (2011).

    Diante de tal importncia que tem a educao escolar nesse processo, fica evidente a

    urgncia da superao das ideias propagadas pelas pedagogias contemporneas baseadas no

    lema aprender a aprender5. Segundo Duarte (2006), uma ideia muito difundida pelas

    pedagogias contemporneas a de que o cotidiano do aluno deve ser a referncia central para

    as atividades escolares. Na perspectiva dessas pedagogias, so considerados contedos

    significativos e relevantes para o aluno aqueles que tenham alguma utilidade prtica em seu

    cotidiano.

    Duarte (2006) denomina de pedagogias do aprender a aprender as que, nesse

    contexto da relao entre educao escolar e conhecimento, apresentam uma viso negativa

    sobre a transmisso do conhecimento cientfico por parte da escola, limitando este

    conhecimento e atrelando-o ao cotidiano. Encontra-se tambm uma descaracterizao do

    professor como mediador no processo de apropriao do conhecimento, ou seja, a

    indispensvel mediao realizada pelo professor no entendida como transmisso de

    conhecimento, como ensino, sendo reduzida a uma espcie de acompanhamento da

    aprendizagem que ocorreria de forma autnoma desde o incio do processo educativo. No

    5 Para um estudo aprofundado sobre o tema, recomendamos a leitura de Duarte (2006).

  • limite, trata-se do postulado segundo o qual o aluno deve aprender sozinho, deve aprender a

    aprender.

    H que se considerar que a patologizao da adolescncia no deixa de ser, tambm,

    produzida no descaso formao da individualidade para-si ao longo de toda a formao da

    pessoa. E, tratando-se de educao escolar, esse descaso ocorre desde a educao infantil.

    Parece que o grande problema enfrentado no mbito da educao escolar de adolescentes

    que esse momento de viragem explicita objetivamente o produto oculto da formao

    antecedente.

    A educao escolar, no seu papel de mediadora entre o cotidiano e o no cotidiano,

    tem em sua tarefa fulcral a transmisso dos contedos clssicos, contedos estes necessrios

    para a formao do pensamento por conceitos. E este um ponto imprescindvel para o

    desenvolvimento da formao da individualidade para-si, pois, para Vygotski (2001, p. 214),

    [...] a tomada de conscincia vem pela porta dos conceitos cientficos. O trabalho educativo,

    portanto, possibilita ao indivduo ir alm dos limites dos conceitos cotidianos, proporcionando

    a inteligibilidade do real.

    Consideraes finais

    A individualidade para-si foi aqui apresentada como mxima possibilidade da

    formao do indivduo e tal processo realizado a partir da relao dialtica entre objetivao

    e apropriao das objetivaes genricas para-si, ou seja, das produes humanas mais

    elaboradas, no cotidianas como a cincia, a arte e a filosofia. Concluiu-se, portanto, que um

    dos fatores decisivos na formao humana o desenvolvimento de relaes conscientes entre

    o indivduo e as esferas mais elevadas de objetivao do gnero humano e que a adolescncia

    pode ser um momento de salto qualitativo na apropriao dessas objetivaes genricas.

    O conhecimento dos processos essenciais da realidade s possvel por meio das

    abstraes e, de acordo com Vygotski (1996), o indivduo torna-se capaz de compreender a

    realidade para alm das aparncias, ou seja, torna-se capaz de compreender a essncia dos

    fenmenos, somente a partir do pensamento por conceitos. E, segundo o autor, a partir da

    adolescncia que se desenvolve o pensamento por conceitos.

    A partir dos conceitos cientficos, o adolescente pode compreender o que no est ao

    alcance dos conceitos cotidianos, conhecendo a essncia do objeto ou fenmeno dado. A

    educao escolar, portanto, tem seu papel fundamental nesse processo, pois sua especificidade

    a transmisso dos contedos no cotidianos, das objetivaes genricas para-si. Desse

    modo, a educao escolar pode contribuir decisivamente para o desenvolvimento psquico e

  • para a formao da individualidade dos adolescentes no sentido da superao dos limites da

    vida cotidiana.

    Tal processo pode no ocorrer se a prtica pedaggica limitar-se ao cotidiano dos

    alunos. A educao escolar poder conduzir o indivduo no processo de passagem das funes

    psicolgicas espontneas s funes psicolgicas voluntrias, ou seja, a passagem do em-si ao

    para-si, somente a partir da transmisso dos contedos clssicos, eruditos, no cotidianos,

    conforme postula a pedagogia histrico-crtica (SAVIANI, 2011).

    Porm, a passagem do em-si ao para-si no um processo simples, mas sim um

    processo que pode gerar conflitos, tanto na histria do gnero humano, quanto na formao do

    indivduo. E isso ocorre principalmente numa sociedade dividida em classes, onde a maioria

    das pessoas impossibilitada de se converter plenamente em humanidade para-si. Numa

    sociedade em que at o ser humano adulto se apresenta desigualmente desenvolvido, h de se

    esperar tambm um impacto negativo sobre o desenvolvimento psicolgico da criana e do

    adolescente. Da a manifestao das crises da adolescncia, pois, numa sociedade

    contraditria e alienante, a crise na idade de transio torna-se um evento generalizado,

    gerando a aparncia de um fenmeno natural e quase insupervel.

    Neste trabalho discutiu-se a importncia da educao escolar para a transmisso dos

    conhecimentos clssicos, como elemento necessrio no processo de formao da

    individualidade para-si, para o desenvolvimento psquico na adolescncia. Para tanto,

    destacou-se que o trabalho pedaggico no deve reduzir sua atuao ao mundo do

    adolescente; pelo contrrio, considerando-se que a adolescncia uma fase de transio para

    a vida adulta, cabe educao escolar apresentar ao adolescente o mundo adulto, o modelo

    adulto, a fim de promover-lhe o desenvolvimento psquico.

    Finalizando este estudo, pode-se afirmar que, somente a partir da desfetichizao da

    adolescncia e da superao dos iderios das pedagogias do aprender a aprender (as quais

    defendem a cotidianidade como modelo e limite para a educao escolar e a descaracterizao

    do trabalho do professor), que se pode alcanar o que foi proposto neste trabalho, ou seja, a

    contribuio da educao escolar para o desenvolvimento psicolgico do adolescente, para a

    formao de sua individualidade para-si.

    Embora haja ainda muito que se produzir de aportes tericos para a educao escolar

    de adolescentes, considera-se que a concepo da psicologia histrico-cultural sobre

    adolescncia, bem como os pressupostos da teoria da individualidade para-si, juntamente com

    os preceitos da pedagogia histrico-crtica, compem aportes tericos importantes que

    fundamentam a luta por uma educao escolar de qualidade.

  • REFERNCIAS

    ANJOS, R. E. O desenvolvimento psquico na idade de transio e a formao da

    individualidade para-si: aportes tericos para a educao escolar de adolescentes. 2013, 167

    f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Cincias e Letras, Universidades Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho, UNESP, Araraquara, 2013.

    DUARTE, N. A individualidade para-si: contribuio a uma teoria histrico-social da

    formao do indivduo. Campinas, SP: Autores Associados, 1993. (Coleo contempornea).

    DUARTE, N. Educao escolar, teoria do cotidiano e a escola de Vigotski. Campinas:

    Autores Associados, 1996. (coleo Polmicas do nosso tempo; v. 55).

    DUARTE, N. A anatomia do homem a chave da anatomia do macaco: a dialtica em

    Vigotski e em Marx e a questo do saber objetivo na educao escolar. Educao &

    Sociedade, ano XXI, n 71, Julho/2000, p. 79 115.

    DUARTE, N. Vigotski e o aprender a aprender: crtica s apropriaes neoliberais e ps-modernas da teoria vigotskiana. 4. ed. Campinas, SP: Autores Associados , 2006.

    HELLER, A. Sociologa de la vida cotidiana. Barcelona: Ediciones Pennsula, 1991.

    HELLER, A. Estrutura da vida cotidiana. In: ______. O cotidiano e a histria. 7. ed. So

    Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 41.

    LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.

    LUKCS, G. Ontologa del ser social: el trabajo. Buenos Aires: Herramienta, 2004.

    LURIA, A. R. Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos culturais e sociais. 6. ed. So

    Paulo: cone, 2010.

    MARTINS, L. M. O desenvolvimento do psiquismo e a educao escolar: contribuies

    luz da psicologia histrico-cultural e da pedagogia histrico-crtica. 2012. 249f. Tese (Livre

    docncia) UNESP Bauru, SP, 2012.

    SAVIANI, D. Pedagogia Histrico-Crtica: primeiras aproximaes. 11. ed. Campinas:

    Autores Associados, 2011.

    SVE, L. A personalidade em gestao. In: SILVEIRA, P.; DORAY, B. (Orgs.). Elementos

    para uma teoria marxista da subjetividade. So Paulo: Edies Vrtice, 1989, p. 147-178.

    VIGOTSKI, L. S. Manuscrito de 1929. Educao & Sociedade, ano XXI, n 71, Julho/2000,

    p. 21 44.

    VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Tomo I. Madri: Visor e MEC, 1991.

    VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Tomo II. Madri: A. Machado Libros, S. A., 2001.

    VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Tomo III. Madrid: Visor, 1995.

    VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Tomo IV. Madri: Visor, 1996.