luminária - a educação escolar de adolescentes e a formação da individualidade para-si
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Aportes teóricos para educação escolar de adolescentes IIITRANSCRIPT
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Luminria Revista da Universidade Estadual do Paran UNESPAR Campus de Unio da
Vitria. n. 15 v. 1 Unio da Vitria, 1 semestre de 2013.
A EDUCAO ESCOLAR DE ADOLESCENTES E A FORMAO DA
INDIVIDUALIDADE PARA-SI1
SCHOOL EDUCATION OF ADOLESCENTS AND THE DEVELOPMENT OF
INDIVIDUALITY FOR ITSELF
Ricardo Eleutrio dos Anjos2
RESUMO: O presente artigo parte integrante de uma pesquisa de mestrado que apresenta
aportes tericos para a educao escolar de adolescentes, por meio da aproximao entre a
psicologia histrico-cultural e a teoria filosfico-ontolgica da individualidade para-si. A
adolescncia aqui apresentada como uma fase privilegiada, no desenvolvimento humano,
para a formao do pensamento por conceitos, o qual capacita o adolescente a apropriar-se
adequadamente das objetivaes genricas para-si como a cincia, a arte e a filosofia. O
estudo conclui que a educao escolar dos adolescentes deve ser um processo mediador entre
a esfera da vida cotidiana e as esferas no cotidianas da prtica social, corroborando o
desenvolvimento psquico dos adolescentes, conduzindo-os no processo da formao da
individualidade para-si.
Palavras-chave: Adolescncia. Educao Escolar. Individualidade para-si.
ABSTRACT: This article is part of a research that has theoretical support for school
education of adolescents, through the integration between cultural-historical psychology and
the philosophical-ontological theory of individuality for itself. Adolescence is presented here
as a privileged stage in human development, for the development of thought by concepts,
which enables adolescents to properly take ownership of generic objectifications for itself,
like science, art and philosophy. The study concludes that education of adolescents should be
a mediating process between the spheres of daily life and non-daily social practice,
corroborating the psychological development of adolescents, leading them in the process of
developing individuality for itself.
Keywords: Adolescence. School Education. Individuality for Itself.
1 Este artigo parte integrante de uma pesquisa de mestrado que contou com o apoio financeiro da CAPES, sob a
orientao do professor Dr. Newton Duarte, livre docente do Departamento de Psicologia da Educao da
Fclar/UNESP de Araraquara-SP e coorientao da professora Dr. Lgia Mrcia Martins, livre docente em
Psicologia da Educao pela UNESP de Bauru-SP. 2 Psiclogo, mestre em Educao Escolar e Doutorando em Educao Escolar pela UNESP de Araraquara.
Integrante do grupo de pesquisa cadastrado no CNPq com o ttulo Estudos Marxistas em Educao, ligado ao Departamento de Psicologia da Educao da UNESP de Araraquara. Professor de Psicologia na UNIP, campus
de Araatuba-SP e na FATEB em Birigui-SP. E-mail: [email protected]
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Introduo
Vigotski3 e outros autores de sua poca chamavam a adolescncia de idade de
transio, ou seja, ela estaria entre a infncia e a vida adulta. O prprio conceito de
desenvolvimento psicolgico carrega o pressuposto de que o adulto um ser mais
desenvolvido do que a criana e o adolescente. Nesse sentido, a infncia e a adolescncia no
existem em si mesmas, mas em relao com o seu vir a ser, ou seja, em relao com o adulto.
Vigotski (2000, p. 27) afirma que, no desenvolvimento cultural do indivduo, a relao
entre ontognese e filognese distinta daquela que ocorre no desenvolvimento orgnico: L
a filognese est includa em potencial e se repete na ontognese, ao passo que no
desenvolvimento cultural haveria uma inter-relao real entre filognese e ontognese. Mas
por que inter-relao real? Porque no h verdadeira interao entre o embrio e a me, entre
o ser j desenvolvido e o ser em formao, ao passo que [...] no desenvolvimento cultural,
essa inter-relao a fora motriz bsica do desenvolvimento.
Decorre, entretanto, dessa premissa, o questionamento sobre o que caracteriza esse
desenvolvimento, isto , o que um ser humano plenamente desenvolvido. J de partida
esclarece-se que a resposta a essa pergunta no dever ser encontrada num modelo metafsico
de ser humano, mas na perspectiva do materialismo histrico-dialtico, ou seja, na concepo
marxista da histria humana. Nada disso faz sentido na perspectiva do relativismo ps-
moderno no qual perde todo significado a prpria ideia de desenvolvimento. Essa questo j
seria por si mesma suficiente para desautorizar todas as tentativas de incorporao da
psicologia vigotskiana ideologia ps-moderna, analisadas criticamente por Duarte (2000).
O prprio Vigotski, ao analisar o desenvolvimento da personalidade na adolescncia,
indicou a direo na qual ocorreria o desenvolvimento que vai da infncia vida adulta, bem
como a funo da adolescncia como fase de transio:
A frase de J. J. Rousseau referente ao perodo de maturao sexual, de que o
homem nasce duas vezes, primeiro para existir e depois para continuar a
espcie, pode aplicar-se tambm ao desenvolvimento psicolgico e cultural
do adolescente. To somente ento, ao chegar a esse ponto de viragem,
comea o adolescente a prosseguir a vida da humanidade, a vida do gnero
humano. Para expressar melhor a diferena entre a criana e o adolescente
utilizaremos a tese de Hegel sobre a coisa em si e a coisa para si. Ele dizia
que todas as coisas existem no comeo em si, por com isto a questo no se
esgota e no processo de desenvolvimento a coisa se converte em coisa para
si. O homem, dizia Hegel, em si uma criana cuja tarefa no consiste em
permanecer no abstrato e incompleto em si, mas em ser tambm para si,
3 O nome Vigotski encontrado na literatura de vrias formas, tais como Vygotsky, Vygotski, Vigotskii. A
grafia Vigotski ser padronizada neste trabalho, porm, quando tratar-se de referncia a uma edio especfica, ser preservada a grafia usada naquela edio.
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isto , converter-se em um ser livre e racional. Pois bem, essa
transformao da criana do ser humano em si em adolescente o ser humano para si configura o contedo principal de toda a crise da idade de transio. (VYGOTSKI, 1996, p. 200, grifos meus).
Mas a passagem do em-si ao para-si no um processo simples e tranquilo, nem na
histria do gnero humano, nem na formao dos indivduos. A prpria humanidade no seu
todo ainda no se converteu plenamente em humanidade para-si, pelo simples fato de se
encontrar dividida em classes sociais e todas as demais divises e diferenas sociais da
decorrentes. Isso tem impactos sobre o desenvolvimento psicolgico da criana e do
adolescente, pois o prprio ser humano adulto se apresenta desigualmente desenvolvido.
Sem se considerar a luta de classes e sem se utilizar a categoria de contradio, torna-
se impossvel compreender a inter-relao entre o adolescente e o adulto, ou o processo que
vai do em-si ao para-si. Como afirmou Vygotski (1991, p. 406), Ser donos da verdade sobre
a pessoa e da prpria pessoa impossvel enquanto a humanidade no for dona da verdade
sobre a sociedade e da prpria sociedade.
Considerando-se que ainda vivemos na sociedade capitalista na qual a humanidade
no dona nem da verdade sobre a sociedade nem da prpria sociedade, no seria de esperar
que houvesse clareza quanto ao que a pessoa e que se tivesse pleno domnio da nossa
prpria pessoa (o para-si). Nesse contexto no surpreende que haja tanta dificuldade por parte
de especialistas e da sociedade em geral no que se refere tanto compreenso do que a
adolescncia quanto s prprias relaes entre adultos e adolescentes, seja na escola, na
famlia ou em outros contextos. Enfrentar essa situao requer, entre outras coisas, uma teoria
marxista da individualidade para-si.
A formao histrico-cultural do ser humano
A psicologia histrico-cultural, escola psicolgica que surgiu na Unio Sovitica no
incio do sculo XX, embasada no materialismo histrico-dialtico, concebe o ser humano
como um produto scio-histrico. A partir do Homo sapiens constituiu-se uma nova etapa na
formao do gnero humano. Antes desse estgio, a evoluo humana estava dependente
apenas das leis biolgicas, caracterizada pelas alteraes anatmicas que herdavam de
geraes precedentes por meio da hereditariedade.
O Homo sapiens representa o momento na evoluo no qual o ser humano se liberta
das leis naturais e, conforme Leontiev (1978, p. 263), [...] apenas as leis scio-histricas
regero doravante a evoluo do homem. (grifo no original). O ser humano atual
considerado pelo autor como definitivamente formado e, em consequncia, [...] possui j
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todas as propriedades biolgicas necessrias ao seu desenvolvimento scio-histrico
ilimitado. (Idem, p. 263).
Segundo Leontiev, os seres humanos so de natureza essencialmente social e tudo o
que neles h de propriamente humano provm da sua vida em sociedade, por meio da
apropriao da cultura objetivada ao longo da histria desta sociedade. Segundo o autor,
Podemos dizer que cada indivduo aprende a ser um homem. O que a
natureza lhe d quando nasce no lhe basta para viver em sociedade. -lhe
ainda preciso adquirir o que foi alcanado no decurso do desenvolvimento
histrico da sociedade humana. O indivduo colocado diante de uma
imensidade de riquezas acumuladas ao longo dos sculos por inumerveis
geraes de homens, os nicos seres, no nosso planeta, que so criadores.
As geraes humanas morrem e sucedem-se, mas aquilo que criaram passa
s geraes seguintes que multiplicam e aperfeioam pelo trabalho e pela
luta as riquezas que lhes foram transmitidas e passam o testemunho do desenvolvimento da humanidade. (LEONTIEV, 1978, p. 267, grifos no
original).
Aquilo que muitas vezes chamado de natureza humana um resultado da
objetivao histrica da cultura e sua apropriao pelas novas geraes, as quais tambm
produzem novas objetivaes, num processo que s pode ter fim com o desaparecimento da
espcie humana. Por meio da atividade de trabalho, isto , de produo dos meios necessrios
existncia social, ocorre o processo de humanizao da natureza e do prprio ser humano.
A formao social do ser humano ocorre por meio do processo dialtico entre
objetivao e apropriao das produes humanas ao longo da histria. Pelo trabalho, ou seja,
por meio de sua atividade vital, o ser humano apropriou-se da natureza e a objetivou, ou seja,
criou, a partir da natureza, objetos culturais para seu uso. O ser humano, portanto, ao
apropriar-se da natureza (apropriao), produz objetos culturais (objetivao) para a satisfao
de suas necessidades. Por sua vez, outros indivduos se apropriaro dessas produes
humanas (apropriao) e, a partir delas, tambm se objetivaro (objetivao), e assim
sucessivamente (DUARTE, 1993; HELLER, 1991).
O que a natureza concede ao ser humano, portanto, no suficiente para uma vida em
sociedade. H a necessidade do ser humano aprender a ser humano, por meio da
apropriao das produes culturais objetivadas ao longo do processo scio-histrico da
humanidade.
Neste ponto urge distinguir as categorias espcie humana e gnero humano: De acordo
com Duarte (1993), todo ser vivo faz parte de uma espcie. O ser humano faz parte da espcie
humana, contendo suas especificidades inatas, caracterizadas pelos aspectos biolgicos que
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diferenciam o ser humano dos demais animais. Esses aspectos biolgicos so transmitidos aos
seres humanos por meio da herana gentica.
No entanto, diferentemente da espcie humana, o gnero humano no transmitido ao
indivduo por meio do cdigo gentico. Gnero humano, portanto, uma categoria constituda
por caractersticas humanas formadas no processo scio-histrico, ou seja, gnero humano
constitui as produes culturais da humanidade. Tais produes culturais s podem ser
transmitidas aos outros indivduos pelo j citado processo dialtico entre apropriao e
objetivao.
A apropriao da cultura humana, segundo Leontiev (1978), constitui trs importantes
caractersticas: a primeira que toda apropriao de uma produo humana implica a ao do
indivduo. Isto quer dizer que o indivduo no passivo na apropriao da cultura, pois ele
deve aprender a linguagem, o uso dos objetos e utenslios e os costumes de uma determinada
sociedade de maneira adequada, ou seja, de acordo com a especificidade de cada objetivao.
Essa apropriao adequada das produes humanas proporciona a segunda caracterstica da
apropriao, qual seja: a partir da apropriao das produes humanas, o crtex cerebral
tornou-se um rgo capaz de formar novos rgos funcionais.
Esses novos rgos funcionais desenvolvidos a partir do processo de apropriao da
cultura humana no so de origem biolgica, mas sim, culturais. So neoformaes, nos
termos de Leontiev, ou funes psicolgicas superiores, nos termos de Vigotski, que se
constituem no processo histrico-cultural, caracterizadas por serem funes especificamente
humanas como a ateno voluntria, a memria lgica, o pensamento abstrato, o autodomnio
da conduta, entre outras.
Como a apropriao dessas objetivaes do gnero humano proporciona o
desenvolvimento de neoformaes especificamente humanas? O ser humano, pela atividade,
pelo trabalho, modifica a natureza para suprir suas prprias necessidades. Ocorre que, a cada
necessidade suprida, surgem novas necessidades. Essas novas necessidades so mais
complexas e, consequentemente, exigem do ser humano um psiquismo mais complexo, mais
sofisticado. Essa complexidade do psiquismo humano caracterizada pelo desenvolvimento
de funes psicolgicas superiores, funes especificamente humanas, conforme j citadas.
A terceira e ltima caracterstica da apropriao da cultura humana, de acordo com
Leontiev (1978), que o processo de apropriao das produes culturais das sociedades
precedentes (levando em conta que tais contedos no podem ser transmitidos pelo cdigo
gentico), s pode ocorrer por meio da transmisso desse saber por parte dos indivduos mais
experientes. Essa transmisso da cultura humana s novas geraes pode ser denominada
educao.
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Contudo, o conjunto das objetivaes do gnero humano no se apresenta ao homem
de forma homognea e direta. Para Heller (1991), essas objetivaes genricas, isto , essas
produes do gnero humano, estruturam-se em nveis distintos dos quais se destacam dois, a
saber, as objetivaes genricas em-si e as objetivaes genricas para-si.
As objetivaes genricas em-si ocorrem no mbito da vida cotidiana. Tais
objetivaes so produzidas e reproduzidas espontaneamente na vida cotidiana e so, de
acordo com Heller (1991), de trs tipos. O primeiro caracteriza-se pelos utenslios e
instrumentos; o segundo, pelos usos e costumes; e o terceiro pela linguagem falada. So
consideradas cotidianas e espontneas, pois no exigem uma anlise crtica e ou cientfica, por
parte de quem delas se apropria. No exigem reflexo, simplesmente esto dadas ao ser
humano, desde o momento de seu nascimento. Por exemplo, ningum, que ensina uma
criana de tenra idade a falar, ensinar, simultaneamente, as regras da gramtica. Alis,
muitos adultos e muitas sociedades convivem normalmente sem o uso da gramtica, da
semntica, da exegese etc.
A apropriao das objetivaes genricas em-si acontece desde o incio da vida do
indivduo, por meio da insero no meio cultural e se estende por toda a vida. Essas
objetivaes em-si so resultantes das atividades do indivduo pela mediao com outros
indivduos. Nesta esfera, o indivduo apropria-se dos instrumentos culturais, dos usos e
costumes e da linguagem de sua sociedade. Faz-se necessrio dizer que, sem a apropriao
dos objetos, da linguagem e dos usos e costumes de uma determinada cultura, seria
impossvel a existncia do indivduo, bem como sua convivncia em uma sociedade humana.
J as objetivaes genricas para-si so esferas no cotidianas e so constitudas a
partir de objetivaes humanas superiores, a saber: a cincia, a filosofia e a arte. Heller (1991)
diz que essas objetivaes so ontologicamente secundrias, ou seja, surgem num perodo
tardio da histria humana e vrias formas de sociedade existiram ou existem sem esse tipo de
objetivaes. As esferas de objetivaes genricas para-si tm sua gnese histrica nas
objetivaes em-si, e a existncia das primeiras caracteriza certo estgio de desenvolvimento
da sociedade. Essas objetivaes esto em constante processo de transformao de acordo
com o desenvolvimento humano. As objetivaes genricas para-si, no entanto, compem
esferas no cotidianas da vida social e representam o grau mximo de desenvolvimento at
aqui alcanado historicamente pela humanidade (DUARTE, 1993; HELLER, 1991).
A formao do indivduo consiste na apropriao de objetivaes genricas e na sua
objetivao a partir do que fora apropriado. De acordo com a esfera de objetivao genrica
com a qual o indivduo se relacione em um dado momento histrico, e conforme a natureza
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das relaes que desse processo se estabelece, podemos falar da formao de uma
individualidade em-si e de uma individualidade para-si.
A formao da individualidade para-si
De acordo com Duarte (1996), pode-se compreender que todo ser humano um
indivduo, pois, ao se apropriar das objetivaes genricas em circunstncias singulares e se
objetivar tambm em circunstncias singulares, cada ser humano constitui sua
individualidade. A formao da individualidade um processo que tem seu incio desde o
nascimento do ser humano e tem sua continuidade ao longo de toda a vida.
A vida cotidiana a esfera da vida social na qual todo indivduo inicia sua formao.
Segundo Duarte (1993; 1996), o indivduo aprende a viver sua cotidianidade e forma sua
individualidade em-si. Porm, segundo este autor, o processo histrico de objetivao do
gnero humano deve ser ascendente, ou seja, deve caminhar da genericidade em-si
genericidade para-si. O indivduo s se desenvolve de modo pleno quando, a partir de sua
individualidade em-si, formar sua individualidade para-si.
A individualidade em-si espontnea, ou seja, no h reflexo nem relao consciente
para com essa individualidade. O fato da formao do indivduo ter incio na esfera da
individualidade em-si no expressa problema algum. Porm, o problema incide medida que
o indivduo, durante toda sua vida, no consegue avanar da esfera da genericidade em-si
genericidade para-si, ou seja, quando sua individualidade cristaliza-se enquanto
individualidade em-si. Nesse caso, trata-se de uma individualidade em-si alienada.
Faz-se necessrio destacar que o plano do em-si no deve ser identificado com a
alienao. Podemos chamar de alienao, portanto, quando a vida toda do indivduo no
ultrapassar o plano do em-si. O indivduo torna-se alienado quando sua vida gira em torno
apenas da cotidianidade. O indivduo torna-se alienado quando as relaes sociais no
permitem que as objetivaes no cotidianas, isto , a cincia, a arte e a filosofia, sejam
utilizadas por ele como meio fundamental no processo de conscincia de sua prpria vida.
Deste modo, o indivduo em-si alienado no pode conduzir a vida cotidiana, mas pelo
contrrio, a vida cotidiana que o conduz. O indivduo em-si alienado assume, por
consequncia, como natural, a hierarquia espontnea das atividades cotidianas que esto
prontas em seu meio social imediato (DUARTE, 1993).
Porm, deve-se ressaltar que o mbito do em-si necessrio a todos os indivduos.
Duarte (1993; 1996) assevera que no podemos refletir o tempo todo sobre nossas aes e
exemplifica tal assero numa ilustrao sobre o uso da linguagem. Para este autor, no se faz
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necessrio requerer que uma criana, ao se apropriar da linguagem, reflita sobre esta
linguagem. Da mesma maneira que o adulto, em sua cotidianidade, no reflete sobre a
linguagem que utiliza.
Continuando o exemplo de utilizao da linguagem, Duarte (1996) salienta que, por
outro lado, numa atividade cientfica como ministrar aulas, por exemplo, um professor no
deveria utilizar a espontaneidade, pois esta pertencente ao mbito do em-si. Neste caso, essa
linguagem deveria ser uma linguagem para-si, ou seja, o professor deveria refletir sobre a
linguagem utilizada, deveria ter uma relao consciente com essa linguagem.
Desse modo, o indivduo que ascende condio de uma individualidade para-si no
elimina de sua vida a cotidianidade, isto , o mbito da individualidade em-si. O que acontece
que esse indivduo passa a controlar e guiar sua cotidianidade mediada pelas relaes
conscientes que estabelece com as objetivaes genricas para-si.
Neste mesmo contexto, faz-se necessrio ressaltar que a passagem do cotidiano ao no
cotidiano na vida dos seres humanos, bem como o controle do para-si sobre o em-si, um
processo dialtico de superao por incorporao. No h como considerar uma separao
rgida entre o em-si e o para-si, pois ambas as esferas de objetivaes genricas no possuem
uma existncia autnoma. O homem, ao superar sua cotidianidade, incorpora-a e avana s
esferas no cotidianas, num processo de sntese dialtica entre ambas as esferas.
O indivduo para-si pode dirigir sua vida cotidiana e fazer com que recuem as
barreiras naturais, conforme apontam Heller (1991) e Duarte (1993), ambos baseados em
Marx, sendo que, neste contexto, Duarte analisa de forma detalhada a questo dos trs
estgios do desenvolvimento histrico da individualidade humana.
Duarte parte dos pressupostos de Marx, nos Grundrisse, onde feita uma anlise
histrica sobre o desenvolvimento da individualidade humana. Trata-se de um processo que
tem caminhado de uma individualidade quase inexistente, situada no incio da histria
humana, [...] criao, no capitalismo, das condies objetivas e subjetivas da
individualidade livre e universal (ainda que sob a forma alienada de universalizao da
relao mercantil). (DUARTE, 1996, p. 29).
Portanto, o primeiro estgio do desenvolvimento histrico da humanidade, conforme
Duarte, baseado em Marx, acontece nas sociedades pr-capitalistas, cuja individualidade
humana caracterizava-se de maneira limitada e particular. Duarte (1993) afirma que as
sociedades pr-capitalistas podem ser denominadas sociedades naturais pelo fato de que,
nelas, os seres humanos se relacionam [...] com as condies sociais de sua existncia (seu
corpo inorgnico) da mesma forma que se relacionam com as condies naturais-biolgicas
de sua existncia (seu corpo orgnico). (p. 163). Alm dos meios de trabalho, tambm se
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constitua, em parte dessas condies naturais, o fato do indivduo pertencer a uma
comunidade. Tais condies eram, nessas sociedades, pressupostos da prpria existncia de
todas as pessoas. Alm disso, o carter esttico da individualidade nessas sociedades era
caracterizado pela predominncia da tradio, pelo pensamento de que a idade adulta marca o
fim do desenvolvimento individual e pela no aceitao de princpios que ultrapassem a
experincia local.
O segundo estgio do desenvolvimento da individualidade humana em Marx o
capitalismo. Duarte (1993) relata que a sociedade burguesa caracterizada por romper a
relao natural entre indivduo, comunidade e condies objetivas de produo. Ao romper
esses limites presentes nas sociedades naturais, o capitalismo cria possibilidades para o
desenvolvimento da individualidade livre e universal.
O capitalismo o ltimo estgio da pr-histria da humanidade, pois nele ocorre o
que se pode chamar de uma unificao em-si da humanidade, uma unificao da qual os seres
humanos no so sujeitos coletiva e conscientemente organizados. O ser humano, no
capitalismo, unifica-se por esse lao alienado que so as relaes mercantis. A verdadeira
histria da humanidade comear com a superao do capitalismo.
A verdadeira histria da humanidade unificada, para Marx, trata-se da histria onde os
seres humanos podem objetivar-se de forma plena e rica, sem obstculos, relacionando-se
com as objetivaes genricas de forma consciente, ao ponto de se tornarem indivduos livres
e universais. Segundo Duarte (1993, p. 169), isso no poderia acontecer sem a passagem das
sociedades naturais para as sociedades sociais. Porm, no capitalismo, esse processo no se
realiza plenamente.
O capitalismo no se realiza plenamente como sociedade social. Ele se estrutura sobre
as relaes entre capital e trabalho, baseando-se na extrao da mais-valia e universalizando o
valor de troca como mediao nas relaes entre os seres humanos. Tudo isso naturalizado
pela conscincia fetichista que prevalece na cotidianidade capitalista. Caracterizado por sua
contradio, o capitalismo promove, ao mesmo tempo, a mxima alienao e a possibilidade
de desenvolvimento livre e universal. Duarte (1993) afirma que a partir dessa contradio do
segundo estgio do desenvolvimento da individualidade humana que ser possvel encontrar
os pressupostos para a passagem ao terceiro estgio.
O terceiro estgio do desenvolvimento da individualidade humana o da sociedade
comunista, na qual, entre outras coisas, sero criadas as condies para a apropriao
socializada das objetivaes mais desenvolvidas at aqui produzidas pelo gnero humano, que
possibilitem o desenvolvimento de um ser livre e universal. Para tanto, Duarte (1993, p. 174)
ressalta a necessidade premente de [...] um difcil e contraditrio, porm necessrio, processo
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de elevao da individualidade em-si individualidade para-si, buscando-se conduzir esse
processo, em todos os mbitos da vida humana, aos mximos limites possveis nas condies
da sociedade alienada.
Para Duarte (1993, p. 175):
[...] a passagem para o terceiro estgio do desenvolvimento da individualidade humana no se realizar se os homens no se apropriarem
das possibilidades j existentes de ascenso individualidade para-si. A
criao de uma sociedade social na qual singularidade seja sinnimo de
individualidade livre e universal, no se realizar a no ser enquanto uma
obra coletiva de indivduos que se unam para criar conscientemente formas
de vida no alienada e lutar por uma sociedade na qual essas formas de vida
possam se desenvolver livremente.
Na citao acima o autor remete a dois importantes aspectos da passagem ao terceiro
estgio do desenvolvimento da individualidade humana. O primeiro diz respeito necessidade
da apropriao das esferas das objetivaes para-si existentes na sociedade capitalista e no
esperarmos outra sociedade para que isso acontea. O segundo aspecto est relacionado
necessidade de uma obra coletiva de indivduos que lutem por um processo de superao das
relaes sociais de dominao. E a condio fundamental para que isso acontea a formao
da individualidade para-si.
Neste sentido que a contribuio da educao escolar para esse processo ressaltada
como produo das possibilidades de apropriao, por parte dos indivduos, das objetivaes
genricas para-si. Portanto,
Fazer avanar essa individualidade, ainda dentro dos limites da sociedade
capitalista, no significa resignar-se com as possibilidades existentes nessa
sociedade, mas a partir delas construir uma nova sntese do mudar a vida e do mudar a sociedade. (SVE, 1989, p. 172).
A liberdade do indivduo jamais ser plena numa sociedade dividida em classes.
Somente com a superao do capitalismo, da propriedade privada, da diviso social do
trabalho e, por conseguinte, da alienao, podero os indivduos alcanar a verdadeira
liberdade. Porm, acredita-se que o trabalho educativo possa contribuir, mesmo no interior
das relaes sociais de dominao, para o avano da individualidade humana, na busca da
superao, por incorporao, da individualidade em-si ao desenvolvimento da individualidade
para-si. Ou seja, na formao de um indivduo que tenha uma relao consciente com o
gnero humano. Segundo Duarte (1993, p. 185),
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[...] o processo educativo escolar no pode ser visto apenas como um
processo que coloca o indivduo em contato com as objetivaes genricas
para-si, mas tambm e no secundariamente, como um processo que torna as
objetivaes genricas para-si uma necessidade para o pleno
desenvolvimento do indivduo.
nesse contexto que se pode inferir que a especificidade da educao escolar a de
criar necessidades de apropriao, por parte do indivduo, das objetivaes genricas para-si.
Para tanto, a educao escolar deve ultrapassar os limites da cotidianidade e transmitir o
conhecimento sistematizado, atuando, portanto, na Zona de Desenvolvimento Iminente do
aluno, de acordo com os pressupostos de Vigotski4.
Os elementos fundamentais para a formao da individualidade para-si devem ser
observados como um processo em movimento, como um processo dialtico. A partir da
apropriao das objetivaes genricas para-si, desenvolve-se no indivduo a concepo de
mundo para-si, ou seja, uma concepo de mundo que ultrapassa os limites cotidianos e
espontneos da cotidianidade. A partir da concepo de mundo para-si, o indivduo comea a
relacionar-se com sua cotidianidade de maneira cada vez mais consciente. Isto quer dizer que
o indivduo para-si torna-se capaz de hierarquizar, de maneira consciente, suas atividades
cotidianas. O processo, como foi dito, dialtico, pois, consequentemente, tal hierarquizao
da vida cotidiana possibilita uma nova estruturao da concepo de mundo, que, por sua vez,
promover uma relao cada vez mais consciente com a atividade cotidiana etc. (ANJOS,
2013; DUARTE, 1993).
O indivduo para-si no retirado de sua vida cotidiana. Heller (1991) assevera que o
indivduo, ou, na expresso de Duarte (1993), o indivduo para-si, assim como o indivduo
em-si, tambm vive sua cotidianidade. Ele se apropria da linguagem especfica de uma
sociedade, internaliza as vrias maneiras de utilizao dos utenslios e instrumentos, alm de
assimilar os costumes impostos no mundo em que vive. A diferena reside em que, alm da
genericidade em-si, a vida do indivduo para-si tambm edificada sobre os postulados da
genericidade para-si.
Com isso, o indivduo para-si tem uma relao consciente com sua cotidianidade, ao
ponto de aceitar ou rechaar algumas prticas e pensamentos impostos pela vida cotidiana.
Principalmente quando as produes, os pensamentos, os preconceitos, a linguagem etc. da
vida cotidiana apresentam-se de forma oposta aos pressupostos da genericidade para-si. O
indivduo para-si pode, ento, hierarquizar sua atividade, ele pode escolher, dentre vrias
atividades da vida cotidiana, as atividades que lhe aprazem e as que mais lhe proporcionaro
4 A discusso desse tema no ser possvel dentro dos limites de um artigo. Recomendamos a leitura de Martins
(2012).
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desenvolvimento. A capacidade de hierarquizar, de maneira consciente, as atividades da vida
cotidiana, Heller (2004) denominou de conduo da vida.
Como o indivduo para-si sabe qual atitude tomar diante das diversas atividades da
vida cotidiana? Ele s pode hierarquizar suas atividades a partir da relao consciente que tem
com as objetivaes genricas para-si. A vida cotidiana no mais conduz a vida do indivduo,
pois ele a conduz de maneira consciente, libertando-se do senso comum.
A partir do estudo dessa categoria, esta pesquisa apresenta contribuies para a
educao escolar de adolescentes. O objetivo desta pesquisa que os professores tenham em
mos aportes tericos que no apenas descrevam como so os adolescentes, mas,
parafraseando Duarte (1996, p. 30), sobretudo tragam uma reflexo sobre o que eles, os
adolescentes, podem vir a ser.
A educao escolar de adolescentes e a formao da individualidade para-si
A aproximao da psicologia histrico-cultural com a teoria filosfico-ontolgica da
individualidade para-si, no objetivo de contribuir para a educao escolar de adolescentes,
deu-se, neste artigo, a partir da importncia que Vygotski (1996, p. 200) deu passagem do
em-si ao para-si no desenvolvimento do ser humano. Ou seja, no processo de
desenvolvimento da infncia para a adolescncia, pois essa transformao da criana do ser
humano em si em adolescente o ser humano para si configura o contedo principal de toda
a crise da idade de transio.
Diante da citao acima, destaca-se o ponto fulcral para a educao escolar de
adolescentes: a cincia, a arte, a filosofia e demais esferas de objetivaes genricas para-si
podero ser apropriadas de forma aprofundada somente a partir da adolescncia, por meio do
pensamento conceitual. Esse raciocnio pode ser dividido em dois pontos: o primeiro seria o
de que o conhecimento dos processos essenciais da realidade s possvel por meio das
abstraes (DUARTE, 2000) e, portanto, nos termos de Vigotski, somente quando o indivduo
torna-se capaz de pensar por conceitos que ele pode compreender a realidade para alm das
aparncias, para alm do imediato; o segundo raciocnio refere-se a quando o indivduo, na
ontognese, desenvolve o pensamento por conceitos e, para Vigotski, a partir da
adolescncia.
Isso no significa, porm, que tais mudanas tenham incio somente na adolescncia.
Pensar dessa forma seria adotar uma atitude que desconsidera a processualidade, isto , a
gnese, o que seria profundamente oposto atitude metodolgica preconizada por Vigotski.
Na adolescncia ocorre um salto qualitativo nas transformaes que se iniciam na infncia.
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Portanto, preciso sinalizar que o desenvolvimento, segundo Vigotski, superao
por incorporao tanto do legado da natureza quanto da prpria cultura. Isso quer dizer que a
formao de conceitos, a viso de mundo, a estabilizao dos traos de personalidade, o
autodomnio da conduta, no principiam na adolescncia. Nela, assumem seu auge formativo
devido ao desenvolvimento do pensamento por conceitos. Faz-se necessrio destacar esse
assunto a fim de no parecer que este trabalho compreende a adolescncia como uma fase
isolada do desenvolvimento humano.
O pensamento por conceitos no se desenvolve de forma natural, inata, como algo
inerente ao ser humano. Tampouco se manifesta de forma pronta e acabada. Trata-se,
portanto, de um processo dialtico a partir do pensamento sincrtico, passando ao pensamento
por complexos e deste ao pensamento por conceitos; sendo que este ltimo a forma superior
de pensamento, o qual se refere nova forma de pensamento na adolescncia (ANJOS, 2013).
Porm, a formao dos verdadeiros conceitos, dos conceitos cientficos, s possvel
por meio da educao escolar. Para Vygotski (2001), os conceitos cotidianos so frutos da
atividade cotidiana, da vida espontnea da criana, ao passo que a formao dos conceitos
cientficos se d por meio da educao escolar. Os conceitos cientficos so frutos, portanto,
da transmisso de conhecimentos sistematizados, por parte do trabalho pedaggico, e da
apropriao desse contedo por parte do adolescente escolar.
Considerando-se que, para a psicologia histrico-cultural, a adolescncia um
momento privilegiado tanto pelo desenvolvimento do pensamento por conceitos como pela
consequente formao da concepo de mundo e desenvolvimento da autoconscincia; e que
para a teoria da individualidade para-si, um dos fatores decisivos na formao humana o
desenvolvimento de relaes conscientes entre o indivduo e as esferas mais elevadas de
objetivao do gnero humano como a cincia, a arte e a filosofia; pode-se inferir que a
educao escolar contribui decisivamente, por meio do ensino do conhecimento
sistematizado, para o desenvolvimento psquico e para a formao da individualidade dos
adolescentes no sentido da superao dos limites da vida cotidiana.
Diante da especificidade da educao escolar, qual seja, a socializao do
conhecimento sistematizado, este artigo defende que a prtica pedaggica caracterizada pela
transmisso de contedos clssicos, o saber sistematizado, pode proporcionar o
desenvolvimento psquico do aluno, conduzindo-o no processo de superao por incorporao
das funes psicolgicas espontneas s funes psicolgicas voluntrias, ou seja, a passagem
do em-si ao para-si. De acordo com Saviani (2011, p. 14),
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[...] a escola uma instituio cujo papel consiste na socializao do saber
sistematizado. Vejam bem: eu disse saber sistematizado; no se trata, pois,
de qualquer tipo de saber. Portanto, a escola diz respeito ao conhecimento
elaborado e no ao conhecimento espontneo; ao saber sistematizado e no
ao saber fragmentado; cultura erudita e no cultura popular.
importante dizer que, ao transmitir o saber no cotidiano, isso no significa que a
educao escolar deva anular o cotidiano do aluno, alis, isso seria impossvel. O objetivo de
transmitir, ao aluno, os contedos no cotidianos a possibilidade de formao de indivduos
que mantenham uma relao cada vez mais consciente com a cotidianidade, mediada pela
apropriao das objetivaes genricas para-si. Trata-se, portanto, de abrir possibilidades para
que o indivduo no seja mais conduzido por sua cotidianidade, favorecendo a formao de
uma individualidade que hierarquize conscientemente a atividade da vida cotidiana.
Ao contrrio de algumas pedagogias contemporneas que defendem o cotidiano e a
espontaneidade como pressupostos indispensveis educao escolar, considera-se, neste
estudo, que o trabalho educativo deve diferenciar-se do cotidiano. A escola deve afastar o
aluno da vida cotidiana e formar um espao diferenciado para o estudo do conhecimento
sistematizado, possibilitando a ampliao das necessidades do indivduo para alm daquelas
limitadas esfera da vida cotidiana e daquelas pautadas apenas nas competncias de alunos e
professores, a fim de suprirem as necessidades do capital.
Esse afastamento no significa, de maneira alguma, uma fuga da realidade. Trata-se
da construo das mediaes entre a prtica cotidiana e a teoria, de maneira que aquela no
seja guiada pura e simplesmente pelo pragmatismo imediatista e esta no se transforme em
pura especulao metafsica e at mesmo transcendente.
O processo de distanciamento do cotidiano para que, em ltima instncia, supra as
necessidades do prprio cotidiano, no um processo to simples para ambos os lados, ou
seja, tanto para o professor, quanto para o aluno, porm, necessrio. Tal processo exige
teleologia. Lukcs (2004, p. 105) afirma que [...] a posio teleolgica conscientemente
executada produz um distanciamento no reflexo da realidade; que com este distanciamento
nasce a relao sujeito-objeto no sentido estrito do termo. A cincia, por exemplo, deve
distanciar-se do senso comum para, justamente, analisar suas mltiplas determinaes, a fim
de suprir as necessidades do prprio senso comum.
Para conduzir o aluno na formao da individualidade para-si, o professor deve
romper com o conhecimento imediato do fenmeno e isso s pode acontecer a partir da
mediao das objetivaes genricas para-si. Como foi dito, tal processo no condiz com as
hegemnicas prticas pedaggicas voltadas ao cotidiano do aluno. Isso exige um grau maior
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de abstrao por parte do professor, bem como por parte do adolescente, cuja fase do
desenvolvimento humano est propcia para o desenvolvimento do pensamento conceitual.
O desenvolvimento do ser humano, nas suas mximas possibilidades, no se d de
maneira espontnea e nem pode ser considerado um fenmeno natural, biolgico. Os
conceitos cientficos se formam precisamente durante o processo de ensino de um
determinado sistema de conhecimentos no cotidianos. Luria (2010, p.70) afirma que no h
dvida de que a transio do pensamento situacional para o pensamento taxonmico
conceitual est relacionada a uma mudana bsica no tipo de atividade em que o indivduo
est envolvido. Ou seja, enquanto os conceitos espontneos se formam na prtica cotidiana
da criana, o desenvolvimento dos conceitos cientficos, do pensamento conceitual, depender
das operaes tericas que a criana aprende a realizar na escola. O autor prossegue dizendo
que, como o professor programa esse treinamento, ele resulta na formao de conceitos
cientficos e no cotidianos.
Pode-se inferir, portanto, que a formao dos conceitos cientficos depender da
atividade na qual o indivduo estiver inserido. E, de acordo com Luria, o professor deve
programar esse contedo, ou seja, a atividade docente deve ser intencional, direta e no
espontnea. No se trata de qualquer contedo, mas se o objetivo a formao de conceitos
cientficos, os contedos escolares devem ser aqueles j discutidos nesse trabalho, qual seja:
os saberes clssicos dos quais falou Saviani (2011).
Diante de tal importncia que tem a educao escolar nesse processo, fica evidente a
urgncia da superao das ideias propagadas pelas pedagogias contemporneas baseadas no
lema aprender a aprender5. Segundo Duarte (2006), uma ideia muito difundida pelas
pedagogias contemporneas a de que o cotidiano do aluno deve ser a referncia central para
as atividades escolares. Na perspectiva dessas pedagogias, so considerados contedos
significativos e relevantes para o aluno aqueles que tenham alguma utilidade prtica em seu
cotidiano.
Duarte (2006) denomina de pedagogias do aprender a aprender as que, nesse
contexto da relao entre educao escolar e conhecimento, apresentam uma viso negativa
sobre a transmisso do conhecimento cientfico por parte da escola, limitando este
conhecimento e atrelando-o ao cotidiano. Encontra-se tambm uma descaracterizao do
professor como mediador no processo de apropriao do conhecimento, ou seja, a
indispensvel mediao realizada pelo professor no entendida como transmisso de
conhecimento, como ensino, sendo reduzida a uma espcie de acompanhamento da
aprendizagem que ocorreria de forma autnoma desde o incio do processo educativo. No
5 Para um estudo aprofundado sobre o tema, recomendamos a leitura de Duarte (2006).
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limite, trata-se do postulado segundo o qual o aluno deve aprender sozinho, deve aprender a
aprender.
H que se considerar que a patologizao da adolescncia no deixa de ser, tambm,
produzida no descaso formao da individualidade para-si ao longo de toda a formao da
pessoa. E, tratando-se de educao escolar, esse descaso ocorre desde a educao infantil.
Parece que o grande problema enfrentado no mbito da educao escolar de adolescentes
que esse momento de viragem explicita objetivamente o produto oculto da formao
antecedente.
A educao escolar, no seu papel de mediadora entre o cotidiano e o no cotidiano,
tem em sua tarefa fulcral a transmisso dos contedos clssicos, contedos estes necessrios
para a formao do pensamento por conceitos. E este um ponto imprescindvel para o
desenvolvimento da formao da individualidade para-si, pois, para Vygotski (2001, p. 214),
[...] a tomada de conscincia vem pela porta dos conceitos cientficos. O trabalho educativo,
portanto, possibilita ao indivduo ir alm dos limites dos conceitos cotidianos, proporcionando
a inteligibilidade do real.
Consideraes finais
A individualidade para-si foi aqui apresentada como mxima possibilidade da
formao do indivduo e tal processo realizado a partir da relao dialtica entre objetivao
e apropriao das objetivaes genricas para-si, ou seja, das produes humanas mais
elaboradas, no cotidianas como a cincia, a arte e a filosofia. Concluiu-se, portanto, que um
dos fatores decisivos na formao humana o desenvolvimento de relaes conscientes entre
o indivduo e as esferas mais elevadas de objetivao do gnero humano e que a adolescncia
pode ser um momento de salto qualitativo na apropriao dessas objetivaes genricas.
O conhecimento dos processos essenciais da realidade s possvel por meio das
abstraes e, de acordo com Vygotski (1996), o indivduo torna-se capaz de compreender a
realidade para alm das aparncias, ou seja, torna-se capaz de compreender a essncia dos
fenmenos, somente a partir do pensamento por conceitos. E, segundo o autor, a partir da
adolescncia que se desenvolve o pensamento por conceitos.
A partir dos conceitos cientficos, o adolescente pode compreender o que no est ao
alcance dos conceitos cotidianos, conhecendo a essncia do objeto ou fenmeno dado. A
educao escolar, portanto, tem seu papel fundamental nesse processo, pois sua especificidade
a transmisso dos contedos no cotidianos, das objetivaes genricas para-si. Desse
modo, a educao escolar pode contribuir decisivamente para o desenvolvimento psquico e
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para a formao da individualidade dos adolescentes no sentido da superao dos limites da
vida cotidiana.
Tal processo pode no ocorrer se a prtica pedaggica limitar-se ao cotidiano dos
alunos. A educao escolar poder conduzir o indivduo no processo de passagem das funes
psicolgicas espontneas s funes psicolgicas voluntrias, ou seja, a passagem do em-si ao
para-si, somente a partir da transmisso dos contedos clssicos, eruditos, no cotidianos,
conforme postula a pedagogia histrico-crtica (SAVIANI, 2011).
Porm, a passagem do em-si ao para-si no um processo simples, mas sim um
processo que pode gerar conflitos, tanto na histria do gnero humano, quanto na formao do
indivduo. E isso ocorre principalmente numa sociedade dividida em classes, onde a maioria
das pessoas impossibilitada de se converter plenamente em humanidade para-si. Numa
sociedade em que at o ser humano adulto se apresenta desigualmente desenvolvido, h de se
esperar tambm um impacto negativo sobre o desenvolvimento psicolgico da criana e do
adolescente. Da a manifestao das crises da adolescncia, pois, numa sociedade
contraditria e alienante, a crise na idade de transio torna-se um evento generalizado,
gerando a aparncia de um fenmeno natural e quase insupervel.
Neste trabalho discutiu-se a importncia da educao escolar para a transmisso dos
conhecimentos clssicos, como elemento necessrio no processo de formao da
individualidade para-si, para o desenvolvimento psquico na adolescncia. Para tanto,
destacou-se que o trabalho pedaggico no deve reduzir sua atuao ao mundo do
adolescente; pelo contrrio, considerando-se que a adolescncia uma fase de transio para
a vida adulta, cabe educao escolar apresentar ao adolescente o mundo adulto, o modelo
adulto, a fim de promover-lhe o desenvolvimento psquico.
Finalizando este estudo, pode-se afirmar que, somente a partir da desfetichizao da
adolescncia e da superao dos iderios das pedagogias do aprender a aprender (as quais
defendem a cotidianidade como modelo e limite para a educao escolar e a descaracterizao
do trabalho do professor), que se pode alcanar o que foi proposto neste trabalho, ou seja, a
contribuio da educao escolar para o desenvolvimento psicolgico do adolescente, para a
formao de sua individualidade para-si.
Embora haja ainda muito que se produzir de aportes tericos para a educao escolar
de adolescentes, considera-se que a concepo da psicologia histrico-cultural sobre
adolescncia, bem como os pressupostos da teoria da individualidade para-si, juntamente com
os preceitos da pedagogia histrico-crtica, compem aportes tericos importantes que
fundamentam a luta por uma educao escolar de qualidade.
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REFERNCIAS
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