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ISSN 1982-5935 Vol. 6 Nº 3 2012 16ª edição LITERATURA E RESISTÊNCIA NA POÉTICA DE CRAVEIRINHA LITERATURE AND RESISTANCE IN THE POETIC OF CRAVEIRINHA Ruane Maciel Kaminski Alves 1 RESUMO: Grande parte da obra de José Craveirinha faz referência às vivências da época colonial, desde as reações à aculturação até às primeiras manifestações a favor da independência de Moçambique. A moçambicanidade na poesia do autor é marcada pela questão da língua, uma vez que a língua portuguesa foi imposta como um instrumento que permitiu a ultrapassagem da região e da tribo em direção à nação. Assim, ela homogeneizou para dominar, numa dinâmica contrária à que Craveirinha vai usar, apropriando-se da língua, transformando-lhe a sintaxe, criando-lhe neologismos e povoando-a de lexemas bantos, de acordo com as suas pretensões, em uma perspectiva possível de ser compreendida na relação literatura e resistência. PALAVRAS-CHAVE: Poética, José Craveirinha, resistência. ABSTRACT: Much of the work of José Craveirinha refers to the experiences of the colonial era, from reactions to acculturation to the first demonstrations in favor of independence of Mozambique. The Mozambican of the poetry is marked by the language issue, since the Portuguese language was imposed as a tool that allowed overshoot of the region and the tribe toward the nation. So she homogenized to master, in a counter for dynamic that Craveirinha will use, appropriating the language, making it the syntax, creating neologisms him and populating the Bantu lexemes, according to their claims, in the perspective can be understood in literature and resistance. KEY WORDS: Poetic, José Craveirinha, resistance. O AUTOR POR ELE MESMO Grande parte da obra de Craveirinha 2 faz referência às vivências da época colonial, desde as reações à aculturação até às primeiras manifestações a favor da independência de 1 Mestranda em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE 2 José João Craveirinha nasceu em 28 de maio de 1922, no bairro pobre de Xipamanine, subúrbio de Lourenço Marques Maputo , capital de Moçambique. Mestiço, é filho de pai branco português, algarvio, e mãe negra moçambicana, ronga” (LARANJEIRA, 1995, p. 25)

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Literatura moçambicana

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  • ISSN 1982-5935

    Vol. 6 N 3 2012 16 edio

    LITERATURA E RESISTNCIA NA POTICA DE CRAVEIRINHA LITERATURE AND RESISTANCE IN THE POETIC OF CRAVEIRINHA

    Ruane Maciel Kaminski Alves1

    RESUMO: Grande parte da obra de Jos Craveirinha faz referncia s vivncias da poca colonial, desde as reaes aculturao at s primeiras manifestaes a favor da independncia de Moambique. A moambicanidade na poesia do autor marcada pela questo da lngua, uma vez que a lngua portuguesa foi imposta como um instrumento que permitiu a ultrapassagem da regio e da tribo em direo nao. Assim, ela homogeneizou para dominar, numa dinmica contrria que Craveirinha vai usar, apropriando-se da lngua, transformando-lhe a sintaxe, criando-lhe neologismos e povoando-a de lexemas bantos, de acordo com as suas pretenses, em uma perspectiva possvel de ser compreendida na relao literatura e resistncia. PALAVRAS-CHAVE: Potica, Jos Craveirinha, resistncia. ABSTRACT: Much of the work of Jos Craveirinha refers to the experiences of the colonial era, from reactions to acculturation to the first demonstrations in favor of independence of Mozambique. The Mozambican of the poetry is marked by the language issue, since the Portuguese language was imposed as a tool that allowed overshoot of the region and the tribe toward the nation. So she homogenized to master, in a counter for dynamic that Craveirinha will use, appropriating the language, making it the syntax, creating neologisms him and populating the Bantu lexemes, according to their claims, in the perspective can be understood in literature and resistance. KEY WORDS: Poetic, Jos Craveirinha, resistance.

    O AUTOR POR ELE MESMO

    Grande parte da obra de Craveirinha2 faz referncia s vivncias da poca colonial,

    desde as reaes aculturao at s primeiras manifestaes a favor da independncia de

    1 Mestranda em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paran - UNIOESTE 2 Jos Joo Craveirinha nasceu em 28 de maio de 1922, no bairro pobre de Xipamanine, subrbio de Loureno Marques Maputo , capital de Moambique. Mestio, filho de pai branco portugus, algarvio, e me negra moambicana, ronga (LARANJEIRA, 1995, p. 25)

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    Moambique. Para compreender tais reaes, vale a pena citar, ainda que longa citao, o

    depoimento autobiogrfico feito em Janeiro de 1977 pelo poeta:

    Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram- me Sontinho, diminutivo de Sonto [que significa domingo em ronga, lngua da capital]. Pela parte de minha me, claro. Por parte do meu pai fiquei Jos. Aonde? Na Av. do Zichacha entre o Alto Ma e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres. Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato... A seguir fui nascendo medida das circunstncias impostas pelos outros. Quando meu pai foi de vez, tive outro pai: o seu irmo. E a partir de cada nascimento eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Ptria e de opo. Quando a minha me foi de vez, outra me: Moambique. A opo por causa do meu pai branco e da minha me negra. Nasci ainda mais uma vez no jornal O Brado Africano. No mesmo em que tambm nasceram Rui de Noronha e Nomia de Sousa. Muito desporto marcou-me o corpo e o esprito. Esforo, competio, vitria e derrota, sacrifcio at exausto. Temperado por tudo isso. Talvez por causa do meu pai, mais agnstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimao de tudo. Mesmo da Ptria. Ou antes: principalmente da Ptria. Por causa de minha me, s resignao. Uma luta incessante comigo prprio. Autodidacta. Minha grande aventura: ser pai. Depois, eu casado. Mas casado quando quis. E como quis. Escrever poemas, o meu refgio, o meu Pas tambm. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidado desse Pas, muitas vezes altas horas da noite (MENDONA; SATE, 1989, p.viii-x). .

    As palavras do poeta confirmam alguns dados presentes em sua poesia desde o incio,

    considerando-se que no itinerrio de seus poemas pode-se seguir a linha definidora de suas

    opes. Entre elas, destaca-se a condio de ser poeta de Moambique e em Moambique,

    antes mesmo que a sua ideia de pas se tornasse realidade. Autodidata, Jos Craveirinha

    escolheu o jornalismo como profisso, tendo se iniciado nO Brado Africano,3 um dos primeiros

    jornais moambicanos dirigidos por negros e mestios e com uma linha editorial nativista.

    3 O Brado Africano (1918-1974) sucessor d O Africano que, surgido em 1908 com um nico nmero de propaganda a favor da instruo, inicia a sua publicao regular no ano seguinte, sob a direco de Joo e Jos Albasini. Em 1918 os irmos Albasini vendem O Africano e fundam, juntamente com Estcio Dias e o dr. Karel

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    Jos Joo Craveirinha conquistou destaque como jornalista, mantendo, nas condies

    adversas do tempo e do lugar, uma interveno bastante significativa, contudo foi por meio da

    poesia que Craveirinha tornou-se conhecido, no s na Histria da Literatura de Moambique,

    mas tambm na Histria da Literatura de Lngua Portuguesa, motivos que o levaram a

    conquistar em 1991, o Premio Cames, alm de muitos outros prmios importantes pelo

    conjunto da obra.. Craveirinha faleceu aos 80 anos, num hospital da frica do Sul.

    Para refletir sobre a potica de Craveirinha, deve-se partir da compreenso de que a

    cultura um ser orgnico, um corpo morfolgico, sendo que o estilo na literatura africana no

    pode ser desligado da cultura que o contextualiza, eis a, um princpio da relao entre literatura

    e resistncia.

    POTICA AFRICANA E RESITNCIA

    Os poemas de Jos Craveirinha esto repletos de aluses aos negros e a frica, sua

    obra mostra o poeta o ligado s suas origens e ao conceito de moambicanidade. Nos seus

    poemas, Craveirinha defende os negros por serem um povo dominado pelos brancos num

    regime colonial, o que para ele de uma cruel injustia. O poema Ningum um grito de

    revolta por esta injustia:

    Andaimes At o dcimo quinto andar Do moderno edifcio do beto armado O ritmo Florestal dos ferros erguidos Arquitetonicamente no ar E um transeunte curioso Que pergunta: - J caiu algum dos andaimes?

    Pott, O Brado Africano. Estes jornais so os primeiros a serem redigidos por negros e mestios assimilados, em Moambique, e dirigidos especialmente s populaes locais, inaugurando desse modo a fase da imprensa nativista em Moambique, sendo publicados em portugus e em ronga (lngua banta local). De 1919-1920 O Brado Africano editado, tambm, em ingls (LARANJEIRA, 1995, p. 38).

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    O pausado ronronar Dos motores a leos pesados E a tranqila resposta do senhor empreiteiro: - Ningum. S dois pretos (CRAVEIRINHA, 1999, p. 92).

    Pires Laranjeira (1995), ao tecer apontamentos sobre o que pode vir a caracterizar a

    esttica africana, assinala que uma caracterstica seria a rejeio do Deus cristo - acontece que,

    em vez de uma rejeio acintosa do cristianismo (que tambm existe), a literatura africana de

    lngua portuguesa acentua prioritariamente a imagtica animista, aspecto verificado na obra de

    Jos Craveirinha.

    Na acepo de Pires Laranjeira (1995), uma segunda caracterstica diz respeito

    dimenso do tempo, que para os africanos funciona como uma simultaneidade entre passado,

    presente e futuro, baseada no princpio de que a vida contnua, cujos polos velhice e infncia

    se tocam como se fosse um s, a exemplo do poema Xigubo.

    Minha me frica meu irmo Zambeze Culucumba! Culucumba! Xigubo estremece terra do mato e negros fundem-se ao sopro da xipalapala e negrinhos de peitos nus na sua cadncia levantam os braos para o lume da irm lua e danam as danas do tempo da guerra das velhas tribos da margem do rio. Ao tant do tambor o leopardo traioeiro fugiu. E na noite de assombraes brilham alucinados de vermelho os olhos dos homens e brilha ainda mais o fio azul do ao das catanas. Dum-dum! Tant! [...] E as vozes rasgam o silncio da terra enquanto os ps batem

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    enquanto os tambores batem e enquanto a plancie vibra os ecos milenrios aqui outra vez os homens desta terra danam as danas do tempo da guerra das velhas tribos juntas na margem do rio (CRAVEIRINHA, 1999, p. 132).

    Assim, h uma espcie de intemporalidade. Laura Cavalcante Padilha (2002) refere-se a

    um tempo no comulativo, percebido como permanncia, como marca de pensamento que se

    reflete na literatura, onde as marcas temporais perdem lugar para o aspecto das aes.

    Haveria, ento, uma espacializao da escrita em virtude da dimenso contnua do

    tempo, que permite falar da ubiquidade da escrita. Interessa mais o que acontece e em que

    circunstncias, do que quando acontece. Nesse caso, a esttica africana permite falar de uma

    retrica da vida, assim como de um esquecimento da morte, j que a ancestralidade um

    estgio que a vida nova retoma.

    Uma terceira caracterstica, talvez homloga de culturas asiticas, a de que a

    sexualidade do homem africano no imoral, constituindo-se como parte natural da sua

    cultura. Este elemento importante quando, na esttica de Craveirinha atentamos para os

    cdigos da pan-sexualidade presentes.

    Na observao de Pires Laranjeira (1995), a comunho carnal do homem com a

    natureza, ou dos vrios elementos da natureza entre si, so topoi freqentes na literatura

    africana e, especificamente, na moambicana.

    Uma quarta caracterstica, apresentada por este crtico, refere-se ao ritmo do poema,

    entendendo-se o ritmo de acordo com a formulao de Octavio Paz:

    O ritmo um m. Ao reproduzi-lo, por meio de mtricas, rimas, aliteraes,

    paronomsias e outros processos, convoca as palavras. [...]. A criao potica consiste, em

    grande parte, nessa utilizao voluntria do ritmo como agente de seduo. (PAZ,1982, p. 64).

    Na literatura o ritmo assume a representao do canto, da oralidade, da vida e da fora dos

    elementos naturais, alm de revestir a prpria arquitetura estrutural dos poemas, no tocante,

    sobretudo sintaxe. Cada ritmo uma atitude, um sentido, uma imagem do mundo distinta e

    particular, o ritmo direciona as imagens, est muito ligado ao tempo e ao mito.

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    Acrescentando-se a estas caractersticas trs aspectos prprios da oratria: sentido

    participativo, sentido comunitrio e teatralidade. Pires Laranjeira (1995) ressalta, ento, que

    estamos perante uma esttica de rituais e de cdigos, que comportam o gesto, a mmica e toda

    a linguagem no verbal.

    Resumidamente, temos a imagtica animista, a intemporalidade, a pan-sexualidade e o

    ritmo como caractersticas fundamentais da potica africana. importante tambm

    acrescentar as funes sacro-mgicas que nas culturas bantas se tornam essenciais.

    E grito Inhamssua, Mutamba, Massangulo !!! E torno a gritar Inhamssua, Mutamba, Massangulo !!! E outros nomes da minha terra afluem doces e altivos na memria filial e na exacta pronncia desnudo-lhes a beleza. Chulamti ! Manhoca ! Chinhambanine ! Morrumbala, Namaponda e Namarroi e o vento a agitar sensualmente as folhas dos canhoeiros eu grito Angoche, Marrupa, Michafutene e Zbu e apanho as sementes do cutlho e a raiz da txumbula e mergulho as mos na terra fresca de Zitundo (CRAVEIRINHA, 1999, p. 100).

    A matriz africana referenciada pelo sangue da Me, pelo instrumento que d nome

    dana, se desdobra numa profuso de signos que comporta a sonoridade e imagens do

    sagrado, do Nhamussoro (adivinho).

    Alfredo Margarido (1980), observa que ao adivinho est reservado um lugar de

    primeiro plano nessas sociedades negras onde os fenmenos e as trivialidades da vida ora

    surgem, ora se projetam do terreno e no terreno do sobrenatural. Para, alm disso, o papel do

    Nhamussoro o de mediatizar os planos espiritual e fsico, dois mundos que confluem num

    s, algo que revitaliza a questo da imagtica animista, segundo a qual todas as coisas possuem

    vida:

    O Nhamussoro define-se, por isso, como um porta-voz de dois mundos: ele verdadeiramente um trao de unio dos viventes com os seus mortos, por

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    isso mesmo, embaixador dos mortais junto dos antepassados-deuses e outros espritos divinizados, e orculo destes perante a comunidade dos vivos.

    (MARGARIDO 1980, p. 59).

    Para Margarido, o culto dos antepassados como carter exclusivo das sociedades

    africanas no passa de mais uma mistificao burguesa, o qual depende das formas de

    produo. No seu entender, esse culto existe em todas as sociedades que no ultrapassaram a

    oralidade, representando os antepassados o que garante a coeso de grupo.

    Sob esta perspectiva, observa-se que a ligao ao mundo tradicional , na poesia de

    Craveirinha, muito forte. Essa ligao revela-se, por meio da evocao dos nomes dos animais,

    de frutos, de instrumentos musicais, de topnimos e de entidades, atos ou rituais prprios da

    vida religiosa do seu povo. Mas sobressai igualmente na procura obsessiva de uma equivalncia

    rtmica do grito cadenciado do tambor para o ritmo de muitos dos seus versos, por meio da

    anfora, das repeties de palavra ou palavras em fim de frase ou verso, da aliterao, da rima

    interior, como se observa no poema Quero ser tambor:

    Tambor est velho de gritar Oh velho Deus dos homens deixa-me ser tambor corpo e alma s tambor s tambor gritando na noite quente dos trpicos. [...] Oh velho Deus dos homens eu quero ser tambor e nem rio e nem flor e nem zagaia por enquanto e nem mesmo poesia. S tambor ecoando como a cano da fora e da vida S tambor noite e dia dia e noite s tambor at consumao da grande festa do batuque! Oh velho Deus dos homens deixa-me ser tambor s tambor! (CRAVEIRINHA, 1999, p. 102)

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    Padilha (2007) considera que a Moambicanidade difere das suas congneres relativas a

    Angola e Cabo-Verde, uma vez que em Moambique no existe uma sociedade crioula, o que

    permite aos seus autores sobressair-se por um discurso literrio marcadamente nacional, pondo

    em evidncia a mundividncia das sociedades tradicionais.

    Podemos dizer que a moambicanidade marcada pela questo da lngua, uma vez que

    a lngua portuguesa foi imposta como um instrumento que permitiu "mais facilmente a

    ultrapassagem da regio e da tribo em direo nao" (PADILHA, 2002, p. 86).

    Assim, ela homogeneizou para dominar, numa dinmica contrria que Craveirinha vai

    usar, apropriando-se da lngua, transformando-lhe a sintaxe, criando-lhe neologismos e

    povoando-a de lexemas bantos, de acordo com as suas pretenses.

    Este jeito de contar as nossas coisas maneira simples das profecias - Karingana ua Karingana ! - que faz o poeta sentir-se gente E nem de outra forma se inventa o que propriedade dos poetas e em plena vida se transforma a viso do que parece impossvel em sonho do que vai ser. Karingana !

    Pires Laranjeira (2000) argumenta que Craveirinha no catalogvel, porque no fala a

    lngua que espervamos.

    Para o crtico, a imagtica animista que perpassa a obra do poeta moambicano no

    pode ser tomada sem um olhar crtico que distinga a eficcia desse discurso e o exotismo a que

    o prprio Craveirinha se expe conscientemente. Pires Laranjeira (2000) observa que

    Craveirinha introduz na literatura moambicana o mito de Narciso, que se baseia na procura

    das origens do ser, isto , a procura da unidade invisvel, servindo-se das referncias natureza

    e ao apelo telrico e ancestral, estabelecendo relaes intensas entre o sujeito potico e os

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    elementos naturais. Trata-se da poesia como expresso esttica csmica de aspirao admica,

    como se lhe referiu lvaro Manuel Machado (1979).

    Desta forma, seria impossvel afastar a imagtica animista do problema da reificao do

    Outro, o que, segundo Pires Laranjeira (2000), est na base da construo de uma teoria da

    alienao perpetrada por Craveirinha, consciente da falsa conscincia que produz.

    Pires Laranjeira (2000) reflete que o animismo a religio dos sem livro. Craveirinha,

    em parte, reconstitui esse biblos que lhe faltava, no no sentido da etnologia ou da antropologia

    (mais prximo dos conceitos de neonativismo ou neonegrismo), mas no da precariedade de

    um tempo que s no presente e no futuro se religa ao passado.

    E na minha rude e grata sinceridade filial no esqueo meu antigo portugus puro que me geraste no ventre de uma tombasana eu mais um novo moambicano semiclaro para no ser igual a um branco qualquer e seminegro para jamais renegar um glbulo que seja dos Zambezes do meu sangue [...] renunciando a outorgas da lei que no fossem mulatos e brancos filhos netos e sobrinhos Joss Antnios Joes e Marias Craveirinhas (CRAVEIRINHA, 1999, p. 120).

    Na rejeio ideia de ser igual a outro branco, expressa o desprezo ao colonialismo

    sem deixar de compreender a complexidade das situaes que o sistema gera e alimenta. Os

    homens no so todos iguais, adverte a ciso sancionada pelo mercado que o processo pe e

    repe, diariamente. H, portanto, que atentar para a distino entre os colonialistas e alguns

    homens pobres vindos de Portugal, para ali morrerem, conforme reflete Rita Chaves (1999).

    A opresso contra o continente pressupunha uma resposta medida, como observaria

    Fanon em seu artigo Sobre a cultura nacional:

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    O colonialismo no acreditou ser necessrio perder o seu tempo para negar, uma aps outra, as culturas das diferentes naes. A resposta do colonizado ser tambm subitamente continental. [] O conceito de negritude, por exemplo, era a anttese afectiva, seno lgica, desse insulto que o homem branco fazia humanidade. Essa negritude oposta ao desprezo do branco revelou-se em certos sectores como a nica capaz de suprimir proibies e maldies. [] afirmao incondicional da cultura europia, sucedeu a

    afirmao incondicional da cultura africana (FANON, 1961, p. 85).

    Tambm, o crtico ps-colonial Homi Bhabha (2003) reflete sobre a representao da

    alteridade nas sociedades consideradas ps-coloniais e pesquisa sobre a relao entre as relaes de

    poder e o discurso, como tambm, a afirmao de esteretipos. A formulao de imagens de identidade

    e alteridade, compreendidas como prticas de resistncia, frente a um movimento unificador colonial,

    acontece em um terceiro espao cultural que se forma com o contato com a alteridade (BHABHA,

    2003, p.67), que pode ser caracterizado como um espao de resistncia, definido a partir do contato

    com a diferena, no qual surgem novas possibilidades e percebe-se que as identidades possuem resduos

    de outros significados e identidades.

    Alfredo Bosi (2002), ao tratar sobre literatura e resistncia, aponta para dois tipos de resistncia:

    a que se d como tema e como processo imanente escrita. Observa-se na produo de Craveirinha a

    presena das duas formas, manifestada no projeto esttico e poltico do autor, cuja obra desvela uma

    sociedade hbrida, em um lugar de culturas que se tocam, assimilam e so assimiladas.

    REFERNCIAS BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam vila, Eliana Loureno de Lima Reis, Glucia Renata Gonalves. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998. BOSI, Alfredo. Literatura e resistncia. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. Chaves, Rita . Jos Craveirinha, da Mafalala, de Moambique, do mundo. In: Via Atlntica, Universidade de So Paulo, n. 3 dez. 1999. CRAVEIRINHA, Jos. Obra Potica I, Edit. Caminho, 1999. ______ Jos. Hamina e Outros Contos, Edit. Caminho, 1997. FANON, Frantz. Os condenados da terra. Lisboa, Ulissia, 1961. LARANJEIRA, Pires. Literaturas Africanas de Expresso Portuguesa. Univ. Aberta, 1995. ______, Pires. Negritude Africana de Lngua Portuguesa. Angelus Novus, 2000. LEITE, Ana Mafalda. A Potica de Jos Craveirinha. Vega, 1991.

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    MACHADO, lvaro Manuel. Introduo Literatura Latino-Americana Contempornea. Edit. Presena, 1979. MARGARIDO, Alfredo. Estudos Sobre Literaturas das Naes Africanas de Lngua Portuguesa. A Regra do Jogo, 1980. MENDONA, Ftima; SATE, Nelson. Antologia da nova poesia moambicana. AEMO,1989, p.viii-x. PADILHA, Laura Cavalcante. Novos Pactos, Outras Fices. Novo Imbondeiro, 2002. _____. Entre voz e letra: o lugar da ancestralidade na fico angolana do sculo XX. 2. ed. Niteri: EdUFF / Pallas, 2007. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.