ladislau dowbor - a formação do capitalismo dependente

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Ladislau Dowbor A FORMAÇÃO DO CAPITALISMO DEPENDENTE NO BRASIL EDITORA BRASILIENSE 1982

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  • Ladislau Dowbor

    A FORMAO DO CAPITALISMO

    DEPENDENTE NO BRASIL

    EDITORA BRASILIENSE

    1982

  • ndice

    Introduo ................................................................................ 9

    Captulo I Elementos de crtica................................................................. 13

    Captulo II Um esboo de mtodo................................................................ 27

    Captulo III Fase Portuguesa: A dependncia colonial................................. 45

    Captulo IV Fase Inglesa: A dependncia neocolonial................................... 63

    Captulo V Interiorizao da relao de dependncia: Transio pare a fase americana e multinacional ......................................................... 107

    Concluso .................................................................................. 189

    Anexo I Relao de produo no campo: Alguns exemplos ................... 193

    Anexo II Dados estatsticos........................................................................ 199

    Bibliografia ................................................................................ 207

  • Nota para a Edio Brasileira

    O Brasil hoje responsvel por um quarto da produo industrial do Terceiro Mundo, mas consegue, simultaneamente, apresentar uma das organizaes sociais mais injustas do mundo e figura em bom lugar em todos os exemplos de misria em pases subdesenvolvidos. Enquanto durava o milagre, a misria de uns e prosperidade de outros eram apresentadas como "inevitveis": hoje, com o estancamento do milagre e o aprofundamento da crise, torna-se cada vez mais visvel que a prpria polarizao constitui um fator de bloqueio do nosso desenvolvimento.

    Em outros termos, torna-se mais claro que no basta equipar o subdesenvolvimento para venc-lo, que o subdesenvolvimento moderno ainda subdesenvolvimento. e que as razes do problema so bastante mais profundas.

    O Brasil no nem s a prosperidade mostrada por uns, nem s a misria apontada por outros. , antes de tudo, uma forma particular de articulao de pobreza e misria, no contexto mundial de formao do subdesenvolvimento.

    Esta articulao e as suas longas razes so hoje cada vez mais compreensveis, na seqncia da recente exploso de pesquisa dos economistas e historiadores do Terceiro Mundo sobre as origens do subdesenvolvimento.

    Este amplo e recente acervo terico aqui utilizado para tentar reinterpretar, de maneira simples e didtica, o processo da formao e deformao das nossas estruturas econmicas e sociais.

    Escrito na Polnia, durante os anos de exlio, este livro foi publicado em Lisboa, em Paris e em Varsvia antes de poder chegar ao leitor brasileiro.

    Tratando-se de um trabalho geral, no foram feitas modificaes significativas entre as edies. O leitor atento problemtica da evoluo da estruturas scio-econmicas do Brasil encontrar lacunas bibliogrficas que hoje me parecem evidentes, mas que no pude preencher no exterior.

    So Paulo, fevereiro de 1982

    Ladislau Dowbor

  • Introduo

    O desenvolvimento econmico, reconhecemo-lo cada vez mais, no um problema tcnico, mas sobretudo poltico: Rodolfo Stavenhagen, Les Classes sociales dans les socits agraires, Paris, Anthropos, 1969, p. 21.

    Tal como qualquer profissional, o economista tambm um homem poltico. A imagem de um tcnico que prope sem tomar partido e deixa a deciso ao poltico no passe de uma fico: que economista deixa de ter em considerao os objetivos polticos e as relaes de fora ao fazer um projeto? Como todo profissional, o economista deve assumir a dimenso poltica da sua atividade.

    As principais medidas econmicas indispensveis ao desenvolvimento do Brasil so conhecidas: trata-se, antes de tudo, de reconverter a indstria, a fim de servir s necessidades do povo e no s dos grupos internacionais, e de reconverter a agricultura, para que a terra alimente a populao que a habita. Num pas onde a agricultura produz para exportar antes de satisfazer as necessidades bsicas da populao que permanece na misria e onde a indstria produz para o consumo de luxo antes de produzir o necessrio, no h grandes mistrios quanto s medidas econmicas fundamentais necessrias pare vencer o subdesenvolvimento.

    O verdadeiro problema reside na sua aplicao: a reconverso da agricultura exige a ruptura da estrutura de poder no campo e na cidade e implica, por conseguinte, uma revoluo agrria. A reconverso da indstria exige que esta seja submetida autoridade do povo, o que no vivel sem a nacionalizao das unidades estratgicas e dos estabelecimentos financeiros.

    Ambas exigem o movimento de foras sociais capazes de levar as reformas em frente e interessadas em faz-lo.

    A dificuldade no reside, pois, na "descoberta" de uma poltica econmica apropriada, mas na sua aplicao. No se trata de encontrar o caminho, trata-se de abri-lo. Noutros termos, a busca de solues econmicas leva o economista ao problema poltico, ao problema do poder e das classes que o controlam.

    Assim, tentamos modestamente acrescentar a atividade de militante atividade cientfica, em vez de fechar discretamente os olhos sobre a realidade e enveredar pela cincia "pura". Com efeito, no basta encontrar tcnicas econmicas, preciso lutar por estruturas que permitam a sua aplicao. Quantos projetos de alfabetizao, de nacionalizaes, de reformas agrrias dormem na paz das gavetas, porque os privilegiados, no poder, recusam-se a p-los em prtica...

    O trabalho que segue no "econmico" no sentido estrito do termo, pois para alm da crtica de um sistema econmico investiga as suas bases de apoio e os seus pontos fracos. Para compreend-lo, claro, mas tambm para contribuir a p-lo em questo.

    No nos parece anticientfico enunciar to abertamente as nossas posies. Ao contrrio, a definio clara das opinies polticas do autor parece-nos a melhor maneira de garantir a objetividade cientfica do trabalho. Basta-nos como prova a imensa mistificao que impregna as anlises do subdesenvolvimento efetuadas por "cientistas" americanos e outros, pretensamente apolticos.

    A problemtica que constituiu o nosso ponto de partida a seguinte: por que a modernizao das estruturais e a industrializao do Brasil no levaram ruptura das estruturas do subdesenvolvimento? Neste sentido, situvamo-nos na linha das pesquisas atualmente realizadas na Amrica Latina. Um trabalho coletivo que rene contribuies importantes para a anlise da situao na Amrica Latina Amrique Latine, crise et dpendance situa o essencial destas preocupaes: "A maioria dos diagnsticos formulados sobre a evoluo do desenvolvimento latino-americano, bem como as polticas postas em prtica por estes pases, tinham como denominador comum uma mesma esperana: estas caractersticas 'subdesenvolvidas' tenderiam a ser

  • ultrapassadas medida que se fossem acumulando as transformaes introduzidas nestas naes pelo processo de 'industrializao'.

    "Se o considerarmos do ponto de vista estatstico e se o medirmos a partir dos indicadores econmicos convencionais, o esforo de industrializao realizado pela Amrica Latina durante os ltimos trinta anos apresenta-se sob uma luz muito favorvel. No s houve uma importante diversificao do sistema produtivo, mas ainda, exceo de perodos relativamente curtos, o ritmo de crescimento industrial atingiu taxas altamente significativas.

    "Apesar destes fatos, a maior parte dos pases latino-americanos entra na dcada de 1970 apresentando caractersticas estruturais bastante diferentes das que se poderiam esperar do papel que devia desempenhar a industrializao. Admitia-se como seguro que a apario de novas formas de produo tenderia a difundir os benefcios do progresso tcnico, provocando a integrao econmica destas sociedades e eliminando o que era descrito como o seu carter 'dualista'. No entanto, o que vemos em toda a Amrica Latina so novos e graves desequilbrios internos (setoriais, espaciais e sociais). Pensava-se tambm que a diversificao dos sistemas rgidos de estratificao social e a apario de 'setores mdios', sempre como resultado das transformaes econmicas, teriam por efeito constituir um apoio ao estabelecimento de formas 'democrticas' de governo. No entanto, o que vemos um novo surto de governos autocrticos e militaristas. Julgava-se enfim que a industrializao levaria formao de uma 'burguesia nacional' com vocao hegemnica, interessada em romper as bases agrolatifundirias da dominao oligrquica e em promover a emancipao destas naes das relaes de subordinao que as ligava aos pases de alto desenvolvimento capitalista. Porm, o que vemos so novas e mais graves modalidades de dependncia internacional e um acordo perfeito entre as diferentes faces das classes dominantes, no que concerne ao projeto de desenvolvimento. Em suma, o sucesso industrial no mudou fundamentalmente a qualidade da vida social e poltica na Amrica Latina".1

    A industrializao relativamente mais avanada no Brasil tende a mostrar alguns destes problemas j mais maduros, favorecendo a sua anlise e permitindo descobrir elementos de resposta questo central: quais so os efeitos da industrializao e da ruptura do esquema clssico da fase de supremacia do modelo primrio-exportador sobre o desenvolvimento?2

    a problemtica que nos lanou no estudo da formao das estruturas econmicas do Brasil. Querendo compreender a dinmica atual, a importncia da herana dos perodos precedentes e a multiplicidade das interpretaes divergentes foraram-nos a concentrar sobre as estruturas em formao durante os sculos precedentes.

    Depois de criticarmos, num primeiro captulo, a transposio de teorias do

    desenvolvimento aplicadas com poucas modificaes realidade profundamente diferente dos

    pases subdesenvolvidos, passamos no segundo captulo a delinear uma abordagem terica que

    rompa com as transposies e permita compreender efetivamente a dinmica do

    desenvolvimento brasileiro. Neste sentido, privilegiamos uma constante que constitui, a nosso

    ver, um fio condutor pare a anlise da formao das estruturas atuais: economia extrovertida e

    complementar, o Brasil jamais pde criar estruturas econmicas orientadas em funo das

    necessidades internas, integradas e coerentes, e na anlise destas relaes de dependncia

    relativamente a economias mais potentes que deve buscar-se a chave do subdesenvolvimento

    atual. Os captulos que seguem constituem uma anlise da evoluo destas relaes de

    dependncia e dos efeitos estruturais sobre a economia brasileira: no captulo III, analisamos a

    1 Luciano Martins (dir.), Amrique Latine, crise et dpendance, Paris, Anthropos, 1972, pp. 8 e 9.

    2 A importncia deste debate no se limita Amrica Latina: numa excelente critica ao "relatrio Pearson da ONU,

    Samir Amin interroga-se sobre "o sentido das transformaes que exige o desenvolvimento: a) as condies e os limites do capitalismo agrrio; b) a dinmica e os limites da industrializao extrovertida fundada no capital estrangeiro" (Samir Amin, Dveloppement et transformations structurelles, "Revue Tiers Monde, 1972, 111, pp. 467-490).

  • fase portuguesa, que durou at o incio do sculo XIX; no captulo IV analisamos a dependncia

    relativamente Inglaterra; no captulo V, enfim, abordamos a transio pare a fase atual,

    caracterizada pela dominao dos Estados Unidos e das multinacionais.

    As linhas que seguem tm em parte o carter de um ensaio terico e podero parecer ambiciosas. Na realidade, preciso levar em conta que a anlise do desenvolvimento na Amrica Latina e no Brasil se manteve durante longo tempo no quadro das teorias do desenvolvimento da Europa industrializada, transpostas com poucas modificaes para uma realidade cuja dinmica profundamente diferente. A falncia destes esquemas de anlise levou recentemente formao de uma escola terica que busca, no quadro do marxismo mas sem transposies mecnicas, o conjunto de conceitos que permitam explicar efetivamente esta realidade.

    A busca de novas formas de abordar o problema e de novos conceitos oferece evidentemente bem menos solidez do que a simples "aplicao" de esquemas rodados. Pensamos, no entanto, que estes problemas devem ser abordados, com todas as fraquezas que isto implica, mas sem perder de vista o seu carter hipottico. A longo prazo, parece-nos que um certo "flutuamento terico", inevitvel durante esta fase de transio na pesquisa latino-americana sobre o desenvolvimento, levar a anlises mais teis para as foras progressistas do que a repetio de esquemas ultrapassados.

  • Captulo 1

    Elementos de Crtica

    O Todo e a Parte: Uma Totalidade com Dominante

    Um dos princpios fundamentais da dialtica no se considerar a histria como a acumulao de fenmenos isolados, mas como um todo em que os diversos elementos se condicionam reciprocamente. Este princpio particularmente importante no estudo do subdesenvolvimento. Com efeito, nos pases capitalistas dominantes a atividade era fundamentalmente autocentrada e autodinmica e o aspecto externo da acumulao aparecia como um elemento essencial mas complementar, no sentido de contribuir para uma dinmica preexistente, mais do que criar uma dinmica nova. Nas economias dependentes, pelo contrrio, a atividade externa do capitalismo dominante constitua a dinmica principal em funo da qual estas economias dependentes se desenvolviam. Na formulao correta de S. Amin, "as formas de integrao internacional condicionam o ritmo e a orientao do desenvolvimento''.3

    Torna-se claro, pois, que hoje impossvel compreender o subdesenvolvimento, e, em conseqncia, a lute de classes nos pases subdesenvolvidos, se no se tome como ponto de partida uma totalidade: a economia capitalista mundial. No atravs da justaposio, realizada por tantos marxistas dogmticos, de regies geogrficas com modos de produo diferentes em que freqentemente regies e modos de produo se recobriam comodamente , mas mostrando como se articulam as dinmicas regionais com as diversas instancias e modos de produo na totalidade.

    "A realidade concreta que o conjunto", escreve Benetti ao criticar a justaposio no-dialtica das partes tpicas da abordagem dualista, "no pode ser explicada por anlises parciais de partes distintas: a determinao das partes em si mtodo logicamente errneo. Porque o conjunto um ser radicalmente distinto da soma das partes que, atravs da sua presena nelas, modifica a sua natureza e os seus contributos recprocos. O conjunto uma totalidade (...) ao entrarem em relao umas com as outras, as partes entram em relao com a totalidade. Mais precisamente, cada uma delas mediada pelo todo nas suas relaes com as outras. E por isso que s a determinao das partes no todo permite empreender o seu lugar e a sua funo".4

    Por outras palavras, a anlise marxista no admite que a realidade seja artificialmente selecionada: a) as diferentes instancias, ou seja, o econmico, o poltico, o ideolgico, constituem fenmenos organicamente ligados entre si e no podem ser analisados separadamente como conjuntos completos; b) o desenvolvimento do capitalismo na Europa, o colonialismo, a revoluo industrial, o neocolonialismo, o imperialismo, o subdesenvolvimento, constituem fenmenos histricos ligados entre si, cujas "relaes recprocas" e "desenvolvimento" devem ser compreendidos; c) o conjunto das regies atingidas por uma dinmica deve ser considerado, sendo a justaposio espacial metodologicamente to errnea quanto o seccionamento das instncias ou dos perodos histricos.

    Se as partes somente se compreendem atravs de um todo, que a totalidade que elas constituem, porque as partes so elas mesmas diferenciadas e ligadas por relaes dialticas. A totalidade contraditria. "A dialtica, no sentido prprio da palavra, escreve Lnin, " o estudo das contradies na prpria essncia das coisas".

    3 S. Amin, Laccumulation lchelle mondiale, Paris, Anthropos, 1970, p. 561.

    4 Carlo Benetti, L'accumulation dans les pays capitalistes sous-dvelopps, Paris, Anthropos, 1974, pp. 113-115.

    Veja-se em particular a segunda parte: "Question de methode''.

  • Ao estudar o desenvolvimento do capitalismo europeu, e em particular o da Inglaterra, Marx "capta" a contradio que se forma entre dois plos: por um lado, a burguesia, que sob o efeito do movimento da concentrao e da centralizao progressiva tende a restringir-se, ao mesmo tempo que se torna mais rica; por outro lado, ao proletariado industrial junta-se a classe mdia proletarizada. "Trata-se da expropriao de alguns usurpadores pela massa", escreve Marx ao concluir o livro I de O Capital. A formao destas classes no se compreende seno atravs da dinmica de acumulao capitalista e seria absurdo tentar definir cada uma separadamente.

    O problema corretamente resumido por Pierre Salama, que toma j por quadro de anlise a economia capitalista internacional: "A realidade internacional no procede por somas de atividades econmicas internacionais; existe um processo produtivo mundial do qual as economias mundiais so componentes. Estruturado e hierarquizado, o sistema produtivo mundial essencialmente o produto da acumulao mundial do capital. Mais precisamente, a acumulao mundial do capital a fora motora do desenvolvimento deste sistema produtivo.... O processo de acumulao do capital em escala mundial impregna a evoluo dos dois plos e realiza dois tipos de desenvolvimento: um que respeita s economias do centro, outro que respeita s economias perifricas ou subdesenvolvidas. A expanso industrial difere em cada um dos plos ou partes da economia mundial. A compreenso dos mecanismos do desenvolvimento em cada um deles s pode ser total se entendermos a acumulao como um todo complexo e totalizante".5

    Desenvolvimento e subdesenvolvimento constituem pois os plos de um mesmo processo, a acumulao capitalista mundial, mas neste processo as relaes entre os plos no so equilibradas: "A estrutura desta totalidade uma estrutura com dominante. Ela reproduz os caracteres principais da estrutura dominante. Em conseqncia, as estruturas sociais dos pases da periferia resultam essencialmente do contato que estas economias tiveram com os pases do centro que as dominam".6

    Ora, pases do centro e da periferia constituem formaes sociais em que a atividade econmica organizada segundo modos de produo concretos. "A especificidade da relao de dominncia", escreve Beneffi, "exprime a particularidade histrica da conexo das partes numa dada sociedade. assim porque o sistema confere totalidade o seu prprio estatuto. J que numa economia capitalista subdesenvolvida o sistema produtivo dominante capitalista, a economia no seu conjunto tem uma natureza capitalista... Os outros modos de produo so-lhe subordinados, o que implica ao mesmo tempo a incluso dos seus caracteres no todo transformado por este sistema produtivo dominante e a modificao das suas condies de funcionamento e de desenvolvimento pelo movimento do sistema produtivo dominante".7

    A dinmica do plo dominante "impregna" pois o conjunto da economia capitalista dependente e nela se manifestar sob a forma de dinmica principal.

    Esta abordagem, por geral que seja, abre caminho para a anlise mais precisa da articulao dos modos de produo, ao mesmo tempo que coloca o problema da definio correta das relaes entre a dinmica externa e a dinmica interna da economia subdesenvolvida.

    Das Trocas Internacionais s Relaes Mundiais de Produo

    A anlise das relaes de produo a este nvel coloca problemas considerveis, se bem que se possam constatar progressos na medida em que a questo foi no conjunto corretamente situada.

    De um modo geral, O Capital, de Marx, tem por objeto de anlise o capitalismo de concorrncia e por campo de anlise o Estado-Nao. Neste quadro, a propagao do crescimento realizava-se com certa naturalidade, na medida em que numa economia de livre concorrncia agiam mecanismos de equilbrio econmico e a ausncia de fronteiras permitia a livre circulao dos bens e fatores.

    5 Pierre Salama, Le procs de sous-dveloppement, Paris, Maspro, 1972, pp. 8 e 9.

    6 Ibid., p 9.

    7 Carlo Benetti, op. cit., p. 124.

  • Ora, na medida em que abordamos o capitalismo monopolista e a economia mundial, devemos inevitavelmente integrar o espao na anlise. Com efeito, a existncia de fronteiras, coloniais ou nacionais, e a existncia de monoplios (mesmo de monoplios coloniais ainda na poca do capitalismo concorrencial) permitiram a constituio de polarizaes regionais profundas, atravs da diviso internacional ou internacional do trabalho.8

    Assim, enquanto que para a Inglaterra do sculo XIX se podia captar o essencial das contradies atravs da anlise da polarizao de classes dentro da prpria nao, na economia subdesenvolvida constatamos uma interpenetrao de contradies de classe internas e externas que tornam a anlise do problema particularmente rdua, ou, pelo menos, a colocam num outro quadro.

    A complexidade das relaes mundiais de produo na fase imperialista do capitalismo foi particularmente patente nas anlises da lute de classes nos pases subdesenvolvidos. Assim, Pierre Moussa, e em parte A. Emmanuel, ao tomarem conscincia da expresso espacial da polarizao entre pases subdesenvolvidos e pases desenvolvidos, foram levados a valorizar a contradio entre as naes em relao s contradies entre as classes.

    O debate conhecido, vamos apenas referir as posies pare clarificar o raciocnio ulterior. Yves Lacoste refute a simplificao desta inverso terica em P. Moussa, na medida em que "implica a existncia entre pases de relaes de produo que existem no seio de uma sociedade". "Trata-se", diz-nos Lacoste, "de uma falsificao do marxismo, pois leva-nos a considerar a populao de cada Estado como um todo, tornando-a de fato uma sociedade sem classes. Ora, os pases subdesenvolvidos no so apenas habitados por explorados: contam com potentssimos exploradores".9

    Encontramos um raciocnio anlogo na crtica de Bettelheim a Emmanuel: "Sabe-se que esta negao da linha de demarcao de classes se acompanha muito geralmente de uma tendncia que leva a substituir esta linha de demarcao por outra. Assim, apesar das suas posies radicais, A. Emmanuel encontra-se freqentemente, quer o queira ou no, ao lado dos especialistas do 'subdesenvolvimento', para quem a 'grande diviso do mundo de hoje' a que separa os 'pases proletrios' dos 'pases abastados'; ou, como se tem dito, de forma menos brutal, os pases 'pobres' dos que o so 'menos' ".10

    Pouco nos importa aqui que a posio de Moussa seja simplista, como simplista a posio que Bettelheim atribui a Emmanuel. O essencial que fica na ordem do dia o fato de no bastar a anlise de classes ao nvel do pas, sem que seja considerada a realidade internacional em que estas classes se inserem. Com efeito, tal como no se pode negar que os pases subdesenvolvidos possuem burguesias potentes e muito ricas, tampouco se pode negar hoje que a diferena entre o proletariado do Nordeste brasileiro e o de So Paulo ou de Detroit qualitativa.

    No se trata de encontrar um meio termo. A anlise de classes continua evidentemente fundamental, mas no se pode ignorar que o capitalismo, no seu estdio imperialista, ou seja, monopolista e mundial, afeta de forma contraditria as classes de regies diferentes e que as dinmicas, recortando-se, exigem uma abordagem mais diversificada. Em particular, trata-se de dar anlise de classes o mesmo quadro que o das suas determinaes histricas, buscando as relaes de produo mundiais.

    Na medida em que a anlise marxista procedia por pases, realizando um corte especial e histrico de realidades submetidas a uma dinmica comum, se bem que contraditria, a anlise das

    8 De maneira geral, o espao intervm pouco na obra de Marx, que supe que os preos, os lucros e os salrios tendem a

    igualizar-se. A passagem economia internacional e ao capitalismo monopolista leva constituio de vrias barreiras a estes mecanismos equilibradores, e assistimos constituio de dinmicas regionais, contraditrias e interdependentes, que necessrio levar em considerao. Veja-se a este propsito a excelente anlise de A. Emmanuel, Expos sur l'change ingal, cole Pratique des Hautes tudes, em "Problmes de planification, Dezembro, 1962, n. 2. 9 Yves Lacoste, Gographie du sous-dveloppement, Paris, P.U.F., 1965, p. 14, referindo-se ao Nations proltaires de

    P. Moussa.

    10 Charles Bettelheim, prefcio a A. Emmanuel, L'change Ingal, Paris, Maspro, 1972, p. 18.

  • relaes mundiais de produo tornava-se a priori impossvel e a teoria econmica internacional continuou sendo, compreensvel, uma teoria das trocas internacionais. Isto refletiu-se num empobrecimento do conceito do "imperialismo".

    "A anlise marxista", escreve Palloix, "sempre se referiu, ao que parece, de maneira sistemtica ao conceito de capital em relao nao. O conceito de capital sempre foi pensado referindo-se a uma propriedade formal, ela mesma nacional: capital U. S., capital britnico, francs, alemo, etc. Logo que o capital atravessava as fronteiras, era analisado sob o ngulo da exportao de capital (Marx, Lnin), sem que esta escape ao capital nacional do qual era oriundo. certo que a maioria dos marxistas continua a raciocinar sobre capital nacional e exportao de capital quando quer explicar o imperialismo".11

    Ora, logo que rompemos com o dualismo ao nvel internacional e abordamos a economia capitalista mundial como sendo a realidade ltima na qual se articulam partes contraditrias, podemos ultrapassar tambm o seccionamento artificial da realidade em instncias e regies isoladas. Explica-se assim que o imperialismo no tenha sido analisado no conjunto das suas manifestaes como estdio do capitalismo , mas reduzido aos seus aspectos econmicos (monopolizao e expanso internacional do capitalismo dominante) ou militares. Explica-se tambm que a teoria do imperialismo aparea como explicao dos mecanismos expansionistas do capitalismo dominante, sem ter sido complementada pela anlise dos efeitos em termos de estruturas econmicas, modos de produo e relaes de produo nas economias dependentes.

    A ruptura da justaposio do interno e do externo, do ponto de vista do pas subdesenvolvido, permite pois abordar efetivamente o que as "trocas internacionais" implicam do ponto de vista das relaes de produo.

    Mais do que em Lnin, podemos apoiar-nos aqui em Bukrin, que soube compreender que a economia mundial constitua um dado especfico do capitalismo, e no uma extenso da economia nacional num setor determinado da sua economia. O fato de considerar a economia capitalista mundial como uma entidade distinta das suas componentes permite a Bukrin passar, para alm do intercmbio entre naes, s relaes de produo que o sustentam.

    "Podemos definir a economia mundial", escreve Bukrin, "como um sistema de relaes de produo e de relaes de troca correspondentes englobando a totalidade do mundo. A economia mundial contm todos os fenmenos econmicos que se apiam, em definitivo, nas relaes de pessoas dentro do processo de produo. De maneira geral, todo o processo da vida econmica mundial dos nossos dias consiste em produzir mais-valia e reparti-la entre os diversos grupos da burguesia, na base de uma reproduo sempre crescente das relaes entre duas classes: o proletariado mundial e a burguesia mundial".12

    Trata-se no conjunto ainda de uma intuio mais do que de um desenvolvimento cientfico e sentimos em Bukrin a generalizao excessiva. Mas o essencial da abordagem indiscutivelmente vlido: a economia capitalista mundial tomada como "realidade fundamental" e a anlise das trocas internacionais ultrapassada pare atingir as relaes de produo. a abordagem que Palloix retoma:

    "O fundo do problema uma articulao das formaes sociais na economia mundial, no imperialismo mundial. necessrio localizar, em cada formao social, o que lhe confere um nvel especfico no plano da articulao escala mundial, criando de um lado formaes imperialistas e do outro formaes sociais dominadas e exploradas. Trata-se de enfrentar as relaes mundiais de produo".13

    Em resumo: relativamente a O Capital, de Marx, passamos do quadro de anlise constitudo pela nao para o quadro do capitalismo mundial, e do capitalismo concorrencial ao capitalismo

    11 Christian Palloix, L'conomie capitaliste mondiale, vol. 11, Paris, Maspro, 1971, p 14.

    12 Bukrin apia-se aqui em Marx: "Logo que de uma maneira ou outra os homens trabalham uns para os outros, o

    trabalho adquire uma forma scia (O Capital). 13

    Christian Palloix, op. cit., p. 11.

  • monopolista; relativamente aos clssicos da anlise do imperialismo, devemos ultrapassar o intercmbio entre naes e a justaposio dualista imperialismo-economias agredidas para partir da totalidade e abordar as relaes de produo mundiais. Samir Amin resumiu bem o problema: trata-se de estudar a acumulao capitalista escala mundial.

    em torno da noo de dependncia que uma gerao de marxistas latino-americanos realizou recentemente uma ruptura com as transposies mecnicas e, ultrapassando a dicotomia contradies internascontradies externas, buscam a compreenso da gnese do subdesenvolvimento latino-americano na relao dialtica entre economias subdesenvolvidas e economias desenvolvidas, ao nvel das diferentes instncias econmica, poltica, ideolgica.

    "Para permitir a passagem da anlise econmica ou da interpretao sociolgica usuais a uma interpretao global do desenvolvimento, necessrio estudar desde o incio as conexes entre o sistema econmico e a organizao social e poltica das sociedades dependentes, no apenas nestas e entre elas, mas tambm em relao aos pases desenvolvidos, pois a especificidade histrica da situao do subdesenvolvimento nasce precisamente da relao entre sociedades perifricas e centrais".14

    Modos de Produo e Impasses Tericos

    A questo das modalidades da insero do Brasil no sistema capitalista uma questo aberta. Atesta-o a prpria diversidade das respostas encontradas.

    Assim, o longo perodo colonial e o incio do neocolonialismo, que constituem o essencial da histria do Brasil, recebeu interpretaes totalmente contraditrias: a tese do feudalismo, defendida por Alberto Passos Guimares, entre outros, encontra slidos argumentos empricos, mas tem dificuldades pare explicar os aspectos escravistas e capitalistas do sistema; a tese do modo de produo escravista (Nelson Werneck Sodr, por exemplo), qual Ciro Flammarion Cardoso objeta com razo "que no se pode confundir o sistema econmico da antigidade com o do Brasil colonial, pois a escravido dos dois casos no corresponde em absoluto ao mesmo nvel de desenvolvimento das foras produtivas"; a tese capitalista, em torno da qual encontramos os melhores historiadores da economia brasileira (Caio Prado Jr., Roberto Simonsen, Celso Furtado), mas que tem evidentemente dificuldades em digerir uma srie de elementos estranhos ao capitalismo, pelo menos ao capitalismo sob a forma europia ou americana.15 Esta "riqueza" de interpretaes tem vrias fortes: por um lado, os diversos ciclos de produo (o ciclo do acar, os diversos ciclos do gado, o ciclo do ouro, o do caf, os diversos ciclos industriais) deram lugar, em perodos diversos e em regies diferentes, a uma variedade de nveis de desenvolvimento das foras produtivas, de relaes de produo e de propriedade que se recortam e coexistem em parte at hoje.

    Por outro lado, a ao simultnea de determinaes internas e externas nas opes econmicas, resultado do carter dependente da economia brasileira, fez com que no seja possvel dar conta da organizao econmica e do(s) modo(s) de produo sem referir-se a determinaes simultaneamente internas e externas. Deste carter extrovertido da economia decorre por sua vez uma interpenetrao de elementos prprios de modos de produo historicamente diferentes, em

    14 Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, Dependncia e Desenvolvimento na Amrica Latina: Ensaio de

    Interpretao sociolgica, Rio de Janeiro, Zahar 1970. Esta obra constitui, na trilha das anlises de A. G. Frank, uma importante viragem terica nas anlises marxistas recentes na Amrica Latina. 15

    Ciro Flammarion Santana Cardoso, Observations sur le dossier prparatoire la discussion sur le mode de production fodal, Paris, Centre d'tudes et de Recherche Marxistes, Ed. Sociales, 1971, pp. 66 a 69. O prprio Ciro Cardoso "no considera o sistema colonial brasileiro como escravatura (no sentido do modo de produo de certas regies, alis limitadas, do mundo antigo), nem feudal, e menos ainda capitalista: tem um rosto muito definido e particalar".

  • particular a sobreposio de elementos de relaes de produo conhecidos na fase europia pr-capitalista e de uma circulao capitalista que no difere da que se conhece nas economias dominantes.

    Enfim, entra tambm em jogo a variedade das determinaes na superestrutura, cuja importncia no deve ser subestimada na formao dos modos de produo, e que comporta um amlgama de influncias indgenas, portuguesas, africanas, inglesas, americanas e de vagas sucessivas de imigrao.

    O resultado que, segundo se enfoca com maior ateno o norte ou o sul do pas, a economia da exportao ou a que se orienta para consumo popular, a produo ou a circulao, os aspectos de infra-estrutura ou de superestrutura, tender-se- a concluir por um ou outro modo de produo.

    Na falta de uma teoria capaz de encontrar as caractersticas globais que constituem a especificidade da nossa histria, e que do conta do conjunto, a anlise chegou a uma srie de impasses tericos.

    Um primeiro destes impasses pode ser caracterizado pela teoria dualista. Na medida em que a essncia do problema reside justamente na caracterizao das relaes

    entre o antigo e o novo, entre o "pr-capitalista" e o capitalista, entre estes elementos aparentemente contraditrios que coexistem de maneira estvel na economia brasileira, o corte desta economia em dois, permitindo explicar a parte moderna por uma extenso dos mecanismos capitalistas e a parte "arcaica" pela "tradio", constitui uma soluo de facilidade, um compromisso terico que nos deixa com o problema todo pela frente.

    Jacques Lambert, que desenvolveu a anlise dualista mais conseqente no Brasil, toma por ponto de partida "o abismo que separa a civilizao urbana da civilizao rural, o pas novo do pas velho".

    "Os brasileiros so divididos em duas sociedades diferentes pelos nveis e pelos modos de vida... No correr do longo isolamento colonial (!) formou-se uma cultura brasileira arcaica que carrega ainda a marca do sculo XVI e das suas rotinas e que apresenta, enquanto persiste o isolamento, tanta estabilidade quanto as culturas indgenas da sia ou do Oriente Mdio... Em oposio a esta cultura arcaica essencialmente rural... o fluxo de imigrantes europeus, retirados dos seus meios de origem, trazendo tcnicas e modos de vida novos, o desenvolvimento de novas formas de agricultura, a criao de uma grande indstria, o desenvolvimento dos transportes, uniram populaes numerosas numa vasta sociedade em constante evoluo: o Brasil do sul um pas novo... Em contato em todo o lugar, os dois Brasis to diferentes so unidos pelo mesmo sentimento nacional e por muitos valores comuns: no formam duas civilizaes diferentes, mas duas pocas de uma mesma civilizao; no so estrangeiros, mas sculos os separam".16 14

    O elemento que domina a anlise evidentemente o isolamento das partes, separadas por um "abismo", por "sculos". Referindo-se ao "isolamento colonial" Lambert escreve que o colonialismo semeou no pas colnias regionais totalmente isoladas. Ora, se o isolamento entre as unidades ou regies produtoras verdadeiro no plano nacional, o contato direto entre elas que fraco: em compensao, recebem impulses comuns da metrpole, qual esto ligadas.

    O produtor de cacau que limpou o "stio" pode estar isolado do mundo no que concerne s unidades de produo vizinhas. Isto no o impede de adequar o seu comportamento econmico s mnimas flutuaes das cotaes nos mercados internacionais, exatamente como outros produtores "isolados".

    A economia aparece pois como dual na medida em que examinamos o pas isoladamente ou regies isoladamente. To logo retomamos a totalidade que constitui a sua lgica, o desenvolvimento do capitalismo ao nvel mundial, percebemos que os laos entre as diferentes partes da economia so patentes, mas duplamente encobertos, na medida em que passam pelo exterior e sob a forma de mecanismos financeiros que nem sempre so aparentes.

    16 Jacques Lambert, Le Brsil, structure sociale et institutions politiques, Paris, A. Colin, 1953, pp. 64 e 65.

  • A teoria dualista constata pois um fato, as diferenas profundas que existem no interior da sociedade subdesenvolvida, mas no o explica. Ora, no se trata de negar a profundidade das diferenas, mas de negar o corte, o "isolamento" entre as partes diferentes. A dualidade interna o fruto da dinmica de acumulao capitalista e o dualismo como teoria no errado do ponto de vista estatstico, mas estril na medida em que efetua um corte entre as duas partes em vez de demonstrar o processo histrico que preside sua diferenciao. O ponto de partida correto para a busca de uma teoria do desenvolvimento a constatao lapidar de Stavenhagen: "uma no saberia subsistir sem a outra".17

    Outro impasse terico constitudo pelo que chamaramos abordagem pluralista, por analogia com a teoria dualista. Com efeito, os erros bsicos da abordagem dualista, consistindo no isolamento artificial de formas de organizao econmica inseparveis donde o isolamento entre as causas e os efeitos da totalidade analisada encontram-se na concepo pluralista que predominou durante muito tempo entre os marxistas brasileiros.

    Segundo esta concepo, a sociedade brasileira compreende duas contradies fundamentais, que exigem soluo radical na atual etapa histrica do seu desenvolvimento. A primeira a contradio entre as foras produtivas em crescimento e o monoplio da terra, que se exprime essencialmente como contradio entre os latifundirios e as massas camponesas. A contradio antagnica entre o proletariado e a burguesia, inerente ao capitalismo, tambm uma contradio fundamental da sociedade brasileira. Mas esta contradio no exige soluo radical e completa na etapa atual da revoluo, j que na situao atual do pas no h condies para transformaes socialistas imediatas. Na sua etapa atual, a revoluo brasileira antiimperialista e antifeudal, nacional e democrtica.

    Se j no estamos no nvel da teoria dualista, que ope o "Norte" ao "Sul", a justaposio de modos de produo basicamente muito prxima, do ponto de vista metodolgico, da justaposio de regies: o elemento essencial, a articulao do conjunto, permanece inexplicado.18

    O universo da luta de classes constitui, segundo esta interpretao, uma justaposio de contradies: o proletariado em contradio com a burguesia nacional, contradio que dever tornar-se revolucionria apenas depois de uma revoluo democrtica burguesa; o campesinato em contradio com a classe dos grandes proprietrios; e o imperialismo, inimigo externo presente na nao atravs dos "agentes internos", em contradio com a "nao".

    O erro fundamental consiste aqui ainda no isolamento artificial das partes: reencontramos o dualismo simultaneamente no plano interno e externo.

    J vimos o dualismo interno: as duas contradies que aqui aparecem justapostas (proletariado-burguesia, por um lado, e campesinato-latifndio feudal, por outro) pertencem na realidade a uma dinmica s, no constituindo dois mundos estanques, mas formas diferentes da acumulao capitalista. Veremos extensamente nos captulos seguintes como estas formas se complementam.

    Mas fixemos ainda, no que concerne ao dualismo interno, outro impasse: uma forma de fazer a ponte entre as duas contradies, de ligar os dois modos de produo, nesta concepo pluralista, a transio. Tratar-se-ia de um mundo pr-capitalista no qual o capitalismo penetra gradualmente, reduzindo a rea do modo de produo feudal at se tornar dominante por meio de uma revoluo democrtica burguesa, que poria o poder nas mos de uma burguesia nacional. A fase da "transio" explica, por conseguinte, a coexistncia do capitalismo e do feudalismo.

    17 Rodolfo Stavenhagen, Les classes sociales dans les socits agraires, pp. 54-55.

    18 Na realidade, a diviso regional efetuada pelos "dualistas " e a diviso em "modos de produo" que analisamos

    coincidem geralmente. Laclau nota bem esta simplificao: "Logo que se introduz um tal dualismo na anlise marxista, as conseqncias so que o feudalismo representa o setor conservador num plo da estrutura social, enquanto o capitalismo representa o setor dinmico noutro (Ernesto Laclau, "Feudalismo e Capitalismo na Amrica Latina", New Left Review). de se notar que, para alm disto, a anlise de Laclau permanece tradicional.

  • Ora, o problema principal, do ponto de vista das relaes entre os modos de produo no Brasil, que se trata justamente de uma articulao estvel entre os elementos pr-capitalistas e capitalistas: a transio no explica de maneira alguma a coexistncia deste conjunto durante mais de quatro sculos e as razes que fazem com que esta combinao heterclita se mantenha esto justamente por demonstrar.

    Esta preocupao em redefinir a transio em funo da situao particularmente estvel das relaes entre modos de produo no capitalismo dependente levou a uma variedade bem mais rica da teoria da transio, que busca as formas de articulao de modos de produo. Partindo da excelente anlise de Pierre-Philippe Rey, Charles Bettelheim tenta uma distino entre tipos de articulao:

    "Pergunto-me no entanto se... no seramos levados a distinguir entre dois tipos de articulao entre modos de produo diferentes: uma que seria 'estvel', ou seja, que seria suscetvel de reproduzir-se como tal (talvez atravs dos 'ciclos' histricos) porque as classes dominantes destes modos de produo no tm interesses antagnicos e porque a reproduo de um pode ser a condio da reproduo do outro (ou dos outros); e uma outra articulao, que seria 'instvel', o que deveria conduzir dominao de um dos modos de produo sobre os outros, logo transformao ou eliminao do ou dos modos de produo dominados. o processo que seria o de uma transio".19

    Nesta variedade, subsistem dois problemas: primeiro, falar em articulao no lugar de transio d-nos sem dvida uma apreciao mais correta, j que as relaes entre os modos de produo so relativamente mais estveis. Mas a substituio de conceitos no explica o problema abre apenas, e j muito, uma nova perspectiva de anlise; segundo, o conceito-chave ser o de "dominncia" de um modo de produo sobre outro. O conceito rico, mas perigoso: com efeito, o problema no deve ser considerado resolvido, mas deslocado; "trata-se agora de demonstrar por que o modo de produo dominante reproduz os outros modos de produo. Noutros termos, por que a "dominncia" no se torna "exclusividade".

    Quanto ao dualismo externo, aparece no fato de a contradio principal, na concepo pluralista, ser a que ope a "nao" ao "imperialismo" e aos seus "agentes internos". O "curto-circuito" terico operado aparece claramente na frmula "agentes internos". Seno vejamos:

    a) O imperialismo no impede hoje uma constatao de fato a industrializao, d-lhe apenas formas determinadas; , pois, sob a iniciativa da burguesia imperialista que se d a industrializao, sendo a burguesia nacional arrastada no movimento. A burguesia e os "agentes internos" estando confundidos, como colocar as duas contradies? Os "agentes internos" produzindo hoje no Brasil mais de um milho de carros por ano e empregando alguns milhes de trabalhadores, o problema dificilmente pode ser resolvido pela forma "agentes internos" e por uma contradio com a "nao".

    b) As economias dominantes continuam a ter grande necessidade de matrias-prmas e consideram do seu interesse e do interesse das suas empresas instaladas no Brasil manter a estrutura agrria existente: o desenvolvimento da indstria exigindo a reproduo da orientao da produo agrcola, o que tem implicaes diretas sobre a reproduo das relaes de produo no campo como separar as contradies e como poder o campons lutar contra os "senhores feudais" sem lutar contra a burguesia industrial que os mantm? E como poder lutar contra os dois, sem lutar contra o imperialismo?

    A srie de contradies enumeradas na teoria pluralista compreende todos os elementos, mas no forma uma totalidade: enumera os componentes, mas no explica a dinmica das suas relaes. No satisfatrio o recurso aos "agentes internos" para explicar a presena eminentemente interna

    19 Charles Bettelbeim, Remarques theriques propos de larticulation des modes de production' de

    Pierre-Philippe Rey, Problmes de Planification, nO 14, Paris, Sorbonne, s. d., p. 175.

  • da dinmica imperialista e "transio" para explicar a coexistncia durante sculos de modos de produo que deveriam excluir-se.

    A abordagem permanece estril quando se trata de demonstrar o essencial: a articulao do conjunto num processo histrico.20

    20 "A teoria dialtica combate... o empirismo, para o qual a contradio no mais que um fato, no uma lei do ser, e

    que a reduz diferena constatvel pela observao, simetria, justaposio dos distintos. O pluralismo, forma refinada do empirismo confunde o imediato e o mediato, despreza as conexes explicativas; negando a contradio, nega qualquer espcie de teoria unitria e chega a um misticismo de boa qualidade " (Henri Lefebvre e Norbert Guterman, "Lnine, Cahiers sur la Dialectique, Paris, Gallimard, 1967, p. 40).

  • Captulo II

    Um Esboo de Mtodo

    O abuso flagrante dos conceitos "feudalismo" e "pr-capitalismo" para definir certas economias ou certos setores das economias subdesenvolvidas explica a voga de vrias simplificaes: o caso em particular de teses de Roberto Simonsen, autor de uma das melhores histrias econmicas do Brasil, que considera o Brasil como sendo capitalista desde o inicio da sue formao e em todos os seus aspectos, apoiando- se no simples fato de que a motivao bsica da atividade econmica era o lucro.

    Hoje as anlises mais interessantes voltam-se para as razes que permitiram a coexistncia de relaes de produo pr-capitalistas e capitalistas ao longo dos sculos, apesar da modernizao da economia, e para as razes que perpetuaram as relaes coloniais e a dependncia, apesar da soberania "oficial".

    Parece que os progressos tericos constatados resultam justamente da aproximao destes dois nveis de anlise. Trata-se, pois, ultrapassando a dicotomia contradies internas (de classe) e contradies externas (nao contra imperialismo), de juntar a anlise da dependncia "ajustamento estrutural pelo qual certas formaes nacionais se submetem a outras",21 para retomar a frmula de Samir Amin e a anlise das contradies de classe, tomando naturalmente por base a anlise do modo de produo.

    O problema central , evidentemente, a explicao dos mecanismos que permitem, num quadro capitalista, a imbricao de relaes de produo aparentemente pr-capitalistas e de relaes de circulao indiscutivelmente capitalistas, sem que o processo de reproduo alargada do capital se veja perturbado.

    Devemos, pois, antes de tudo, definir claramente as fases da reproduo do capital, e para isto partimos do livro II de O Capital de Marx e dos esquemas de reproduo.

    "No processo de reproduo do capital social, Marx engloba 'tanto o processo de produo imediato como as duas fases do processo de circulao propriamente dito, ou seja, o ciclo completo que, na qualidade de processo peridico que se repete sem cessar em intervalos determinados, constitui a rotao do capital'. A reproduo do capital social pois constituda pela reproduo das trs fases do processo cclico do capital".22

    a) Primeira fase da circulao do capital: A M.

    O capitalista, dispondo de um capital-dinheiro, procura investi-lo produtivamente e, para faz-lo, converte este capital-dinheiro em fora de trabalho e meios de produo (capital produtivo). Desdobrando M, podemos escrever esta fase como segue:

    21 Samir Amin, Le dveloppement ingal, Paris, Ed. de Minuit, 1973, p. 12.

    22 Apoiamo-nos aqui na excelente apresentao da reproduo do capital segundo K. Marx feita por J. Nagels em La

    reproduction du capital selon K. Marx (Boisguillebert, Quesnay, Leontiev), Bruxelas, 1970.

    A M

    V

    C

  • A proporo C/V na despesa do capitalista determinar a composio orgnica do capital. O capital constante, C, pode ele mesmo ser subdividido em capital circulante e capital fixo, segundo seja parcialmente ou totalmente consumido num ciclo dado de reproduo. Podemos, pois, escrever esta fase como segue:

    onde: A = Capital-dinheiro V = Capital varivel

    Cf = Capital fixo Cc = Capital circulante

    b) Segunda fase: ... p ..., fase de produo do capital.

    O capital-dinheiro tendo sido transformado em fora de trabalho, em meios de produo, a combinao destes no processo de produo permite obter uma quantidade de mercadorias M'. O valor destas mercadorias igual depreciao do capital fixo (poro do capital fixo cujo valor se incorpora no produto), mais o valor do capital circulante, mais o valor da fora de trabalho incorporada no produto, e, enfim, a mais-valia:

    M = C+ V + S

    c) Terceira fase: M' A', fase de circulao do capital.

    O capitalista dispe agora de um capital sob a forma de mercadoria, de um capital-mercadoria que deve converter em capital-dinheiro pare poder reinvestir em meios de produo e em fora de trabalho, a fim de continuar a reproduo do capital, bem como para assegurar o seu prprio consumo. Deve, pois, realizar a mercadoria, comercializ-la.

    O ciclo completo, compreendendo as duas fases de circulao e a fase de produo, toma pois o aspecto seguinte:

    A M ...p... M - A'

    Os trs ciclos, v-se bem, so igualmente necessrios ao processo de reproduo do capital. No entanto, o acento que se d circulao ou produo modifica profundamente a interpretao histrica de certos fenmenos, donde o debate importante que se instaurou a este respeito.

    Das Relaes de Foras s Relaes de Produo

    Na base da situao atual de dependncia, devemos situar uma certa vantagem inicial da Europa do sculo XVI, cujo capitalismo nascente se via travado no seu desenvolvimento pelas estruturas feudais e buscava no comrcio longnquo a possibilidade de aumentar os seus lucros.

    Apesar de, como o nota Bairoch, a decalagem em termos de riqueza no fosse muito grande na poca, e em todo o caso bem menor que hoje, o fato que os comerciantes com os seus produtos e os "conquistadores" com os seus canhes representavam pare as civilizaes do "ultramar" uma fora irresistvel, e sabemos que civilizaes dotadas de

    A M

    V

    Cf + Cc Cf + Cc

  • um alto nvel de organizao foram completamente desorganizadas ou reorientadas pelo avano dos mercadores e dos piratas europeus.

    Esta vantagem inicial foi gradualmente transformada numa hegemonia total, pelo conjunto de mtodos que acompanharam a acumulao primitiva do capitalismo. As redes comerciais foram desviadas, as estruturas de produo reorientadas. Sendo o enfraquecimento das economias do ultramar conseqncia da pilhagem e do comrcio longnquo efetuados para enriquecer a metrpole e, o que mais importante, para fortalecer o setor dinmico dentro da metrpole constitudo pelas atividades capitalistas, o reforo destas era proporcional submisso crescente daquelas.

    Ora, medida que as conquistas se multiplicavam e que os "entrepostos" de comrcio se estabeleciam nos quatro cantos do mundo, comeava a tecer-se a teia da diviso internacional do trabalho e das relaes mundiais de produo.23

    Com efeito, a presena do capitalismo mercantil, apesar da sua fraca importncia na poca, provocava um desequilbrio na produo local dos pases do ultramar, favorecendo o aparecimento de atividades econmicas e de grupos dominantes ligados s necessidades dos mercados europeus. medida que estas se desenvolviam, a produo para o exterior tornava-se comparativamente mais vantajosa nestes pases e, independentemente das relaes de dominao militar que se estabeleciam, formava-se o "pano de fundo" da dependncia econmica dessas regies, por meio da diviso internacional do trabalho.

    Diviso esta que, baseada numa dominao inicial do capitalismo em pleno florescimento, no era uma especializao regional para o maior bem comum, como o queria Ricardo, mas significava, ao contrrio, a subordinao da produo na periferia s necessidades da acumulao no centro.24

    Formao de um Sistema Bipolar

    Assim, uma srie de regies, antes de desenvolverem o seu prprio capitalismo ou de comearem a pr em questo os prprios sistemas pr-capitalistas, eram gradualmente submetidas dinmica do capitalismo do centro, que se manifestava na periferia sob a forma comercial e, medida que este comrcio se desenvolvia, sob a forma de diviso do trabalho, visto que os novos mercados estimulavam a produo para exportao, provocando gradua1mente uma reconverso da economia local. As economias da periferia comeavam a organizar a sua prpria produo em funo do capitalismo europeu, que aparecia sob a sua forma mercantil: tratava-se de uma extenso da circulao e no do processo de produo do centro para a periferia. Mais precisamente, tratava-se, em geral, da troca de mercadoria elaborada por produtos coloniais e, mais tarde, de matrias-primas. indiscutvel que esta ligao prematura com o capitalismo europeu reforou as classes dirigentes locais e cristalizou relaes de produo existentes, ao mesmo tempo que mudava a sua orientao. Vendo no monoplio do contato entre o capitalismo europeu e as estruturas locais de produo o melhor meio de fortalecer-se, as classes dominantes locais tornaram-se intermedirias

    23A compreenso da importncia das relaes de produo mundiais, j na fase do capitalismo comercial, conheceu um avano com recentes trabalhos de histria econmica, em particular de Marian Malowist, Immanuel Wallerstein e outros.

    24 Este elemento de dominao encontra-se evidentemente ausente na anlise das vantagens comparadas de Ricardo

    a partir desta dominao, certas economias impunham s outras um tipo determinado de especializao segundo as suas prprias necessidades; se em termos de troca (valor do produto) a vantagem podia ser dividida, o efeito sobre a estrutura de cada plo era profundamente diferente. Era bem a periferia que se submetia dinmica do centro, e no o inverso, e enquanto o centro reforava uma produo em que as economias de escala e os custos decrescentes jogavam em cheio, permitindo-lhe desenvolver uma economia integrada e reforada pelos seus laos externos, a periferia especializava-se em produes pouco dinmicas por natureza e multiplicava setores desintegrados entre si, cuja nica lgica era a complementaridade relativamente s necessidades do centro.

  • deste intercmbio. Participavam do excedente produzido sob diversas formas, mas submetiam-se de maneira crescente dinmica do capitalismo do centro.25

    Dominncia, na Periferia, das Esferas de Circulao do Centro

    medida que o capitalismo europeu, desvinculado dos laos feudais que o entravavam, penetrava na fase industrial, o esquema de reproduo do capital conhecia uma transformao profunda. Assim, das duas fases de circulao e fase de produo que constituem o processo de reproduo do capital e da sua acumulao, a acumulao comercial, e com isto as fases de circulao, passava a pesar relativamente menos no perodo do capitalismo mercantilista, enquanto a fase de produo ... p ... se tornava o elemento determinante do sistema.

    Sendo que o ciclo do capital s completo atravs da sucesso das trs fases, no se trata de "privilegiar" uma ou outra, mas de compreender que, na inverso citada e na medida em que progrediam as foras produtivas, era a produo que passava a determinar em ltima instncia a composio e o volume da circulao, e no inversamente. Esta predominncia da produo no impedia, evidentemente, que as formas de circulao continuassem a condicionar por sua vez o processo de produo.

    Ao contrrio, nas economias perifricas constatamos a dominncia inversa: so as necessidades de circulao capitalista, que se manifestam na periferia sob a forma de comrcio longnquo, que determinam cada vez mais as atividades econmicas locais. As fases de circulao tornam-se determinantes, em ltima instncia, da composio ou do volume de produo ou de pilhagem local.

    Ora, se recolocarmos estas diferenas relativas da fase de produo e das fases da circulao no centro e na periferia, constatamos que a produo capitalista na periferia essencialmente deter-minada pela procura no centro, enquanto no centro, por um lado, a circulao se v em ltima instncia submetida s necessidades da produo; por outro lado, o aspecto exterior desta circulao nitidamente complementar, sendo a circulao no seu conjunto determinada essencialmente do interior.26

    Assim, a dinmica principal na periferia era constituda por uma dinmica secundria do centro o comrcio exterior do centro, cuja funo era ali complementar, que se tornava o elemento principal da estruturao das economias perifricas, atravs da dominncia da circulao.

    25 A participao das classes dirigentes perifricas na formao deste sistema freqentemente subestimada, dando-se

    maior relevo "agresso" militar e comercial do capitalismo. Ora, o prprio carter pr-capitalista destas classes na falta de um capitalismo local assegurava a sua extroverso, ou seja, o seu enquadramento pelo capitalismo do centro. Se a dinmica capitalista reforou e cristalizou as relaes de produo na periferia, constata-se que os efeitos fundamentais foram os mesmos nas terras onde o capitalismo constituiu a sua produo complementar em terreno virgem: o caso do Brasil ou do Sul dos Estados Unidos, onde instaurou relaes de produo anlogas. Barbara e Stanley Stein constatam um mecanismo anlogo na Espanha e em Portugal. A este propsito ver em particular os excelentes estudos de Marian Malowist.

    26 Compreende-se, pois, que os efeitos deste processo sejam inversos: enquanto na periferia o comrcio longnquo,

    reforando as elites locais, cristalizava o sistema pr-capitalista existente e no contribua para desenvolver o mercado local, obrigando os produtores locais a produzir em funo do "mercado longnquo ", no centro este comrcio reforava o artesanato e o comrcio capitalista, lanando as bases da ruptura do sistema feudal e abrindo cada vez mais as possibilidades de produo em funo do mercado interno.

    Temos, pois, duas "regies": o "centro", capitalista dominante determinado pela produo e introvertido (as atividades determinadas pela circulao externa sendo relativamente secundrias e complementares da dinmica interna); a "periferia ", em que o capitalismo dependente determinado pelas esferas de circulao e extrovertido, a circulao na periferia vendo-se assim determinada em ltima instncia pela produo no centro.

  • Extroverso da Economia Capitalista Dependente

    Caracterizamos a dominncia das determinaes capitalistas externas sobre as determinaes internas como constituindo a extroverso econmica de economia dependente.

    evidente que a dominncia das atividades extrovertidas constitui simultaneamente uma causa e um efeito da diviso internacional capitalista do trabalho; esta, sendo efetuada sob o signo das necessidades de acumulao no centro, no se tratava de um ajustamento recproco, mas da submisso de um s necessidades do outro. medida que a diviso progredia, a acumulao no centro aumentava, a produo e as necessidades encontravam-se aumentadas e as economias perifricas reforavam a sua "especializao". Constituindo o capitalismo do centro o elemento motor do conjunto, a periferia especializava-se em funo destas necessidades.

    Poderia objetar-se que nos referimos a mecanismos capitalistas em pases onde o capitalismo ainda dava os primeiros passos. Voltaremos a este problema mais adiante. Constatemos, por enquanto, que se as relaes de produo continuavam a ser em geral pr-capitalistas, o fator que determinava o que seria produzido e para quem, ou seja, a utilizao destas relaes de produo, era a circulao capitalista, no interna, mas a extenso da circulao capitalista do centro. Assim, as relaes de produo pr-capitalistas eram submetidas dinmica das esferas de circulao capitalista, secundrias no centro, mas principais na economia perifrica.27

    Vemos pois que, apesar das relaes de produo pr-capitalistas dominantes, a atividade para exportao, determinada pela circulao capitalista, podia constituir-se e tornar-se dominante e determinar as prprias relaes de produo.

    Temos um exemplo nas plantaes de uva na Arglia, pas onde a religio tornava o consumo de vinho quase nulo. Esta produo v-se indiscutivelmente determinada pelas necessidades do centro, sem a constituir uma dinmica essencial, enquanto que na Arglia esta produo se torna dominante, cobre as melhores terras e determina a estrutura do poder. Aos que objetariam que elementos polticos e de fora, mais do que mecanismos econmicos, intervieram neste processo histrico, baste lembrar o caso do caf brasileiro, em que uma produo base de relaes pr-capitalistas destinada quase totalmente exportao e se encontra determinada pelas necessidades de acumulao no centro. A estrutura econmica local foi reorganizada em funo desta circulao capitalista e os grupos ligados a esta produo mantiveram a hegemonia do poder at 1930. No entanto, o Brasil era um pas independente e soberano.

    As Funes de Produo e de Realizao de Fora de Trabalho

    O carter extrovertido da produo (dominncia do setor exportador sobre a produo para consumo interno, dominncia das esferas da circulao capitalista do centro sobre a produo na periferia) reflete-se numa forma particular de realizao.

    Nas economias capitalistas dominantes, a realizao fez-se decerto em grande parte graas exportao. Mas no se trata de um mecanismo fundamental para as economias dominantes: assegurava antes de tudo a aquisio de matrias-primas a melhor preo e Lnin mostra bem que o comrcio exterior permanece uma troca no sendo o problema da realizao resolvido, mas

    27 Foi na medida em que puderam inverter esta principalidadeas atividades determinadas pelo processo de produo

    interna no Norte impondo-se s atividades capitalistas (mas com relaes de produo pr-capitalistas) no Sul determinadas pela circulao capitalista do centro que os Estados Unidos conseguiram estabelecer a dominncia das esferas de produo e de relaes de produo capitalistas. A ruptura dos laos de comrcio com o capitalismo dominante (a Inglaterra) e a supresso de relaes pr-capitalistas constituem pois, paradoxalmente o mesmo movimento. Note-se, no entanto, que certos elementos pr-capitalistas do Sul foram reproduzidos, a partir da dominao do Norte industrial, no quadro de uma polarizao interna.

  • deslocado e, no caso que consideramos, esta troca resultava numa capacidade de produo maior, logo, num problema de realizao maior.

    No entanto, nas economias perifricas, sendo a produo para o exterior dominante, segue-se que o essencial da realizao do produto (M' A') no se fazia no interior, mas no exterior da regio produtora.

    Da decorre um fato de grande importncia para o estudo das relaes de produo: o ciclo de reproduo alargada do capital fechando-se no exterior (do pas ou da regio produtora), a fora do trabalho participa apenas marginalmente na realizao do seu prprio produto.

    Noutros termos, o equilbrio entre a produo de bens e o seu consumo realizava-se atravs de uma explorao muito elevada, ou seja, a mais-valia tomava importncia relativamente major.28

    O problema deve ser bem compreendido: no se trata de uma situao de subconsumo. No seu Desenvolvimento do Capitalismo na Rssia e em Para Caracterizar o Romantismo Econmico, Lnin refuta a concepo segundo a qual a exportao constituiria uma soluo ao subconsumo local. Com efeito, a exportao supe a prazo uma importao, e em termos globais o problema de realizao permanece inteiro.29

    Trata-se do fato de que a fora de trabalho ocupada na produo do acar, do cacau, do tabaco, do caf e isto refere-se tambm em parte, conforme veremos, aos bens industriais no consumidora destes bens, ou s o de maneira acessria. Assim, enquanto a identidade fundamental entre a produo e o consumo se mantm, a realizao da quase totalidade da produo dominante efetua-se por intermdio da mais-valia: a) os bens "coloniais" produzidos sero trocados por produtos manufaturados da metrpole bens de luxo, mquinas ou escravos, ou seja, bens de consumo capitalista; b) estes bens coloniais sero trocados por produtos da metrpole que no refletem, em nvel igual de produtividade, um input igual de trabalho, originando uma transferncia importante de mais-valia para o centro (mais-valia diferencial, dir Emmanuel, pois baseada na diferena de remunerao da mo-de-obra do centro e da periferia, sendo esta mais-valia transformada em acumulao do capital nas economias dominantes).

    Vemos bem aqui as necessidades de acumulao no centro determinando superexplorao e relaes de produo pr-capitalistas na periferia. O dado essencial destas relaes de produo que a fora de trabalho (servil, escravo, assalariado, pouco importa aqui), que no capitalismo dominante exerce uma dupla funo, na fase de produo (... p ...) e na fase de realizao (M' A') dentro do processo de reproduo do capital , ter apenas a primeira funo no capitalismo perifrico, na medida precisa em que o capitalismo perifrico determinado pelas esferas de circulao no centro.30

    Explica-se ento a manuteno de um dado estvel: a incrvel misria do proletariado rural, quaisquer que sejam as relaes de produo existentes, nos setores extrovertidos e, por repercusso, noutros setores, se bem que em menor grau.

    O escravo no Nordeste e o operrio assalariado das plantaes de So Paulo, o trabalhador agrcola dos sculos XVII ou XX permanecem no fim de contas no mesmo nvel econmico, e

    28 O consumo de luxo, se bem que muito importante, no basta para explicar o fenmeno; necessrio acrescentar a

    transferncia de mais-valia para os capitalistas do centro. 29

    Ver em particular o captulo Vl de Para Caracterizar o Romantismo Econmico. No entanto, a crtica de Lnin aborda o problema em termos demasiado globais. Com efeito, numa fase em que a Inglaterra exporta bens de consumo e importa bens de produo, o produto encontra-se realizado, pois os bens importados constituem capital produtivo, ou bens de luxo, ambos de consumo da classe de capitalistas. Neste sentido, o ciclo de reproduo encontra-se reequilibrado, atravs, precisamente, da exportao. Isto possvel porque, em termos da classe que consome, no h equivalncia entre o bem exportado e o bem importado, mesmo que haja uma equivalncia em termos de valor. evidente que a superexplorao na Inglaterra do sculo XIX era possvel na medida em que a realizao do produto se fazia em grande parte fora da esfera de consumo do trabalhador. As cadeias que prendiam as crianas s maquinas de tecer na Inglaterra da revoluo industrial so na realidade bem parecidas, no seu fundamento econmico, com a sujeio extra-econmica que mantm o trabalhador miservel preso fazenda de exportao do Nordeste. 30

    A este propsito ver os excelentes trabalhos de R. M. Marini, em particular Dialtica da Dependncia, Coimbra, 1976, e Sous-dveloppement et rvolution en Amerique Latine, pp. 106 e seguintes. A propsito desta ruptura das funes do proletariado, ver tambm Jamil, O Caminho da Vanguarda, So Paulo, 1969.

  • veremos as relaes pr-capitalistas mudar de forma da escravido ao "barraco" e ao "cambo" sem que se encontre o desenvolvimento "autocentrado" caracterstico das economias capitalistas dominantes, em que a proletarizao do campons, se bem que signficando um empobrecimento relativo, aumentava o mercado capitalista.31

    Aqui o ciclo de reproduo capitalista fecha-se no exterior. Assim, a misria e as caractersticas "arcaicas" da agricultura so determinadas no por um atraso do capitalismo, mas pelo carter particular do capitalismo perifrico.

    O Carter Dominante da Circulao

    Referimo-nos vrias vezes ao "carter dominante" da circulao sem explicar suficientemente o sentido que lhe demos. evidente que a priori absurdo "preferir uma fase ou outra da reproduo do capital, na medida em que todas so igualmente indispensveis pare "fechar" o ciclo.

    Com efeito, e este ser um dos nossos pontos de partida, a questo no de se privilegiar ou no a circulao ou a produo. O modo de produo capitalista no pode perpetuar-se na ausncia de qualquer uma delas. Logo, todo o debate sobre a importncia relativa de uma ou outra constitui um esquecimento do carter necessrio na reproduo do capital da sucesso permanente das fases capital-dinheiro, capital-produtivo e capital-mercadoria.

    No entanto, na medida em que, como vimos, a extenso parcial das esferas de circulao capitalista do centro que constitui o elemento determinante da economia na periferia, foroso constatar que esta circulao determina a produo e torna-se por conseguinte o elemento motor de certa forma do processo de reproduo do capital, analisado desta vez do ponto de vista da economia dependente.

    Isto vem por sua vez deslocar o debate sobre a importncia relativa dada circulao ou s relaes de produo dentro do modo de produo. evidente que, na medida em que se privilegiam as relaes decorrentes da circulao, -se levado rapidamente concluso de que se trata de um modo de produo capitalista. igualmente compreensvel que um maior destaque dado s relaes decorrentes do prprio processo de produo leva a concluir pelo carter feudal dos setores retardatrios.

    Ora, na raiz das incompreenses relativas ao debate sobre a importncia da circulao ou da produo, est o fato de que se deixa de lado o debate sobre o sentido geral das relaes de circulao e de produo e das foras produtivas, como modo de produo. Aqui, o essencial que esta totalidade englobando todos os elementos obedece a uma dinmica capitalista.

    Isto tornado claro, podemos ento passar a discutir a dominncia da circulao ou da produo como elemento motor dentro do modo de produo capitalista determinado. E justamente na medida em que a dominncia da circulao se faz sob a gide da circulao externa, atravs da diviso internacional do trabalho, que teremos uma forma particular do modo de produo capitalista, aqui dependente, ou, no caso de dominncia de produo, de um modo de produo capitalista dominante.

    em funo das flutuaes da bolsa de Londres que o plantador do Nordeste organizar a sua plantao, decidir buscar mais ou menos mo-de-obra, estender ou no as suas culturas, comprar mais ou menos bens.

    Para realizar estas tarefas determinadas no seu conjunto pelas necessidades da reproduo capitalista, far apelo a uma mo-de-obra ligada sua empresa agromercantil por laos de

    31 No seu Desenvolvimento do Capitalismo na Rssia, Lnin mostra bem o que tem de progressista, do ponto de vista

    capitalista, o empobrecimento relativo que resulta da proletarizao do campons: os seus rendimentos reduzidos entraro no circuito capitalista, levando a um aumento absoluto do mercado. Ora, no Brasil, na medida em que a produo no corresponde ao perfil de consumo da fora de trabalho e isto verdadeiro para a produo colonial e tambm em parte para os produtos industriais de hoje , o ciclo rompe-se e vai se fechar somente no exterior.

  • escravatura, de corvia, de assalariamento no-livre (o operrio endivida-se em perpetuidade na propriedade em que obrigado a fazer as suas compras e, na realidade, no livre, se bem que assalariado sistema conhecido sob o nome de "barraco"), noutras palavras: por relaes de produo pr-capitalistas.32

    O carter das relaes de produo duplamente determinado pela dinmica da esfera de circulao do centro; imediatamente, pelo fato de que fazendo-se a realizao do produto na esfera da circulao capitalista do centro, a fora de trabalho no participa como consumidora e castrada de uma das suas funes; mediatamente, porque, para fazer a mo-de-obra trabalhar na misria para a exportao, num pas onde a terra abunda, o capitalismo deve recorrer fora e ao monoplio da terra, medidas complementares destinadas a impedir que o trabalhador se estabelea por conta prpria. Este fenmeno aconteceu freqentemente, apesar de tudo, com a constituio de "quilombos" (zonas onde se instalam escravos fugitivos para produzir para si) ou, fenmeno essencialmente idntico deste ponto de vista, a fuga para terras desocupadas pare praticar a agricultura sobre queimadas agricultura de subsistncia depois do fim da escravido e at hoje, ou ainda o fenmeno de culturas selvagens atuais, as "posses".

    Assim reencontramos fenmenos durante longo tempo considerados como pr-capitalistas, ou seja, como pertencentes a um modo de produo pr-capitalista, mas determinados pela dinmica do capitalismo dominante.

    O debate, enquanto colocado em termos de escolha, sem que se demonstre a possibilidade de o modo de produo capitalista utilizar relaes de produo que foram conhecidas na Europa durante fases pr-capitalistas, no pode desembocar seno num dilogo de surdos.

    Com efeito, que critrio escolher pare determinar o modo de produo existente? Se privilegiarmos a motivao dos empresrios, o lucro, como o fez Roberto Simonsen, chegaremos indiscutivelmente concluso de que se trata de um modo de produo capitalista, mesmo nas zonas mais atrasadas da agricultura do Nordeste; ao contrrio, se considerarmos as relaes de produo, em particular as relaes de explorao, chegaremos concluso de um modo de produo pr-capitalista, feudal, escravista ou "de transio" para o capitalismo mesmo nas plantaes modernas do Sul.

    Na realidade, parece que, na medida em que na periferia domina o capitalismo extrovertido e monopolista (que constitui, no fim de contas, o que C. Furtado chama "empresa agroindustrial"), o modo de produo na periferia deve ser analisado como um modo de produo: modo de produo capitalista dependente.33

    Capitalista porque indiscutvel que, se bem que as relaes de produo sejam prximas do que na Europa era descrito como relaes de produo pr-capitalistas (servido ou escravatura), o conjunto desta dinmica relaes de produo inclusive orientado pelas necessidades da acumulao no centro, atravs da dominncia das esferas de circulao no processo de reproduo do capitalismo dependente.

    Dependente porque da dominncia da dinmica da acumulao no centro decorre esta forma particular do capitalismo que permite, pelo fato da extroverso, que este modo de produo aparea utilizando relaes de produo pr-capitalistas.

    32 Na falta de definio melhor, qualificamos estas relaes de produo como "pr-capitalistas ": como qualificar

    relaes de produo pr-capitalistas determinadas por (e no em contradio com ) um modo de produo capitalista?

    33 A busca da definio de um modo de produo especfico para dar conta da realidade diferente do

    subdesenvolvimento capitalista encontra-se em uma srie de autores: Ben Haddou Boulghssoul refere-se ao "modo de produo capitalista perifrico "; Tomaz Amadeu Vasconi a um "modo de produo capitalista dependente"; Wanderley Guilherme a um "modo de produo subdesenvolvido". Tratando-se, no entanto, de um modo de produo capitalista, a definio da sua especificidade coloca uma srie de problemas, que esto no centro, justamente, da teoria da "dependncia ".

  • Notemos, enfim, que neste debate no se devem colocar os dados relativos circulao (capitalista, extrovertida) e s relaes de produo (pr-capitalistas, lembremos que a escravido foi abolida no Brasil h menos de noventa anos e que deu lugar a outras relaes que podem ser qualificadas de pr-capitalistas) no mesmo plano, do ponto de vista poltico. O fato da existncia de relaes de produo pr-capitalistas constitui, sem dvida, um dado importante para a com-preenso da ttica da luta de classes; por outro lado, a dominncia da circulao capitalista extrovertida essencial para se compreender a evoluo histrica do Brasil, a formao das suas grandes opes econmicas e classes sociais e as prprias relaes de produo, desembocando em concluses essenciais relativamente estratgia da luta de classes, em particular do carter revolucionrio no sentido socialista das massas camponesas.

    Referimo-nos acima a um modo de produo. O problema desemboca na articulao de elementos capitalistas e pr-capitalistas na reproduo do capital.

    J vimos o impasse a que chega a anlise da articulao dos elementos capitalistas e pr-capitalistas atravs do conceito de "transio". Este permite explicar a existncia de elementos pertencentes a modos de produo sobrepostos, um representando o "passado" e outro o "futuro".

    Tal perspectiva falsa: com efeito, o que caracteriza os pases subdesenvolvidos no um atraso da manifestao da transio do modo de produo feudal ou escravista para o modo de produo capitalista, mas justamente a coexistncia durvel, que se estende por vrios sculos, destes elementos. A prpria durao desta transio indica tratar-se, no caso, de um "compromisso" terico.

    Pierre-Philippe Rey toma corretamente como ponto de partida a perenidade desta articulao, mas refere-se articulao de modos de produo diferentes.

    "De qualquer maneira, em 1949 o capitalismo tinha estabelecido havia j uns bons anos a sua dominao nas colnias, mas o desenvolvimento no deixava por isso de ser extremamente lento; constatava-se igualmente que em todas as colnias dos pases capitalistas as estruturas sociais correspondentes aos modos de produo pr-capitalistas no haviam de modo algum desaparecido, e tinham-se mesmo em geral reforado. O que mais, estes modos de produo pr-capitalistas continuavam eles prprios a jogar um papel muito importante e mesmo absolutamente determinante para a sobrevivncia das populaes".34

    As condies concretas dos pases subdesenvolvidos so, pois, caracterizadas pelo "tipo de articulao" que neles se realiza entre o capitalismo dominante e os outros modos de produo.35 Trata-se, pois, de "uma formao social capitalista onde o capitalismo o modo de produo dominante, onde os outros modos de produo se reproduzem 'sobre a base' do modo capitalista, no quadro do prprio processo de reproduo capitalista".36

    Se a concepo de articulao de modos de produo sobre a base de um modo de produo dominante nos parece constituir um enorme progresso relativamente s "justaposies" dualistas ou pluralistas, comporta no entanto ainda uma grande impreciso: o modo de produo capitalista por certo dominante, mas como qualificar os "outros modos de produo"? Kostas Vergopoulos nota bem que "o campons no pode reivindicar uma organizao do conjunto da sociedade na base do modelo 'pr-capitalista'... por conseguinte no pode ser considerado como portador de um outro modo de produo''.37

    Charles Bettelheim aponta com maior preciso o problema: "Pergunto-me, com efeito... se os 'modos de produo' dominados conservam o estatuto de 'modo de produo', pois a sua prpria instncia 'dominante' no pode mais funcionar como tal. Noutros termos, o que pode ser 'pensado'

    34 Pierre-Philippe Rey, Les alliances de classe: sur larticulation des modes de production, Paris, Maspro, 1973, p. 13.

    (18) Charles Bettelheim, "Remargues thoriques", Problmes de planification, n 14, 1970, pp. 184-185. 35

    Ibid., p. 17. 36

    Ibid., p. 158. 37

    Kostas Vergopoulos, "Capitalisme difforme ", in: S. Amin e Kostas Vergopoulos, La question paysanne et le capitalisme, Paris, Anthropos-ldep., 1974, p. 255.

  • de modo abstrato (num isolamento ideal) como um 'modo de produo' deixa de ser tal na combinao em que certos modos de produo so dominados".38

    Excelente "preocupao" esta de Bettelheim. Com efeito, ou nos encontramos ainda na fase de penetrao do "modo de produo dominante", e neste caso estamos simplesmente numa concepo mais elstica da transio; ou, ento, os elementos pr-capitalistas pertencem ao modo de produo capitalista, "sobre a base" do qual so reproduzidos, e no h como fugir ao problema: h que demonstrar como estes elementos pr-capitalistas se integram nas diversas fases de reproduo do capital, sem constituir os entraves que vieram constituir na Europa da revoluo burguesa. E, neste caso, de pouco interesse qualificar estes modos de produo pr-capitalistas como modos de produo, j que constituem um elemento estvel da acumulao do capital no modo de produo capitalista.

    Assim, a nossa preocupao foi ir alm de conceitos extremamente elsticos e difceis de delimitar a "articulao", a "dominncia" do modo de produo capitalista, a reproduo dos modos de produo pr-capitalistas "sobre a base" do modo de produo pr-capitalista e tentar, partindo de uma distino das diferentes fases de reproduo do capital (A M ... p... M' A'), no decorrer das grandes etapas da economia brasileira (etapa colonial, neocolonial e transio para a fase atual), compreender como os elementos pr-capitalistas encontram o seu lugar na reproduo do capital e como a contradio aparente que resulta de coexistncia de elementos capitalistas e pr-capitalistas foi sendo sucessivamente resolvida.

    Tal a perspectiva que nos pareceu mais produtiva. Com efeito, estes desenvolvimentos tericos so recentes e no justificam tomadas de posio categricas. No entanto, pareceu-nos que na falta de ligar a sua anlise do carter dominante da circulao e da articulao dos modos de produo a uma teoria de realizao, Rey no consegue caracterizar uma forma especfica do modo de produo capitalista e, ao manter a concepo de "luta de modos de produo", no consegue desligar-se efetivamente de uma concepo "lata" da transio.

    Parece-nos que se trata de um modo de produo que se articula com relaes de produo diferentes das do capitalismo dominante, enquanto impe as suas prprias relaes de circulao, para constituir um dado especfico, um modo de produo capitalista dependente. Com efeito, no h luta de modos de produo diferentes pela hegemonia sobre o processo de produo global: qual seria, por exemplo, a perspectiva das classes ditas feudais, que produzem acar, caf e outros produtos de exportao, seno a de se ligar mais firmemente ao capitalismo internacional?

    A Reproduo das Relaes de Produo: Deslocamento das Bases Tcnicas da Dependncia

    Se Vergopoulos refuta com razo a concepo de Rey de "luta" entre modos de produo dentro de uma formao social com "dominncia" capitalista, a descrio que d das relaes entre os diversos elementos continua sendo uma relao de exterioridade: "O capital no visa necessariamente a extenso do modo de produo capitalista, mas sobretudo a interceptao da renda e do lucro agrcolas em proveito do modo de produo capitalista. O combate que Rey constata no visa tanto a mudana das estruturas produtivas, segundo o modo de produo capitalista, como a submisso das estruturas existentes ao "bombeamento" do modo de produo capitalista... no h verdadeiro combate entre dois modos de produo, mas sim luta entre elementos divergentes para a recuperao do produto e do trabalho agrcola".39

    38 Charles Bettelheim, "Remargues thoriques", Problmes de planification, n 14, 1970, pp. 184-185.

    39 Kostas Vergopoulos, op. cit., p 256.

  • O termo "bombeamento" (pompage) pode induzir em erro: no se trata de uma estrutura externa que "bombeia" as economias subdesenvolvidas ou as "suga" (perspectiva dualista), mas de um processo de reproduo do capital no quadro do capitalismo dependente.40

    Assim, pode-se perfeitamente dar conta das relaes de produo longamente qualificadas como pr-capitalistas, no quadro do capitalismo dependente, cujas opes fundamentais so determinadas pela circulao do centro. Com efeito, do ponto de vista do capitalismo dominante, no se trata apenas de "recuperar o produto", mas sim de assegurar a sua reproduo crescente, e por conseguinte a reproduo das prprias relaes de produo.

    Sobre o pano de fundo constitudo pelo desenvolvimento das foras produtivas, tanto nas economias capitalistas dominantes como nas economias capitalistas dependentes assiste-se, pois, a um gradual deslocamento das formas desta relao enquanto o fundo, a dependncia econmica de umas em relao s outras, permanece.

    Este deslocamento das formas de dependncia encontra-se bem caracterizado por A. Emmanuel pare o caso da ndia, relativamente produo local de tecidos de algodo, considerada um golpe mortal dado dominao inglesa. Na realidade, esta passava simplesmente para outro nvel: do intercmbio de algodo indiano contra tecidos de algodo ingleses, passava-se a uma fase em que a ndia produz os seus prprios tecidos, enquanto a Inglaterra produz e lhe fornece casimira fina; mais tarde, a ndia viria a produzir tambm estes, mas a Inglaterra j lhe fornecia mquinas de fiao e tecelagem, e assim por diante.41

    Sem entrar no pormenor da simplificao evidente de certos condicionamentos do desenvolvimento indiano, interessa-nos aqui fixar o enfoque geral, que consiste em buscar sob a transformao tcnica das formas externas de dependncia a permanncia do elemento essencial, da prpria dependncia e da extroverso econmica que se segue -impedindo o desenvolvimento autocentrado que nos parece rico para a compreenso da dinmica do desenvolvimento brasileiro.

    Relao das Determinaes Internas e Externas

    Seria errneo interpretar a dominncia das determinaes externas sobre o processo de produo capitalista dependente no Brasil como uma determinao unilateral, levando simplificao corrente que faz do Brasil um "produto" ou um "reflexo" do capitalismo europeu e, mais tarde, do imperialismo americano.

    A compreenso deve ser buscada na evoluo histrica do Brasil e das contradies entre as exigncias presentes das economias dominantes e na realidade social herdada das exigncias precedentes. Assim, as firmas multinacionais, hoje no poder, poderiam ter interesse em dispor de um mercado interno mais vasto, mas herdam a misria que o capitalismo contribuiu para criar no decorrer dos sculos passados ao financiar o desenvolvimento industrial que hoje torna a existncia destas multinacionais possvel.

    Constituda em funo de necessidades sucessivas do desenvolvimento do capitalismo nas economias dominantes, a economia brasileira revela uma sobreposio de setores econmicos parcialmente incoerentes; mas a passagem de uma fase a outra exige que seja assumido todo este passado, como dado estrutural objetivo.

    Da mesma forma, as atividades econmicas sucessivas deram lugar a classes dominantes brasileiras que, por deverem a sua posio orientao do Brasil em funo das necessidades do

    40 Notemos que a explorao estrangeira, o "bombeamento", o aspecto sempre mais acentuado nos estudos sobre as

    relaes entre o mundo pobre e o mundo rico. Deixaremos aqui de lado este aspecto, para nos concentrarmos sobre as relaes de produo e a estrutura econmica que imposta para tornar esta explorao possvel, e cujos efeitos negativos so, no nosso parecer, incomparavelmente mais graves do que a prpria explorao 41

    Arghiri Emmanuel, "Expos sur l'change ingal", Problmes de Planification, n 2, Paris, Sorbonne, 1962.

  • capitalismo do centro, no deixam por isto de ver os seus interesses ameaados em cada nova fase e de utilizar todo o seu poder para guardar a sua posio, acontecendo que apenas a prpria extroverso econmica no era posta em questo, como base da existncia destas classes.

    No limite do sistema dominncia-dependncia existe, pois, uma relao entre foras diferentes e, se a determinao externa continua dominante, passa necessariamente pela estrutura econmica e social do Brasil, que reage sobre ela com todo o seu peso.

    Para compreender o Brasil , pois, necessrio pr a nu as determinaes externas e internas do processo de transformao da sua funo no sistema capitalista, no decorrer do seu desenvolvimento histrico.

  • Captulo III

    Fase Portuguesa:

    A DEPENDNCIA COLONIAL

    O Brasil ser uma colnia portuguesa desde a descoberta em 1500 at 1822, data da proclamao da Independncia. Estes trs sculos e pouco de colonizao lanam as bases do Brasil atual.

    Especificidades da Economia Brasileira

    O Brasil constitui uma realidade profundamente especifica: trata-se de uma economia criada praticamente em funo do capitalismo em expanso. Ao contrrio de certos pases asiticos ou africanos, onde a Europa utilizou para os seus fins as estruturas scio-econmicas existentes, o Brasil no seu conjunto criado como complemento econmico. Debruar-se sobre a economia brasileira signfica, pois, antes de tudo, debruar-se sobre as funes sucessivas que ele desempenhou na formao e no desenvolvimento do capitalismo das metrpoles.

    Nota-se a especificidade do Brasil relativamente ao mundo colonial em geral: