historia do ensino de ciencias

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    Revista HISTEDBR On-line Artigo

    Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.39, p. 225-249, set.2010 - ISSN: 1676-2584 225

    O ENSINO DE CINCIAS NO BRASIL: HISTRIA, FORMAO DEPROFESSORES E DESAFIOS ATUAIS

    Fabrcio do Nascimento1

    Hylio Lagan Fernandes2

    Viviane Melo de Mendona3Universidade Federal de So Carlos - UFSCar

    campus de Sorocaba

    RESUMONeste artigo so discutidos aspectos histricos, epistemolgicos e didticos que orientaramo ensino de cincias no contexto brasileiro da dcada de 1950 at os dias atuais. Soanalisadas as relaes existentes entre a cincia, a tecnologia e a sociedade, bem como suasinfluncias sobre o ensino e a formao de professores de cincias. Os referenciais tericosutilizados nas anlises fundamentam-se na perspectiva scio-histrica da educao, no

    entendimento da cincia como processo em permanente construo, no paradigma cincia-tecnologia-sociedade e na ideia de educao cientfica para todos; Entende-se o ensino decincias e a formao docente como atividades complexas e estratgicas para odesenvolvimento do pas. Preconiza-se, portanto, a urgente necessidade de oferecer aosprofessores uma slida formao cientfica e pedaggica, bem como melhorias nascondies objetivas de trabalho que encontram no exerccio da profisso. Considerando oatual contexto poltico, econmico e educacional brasileiro, so apontadas algumaspossibilidades de mudanas no ensino de cincias a partir da implementao de umavertente reflexiva, crtica e cidad na formao de professores.Palavras-chave: histria do ensino de cincias; formao de professores de cincias; relaocincia-tecnologia-sociedade; paradigma CTS.

    THE SCIENCE TEACHING IN BRAZIL: HISTORY, TEACHERS FORMATIONAND CURRENT CHALLENGES

    ABSTRACTIn this article we discuss the main historical, epistemological and didactic aspects that havebeen underlain and guided the science teaching in the Brazilian context since 1950s decadeto current days. We analyze the relationships among Science, technology and society, aswell as how they influence the teaching and the formation of science teachers. The theoristreferential utilized in the discussion and analysis underlie in the socio-historical of

    education perspective, in the understanding of science as a permanent construct process, inthe science-technology-society paradigm and in the idea of scientific education to all thepeoples. It is understood that teaching science and teacher formation are complex andstrategic activities for the country development. It is preconized, so, the urgent necessity ofoffering to teachers a strong scientific and pedagogical formation, as well as improvementin the objective work conditions that are found in the practicing professional. Consideringthe current political, economical and educational brazilian context, we point some changepossibilities in science teaching from the implementation of a citizen acting in teachersformation.Keywords: science teaching history; science teachers formation; science-technology-societyrelationship; CTS paradigm.

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    A PRODUO CIENTFICA E TECNOLGICA BRASILEIRA E SUASRELAES COM A SOCIEDADE

    Ao longo da histria, a produo cientfica e tecnolgica brasileira foi regida

    ideologicamente por uma forma acadmica e internacional de fazer cincia e sofreu com afalta de estabilidade poltica e o autoritarismo.A partir dos anos 1950, as polticas cientficas e tecnolgicas passaram por um

    intenso processo de institucionalizao, tendo em vista o crescimento e o progresso do pas.Um aspecto marcante desse perodo foi a maneira mecanicista de analisar as interfernciasda cincia e da tecnologia sobre a sociedade, que deixava de considerar os interesses ehbitos de diferentes atores sociais em suas mltiplas relaes, constituindo uma debilidadeimportante do pensamento dessa poca (VACCAREZZA, 1999).

    No final da dcada de 1950 e durante as dcadas de 1960 e 1970, a produocientfica e tecnolgica brasileira esteve quase que exclusivamente sob o domnio doEstado, incluindo aquela gerada nas universidades, predominando em muitos setores uma

    separao formal entre pesquisa cientfica e produo tecnolgica.Apoiando-se em critrios de qualidade e excelncia, a cincia brasileira passou a

    contar com legitimidade e novas formas de organizao. A tecnologia manteve-se sustentadaem rgos setoriais e foi legitimada por um modelo de planificao estatal destinado resoluo de problemas prticos e transferncia de tecnologias aos setores produtivo e dedefesa. Nesse perodo, a atividade cientfica focalizava principalmente os interesses dacomunidade internacional e estava alheia realidade brasileira, caracterizando-a como umacincia endogerada, mas exodirigida (VARSAVSKY, 1979).

    Mediante a aplicao de um mtodo cientfico baseado na razo instrumental, naobservao cuidadosa de fenmenos e na neutralidade do pesquisador esperava-se que acincia produzisse essencialmente conhecimentos objetivos acerca das realidades natural esocial. Segundo esta clssica concepo, a cincia somente poderia contribuir para o bem-estar dos sujeitos se deixasse de lado as questes sociais para buscar exclusivamente asverdades cientficas. As melhorias sociais somente seriam alcanadas se fosse respeitada aautonomia da cincia, ou seja, se deixasse os interesses sociais para atender exclusivamentea critrios internos de eficcia tcnica. Cincia e tecnologia, portanto, eram vistas comoformas autnomas da cultura e como possibilidades de compreenso e conquista da natureza(ECHEVERRA, 1995; GONZLEZ et al., 1996).

    Nessa poca de intenso otimismo desenvolvimentista, preconizava-se que a gestoda cincia e da tecnologia deveria ficar a cargo dos prprios cientistas e especialistas. Noentanto, estas atividades no se desenvolveram de acordo com um promissor modelo

    ocidental linear e unidirecional, principalmente devido a uma sucesso de problemasambientais e sociais derivados do desenvolvimento cientfico e tecnolgico, tais comoacmulos de resduos txicos, acidentes nucleares, envenenamentos farmacuticos,derramamentos de petrleo, entre outros. A partir de ento, houve a necessidade de umareviso das polticas cientficas e tecnolgicas, considerando suas relaes com a sociedade(MEDINA e SANMARTN, 1992; GONZLEZ et al., 1996).

    Os anos 1970 foram marcados por privilegiar a cincia pura, praticamente nohavendo meno s tecnologias produzidas com base em conhecimentos cientficos. Osilncio sobre a imposio de padres tecnolgicos estrangeiros ao Brasil nesse perododeveu-se defesa de certos programas de transferncia tecnolgica (MACEDO, 2004).

    Durante os anos 1980 e 1990, o Estado passou a diminuir suas funes reguladoras e

    produtivas e abriu a economia ao comrcio e competitividade internacionais. Nesseperodo, a globalizao da economia e a homogeneizao dos critrios de competitividade

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    passaram a influenciar fortemente a produo cientfica e tecnolgica brasileira, segundoprincpios neoliberais. Devido influncia crescente da racionalidade utilitria e da correntede inovao imposta pelo capital internacional, a escolha de temas e mtodos de pesquisa eas oportunidades para sua realizao passaram a ser definidos principalmente por grupos

    que detinham interesses variados, afetando no apenas a pesquisa aplicada, masfundamentalmente a pesquisa bsica. A atividade cientfica realizada no mbito dasuniversidades reencontrou seu discurso legitimador principalmente devido importnciacrescente da pesquisa bsica para o desenvolvimento de novas tecnologias e aos avanosnos processos de inovao industrial.

    A partir dos anos 1990 tornou-se explcita a necessidade analisar a articulaoexistente entre cincia, tecnologia e sociedade, o que possibilitou o surgimento de umpanorama muito mais complexo e de incertezas a respeito da produo cientfica etecnolgica, mas deixando evidente a falta de relao dessa produo com as necessidadesda maioria da populao brasileira.

    Atualmente entende-se que a cincia se materializa em tecnologia e que esta ltima

    traz consigo a ideia de desenvolvimento do pas. No entanto, o conceito de desenvolvimentoque acompanhou e vem acompanhando o progresso da cincia e da tecnologia no Brasil temsido pautado pela ideia de crescimento econmico associado a uma maior produtividade eao aumento do consumo pelos cidados (MACEDO, 2004).

    A cincia e a tecnologia brasileiras atuais so atividades extremamente eficazes;entretanto, necessrio questionar se seus objetivos so socialmente vlidos, pois osmaiores esforos em pesquisa vm se concentrando em campos demasiadamentedesvinculados dos problemas sociais cotidianos (DYSON, 1997). Muitos campos cientficose tecnolgicos, alm de no ajudarem a amenizar ou resolver parte significativa dosproblemas sociais, esto criando mais e novos problemas, principalmente pelo fato dascomisses nas quais so tomadas as decises a respeito das polticas cientficas etecnolgicas estarem geralmente constitudas por cientistas que agem essencialmente comohomens de negcios (MEDINA e SANMARTN, 1992). Ao mesmo tempo, muitos recursosfinanceiros tm sido mobilizados de forma retrica para a divulgao cientfica com afinalidade de reforar na sociedade uma imagem essencialista e benemrita da cincia.

    Considerando os problemas sociais e ambientais causados pelo progresso cientfico etecnolgico, torna-se necessrio abrir a cincia ao conhecimento pblico, desmistificar suatradicional imagem essencialista e filantrpica, e questionar sua aplicao como atividadeinevitvel e benfeitora em ltima instncia (VEIGA, 2002). Um novo contrato social faz-senecessrio, tendo em vista a construo de uma cincia socialmente comprometida com asreais necessidades da maioria da populao brasileira e no limitada a acumular

    conhecimentos e avanar sem importar em que direo. Nessa perspectiva, a cincia e atecnologia deixariam de ser vistas como atividades autnomas que seguem apenas umalgica interna de desenvolvimento e passariam a ser entendidas como processos e produtosnos quais aspectos no-tcnicos, como valores, interesses pessoais e profissionais, presseseconmicas, entre outros, desempenham um papel decisivo em sua produo e utilizao.

    Torna-se necessrio refletir e propor aes sobre as consequncias e problemticasde natureza social e ambiental geradas pelo desenvolvimento cientfico e tecnolgico,principalmente no que se refere equidade na distribuio dos custos ambientaisprovocados pelas inovaes tecnolgicas; ao uso inapropriado de determinadas descobertascientficas; s implicaes ticas e aceitao dos riscos de determinadas tecnologias; smudanas provocadas no meio ambiente pelo exerccio do poder e pela fora do capital;

    entre outras (MEDINA e SANMARTN, 1992; LPEZ CEREZO, 1999). nesse mbitoque reside a importncia do oferecimento de uma educao cientfica de qualidade para

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    todos os cidados brasileiros.

    AS INFLUNCIAS DO DESENVOLVIMENTO CIENTFICO E TECNOLGICO EDO IDERIO EDUCACIONAL SOBRE O ENSINO DE CINCIAS

    O desenvolvimento cientfico e tecnolgico mundial e brasileiro exerceu e vemexercendo forte influncia sobre o ensino de cincias.

    A partir da Segunda Guerra Mundial, a cincia e a tecnologia transformaram-se numenorme empreendimento socioeconmico, trazendo uma maior preocupao com o estudodas cincias nos diversos nveis de ensino (KRASILCHIK, 1987; CANAVARRO, 1999).

    A partir dos anos 1950, as propostas educativas do ensino de cincias procurarampossibilitar aos estudantes o acesso s verdades cientficas e o desenvolvimento de umamaneira cientfica de pensar e agir (FROTA-PESSOA et al, 1987).

    At o incio dos anos 1960 havia no Brasil um programa oficial para o ensino decincias, estabelecido pelo Ministrio da Educao e Cultura (MEC). Em 1961, a Lei de

    Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDBEN n 4024/61) descentralizou as decisescurriculares que estavam sob a responsabilidade do MEC. Nesse perodo, a maissignificativa busca por melhorias no ensino de cincias em mbito nacional foi a iniciativade um grupo de docentes da Universidade de So Paulo, sediados no Instituto Brasileiro deEducao, Cincia e Cultura (IBECC), que se dedicou elaborao de materiais didticos eexperimentais para professores e cidados interessados em assuntos cientficos.

    Um aspecto marcante da dcada de 1960 foi a chegada ao Brasil das teoriascognitivistas, que consideravam o conhecimento como sendo um produto da interao dohomem com seu mundo e enfatizavam os processos mentais dos estudantes durante aaprendizagem. No entanto, somente no incio dos anos 1980 que essas teorias passaram ainfluenciar significativamente o ensino de cincias. As teorias de Bruner e o construtivismointeracionista de Piaget valorizavam a aprendizagem pela descoberta; o desenvolvimento dehabilidades cognitivas; sugeriam que os estudantes deveriam lidar diretamente commateriais e realizar experincias para aprender de modo significativo e que o professor nodeveria ser um transmissor de informaes, mas orientador do ensino e da aprendizagem.

    O golpe militar de 1964 possibilitou o surgimento de um modelo econmico quegerou uma maior demanda social pela educao. A crise do sistema educacional brasileirofoi agravada pelo fato da expanso da rede de ensino no ter sido acompanhada deinvestimentos em educao na mesma proporo por parte do governo. Essa crise serviu de

    justificativa para a assinatura de diversos convnios entre determinados rgosgovernamentais brasileiros e a United States Agency for International Development

    (USAID), alguns destes permanecendo vigentes at 1971. A USAID preconizava que ogoverno brasileiro atuasse sobre escolas, contedos e mtodos de ensino, no sentido deoferecer aos estudantes uma formao cientfica mais eficaz, tendo em vista odesenvolvimento do pas segundo os interesses do governo estadunidense.

    A partir de 1964, as propostas educativas para o ensino de cincias sofreram grandeinfluncia de projetos de renovao curricular desenvolvidos nos Estados Unidos e naInglaterra. Esses projetos foram liderados por renomados cientistas que estiverampreocupados com a formao dos jovens que ingressavam nas universidades, ou seja, dosfuturos cientistas. Naquela poca considerava-se urgente oferecer-lhes um ensino decincias mais atualizado e mais eficiente (KRASILCHIK, 1998). O IBECC adaptou algunsdesses projetos para as escolas brasileiras, entretanto, o pequeno impacto de suas propostas

    educativas deveu-se principalmente resistncia dos professores, que no receberamtreinamento adequado, e ao descuido com algumas tradues. Um dos manuais, por

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    exemplo, sugeria que os estudantes levassem um pouco de neve para a sala de aula para arealizao de determinadas atividades experimentais (CHASSOT, 2004).

    A partir da crescente industrializao brasileira e de um relativo desenvolvimentocientfico e tecnolgico, a partir de meados dos anos 1960 importantes temas relacionados

    s descobertas cientficas passaram a fazer parte do ensino de cincias. Esse ensino passou ater como objetivos essenciais levar os estudantes aquisio de conhecimentos cientficosatualizados e representativos do desenvolvimento cientfico e tecnolgico e vivenciar osprocessos de investigao cientfica. As equipes tcnico-pedaggicas, ligadas s secretariasde educao e as instituies responsveis pela formao de docentes passaram a atualizaros contedos para o ensino de cincias, a elaborar subsdios didticos e a oferecer cursos decapacitao aos professores.

    Nesse perodo, as mudanas curriculares preconizavam a substituio de mtodosexpositivos de ensino por mtodos ativos e enfatizavam a importncia da utilizao dolaboratrio no oferecimento de uma formao cientfica de qualidade aos estudantes. Asatividades educativas tinham por finalidade motiv-los e auxili-los na compreenso de

    fatos e conceitos cientficos, facilitando-lhes a apropriao dos produtos da cincia.Fundamentadas no pressuposto do aprender-fazendo, tais atividades deveriam serdesenvolvidas segundo uma racionalidade derivada da atividade cientfica e tinham afinalidade de contribuir com a formao de futuros cientistas (KRASILCHIK, 1987).

    Em 1965, o MEC criou Centros de Cincias nos Estados da Bahia, Minas Gerais,Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e So Paulo, tendo em vista divulgar acincia na sociedade e contribuir com a melhoria do ensino de cincias que vinha sendooferecido nas escolas.

    Criada em 1967, a Fundao Brasileira para o Desenvolvimento do Ensino deCincias (FUNBEC), sediada na Universidade de So Paulo, produzia guias didticos e delaboratrio, kits para a realizao de experimentos com o uso de materiais de baixo custo eoferecia atividades de treinamento aos professores. Desenvolvidas paralelamente spropostas oficiais do MEC, as atividades educativas promovidas por esta instituioprocuravam levar os estudantes a descobrirem como funcionava a cincia e adesenvolverem o pensamento cientfico.

    Apesar dos esforos para que ocorressem mudanas, durante a dcada de 1960 oensino de cincias continuou focalizando essencialmente os produtos da atividade cientfica,possibilitando aos estudantes a aquisio de uma viso neutra e objetiva da cincia.

    Na dcada de 1970, o projeto nacional do governo militar preconizava modernizar edesenvolver o pas num curto perodo de tempo. O ensino de cincias era considerado umimportante componente na preparao de trabalhadores qualificados, conforme estabelecido

    na Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDBEN n 5692/71). No entanto, aomesmo tempo em que a legislao valorizava as disciplinas cientficas, na prtica elas forambastante prejudicadas pela criao de disciplinas que pretendiam possibilitar aos estudanteso ingresso no mundo do trabalho. Prejudicou-se a formao bsica sem que houvessebenefcio para a profissionalizao (KRASILCHIK, 1998).

    Nesse perodo, as propostas de melhoria do ensino de cincias estiveramfundamentadas nas teorias comportamentalistas de ensino-aprendizagem, que tiveramgrande impacto na educao brasileira. O conhecimento cientfico assumia um carteruniversalista, pois, em seu processo de hegemonizar-se como a nica referncia para aexplicao do real, a cincia procurava levar os sujeitos a substituir crenas religiosas,determinadas prticas cotidianas e as ideias de senso comum por uma nova crena, a crena

    na objetividade (MACEDO, 2004).Ao longo dos anos 1970, o ensino de cincias esteve fortemente influenciado por

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    uma concepo empirista de cincia, segundo a qual as teorias so originadas a partir daexperimentao, de observaes seguras e da objetividade e neutralidade dos cientistas.Preconizava-se que os estudantes vivenciassem o mtodo cientfico. O estabelecimento devnculos entre os procedimentos de investigao cientfica e os processos de aprendizagem

    dos conhecimentos cientficos pressupunha a realizao de atividades didticas queoportunizassem o estabelecimento de problemas de pesquisa, a elaborao de hipteses, oplanejamento e a realizao de experimentos, a anlise de variveis e a aplicao dosresultados obtidos a situaes prticas.

    As atividades didticas pressupunham a resoluo de problemas atravs de etapasbem demarcadas, que deveriam possibilitar aos estudantes pensar e agir cientificamente.Suas finalidades educativas consistiam na valorizao de sua participao ativa, nodesenvolvimento de uma postura de investigao, na observao criteriosa, na descrio defenmenos cientficos e, consequentemente, na aquisio da capacidade de explicaocientfica do mundo. O direcionamento conferido ao ensino de cincias previa a iniciaocientfica em um primeiro momento, a compreenso da cincia como extenso e a educao

    cientfica como um objetivo terminal (HENNIG, 1994).Na perspectiva da redescoberta cientfica, as aulas prticas eram entendidas como o

    principal meio para garantir a transformao do ensino de cincias, visto que estaspossibilitariam aos estudantes a realizao de pesquisas e a compreenso do mundocientfico-tecnolgico em que viviam. Apesar de serem desenvolvidos a partir de umaseqncia de passos rgidos e mecnicos, os experimentos deveriam garantir aos estudanteso desenvolvimento de habilidades como a capacidade de tomar decises, de resolverproblemas e de pensar lgica, racional e cientificamente (FROTA PESSOA et al., 1987).Considerava-se que, vivenciando e memorizando os diferentes passos de uma pesquisacientfica, os estudantes seriam capazes de realizar suas prprias investigaes.

    Ainda que o mtodo cientfico fosse um pressuposto educativo amplamente aceitono cenrio educacional, foram grandes as dificuldades de formao e treinamento deprofessores, principalmente no sentido de lev-los a implementar determinadas propostaseducativas, mesmo considerando a elaborao de subsdios importantes como a didtica decincias atravs de mdulos instrucionais, fundamentada nas teorias comportamentalistas deensino-aprendizagem (JOULLI e MAFRA, 1980).

    O final dos anos 1970 foi marcado por uma severa crise econmica e por diversosmovimentos populares que passaram a exigir a redemocratizao do pas. Nesse perodo,houve grande preocupao em relao ao ensino e aprendizagem dos contedoscientficos, bem como ao desenvolvimento de habilidades cientficas pelos estudantes, vistoque o pas necessitava enfrentar a guerra tecnolgica travada pelas grandes potncias

    econmicas. Preconizava-se uma urgente reformulao do sistema educacional brasileiro, demodo a garantir que as escolas oferecessem conhecimentos bsicos aos cidados ecolaborassem com a formao de uma elite intelectual que pudesse enfrentar - com maiorpossibilidade de xito - os desafios impostos pelo desenvolvimento. Nesse perodo, aspropostas de melhoria do ensino de cincias apareciam com ttulos impactantes como, porexemplo, Educao em Cincia para a Cidadania e Tecnologia e Sociedade, tendo emvista contribuir com o desenvolvimento do pas (KRASILCHIK, 1998). Pesquisasrealizadas posteriormente demonstraram que no foram alcanados os resultados esperados,principalmente por no ter havido uma articulao entre essas propostas educativas e osprocessos de formao de professores.

    Apesar da preocupao em possibilitar aos estudantes a compreenso dos processos

    de produo do conhecimento cientfico, o ensino de cincias continuou sendo desenvolvidode modo informativo, principalmente devido s precrias condies objetivas de trabalho

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    que os professores encontravam nas escolas e s carncias de formao especfica queapresentavam.

    No incio dos anos 1980, a educao passou a ser entendida como uma prtica socialem ntima conexo com os sistemas poltico-econmicos. Desse modo, numa perspectiva

    crtica, o ensino de cincias poderia contribuir para a manuteno da situao vigente nopas ou para a transformao da sociedade brasileira.Em meados dos anos 1980, a redemocratizao do pas, a busca pela paz mundial, as

    lutas pela defesa do meio ambiente e pelos direitos humanos, entre outros aspectos,passaram a exigir a formao de cidados preparados para viver em uma sociedade queexigia cada vez mais igualdade e equidade (KRASILCHIK, 1996). Nesse perodo, aspropostas para o ensino de cincias passaram a questionar os valores inerentes aoracionalismo subjacente atividade cientfica e a reconhecer que esta no era uma atividadeessencialmente objetiva e socialmente neutra. Passou-se a reconhecer que as explicaescientficas apresentavam-se perpassadas por ideologias, valores e crenas, pois eramconstrudas a partir do pensamento e da ao dos cientistas durante os processos de

    investigao. A atividade cientfica seria, portanto, determinada ideologicamente, pois odinamismo anterior ao prprio ato de compreenso do real mostrava-se subjacente aoproduto da atividade cognoscente (CHAU, 1997). Desse modo, o ensino de cinciastambm deveria possibilitar aos estudantes uma interpretao crtica do mundo em queviviam a partir do desenvolvimento de uma maneira cientfica de pensar e de agir sobredistintas situaes e realidades.

    Ao longo da dcada de 1980, as preocupaes com o desinteresse dos estudantespelas cincias, a baixa procura por profisses de base cientfica e a emergncia de questescientficas e tecnolgicas de importncia social, possibilitaram mudanas curriculares noensino de cincias, tendo em vista colaborar com a construo de uma sociedadecientificamente alfabetizada (KRASILCHIK, 1987; VEIGA, 2002). Fundamentadas pelasteorias cognitivistas, as pesquisas sobre o ensino de cincias passaram a evidenciar asaprendizagens individuais que ocorriam em situaes educativas, como tambm asaprendizagens que ocorriam em contextos especficos e que poderiam permitir aosestudantes compreender e agir sobre as distintas realidades em que viviam. No entanto,apesar de ter sido acentuada a necessidade de possibilitar-lhes o desenvolvimento dehabilidades como autonomia, participao, responsabilidade individual e social, foramenaltecidas principalmente as dimenses comportamentais e cognitivas relacionadas aprendizagem das cincias, em detrimento da relevncia social desse ensino(AIKENHEAD, 1994). Os resultados de muitas dessas pesquisas passaram a orientar aelaborao de novas propostas curriculares e a determinar novos rumos para a investigao

    sobre o ensino e a aprendizagem das cincias. As propostas educativas fundamentadas pelasteorias cognitivistas reiteravam a necessidade dos estudantes no serem receptores passivosde informaes ou meros aprendizes, pois deveriam saber usar, questionar, confrontar ereconstruir os conhecimentos cientficos.

    Ainda naquela dcada, parte significativa das propostas educativas fundamentava-seno pressuposto da didtica da resoluo de problemas, tendo em vista possibilitar aosestudantes a vivncia de processos de investigao cientfica e a formao de habilidadescognitivas e sociais. A problematizao do conhecimento cientfico sistematizado e desituaes cientficas cotidianas, a realizao de atividades desafiadoras para o pensamento, autilizao de jogos educativos e o uso de computadores eram vistas como possibilidadeseducativas que poderiam lev-los a se apropriar de conhecimentos relevantes, a

    compreender o mundo cientfico e tecnolgico e a desenvolver habilidades necessrias interpretao e possvel modificao das realidades em que viviam, principalmente no

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    sentido de melhoria da prpria qualidade de vida (KRASILCHIK, 1987).A partir de meados dos anos 1980 e durante a dcada de 1990, o ensino de cincias

    passou a contestar as metodologias ativas e a incorporar o discurso da formao do cidadocrtico, consciente e participativo. As propostas educativas enfatizavam a necessidade de

    levar os estudantes a desenvolverem o pensamento reflexivo e crtico; a questionarem asrelaes existentes entre a cincia, a tecnologia, a sociedade e o meio ambiente e a seapropriarem de conhecimentos relevantes cientfica, social e culturalmente (DELIZOICOVe ANGOTTI, 1990).

    Um aspecto bastante significativo desse perodo foi a incorporao das ideias deVygostsky na orientao dos processos educativos, especialmente em relao construodo pensamento pelos sujeitos a partir de suas interaes com o contexto sociocultural. Dessemodo, no ensino de cincias seria importante possibilitar no apenas o contato dosestudantes com os materiais de ensino-aprendizagem, mas tambm com os esquemasconceituais apresentados pelo professor (KRASILCHIK, 1998). Os professores de cinciasdeveriam desenvolver suas aes educativas considerando a valorizao do trabalho

    coletivo e a mediao dos sistemas simblicos na relao entre o sujeito cognoscente e arealidade a ser conhecida, bem como planejar atividades didticas que permitissem aosestudantes alcanar nveis mais elevados de conhecimentos e de desenvolvimento dehabilidades cognitivas e sociais, oferecendo-lhes tarefas cada vez mais complexas e apoiodidtico para que as conseguissem realizar, inclusive com o auxlio dos colegas.

    De modo a superar as estratgias de ensino baseadas essencialmente na apropriaodos produtos da cincia, as atividades educativas preconizavam possibilitar aos estudantes aconstruo de conhecimentos cientficos segundo os pressupostos educativos da abordagemconstrutivista do ensino e da aprendizagem. As atividades didticas pressupunham que, como auxlio do professor e a partir das hipteses e conhecimentos anteriores, os estudantespoderiam construir conhecimentos sobre os fenmenos naturais e relacion-los com suasprprias maneiras de interpretar o mundo (CARVALHO e GIL PREZ, 1992).

    Ao longo dos anos 90, tornaram-se mais evidentes as relaes existentes entre acincia, a tecnologia e os fatores socioeconmicos. Desse modo, o ensino de cinciasdeveria criar condies para que os estudantes desenvolvessem uma postura crtica emrelao aos conhecimentos cientficos e tecnolgicos, relacionando-os aos comportamentosdo homem diante da natureza (MACEDO, 2004).

    Apesar de as propostas de melhoria do ensino de cincias estarem fundamentadasnuma viso de cincia contextualizada scio, poltica e economicamente, da segunda metadeda dcada de 80 at o final dos anos 90 esse ensino continuou sendo desenvolvido de modoinformativo e descontextualizado, favorecendo aos estudantes a aquisio de uma viso

    objetiva e neutra da cincia.A partir do final dos anos 90, a educao cientfica passou a ser considerada umaatividade estratgica para o desenvolvimento do pas, sendo esta ideia compartilhada, aomenos verbalmente, pela classe poltica, por cientistas e educadores, independentemente desuas vises ideolgicas. Esta ideia apontava a existncia de complexas interaes entre acincia e a sociedade; portanto, o simples oferecimento de uma educao cientfica escolarno seria suficiente para a formao de cidados capazes de resistir s informaes pseudo-cientficas que invadiam a sociedade da poca. Sendo o capital humano considerado umfator essencial para o desenvolvimento do pas, a educao cientfica passou a ser vistacomo uma prioridade para todos, surgindo da a necessidade de oferecimento de umaalfabetizao cientfica aos estudantes como forma de colaborao para uma atuao crtica,

    consciente e cidad (LPEZ CEREZO, 1999; MARCO, 1997; FOUREZ, 1997).Na dcada de 2000, as discusses a respeito da educao cientfica passaram a

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    considerar com maior nfase a necessidade de haver responsabilidade social e ambiental porparte de todos os cidados. No ensino de cincias, portanto, as questes relacionadas formao cidad deveriam ser centrais, possibilitando aos estudantes reconsiderar suasvises de mundo; questionar sua confiana nas instituies e no poder exercido por pessoas

    ou grupos; avaliar seu modo de vida pessoal e coletivo e analisar previamente aconsequncia de suas decises e aes no mbito da coletividade.Atualmente, o movimento educao cientfico-tecnolgica para todos (FOUREZ,

    1997) e a ideia de alfabetizao cientfica para todos (MARCO, 1997) pressupem aformao de cidados capazes de fazer opes de modo consciente, bem como a existnciade amplas relaes entre a cincia, a tecnologia, a sociedade e o meio ambiente (JIMNEZe OTERO, 1990; GIL PREZ, 1991; MEMBIELA, 1995; FOUREZ, 1997; YUS, 1997;HODSON e REID, 1998; GIL PREZ, 1999; VEIGA, 2002).

    So muitas as razes apontadas por esses autores para a reviso do papel daeducao cientfica no contexto atual, sendo a principal aquela que defende a incorporaonos currculos escolares de temas relacionados s transformaes sociais e ambientais

    geradas pelo desenvolvimento cientfico e tecnolgico, pois consideram que isso poderiarevolucionar profunda e positivamente o ensino de cincias, contribuindo para incrementarsua utilidade e o interesse dos estudantes (GIL PREZ, 1999). Tal proposta assemelha-se aomovimento que levou cientistas e educadores a insistirem na introduo da educaocientfica na cultura geral no final dos anos 70 e excessiva importncia conferida ao ensinode cincias na dcada de 1990 com relao formao cidad e ao desenvolvimento social(FOUREZ, 1997). A mera abordagem de temas polmicos e de questes cientficas etecnolgicas atuais, que tm implicaes na vida dos cidados e nos rumos da humanidade,poderia conduzir a resultados to decepcionantes como os que foram alcanados com abusca por melhorias da educao cientfica do pas nos anos 1960 e 1970 (GIL PREZ,1999). necessrio que os estudantes percebam a mutabilidade do conhecimento cientficoe se atualizem permanentemente num mundo marcado por uma intensa produo cientfica etecnolgica e que passa por constantes e profundas mudanas.

    Atualmente, muitos so os argumentos cientficos, sociais, ticos e educacionaisestabelecidos pela ideia de compreenso pblica da cincia (WYNNE, 1995;GONALVES, 2000; VEIGA, 2002), o que pressupe o ingresso da cincia na cultura, nosentido de que o saber cientfico seja partilhado por todos os cidados:

    [...] o conhecimento cientfico, sado do seu contexto de produo, entra naesfera pblica, ou seja, num outro contexto impregnado de fatoresculturais, sociais, econmicos e polticos, fatores que levam re-interpretao e renegociao desse conhecimento em funo de seucontexto de produo e utilizao. (VEIGA, 2002, p. 54)

    No entanto, ainda marcante o distanciamento entre os pressupostos educativos doensino de cincias e as possibilidades de torn-los concretos, o que se deve a uma complexarelao epistemolgica entre as ideias cientficas e os pressupostos da educao cientfica(HODSON, 1986; NASCIMENTO, 2009); s dificuldades dos professores em romper comuma profunda concepo positivista de cincia e com uma concepo conservadora eautoritria de ensino-aprendizagem como acumulao de informaes e de produtos dacincia, que seguem influenciando e orientando suas prticas educativas; s suas carnciasde formao geral, cientfica e pedaggica; s inadequadas condies objetivas de trabalhoque encontram no exerccio da profisso e a determinadas polticas educacionaisfundamentadas em princpios contraditrios formao crtica dos cidados.

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    A FORMAO DE PROFESSORES DE CINCIAS NO BRASIL

    Nos ltimos trinta anos no Brasil, a formao de professores tornou-se objeto depesquisa acadmica e se constituiu como um importante foco das polticas educacionais.

    Ao contrrio do que ocorreu nas dcadas de 1950 e 1960, perodo no qual aeducao brasileira esteve fortemente influenciada pelos pressupostos educativos dapsicologia comportamental, a produo de conhecimentos sobre a formao e a atuao deprofessores vem superando uma viso meramente tcnica a respeito da atividade docente.

    Nos cursos de formao de professores de cincias, a tendncia tecnicistapredominante de meados dos anos 1960 at o incio dos anos 1980 reforou problemas jexistentes como o tratamento neutro, universal e estritamente cientfico dos componentescurriculares; a dicotomia teoria/prtica; a fragmentao das disciplinas de formao geral eo distanciamento entre as realidades escolar e social. O papel do professor de cincias foireduzido simples execuo de tarefas programadas e controladas, sendo preparado paramemorizar as informaes cientficas que seriam exigidas dos estudantes e aplicar

    procedimentos didticos sugeridos por especialistas em educao. A formao disciplinar,originada sob o pressuposto da disciplinaridade cientfica possibilitou a criao decurrculos fragmentados e a especializao de saberes, de materiais didticos e da formaodocente (VIANNA, 2004).

    Nesse perodo, as teorias comportamentalistas de ensino-aprendizageminfluenciaram significativamente a formao de professores. O professor era visto como umtcnico capaz de estabelecer claros e precisos objetivos de ensino e planejar suas atividadeseducativas de forma a obter o controle da aprendizagem dos estudantes, modificando,eliminando ou introduzindo novos comportamentos nos mesmos.

    A expanso da rede de ensino aps o golpe militar de 1964 requereu um maiornmero de professores para atender a uma crescente populao escolar. Quanto ao ensino decincias, essa demanda foi suprida principalmente pela expanso do ensino universitrioprivado com a criao indiscriminada de cursos de licenciatura de curta durao emfaculdades isoladas e pela permisso do exerccio profissional de docentes no-habilitados,contribuindo para descaracterizar e desvalorizar ainda mais a profisso docente.

    Em 1968, a Lei n 5.540/68 reestruturou o ensino universitrio, criou a estruturadepartamental e possibilitou a criao dos institutos, que passaram a responsabilizar-se pelaformao de professores de cincias, ficando a formao pedaggica sob a responsabilidadedas faculdades de educao. Os cursos de formao, que j eram extensos e descritivos, comaulas de laboratrio que visavam apenas confirmar a teoria j ensinada, se tornaram aindamais conteudistas (CHASSOT, 2004).

    Na dcada de 60, com a chegada das teorias cognitivistas ao Brasil, principalmentedo construtivismo interacionista de Piaget, a imagem do professor como um transmissor deinformaes foi substituda pela imagem do orientador de experincias educativas e deaprendizagens (MARTINS, 2004). Tal ideia passou a fomentar as discusses a respeito danecessidade de mudanas nas propostas de formao de professores. Nessa perspectiva, osprofessores de cincias deveriam desenvolver suas aes educativas respeitando assingularidades e as fases de desenvolvimento intelectual dos estudantes, estimulando-osnum processo de superao constante de obstculos cognitivos e didticos.

    A formao de professores passou a ser discutida nas principais conferncias sobreeducao principalmente a partir do final dos anos 1970 e incio dos 1980, quando esteveem discusso a necessidade de reformulao dos cursos de licenciatura.

    Na primeira metade da dcada de 1970, ainda sob influncia das teoriascomportamentalistas de ensino-aprendizagem e da tecnologia educacional, a formao de

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    professores de cincias privilegiava a dimenso tcnica e a instrumentalizao de sua aoeducativa. Predominava uma viso funcionalista da educao, onde a experimentao, aracionalizao, a exatido e o planejamento tornaram-se as principais questes na formaodesses profissionais (PEREIRA, 2006).

    A partir de meados dos anos 1970, especialistas e pesquisadores em educaopassaram a criticar a formao oferecida aos professores, dando origem a um movimento deoposio e rejeio aos enfoques tcnico e funcionalista. A incorporao da dialticamarxista na anlise da educao escolar possibilitou destacar o papel crtico erevolucionrio que deveria ser assumido pelos professores. Nos processos educativos cabiaa estes profissionais discutir com os estudantes as contradies existentes na sociedadebrasileira, deixando evidentes as relaes entre opressores e oprimidos atravs de umtrabalho de conscientizao e politizao, tendo em vista a luta pela reverso da escolaexcludente brasileira (VIANNA, 2004). No entanto, a adoo de ideias e prticas educativasque visavam a formao crtica e poltico-social dos estudantes no foi tolerada pelo regimeautoritrio vigente no pas.

    Entre o final dos anos 1970 e incio dos anos 1980, o iderio pedaggico mundialatingiu um significativo nvel de qualidade e multiplicidade, principalmente com osurgimento da teoria crtica, das teorias crtico-reprodutivistas, das teorias antiautoritrias,entre outras. As teorias educacionais que consideravam a escola como reprodutora dasrelaes sociais permearam as discusses sobre a atuao de professores e influenciaramalgumas disciplinas dos cursos de formao. Devido s limitaes dessas teorias e compreenso da educao a partir de seus condicionantes histricos e poltico-sociais, estapassou a ser considerada uma atividade plural e complexa. Nessa perspectiva, a escola eravista como um espao de contradies, no qual novas ideias e mudanas poderiam sergestadas e implementadas (PEREIRA, 2006).

    No incio da dcada de 1980, a tecnologia educacional passou a ser questionada pelacrtica marxista, contrria ao oferecimento aos docentes de uma formao desvinculada dosaspectos poltico-sociais. Considerava-se que o idealismo inerente viso abstrata dacultura e o positivismo que fundamentava a viso tecnicista no seriam suficientes paragarantir uma formao docente de qualidade. No entanto, as teorias crticas no ressoaramde modo significativo nos cursos de formao de professores de cincias, pois estescontinuaram sendo desenvolvidos segundo os enfoques tcnico e funcionalista.

    Nos primeiros anos da dcada de 1980, com o surgimento de novas teoriasrelacionadas aos processos educativos, a docncia passou a ser vista como uma atividadecomplexa. As discusses a respeito da formao do professor de cincias privilegiaram ocarter poltico da prtica pedaggica e seu compromisso com os interesses das classes

    populares, o que se articulava ao movimento da sociedade brasileira na busca de superaodo autoritarismo vigente desde o golpe de 1964 e da redemocratizao do pas. Nesseperodo, as polticas educacionais orientavam a formao docente no sentido de garantir aqualidade do ensino a ser desenvolvido nas escolas, porm, desconsideravam os aspectosdesqualificadores aos quais os professores estavam submetidos. Procurava-se formar umprofissional que seria de-formado no prprio trabalho (ARROYO, 1985).

    Em 1980, o Comit Nacional Pr-Formao do Educador iniciou um movimentopela reformulao dos cursos de formao de professores no Brasil e sugeriu a extino doscursos de licenciatura de curta durao. Em 1983, o MEC criou a Comisso Nacional deReformulao dos Cursos de Formao do Educador (CONARCFE), deixando evidenteuma lacuna entre as intenes governamentais e as posies defendidas por especialistas e

    pesquisadores em educao. Os problemas relacionados s licenciaturas curtas e plenastransformaram-se em pautas das diversas instncias de discusso do Movimento Nacional

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    de Reformulao dos Cursos de Formao de Educadores.Na primeira metade da dcada de 1980, os debates sobre a formao docente

    sugeriam que o professor deveria conscientizar-se a respeito da funo da escola natransformao da realidade social dos estudantes e das articulaes da prtica educativa com

    a prtica social mais ampla. Os cursos de licenciatura em cincias deveriam, portanto,formar educadores, ressaltando assim a primazia do ato de educar sobre o ato de ensinar. Aimagem do educador dos anos 1980 apareceu em oposio figura do especialista decontedo, ao facilitador de aprendizagem, ao organizador das condies de ensino-aprendizagem, ao tcnico da educao dos anos 1970. Nos anos 1990, entretanto, adicotomia professor/educador passou a ser considerada uma questo de menor importnciano contexto educacional brasileiro (PEREIRA, 2006). Preconizava-se que, para atuar demaneira eficaz e consequente com as necessidades formativas dos estudantes, o professordeveria ter competncia tcnica e qualidade formal e poltica, aspectos que pressupunhammudanas significativas nos cursos de formao inicial.

    Por no considerarem o processo de formao docente em seus aspectos scio-

    poltico-econmicos, parte significativa das investigaes realizadas at meados dos anos1980 apresentava crticas genricas formao e atuao do professor, pouco contribuindopara a compreenso de seus aspectos determinantes e para a busca de superao dosproblemas detectados. Outros estudos, porm, apontaram a precariedade dos processos deformao de professores e problemas relacionados aos currculos dos cursos, aos temas econtedos desenvolvidos nas disciplinas de formao geral e especfica, s estratgias deensino utilizadas pelos professores formadores, falta de delineamento de um perfildesejvel para essa formao, entre outros aspectos.

    Em meados dos anos 1980, as discusses sobre a formao de professores passarama incorporar a relao teoria-prtica, sendo esta uma questo recorrente at o momento. Aformao docente passou a ser vista segundo uma perspectiva multidimensional, na qualdeveriam estar integradas as dimenses humana, tcnica e poltico-social. Surgiram severascrticas aos currculos dos cursos de formao docente, pois estes continuavam apoiados naideia de acmulo de conhecimentos tericos para posterior aplicao no mbito da prtica,sendo esta viso coerente com a lgica da racionalidade tcnica, segundo a qual a atividadeprofissional consistiria na resoluo de problemas instrumentais por intermdio da aplicaoda teoria e da tcnica cientficas (SCHN, 1992).

    Por ser a principal instituio responsvel pela formao de professores, auniversidade passou a ser criticada no apenas pela formao que oferecia, masprincipalmente por sua falta de compromisso com a reconstruo da escola pblica. Devido pluralidade de concepes inerentes s relaes entre ensino, aprendizagem e

    desenvolvimento do pas, nesse perodo passou-se a considerar como essencial ooferecimento de programas de educao continuada aos professores para que semantivessem atualizados e pudessem acompanhar os avanos das cincias, das tecnologias eas complexas mudanas que caracterizavam a sociedade (VIANNA, 2004). Mudar aformao oferecida aos professores tornou-se uma prioridade para a melhoria do ensino decincias, o que favoreceu o surgimento de diversas propostas elaboradas por especialistasligados s universidades pblicas do pas, tais como cursos de aperfeioamento didtico,programas de formao continuada, projetos de educao cientfica, entre outros. Noentanto, foi pouco significativo o reflexo dessas propostas sobre a atuao dos professores esobre o ensino de cincias (NASCIMENTO, 2009).

    Entre o final dos anos 1980 e incio dos 1990, as mudanas ocorridas no cenrio

    internacional repercutiram intensamente no pensamento educacional brasileiro, deixandoevidente a necessidade de incorporar as vises micro e macro-sociais nos processos de

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    formao docente e de possibilitar a formao do professor reflexivo e pesquisador de suaprpria prtica educativa. Nesse perodo, a interao entre a universidade e a escola de 1 e2 graus passou a fazer parte dos debates educacionais, o que possibilitou o surgimento dediversas propostas de treinamento em servio ou reciclagem atravs do oferecimento de

    cursos aos professores das escolas pblicas. Tais propostas foram bastante criticadas nomeio acadmico e consideradas insuficientes devido a seu carter espordico e falta devnculo com a realidade e as necessidades dos professores. A partir de ento, as pesquisaspassaram a focalizar a relao existente entre as condies de formao e de atuao dosprofessores, apontando a necessidade de mudanas nos cursos de formao, de melhoria dascondies objetivas de trabalho nas escolas e de estmulo formao continuada.

    Em meados dos anos 1990, com a promulgao da nova Lei de Diretrizes e Bases daEducao Nacional (LDBEN n 9394/96) e a elaborao dos Parmetros CurricularesNacionais (PCNs) para o Ensino Fundamental e o Ensino Mdio, as escolas deveriampossibilitar aos estudantes uma formao geral de qualidade, tendo em vista lev-los aodesenvolvimento de capacidades de pesquisar, buscar informaes, analis-las e selecion-

    las, assim como da capacidade de aprender a aprender, ao invs do simples exerccio dememorizao. Essa formao, portanto, deveria ter como foco a aquisio de conhecimentosbsicos, a preparao cientfica e a capacidade de utilizar diferentes tecnologias.

    Nesse sentido, equipes ligadas ao Ministrio da Educao e especialistas emeducao de diversas universidades passaram a elaborar e desenvolver propostas deformao continuada de professores que procuravam romper com uma educaodescontextualizada e compartimentalizada, que valorizava essencialmente o acmulo deinformaes pelos estudantes. Procurava-se levar os professores de cincias a ensinarem oscontedos escolares para alm da dimenso conceitual, de modo a possibilitar aosestudantes no apenas a formao de habilidades cognitivas, mas tambm sociais.Preconizava-se que o xito dessa formao somente seria alcanado se os futurosprofessores tivessem oportunidades de vivenciar situaes reais de ensino-aprendizagem, derefletir criticamente sobre as mesmas, de pesquisar e atuar criticamente a partir de umprojeto pedaggico prprio e de se apropriar efetivamente de conhecimentos cientficos epedaggicos relevantes, o que no se efetivou na maioria dos cursos de formao deprofessores de cincias, pois estes continuaram sendo desenvolvidos segundo a lgica daracionalidade tcnica.

    Ao longo da dcada de 1990 foram realizadas significativas investigaes sobre osprocessos de formao prtica do professor, que ocorriam no exerccio da docncia.Considerando que no cotidiano de sua atividade o professor construa gradativamenteconhecimentos sobre sua profisso, as anlises sobre os saberes docentes possibilitaram

    vislumbrar uma perspectiva que passou a considerar os professores como profissionaisprodutores de saber e de saber-fazer (NVOA, 1992). Alm desse pressuposto, nesseperodo, as propostas de formao de professores de cincias tambm passaram aincorporar, ao menos em seus projetos pedaggicos, as relaes existentes entre a cincia, atecnologia e a sociedade. Esperava-se superar a transmisso de fatos e conceitos cientficose o oferecimento de tcnicas didticas e possibilitar aos futuros professores condies decompreenderem criticamente os aspectos que orientavam suas prticas educativas e asideologias que regiam a sociedade e a educao. Acreditava-se que, refletindo criticamentesobre seu papel e sobre as possibilidades educativas do ensino de cincias, o professorpoderia levar os estudantes a passarem do nvel da aparncia para o nvel da interpretaocientfica e a construrem saberes estratgicos essenciais para a transformao da sociedade.

    A concretizao de tais pressupostos educativos no seria conseguida pela simples rejeioao ensino tradicional, pois sua transformao exigiria dos professores conhecimentos

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    profundos a respeito de suas deficincias e a elaborao de um modelo educativoigualmente coerente e eficaz (GIL PREZ, 1991).

    Do incio da dcada de 1990 at o ano de 2001 as polticas do governo federalestiveram fundamentadas num discurso moralizante e na ideia de eficincia segundo

    preceitos neoliberais. Nesse perodo, a formao docente esteve subordinada s propostaseducativas elaboradas por equipes tcnicas ligadas ao Ministrio da Educao e adeterminadas universidades, ficando a participao dos professores restrita execuodessas propostas, deixando evidente uma tendncia de atribuir a responsabilidade pelaformao e pela melhoria do ensino aos prprios professores, como se estas fossem tarefasmeramente individuais associadas a esforo e mrito pessoais.

    A influncia neoliberal levou algumas instituies formadoras a direcionarem aformao continuada de docentes para o atendimento s demandas de determinados setoresda indstria e do comrcio, como, por exemplo, os setores editorial e de informticaeducacional, tendo em vista tornar os profissionais da educao e os estudantes, clientes dasescolas, em vorazes consumidores de subsdios didticos. Segundo esta viso, a orientao

    da formao no recaa sobre as necessidades de docentes e estudantes, mas sobre osinteresses desses setores. Os professores deveriam passar por treinamentos, dominartcnicas didticas e participar de maneira alienada de um processo que procurava fazer daescola o principal meio de transmisso da viso neoliberal e um mercado para os produtosda indstria cultural e da informtica (GENTILI e SILVA, 1999).

    Nessa poca, as polticas educacionais do governo brasileiro estiveram atreladas sdiretrizes do Banco Mundial, que limitavam a formao dos professores a um papel aindamais alienado, haja vista que eram insumos caros. Procurou-se transformar os professoresem operadores de ensino, depositando-se grandes esperanas nos livros didticos, nasmodernas tecnologias de educao distncia e nas propostas de auto-aprendizagem, vistascomo mais custo-efetivas e rpidas do que o investimento em formao docente, segundouma tendncia no apenas de desprofissionalizao, mas de excluso dos prpriosprofessores como sujeitos e profissionais (TORRES, 1998). A orientao poltica desseperodo permitiu que as condies concretas para o exerccio profissional da docncia nofossem alteradas, sendo empregados artifcios considerados mais custo-efetivos para osgovernos, embora o discurso usado para vender pacotes didticos como compensadores daspssimas condies objetivas de trabalho e de formao dos docentes camuflasse tais

    justificativas (MIZUKAMI et al., 2002).Diante da constatao dos inmeros problemas inerentes formao inicial de

    professores, em meados dos anos 90, a LDBEN n 9394/96 estabeleceu mudanas nessaformao. No entanto, as polticas governamentais a desqualificaram ainda mais, sendo

    oferecidos programas de treinamento em servio, sem a garantia de que esta modalidade deformao possibilitaria melhorias na educao bsica. A formao em servio tratava-se demera atualizao da formao recebida segundo um pressuposto que enfatizava anecessidade de reciclagem desses profissionais (CANDAU, 1996).

    Contrariamente viso neoliberal, ao longo dos anos 90 foram desenvolvidosdiversos estudos que possibilitaram construir uma nova concepo de formao continuada,enfatizando a escola como um espao privilegiado para a realizao desta formao econsiderando os processos de formao a partir do reconhecimento e da valorizao dossaberes docentes, assim como as diferentes etapas do desenvolvimento profissional dosprofessores. Subjacente maior parte das pesquisas e atividades relacionadas formao deprofessores, realizadas nesse perodo, prevaleceu uma concepo crtica de educao,

    passando as atividades formativas a considerar a necessidade de compreender as prticaseducativas realizadas em diferentes contextos e de valorizar a capacidade de produo de

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    conhecimentos por parte dos professores, sendo a reflexo a principal base para aaprendizagem e para o desenvolvimento profissional da docncia (ZEICHNER, 1993).

    Nesse perodo, as propostas de formao de professores de cincias passaram aconsiderar com maior nfase a importncia da reflexo sobre as prticas concretas

    desenvolvidas nas escolas e sobre as articulaes existentes entre a educao e o contextoscio-poltico-econmico. Tornou-se ainda mais explcita a necessidade do professor vir ater compromisso com a educao e com a sociedade, pois, sendo capaz de refletir eposicionar-se a respeito de problemas concretos, este profissional poderia vir a se tornar umagente de mudanas em seu contexto de atuao. Apesar dos processos econmicos,polticos e sociais condicionarem a atuao dos professores, considerava-se que no mbitoda sala de aula prevaleceria sua autonomia, aspecto prprio e particular do trabalho docente,pois o controle por parte do Estado se efetivaria em suas prticas educativas principalmentepela formao pouco consequente que apresentavam, ou seja, pela carncia deconhecimentos cientficos e pedaggicos e pela falta de viso crtica a respeito da funosocial do trabalho que desenvolviam (BASSO, 1994).

    A formao docente tambm passou a ser vista sob a perspectiva da investigao-ao (SCHN, 1992) e a atuao do professor a ser considerada uma atividade complexaque requeria as habilidades de saber, de fazer e de saber-fazer. Para desenvolver um ensinoconsistente e consequente com as necessidades formativas dos estudantes, o professor decincias deveria submergir-se em um processo constante de aprendizagem; apropriar-se deconhecimentos relevantes cientfica, cultural e socialmente e posicionar-se criticamente parapoder responder efetivamente s demandas do contexto de atuao. Considerando as rpidastransformaes de natureza poltica, social, cientfica e tecnolgica do pas e do mundo, esseprofissional deveria manter-se em atitude de atualizao constante, principalmente porqueno se encontraria completamente formado e preparado para atuar apenas com osconhecimentos adquiridos durante sua formao inicial. Assim como outros profissionais,deveria aprender e aperfeioar sua prtica educativa continuamente.

    Atualmente, a formao de professores vem sendo considerada uma atividadeestratgica no mbito das polticas educacionais, principalmente devido ao importante papelque esses profissionais podem representar nas transformaes educativas e sociais(GIMENO SACRISTN, 1983; PREZ GMEZ, 1992; DEMO, 2002). Nesse sentido, ooferecimento de uma slida formao cientfica e pedaggica aos professores vem seconfigurando progressivamente como imprescindvel para o desenvolvimento dos sistemaseducativos, sendo feitos cada vez mais esforos na tentativa de melhoria dos processos deformao inicial e continuada de professores no Brasil. Parece haver um consenso entre osespecialistas em educao quanto ideia de que a formao inicial insuficiente para

    garantir o desenvolvimento profissional (CANDAU, 1996; MIZUKAMI, 1996). Defende-se, portanto, uma formao de carter permanente que valorize as prticas educativasrealizadas pelos professores no dia-a-dia da escola e o conhecimento que provm daspesquisas realizadas na universidade, de modo a articular teoria e prtica na formao e naconstruo do conhecimento profissional do professor.

    O Plano Nacional de Educao (PNE), aprovado pela Lei n 10.172, de 09/01/2001,est em consonncia com a Constituio Federal e com a LDBEN n 9394/96, sendo um deseus objetivos a valorizao dos profissionais da educao. No entanto, ainda que nosltimos anos tenham sido produzidos significativos conhecimentos a respeito de prticasformativas e educativas realizadas em distintos contextos, ainda so evidentes asdificuldades de implementao de mudanas nas propostas de formao de professores de

    cincias, principalmente pelo fato de muitos cursos de formao continuarem apresentandoum carter estritamente disciplinar e essencialmente cognitivo.

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    PERSPECTIVAS PARA O ENSINO DE CINCIAS NO CONTEXTO ATUALA incorporao do paradigma cincia-tecnologia-sociedade no ensino de cincias

    At o final dos anos 1970, o pensamento a respeito da produo cientfica etecnolgica brasileira foi construdo essencialmente como um discurso terico-ideolgico,originado na prxis cientfica e poltica de seus idealizadores. Tal pensamento apresentavapouca reflexo terica e conceitos prximos s suas experincias imediatas e pessoais(VACCAREZZA, 1999). A partir dos anos 1980, diversos estudos passaram a indicar aspossveis contribuies da cincia na construo de uma sociedade verdadeiramentedemocrtica e integradora, que pudesse superar as novas expresses do elitismo e dafragmentao social. A crtica sobre a dependncia cultural pretendeu revolucionar aproduo cientfica e tecnolgica e a percepo de suas relaes com a sociedade,contrariamente ao esforo intelectual dos anos 1960 e 1970, que se desenvolveu rumo a umconformismo quanto ao papel social dessas atividades.

    A complexidade dos problemas cientficos e tecnolgicos atuais passou a exigir umamaior flexibilidade interpretativa a partir de distintos referenciais tericos. Oquestionamento dos ideais de cientificidade, que impem cincia critrios e finalidades decarter objetivo, neutro e descontextualizado, passou a fazer parte de estudos queprocuravam mostrar as relaes existentes entre a cincia, a tecnologia e a sociedade(estudos CTS). No final dos anos 1980, os estudos CTS apresentaram novas formas deanalisar a atividade cientfica e tecnolgica e novas possibilidades para o ensino de cincias.Apesar de apresentarem uma viso crtica a respeito da atividade cientfica e tecnolgica, osenfoques desses estudos no constituem um campo homogneo de anlise e interpretao(IRANZO et al., 1995; ALONSO et al., 1996). Os estudos CTS passaram a enfatizar adimenso social da cincia e da tecnologia, compartilhar certa rejeio e crtica visodestas atividades como neutras e descontextualizadas e condenar a tecnocracia. Nessesestudos, a atividade cientfica e tecnolgica passou a ser vista de modo contextualizado e serentendida como um processo social (IRANZO et al., 1995; ALONSO et al., 1996).

    A partir dos anos 1990, as universidades passaram a ser espaos privilegiados deproduo de conhecimentos a respeito das relaes existentes entre a cincia, a tecnologia ea sociedade, elevando os estudos CTS a nveis mais complexos, tanto em termos deteorizao como de anlise (VACCAREZZA, 1999). No campo das polticas pblicas,atualmente os estudos CTS vm defendendo a ideia de regulao pblica da cincia(WYNNE, 1995; GONALVES, 2000; VEIGA, 2002) e a criao de espaos democrticosque poderiam promover reflexes e possivelmente a abertura dos processos de tomada de

    decises em questes relacionadas s polticas cientficas e tecnolgicas. Segundo estaabordagem, os modelos de gesto da cincia e da tecnologia deveriam ser substitudos pormodelos de regulao pblica, considerando a reviso do modelo unidirecional e aelaborao de novas polticas cientficas e tecnolgicas. Desse modo, as relaes entrecincia, tecnologia e sociedade, refletidas nas pesquisas acadmicas, poderiam influenciar aconstruo de novos programas educativos e a elaborao de subsdios didticos para oensino de cincias numa perspectiva crtica e contextualizada (LPEZ CEREZO, 1999).

    De modo geral, a cincia ainda percebida pelos sujeitos como algo distante,aparentemente sem qualquer influncia direta sobre sua realidade vivencial. As dificuldadesde compreenso das complexas relaes existentes entre as teorias cientficas e tcnicas,cincia pura e aplicada e teoria e prtica leva-os a perceberem as cincias apenas pelos

    resultados de suas aplicaes, favorecendo o surgimento do cientificismo, da fusocincia/tcnica e do mito da neutralidade cientfica. Nesse sentido, o sujeito tende a

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    identificar o conhecimento cientfico a partir de seus efeitos tecnolgicos, o que faz com quedeixe de perceber que a cincia faz parte das formas econmicas e produtivas da sociedade,promovendo grandes mudanas sociais na diviso social do trabalho, produo edistribuio de bens e formas de consumo. Desse modo, passa a acreditar na falsa ideia de

    que a cincia pode e deve conhecer tudo por representar a explicao causal da realidade talcomo em si mesma, visto que percebe a cincia no por seu processo de produo, maspor seus resultados e por seu poder social (CHAU, 1997). No entanto, adquirindoimportncia social, o conhecimento cientfico poderia difundir-se na realidade vivencial etornar-se significativo, pois a viso cientfica do mundo adentra profundamente o sistema derepresentaes dos sujeitos e o transforma (STORT, 1993).

    A cincia e a tecnologia devem ter representao social concreta, pois, enquantosistema de conhecimentos e como conjunto constitudo pelo saber/fazer, estas atividadesembasam as vivncias dos sujeitos. Nessa perspectiva, o sistema cincia/tecnologia atingesua realidade vivencial e a apropriao do conhecimento cientfico promove umquestionamento de seus saberes cotidianos, podendo possibilitar-lhes uma interveno

    criativa e crtica na realidade na qual se inserem, tendo em vista sua compreenso e possveltransformao. No contexto atual, a cincia continua detendo um conhecimentouniversalmente vlido e suas formas de produo e seus efeitos sociais vm se tornandocada vez mais visveis. Considera-se que o desenvolvimento cientfico e tecnolgico umprocesso conformado por fatores culturais, polticos, econmicos, epistmicos, valores einteresses que fazem da cincia e da tecnologia processos sociais. No entanto, a produocientfica e tecnolgica atual ainda no est acessvel maior parte dos cidados brasileiros,evidenciando tambm nesse mbito uma desigualdade na distribuio das riquezasproduzidas no pas. Possivelmente, o aspecto mais srio da excluso propiciada pelosavanos cientficos e tecnolgicos seja o efeito potencializador que estas atividades tm emcriar novas formas de desigualdade, o que requer uma reconstruo urgente do ensino decincias numa perspectiva crtica.

    Apesar dos vnculos existentes entre o poder poltico-econmico, o desenvolvimentocientfico-tecnolgico e a sociedade, na maior parte das vezes, o ensino de cincias aindarestringe-se ao oferecimento de conhecimentos prontos e acabados aos estudantes, semconsiderar as ambiguidades decorrentes dos processos de produo e utilizao dessasatividades. No mbito da Educao Bsica, o conhecimento cientfico continua sendotransmitido de modo consciente ou inconsciente, segundo as vises de mundo, de educaoe de cincia que fundamentam o ensino desenvolvido pelos professores (NASCIMENTO,2009). As mudanas promovidas pela atividade cientfico-tecnolgica constituem umassunto pblico de extrema importncia, portanto, necessrio construir as bases educativas

    para uma participao social consciente, assim como criar os mecanismos institucionaispara fazer possvel tal participao (GONZLEZ et al., 1996).No contexto atual percebe-se uma maior vinculao entre os aspectos polticos e

    sociais e uma maior politizao das atividades realizadas no mbito da sociedade brasileira;assim, a cincia e o ensino de cincias devero humanizar-se e assumir um carter poltico esocial, pois estas so atividades que podem possibilitar aos cidados novas formas decompreender a realidade, agir sobre ela e transform-la (STORT, 1993; IRWIN, 1998).

    Muitos dos problemas do ensino de cincias apresentam uma raiz epistemolgica,haja vista a existncia de relaes, compatibilidades e incompatibilidades entre os ideais decientificidade e a didtica das cincias. A superao desse problema pressupe mudanasterico-metodolgicas nos cursos de formao de professores de cincias, rupturas com uma

    concepo positivista de cincia - e de ensino de cincias - como acumulao de produtos daatividade cientfica e a construo de uma didtica e uma epistemologia prprias,

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    provenientes do saber docente.

    O oferecimento de uma formao crtico-reflexiva aos professores de cincias

    As questes conjunturais trazem graves consequncias aos cursos de licenciatura emcincias, como a mudana de perfil dos estudantes que atualmente vm optando por essescursos, a separao existente entre as disciplinas de contedo especfico e as disciplinaspedaggicas, a valorizao dos cursos de bacharelado em detrimento dos cursos delicenciatura, a desarticulao entre formao acadmica e a realidade escolar, dentre outrosaspectos.

    Os cursos noturnos de formao de professores de cincias so uma realidade noBrasil e apenas a partir dos anos 90 que comearam a ser criados em maior nmero nasuniversidades pblicas. A partir de 2002, com o plano de expanso das universidadesfederais, surgiram em nmero bastante significativo, tendo em vista reforar e reorientar

    suas articulaes com as escolas de educao bsica e suprir a carncia de profissionais nasredes pblicas de ensino. No entanto, em alguns casos, esses cursos ainda funcionam comcerta precariedade devido ao insuficiente envolvimento institucional das universidades e aproblemas de natureza poltica, material e humana (PEREIRA, 2006).

    Atualmente, algumas iniciativas tm procurado apontar caminhos para a superaodos problemas existentes nos cursos de formao de professores, tais como os frunspermanentes de discusso e deliberao a respeito das problemticas vivenciadas naslicenciaturas e as propostas de reformulao dos cursos em vigor em algumas universidadespblicas brasileiras:

    Os novos modelos apontam para o ensino baseado na construo doconhecimento pelo prprio aluno (futuro professor), que deve deixar aposio passiva de receber e compreender os ensinamentos passados peloprofessor para assumir a posio de busca do prprio conhecimento, pelaconstruo e significao de saberes a partir do confronto com situaesreais ou simuladas da prtica profissional, estimulando as capacidadescrtico-reflexivas e de aprender a aprender (UNIVERSIDADE FEDERALDE SO CARLOS, 2005, p. 25).

    No entanto, mesmo quando as carncias so apontadas e as propostas inovadorassurgem no mbito das prprias universidades, tem sido difcil a promoo de mudanas. Astentativas de superao dos problemas das licenciaturas por meio de mudanas curriculares

    no tm ultrapassado os limites formais (LDKE, 1994).No cotidiano da sala de aula o professor defronta-se com mltiplas situaesdivergentes, com as quais no aprende a lidar durante seu curso de formao, o que requernovas formas de agir e a construo de conhecimentos especficos da docncia de formareflexiva, crtica e processual, incorporando e transcendendo os conhecimentos advindos daracionalidade tcnica (MIZUKAMI et al., 2002). O ensino reflexivo implica que osprofessores, ao invs de refletirem apenas sobre a aplicao em suas salas de aula dasteorias geradas fora delas, critiquem e desenvolvam suas teorias prticas medida querefletirem acerca de seu ensino e das condies sociais que modelam suas prticaseducativas (ZEICHNER, 1993).

    Nessa perspectiva, as propostas de formao de professores de cincias devero

    considerar o papel da educao cientfica em diferentes contextos e a cultura cientfica dosprofessores no quadro da compreenso pblica da cincia. Tal perspectiva considera que o

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    conhecimento cientfico no espao pblico deve ser sempre entendido como social eculturalmente adaptado segundo a perspectiva dos diferentes atores sociais. Os cursos deformao devem apresentar, portanto, responsabilidade social na busca de reconstruo dasolidariedade, da liberdade e da dignidade humana, num estilo inquietante de construo do

    conhecimento emancipatrio (VEIGA, 2002). A formao de professores de cincias deveser entendida como uma oportunidade para reconstruir uma imagem de cincia menosfragmentada pelas fronteiras disciplinares (TORRES, 1994) e como um desafio naconstruo de um conhecimento emancipatrio, essencial para a construo de umasociedade verdadeiramente justa e democrtica.

    Considerando a importncia de uma slida formao cientfica, da participaodemocrtica e da possibilidade de contribuio com a melhoria da qualidade de vida dossujeitos, muitos so os desafios que se apresentam para a formao de professores decincias. No basta as universidades conceberem currculos que suportem uma culturacientfica, pois preciso promover mecanismos de formao de professores nesse sentido.Segundo o pressuposto de compreenso pblica da cincia, necessrio considerar a

    heterogeneidade dos cursos de formao de professores de cincias e dos professores emformao, pois no est em causa somente a compreenso pblica da cincia, mas tambm acompreenso cientfica dos pblicos (IRWIN, 1998).

    Formar professores de cincias pressupe conceber e praticar uma formaocientfica que possibilite aos mesmos a apropriao de conhecimentos cientficos relevantesdo ponto de vista cientfico, social e cultural assim como a aprendizagem, oaperfeioamento e a construo de estratgias de ensino-aprendizagem, as possibilidades dereconstruo da tarefa de ensinar e motivao curiosidade, problematizao, aoposicionamento crtico e participao democrtica responsvel. necessrio possibilitaraos professores de cincias o desenvolvimento de atitudes reflexivas, da imaginaocriadora, do desejo de investigar e agir sobre seus contextos de atuao e da compreensodo carter aleatrio e catico colocados pela relao cincia-tecnologia-sociedade. Trata-se,portanto, de considerar a formao desse profissional sob uma perspectiva transformadora,segundo abordagens em que a incerteza no seja banida, mas gerida; em que os valores nosejam pressupostos, mas sim explicitados; em que a dimenso histrica, incluindo a reflexosobre o passado, o presente e o futuro, torne-se parte integrante da caracterizao cientficada natureza; em que o local e o processual sejam relevantes para a explicao do mundo epara sua transformao.

    No processo de formao de professores de cincias deve prevalecer umconhecimento-emancipao, possibilitando-lhes refletir sobre suas prprias prticaseducativas, analisar e interpretar sua atividade profissional, fazendo da reflexo um

    instrumento de desenvolvimento do pensamento e da ao crtica. Refletindo criticamentesobre seu papel e sobre as possibilidades educativas do ensino de cincias, os professorespodero desenvolver uma maior competncia pedaggica e auxiliar os estudantes naconstruo de saberes estratgicos e emancipatrios. Nesse processo, os conhecimentos queos professores devem construir vo alm de regras, fatos, procedimentos e teoriasestabelecidas pela investigao cientfica (PREZ GMEZ, 1992). A reflexo sobre asprprias prticas educativas pode favorecer-lhes a construo de teorias adequadas ssingulares situaes nas quais se encontram e possibilitar-lhes o desenvolvimento deestratgias de ao num processo no qual se reeducam criticamente e aperfeioamconstantemente suas prticas educativas.

    Os professores de cincias devem ser elevados qualidade bsica de cidados; nos

    cursos de formao devem ter possibilidades de vivenciar atividades formativas que lhespossibilitem o desenvolvimento de formas mais elaboradas de pensamento, a compreenso

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    do significado educativo, poltico e social do ensino que desenvolvem, vislumbrar umaatuao consciente, tica e responsvel:

    O professor, durante sua formao inicial ou continuada, precisa

    compreender o prprio processo de construo e produo doconhecimento escolar, entender as diferenas e semelhanas dos processosde produo do saber cientfico e do saber escolar, conhecer ascaractersticas da cultura escolar, saber a historia da cincia e a histria doensino da cincia com que trabalha e em que pontos elas se relacionam.Esses elementos constituem apenas uma das caractersticas do trabalhodocente e, sem desconhecer as outras dimenses, j revelam e demonstrama sua complexidade. (PEREIRA, 2006, p. 47)

    A formao crtico-reflexiva de professores de cincias deve tambm considerar aconstruo coletiva de propostas educativas no mbito das escolas, pois a construo deconhecimentos especficos da docncia no surge a partir da aplicao de procedimentostcnicos elaborados e impostos por agentes educacionais externos, mas requer um processosistemtico e contnuo de formao profissional, privilegiando as escolas como espaosformativos para que esses profissionais possam alcanar a estrutura profissional desejada(MEDINA E DOMNGUEZ, 1989; NVOA, 1992). O exerccio crtico-reflexivo dadocncia requer que tenham uma slida formao que os leve a refletir constantementesobre os significados poltico, social e educativo do ensino que desenvolvem. Considerandoas articulaes entre a educao e o contexto scio-poltico-econmico, imprescindvelque assumam um compromisso claro com a educao e com a sociedade e se tornemagentes de mudanas (GIROUX, 1987; VASCONCELOS, 1998; NASCIMENTO, 2009).

    Melhorar a formao de professores de cincias pressupe reforar o papel da

    socializao e da valorizao humana e requer que sejam considerados como pessoascidads, sobre as quais recaem responsabilidades profissionais e sociais.

    CONSIDERAES FINAIS

    A histria do ensino de cincias no Brasil deixa evidente que tanto o iderioeducacional quanto as ideias a respeito da produo cientfica e tecnolgica influenciaram econtinuam influenciando esse ensino.

    No mbito do capitalismo industrial, as cincias passaram a preocupar-se no apenascom a compreenso da natureza, mas principalmente com sua explorao e dominao, o

    que possibilitou mudanas no ensino de cincias. Nesse contexto, surgiu a escola tecnicistana qual a apropriao do saber identificava-se com o poder e os sujeitos deveriam serconduzidos como mquinas para que produzissem mais e melhor, tendo em vista garantiruma maior lucratividade para os donos das organizaes (VIANNA, 2004).

    At o final dos anos 1970, a busca por melhorias no ensino de cincias esteve maisvinculada aos processos de produo e divulgao do conhecimento cientfico, do que aosavanos das pesquisas sobre a didtica das cincias. Atualmente, o ensino de cincias aindareflete muitas ideias inerentes ao desenvolvimento cientfico das dcadas de 1950, 1960 e1970, certa esperana depositada na cincia para a soluo dos problemas da humanidade e,paradoxalmente, problemas sociais e ambientais provocados pela atividade cientfica etecnolgica (KRASILCHIK, 1998). Em meados dos anos 1970 tais pressupostos j eram

    criticados, o que gerou um movimento por mudanas no ensino de cincias, embora nasescolas este ensino pouco tenha sido modificado.

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    Nas dcadas de 1980 e 1990, parte significativa das propostas de melhoria do ensinode cincias trazia subjacente graves deficincias epistemolgicas e didticas, dificultando aformao do sujeito crtico, consciente e participativo.

    Historicamente, o oferecimento de uma slida formao cientfica e pedaggica aos

    professores sempre foi considerada uma condio essencial para a melhoria do ensino decincias. No entanto, a formao desses profissionais acompanhou as diretrizes de propostaseducativas estrangeiras, concretizou as singularidades poltico-econmicas vigentes de cadapoca e reproduziu, em muitos casos, os interesses da classe dominante.

    A construo de um ensino de cincias de qualidade pressupe urgentemente rompercom o modelo de formao docente que prevalece na maior parte das universidadesbrasileiras, no qual so ensinados os produtos da cincia e oferecidas possibilidadesdidticas para o ensino dos mesmos nas escolas. A universidade no pode continuarformando professores de educao bsica como uma espcie de tarifa que paga para poderfazer cincia. imprescindvel que assuma essa formao como uma de suas tarefascentrais (MENEZES, 1987).

    Na formao do professor de cincias defende-se a articulao entre teoria e prticapedaggica, pesquisa e ensino, reflexo e ao didtica. No entanto, a separao explcitaentre ensino e pesquisa nas universidades e a valorizao da pesquisa em detrimento dasatividades de ensino ainda trazem enormes prejuzos a essa formao (PEREIRA, 2006).

    A formao do professor inicia-se antes mesmo de seu ingresso no curso delicenciatura, prosseguindo ao longo de toda sua carreira profissional. O futuro professor decincias chega ao curso de formao carregando imagens a respeito da cincia, do ensino decincias, da funo da escola e da atividade docente. Sua formao deve estar fundamentadana reflexo crtica sobre as prticas educativas e na (re)construo permanente de suaidentidade, da a importncia do investimento na pessoa do professor e nos saberes advindosde sua experincia (NVOA, 1992). As mudanas nos processos de formao deprofessores de cincias devero ocorrer tanto no mbito pessoal quanto no mbitoinstitucional (NVOA, 1992; MIRTHA, LAVIN e MURA, 1996).

    Apesar de, historicamente, as propostas de mudanas na educao escolar no teremsido acompanhadas de melhorias nas condies subjetivas e objetivas de trabalho dosdocentes, melhorias significativas no ensino de cincias pressupem no apenas mudanasna formao dos professores, mas tambm nos contextos nos quais desenvolvem suasprticas educativas.

    No atual contexto scio-poltico-econmico brasileiro esto surgindo muitasmodificaes no espao-tempo social, que representam uma diversificao das formas depensar a construo da cidadania e pressupem a possibilidade de construo de uma

    sociedade onde no existam sujeitos privilegiados, ou seja, de uma utopia ecolgica edemocrtica cujos protagonistas podero ser todos aqueles que constituem as prticassociais (SOUSA SANTOS, 1994). Nesse contexto, aprender a ser professor no significameramente apropriar-se de contedos e tcnicas de ensino. Trata-se de uma aprendizagemque deve ocorrer por meio de situaes prticas efetivamente problemticas, o que exige aconstruo de uma prtica educativa reflexiva e crtica.

    Ensinar cincias no cenrio atual requer que os professores compreendam as origensdas inovaes cientficas e tecnolgicas; lutem contra as desigualdades impostas pelo capitale pelo exerccio do poder; e abram novos horizontes aos estudantes no sentido de sedesenvolverem humana e integralmente. A eficcia do trabalho do professor de cincias estdiretamente relacionada capacidade de articular prticas educativas s prticas sociais, ou

    seja, o trabalho desenvolvido nas escolas com o processo de democratizao e reconstruoda sociedade (SAVIANI, 1997).

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    A construo de uma sociedade verdadeiramente democrtica, justa e equitativapressupe, tambm, uma formao cientfica que permita ao cidado perceber e agir nosentido de substituio da tica neoliberal por uma tica no individualista e no colonizadapela cincia e pela tecnologia, o que requer na escola a vivncia da reflexo e a construo

    de conhecimentos cientficos numa perspectiva emancipatria (VEIGA, 2002;NASCIMENTO, 2009).

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    Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.39, p. 225-249, set.2010 - ISSN: 1676-2584 248

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    _____. Caractersticas convergentes no ensino de cincias nos pases ibero - americanos ena formao