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A política no limite do pensar

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A POLTICA NO LIMITE DO PENSAR

Jos Arthur Giannotti

POSFCIO

Este um texto de interveno. No um artigo que, segundo os padres atuais da grande imprensa, no pode ir muito alm de seis mil caracteres, o que limita, e muito, o espao da reflexo. Tambm no um livro onde os problemas podem ser analisados e revisados para que possam demarcar seus terrenos de validade. Trata-se de um ensaio que visa diretamente questionar modos tradicionais de pensar a poltica, levando em conta certos ganhos que a lgica contempornea logrou, principalmente a partir dos trabalhos de Frege e de Russell e da crtica minuciosa de Wittgenstein.

Poltica disputa pelo poder. Assim enunciadas, essas palavras dizem pouca coisa, quando no embaralham os problemas. Disputa foi entendida de diversas maneiras, mas, tanto esquerda como direita, principalmente como contradio. No seu sentido estrito, a contradio, como juno de uma proposio e sua negativa, bloqueia o pensamento, porquanto sendo posta, dela se pode deduzir qualquer sentena. Hegel faz dela o ncleo de qualquer devir, mas para isso pensa o ser e o nada se determinando mutuamente vindo a ser a partir dessa tenso. Ao pensar a luta de classes como uma contradio, Marx se ajusta a esse modelo. Somente assim pode ver nos conflitos do capital e do trabalho um vetor que os supere e conserve suas potencialidades, criando outra figura que abriria uma nova poca da histria. No entanto, se a contradio uma figura do discurso, como ela pode penetrar todo o real? Se ambos, o discurso e o real, tiverem a mesma estrutura.

Marx nunca poderia aceitar esse idealismo. Mas essa recusa deixa uma sobra no seu pensamento poltico. A passagem do capitalismo para o socialismo demanda a destruio do Estado, que no fundo a imagem das relaes capitalistas posta a servio delas, e a substituio da poltica pela organizao racional dos assuntos humanos. O resultado, como sabemos, foi o terror revolucionrio, cada vez mais terror quando se tornava menos revolucionrio.

Contrapondo-se fervorosamente ao marxismo, o jurista alemo Carl Schmitt tambm pensou a poltica como uma contradio, aquela entre amigos e inimigos, que articularia os homens antes mesmo que o Estado se organizasse como instncia do poder. Contradio que se resolve quando os amigos se aglutinam num soberano, aquele capaz de decidir os casos de exceo. Nada mais natural que aderisse ao nazismo.

Obviamente no tracei mais do que a caricatura desajeitada dos problemas que pretendo estudar. Mas o caminho mais rpido para sublinhar que, ao partir da contradio para tentar entender a poltica, abre-se uma brecha que encaminha a deciso para o lado do terror. Compreende-se, assim, porque alguns autores ou mergulham na soluo bem ajustada do comportamento racional em vista dos fins dados, ou nos equilbrios do contrato social. No entanto, mudamos de patamar se levarmos em conta que os conceitos de contradio e de deciso ganham novo sentido depois do tsunami que atingiu a filosofia no sculo XX. Alis, a histria da filosofia no a narrao dessas grandes avalanches? De um lado, a fenomenologia heideggeriana retoma o conceito de prxis, dando enorme nfase s questes relativas deciso, entendidas muito mais como abertura para o Ser do que atividade meramente humana. E a abertura para o Ser configurada pela linguagem. De outro lado, Wittgenstein, ensinando que o sentido das palavras se articula nos seus usos, passa a estudar a contradio no nvel das linguagens cotidianas. Definida formalmente, ela vale to s para os sistemas formais, deixando na sombra seu funcionamento nos vrios nveis do contradizer. Nesse novo universo, a contradio passa a ter um significado, o que no acontecia na lgica formal enquanto ela manteve a matriz aristotlica. E, provida de significado, ela nos encaminha para um novo questionamento da poltica.

Esse ltimo ponto tratado no Apndice, que se ocupa particularmente com Wittgenstein. Seria melhor que fosse lido como uma introduo preparatria, mas, considerando sua relativa dificuldade, talvez seja conveniente mord-lo no final. A dificuldade que esse texto est sempre presente.

Convm indicar queles poucos amigos que me tm lido no decorrer dos anos, o salto que este novo texto pretende dar. At agora no tinha me dado conta do alcance do potencial explicativo que ganha a contradio quando passa a ter sentido. Ao invs de se reduzir conjuno de um signo proposicional e sua negao, ela passa a articular uma proposio em ato e o ato de sua negao num determinado jogo de linguagem. Consiste numa atividade de contra-dizer que, se no exprime algo, no deixa de exteriorizar o bloqueio de duas atividades expressivas, as quais incitam uma deciso que, como tal, abre novas formas de exprimir, alimenta um novo jogo de linguagem e novos procedimentos de juzos.

Muitas vezes, inspirado em Carl Schmitt, j me referira poltica como o conflito entre amigos e inimigos, mas como um dado que me obrigava a pens-la at suas razes, quando os agentes se defrontam dispostos a arriscar suas prprias vidas. Agora essa oposio passa a fazer parte da essncia da poltica, ou melhor, determina uma regra a ser obedecida pelos agentes para que eles prprios se tornem polticos. Procuro agora descrever o jogo de linguagem que articula a poltica, descrever a sua gramtica. Procedo, pois, a uma anlise conceitual.

Ao ser vista como contradio significativa a luta entre amigos e inimigos passa a exteriorizar uma comun-idade entre eles, uma mesmidade, que embora no seja algo pressuposto, no um nada. Vem a ser graas exteriorizao de que, no limite, os agentes se dispem a morrer para manter suas formas de vida em dissonncia. E assim pensando, livro-me da tradio grega que considerava a poltica na polis, ou na mesma linha, no contrato social, na imaginao, no Esprito Absoluto e assim por diante. Noutras palavras, deixo de ser obrigado a supor que a poltica se realiza numa sociedade j pronta para poder pens-la como o que apronta a sociedade para novas decises.

Alm do mais, se a contradio quebrada pela deciso, esta no nasce to s de um ato criador totalizante, mas da instalao de novos jogos que abrem o espao para poder dizer o sim, o no, assim como para recuperar certas bases indubitveis que amigos e inimigos possam acolher. Por isso, a contradio poltica melhor se resolve na democracia, quando os representantes de cada grupo performam suas representaes levando em considerao a atividade dos inimigos.

Por fim devo agradecer meus balizadores de sempre: Luciano Codato, Luiz Henrique Lopes dos Santos, Mrcio Sattin e Marco Zingano.

So Paulo, julho de 2014

A CONTRADIO RENOVADORA

Nem todos os sentidos de uma ao poltica podem ser apreendidos pelos mtodos cientficos. Estes formam hipteses sobre causas e sentidos da ao, as quais devem ser verificadas para que possam integrar uma teoria. A teoria explica fatos dados ou que podem acontecer segundo a lgica de tais dados; fatos que j se colocam numa dada regio do ser. Mas uma declarao de guerra, por exemplo, s se torna objeto de cincia depois de proclamada. Cientistas e analistas podem prever que ela v acontecer, conforme o conhecimento que possuem da situao de conflito, mas o ato de declar-la consiste numa deciso, numa escolha entre vrias solues possveis do conflito, a que em geral correspondem vrios esquemas explicativos possveis lutando para que sejam aceitos. Costuma-se imaginar que o progresso das cincias ir decidir qual ser a explicao validada. Mas por trs dessa crena da progresso linear da explicao cientfica reside a crena de que os acontecimentos seguem leis naturais como se fossem trens que pudessem continuar andando at ao infinito em trilhos paralelos. A linguagem cientfica seria como papel carbono que recolhesse os pormenores do real positivo, sem introduzir uma perspectiva eminentemente sua.

Para compensar esse ultrapositivismo, filsofos costumam ensinar que, alm das causas existem valores, parmetros daquilo que deve ser. E o valor no uma causa, precisamente porque, segundo sua prpria natureza, no precisa ser seguido. Um chefe de estado se v forado a declarar guerra ao inimigo. Vrias causas o impelem a tomar essa deciso. Mas como um cristo pacifista simplesmente no a declara, mesmo sabendo que isso poder causar a runa de seu pas. Fidel Castro no aceitou que, numa guerra nuclear desejada entre USA e a Rssia valeria a pena Cuba deixar de existir?

A separao entre fato algo que simplesmente e valor algo que simplesmente deve ser tornou-se moeda corrente no pensamento do sculo XIX. No resulta, porm, de certa concepo do que , do ser, que o configura como algo subsistente por si mesmo? Mas se o ser fosse um dar-se, que se expe assim como se esconde? A linguagem da cincia seria incapaz de apreend-lo. Mas no preciso chegar a essa posio extremada, de Martin Heidegger e de seus afilhados, para recusar essa oposio entre fato e valor. Basta reconhecer, como faz o segundo Wittgenstein, que a linguagem funciona como uma caixa de ferramentas, cujos instrumentos possuem aplicaes especficas ou diversificadas , para que caia por terra essa rgida oposio entre fato e valor. Uma sentena como O metro tem 100 centmetros pode ser usada para explicar quanto vale um centmetro ou para explicar o fato de que esta barra no tem um metro.

Preferimos caminhar nessa direo. Desse ponto de vista, uma declarao de guerra no se resume num nico de ato de fala que exprime uma deciso que faz algo acontecer como um raio caindo no campo. Foi precedida de outras falas entre amigos e inimigos que diplomaticamente trabalhavam, uns para que a guerra no fosse declarada, outros, para que ela acontecesse, prevendo que traria grandes vantagens para seu grupo ou seu povo. As tratativas anteriores a favor ou contra a guerra seguiam estratgias, as falas e os gestos obedeciam regras em que vrios interesses se cruzavam e assim por diante. Toda essa trama de aes que resultou na declarao de guerra como um jogo, aparece como se fosse um drama real em que o destino de muitos, em particular, de duas naes, se resolve. Desse modo, o simples enunciado da declarao no pode valer como se fosse apenas uma proposio que, performaticamente, se torna verdadeira. Fazendo parte de um jogo de linguagem, a declarao vem a ser uma proposio no conjunto de algumas outras. Se, por exemplo, foi proferida em portugus, valendo, pois, como exemplo das sentenas de uma lngua travejada por uma gramtica prpria, ao participar de um determinado jogo de linguagem est se articulando com outras proposies que podem ser verdadeiras ou falsas, que seguem regras que sero expressas por proposies, no caso indubitveis, fora do jogo da bipolaridade do falso e do verdadeiro.

A declarao de guerra no ser entendida nem como o efeito mecnico das causas que a informaram, nem como um momento nico em que um sujeito se afirma, mas como lance de um jogo, por certo regulado por suas prprias regras, mas que, numa situao em que o jogador est acuado, ele escapa do esquema armado e inicia uma nova jogada pulando de um esquema de ao para outro que passa a ser regulado de outro modo inventado no momento. Decidir abrir novos jogos de linguagem, obviamente sem perder a caracterstica de vir a ser a partir de uma deciso que ultrapassa o jogo anterior que chega a uma situao limite. Na poltica encontramos exemplos desses momentos privilegiados. Como se estruturam eles?

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A VIOLNCIA DA VITRIA: O CASO GREGO

Estudaremos alguns fenmenos polticos desse ponto de vista, isto , dos jogos de linguagem em que eles se desdobram e vm a ser ditos. Sabemos que o discurso da filosofia poltica , em geral, recheado de termos gregos. No toa que a palavra poltica procede de polis. Mas convm perguntar se, alm do vocabulrio, ele ainda no conserva traos de certos pressupostos ligados lgica e metafsica antigas, aos modos pelos quais os gregos diziam e viviam o ser da polis. Mas h um ponto que precisamos repisar desde o incio: o discurso poltico no procura apresentar fatos verdadeiros, ainda que os aproveite para montar seus argumentos, ele est a lguas de distncia do discurso asseverativo das cincias. Se, por certo, utiliza argumentos cientficos, seu intuito convencer em vez de mostrar a verdade. Por isso Aristteles no o estuda nos seus livros de lgica, quando o exame do logos marca as mais diversas maneiras do ser, mas o remete basicamente retrica, anlise da argumentao. Obviamente esse tipo de anlise no disputa terreno com as cincias polticas mais globais, mas procura apenas resguardar seu ponto de vista.

No h como fazer aqui um balano de tudo que o discurso poltico contemporneo deve ao grego. Se esse fosse nosso propsito, no mnimo deveramos comear examinando a poltica de Plato. Ao pedir que Aristteles abra as portas de nosso texto, queremos unicamente ressaltar alguns aspectos de antigos conceitos que ainda sombreiam nossa linguagem poltica. O filsofo inicia seu livro sobre a poltica escrevendo que toda polis uma espcie de comum-idade (koinnia), forma em vista de algum bem, no caso, o maior deles, porquanto inclui todos os outros que dizem respeito aos cidados que nela vivem em busca da felicidade. Mas a prioridade da polis sobre o indivduo no impede que sua construo seja pensada a partir dele. O indivduo participa da polis na medida em que integra trs relaes de dominao: do marido sobre a mulher, do pai sobre os filhos, do mestre sobre os escravos. Aristteles por certo ressaltar, contra Plato, que a dominao poltica, precisamente porque visa o bem supremo, no se confunde com a dominao do pai sobre a famlia. Mas desde logo de estranhar que os escravos participem da comum-idade da polis embora no sejam dotados dos direitos dos cidados. Colocam-se ento dois problemas intimamente ligados: qual o pleno sentido dessa comum-idade e que posio tinha nela o escravo? A unidade poltica grega no nasce de uma partio, de uma excluso radical?

Tentaremos dar respostas muito breves a essas questes. Ao traduzir koinnia por comun-idade, salientamos nessa unidade comum a mesmidade que a polis assume em vista de seus membros, cujas aes devem visar o bem comum. Trata-se, pois, de uma unio em vista de um destino. Qual o sentido da excluso dos escravos? No mais do que um ato de fora? Visto como mera fora de trabalho s pode participar da vida social na medida em que integra o corpo de suas condies materiais.O prprio Aristteles os nomeia "instrumentos animados"*, organa empsucha, Poltica (I, 4, 1253b28. No seria essa a fonte da expresso latina instrumentum vocale?

Qual pois o sentido dessa participao excludente? Convm ter todo o cuidado para no confundir a escravido clssica com a moderna, principalmente aquela que vigorou nas Amricas. Por aqui havia um verdadeiro mercado de escravos, alimentando a expanso do capitalismo martimo e comercial, preparando nossa sociedade industrial. Nessa poca basicamente uma mercadoria configurando parte do capital varivel empregado nas colnias, enquanto o escravo antigo, em particular o grego, trabalhava para a sobrevivncia da populao, Era indispensvel, participava da polis como um meio oculto de sua apresentao. O deus ex machina, que era depositado no palco para dar uma saa a um impasse, no era propriamente um ator, mas participava da tragdia.

Nos tempos homricos pensado como prisioneiro de guerra; com o desenvolvimento da riqueza, aparece a escravido por dvidas, que logo, porm, foi abolida. Em geral era comprado no mercado, ainda que no houvesse a inteno de gerar lucros. Muitos trabalhavam nas minas de prata do Laurion, cuja produo assegurava o funcionamento da prpria polis; outros, nas propriedades agrcolas, que, no podendo ser muito grandes dadas as condies topogrficas da Grcia, abasteciam os postos de mercado da cidade e seu pequeno comrcio exterior. Alguns ocupavam cargos na administrao pblica, mas grande parte era companheiro de trabalho ou ajudante na vida cotidiana. Qualquer grego desejava ter um escravo, instrumento vocal que lhe evitasse as agruras do trabalho cotidiano.

A relao entre homem livre e escravo , na Atenas democrtica, muito peculiar. Em O que a poltica, Hannah Arendt descreve a democracia ateniense como um amplo foro de discusso entre homens livres, de sorte que a essncia da democracia seria a prpria liberdade. Logo vem a pergunta: como foi possvel tanto lazer para que as pessoas pudessem se dedicar vida pblica? Quantos deveriam trabalhar por elas? O nmero de escravos em Atenas at hoje uma questo duvidosa. Se no sculo V a.C sua populao total era de 200 mil habitantes, calcula-se que por volta de 50% era escrava. Mas somente uns 10% gozavam de plena cidadania; outros eram comerciantes estrangeiros etc.

Atenas, porm, recebia importantes recursos de seu pequeno imprio. Liderou a formao da Liga de Delos, reunindo no mesmo sculo V vrias cidades gregas que precisavam enfrentar a ameaa persa. Todas pagavam um tributo, depositado em Delos, mas que logo foi transferido para Atenas. Ela durou at o fim da Guerra do Peloponeso (404 aC), quando Esparta, depois de um longo conflito,venceu a supremacia ateniense * Cf. os clssicos livros de Moses F. Finley , Ancient and modern Democracy e Ancient Slavery and modern Ideology. Finley nos adverte que, nas colnias da Amrica, o escravo-mercadoria sempre poderia ser substitudo por outro comprado no mercado, constantemente abastecido pelos navios vindos da frica, Valia, portanto, como uma espcie de argumento de uma varivel de uma funo. Na Antiguidade, porm, a demanda de escravos precede a oferta, de sorte que cada um aparece como algum que foi colhido para desempenhar uma funo, perdendo assim sua liberdade. No entanto, a no ser em Esparta, no que respeita aos hilotas, uma populao inteiramente subjugada e incrustada na cidade, os escravos gozavam de determinados direitos, no perdendo, pois, inteiramente a qualidade de ser humano, embora como propriedade de outrem. Da um antagonismo larvar entre eles, seres providos de direito embora desprovidos de liberdade * M. Finley,Ancient Slavery and modern Ideology p.93 trad. francesa.

No que concerte particularmente a Atenas, N. Fischer tira duas concluses importantes. O funcionamento da escravido. era considerado essencial para os atenienses, que no concebiam outro modo de produo e de vida. Por certo at hoje nem sempre h acordo a respeito de seu papel na sociedade ateniense, mas no se punha em dvida que os escravos faziam parte da sua com-unidade, como alis testemunha o texto de Aristteles citado acima (Poltica I, 4). Alm do mais, a distino entre livres e escravos uma das antteses mais importantes e determinantes nas estruturas do pensamento e dos valores morais dos atenienses (e provavelmente de outros gregos). Essa polaridade desempenhou papel importante na formao ateniense de suas identidades e ideais como homens livres e independentes; alm do mais, na medida em que se colocam como gregos, nela percebem a marca de sua liberdade, mais forte e avanada do que em qualquer estrangeiro. Tambm afetou profundamente suas atitudes e julgamentos morais dizendo respeito a muitos assuntos relativos vida econmica, social e sexual *N.Fischer, Slavery in Classical Greece, p.108.

Acredito ser necessrio indagar com cuidado a natureza dessas antteses que dominam o pensamento e a vida dos atenienses. interessante notar desde logo que Aristteles, embora seja um obstinado defensor da escravido, ao insistir no seu carter humano, termina caindo em contradio com outras passagens a ele atribudas, como se verifica no pormenor num lindo ensaio de Victor Golschmidt. Ao estudar a tripla relao pela qual o indivduo grego se integrava na polis, Goldschmidt nota que, se a famlia a clula originria da sociedade, nela j comparecia a relao mestre /escravo. Como entender a relao entre eles? Do ponto de vista da physis, porque uns nascem para mandar, outros para obedecer. Quando se passa, entretanto, para o plano do processo judicirio, como Aristteles no concebe a justia com o direito do mais forte, dessa perspectiva a escravido deve ser justa. Entretanto, que espcie de justia pode valer entre mestre e escravo? Mas se verdadeiro, como Aristteles assumiu desde o incio, que s o homem livre, de corpo e alma, conforme natureza, claro que a lgica interna da doutrina recomendava tratar o homem servil como um pecado dessa natureza, devendo, pois, ser tratado pela arte [medida], para recompensar essa falta. Deveria assim ser educado para a liberdade, em vez de naturalizar essa carncia, em vez de ser interpretado, contraditoriamente, no como um fracassado, mas estando conforme a uma inteno diferente da natureza, aquela de produzir escravos * La thorie aristotelicienne de lesclavage, p, 79,crits, tome 1, Vrin, 1984. O naturalismo de Aristteles, pergunta Goldschmidt, no termina abalando essa instituio, em vez de justific-la?

N. Fischer aponta antteses na instituio da escravatura. Golschmidt mostra que a anlise feita pelo grande Aristteles termina numa contradio. Sobre esse ponto Plato era mais coerente, pois na Repblica (VIII,549a) simplesmente afirmava que uma pessoa perfeitamente educada despreza seus escravos. Mas se essas contradies j davam o que pensar para os prprios gregos, no h dvida de que os escravos eram radicalmente separados da vida poltica, principalmente em Atenas. Qual o sentido dessas vrias excluses que terminam, no plano poltico, numa espcie de contradio? *Para um exame mais cuidadoso do conceito de contradio convm se reportar ao Apndice A antiga luta de classes, que se dava entre aristocratas e plebeus, no pressupunha uma contradio maior entre homens livres e escravos?

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O TERROR REVOLUCIONRIO

No incio do mundo moderno europeu o grosso da escravido foi relegado para a periferia e a violncia interna se exerceu como guerras de religio. Se, em 1598, Henrique IV assina o dito de Nantes, conferindo liberdade aos protestantes, no por isso que a luta pela conformao do poder monrquico se separa da luta pela liberdade das conscincias, pelo menos at 1648, com a Paz de Westflia. Pouco mais de um sculo depois, em 1762, Jean Jacques Rousseau publica Do contrato social, que funde num nico esquema os anseios da liberdade da conscincia com as disputas dos juristas a respeito dos indivduos e dos povos. Mas nesse libelo pela liberdade dos indivduos vamos encontrar a semente de uma nova violncia excludente, o terror revolucionrio.

Ao responder queles que perguntavam como um homem pode ser livre quando forado a obedecer a vontades alheias, Rousseau d uma resposta radical: Respondo que a questo est mal posta. O cidado consente a todas as leis, mesmo quelas que foram aprovadas contra sua vontade, at mesmo aquelas que o punem quando ousa violar uma delas. A vontade constante de todos os membros do Estado a vontade geral; pois por meio dela que eles so cidados e livres. Quando se prope uma lei na assembleia do povo, o que se lhes pede no precisamente que aprovem a proposio ou a rejeitem, mas se est conforme ou no vontade geral que a deles. Cada um, ao dar o seu sufrgio, diz sua opinio a respeito, e do clculo dos votos se tira a declarao da vontade geral. Quando pois vence a opinio contrria minha, isto nada mais prova seno que eu estava enganado e o que eu estimava ser a vontade geral no o era. Se minha opinio particular tivesse vencido, no teria feito o que teria querido, ento que no teria sido livre *Du Contract Social, IV,II, p.440/441, vol.III,Pliade. Um dos monumentos da luta pela liberdade dos homens tambm claudicou.

Muito se insiste em que a vontade geral no a soma das vontades particulares, mas nem sempre se registra que, a despeito de ela ser computada a partir dessas vontades particulares, depois que se conformou, as vontades particulares contrrias deixam de ser propriamente contrrias, deixam de se oporem num terreno comum para se converterem numa oposio sem pontos de contato: o voto contrrio se reduz a um mero erro do julgar.No caso da regra, obedece a outra, fora de seu universo. Notem-se aqui dois problemas: a constituio de uma vontade substancial devoradora do particular e o prprio significado do contra-dizer.

O terror a consequncia imediata dessa inteireza da vontade substancial sem fissuras, padro e efeito das condutas morais. Por certo Rousseau inspirou valorosas lutas pela liberdade. Gostaria apenas de apontar um ponto cego na sua teoria do contrato, ligado a uma reminiscncia de um conceito de substncia que, posto como unidade mxima, termina por lhe emprestar uma feio devoradora. Tomadas as precaues devidas, isto se encontra at mesmo entre os nominalistas. Tambm Thomas Hobbes no se embrenha neste caminho escuro? No captulo XVII do Leviat, depois de enumerar as cinco causas que impedem que os homens naturalmente se ajustem numa Common-wealth, numa Civitas, ele escreve: O nico meio para erguer esse poder comum [ matriz sem fissura, diremos ns] ... conferir todos os seus poderes e foras a um nico homem ou a uma assemblia de homens que possa reduzir todas as suas vontades, pela pluralidade de votos, a uma nica vontade:*Leviathan, p. 131, Oxford, at the Clarendon Press, Ed. de 1651. E Hobbes prossegue explicitando que essa unidade real somente poder ser efetivada quando as diversas vontades forem, no que concernem paz comum e segurana, unificadas numa nica fora, numa espcie de Deus Mortal: Por meio dessa autoridade, conferida a ele por cada homem particular na Common-wealth, -lhe conferido o uso de tamanho poder e fora que, do terror da decorrente, ele se torna capaz de conformar as vontades de todos para a paz no lar e ajuda mtua contra os inimigos externos . E nele consiste a essncia da Common-wealth, que assim definida: Uma nica pessoa (one person) de cujos atos uma grande multido, mediante pactos recprocos, se institui como autora a fim de poder usar a fora e os recursos de todos, sendo instituda por cada um como autora, a fim de que ela possa usar a fora e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum *Leviathan, II, cap. XVII, p.132. Mediante um contrato abrangendo todos os atos dos sditos forma-se um poder soberano que vale pelos atos de qualquer um. A multiplicidade das vontades se conforma numa vontade nica, vrias pessoas se conjuntam numa s pessoa. Essa arch ab-soluta no pode comportar qualquer contradio interna.

At hoje a teoria do contrato social encontra acolhida entre os melhores pensadores. No mais se discute se ele se torna necessrio porque os seres humanos so naturalmente bons ou maus. A tendncia tom-lo como condio de possibilidade do exerccio da democracia, ou ainda de uma convincente teoria da justia. Sob esse aspecto, o contratualismo de Hobbes, a despeito de ser processado de modo peculiar, tem as mesmas consequncias do contratualismo de Rousseau. Sejam os seres humanos maus ou bons, o contrato que eles travam possui a mesma caracterstica avassaladora: a vontade geral sempre faminta. No deriva essa gula da formalizao por que passa um contrato jurdico? Este, diferentemente do acordo, pressupe a existncia de um rbitro capaz de julgar os casos em conflito, inclusive aqueles em que a vontade de um contratante ultrapassa o que um ser razovel deve querer. O tribunal no anula o contrato leonino? Ambos querem a mesma coisa, mas em propores diferentes. Em contrapartida, no contrato social, cada contratante entrega autoridade sua prpria faculdade de querer. Quando entra em minoria, seu querer anterior deixa de querer aquilo porque devia ter querido outra coisa. O conceito de contrato social somente tem sentido se houver um deslizamento do conceito de contrato tal como ele funciona nos tribunais. As teorias do contrato social supem uma vontade numnica ou um jogo, pressuposto mas no exercitado, para formar o consenso.

Num nvel meramente conceitual e formal, terror e virtude se entrelaam. Como era de se esperar, de Saint-Just que vem a frmula mais precisa: h uma fuso harmoniosa das conscincias de cada um dos membros de uma sociedade. Ela ainda mais do que sua finalidade, com efeito, cada conscincia possui um sentimento de justia e uma inclinao para o bem, existe uma conscincia pblica que uma inclinao universal para o bem. *in Ladret,Albert: Saint-Just ou les vicissitudes de la vertu, p. 252; PUF Lyon. Sade acabara de escrever: Justine ou les malheures de la vertu. O puro e o perverso aceitam o mesmo padro de virtude, embora o primeiro a impe a ferro e fogo e, o segundo, a viola at o fim. A conscincia universal recusa fragmentaes enquanto o esprito raciocinador produz o dissenso: preciso conduzir todas as definies conscincia; o esprito um sofista que conduz as virtudes ao cadafalso * Idem, p. 252. Da a reviravolta nas relaes de poder: Os infelizes so as potncias da terra. Possuem o direito de falar como mestres aos governos que os negligenciam*Idem p.78. Mas na medida em que a revoluo demanda a incluso dos despossudos no todo virtuoso da nao livre, a liberdade necessita do terror inclusivo.

Robespierre o taumaturgo dessa virtude revolucionria. Qual o sentido desse terror virtuoso? Nos seus Essais sur le politique, Claude Lefort, analisando o extraordinrio discurso proferido em 11 de maro de 1792, mostra passo a passo o jogo totalitrio da argumentao. O Comit de Salvao Pblica havia prendido Danton e seus amigos. Robespierre se precipita para a Conveno com o intuito de evitar que ela ouvisse os girondinos e, convencida por eles, revogasse a priso. O argumento direto: no pode haver fissura entre as instituies da Repblica: a Conveno e o Comit so um s, bloco inteirio que configura a prpria com-unidade do povo: tudo se deduz do princpio de identidade entre o povo, a Assembleia, os Comits de justia; o princpio interdita todo questionamento sobre a legitimidade e a pertinncia das decises tomadas *Claude Lefort: Essais sur le politique, p. 87, ditions du Seuil,1986. E Lefort ainda sublinha a importncia das variaes dos pronomes usados pelo orador que passa do on, do vous e do nous para insinuar uma difusa ameaa contra os ouvintes. Num momento crtico ele mesmo se nomeia: Eu digo que qualquer um que tremer neste momento culpado, pois nunca um inocente teme a vigilncia pblica. E tudo se passa como se o orador estivesse dizendo que qualquer um que falasse neste momento culpado. Robespierre no teme. Posta essa integrao dos corajosos no seio da nao, no h porque ouvir os condenados e os meandros de suas defesas.

No deixa de ser sintomtica a maneira pela qual Slavoj Zizek se contrape a Lefort em defesa do terror revolucionrio: Robespierre, no tendo medo da morte, ao invs de manipular seu auditrio de modo totalitrio, no estaria afirmando a independncia do sujeito face ao indivduo emprico enquanto ser vivo? Essa defesa da subjetividade revolucionria tem razes profundas que se ligam a uma corrente do pensamento francs do fim do sculo passado, em particular Lacan, Deleuze e Foucault. Sigamos algumas pistas de Zizek, que nos levam a repensar certos cacoetes de alguns pensadores brasileiros que se creem de esquerda, embora cultivando um decisionismo la Heidegger.

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DISPOSITIVOS DA DOMINAO

Vale a pena nos demorarmos no caso de Foucault. Durante as lutas que levaram queda de Reza Pahlavi, foi tomado por um entusiasmo fervoroso pela Revoluo Iraniana; organizou uma equipe que pudesse acompanhar o processo passo a passo e publicou uma srie de notveis artigos, trabalhado como um verdadeiro historiador jornalista. Ressaltaremos apenas alguns aspectos que ele nota no processo revolucionrio.

Foucault inicia o artigo de Le monde de 11-12 de maio de 1979 citando dois motes da revoluo: Para que o x v embora estamos prontos a morrer, diziam os revoltosos, mas o aiatol Khomeyni j marcava a diferena: Que o Ir sangre, para que a revoluo seja forte. No ressalta essa diferena de perspectiva entre aquele que est disposto a morrer e o chefe religioso que deixava morrer para que essas mortes purgassem a Revoluo? O sacrifcio no lhe daria uma tonalidade religiosa? Pode-se ver a um exemplo extremo do poder pastoral, mas daquele que, cuidando de seu povo como o pastor de seu rebanho, deixa que o lobo sacrifique alguns cordeiros.

Como sabemos, Foucault um nominalista consequente, no acredita nem na vontade geral separada das pessoas, nem no sujeito como unidade transcendental. Mas observa que, na revoluo iraniana, a unnime oposio ao x fez com que todas as diferenas desaparecessem e se aglutinassem numa nica demanda: que ele morresse para que se possa viver sob as leis do Coro. O que confere sua intensidade ao movimento iraniano foi seu duplo registro, uma vontade coletiva muito afirmada e, de outra parte, a vontade de uma mudana radical na existncia; vontades aglutinadas por um desejo". *Dits et crits, 1979, p. 754. Em contrapartida, esse desejo coexistindo na insurreio propicia a individualizao dos atores: E por que o homem se levanta finalmente sem explicao, preciso um desenraizamento que interrompa o fio da histria e suas longas cadeias de razo, para que um homem possa, realmente, preferir o risco de morrer certeza de ter de obedecer*Dits et crits, II,p.791. Depois de apontar a presso dos religiosos para conter o impulso revolucionrio, volta a sublinhar o aspecto renovador do processo: As pessoas se revoltam, um fato; e por a que a subjetividade (no aquela dos grandes homens, mas aquela de qualquer um) se introduz na histria e lhe d seu sopro. Um delinquente coloca sua vida em risco contra um castigo abusivo; um louco no pode mais ser encarcerado e diminudo; um povo recusa o regime que o oprime. Isso no torna o primeiro inocente, nem cura o outro, assim como no assegura ao terceiro os prximos dias prometidos. Ningum, alis, obrigado a ser solidrio a eles. Ningum obrigado a achar que essas vozes confusas cantam melhor do que as outras e dizem o fundo fino da verdade. Basta que elas existam e que tenham contra elas tudo que se encarnia para fazer com que calem, para que tenha sentido escut-las e procurar o que querem dizer* Dits et crits, II , p.795.

No h dvida de que Foucault retorna frmula da vontade geral e da liberao da subjetividade, mas sem lhe imputar qualquer fora produtiva; os termos gerais servem apenas para descrever situaes que num momento se cristalizaram. Foucault est abrindo novas veredas que o levaro ao estudo do nascimento da subjetividade moderna e das formas de poder. Estas se enrazam nessa subjetividade e a configuram, de sorte que, em vez de estudar as instituies, foca nelas as prticas conformativas: O exerccio do poder consiste em conduzir as condutas e coordenar a probabilidade. No fundo, o poder menos da ordem de enfrentamento entre dois adversrios, menos do que o engajamento de um a respeito do outro, do que ordem de governo * Dits et crits, II. p,314. O ponto de partida o estudo das diversas formas de resistncia aos diferentes tipos de poder, salientando as diferentes formas de confronto: De uma maneira geral, pode-se dizer que h trs tipos de lutas: aquelas que se opem s formas de dominao (ticas, sociais, religiosas); aquelas que denunciam as formas de explorao que separam os indivduos do que eles produzem, e aquelas que combatem tudo que liga o indivduo a si mesmo e que asseguram, assim, sua submisso aos outros (lutas contra a sujeio, contra as diversas formas de subjetividade e submisso) * Dits et crits, II , p. 303. No segundo plano se situa o poder do Estado moderno, quando o confronto vem a ser subsumido pelos problemas das governabilidades.

Esse poder, agora se exercendo sobre o que ser chamado a sociedade civil, termina absorvendo outras formas de luta. Isso, em primeiro lugar, porque herdou o poder pastoral que se constituiu e imperou no fim da Antiguidade, quando os poderosos passaram a cuidar da alma de seus sditos. Mas o faz agora cuidando de todos os cidados mediante suas instituies, racionalizando e centralizando os modos de governar. Nessas prticas governamentais cabe distinguir ao menos trs nveis estratgicos: 1) aquele que racionaliza para obter um objetivo definido; 2) aquele que tenta apreender o outro; 3) aquele que procura privar o adversrio de seus meios de combate, obrigando-o a reduzir ou diminuir a luta: trata-se ento de meios destinados a obter a vitria *Dits et crits, II, p.319.Todas essas formas de confronto se condensam , por fim, na guerra que impede o outro de lutar.

Nas descries variadas das prticas e processos nos quais o sujeito se insere ou no para se transformar ao longo da histria, Foucault finalmente termina encontrando um fio que aponta para o conflito em busca da vitria. E nesse ponto hesita entre a exaltao do sujeito que rompe qualquer estrutura e se coloca como sujeito dominador, de um lado, e sua conformao pelas prticas histricas. O publicista Zizek salienta o primeiro aspecto, associando-o negao do grande Eu por Lacan e ao anarquismo de Deleuze. Deste cita um texto em que, depois de criticar a moda contempornea de denunciar os horrores da Revoluo, explicita: Mas est sempre confundindo duas coisas, o futuro das revolues na histria e o devir revolucionrio das pessoas (des gens). Nos dois casos no so as mesmas pessoas. A nica chance dos homens no devir revolucionrio, o nico que pode conjurar a vergonha ou responder aos intolerveis *Pourparlers, Minuit, 1990, p. 231: Zizek, idem,p. 54. Na calmaria da vida cotidiana alienada, a insurreio o nico momento da emergncia do sujeito.

No entanto, o momento da insurgncia vale, sobretudo, integrando-se nas estratgias do poder. Foucault antes de tudo um extraordinrio historiador. Contra a lgica dialtica que joga com os termos contraditrios no elemento do homogneo, antepe outra: Uma lgica da estratgia [que] no faz valer os termos contraditrios num elemento do homogneo que promete sua resoluo numa unidade. A lgica da estrategia tem por funo estabelecer quais so as conexes possveis entre os termos disparatados e que permanecem disparatados. A lgica da estratgia a lgica da conexo entre os heterogneos e no a lgica da homogeneizao dos contraditrios. * Naissance de la biopolitique p.44, Gallimard Seuil, 2004. graas a essa lgica da estratgia que, depois do nascimento da biopoltica a partir do sculo XVIII, da disciplina que se ocupa do bem estar das populaes, pretende mostrar quais so as conexes que lograram unificar a axiomtica fundamental dos direitos do homem e o clculo utilitrio da independncia dos governados. Uma nova tcnica de governabilidade, conhecida sob o nome geral de liberalismo.

Em vista do caso de Foucault, importa-nos agora, de um lado, essa erupo histrica do sujeito alm das prticas que o conformam, de outro, o recurso a novos modos da contradio explorados pela filosofia da lgica. Nossa anlise tem no horizonte dois vrtices do modo de pensar do sculo XX que, a despeito de desafiarem toda a sua estrutura, de certa forma tm sido empurrados para as sombras do esquecimento. Os fracassos, o do Tractatus e aquele de Ser e tempo, obrigam-nos a retomar o questionamento da linguagem e do ser.

Convm retomar, em linhas gerais, a matriz heideggeriana de grande parte do pensamento francs do sculo XX, inclusive Foucault. J em 1929 Heidegger comea a virada de suas investigaes. Em 1934, logo depois de abandonar a reitoria da Universidade de Friburgo, retoma suas aulas, mas, em vez de tratar do Estado, como havia programado, examina A lgica como pergunta pela essncia da verdade * Logik als die Frage nach dem Wesen der Sprache.GA,vol.38.Trata-se, usando um conceito foucaultiano, de um novo regime de verdade que marca a misso histrica da Alemanha contrempornea. Interessa-nos o mtodo. Se a lgica tradicional, ainda pensada como teoria do logos, se desenvolve exclusivamente no plano da linguagem, cabe indagar pelas estruturas existenciais antepredicativas que sustentam e do sentido ao discurso, este passando a ter, como parmetro, o questionamento e o pensamento do Ser. A ao de falar retm o Ser e marca seu sentido historial. A nova Alemanha deve responder a esse apelo.

Como j ensinara Ser e tempo, a ao (Handlung ) do homem ocorre entre o estar aberto (Erschlossenheit) do Dasein e o estar decidido (Entschlossenheit), abertura e deciso ou resoluo. Heidegger no emprega o termo ao, precisamente para dar a ela um sentido tanto positivo quanto negativo, uma dimenso ativa assim como passiva, capaz de resistir. O ser do homem primeiramente como verdade, como se abrindo para o mundo que vai alm dele, s existe como resoluo que se entende se projetando. A resoluo precisamente em primeiro lugar o projetar que abre e o determinar da possibilidade cada vez factual*SuZ, p.298. A resoluo um projetar-se para o futuro e um determinar de uma possibilidade factual, portanto ligada ao estar a do ser do homem, cuja temporalizao tem a morte como limite e assim se determina. Note-se que esse determinar nada mais tem a ver com a predicao. Esta, como sabemos, o nervo das determinaes do ser, segundo Aristteles. Mas se, para Heidegger, a determinao (Bestimmung) est ligada a uma tonalidade afetiva (Stimmung) como modo de o homem se abrir para o mundo, s podemos ganhar nossa essncia a partir do instante historial pelo qual assumimos essa nossa misso historial * Logik as die Frage...p.117. Projetado no mundo, o ser do homem estar a como cuidado, por conseguinte cuidado da determinao; mas confiado ao dar-se do ser para responder-lhe, o ser a do homem tambm liberdade: O cuidado da liberdade do ser historial em si o que autoriza que reine plenamente a potncia do Estado historial enquanto configura a essncia de uma misso historial *. Logik as die Frage...p.164. O novo Estado nazista responde a essa misso inserida no instante presente, instante que, como indica a etimologia da palavra alem (Augenblick), um piscar de olhos *Cf. Ser e tempo, p.338. que aglutina o tempo presente como um se dar diante do futuro assegurando o ter-sido.

Por que insistimos nesse ponto delicado do estruturar da deciso e da temporalidade cotidiana, tal como Heidegger a pensou? Simplesmente porque boa parte dos pensadores franceses da ltima metade do sculo XX, em particular Lacan, Deleuze e Foucault, pensam a deciso e a emerso da subjetividade mantendo essa matriz heideggeriana. E nessa conformao explosiva tanto pode alimentar o decisionismo reacionrio como o elogio da liberdade insurgente. Essa ambiguidade no se acentua ainda mais quando cultivada por pensadores que circulam na periferia do capitalismo?

O caso de Foucault mais nuanado. Nos seus estudos histricos pretende examinar como se estruturam universais como a loucura, a sexualidade etc. Examinando o poder do Estado como governabilidade do que a partir do sculo XVII passa a se chamar sociedade civil, o governo passa a tratar dessas estruturas postas disposio por uma nova cincia, a economia poltica. Foucault observa que este momento marcado pela articulao de uma srie de prticas de certo tipo de discurso que, de uma parte, o constitui como um conjunto ligado por um fio inteligvel e, de outra parte, legifera e pode legiferar sobre essas prticas em termos do verdadeiro e do falso *Naissance de la biopolitique,p.20, Gallimard Seuil, 2004. Constitui-se uma racionalidade peculiar, um regime de verdade que vem existncia por um lapso de tempo na histria.

No se trata do aparecimento de uma nova ontologia, mas de prticas que passam a ser ditas por uma nova trama racional. Por certo Foucault pretende inverter a posio de Heidegger. Numa conferncia de 1981 ele se explicita: Para Heidegger a partir da tekhn ocidental que o conhecimento do objeto selou seu esquecimento do Ser. Reviremos a questo e questionemos a partir de quais tekhnai se formou o sujeito ocidental e se abriram os jogos da verdade e do erro, da liberdade e do constrangimento que os caracterizam *Lhermneutique du sujet, p. 505, Gallimard Seuil, 2001. Mas o vir a ser dessa nova racionalidade no est ligado a um piscar de olhos que, em vez de provir do ser, provm agora do prprio sujeito?

No entanto, Foucault tambm se move noutra direo. No que toca contradio, recusa a soluo hegeliana. Vale a pena repetir seu argumento : Pois o que a lgica dialtica? Pois bem, a lgica dialtica uma lgica que joga com os termos contraditrios no elemento do homogneo. E a essa lgica da dialtica eu lhes proponho substituir, de preferncia, o que chamaria uma lgica da estratgia. E uma lgica da estratgia no faz valer os termos contraditrios num elemento homogneo que promete sua resoluo numa unidade. A lgica da estratgia tem por funo estabelecer quais so as contradies possveis entre termos disparatados e que permanecem disparatados ...Rejeitemos a lgica dialtica e eu tentarei lhes mostrar (durante o curso) quais so as conexes que puderam manter em conjunto, que puderam fazer se conjuntar a axiomtica fundamental dos direitos do homem e o clculo utilitrio da independncia dos governados *Naissance de la biopolitique, p.44, Gallimard Seuil, 2004.

Desconfio que o conceito clssico de contradio resvalou para um plano diferente do qual costuma ser usado. H uma axiomtica fundamental dos direitos humanos, um discurso jurdico a respeito dos direitos e dos deveres dos seres humanos em geral. Em contrapartida, conforme o liberalismo, na relao entre Estado e sociedade civil os indivduos tratam de agir a partir de seus interesses pessoais, segundo a lgica dos ganhos diferenciais, que cria um espao que o Estado tem que contar com ele sem nele poder intervir para no interromper a eficcia do mercado. Estado e mercado possuem lgicas estratgicas diferentes que precisam ser conciliadas. As relaes jurdicas dos direitos humanos, os processos de governamentao do Estado e a lgica do mercado existem se contra-dizendo e se ajustando, mas no por isso que formam um sistema discursivo contraditrio.

Foucault simplesmente aponta no discurso da biopoltica a existncia de uma contradio, vale dizer, pontos diferentes de enunciao que se confrontam estrategicamente. Como na poltica o discurso retrico e tpico, a contradio, ao invs de barrar a ao, simplesmente estimula a discusso. A contradio lgica, contudo, bloqueia o discurso. Num sistema formal que parte de pressupostos e prossegue dedutivamente, esbarrar numa contradio implica ficar impedido de continuar. Se ao pensar ou ao falar chegarmos a uma sentena cuja estrutura pode ser formalizada como (p e ~p), no podemos mais seguir no mesmo sistema, simplesmente porque dessa sentena tudo pode ser deduzido.

Foucault nunca se interessou por essas questes. Numa nota de L'Hermneutique du sujet (p.506), ao traar as trs linhas de investigao filosfica depois da metade do sculo XX, - teoria do conhecimento do objeto elaborada pela filosofia analtica, o estruturalismo e a sua prpria, que pretende situar os sujeitos no domnio das prticas formadoras - ele mesmo comenta que no nem estruturalista, nem, com a vergonha conveniente, sou um filsofo analtico, Nobody is perfect. Nos conhecemos, por volta de 1970, na casa de Jules Vuillemin, que alis o levou para o Colgio de Frana, mas que pouco o influenciou. Creio que tinha razo de desprezar a calculeira dos lgicos formais, mas gentilmente caoava quando lhe falava de Wittgenstein. Eram outros os caminhos. Mas ao tocar no problema da contradio, talvez tenhamos deixado em branco um ponto que poderia despertar sua inquietao: o fato de Wittgenstein ter mostrado que a lgica aristotlica, padro de quase todas as lgicas at Frege, e de qualquer regime de verdade at ento estudado, no confere sentido contradio. Se hoje isso pode ser feito, cabe perguntar como se age a partir dela - no topicamente a partir dela sem nela tocar. E esse novo agir no seguir por certo o padro do piscar de olhos, aquele da insurreio.

As diversas estratgias se antepondo s podem ser pensadas por suas diferenas. Nada as une num mesmo discurso. Alm do mais, no so ditas por um discurso asseverativo, apofntico. Jacques Rancire trata de lhes dar uma unidade visada, em particular, no seu livro La msentente. Aprendi com ele a valorizar o jogo do malentender na poltica e seus efeitos perversos e ideolgicos. Mas a msentente ocorre tendo como pano de fundo um objeto comum: Ela diz respeito apresentao sensvel desse comum, a prpria qualidade dos interlocutores quando o apresentam. A situao extrema da msentente aquela em que X no v o objeto comum que Y lhe apresenta porque ele no entende que os sons emitidos por Y compem palavras e agenciamentos de palavras semelhantes ao seus. Como veremos, essa situao extrema concerne, em primeiro lugar, poltica* La msentente, p.14.Ed. Galile, 1995. No limite, o que pode ser esse objeto comum pelo qual vale a pena arriscar a vida? No est ligado a um prprio modo de vida? E para que os inimigos dele duvidem no precisam estar pressupondo algo comum, pelo menos a lngua em que esto discutindo ou se traduzindo? Desse ponto comum o objeto em disputa no contraditrio. Esse desentendimento no contranditrio. Logo mais tentarei mostrar que h uma contradio no prprio modo pelo qual a vida materialmente se reproduz no capitalismo, e assim retomaremos uma velha discusso. No por isso que a poltica h de sempre se envolver tendo no centro essa contradio, mas no estaria no horizonte como um buraco negro que a pode engolir?

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Dilogo com o marxismo

Minha gerao comeou a pensar e a fazer poltica dialogando com o marxismo. Nem sempre com muita propriedade, quando, por exemplo, alguns admitiram que o pensamento fosse regido por duas lgicas, uma excluindo a contradio, outra, acolhendo-a sem mais. Mas em geral pouco se refletiu sobre o tratamento que Marx dispensou a ela. No cumpriu a promessa de escrever um texto que virasse de ponta cabea a lgica hegeliana idealista; as dificuldades dessa inverso foram obscurecidas pela disputa entre idealismo e materialismo.

De minha parte, preferi examinar como funciona essa lgica na estruturao de seus textos. Em resumo, poderia afirmar que, nos primeiros escritos, a contradio se insere no esquema hegeliano do gnero e das espcies, com acenos ao sensualismo de Feuerbach. Desde logo, a humanidade considerada como um ser genrico (Gattungswesen) que no incio da sua histria vivia apoiando-se numa apropriao comunitria de seus meios de produo. Quebrado o comunismo primitivo no se sabe bem como, j que a dinmica do conceito hegeliano deveria ser abandonada -, instala-se uma contradio entre meios de produo e relaes de produo. Depois de instalada a propriedade privada dos meios de produo, sucedem-se diversos modos de produo que tm no capitalismo a forma mais completa. Nele se exerce a contradio maior, entre o proletariado e o capital. Na medida em que os proletrios penetram no sistema vendendo sua fora de trabalho, dele participam como capital varivel, de sorte que se socializam mediante o prprio capital. Mas conformam a negao do sistema na medida em que este cria riqueza se apropriando dos diferenciais do valor da fora de trabalho total, pago classe operria, e o valor geral da produo social sob a forma de capital. O modo de produo capitalista levaria assim a contradio ao seu extremo, preparando sua ecloso e a superao das sociedades divididas em classes. A contradio ou se resolve abrindo as portas para apropriao coletiva dos meios de produo, superando a luta de classes que marcou o desenvolvimento da pr-histria da humanidade, ou emperra, levando o mundo barbrie.

Durante essa pr-histria da humanidade, no seu sentido pleno, j opera uma diviso entre interesses privados e interesses coletivos, mas ainda ligados a uma sociabilidade natural clivada pela diviso do trabalho. Da a atividade produtiva dos seres humanos submeter-se a uma fora contrria exterior: Esse autoenrijecimento da atividade social, essa consolidao de nossos prprios produtos num poder objetivo acima de ns que enfraquece nosso controle [sobre ele], que contraria nossas esperanas e anula nossos clculos, um dos momentos superiores do desenvolvimento histrico at agora, e afigura, partir da contradio entre os interesses particulares e comuns, o interesse comum como Estado, uma configurao independente, separada dos efetivos interesses individuais e coletivos, e igualmente como uma sociabilidade ilusria (illusorische Gemeinschaftlichkeit) ... *Marx & Engels, Die deutsche Ideologie, p.30 (Dietz Verlag, 1957). A trama contraditria da sociedade capitalista burguesa se projeta no Estado e nele esconde suas contradies, configurando os interesses das classes dominantes como interesses de todos. Da seu carter ilusrio, a despeito de toda a fora de que dispe.

Por certo apresento esse desenvolvimento, aqui, de uma forma esqueltica.* Para uma apresentao ainda introdutria, porm mais extensa, cf. meu texto: Marx alm do marxismo,LPM, 2000. Mas o esqueleto j nos serve para suspeitar de que haja uma grande distncia entre esses primeiros escritos de Marx e a extraordinria crtica da economia poltica elaborada no seu maior livro, O capital. Desde logo o primeiro captulo do livro surpreende e muito. Marx apresenta a teoria do valor-trabalho de Ricardo jogando o tempo todo com relaes formais entre valor de uso e valor de troca. Reconhece que essa primeira apresentao do valor como identidade dialtica complicada e no toa que deu a ela vrias verses.

Como pode a identidade do valor-trabalho nascer da contradio entre valor de uso e valor de troca? Por que desde o incio chamar de contradio a mera oposio entre os dois valores? Ora, dada a existncia do mercado, na sua expresso mais simples, onde todos os produtos comparecem sob a forma mercantil, as relaes de venda e compra se iniciam conforme um valor de uso se relaciona com todos os outros produtos do mercado, que aparecem como seus valores de troca. No incio, suponhamos que um produto procura noutro seu valor de troca: x mercadorias A vale y mercadorias B. Como A posta representativamente em relao a qualquer outra mercadoria que advenha ao mercado, todos os seus valores de troca passam a ser trocveis entre si, formando um equivalente geral, forma que prenuncia o dinheiro . Por conseguinte, primeiro, os valores de troca vigentes da mesma mercadoria expressam algo igual ( ein Gleiches). Segundo, porm, o valor de troca s pode ser o modo de expresso, a forma de manifestao de um contedo dele distinguvel *Das Kapital, I, p.41 (Dietz Verlag, 1957); trad. p. 46 (Abril cultural, 1983).

Os valores de troca aparecem ento como unidade, o valor, uma com-unidade de que participa cada valor de troca individual segundo seu quinho. Ela constituda pela posio e reposio dos relacionamentos de venda e compra. Trata-se de um processo de abstrao do tipo: se acontece muitas vezes, h de acontecer sempre, mas fundada nas operaes efetivas do mercado, como se A, B, C etc. fossem configuradas pelo prprio equivalente geral. Os agentes operam como se a abstrao que conduz ao equivalente geral j estivesse pronta, iluso necessria para que o mercado funcione como se fosse uma totalidade autnoma. Iluso coletiva, primeiro, porque est supondo que todas as mercadorias estivessem como que expostas nas bancas de um supermercado universal: segundo, como se todos os atos de trabalho estivessem sendo medidos por um mesmo padro segundo sua produtividade.

O produto de que partimos poderia ter sido escolhido a esmo, mas na medida em que se integra no jogo do valor mercantil, ele existe agora como um entre muitos que podem ser produzidos em qualquer parte de um mercado unificado. Cada produto passa a existir manifestando uma parcela da substncia valor, por conseguinte como sendo produzido por um trabalho social e abstrato, cujas diferenas foram desbastadas pelo jogo das compras e vendas dos produtos enquanto mercadorias. A enorme diversidade dos trabalhos humanos, na medida em que o produto se integra na comun-idade do valor, aparece como sendo posta por essa unidade fantstica. Essa enorme diversidade dos trabalhos individuais do ponto de vista do custo do tempo e de capacidades diversas posta como a grandeza de valor dos produtos de trabalho. As mltiplas relaes entre os produtores so, por sua vez, postas como uma relao social entre os produtos do trabalho *Das Kapital, I, p. 71 (Dietz Verlag, Berlin, 1957). Cada produto existente no mercado surge ento como se estivesse sendo produzido por um trabalho social formal, em suma, como um fetiche.

Ao lermos as ltimas aulas que formam o livro Naissance de la biopolitique, de Foucault, teremos uma viso muito clara do alcance da novidade do conceito marxista de capital. A partir do sculo XVIII, o homem jurdico, a primeira forma do cidado moderno, conformado pelo contrato social e desenhando uma subjetividade plena de direitos, foi progressivamente sendo substitudo pelo homo oeconomicus, dotado de interesses e de uma racionalidade que computa meios em relao a fins. O Estado soberano passa a se confrontar com tais indivduos integrados num mercado, que haveria de funcionar sozinho, formando uma sociedade civil dada, sntese espontnea dos indivduos, voltados para seus interesses antes de estarem submetidos ao direito. As leis do mercado regem essa sociedade. Nela o Estado s poderia intervir em situao de crise. O modo de produo simples de mercadoria fecha-se sobre si mesmo. Ele possibilita que surja um modo mais complexo que tenha como origem o dinheiro - obviamente dotado de outra inteno, pois s vale a pena aplicar dinheiro se no fim do processo ele trouxer mais dinheiro. Assim ele se transforma em capital, criando a separao entre capital e trabalho impossvel no modo anterior. A substncia dominadora da polis se conforma como capital substncia, a unidade do Estado nada mais do que o seu reflexo.

A abstrao responsvel pela forma mercadoria, do capital e de todas as outras suas formas no aquela do tipo: o que acontece frequentemente acontece sempre, mas isto torna aparente o que est sendo produzido no mundo das formas". Por isso Marx fala do fetichismo da mercadoria: o prprio jogo entre os produtores independentes passa a ser feito como se fosse regido pelo deus mercadoria, em seguida pelo deus capital.

Marx configura seu conceito de sociedade burguesa, de um lado, aproveitando-se do conceito hegeliano de brgeliche Gesellschaft, onde as pessoas concretas so postas como fins em si mesmas, procurando realizar a totalidade de seus desejos; de outro, agregando-lhe o estudo minucioso do mercado capitalista, elaborado principalmente pela nova economia poltica, sobretudo britnica. Mas converte a universalidade hegeliana num fetiche, uma iluso necessria, que haveria de ser superada quando os sujeitos propriamente produtivos, esvaziados do poder econmico , conquistassem o poder poltico.

Ele mantm o princpio hegeliano de que essa nova esfera da vida social estaria alinhavada pela trama de categorias formais, desdobrando-se conforme se reportam umas s outras e nisso ganhando autonomia de seus aspectos. Trata-se de uma histria categorial que desenha o mapa dos pontos de cruzamento das redes do sistema; histria que espelha os movimentos no tempo real, portanto no simplesmente abstrata, conforme o sistema vai se configurando. Mas, por exemplo, a histria da instalao do capitalismo na Europa no segue os mesmos trmites que a histria do capitalismo nas Amricas. Essa diferena entre a histria categorial e a histria do vir a ser * Grundrisse der Kritik der Polistischenkonomie, p. 363 no foi absorvida pelo marxismo, que inevitavelmente soobrou no historicismo.

Essa anlise de Marx est muito distante do que, j em sua poca, se entendia por cincia. Um antroplogo, interessado na religiosidade de certos processos mercantis, poderia se interessar por esse fenmeno, mas no tocaria no modo pelo qual se produz a riqueza das naes. Alm do mais, a economia poltica sempre trabalhou a partir do valor de troca. Mas quando Marx publica o primeiro volume dO capital, em1867, ela passa a tomar o valor de uso como ponto de partida, e perde o nome poltica. A economia poltica toma um produto como se ele estivesse sendo leiloado. Examina-o a partir de curvas de preferncia e somente depois que coloca a questo de sua troca por outros. Enquanto a economia sovitica dizia repeitar o esquema marxista, muitos pensaram ser possvel que a economia como cincia pudesse seguir dois paradigmas: o marxista, com a teoria o valor trabalho, e a marginalista, em que a noo de valor secundria. Com a derrocada da economia sovitica o dilema desapareceu.

Compreende-se por que os pensadores de esquerda mais inventivos, a despeito de estarem influenciados por Marx, abandonassem a teoria do valor-trabalho. Os primeiros foram os frankfurtianos, que tentaram salvar a ideia clssica de razo, oposta razo instrumental operando no sistema capitalista - uma ideia da direita alem, que sempre culpou o desenvolvimento cientfico e tecnolgico por quebrar as velhas tradies. Outros simplesmente passaram a examinar os comportamentos polticos como se cada agente fosse um ser racional, dotado da racionalidade do homo economicus. Com a derrocada da Unio Sovitica o marxismo virou objeto de museu, mas, hoje em dia, provavelmente por causa da enorme crise que abala a economia mundial desde o fim do sculo passado, volta a ideia de que o capital cria riqueza aumentando a misria relativa - a fama atual de Thomas Piketty o testemunha. Note-se que seu livro, Cpital au XXIe sicle, identifica capital e patrimnio, enquanto Marx entende por capital to s aquela parte do patrimnio envolvida na produo de mais valia. Mas para fins de clculo, o real interesse de Piketty, a definio de Marx seria muito difcil de ser manipulada. Ambos, porm, sustentam a tese de que o capital cria tanto riqueza quanto pobreza.

Sempre tentei dar sentido s contradies do capital e seu carter de fetiche. A contradio um fato do discurso, Hegel a integra no seu sistema porque pensa a prpria histria como discurso do Absoluto. A lgica contempornea, porm, no nos permite pensar em jogos de linguagem no verbais? A trama das categorias do capital no pode ser interpretada como um tal jogo perfazendo os interstcios de nossa sociabilidade?

No Apndice lembro como a nova lgica formal se arma deixando de lado a predicao e como Wittgenstein amplia sobremaneira o conceito de discurso. Toda linguagem passa a ser vista como trama de jogos, sendo possvel pensar em jogos no verbais. As relaes formais que travam o modo de produo capitalista no formariam, ento, jogos de linguagem no verbais, cujos parmetros se fecham por iluses necessrias?

Voltemos ao texto do prprio Marx. O sistema mercantil traz em si a possibilidade do comrcio capitalista, isto , daquele comrcio que, buscando produtos fora do sistema, pode tirar lucro das trocas vistas como equivalentes. E assim a partir do sculo XVIII se desenvolve uma produo propriamente capitalista quando um agente, de posse de uma quantidade de dinheiro, o capital, se lana na produo, a fim de obter mais dinheiro, a famosa mais-valia (ou mais-valor). Desse modo, o sistema se diversifica criando diferentes formas de capital: produtivo, comercial, financeiro e assim por diante.

Conforme esse modo de produo se desenvolve, cada forma de capital reformula e assume o fetiche da mercadoria. Trabalho e meios de produo so configurados como capital varivel e capital constante. Ele se conforma como a produo de mercadorias por meios de mercadorias, sempre visando lucro e, por causa de seu prprio mecanismo de criar riqueza, somente criando-a se produzir mais pobreza relativa. Qualquer modo de produo opera com trs elementos bsicos: o capital, a terra e o trabalho. No modo de produo capitalista eles comparecem produzindo magicamente o lucro, a renda e o salrio. Na sua forma final a riqueza capitalista se apresenta fantasiada como se fosse uma santssima trindade: o capital produzindo lucro (ganho na produo mais juros), a terra produzindo renda e o trabalho, salrio.

A essa trindade constituindo o capital social total haveria de se contrapor o trabalho total. Esse tema comea a ser desenvolvido do III volume dO capital, mas o livro permanece inacabado, et pour cause. Alm dos jogos das aparncias, Marx acreditava que um verme haveria de corroer a produtividade do capital: o desenvolvimento tecnolgico haveria de diminuir o valor dos produtos de tal forma que se criaria a tendncia de queda da taxa de lucro. Uma ltima contradio interna estaria se armando no seio da grande forma do capital total. Por conseguinte, no seio do trabalhador total, preparando a Revoluo. No entanto, basta ler o captulo em que examina essa tendncia para se constatar que ela encontra tantos fatores que impedem seu funcionamento que dificilmente poderia se efetuar. As categorias desse modo de produo s podem entrar em contradio porque se do como um sistema simblico, um jogo de linguagem, cujos termos se tornam completos por causa do fetiche correspondente. Uma contradio nuclear que viesse pr em causa o prprio sistema tambm colocaria em causa o fetiche, em particular as formas trinitrias do prprio capital.

A comun-idade do valor e depois do capital depende de os produtores terem livre acesso ao desenvolvimento tecnolgico, ao ritmo cada vez mais alucinante de novas tecnologias. O desenvolvimento capitalista depende de novos produtos cada vez mais sofisticados, de sorte que a prpria cincia se transforma numa fora produtiva. Ora, num capitalismo do conhecimento, todo produtor de um novo saber que resulta em lucro tem todo o interesse de garantir o monoplio desse saber. Primeiro ele o patenteia, depois trata de aumentar a velocidade da produo de novos produtos a fim de que, quando seus concorrentes chegam a ter acesso a eles ou a similares, ele prprio j tenha novidades para apresentar no mercado. Ao invs de uma lei interna que viesse implodir o capital a famosa tendncia da queda da taxa de lucro , temos outra tendncia que fragmenta a produo e os mercados, impedindo que trabalhem tendo como pressuposto a mesma unidade do trabalho social abstrato. O sistema se cliva. A globalizao no se faz como se um mercado mundial se constitusse unicamente segundo as leis econmicas. O Estado sempre forou a abertura dos mercados e agora os Estados participam dessa concorrncia.

O mercado capitalista sempre se desenvolveu com a ajuda do Estado. J as relaes de troca entre as mercadorias dependem de regras jurdicas que assegurem a justeza e a implementao dos contratos. Para se espalhar num territrio necessita da proteo do Estado, que cria bancos centrais para controlar a moeda e combater a inflao, libera ou cerceia os mercados segundo as convenincias. Marx obviamente conhecia esses fenmenos. Para compreender a crise total do capital precisava estudar cada crise do sistema. Em 1872, escreve a um amigo dizendo que no poderia terminar o livro enquanto no observasse como iria evoluir a crise americana. No est diante de um dilema? De um lado, sua concepo da histria do vir a ser do modo de produo capitalista deveria levar crise final com a Revoluo; por outro, sua histria categorial, a cada passo, introduz novos fatores formais que bloqueiam a formao do capital social total, que traria no seu seio o trabalhador social total, dinamite do sistema.

Nunca o prprio Marx formulou esse dilema, mas no conseguiu terminar seu livro. Deixou um monte de textos soltos que foram editados por Engels. A publicao integral desses rascunhos mostra que Marx atirava em todas as direes. Michael Heinrich, Carl-Erich Vollgraf e outros esto explorando essa diversidade de caminhos. O capital no um livro acabado. Se ainda nos inspira, no o pelo sistema, mas pelo aprendizado que nos torna atentos aos fetiches e s racionalidades enviesadas do mundo atual.

No entanto, se o sistema contemporneo no tende a uma contradio totalizante, no a prpria ideia de Revoluo que posta em xeque? Num sistema em que a cincia se torna fora produtiva, em que se torna impossvel a mensurao dos mais diversos processos de trabalho por um nico critrio, tambm se torna impossvel a formao do capital total, por conseguinte do trabalhador total. Desaparece do horizonte aquela contradio hegeliana que haveria de explodir numa revoluo total. Devemos retomar o ideal da revoluo proletria, quando os explorados havero de exercer toda a violncia necessria para vencer a explorao capitalista? Podem os explorados constituir uma parte sem contraparte, inclusive excluindo os exploradores do exerccio da poltica? A luta de classes pode se conformar numa contradio efetiva ou apenas rege no horizonte a natureza mais profunda dos conflitos polticos atuais? Essa uma questo que, mutatis mutandis, j estava posta para o movimento proletrio desde o fim do sculo XIX, em particular a partir da experincia da comuna de Paris, e se torna crucial nos primeiros anos da Revoluo russa. Conhecemos a posio de Rosa Luxemburgo contra a deciso dos bolcheviques de dar todo o poder aos soviets, pois isso implicava retirar qualquer capacidade de representar todos aqueles que no participassem dessas organizaes que reuniam soldados, operrios e camponeses. Conhecemos tambm a posio de Karl Kautsky, uma das maiores autoridades do marxismo alemo da poca, contra a interpretao leninista do conceito de ditadura do proletariado. Vela a pena retomar brevemente esse ponto, que nos obriga a reler um dos textos mais extraordinrios de Lenine: A revoluo proletria e o renegado Kautsky.

O texto de 1918 e se inicia criticando violentamente a iseno com que Kautsky trata da democracia, sem levar em conta que ela pode ser burguesa ou ligada a outros modos de produo. Sob esse aspecto Lenine tem toda a razo, pois, como j vimos, no cabe confundir a democracia antiga, escravagista, com a democracia moderna. Kautsky, por sua vez, define corretamente a ditadura como um poder que se apoia diretamente sobre a violncia e que est acima de qualquer lei. Ditadura significa, pois, supresso da democracia se der margem a um poder pessoal. Ao mencionar a ditadura de uma classe, no estaria Marx indicando mais do que uma forma de governo, mas um estado de coisa que haveria de se produzir todas as vezes que o proletariado conquistasse o poder poltico?

A violenta reao de Lenine acentua a necessidade de abolir o Estado, suas foras militares e sua burocracia, exercendo contra ele um poder, a ditadura, apoiado na violncia livre do imprio de qualquer lei. Contra esse argumento Kautsky j lembrara que, na comuna de Paris, o primeiro experimento histrico da ditadura do proletariado, os membros dirigentes no foram eleitos pelo sufrgio universal. A ditadura do proletariado, argumenta ele, no estaria diretamente ligada democracia? Lenine responde que havia operrios ligados a Versalhes, onde se preparavam as tropas que invadiriam Paris. A Comuna, governo operrio da Frana, lutava contra o governo burgus. E o prprio Engels acentua que a Comuna no teria resistido um dia se no empunhasse as armas contra a burguesia. A luta de classes total, independentemente da posio da diversidade de seus membros. Importa que, ao ocupar o Estado, o movimento deve utiliz-lo, sobretudo, para que ele possa ser superado, destruindo suas bases para fazer surgir uma sociedade igualitria e sem classes. Note-se que Lenine est pressupondo que o novo governo ou, mais precisamente, o partido esteja inteiramente identificado com a classe trabalhadora. Por isso, a democracia no pode ser para todos, mas para a classe que h de vir a ser a sociedade inteira. Na ditadura do proletariado haver democracia para os explorados, no para os exploradores, que devem ser reprimidos e privados de seus direitos. O explorado no se iguala ao explorador, somente haver liberdade de fato quando toda explorao for eliminada. Supor que numa revoluo consciente de si mesma valeria como processo decisrio a relao entre maioria e minoria prova de uma estupidez prodigiosa* Lenine, Oeuvres choisis, III, p. 95 Ed. du Progrs, 1968.

Lenine o legtimo herdeiro dos jacobinos da Revoluo Francesa. Embora suas ideias polticas se aproveitem dos meandros da dialtica hegeliana, o cerne de seu pensamento incorpora o terror revolucionrio. At que ponto hoje ele pode nos servir de paradigma?

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PARA MELHOR COMPREENDER A DECISO POLTICA

Carl Schmitt considerava Lenine o mais consciente de todos os polticos modernos * Nationalsocialismus und Vlksrecht em Kervgan, J.-F. Que faire de Carl Schmitt?, p. 180 ,Gallimard, 2011. No convm examinar como se tocam os maiores pensadores do totalitarismo do sculo XX? Segundo me parece, dois so os pontos fundamentais no pensamento de Carl Schmitt sobre o poltico, isto , sobre a condio da poltica. Em primeiro lugar, que a relao contraditria entre amigo e inimigo se exerce logicamente antes da unidade do Estado. Em segundo lugar, que essa contradio, por isso mesmo, no possui substncia, podendo assim se manifestar em qualquer nvel da sociedade. Seu discpulo Julien Freund nos lembra *Cf. Prefcio da trad. francesa de Der Begriff des Polistischen, p. 19. que Schmitt distingue instncia de substncia. Por ser uma substncia o Estado conforma um poder de deciso sobre negcios internos e externos, tendo por trs um quadro institucional onde a vida poltica se realiza normalmente. No entanto, Schmitt faz essa distino considerando que o processo de neutralizao progressiva dos diversos domnios da vida cultural chega ao seu fim, lembrando que a prpria forma Estado est sendo posta em xeque * Um exemplo a Sociedade das Naes em que um conglomerado de Estados serve a propsitos polticos de um Estado dominante. ; acredita dever tomar como ponto de partida de sua anlise jurdico-poltica uma situao-limite, instancial, em que a poltica revela seu lado propriamente , a condio transcendental da poltica cotidiana. No ela a relao amigo/inimigo? Como indica Freund, cabe descobrir uma relao que determina o poltico em sua realidade existencial, independentemente das normas que, do exterior, lhe deem um contedo * Idem, p. 21. Esse modo de colocar a questo encaminha o decisionismo de Schmitt. Mas, cabe perguntar, a contradio amigo/inimigo no se exerce inserida num contexto lingustico maior, em determinados jogos de linguagem?

Catlico fervoroso, Schmitt acredita na santssima trindade e pensa a contradio como se abraasse o infinito verdadeiro, que, por isso mesmo, nela pode se manifestar. Diante do inimigo, isto , de todos aqueles que contestam sua forma de existncia, um grupo se constitui como unidade soberana. E soberano aquele que pode decidir em caso de exceo. Desse ponto de vista, no importa se eles j esto socialmente ligados, um ou vrios povos ganham soberania quando formam uma unidade poltica, que dispe do jus belli, o direito de declarar a guerra e a paz, traduzindo essa vontade unificada numa Constituio. Kant distinguia o contrato social do contrato poltico. Carl Schmitt retoma essa dualidade, mas nega que a comunidade poltica nasa de um contrato, na medida em que ela est sempre ameaada pela existncia de uma alteridade radical.

Na medida em que o poltico no possui contedo particular, toda prtica pode tornar-se poltica. Em 1964, numa carta a Julien Freund, Schmitt escreve: Meu Begriff des Politischen evita toda fundao geral; ele puramente fenomenolgico (isto , descritivo) * Cf. Kervgan, p. 183. O conceito se orienta para uma concepo energtica do poltico, que ser retomada em especial por Deleuze e Guattari em Lanti-Oedipe, por Antonio Negri em Le pouvoir constituant e tambm por Giorgio Agamben. Mas este um jurista, ele se coloca no plano de Schmitt, o que nos permite evidenciar os compromissos de ambos com um decisionismo de inspirao heideggeriana. Sem o pano de fundo da contradio hegeliana, precisam elucidar como a Revoluo insurgente articula o passado com um novo que deve desde logo ter alguma articulao.

Em seu livro Estado de exceo, Agamben, com o intuito de mostrar que hoje em dia vivemos nessa situao, procura defini-lo a partir das diferenas que Walter Benjamin e Carl Schmitt imputam violncia criadora. Do primeiro cita a seguinte passagem: Se violncia for garantida uma realidade tambm alm do direito, como violncia puramente imediata, ficar demonstrada igualmente a possibilidade da violncia revolucionria, que o nome a ser dado suprema manifestao da violncia pura por parte do homem* Estado de exceo, p. 85, Boitempo, 2004. Convm lembrar que os frankfurtianos abandonam o esquema do trabalho e com ele a dialtica hegeliana. Sem o terreno homogneo preparado pela contradio dialtica, Benjamin, antes mesmo de incorporar o marxismo, j aposta numa violncia pura, divina, portadora do novo. Mas como a Revoluo no Aufhebung, abre-se um espao indito para novas formas de sociedade, que somente conservam o passado para a redeno: O passado traz consigo um ndice secreto que o impele redeno * Benjamin, Walter. Sobre o conceito de histria, 2. Obras escolhidas, I, p. 242,Brasiliense, 2012. ;. Agamben admite que o direito reconhece a deciso espacial e temporalmente determinada como categoria metafsica, mas esse reconhecimento s coresponde peculiar e desmoralizante experincia da indecibilidade ltima de todos os problemas jurdicos * Estado de exceo, p.85, Boitempo, 2004. A redeno que vem suprimir a luta de classes aproveita-se da brecha da indecibilidade ltima das regras jurdicas.

Tambm Schmitt tenta trazer a violncia para o universo do Direito. Ao renovar a crtica a Benjamin num novo livro, Politische Teologie, Schmitt procura invalidar qualquer violncia pura sem beira, porquanto esta sempre h de ter no horizonte o corpo da legalidade que ela est destruindo. No estado de exceo, quando o Direito suspenso, ela no deixa de estar presente como se estivesse entre parnteses? Alm do mais, ao definir o soberano como aquele que decide no estado de exceo , Schmitt no faz da soberania o lugar da deciso suprema? Como no possvel configurar com preciso quando se est diante de um caso indubitvel de suspender a lei, no h como evitar uma margem de indeciso na ao soberana ao cortar o n grdio. Assumindo a indecibilidade de todos os conceitos jurdicos, Benjamin procura a violncia pura. Schmitt, ao contrrio, retira dessa indecibilidade a necessidade da ao excepcional, mas que se perfaz tendo o direito no horizonte. No entanto, quer a ditadura soberana do Fhrer, quer a ditadura do proletariado, ambas continuam a ser pensadas em termos estritamente fenomenolgicos, isto , sem que esse ato abra um espao do que vem a ser adequado ou inadequado. Se ambos os autores recusam a negao hegeliana porque traz o perfume do Esprito absoluto, no se deixam eles se embriagar pelos mesmos ares, agora, porm, tendo como nico parmetro a estrutura legal violada? A pergunta fundamental : a Revoluo se resolve num processo linear ou abre um novo jogo de linguagem?

Para Agamben importa separar, de um lado, a forma lgica da regra, de outro, sua aplicao esta s pode se dar no nvel da prxis. Tambm o Tratactus cometeu o mesmo engano. Mas o voltar-se para a prxis no pode deixar a norma jurdica formulada no cdigo, como se ela fosse expresso direta da forma geral da proposio. A norma jurdica tambm prxis. Uma regra que nunca fosse seguida no seria regra. Desde que a regra faa parte de um jogo de linguagem, a questo explicitar como vem a ser seguida. E desde logo no se pode compreender a regra como se ela contivesse embutida em si mesma todos os seus casos. Da o contrassenso de se perguntar se a sequncia 7777 est ou no contida na sequncia dos dgitos de O nmero irracional um modo de calcular que implica essa indefinio, e no por isso que s define a frao seguinte depois de calculada.

Agamben, porm, continua percebendo a regra como se fosse uma idealidade: Uma colocao correta do problema da aplicao exige, portanto, que ela seja preliminarmente transferida do mbito lgico para o mbito da prxis. Como mostrou Gadamer (1960, p. 360, 365), no s toda interpretao lingustica sempre, na realidade, uma aplicao que exige uma operao eficaz (que a tradio hermenutica teolgica resumiu na frmula colocada em epgrafe por Johann A. Bengel em sua edio do Novo Testamento: te totum applica ad textum, rem totam applica ad te), mas no caso do direito, perfeitamente evidente (...) que a aplicao de uma norma no est de modo algum contida nela e nem pode ser deduzida, pois de outro modo no haveria a necessidade de se criar o imponente edifcio do direito processual. *Idem, pp.62/63.

Se o capital se mostra com vestes divinas, no por isso que a Revoluo deveria conservar o mesmo guarda roupa. Agamben continua a conferir regra resqucios de platonismo, o que o leva a situar a guerra contra o capital nos jardins do templo. Neles rem totam applica ad te, ela s pode ento se resolver numa violncia divina ou numa insurgncia purificadora.

Para justificar essa separao entre regra e caso, Agamben invoca a relao que os linguistas franceses encontram na relao que a linguagem mantm com o mundo: Essa passagem da langue parole, ou do semitico ao semntico, no de modo algum uma operao lgica, mas implica sempre uma atividade prtica, ou seja, a assuno da langue por parte de um ou de vrios sujeitos falantes e a aplicao do dispositivo complexo que Benveniste definiu como funo enunciativa e que, com frequncia, os lgicos tendem a subestimar *Idem, p. 62. Transferida a questo do mbito da lgica para aquele da prxis, aceitando que a aplicao da norma no est contida nela, nem pode dela ser deduzida, Agamben pode concentrar-se no exame do estado de exceo onde se manifesta, de modo exemplar, essa separao entre norma e ao. Nesse estado, as normas bsicas do direito ficam entre parnteses para que se produza a exceo a elas. Por isso no desaparecem, mas so repostas no horizonte do processo revolucionrio.

Ao invs de se aproveitar da oposio entre langue e parole, lngua e fala ou vocbulo, tal como os franceses da poca empregavam tendo como referncia Ferdinand Saussure, Agamben se reporta a Benveniste para evitar a sincronia da fonologia saussuriana.. Por exemplo, as unidades fonolgicas so desenhadas por suas diferenas, por suas oposies distintivas. Em portugus os fonemas e e i diferem no corpo das palavras portuguesas como dedo e Dido, mas essa diferena desaparece no fim da palavra, formando um arquifonema, isto , no distinguimos oralmente entre cidade e cidadi. Por isso os fonemas, para Saussure, aparecem como se estivessem num nico plano, o que distingue radicalmente a langue institucionalizada da parole proferida.

Segundo Benveniste, a semiologia, teoria geral dos signos, comporta dois eixos, um semitico, cujas estruturas so semelhantes s analisadas por Saussure, e outro, propriamente semntico, cujas estruturas so em geral ignoradas pelos linguistas. Desse novo ponto de vista, o princpio das consecues discursivas, que considera as palavras na sua consecuo linear, confere semntica uma dimenso ignorada pelos semiticos e pelos lgicos. Enquanto Saussure toma a disperso e identificao dos fonemas como ponto de partida, Benveniste observa desde logo as palavras no curso de seu proferimento. O sentido do predicado varia, pois, com a sua construo: procurar no tem o mesmo sentido conforme digo procuro meu chapu, ou quando digo procuro a entender . Procurar no procurar a. No a mesma palavra. Da lngua passamos ao discurso. * Benveniste, Emile. Dernires leons (Ehess Gallimard, Seuil, 2012). Ao publicar Estado de exceo em 2003, Agamben no conhece ainda essa publicao das ltimas lies de Benveniste. Talvez por isso no desenvolva esse lado semntico do discurso at o fim. Ora, os dois sentidos de procurar podem ser expressos, na linguagem de Wittgenstein, como sendo uma palavra que ganha sentido conforme participa de dois jogos de linguagem diferentes.

Agamben se movimenta no universo dos autores franceses ligados ao ps-estruturalismo, que em geral esto muito distantes do pragmatismo. Benveniste exceo, porquanto se interessa por Pierce. Em contrapartida, Agamben mantm uma separao muito rgida entre langue e parole. A norma lgica est desvinculada da prxis unicamente na cabea daqueles autores. Se levasse mais a srio o princpio das consecues discursivas,seria obrigado a repensar o alcance das indefinies das palavras. Ao invs de prejudicarem o seu encadeamento, no o auxiliam? Como lembra Wittgenstein, num pisto o mbolo no pode estar muito ajustado ao cilindro que o acolhe pois, nesse caso, no poderia se mover e cumprir suas funes.

Interpretando a legalidade frgil em que vivemos como um estado de exceo, Agamben engrossa a corrente dos crticos do capitalismo que convertem o fetichismo do capital, sempre a explodir nas suas ambiguidades, sempre, por assim dizer, politesta, num fenmeno puramente monotesta. A palavra religio no mais proviria do verbo religar, mas de reler, conformando a religio no tempo do mundo. A teoria da histria de Walter Benjamin abre esse espao. Mas, de certo modo, se a crtica contra o capitalismo volta a se armar no pensamento de Feuerbach, no cairia sob a objeo de Marx, que acusa o materialismo feuerbachiano de ignorar a prxis? Para Marx a prxis aquela do conceito hegeliano, mas virada de ponta cabea; para Agamben e seu grupo a prxis resulta numa insurgncia que coloca o direito entre parntesis, sem se comprometer com a criao de um novo jogo de linguagem. * Para uma anlise muito completa dessa problemtica, de um ponto de vista contrrio ao meu, cf. Arantes, Paulo. O tempo do mundo, Boitempo, 2014.

Voltemos a Agamben, cujos enganos me parecem paradigmticos. nessa relao da norma com o caso - objeto da crtica de Heidegger a Wittgenstein , que o nervo da questo aparece exposto. No uma questo apenas de subsuno lgica, mas antes de tudo passagem de uma proposio geral dotada de um referente puramente virtual referncia concreta, a um segmento de realidade ; nada menos do que o problema da relao atual entre linguagem e mundo * Idem, p. 62. Afirmao que me parece absolutamente correta, contanto que se acrescente que essa relao virtual bipolar, isto , verdadeira ou falsa, adequada ou inadequada e assim por diante. Agamben por certo o reconhece: No caso da norma jurdica, a referncia ao caso concreto supe um processo que envolve sempre uma pluralidade de sujeitos e culmina, em ltima instncia, na emisso de uma sentena, ou seja, de um enunciado cuja referncia operativa realidade garantida pelos poderes institucionais *Idem, p. 62. Mas o caso, depois de configurado, depois que a norma determinante foi completada numa sentena, se esta quase sempre vem a ser seguida, porque ainda se liga a uma forma de vida coletiva, a instituies j existentes ou que esto vindo a ser.

O sujeito no se abre apenas para o mundo, mas, o fazendo por meio da linguagem, cria entre a norma e o caso um espao de indefinio que precisa ser resolvido caso a caso. Por isso seguir uma regra sempre uma prxis, como sublinha Wittgenstein. E se a regra, seja l de qual tipo, no espelha o estado de coisa, ao se efetivar, isto , ao vir a ser propriamente uma regra, e no um flatus vocis, preciso que o agente se comporte como se decidindo se este ou no o caso. Necessita recorrer a um critrio, ligado a situao indubitvel, que s pode ser formulado por uma proposio monopolar, mas que permita uma deciso que individualiza aplicando a regra de modo adequado ou inadequado. E assim termina o mito da deciso fhrende, da revolta divina, da insurgncia, do ato nico, que nem mesmo se inspira no fiat de Jeov. Depois de ter criado o cu e a terra, Deus criou a luz para impedir que tudo fosse coberto pelas trevas e assim formou a alternncia do dia e da noite. Transformar a regra to s na anteviso de seus casos ao infinito equivale a pens-la como se fosse um par de trilhos que levasse o trem da poltica sempre para mais longe.

O exerccio da bipolaridade se inscreve numa situao que s pode ser dita de modo indubitvel, monopolarmente. Quando num jogo de linguagem - inclusive aqueles no verbais, como um sinal de trnsito, as relaes de venda e compra, at mesmo os contratos quando feitos tacitamente uma contradio atingida, quando ela aparece como sinal dos deuses, aceno fora do jogo para que se caminhe adiante, a deciso s pode se exercer em vista de uma nova bipolaridade criada. No por isso que Marx, talvez antevendo essa estrutura da deciso, sempre lembrasse o mote: Socialismo ou Barbrie?

Exercido no limite, o jogo poltico exige que se decida se cabe aniquilar ou poupar o inimigo. Mais de um sculo de revolues mostraram que a morte dele - fsica ou excludente do jogo revive a unidade da substncia devoradora criando as condies para que o terror se instale. Se no quisermos desprezar essa experincia, cabe, a meu ver, associar observao de Schmitt, de que a poltica no tem substncia, outra de Claude Lefort, * Essais sur le politique, pp. 27-segs, Seuil, 1986. de que a democracia no possui lugar definido. O lugar do poder torna-se vazio, a sociedade no tem corpo, a totalidade orgnica perde seu sentido. Livre desses fantasmas, reconhecendo a importncia da prxis poltica a partir da Revoluo Francesa e da Revoluo Americana, somos obrigados a apostar na democracia. Somente ela, tendo no horizonte a quebra da contradio, capaz de recolocar amigos e inimigos no plano das relaes entre aliados e adversrios, criando um campo comum onde essa contrariedade possa se exercer para que no ecloda o perigo sempre iminente do inimigo devorador.

Vivemos numa situao muito peculiar de nossa histria. O jogo poltico (melhor seria dizer: os jogos), a despeito de toda sua corrupo, tem no horizonte um Estado provedor que encontra sua principal razo de ser na medida em que exercem polticas de compensao das desigualdades existentes, principalmente no seu territrio. A principal desigualdade diz respeito prpria sobrevivncia fsica e cidad do indivduo e de s