generidade e politicidade no Último … chain. politicity and genericity appear in the mature stage...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
CLAUDINEI CÁSSIO DE REZENDE 75369
GENERIDADE E POLITICIDADE NO ÚLTIMO LUKÁCS
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista como parte integrante dos requisitos para obtenção do título de Doutor. Linha de Pesquisa: Determinações do Mundo do Trabalho Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Orientador: Prof. Dr. Marcos Del Roio.
Marília 2015
Rezende, Claudinei C.
Generidade e politicidade no último Lukács / Claudinei Cássio de Rezende – Marília, 2015. 290 p./ 30 cm. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) Faculdade de Filosofia e Ciências. Universidade Estadual Paulista, 2015. Bibliografia: p. 284-290 1. Generidade. 2. Politicidade. 3. György Lukács. 4. Socialismo. I. Autor. II. Título
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
COMISSÃO EXAMINADORA
Prof. Dr. Marcos Del Roio (Orientador) Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Faculdade de Filosofia e Ciências da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
Prof. Dr. Antonio Rago Filho Programa de Estudos Pós-Graduados em História da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Prof. Dr. Antonio Carlos Mazzeo Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Universidade de São Paulo.
Profª. Drª. Ester Vaisman Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais.
Prof. Dr. Anderson Deo Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Faculdade de Filosofia e Ciências da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
SUPLENTES
Profª. Drª Maria Orlanda Pinassi. Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
Profª. Drª. Fátima Cabral Departamento de Antropologia e Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências da
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho.
Prof. Dr. Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO PROGRAMAS REGULARES/ BOLSA DE DOUTORADO NO PAÍS PROCESSO Nº 2011/09097-1
Para Lara, Na esperança, ainda muito remota, de que
sua geração vislumbre a construção de uma generidade qualitativamente superior.
AGRADECIMENTOS
Quando se decidiu que queria ser astrônomo, Neil deGrasse Tyson era
apenas um menino na periferia de Nova York. Um encontro com um dos maiores
cientistas de sua época, Carl Sagan, em 1975, na Cornell University, modificou
definitivamente a sua vida. Sagan apresentou a Neil a universidade e os estudos
de um astrônomo. Ao final do dia, devido à dificuldade de Neil retornar a sua
casa por causa da neve, Sagan lhe ofereceu abrigo em sua casa, com sua
família. Mais tarde, relatando este emocionante encontro, Neil disse que já sabia
que gostaria de ser um cientista antes mesmo daquele encontro, mas naquela
tarde descobriu também que tipo de homem gostaria de se tornar. Quando assisti
a Neil deGrasse Tyson relatando este primeiro encontro com o homem que lhe
inspirou a fazer ciência, numa homenagem ao Cosmos de Sagan, imediatamente
pensei em dois grandes intelectuais com os quais tive a oportunidade de
construir uma amizade, intelectuais que me ensinaram mais que os rumos da
ciência, apontaram-me na vida prática que tipo de homem eu deveria ser. São
eles: Marcos Del Roio e Antonio Rago Filho.
Marcos é uma referência intelectual pra mim, mas antes de tudo, é uma
referência humana – referência sem a qual o imperativo de uma generidade
qualitativamente superior jamais sairá do âmbito abstrato. Conheci Marcos há
mais de dez anos, e naquela ocasião, discutíamos a reforma universitária num
encontro de Ciências Sociais. A reivindicação de Marcos era totalmente alinhada
à sua postura política pela necessidade de uma nova ordem social pela
emancipação humana. E Marcos realmente entrelaça em sua vida tal conduta
ética pela emancipação humana, atestando que não basta apenas ter uma
posição teórica firme: é necessário vivê-la na prática. Isso reforça a nossa
amizade e a minha admiração por Marcos. Agradeço ao Marcos pela orientação
nesta tese, e por ter sido sempre muito fraterno comigo, abrindo todas as portas
pra mim que estavam a seu alcance.
Por muitas vezes, acometido pela angústia, encontrei novamente a saída
para pequenos e grandes problemas da vida em algumas palavras com o Rago.
Há um adágio que diz que é melhor acender uma vela do que maldizer a
escuridão; e é assim que vejo o Rago, sempre nadando na contracorrente e
mantendo firme a integridade de seu caráter, sobretudo quando parece que
estamos sozinhos, quando outros tantos que, na mesma luta pela emancipação
humana, foram vencidos pela exacerbação da vaidade. Agradeço ao Rago pelos
ensinamentos teóricos e, especialmente, por ser esta monumental referência
humana.
Agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(Fapesp) pelo apoio financeiro nos últimos três anos desta tese, sem o qual seria
improvável continuar com os estudos.
Agradeço aos professores que participaram de minha banca de
qualificação e defesa de tese, como titulares e suplentes: Prof. Dr. Antonio Rago
Filho (PUC/SP), Prof. Dr. Anderson Deo, Profª. Drª. Maria Orlanda Pinassi, Ester
Vaisman (UFMG) – à Ester, pelo apoio sempre firme a todo tempo; Prof. Dr.
Antonio Carlos Mazzeo; e Profª Drª Fátima Cabral.
Agradeço aos professores das disciplinas que cursei: à Profª. Drª. Arlenice
Almeida (Unifesp), pelas preciosas aulas sobre romantismo e modernidade; ao
Prof. Dr. Francisco Luiz Corsi, pelo minucioso e atualizado curso sobre a crise do
capital; à Profª. Drª. Fátima Cabral e ao Prof. Dr. Jayme Gasparotto pelos cursos
de epistemologia e metodologia; ao Prof. Dr. Alexander Keyssar (Harvard – John
Kennedy School) pelo curso sobre a constituição da democracia americana.
Agradeço aos meus familiares pelo apoio amoroso sempre firme: José,
meu pai; Clair, minha mãe; e Cristiane, minha irmã. Do mesmo modo, pelo
incentivo, agradeço aos meus verdadeiros amigos: Anderson Guahy (pela
generosidade fraterna); Joana D. V. Santos (apoio em momentos difíceis);
Leandro S. Ribeiro (por ter ouvido acerca de cada passo de minha tese, em
reflexões que tínhamos correndo no parque); Michel Martins da Silva (pela leitura
que realizou da tese, e pela cumplicidade nas posições políticas); Thiago
Antunes; Vitor Sartori; Alessandro de Moura; Clayton Pestana; e Aparecida
Menon Rodrigues.
Nos últimos dez anos desta minha jornada acadêmica, a minha amada
Suelen me acompanhou. E acompanhar, muitas vezes, significou estar comigo
apesar da distância. Na sua biografia em diálogos, Lukács disse que desde que
encontrou Gertrud, ser aprovado por ela passou a ser o problema central de sua
vida. É deste modo que vejo a Suelen, como Lukács via sua companheira: sua
sabedoria é o simples impulso intacto de um autêntico ser humano que quer uma
vida com sentido, só realizável no amor. Eu agradeço à Suelen por sua
imprescindível companhia, por sempre, ao seu modo, estar perto de mim, tão
perto que se fecham teus olhos com meu sonho.
RESUMO Esta tese analisa as concepções de generidade e politicidade na última trajetória filosófica de György Lukács (1956-1971). Os textos analisados são Para uma ontologia do ser social, incluindo seus Prolegômenos, e os seus escritos políticos derradeiros, com notado destaque a O processo de democratização. A questão crucial da ontologia do ser social em Lukács está envolta à dilucidação da generidade humana, momento peculiar da esfera do ser biológico que, ao cindir-se com a natureza, eleva-se a uma generidade completamente inédita devido ao surgimento do pôr teleológico, isto é, os atos que visam a transformação finalística do mundo. Ao fixar o pôr teleológico como organismo gerador da generidade do ser social, e ao fixar a disseminação das posições teleológicas como o conteúdo dinâmico da vida social, Lukács impossibilita a confusão entre a vida da natureza e a vida da sociedade: a primeira é dominada pela causalidade espontânea, não-teleológica; enquanto a segunda é constituída pelos atos da práxis dos indivíduos singulares. Neste sentido, Lukács se depara com a percepção do caráter alternativo de toda resolução humana, verificando que o conjunto dos pores teleológicos gera uma causalidade posta que apenas em partes é controlada pelo indivíduo singular. Com o desenvolvimento de uma generidade qualitativamente mais ampla, os homens passam a ter maior controle sobre suas alternativas e sobre os resultados de seus atos finalísticos. A política, então, é um dos momentos do pôr teleológico secundário, pois tal ato finalístico visa a influenciar os atos dos outros indivíduos singulares – de modo que a política é um tipo de práxis voltada para a totalidade social. O campo de ação dos indivíduos singulares é aumentado a cada complexificação social que origina um processo de desenvolvimento da generidade através dos atos políticos oriundos da cadeia de alternativas. Politicidade e generidade aparecem na fase madura de Lukács com liames inextrincáveis; pois a atuação social em busca da generidade humana finalmente universal deve ser baseada, para Lukács, num critério ético que tem na vida dos indivíduos singulares uma importância política, pré-requisito indispensável para uma práxis correta. Formuladas as determinações categoriais da generidade e da politicidade, por fim, a politicidade é abordada em sua objetividade na obra tardia de Lukács, quando o filósofo reivindica tanto a possibilidade de uma nova generidade qualitativamente superior com o socialismo em um só país, como uma necessária estruturação da política soviética por meio de uma democracia da vida cotidiana, condição necessária para o estágio transitório do socialismo. Palavras-Chave: generidade; politicidade; György Lukács; socialismo.
ABSTRACT This search analyzes the concepts of genericity and politicity in the last philosophical trajectory of György Lukács (1956-1971). The analyzed texts are Ontology of Social Being, including its Introduction, and their latest political writings, specially Democratisation Today and Tomorow. The crucial question of the ontology of social being for Lukács it is shrouded the elucidation of human genericity, peculiar moment the sphere of biological being that, when cleaved with nature, stands at a completely unprecedented genericity, due to the appearance of putting teleological, in other words, the acts aimed at finalistic transformation of the world. Fixing the teleological put how generator organism of genericity of social being, and to secure the dissemination of teleological positions how the dynamic content of social life, Lukács prevents confusion between the life of nature and society life: the firts, the first is dominated by the spontaneous causality, non-teleological; while the second consists of the acts of praxis of single individuals. In this way, Lukács is faced with the perception of alternative character of all human resolution, verifying that the set of teleological putting generates a pose causality wich is controlled only partially for single individual. With the development of a qualitatively wider genericity, humans now have greater control over their alternatives, and over the results of their finalistics actions. The politics is one of the moments of the secondary teleological put, so, because such finalistic act aims to influence the actions of other single individuals, so that politics is a kind of practice focused on social totality. The action field of single individuals is increasing every social complexity, which causes a deployment process of genericity, through political acts originating from alternative chain. Politicity and genericity appear in the mature stage of Lukacs with inextricable bonds; because the social action in pursuit of finally universal human genericity should be based an ethical criterion that has in the lives of single individuals a political importance, for Lukács, prerequisite for the pure praxis. Once formulated categorical determinations of genericity and politicity, finally, the political dimension is covered in its objectivity in Lukács’s later work, when Lukács claims the possibility of new high genericity on socialism in one country, and a necessary structure of USSR based on democracy of cotidian life, a necessary condition for the transitional stage of socialism. Keywords: genericity; politicity, György Lukács, socialism.
SUMÁRIO INTRODUÇÃO 13 CAPÍTULO 1 MARX: A CRÍTICA ONTOLÓGICA DA POLÍTICA 40 1.1 Do amálgama tríplice originário à crítica ontológica 40 1.2 Ontonegatividade da politicidade 51 1.3 Críticas da filosofia especulativa e da economia política: a constituição marxiana da ontologia do ser social 63
CAPÍTULO 2 GENERIDADE E INDIVIDUALIDADE 125 2.1 O pôr teleológico: o desenvolvimento da generidade 125 2.2 A política como pôr teleológico secundário e o campo de ação dos indivíduos singulares 166
CAPÍTULO 3 O TESTAMENTO POLÍTICO DE LUKÁCS 188
3.1 Carta sobre o stalinismo e o posfácio de Meu caminho para Marx 189 3.2 O processo de democratização 196 3.3 Os limites da resolução lukacsiana 232
CONSIDERAÇÕES COMPLEMENTARES 245 BIBLIOGRAFIA 284
13
INTRODUÇÃO György Lukács foi um pensador político, não um pensador da política, é o
que conclui José Paulo Netto em sua apresentação aos Escritos Políticos de
Lukács (Lukács, 2008, p. 21), obra que resgata a última fase de tais escritos do
filósofo húngaro. Esta última fase é compreendida a partir dos impactos trazidos
pela desestalinização e as sequentes sublevações populares no Leste Europeu,
em 1956, até o ano de sua morte, em 1971. Mészáros (Mészáros in Bottomore,
2001, p. 222) determina ao menos cinco fases cronológicas da vida política de
Lukács, sendo que a última compreende justamente o retorno de Lukács para
Budapeste em 1957 e a elaboração de sua Ontologia. Tertulian (2007, p. 5)
verifica, neste sentido, que o itinerário político de Lukács é marcado, em sua
última fase de vida, de 1956 a 1971, por uma profunda revisão política do
stalinismo e do socialismo soviético – momento peculiar lukacsiano que não se
pôde verificar em outros filósofos que foram igualmente assombrados pelo
fantasma do stalinismo, como Ernest Bloch, Henri Lefèvre e Louis Althusser –,
um corajoso feito de Lukács realizado como acerto de contas de sua própria
trajetória pessoal, mas, antes de tudo, pela importância de seu engajamento
político no destino do movimento comunista mundial.
14
Um dos maiores dilemas de Lukács diz respeito à relação entre a base
material da sociedade e as várias formas da consciência social, e isso permeou o
pensamento de Lukács de História e consciência de classe até os seus últimos
escritos políticos, como percebe Mészáros (2002, p. 469). Durante toda a sua
vida, Lukács persegue esse problema da consciência humana emancipatória,
procurando soluções para os problemas políticos enfrentados no mundo,
procurando uma intervenção direta da consciência social em tais problemas.
Sem abandonar o campo da estética, não obstante, Lukács procurou sentido
num programa universalista do marxismo, a construção de uma filosofia marxista
realmente unitária, menciona Oldrini (2002, p. 60), indiretamente ratificando a
indicação de Mészáros. A determinação da politicidade na última fase de vida de
Lukács perpassa o itinerário do apreender da consciência humana e de sua
construção da vida ética, de modo que não é possível desvinculá-la da
elaboração de sua Ontologia, que tem por núcleo a decifração da generidade,
particularmente a explicitação da peculiaridade da generidade humana no
conjunto das esferas do ser biológico. Politicidade e generidade aparecem na
fase madura de Lukács com liames inextrincáveis; pois a atuação social em
busca da generidade humana finalmente universal (Lukács, 2010, p. 323) deve
ser baseada num critério ético que tem na vida dos indivíduos singulares uma
importância política, pressuposto indispensável para uma práxis correta.
Expondo as forjas da generidade, Lukács buscava a elaboração de fundamentos
teóricos para uma práxis política efetiva, questão que lhe impunha como
imprescindível no renascimento do marxismo (Lukács, 2010, p. 324). A ontologia
da vida social e a determinação da política se fundem de modo incontornável, e
Tertulian também vê isto e do seguinte modo:
A ontologia da vida social, na visão de Lukács, se traduz in politicis por uma mescla de inflexibilidade e de flexibilidade; se os pesos da história, suas contradições e seus atalhos, exigem uma grande flexibilidade na elaboração da tática e da estratégia política para poder tomar em conta toda a multiplicidade de mediações, o horizonte permanente da ação não pode ser outro que a livre auto-determinação dos indivíduos, telos último da vida social. (Tertulian, 2007, p. 40)
15
A vida ética e as formas da consciência social sempre estiveram no ponto
culminante da obra de Lukács e acabaram por balizar todos os seus estudos –
das bases ontológicas da consciência à estética ou seus ensaios sobre literatura
e arte, o que nos faz concluir antecipadamente que a luta pela vida ética e o
desenvolvimento cultural da humanidade estavam imbricados no pensamento de
Lukács; vale notar que parte substancial de sua Estética esteve em torno da “luta
pela libertação”, fusão inseparável entre a consciência dos indivíduos singulares
e a emancipação humana. Oldrini é muito preciso na afirmação que reforça os
vínculos entre a verdadeira demonstração categorial da politicidade em Lukács e
as forjas da generidade humana:
[...] a aquisição imediata de maior eficácia do método marxiano, a da luta de classes como força motriz decisiva da história do gênero humano enquanto fator operante ontologicamente, não pode ser apreendida plenamente se, por sua vez, não se compreende que todas as decisões das quais surge a individualidade humana como tal, como superação da mera singularidade, são momentos reais validados e que validam o processo global. (Oldrini, 2002, p. 75).
Os acontecimentos históricos de sua época tornearam a visão de Lukács
acerca da política, a tal ponto que o fato que o leva a escrever sobre a ontologia
do ser social não fora outra coisa senão um posicionamento político firme contra
a adulteração que o pensamento marxiano estava a sofrer por décadas de uma
política stalinista e pela ofensiva, sobretudo, da apologética do capital. Deste
modo, temos a insistência lukacsiana de que ninguém se ocupou da ontologia
tão intensamente quanto Marx, e de que a tarefa necessária daquele momento
era a recomposição de Marx no itinerário da decifração das características do ser
social.
A Revolução Russa como a insurreição vitoriosa no elo mais fraco da
corrente e a subsequente derrota da revolução mundial com o massacre que se
abate sobre os Spartakusbund na Alemanha trouxeram um novo dilema no
itinerário político da esquerda revolucionária mundial. Sempre na cabeceira dos
debates mais avançados sobre a política revolucionária, e não sucumbindo frente
à torrencial ofensiva do capital, Lukács optou por sempre permanecer na assim
chamada luta institucional, mantendo-se no movimento comunista internacional,
16
no seu partido comunista – que se submetia, obviamente, ao Komintern – e
sempre atuando na defesa da União Soviética; num primeiro momento,
defendendo a possibilidade do socialismo em um só país e na luta contra a
ameaça fascista que avassala parte substancial da Europa, e posteriormente em
embate contra as provocações belicistas da Guerra Fria. Mas isto lhe tem um
custo muito alto: no mundo ocidental, em especial nos meios da apologética do
capital, a obra estética de Lukács era vista como afetada por uma defesa
incondicional da União Soviética da era stalinista; no mundo soviético, Lukács
manteve citações protocolares aos arautos soviéticos. Tertulian (2007, p. 6)
recorda que Lukács fora, de um lado, por uma parte da própria esquerda,
vilipendiado como um revisionista e acusado de ter inventado o conceito de
stalinismo, para combater o próprio stalinismo e a própria União Soviética,
procedendo com uma revisão do leninismo, com o intuito final de “juntar e
desencadear o ataque das forças contra-revolucionárias”, sobretudo a partir do
XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 1956, no qual
Khrushchev intenta uma pseudodesestalinização da burocracia soviética. De
outro lado, acusavam Lukács de ser um “dócil intérprete das injunções stalinistas,
as interiorizando mesmo a ponto de as sublimar em seu discurso crítico e
filosófico”, como concluiu Isaac Deutscher ao verificar os escritos lukacsianos
sobre Thomas Mann. Teria Lukács se curvado às exigências stalinistas? Lukács
teria levado até as últimas consequências a sua concepção leninista de partido
político ou, ao final da vida e diante dos acontecimentos da insurreição de
Budapeste reprimida pelo Pacto de Varsóvia, teria realizado uma guinada política
voltando-se ao internacionalismo revolucionário? Refugiado no campo da cultura,
Lukács tratou também de modo direto da política – tanto do ponto de vista
abstrato, com a ética; como em posicionamentos diretos sobre os
acontecimentos objetivos. Os acontecimentos de Praga, de Budapeste e da
Polônia na década e meia que seguem de 1956 até o maio francês de 1968 são
também responsáveis por uma intensa reflexão política na vida de Lukács,
promovendo transformações em sua conduta política e em sua obra. Neste
momento, Lukács empreende um esforço de retornar a Marx, o que marca em
definitivo o marxismo da última metade do século passado.
17
Muitos críticos ignoram a obra madura de Lukács, ou tentam fazer dela a
redenção ou o retorno à sua obra juvenil, como é o caso de Michael Löwy (1998,
p. 257), que acreditou enfaticamente que a morte de Lukács interrompia “uma
espantosa volta às raízes”, diante dos acontecimentos revolucionários em
Budapeste. Visão que é aceita também por Marshall Berman (2001, p. 206-208),
que apresenta um Lukács subserviente à União Soviética por toda a sua vida,
renegando inclusive suas obras a pedido do Partido, tendo uma guinada após ser
interrogado no castelo da Transilvânia, negando-se a delatar os líderes da
primavera húngara, sobretudo Imre Nagy. Löwy e Berman desconsideram o
momento mais importante da produção intelectual de Lukács: a composição de
sua ontologia do ser social. Por este exato motivo, suas análises, apesar de
verdadeiras até certo ponto acerca da tragédia pessoal de Lukács, são parciais e
limitadas ao itinerário que História e consciência de classe teve no
desenvolvimento da União Soviética e do movimento comunista internacional,
isto é, uma obra de Lukács escrita no calor do momento dos acontecimentos
insurrecionais na Rússia e na transformação do mundo, e reavaliada num
posfácio de 1967, aliás, passados momentos críticos da ascensão stalinista, dos
grandes expurgos e do isolamento da revolução sitiada no elo mais fraco. Duas
das questões centrais do marxismo dilucidadas por Lukács são ignoradas na
crítica de Berman (2001) e nos escritos de Löwy (1998) – mas são
adequadamente pontuadas por Nicolas Tertulian (2010) – a saber, a
irreversibilidade dos processos históricos; e o modo como o conjunto social se
move por meio dos pores teleológicos que resultam numa causalidade posta.
Este é o autêntico tertium datur lukacsiano: a recusa da teleologia teológica de
Hegel, bem como a impugnação do historicismo ou da perspectiva naturalista da
história. Tertium datur lukacsiano do qual ninguém pode prescindir numa
investigação do marxismo, o que por si só já basta para posicionar Lukács no
panteão dos mais importantes debatedores da obra de Marx. O que não seria
exagerado dizer que o marxismo pode se resumir em antes e depois da
apresentação lukacsiana da ontologia do ser social em Marx. Com grande
precisão, por ocasião do lançamento da edição brasileira de Para uma ontologia
do ser social, José Paulo Netto lança a questão acerca de que a ontologia do ser
18
social de Marx apresentada por Lukács abre um novo cenário teórico-filosófico
para o desenvolvimento do marxismo e, se de um lado, não possui magicamente
todas as respostas para o ressurgimento do marxismo autêntico, de outro,
nenhum ressurgimento ocorrerá se esta obra for ignorada.
A então suposta impugnação parcial de História e consciência de classe
por Lukács – é o que veremos ao longo da análise sobre a sua Ontologia – é
muito mais resultado de uma percepção mais completa do mundo do que
resultado de uma rejeição adaptativa à luta institucional, o que possivelmente
deixou escapar o brilhante estudioso da modernidade Marshall Berman. Vejamos
o que o próprio Lukács diz sobre este propósito – passagem que se tornará clara
após a explicitação da complexa ontologia do ser social ao longo da tese.
[...] O que se nota, sobretudo, é que História e Consciência de Classe representa objetivamente – contra as intenções subjetivas de seu autor – uma tendência no interior da história do marxismo que, embora revele fortes diferenças tanto no que diz respeito à fundamentação filosófica quanto nas conseqüências políticas, volta-se, voluntária ou involuntariamente, contra os fundamentos da ontologia do marxismo. Tenho em vista aquelas tendências que compreendem o marxismo exclusivamente como teoria social ou como filosofia social e rejeitam ou ignoram a tomada de posição nele contida sobre a natureza. [...] Meu livro assume uma posição muito firme nessa questão; em diversas passagens, a natureza é considerada como uma categoria social, e a concepção geral consiste no fato de que somente o conhecimento da sociedade e dos homens que vivem nela é filosoficamente relevante. [...] Isso demonstra, por um lado, que é precisamente a concepção materialista da natureza a separar de maneira radical a visão socialista do mundo da visão burguesa; que se esquivar desse complexo mitiga a discussão filosófica e impede, por exemplo, a elaboração precisa do conceito marxista de práxis. Por outro lado, essa aparente elevação metodológica das categorias sociais atua desfavoravelmente às suas autênticas funções cognitivas; sua característica especificamente marxista é enfraquecida, e, muitas vezes, seu real avanço para além do pensamento é inconscientemente anulado. (Lukács, 2013, p. 14-15).
A longevidade da qual Lukács desfrutou traz momentos distintos e até
mesmo contraditórios em sua concepção de mundo, e isto não pode ser outra
coisa senão o resultado de seu amadurecimento filosófico e de sua hipertrofia do
campo de percepção da totalidade do mundo. Isto não significa um revisionismo
19
de Lukács, mas, pelo contrário, sinaliza uma constante luta e um incansável
esforço na tentativa da compreensão da totalidade complexa do mundo; não foi
sem motivos que Ricardo Antunes lhe deu o apodo de novo Galileu. Muito bem
demonstrado por Nicolas Tertulian (2008) em seu livro sobre as etapas do
pensamento estético de Lukács, antes de significar um problema de ordem
estrutural ou lógica em seu pensamento, as diferentes fases de Lukács são, na
realidade, um aumento de sua capacidade de compreensão dos fenômenos
sociais que pululavam na imediaticidade da vida cotidiana. Noutras palavras, a
letra lukacsiana não foi tolhida por uma covardia frente aos acontecimentos do
mundo; muito pelo contrário, a situação social concreta, o hic et nunc político foi
a pedra angular de seu pensamento – inclusive de seu pensamento estético, já
que não é possível desmembrar a obra de Lukács numa díade entre estética e
política de maneira totalmente desvinculada. Não custa lembrar que lá atrás em
sua juventude, em 1924, no opúsculo Lenin, um estudo sobre a unidade de seu
pensamento, Lukács (2012) já tinha a vida cotidiana como ponto de partida e
chegada de toda análise efetiva – Miguel Vedda, na apresentação à edição
brasileira desta obra de Lukács, compreende esta extensão analítica lukacsiana
se formando numa crescente que mais tarde será sistematizada pelo próprio
Lukács em todos os seus termos no prólogo da Peculiaridade do estético, em
1963.
Toda atividade parte da vida cotidiana e é para ela que volta, chega
Lukács à conclusão de seus estudos sobre a práxis política em 1924 – não nos
surpreende que a visão de mundo de Lukács acerca da política estivesse, então,
alicerçada no pensamento de Lenin. Até o fim de sua vida, este ponto primordial
da vida cotidiana como forma de saída e chegada da práxis vai ser reiterado –
tanto em seu testamento político, os seus últimos escritos, como também em
recorrentes passagens de sua Ontologia.
Apesar disso, o seu momento até então insuficientemente digerido acerca
do pensamento cotidiano é abandonado no calor dos acontecimentos que
entalham o rumo da vida soviética após a morte de Lenin. A Realpolitik limita-o
em seu campo de possibilidades, e Lukács não vê para ele ali outra situação
senão lutar pelas vias institucionais. Por este motivo, ainda nos anos 1920,
20
Lukács acreditava que democracia dos conselhos [Rätedemokratie] e da
autogestão [Selbstverwaltung] das massas significava uma democracia da vida
cotidiana. Pois a democracia deveria se estender aos momentos mais simples da
vida cotidiana, e dali enraizar-se como critério de conduta de todo ordenamento
de decisões mais importantes da comunidade. Esta posição lukasciana
reafirmada mais tarde em sua obra política derradeira, já se encontrava
elaborada no escrito Lenin (Lukács, 2012). Este escrito, contudo, abre um divisor
de águas em seus escritos de juventude, pois, nestes, a vida cotidiana emergia
apenas como o reino da alienação, da qual o distanciamento crítico era a única
saída. Observa Miguel Vedda (Lukács, 2012, p. 8) que no ensaio A alma e as
formas existe ainda um antagonismo insanável entre vida empírica e vida
verdadeira, sendo a primeira sempre apresentada em termos pejorativos. E de
algum modo há a persistência desta concepção em História e consciência de
classe (Lukács, 2003), tratado com o termo de “nocivo espaço da atualidade”. No
fundo, o pensamento lukacsiano voluntarista de sua juventude e de sua fase
transitória para o marxismo era uma tentativa de lutar contra o economicismo da
Segunda Internacional. Apesar disso, resulta numa atitude voluntarista ainda
mais severa, da qual um marxista ortodoxo não poderia agir de outro modo
senão com total indiferença para com as condições objetivas, o que se vê
claramente expresso em Tática e ética. O idealismo exacerbado cuja síntese
seria a suposição de que a decisão precede o fato é presente nesta obra, o que
não causa nenhum espanto, então, a existência no término do artigo de uma
alusão positiva a Fichte. Neste momento, em 1920, em Sobre a questão do
parlamentarismo, Vedda lembra que Lukács reivindicava uma eticidade isolada
da objetividade, para quem a pureza ética do comunismo só poderia ser mantida
em afastamento completo com as instituições burguesas (Lukács, 2012, p. 10).
Após tal publicação na revista Kommunismus, Lenin rebateu o panfleto de
Lukács escrevendo A doença infantil do “esquerdismo” no comunismo (Lenin,
2004), condenando as orientações subjetivistas de vários teóricos, dentre eles,
Lukács. Vedda observa que são traços de História e consciência de classe um
rigorismo ético e uma desatenção pela vida cotidiana, o que implica uma
ausência de mediação concreta entre teoria e práxis – sobretudo se pensarmos
21
nos conceitos weberianos atribuídos ao marxismo, como consciência ideal e
consciência atribuída. Deste modo, Lukács rejeitou a vida cotidiana como espaço
de resolução dos conflitos diretos da classe trabalhadora, e em seu lugar, o
rigorismo ético aparecia encarnado no próprio partido comunista, que detinha a
vanguarda de revolucionários capazes de encarnar a consciência altiva e
autêntica do proletariado – mesmo que desvinculado das classes –, ou seja, os
ideais humanos mais altos. Diante disso, o contato com a classe in toto por parte
dos revolucionários não era uma necessidade efetiva, mas mera atitude
acessória. Tais intelectuais, liberados da reificação que domina a consciência
dos demais homens sob o jugo do capitalismo, encarnariam o objetivo final do
proletariado acima de todo e qualquer entrave ou derrota na sua vida pessoal
cotidiana, já que a vitória do proletariado dependeria de sua consciência de
classe universal, e não do triunfo ou fracasso de sua luta individual (Lukács,
2012, p. 14). Neste idealismo juvenil lukasciano, desimportavam a luta cotidiana
dos homens, levada a cabo por homens reais e concretos e em condições
objetivas reais e concretas. Numa crítica pontual, Miguel Vedda assim determina
este momento de abandono das ilusões de György Lukács:
A realidade histórica que abalou as certezas dogmáticas de Lukács foi a estabilização relativa da onda revolucionária em plano mundial. Cabe destacar que o voluntarismo entusiasta promovido pelo filósofo desde seu ingresso no marxismo até a chefe d’oeuvre de 1923, e que se encontra presente ainda em alguns escritos posteriores – a postulação do proletariado como sujeito-objeto idêntico, a entronização da consciência de classe atribuída, a desatenção com as condições históricas e materiais, a supremacia de classe –, tem bases históricas, ainda que não estivesse disposto a reconhecê-lo o próprio Lukács. Com efeito, encontram-se fundadas na crença escatológica (compartilhada por numerosos intelectuais da época) e na pronta realização da revolução em plano mundial, qual um Messias que haveria de chegar para pôr fim à história e consumar o passo desde o reino da necessidade até o da liberdade. (Vedda in Lukács, 2012, p. 14-15).
Por este motivo, a obra madura de Lukács foi permeada por uma situação
de mea culpa quanto a um idealismo juvenil e de um reconhecimento da
objetividade como campo imediato das ações, donde sai e retorna toda e
22
qualquer análise da prática. Basta lembrarmos que em seu ensaio sobre Balzac
(Lukács, 1965), escrito no ano de 1935, Lukács mencionava a riqueza da
estrutura objetiva da realidade, especialmente ao demonstrar como a realidade
objetiva impulsiona à necessariedade da ruína de Luciano em As ilusões
perdidas, pois, em choque com a realidade objetiva, as veleidades idealistas do
personagem de Balzac caem por terra – a própria ideia de que o realismo
balzaquiano se funda na ação dos indivíduos na vida cotidiana é uma espécie de
redenção de seus equívocos juvenis. A reivindicação da ação como campo
possível de retratar a vida no romance também faz parte desta nova concepção
do mundo (Lukács, 1999 b, p. 95), facilmente visualizável em O romance como
epopeia burguesa.
Apesar de significar uma evidente transformação positiva, o opúsculo
lukacsiano de 1924 sobre Lenin ainda demonstra um Lukács carente de
conteúdo sobre Marx, o que, a partir dos anos 1930 será superado
definitivamente. O ano de 1924, ano da morte de Lenin e momento em que
Lukács redige este ensaio é de fundamental importância em seus
posicionamentos políticos. Ao reeditar em 1967 seu História e consciência de
classe, assim o filósofo húngaro aponta este momento no aludido posfácio:
Já mencionei que, em certo sentido, História e consciência de classe representou a síntese e o termo do meu período de desenvolvimento, que começou em 1918-19. Os anos seguintes mostraram isso de maneira cada vez mais evidente. Sobretudo o utopismo messiânico desse período perdia progressivamente sua real influência (inclusive a que parecia ser real). Em 1924 morre Lenin e, após sua morte, as disputas partidárias concentram-se de modo cada vez mais intenso na possibilidade de construir o socialismo num só país. Naturalmente, o próprio Lenin já havia se manifestado há muito tempo sobre essa possibilidade teórica e abstrata. Todavia, a perspectiva da revolução mundial, que parecia próxima, destacava naquela época o seu caráter meramente teórico e abstrato. O fato de que doravante a discussão passasse a girar em torno dessa possibilidade real e concreta mostrava que nesses anos quase não se podia contar seriamente com a perspectiva de uma revolução mundial. (Esta ressurgiu, por algum tempo, com a crise econômica de 1929.) Além disso, após 1924, a III Internacional estava certa em conceber a situação do mundo capitalista como uma “estabilização relativa”. Para mim, esses acontecimentos também significavam a necessidade de uma nova orientação teórica.
23
Minha posição a favor de Stalin nas discussões do Partido Russo pelo socialismo num único país mostrava muito claramente o início de uma mudança decisiva. (Lukács, 2003, p. 32-33).
Esta viragem lukacsiana nos anos posteriores à revolução vitoriosa na
Rússia e a institucionalização da União Soviética foi determinante no itinerário
político do filósofo húngaro nas décadas seguintes. A burocratização dos
conselhos soviéticos também foi um fato que pesou sobre a reflexão de Lukács
nos anos seguintes. Neste sentido, o ano de 1926 é particularmente importante
na edificação do stalinismo como doutrina política dominante naqueles anos. É o
ano em que Stalin publica Questões do leninismo, que nada mais é do que a
primeira formulação explícita da doutrina stalinista do socialismo em um só país,
e é o ano da XV Conferência do Partido Comunista da União Soviética, no qual
se exclui do Bureau político a oposição de esquerda – particularmente, Trotsky,
Zinoviev e Kamenev. De acordo com Michael Löwy (1998, p. 232) este é o ano
em que Lukács começa uma mudança significativa em sua conduta política rumo
ao stalinismo, e da mesma forma que o processo de radicalização de Lukács em
direção ao marxismo se deu inicialmente de modo estético e moral, também esta
guinada ao stalinismo assume formas filosóficas e culturais em 1926 para, em
1928, assumir forma política explícita – é forçoso reconhecer que Lukács
defende posteriormente os processos de Moscou (Lukács, 1977, p. 3). Löwy
chama a atenção para um escrito político menor de Lukács, intitulado O Hyperion
de Hölderlin, de 1935, no qual é feita uma referência a Hegel como o filósofo que
possui o mérito de ter aceitado o Termidor do processo revolucionário como o
desfecho de um mundo para o começo de outro, como um novo rumo da história
universal, fazendo referência, de algum modo ao Termidor soviético – é
sintomático que no mesmo período, Trotsky estava a comparar veementemente
o período stalinista ao Termidor francês. É uma óbvia resposta de Lukács a
Trotsky, uma resposta que continha um conteúdo filosófico da reconciliação e
aceitação da nova ordem stalinista, tal qual teria sido também o mérito de Hegel
em compreender a evolução revolucionária jacobina como fases necessárias
para a realização plena do espírito da história. Isto significa também uma tácita
aceitação de Lukács: a era stalinista poderia ser considerada termidoriana. Löwy
24
não tem dúvidas ao afirmar que este texto de Lukács constitui “uma tentativa, das
mais inteligentes e sutis, para justificar o stalinismo como uma ‘fase necessária’,
‘prosaica’, mas ‘de caráter progressista’ da evolução revolucionária” do
proletariado concebida como um “processo unitário” (Löwy, 1998, p. 236). De um
modo muito trágico, o “processo unitário” mostrou-se muito pouco unitário, e o
Termidor stalinista foi muito mais nefasto para a revolução socialista que o
Termidor francês havia sido para a revolução burguesa na França.
Ainda em 1928, com as Teses de Blum, sob este pseudônimo, Lukács
reivindica que o Partido Comunista Húngaro não lutasse mais por uma política de
conselhos operários, uma revolução socialista direta, mas intentasse a etapa
burguesa da democratização nacional como meio de afastar as tendências da
ultradireita da vida nacional húngara. Em relação ao fascismo, a nova política
sectária do Komintern – acusando os social-democratas de social-fascistas –
tinha acabado de se iniciar, o que colocava Lukács numa posição dúbia, assim
definida por Löwy:
O conjunto das Blum-Thesen é, ao mesmo tempo, um prolongamento da linha dos anos 1924–1927 e uma prefiguração da estratégia de frente popular dos anos 1934–1938. Ora, com relação ao Komintern, elas vinham, ao mesmo tempo, muito tarde e muito cedo; iam frontalmente de encontro à virada ultra-sectária do “Terceiro Período” (1928-1933) que acabava de começar. O resultado é que Lukács imediatamente viu cair sobre si uma verdadeira torrente de críticas contundentes, sob forma de uma “Carta Aberta do Comitê Executivo da Internacional Comunista aos membros do Partido Comunista Húngaro”, que acusa as “teses liquidacionistas do camarada Blum” de situarem-se sob o prisma da social-democracia e de querer “combater o fascismo no terreno da democracia burguesa”. (Löwy, 1998, p. 238).
Após a intervenção do Komintern no andamento das posições políticas do
Partido Comunista Húngaro, Lukács temeu ser expulso do partido e publicou
uma retratação, chamando suas teses de espúrias de um “oportunista de direita”
– ainda que ele acreditasse nestas teses. Lukács escreveu sua autocrítica devido
ao perigo de vida que supostamente poderia lhe acometer? É muito provável que
não, mesmo porque não corria risco algum naquele momento (Lukács pôde viajar
a Alemanha em 1931, sem nenhuma dificuldade); a justificativa é, mais uma vez,
porque Lukács preferia capitular diante das posições soviéticas e ainda continuar
25
a fazer parte das decisões mais importantes no rumo do socialismo a ter que
lutar na clandestinidade do partido institucional. Seu argumento, anos depois,
quando precisou justificar tal conduta, foi que uma expulsão do partido naquele
momento significava não ter mais como participar ativamente da luta mais efetiva
antifascista (Löwy, 1998, p. 239). No entanto, o stalinismo volta as costas a esta
luta e proclama o Partido Social-Democrata Alemão como o inimigo cujo
movimento comunista deveria dirigir o golpe principal. Lukács refugiou-se no
campo da cultura e da literatura, voltando-se aos seus estudos juvenis. Ainda
assim manteve intensa atividade política contestatória nestes escritos literários,
mesmo que de modo sutil. Tudo isso porque Lukács sempre esteve convencido
de que uma forma cultural mais rica era condição imprescindível da
humanização, sendo a estética, de alguma forma, uma luta emancipatória. Ainda
cedendo à política geral stalinista nas linhas do abandono do internacionalismo
revolucionário e da defesa da possibilidade do socialismo em um só país, Lukács
manteve sua autonomia intelectual – basta lembrar seu posicionamento anti-
Brecht como demonstração de rompimento com uma linha mecanicista que via
na literatura burguesa uma apologética do capital, e, por via de consequência, no
realismo socialista o seu oposto. Era um potencial opositor de Stalin, mesmo
dentro da luta institucional soviética. A hipótese de sua prisão, em 1941,
sustentada coerentemente por Löwy (1998, p. 245) e por Eörsi, era a de que,
crítico de Stalin e da política antifascista assumida pelo Komintern, Lukács seria
uma ameaça ao momento político da União Soviética: o Pacto Molotov-
Ribbentrop. Não foi por outro motivo que a sua autobiografia política escrita ad
hoc para a polícia soviética no momento de sua prisão oculta justamente a sua
posição pela frente-popular socialista, de modo que Hitler e Trotsky nem sequer
são mencionados. Na oportunidade de recompor a crítica ao stalinismo, após a
morte de Stalin e a ulterior denúncia de Khrushchev dos crimes do stalinismo e
dos graves problemas referentes ao culto da personalidade de Stalin, Lukács
ponderou a crítica à figura do stalinismo, e poupou a política stalinista –
especialmente pelo motivo da desestalinização incompleta que o Partido
Soviético estava a realizar. Carta sobre o stalinismo foi escrita em 1963, logo
após a realização do XXII Congresso do Partido Comunista da União Soviética.
26
Nesta carta, Lukács afirma que a salvação da revolução soviética foi a doutrina
da edificação do socialismo em um só país, alçada por Stalin – e que seu grande
mérito foi ter derrotado Trotsky, especialmente pela descrença deste na
possibilidade da manutenção do socialismo em um só país. Do ponto de vista
tático, Lukács demonstra que Stalin poderia ter tomado outras condutas, como a
questão teórica problemática acerca do marxismo-leninismo, mas do ponto de
vista estratégico, Lukács reiterava a postura stalinista; e com esta carta,
novamente estava disposto a lutar pelo marxismo no campo institucional
soviético.
Um pouco antes deste processo de desestalinização, com as sublevações
que precedem o outubro de 1956 na Hungria, as demandas para a uma nova
democracia emergem novamente no cenário político do Leste Europeu, e agora
com um novo fator desde a derrota da extrema direita nazista: junto com a
rejeição do socialismo de tipo soviético, a direita começa a ganhar força
ideológica novamente. A insistência na nova democracia leva Lukács (2008, p.
18) a lançar a revista Eszmélet com Tibor Déry, Giullia Illiés e István Mészáros –
este se refugia na Inglaterra após a ocupação soviética sobre Budapeste, quatro
meses após o anúncio do processo de desestalinização. De junho a novembro,
Lukács participa da refundação do Partido com ânimo invejável, e torna-se
Ministro da Cultura do governo de Nagy. Contudo, Nagy cometera o erro tático
de tentar transformar a Hungria numa extensão da zona neutra formada pela
Suíça e pela Áustria, e de 4 a 10 de novembro de 1956, o exército soviético
invade Budapeste e põe fim à primavera húngara, garantindo a permanência da
Hungria no espaço estratégico soviético (Del Roio, 2013) – Lukács é deportado,
preso e interrogado na Romênia. Retorna no ano seguinte para a Hungria (abril
de 1957) e se nega a escrever uma autocrítica sobre estes acontecimentos a
pedido do Partido. Por isso mesmo, seu reingresso no partido refundado é
indeferido. A questão democrática, por este motivo, volta a ter a importância
decisiva para salvaguardar o socialismo de uma iminente derrocada, acredita
Lukács. O elemento fundamental desta nova democracia neste terceiro momento
político lukacsiano, aludido por José Paulo Netto (Lukács, 2008, p. 19) é que tal
democracia possui um caráter socialista. Nunca saiu do horizonte prático
27
lukacsiano a perspectiva socialista, pois quando o filósofo húngaro reivindica a
nova democracia, ele o faz como tentativa de reforma do socialismo de tipo
soviético, burocratizado e stalinizado, e não como uma instauração da
democracia burguesa tradicional. E é neste sentido que Lukács enseja a
transformação a partir de retorno a Marx; pelo menos no âmbito abstrato e
teórico, isto é plenamente alcançado. Por este motivo, a democracia socialista
lukacsiana não poderia ser outra coisa senão o embate à contrafação burguesa
da democracia tradicional e uma reforma de desestalinização do socialismo,
motivo pelo qual cunha a expressão democracia da vida cotidiana. É forçoso
observar que tal concepção de democracia retifica a ideia de que a democracia
liberal burguesa seja uma democracia de facto.
Carlos Nelson Coutinho (in Lukács, 2009, p. 9) e Marcos Del Roio (2013)
acreditam que o posicionamento de Lukács em defender desde o fim do fascismo
a nova democracia está em consonância direta daquele desenvolvido por
Palmiro Togliatti quando este usava a determinação de democracia progressiva;
o fim da guerra trazia a possibilidade de uma democracia de base popular e
operária no Leste Europeu, mas a Guerra Fria minou tal possibilidade ao mesmo
tempo que marginalizou o esforço de Lukács pela democracia de base operária.
Uma análise do último Lukács deve levar em consideração a atitude
ambivalente do filósofo húngaro em relação aos regimes políticos estabelecidos
no Leste Europeu e na União Soviética. Esta ambivalência esteve ligada tanto à
crítica da sociedade do socialismo realmente existente, quanto à tentativa de sua
reforma que poderia, de algum moldo, salvaguardar os avanços que os
processos revolucionários iniciaram. Decerto, Lukács almejava ser uma espécie
de porta-voz no plano da teoria de uma efetiva desestalinização desses regimes
econômicos, uma socialização que deveria começar pela vida cotidiana. Depois
do outono de 1956, momento em que Lukács foi Ministro da Cultura no governo
Imre Nagy, o filósofo húngaro foi expulso do partido e esteve recluso durante
onze anos, voltando a ser membro do partido somente em 1967. Lukács
demonstrava com firmeza a sua posição de confronto ao stalinismo e ao neo-
stalinismo, mas ao mesmo tempo jamais pensou em cortar os elos
definitivamente com o partido e com a luta institucional. Isto porque – frise-se
28
bem! – sua concepção do partido como vanguarda da classe operária o impedia
de tomar tal atitude. Mesmo assim, quando Ernst Fischer lhe escreve para contar
acerca da resolução do “caso Lukács” (Bereinigung des Falles Lukács), ou seja,
a sua readmissão no partido após longo período de reclusão, Lukács ainda
mantinha um ceticismo e uma prudência evidente: em carta de 22 de novembro
de 1967, dizia que a vida pública em Budapeste não comportava um marxismo
autêntico, e três meses depois desaconselhou um aluno que buscava a
Universidade de Budapeste, dizendo que não havia espaço para o ensino de um
marxismo verdadeiro (apud Tertulian, 2008, p. 286). Dois anos antes, em carta a
Schaff, dizia:
[...] nossa atividade está ligada a numerosos desgostos e decepções etc. Mas isso é inevitável. Se queremos fazer novamente do marxismo uma força viva, é preciso que sejamos necessariamente impopulares, porque representamos um meio-termo entre as tradições stalinistas e os preconceitos filosóficos ocidentais. Como marxista, não se pode ficar admirado de que se tente, nos dois campos, defender-se e impedir, ou, pelo menos, ralentar, a vitória da verdade. (carta de 22-11-1965). (apud Tertulian, 2008, p. 288).
Mais tarde, o desânimo de Lukács esteve em torno dos acontecimentos na
Polônia em 1968, do qual se lamentou em carta a Adam Schaff. A invasão da
Tchecoslováquia foi desaprovada por Lukács sem ressalvas, mas, novamente de
modo ambivalente, evitou realizar declarações públicas sobre isso devido à
posição que seu partido abraçava nesta ocasião. Não foi por outro motivo que
Lukács rejeita uma assinatura de apoio à Tchecoslováquia solicitada por
ninguém menos que Bertrand Russel, figura de grande influência política naquele
momento. Em cartas trocadas com Bertrand Russel, Lukács expõe sua
preocupação com a causa socialista ao mesmo tempo que pretende lançar a
crítica ao processo parco e contraditório da desestalinização soviética, e afirma
sua intenção de exprimir suas perspectivas acerca do “problema central dos
conflitos atuais”; trata-se de um manuscrito intitulado Demokratiesierungschrift
[Escrito sobre a democratização], que o partido manteve inédito por uma década
e meia após a morte de Lukács, vindo a publicar apenas em 1985, em Budapeste
com o título Demokratisierung Heute und Morgen [Democratização, hoje e
29
amanhã] – e traduzido em 1987 para o italiano por Alberto Scarponi (diga-se de
passagem, Scarponi foi o responsável por um grande ponto de difusão das ideias
de Lukács em idiomas latinos) como L’Uomo e la democratia [O homem e a
democracia] e em 1989 na França com o título Socialismo et démocratisation;
este texto chegou ao Brasil por meio de Carlos Nelson Coutinho e de José Paulo
Netto, e manteve o título baseado na versão em francês Socialismo e
democratização (Lukács, 2008), para a coletânea, e, especificamente para este
texto, guardou-se o nome O processo de democratização. Como havia sido
recentemente restabelecido no Partido húngaro, Lukács submete o seu escrito à
direção deste partido e obtém a seguinte recomendação: que Lukács, então com
83 anos, aguardasse dez anos para a publicação deste ensaio. Esta
“recomendação” do Partido Comunista Húngaro faz com que o texto fique
desconhecido até mesmo pelos seus discípulos e amigos mais próximos,
aparecendo apenas na Hungria em 19851, no original em alemão. Juntamente
com as campanhas difamatórias contra Lukács a partir de sua prisão, a União
Soviética tomou a posição da veemente proibição de todo e qualquer escrito de
Lukács – e permitiu seu retorno em 1957 a Budapeste desde que lhe fosse
atribuído o título de “principal perigo ideológico”, como lembrou István Eörsi
(Lukács, 1999, p. 9 e p. 22), mencionando também o imbróglio jurídico desta
proibição, que fazia Lukács invocar seu direito de contrabandear os próprios
textos para a Alemanha Ocidental. Este texto de Lukács, então, manteve-se
obscurecido pelo mundo soviético até o momento da agonia final do regime, e ele
já demarca a fase de retorno a Marx como nenhum outro texto político de Lukács
pôde fazer.
1 A primeira versão em húngaro, no entanto, A demokratizálódás jelene és jövöje, data do inverno europeu de 1988. István Mészáros observou este momento da Hungria da seguinte maneira: “No fim de 1988, a Hungria testemunhou um evento editorial bastante incomum. A grande novidade de uma temporada festiva, um longo volume de 258 páginas de Lukács, veio a público na coleção popular da Magvetö Kiadó, ao preço de apenas 25 florins, ou seja, pouco menos de 25 pennies. O nome da série popular: ‘O tempo que se acelera’; o título do livro: O presente e o futuro da democratização. O que tornou esse evento bastante peculiar foi o fato de o livro de Lukács – agora celebrado na imprensa do Partido – ter sido escrito pelo menos vinte anos antes de sua publicação, entre a primavera e o outono de 1968. Estranhamente, contudo, foi apresentado nos últimos dias de 1988 como se a tinta do escritor tivesse secado havia pouco no manuscrito e se tratasse de um tema que subitamente adquirisse atualidade”. (Mészáros, 2002, p. 347).
30
Lukács julgou tão importante este momento político mundial que para
escrever este ensaio sobre a democratização interrompeu os escritos de sua
monumental Ontologia. Numa carta ao editor alemão Frank Benseller (Lukács,
2008, p. 34), Lukács explicava que ainda não havia entregado a sua versão de
publicação da Ontologia pelo fato de estar escrevendo sobre os princípios
ontológicos da democratização. Mais tarde, numa outra carta a Benseller, disse
que tal escrito sobre a democratização poderia ser também publicado pela
editora da Alemanha Ocidental, contudo, sob a condição de aguardar que a
publicação fosse originalmente realizada pela Riuniti, na Itália. Esse era um
franco posicionamento de Lukács que optava pela publicação numa editora de
um partido comunista em primeira mão antes que seu livro chegasse a uma
editora comercial. No entanto, a primeira edição italiana é de 1987, apenas.
Lukács não pôde ver a publicação de sua obra e o debate sobre a
democratização por ele ensejado, e o mundo não viu nenhuma saída
democrática para o incompletável processo de transição soviético, o que acabou
por aprofundar ainda mais o estado russo num burocratismo que dele só
encontrou saída – parafraseando Del Roio (2013) – pela instauração de um
capitalismo periférico e subordinado ao imperialismo.
Se for adequada a observação, como vê Tertulian, de que os
Prolegômenos para uma ontologia do ser social é o testamento filosófico
lukacsiano, O processo de democratização é assim o seu testamento político –
como chamou Mészáros (2013) na Introdução do Conceito de dialética em
Lukács. E assim o foi chamado, como testamento, em 1988 pelo jornal do Partido
Comunista Húngaro, celebrado numa resenha de página inteira por ocasião de
seu lançamento: Megkésett prófécia? Lukács György testamentuma2 [Atrasada
profecia? Testamento de György Lukács]. Não era de se admirar que o Partido
húngaro, uma vez engavetando o manuscrito lukacsiano por duas décadas,
agora tivesse descoberto o ineditismo daquela obra: num momento em que o
poder soviético parecia não estar ameaçado, a crítica lukacsiana nos anos 1960
2 Cf. Nyers, 1988. Nesta obra em inglês encontramos a acolhida húngara do texto de Lukács por Rezsö Nyers, dirigente do então Partido Comunista Húngaro. A resenha que intitula o livro de Lukács como testamento político é de László Aziklai, e saiu em publicação no jornal Népzabadság, de 31 de dezembro de 1988 – órgão de publicação oficial do partido.
31
invocando uma democratização de base poderia ser ameaçadora, ainda que
fosse conciliatória e reivindicasse a manutenção do socialismo em um só país;
mas num momento em que todo o poder estava a desabar, trazer à luz a figura
de Lukács em nome de uma democratização que deixava de pé as estruturas de
poder do partido soviético era mais do que necessário como ato desesperado de
sua subsistência.
Tal escrito sobre a democratização é obra definitiva no decurso político de
Lukács; junto à sua autobiografia em diálogos e a outros textos menores do
período, um perfil político do Lukács maduro é possível de ser traçado com certa
segurança: o debate de Lukács não é outro senão o das possibilidades da vida
ética, conclui Tertulian (2002). Não foi sem motivos que Lukács deu o subtítulo
de seus Prolegômenos como Questões de princípios para uma ontologia hoje
tornada possível; e as questões da democratização soviética aparecem como
questões de fundo para uma reformulação de ordem ética. As questões políticas
de Lukács estão presentes tanto na Ontologia quanto nos seus escritos políticos
derradeiros. A razão disso é o ponto central que une todos estes textos: o
fundamento necessário da ética.
O debate sobre a teoria da vida ética foi uma constante na vida de Lukács.
Ainda muito jovem, em 1911, Lukács redige um diálogo sobre A pobreza de
espírito, e quatro anos depois, em carta a seu amigo Paul Ernst (carta de 28 de
março de 1915, Tertulian, 1999, p. 125), ele revela a sua intenção de preparar
um estudo de grande envergadura sobre Dostoievski, e neste caso, uma das
bases deste estudo perpassava a noção do escritor russo sobre a ética
metafísica – a introdução deste estudo, mais tarde, veio a público, que o é o que
conhecemos hoje como A teoria do romance – o resto deste estudo, que Lukács
considerava perdido, só veio a público em 1985 com o nome de Notas e esboços
sobre Dostoievski.
Já em 1960, encerrando a primeira parte de sua tarefa gigantesca dos
escritos da Estética, Lukács decide interromper seu trabalho para retomar seu
antigo projeto da ética, agora sob a luz de uma experiência de vida
intelectualmente muito mais rica, e sob o espectro de um processo revolucionário
soviético que teria sido transtornado pelo stalinismo que perdurara além da
32
própria figura de Stalin. Isto atesta uma verdade insistida nesta tese: o ponto de
dilucidação de Lukács sobre a ontologia do ser social em Marx é principalmente
um esforço político de Lukács para reconstrução do novo mundo, um retorno a
Marx. Em 1962, Lukács tinha em mente que o centro das discussões sobre o
marxismo era o ponto culminante de uma ética, e por isso tinha a intenção de
escrever Die Stelle der Ethik im System menschlichen Aktivitäten [O lugar da
ética no sistema das atividades humanas] (Mészáros, 2013, p. 25). A Fischer,
Lukács confidenciou que a ética era o ponto mais frágil do marxismo vivido
naquele momento, e por este motivo, na sua maturidade, preocupou-se em obter
forças para determinar o lugar da ética nas atividades humanas; este trabalho
preparatório para a elaboração de seu estudo sobre a Ética se transformou,
como se sabe, no denso e substancial trabalho Para uma ontologia do ser social
– seguido do material introdutório desta Ontologia, os seus Prolegômenos. É
sabido que Lukács morre antes de executar a tarefa de seus escritos sobre a
ética, mas é falsa a ideia de que a ética é uma obra inexistente no itinerário
filosófico de Lukács. É possível que tenhamos um esboço muito consistente de
seu trabalho sobre a ética a partir das inúmeras indicações constantes em Para
uma ontologia do ser social, em especial, na segunda parte, nas quais Lukács
delimitava o campo dos estudos éticos; é possível também que ergamos as
bases do seu pensamento sobre a ética a partir de seu testamento filosófico, de
sua derradeira obra, já aqui citada nestes termos, os seus Prolegômenos. Ao
finalizar a redação desta obra, nos últimos dias de 1970, Lukács menciona em
uma carta a Ernst Bloch a sua intenção de erigir o estudo da ética em definitivo –
intitulado Entwicklung der menschlichen Gattunsgsmässigkeit [O desenvolvi-
mento da generidade humana]; mas morreu meses depois sem realizar o feito.
De algum modo, o centro das preocupações éticas de Lukács estava na
formação e no devir do gênero humano, e por este mesmo motivo, o ponto
culminante da Ontologia também é a generidade – daí a importância da
dilucidação desta para a compreensão de seu pensamento ético e, por via de
consequência, seu pensamento político. Com este direcionamento, Lukács
intentou com grande eloquência a impugnação da concepção naturalista da
sociedade, inclusive e mais especificamente, a concepção segundo a qual a
33
sociedade é uma segunda natureza, isto é, a existência de uma natureza
humana e de um homem em estado natural, noção erigida pela filosofia
contratualista na sustentação categórica da necessidade de um estado como
mediador político formal da natureza humana. Fica patente a elucidação
lukacsiana, ao final de sua Ontologia, de um combate veemente da visão
determinista da história realizada por certo tipo de marxismo, bem como a
filosofia da história de caráter teleológico, que transforma cada momento
histórico em uma etapa simplista da etapa seguinte até a chegada do advento
final – ou seja, a não-superação de uma filosofia da história hegeliana no interior
da teoria marxista que tomou forma a partir da Segunda Internacional e se
intumesceu como hegemônica no marxismo francês.
Ao partir desta análise de Lukács, a tese ora apresentada não pode deixar
de verificar a concepção marxiana de política, bem como de traçar
prioritariamente as rupturas políticas empreendidas por Marx – não por mera
intuitus personae, mas porque o centro da análise sobre política em Lukács parte
de Marx e retorna novamente a Marx. A afirmação categórica de Lukács (2012,
p. 25) de que ninguém senão Marx se ocupou tanto da ontologia do ser social é a
tentativa de recompor desde a sua primeira linha da ontologia o itinerário
marxiano da dilucidação da generidade humana. Não é por outro motivo que, ao
analisar nesta tese o itinerário da politicidade em Lukács em sua última fase de
vida, este esforço demandou uma análise e uma apresentação da determinação
da politicidade marxiana, seguida da apresentação da ontologia do ser social
vislumbrada pelo filósofo húngaro, em especial sobre sua relação com a
politicidade, chegando aos seus escritos políticos derradeiros. Não nos
ocuparemos a pesquisar a obra de juventude de Lukács, tampouco seu período
de transição ao marxismo. A tese centra esforços na análise de sua obra
madura, especificamente seus últimos escritos políticos e sua Ontologia do ser
social – porque não se pode analisar a obra política madura lukacsiana
ignorando a sua obra máxima, que contém o substrato filosófico de seu
posicionamento político. De algum modo, esta estrutura que nos obriga a
arquitetar tal trajetória lukacsiana nos é apresentada por Vaisman e Fortes
(2014), pois determinar a politicidade na obra de Lukács não pode ser um
34
exercício de apresentação apenas das suas categorias mais diretamente
envolvidas com o tema,
mas impõe a reflexão sobre uma série de outros textos e elaborações de Lukács, nos quais a política é tratada em seu devido locus, qual seja, o hic et nunc dos processos de interação social. A questão se abre, portanto, pelo menos para dois temas complementares de suma importância: primeiro, ao problema da ação prática dos homens na superação dos estranhamentos postos pela sociabilidade do capital; segundo, em grande medida diretamente associado ao primeiro, implica a análise dos textos políticos de Lukács, onde diretamente o autor se volta às considerações das situações histórico-sociais de seu tempo. (Vaisman & Fortes, 2014, p. 128).
A tese, doravante, se divide em três momentos: no primeiro capítulo, a
crítica ontológica da política em Marx é colocada em destaque, especialmente
porque qualquer investida lukacsiana no terreno da política e da ontologia esteve,
antes de tudo, baseada nas descobertas da ontologia explicitada originalmente
por Marx, isto é, o esforço da exposição da ontologia do ser social é um esforço
de retomada dos escritos marxianos; no segundo capítulo, a generidade e a
individualidade são analisadas no interior dos próprios enunciados ontológicos
lukacsianos, porque desta questão emerge o campo de ação dos indivíduos
como o campo das possibilidades, onde também a determinação genérica e
abstrata da política para Lukács é apresentada, na qual é possível verificar o
trançado lukacsiano acerca do lócus da política na dimensão societária, o que
forma o pressuposto para dilucidar a potencialidade de uma generidade
autenticamente ética; no terceiro capítulo, por fim, a política é tratada no seu aqui
e agora social, ou seja, é possível a verificação das posições lukacsianas acerca
da política do ponto de vista objetivo, e não apenas teórico – daí a escolha pelo
recorte temático da última fase política de Lukács, na qual todo o processo de
construção de sua Ontologia já estava elaborado, sendo possível inclusive a
justaposição entre suas concepções abstratas da política e seu posicionamento
prático frente ao mundo.
Por este motivo, no primeiro capítulo da tese, intitulado Marx: a crítica
ontológica da política, teremos a explicitação da passagem de um Marx pré-
marxiano a um Marx marxiano de facto. Isso implica expor, ainda que de modo
35
breve, o momento de ruptura de Marx com seu hegelianismo juvenil e a própria
superação da crítica de Feuerbach – porque, se num primeiro momento Marx
pode ser devidamente qualificado como um democrata radical, noutro momento
sequencial, Marx abandona qualquer veleidade em relação à democracia liberal
e por isso mesmo organiza o conjunto de sua teoria na compreensão de que o
fenecimento do estado é condição imprescindível para a emancipação humana,
contrapondo revolução parcial e revolução radical: enquanto a primeira ainda
mantém as bases e alicerces da sociedade do capital avançando para uma
democracia em que a democracia burguesa é sua base; a segunda destrói tal
organização porque impõe um novo modo de produção que supera a alienação
pela coordenação dos produtores associados. O que está em foco, portanto, no
Marx pré-marxiano é uma crença na política, que vai sendo abandonada na
evolução de sua rota filosófica. Aparecendo a política como parte constitutiva
orgânica e ineliminável do gênero humano, no decorrer de sua compreensão de
mundo e de sua autonomia filosófica, Marx recoloca a política em seu devido
lugar, isto é, como transitória e contingente no processo da emancipação
humana. E este ponto de reconhecimento de tal categoria em Marx – descoberto
por J. Chasin (2000 a) e ratificado por Mészáros (2002) – é de crucial importância
nesta tese, porque o estudo de Lukács acerca da ontologia marxiana parta
também da demonstração da superação marxiana da generidade exposta por
Feuerbach, bem como o seu devido lugar na filosofia hegeliana. Se não
bastasse, a recomposição de fundo da filosofia lukacsiana tem de pôr em relevo
este embaraçoso entrave diante do socialismo de tipo soviético: até que ponto é
viável a manutenção transitória de um estado que deveria fenecer, mas que
continua a hipertrofiar na administração da regência do capital em seu modo de
produção, num processo inacabável. Noutras palavras, uma vez demonstradas
as bases da generidade humana, como é possível executar tal ruptura radical
com a política a ponto de torná-la obsolescência, diante da realidade prática que
impões obstáculos com gradientes cada vez mais elevados? Daí a justificativa de
o estudo sobre Lukács exigir a recomposição da filosofia marxiana,
especialmente em se tratando de sua obra política madura, fase em que manteve
como lema o retorno a Marx. A discussão marxiana apresentada no primeiro
36
capítulo, ao mesmo tempo que recoloca o itinerário de ruptura de Marx com
Hegel, aponta para a ruptura com o discurso sobre o caráter peremptório do
estado. A revolução radical passa a ser pedra angular da filosofia marxiana a
partir de sua guinada em Kreuznach; texto fundamental de sua determinação
ontonegativa da política, a sua resposta a Arnold Ruge contém a incontornável
questão de que a transição para o socialismo não é um momento idílico da
humanidade, mas uma ruptura violenta e revolucionária, sem a qual tal processo
não pode de facto se concretizar. Tal ato revolucionário, diz Marx, é um ato
político que visa a destruição de uma ordem produtiva para a composição de
uma nova, porém quando tal atividade alcança seu próprio fim, “o socialismo se
desfaz de seu invólucro político” (Marx, 2010, p. 52) e a política fenece dando
lugar à comunidade dos produtores associados.
O capítulo inicial da tese ainda continua pela decifração da ontologia
marxiana a partir da superação da filosofia hegeliana, tendo como tônica a
ênfase na objetividade, destruindo qualquer estratagema idealista. A crítica da
economia política, que veio acompanhada da superação da filosofia especulativa
é, portanto, um panorama integrado e autônomo da construção filosófica de
Marx, o que acabou por dispensar qualquer artificialismo ou necessidade de
amálgamas em sua composição. Totalmente amparado nas letras de Marx,
Chasin assim evidencia a determinação social do pensamento, reforçando a
teoria das abstrações. E isto prenuncia a entrada do capítulo seguinte,
Generidade e individualidade, especialmente em relação ao processo teleológico
do trabalho e a questão do método marxiano, nesta superação da economia
política.
Lukács foi pioneiro no reconhecimento do estatuto ontológico do
pensamento marxiano, demonstrando que todas as afirmações marxianas são
enunciados sobre um tipo de ser, e, portanto, são afirmações ontológicas. O
capítulo se sustenta nas duas mais importantes determinações da ontologia do
ser social: a irreversibilidade dos processos históricos; e o processo pelo qual a
generidade humana é forjada através dos atos humanos, dos pores teleológicos,
que acabam por resultar numa causalidade – não exatamente uma causalidade
natural espontânea, como na natureza orgânica em geral, mas numa causalidade
37
posta pelo conjunto dos atos finalísticos neste processo. Através do pôr
teleológico, os homens visam a transformação do mundo pela atividade prática,
como pôr teleológico primário, e agir sobre a consciência de outros homens,
influenciando a ação prática coletiva, como pôr teleológico secundário, ou
melhor, em um ato de consciência que empreende esforço em “suscitar um novo
comportamento em seus semelhantes” (Lukács, 2013, p. 483). Lukács é enfático
na afirmação baseada em Marx de que o trabalho não é uma das muitas formas
fenomênicas da teleologia em geral, mas o ponto no qual a teleologia se origina e
se desenvolve. Tais forjas da generidade humana traz consigo as forjas da
individualidade, que podem ser visualizadas através do campo de ação dos
indivíduos a partir do devido enraizamento dos valores nestes pores teleológicos;
e isto será suficientemente desdobrado neste segundo capítulo da tese. Lukács é
enfático na demonstração de que a apreensão ontológica de Marx abstrai o ser
em sua característica do ser-precisamente-assim, respeitando os inúmeros feixes
que o determinam em sua objetividade, não sendo, deste modo, uma apreensão
metafisicamente pensada de um ser abstrato irreal. Na dilucidação da ontologia
marxiana, Lukács soergue a crítica de Marx ao idealismo e, por consequência,
coloca em xeque a própria ontologia hegeliana – e aponta até que ponto as
reminiscências do marxismo é resultado da incompreensão de Engels sobre a
ontologia marxiana.
O lugar da política na composição social das alternativas no campo dos
possíveis e seu papel na formação das individualidades e da sociedade em si
será verificado nesta segunda parte do segundo capítulo, após elaborada a
apresentação de sua posição sobre a generidade humana, uma vez que não é
possível desvincular sua posição política do complexo da generidade que lhe dá
bases para sua teoria da eticidade. O lugar da política é apresentado, então, em
Lukács, como categoria que funda a dinâmica das decisões futuras dos pores
teleológicos dos indivíduos singulares, e apresenta, diferentemente daquela
acepção nutrida por Chasin no capítulo que o antecede, uma característica de
perpétua forma organizativa social, justamente pelo fato de não poder haver
“nenhuma comunidade humana, por menor que seja, por incipiente que seja, na qual
e em torno da qual não aflorassem ininterruptamente questões que, num nível
38
desenvolvido, habituamo-nos a chamar de política” (Lukács, 2013, p. 502). E isto
encerra a análise da politicidade em Lukács no tocante à apreensão das
categorias abstratas, e justifica o próximo passo da análise da política no
processo objetivo de interação social. Sendo, de longe, o texto político mais
importante da última fase de vida de Lukács, O processo de democratização é
analisado no terceiro capítulo desta tese e tem como tônica a posição lukacsiana
da democracia da vida cotidiana, bem como os limites de sua crítica circundar
uma saída dos entraves impostos pelo partido comunista através da vanguarda
política revolucionária situada no próprio partido comunista, o que teve por base
um eixo duplo sobre o qual tal testamento filosófico de Lukács pôde orbitar: a
consciência socialista trazida de fora das massas, pela vanguarda política
revolucionária – concepção extraída diretamente das composições textuais de
Lenin; e de que a iniciativa autônoma criaria uma sublevação descontrolada,
sendo possível somente a democratização da vida cotidiana pelo alto, de raiz
popular, todavia hipostasiada e guiada pelo partido comunista – momento
reformista que deixava intacta as bases do poder econômico soviético.
Imperativo, portanto, do qual Lukács jamais pôde abandonar em suas sinceras
convicções políticas, a despeito dos incansáveis e infundados esforços de
Tertulian (1991) em provar o contrário: a de que a consciência de classe do
proletariado é convertida em um imperativo moral ao qual os trabalhadores
devem se conformar no curso da realização de sua missão ética histórica –
missão encarnada no partido como único órgão legítimo de organização da
consciência de classe, para realizar seu mandato histórico estipulado.
É forçoso frisar, ainda que isso tenha apenas caráter biográfico, que a
tragédia de Lukács no movimento comunista internacional (caracterizada não
somente pelo fato de que o curso do desenvolvimento das sociedades do
socialismo de tipo soviético caminhou diretamente contra os ideais que ele
advogou e pelos quais viveu, mas também por sua admissão passiva da divisão
do trabalho institucionalizada no socialismo) originou-se de um assentimento
legítimo e sincero de suas convicções políticas leninistas. Nas palavras de
Mészáros:
39
À medida que as expectativas revolucionárias de uma grande virada histórica se afastaram do horizonte com a brutal consolidação do reino da necessidade stalinista, Lukács continuou a insistir, nos termos do seu discurso moral, na necessidade da existência de uma alternativa positiva – a realização da humanidade não alienada – apesar do “necessário détour histórico”. E ele o fez, mesmo quando experimentou pessoalmente a “tragédia en route” em direção ao objetivo final, durante sua prisão em Moscou e a simultânea deportação de seu filho, o engenheiro Ferenc Jánossy, para um campo de trabalho forçado na Sibéria. (Mészáros, 2002, p. 371).
Lukács nada estava a ganhar do ponto de vista pessoal com tal postura –
do contrário, não teria reafirmado tal conduta política nas vésperas de sua morte,
já moribundo, nem tampouco teria abdicado da classe social elevada a que ele
pertencia antes de militar por mais de cinquenta anos nas fileiras do partido
comunista. Lukács esteve envolvido em manter-se leal ao partido comunista
mesmo quando este deu sua guinada à democracia burguesa como alternativa
no mundo ocidental, tornando-se palavra de ordem do movimento comunista
internacional. É também contra esse posicionamento de abandono da
perspectiva revolucionária que seu testamento político se voltava. As
contradições do movimento comunista internacional e do socialismo de tipo
soviético não impediram, contudo, o esforço lukacsiano de uma vida autêntica
norteada em defesa da revolução social e da perspectiva da emancipação
humana.
40
CAPÍTULO 1 MARX: A CRÍTICA ONTOLÓGICA DA POLÍTICA
1.1 Do amálgama tríplice originário à crítica ontológica
O esforço de Chasin em vista do soerguimento da investida lukacsiana da
redescoberta de Marx, ou melhor, de se retomar Marx pelo próprio Marx, resulta
numa teoria completamente original sobre a ontologia marxiana a partir de
dilucidações de determinadas categorias de Marx até então inexploradas. Tal
empreitada teve início muito antes do famoso posfácio ao livro de Francisco
Teixeira, intitulado Pensando com Marx, de 1995; mas foi neste posfácio que
Chasin demonstra fortemente o fôlego de sua investigação do pensamento
marxiano por meio da análise imanente da totalidade dos escritos marxianos. É
verdade que muito antes desta obra, num denso artigo publicado no editorial
Ensaio, intitulado Marx – da razão do mundo ao mundo sem razão, Chasin
(1988) já apresentava a retomada Marx como caminho imprescindível para a
superação da dupla barbárie do mundo contemporâneo, a saber, na época, a
barbárie do modo de produção do capitalismo e a do socialismo real, trazendo ao
mesmo tempo uma aproximação e um tracejo distintivo à tese de István
Mészáros acerca da sociedade pós-capitalista e sobre o modo de apropriação do
41
trabalho na sociedade do capital coletivo/não-social, forma determinativa da
regência do capital no mundo soviético. Chasin (1988) não tergiversou ao afirmar
que o horizonte prático do socialismo era ainda historicamente inédito,
esmiuçando as contradições do socialismo real. O que não é menos importante e
ainda não se tem o apreço adequado no mundo acadêmico – tampouco no
marxismo nacional ainda hoje – é que num momento imediatamente anterior,
Chasin introduzia o pensamento de Mészáros no panteão dos interlocutores de
György Lukács no Brasil3.
Esta mencionada intrepidez de Chasin no desvelar da obra marxiana
tomou forma de uma tese original, de um livro propriamente dito, no mencionado
posfácio ao Pensando com Marx. Como reconhece Ester Vaisman e Antônio
José Lopes Alves na apresentação à nova edição do posfácio – agora não mais
como posfácio, mas como livro autônomo, intitulado Marx: estatuto ontológico e
resolução metodológica –, esta advertência ao livro de Teixeira foi tomando
autonomia e ganhando corpo, se transformando num livro dentro de outro. E
apesar do evidente equívoco editorial de se manter um posfácio mais importante
e mais denso que a própria obra que o sucede, o posfácio fora mantido e é nele
que podemos encontrar a tese de Chasin sobre o estatuto ontológico marxiano. É
nesta obra que encontramos o núcleo das descobertas mais importantes acerca
do pensamento marxiano, elaborado por Chasin no auge da maturidade de suas
reflexões. O inacabado ensaio O futuro ausente é também um guia genuíno da
trajetória de seu pensamento, do caminho analítico pelo qual seu traçado chegou
a destrinçar a arquitetura da politicidade moderna com a finalidade da paulatina
demonstração da determinação ontonegativa da politicidade no pensamento de
Marx, contrapondo-a a trajetória da politicidade pré-marxiana como um todo,
revelando que Marx promove uma revolução no pensamento moderno sem
precedentes. Estas são, portanto, as obras mais significativas de Chasin quando 3 Neste sentido, é particularmente importante a obra organizada por Marcos Del Roio (2013); é possível visualizar que a via de acesso do pensamento lukacsiano na América Latina ocorre primeiro na Argentina, assim como a via de acesso ao pensamento de Gramsci ocorre no Brasil; daí a rica comunhão científica entre estes países. Vale notar que o pensamento de Lukács e de Gramsci tem sido objeto de importantes estudos no país graças ao esforço realizado pelos intelectuais que tomaram Lukács como centro de suas pesquisas, dos quais se destacam José Chasin, José Paulo Netto, Mario Duayer, Celso Frederico, Ester Vaisman, Carlos Nelson Coutinho e Marcos Del Roio. Estes dois últimos, responsáveis também pelos mais importantes estudos de Gramsci na América Latina.
42
referimo-nos à originalidade de seu pensamento acerca de Marx: Marx – da
razão do mundo ao mundo sem razão (Chasin, 1988); Marx: estatuto ontológico
e resolução metodológica (Chasin, 2009); O futuro ausente (Chasin, 2000 b)
seguido de um ensaio chamado Marx: A determinação ontonegativa da
politicidade (Chasin, 2000 a). São importantes também algumas passagens, de
caráter muito improvisado e inacabado, de seu Rota e prospectiva de um projeto
marxista (Chasin, 2000 c).
Com objetivos de demonstrar as insuficiências dos esquemas
interpretativos geralmente utilizados para apresentar o pensamento marxiano,
Chasin não poderia proceder de outra maneira em seu Marx: estatuto ontológico
e resolução metodológica senão pela análise imanente dos próprios escritos de
Marx, isto é, por meio da verificação do que se emana dos próprios textos
marxianos como caminho unívoco para a percepção real de sua filosofia, sem
atribuições exógenas ou imputações alheias complementares. E deste modo a
tarefa de Chasin também impunha uma ruptura de fundo com o universo
apologético da teoria hermenêutica das infinitas subjetividades, segundo a qual
existem várias interpretações ou leituras para um mesmo problema, todas
igualmente válidas e de equivalentes relevâncias, e cada qual com seu proceder
metodológico. De sorte que a tarefa da análise imanente envolvia “reproduzir
pelo interior mesmo da reflexão marxiana o trançado determinativo de seus
escritos, ao modo como o próprio autor os concebeu e expressou” (Chasin, 2009,
p. 25) como modo inexpugnável de procedimento. Rejeitando as hermenêuticas
da imputação e em seu lugar estabelecendo a intentio recta de apreender os
escritos marxianos em sua objetividade, Chasin configura o modo de
procedimento da análise imanente como diametralmente oposto ao
epistemologismo atual tanto quanto de sua negação irracionalista, que acaba
sendo o avesso e resultante do primeiro: a análise imanente da obra marxiana
implica “explicitar a posição instaurada por Marx, e cuja tematização fundante há
que ser evidenciada em sua própria obra” (Chasin, 2009, p. 26) como rota única.
Significa, então, fazer valer para Marx as mesmas exigências que Marx obteve
como pressuposto de suas pesquisas.
43
As empreendidas gnosiológicas de Louis Althusser e Galvano Della Volpe,
especialmente a partir dos anos 1950, não fizeram outra coisa senão disputar o
estatuto científico marxiano, primando por conferir ao pensamento marxiano
talhes analíticos, encaixando o marxismo numa tradicional teoria do
conhecimento. Nas palavras de Chasin, numa “certeza unívoca de que a base da
reflexão marxiana ou a resolução de suas ‘dificuldades’ estava em algum
canteiro do subsolo lógico-gnosioepistêmico” (Chasin, 2009, p. 27). Assim aponta
Chasin:
O fantasma já sobrevoava o Engels de Herr Dühring e Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã e tomou largo assento nas incursões filosóficas de Lenin, tanto no Materialismo e empiriocriticismo como nos Cadernos, tendo assombrado também ao próprio Lukács de “O que é marxismo ortodoxo?”, ensaio de abertura de História e consciência de classe, sua obra protomarxista mais célebre. Porém, de Goldmann a Althusser ou de Della Volpe a Sartre, para sinalizar com alguns nomes, passando por tantos outros e se irradiando por todos os escaninhos, é que a tendência sucumbiu de vez à canga gnosioepistêmica, numa rota cada vez mais excludente, ou antes, que atrelou e submeteu a ela o exame de qualquer outra temática, no seu espraiamento à saturação por mãos cada vez mais repetitivas e menos habilidosas ou sutis. (Chasin, 2009, p. 27).
O problema apontado por Chasin e que terá sua base formativa
desarticulada durante a exposição do Estatuto ontológico é mais grave do que se
vê à primeira vista: porque sobre o critério gnosiológico erroneamente imputado à
obra marxiana ainda pesa o ônus de seu afundamento e desfiguração,
resultando nas filosofias irracionalistas – e, neste caso, adequadamente
demonstrado por Lukács (1968) em seu ensaio A destruição da razão [Die
Zerstörung der Vernunft].
O descarte in limine dos anos formativos do pensamento de Marx pela
corrente althusseriana, para quem se importa somente o chamado Marx maduro,
é também um impedimento da compreensão do conjunto da obra marxiana. Ao
contrário desta omissão, Chasin não se exime da investigação do Marx juvenil, e
isso perpassa pela rejeição de fundo dos esquemas explicativos do surgimento
do Marx maduro como apenas um compilador volátil das ideias mais avançadas
em sua época.
44
Desde os momentos mais incipientes do marxismo, sempre que se
necessitava compor uma exposição acerca dos fundamentos e das origens do
pensamento marxiano, a tendência era a explicação esquemática da qual Marx
era uma espécie de aglutinador das teorias econômicas dos ingleses com a
política revolucionária francesa, somando-se a isso tudo um nervo metodológico
hegeliano. Resultado direto de um enunciado de Kautsky, talvez o mais famoso
arquiteto deste amálgama tríplice, em seu As três fontes do marxismo, essa
teoria se edifica como paradigma até mesmo para Lenin (1986 b), que celebrou
uma homenagem a Marx com seu opúsculo As três fontes e as três partes
constitutivas do marxismo – ainda que Lenin tenha abandonado o destaque
naturalista de Kautsky. Escreve Lenin, na supracitada obra:
A doutrina de Marx é omnipotente porque é exacta. É completa e harmoniosa, dando aos homens uma concepção integral do mundo, inconciliável com toda a superstição, com toda a reação, com toda a defesa da opressão burguesa. O marxismo é o sucessor legítimo do que de melhor criou a humanidade no século XIX: a filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês. (Lenin, 1986 b, p. 35).
No verbete Karl Marx, escrito para o Granat, Lenin (1986 a) reafirma
repetidas vezes esse ponto, aliás, percebendo em Marx a “continuação direta e
imediata” das três fontes. Atentemo-nos que aqui não falta o indefectível
destaque ao método, que se aplica como dialético, um suposto método universal
de investigação, um verdadeiro sistema filosófico caricatural de Hegel. O
conjunto explicativo do amálgama tríplice originário continuou e continua a ser a
explicação, embora simplória, mais recorrente sobre a formação do pensamento
marxiano. Historiadores de importância indubitável, como o inglês Perry
Anderson – um dos nomes mais importantes, não sem motivos, da New Left
Review –, não deixaram de tropeçar na formulação da mistura tríplice composta:
Enquanto têm existido muitos pensadores socialistas de mérito e interesse, de Saint-Simon a Morris, de Jaurès a Wigforss, de Chayanov a Myrdal, somente Marx e Engels produziram um corpo teórico abrangente capaz de um desenvolvimento contínuo e cumulativo posterior a eles. Esta qualidade derivou, certamente, da síntese por eles realizada entre “a filosofia alemã, a economia inglesa e a política francesa”, como colocou Lenin, que produziu uma quantidade de conceitos e teses inter-relacionados,
45
recobrindo uma série de formas e práticas sociais mais vasta que qualquer alternativa poderia encontrar. (Anderson, 1987, p. 100).
Este amálgama tríplice originário tomou contornos de um ponto pacífico na
exposição da fundamentação do pensamento marxiano, e nem mesmo quando a
análise pendeu para a explicação gnosiológica de Marx – a ideia de que somente
a sua obra econômica mantinha substrato filosófico válido, como se vê
nitidamente em Althusser (2013), para quem Marx só poderia ser julgado por O
capital – este esquema soçobrou ou foi submetido realmente à crítica, até
mesmo porque nesta nova unilateralização de Marx, não se era relevante
observar as origens, já que a validade do método estava demarcada pelo
resultado da obra madura do pensador alemão. A ablação da rota constitutiva do
pensamento marxiano é justificada a partir de um corte epistemológico.
Althusser, em seu aclamado Ler o capital, inicia seu escrito já fixando a rejeição
da obra marxiana precedente a O capital, pois, segundo este esquema
explicativo, é apenas a partir desta obra máxima que se pode executar o
julgamento de Marx. Lemos, então:
Esta é a obra pela qual Marx deve ser julgado. Por ela apenas, não por suas “obras de juventude” ainda idealistas (1841–1844); não por obras ainda muito ambíguas, como A ideologia alemã ou mesmo os Grundrisse [...]; nem pelo célebre Prefácio à Contribuição à crítica da economia política (1859), em que Marx define em termos muito ambíguos (porque hegelianos) a “dialética” da “correspondência e da não correspondência” entre as forças produtivas e as relações de produção. (Althusser, 2013, p. 39).
A fórmula do amálgama tríplice originário ressurgiu com o propósito de
esclarecer o que Marx devia a Hegel – todavia restringida à questão do método
científico. Disso se obteve uma díade na qual, de um lado, Marx era
demasiadamente aproximado de Hegel, reduzindo-se a mero aplicador da
dialética hegeliana ao sistema de produção do capital; e, de outro lado, Marx era
sumariamente afastado de Hegel, e à sua obra madura, única passível de ser
aceita, era atribuída a resolução epistêmica. Chasin percebe deste modo tal
momento do marxismo:
46
No primeiro caso, o procedimento é típico da crítica neorracionalista ou neocriticista mais antiga e recente – um dos filões da desqualificação frankfurtiana de Marx vai por essa trilha. Caso totalmente atípico, de máxima relevância para o pensamento marxista atual, e a cujo autor é devido contribuição fundamental para a correta apreensão da natureza do pensamento marxiano, mas que se embaraçou no entendimento do método em Marx, e não apenas nisso, exatamente por se exceder na vinculação de Marx a Hegel, apesar de certos cuidados tomados e a interposição de restrições apropriadas, é o de ninguém menos do que Georg Lukács. O que é emblemático da enorme complexidade e delicadeza do problema aflorado. (Chasin, 2009, p. 30-31).
Está claro que a retenção e a fusão de três universos teóricos distintos
para criar um universo totalmente inédito é uma contradição insolúvel. Chasin
(2009, p. 39) aponta para esta impossibilidade: como engendrar um discurso de
rigor por meio da mistura de uma filosofia especulativa que sustenta a ideia do
sujeito-objeto idêntico com uma parte de politicismo? A própria indagação,
anuncia Chasin, já padece de um viés gnosiológico, e, portanto, já é alheia ao
próprio corpus teórico marxiano.
Chasin chama a atenção aos textos de Ludwig Feuerbach nos anos iniciais
da década de 1840, que foram fundamentais para o rompimento com toda a
filosofia germânica precedente. Teses provisórias para a reforma da filosofia e
Princípios da filosofia do futuro de Feuerbach agora assinalam a ruptura com o
hegelianismo operante: não se pode dissociar a ontologia hegeliana de uma
teologia. A recomposição da ordem dos fatores ontológicos efetuada por
Feuerbach trouxe insumos necessários para a apreciação marxiana; escreveu
Feuerbach:
A filosofia moderna buscava algo imediatamente certo. Por conseguinte, rejeitou o pensar carente de fundamento e base da escolástica, fundando a filosofia na autoconsciência, isto é, pôs no lugar do ser puramente pensado, no lugar de Deus, do ser supremo e último de toda a filosofia escolástica, o ser pensante, o eu, o espírito autoconsciente; com efeito, para quem pensa, o pensante está infinitamente mais próximo do pensante, mais presente e mais certo do que o pensado. Suscetível de dúvida é a existência de Deus e, em geral, também o que penso, mas é indubitável que eu sou, eu que penso, que duvido. Mas a autoconsciência da filosofia moderna é, ela mesma, apenas um ser pensado, mediado por abstração, portanto, um ser dubitável.
47
Indubitável, imediatamente certo, é unicamente o objeto dos sentidos, da intuição e do sentimento. (Feuerbach apud Chasin, 2009, p. 43).
Reconfiguração feuerbachiana do padrão analítico contra Hegel que impôs
que o ser livre de determinações, como um ser meramente idealizado, é um não-
ser, portanto, uma forma mediativa não-procedente. Daí resulta sua necessidade
de considerar os seres não só como seres pensantes, mas como seres
realmente existentes, isto é, o ser como objeto de si mesmo. Essas apreciações
de Feuerbach sobre o passado filosófico germânico não foram ignoradas por
Marx, e isso é significativamente importante em sua trajetória. Quando Marx
inicia uma formulação verdadeiramente autônoma de seu pensamento, em 1843,
ele tem diante de si não somente a ontologia universalmente explicitada por
Hegel como também tem acesso à negação desta por Feuerbach. A negação da
ontologia hegeliana por Feuerbach passa pela tentativa de demonstrar que Hegel
considera o pensamento como sujeito, derivando, para tanto, do objeto real.
Trata-se de basear-se no sujeito real, na natureza – a natureza, para Feuerbach,
é preferencialmente a natureza humana; e com isso, com a crítica da identidade
de ser e pensamento em Hegel, Feuerbach acaba propondo uma nova unidade.
Contribuindo com este debate, Celso Frederico anuncia desta maneira:
Dessa identificação entre homem e natureza, decorre ser o conhecimento do objeto-natureza o mesmo que o conhecimento da própria natureza do sujeito-homem. Conhecer o seu objeto, para o homem, é autoconhecer-se. (Frederico, 1995, p. 34).
Feuerbach parte da diferenciação entre homens e animais, delimitando a
existência humana a um gênero humano infinito, de consciência infinita.
Frederico (1995) demonstra que a ideia de um gênero humano infinito em
Feuerbach guarda uma indisfarçável semelhança com o momento do Absoluto
em Hegel. “Mas para o filósofo dialético, o Absoluto é o resultado final da
caminhada do Espírito. Para Feuerbach, o gênero, como absoluto, é a
consciência humana manifesta” (Frederico, 1995, p. 36). Quando Feuerbach
coloca a essência do homem no gênero, na comunidade dos homens, ele passa
a ser considerado equivocadamente um protocomunista. E Frederico pergunta:
48
“Como se compõe a totalidade, já que cada indivíduo a contém, se cada um é um
Absoluto? Assim, o conceito de gênero humano resulta exclusivamente da
somatória dos indivíduos naturais, numa universalidade empírica apreendida pela
consciência” (Frederico, 1995, p. 36). A essência humana nada mais é do que a
própria consciência, um conceito ideal que não tem existência fora da
consciência, enquanto a sociedade passa a ser algo com existência
independente das consciências individuais.
Chasin demonstra que Marx poderia ter sido muito mais brando com a
crítica de Feuerbach, como o foi na ocasião de A essência do cristianismo, texto
de 1841; mas em relação aos escritos Princípios da filosofia do futuro e
Necessidade de uma reforma da filosofia, Marx tem uma postura totalmente
diversa.
Durante o período de 1841 a 1843, Marx promove uma transformação
fundamental em sua filosofia, de tal modo que se pode caracterizar como uma
verdadeira guinada ontológica, ou ainda como o nascimento de sua autonomia
filosófica. O conjunto de artigos publicados por Marx na Gazeta Renana entre
maio de 1842 e março de 1843 se encontram traçados numa propositura
filosófica hegeliana, da qual inexiste qualquer expressão de Feuerbach – naquele
momento, a figura que mais o influenciava era Bruno Bauer. Destaca-se destes
textos: Debates sobre a liberdade de imprensa, Manifesto filosófico da Escola
Histórica do Direito, e Debates sobre a lei que pune o roubo de lenha (este
último, retomado por Marx no Prefácio de 1859 de Para a Crítica da Economia
Política, assinalando assim a importância que teve em sua evolução intelectual).
Longe de apresentar um Marx verdadeiramente marxiano, estes textos da
Gazeta Renana revelam que Marx vislumbrava no estado e na política a
realização da racionalidade. Neste primeiro Marx, portanto, “estado e liberdade
ou universalidade e civilização ou hominização se manifestam em determinações
recíprocas, de tal forma que a politicidade é tomada como predicado intrínseco
ao ser social” (Chasin, 2000, p. 132), como atesta Chasin em Marx: a
determinação ontonegativa da politicidade. A politicidade era entendida como
atributo ineliminável no processo de constituição do ser social, positivamente
indissociável da autêntica entificação humana e, portanto, constitutiva do gênero
49
humano de modo orgânico-formativo e essencial. Esse é um assentimento à
tradicional filosofia política, contratualista e liberal, o que Chasin chamou de
determinação ontopositiva da politicidade; característica de Marx alicerçada
firmemente em seu hegelianismo juvenil, do qual o filósofo renano era herdeiro
direto em sua formação intelectual – note-se que Marx mantinha paralelamente
aos seus estudos jurídicos um grupo de discussão de filosofia política em 1837
no Doktorklub com Edgar e Bruno Bauer, Köppen e outros neoheglianos de
esquerda. A diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro, tese
doutoral de Marx, foi uma temática, no mínimo, respaldada por Bauer, que já
ocupava uma cátedra em Bonn.
A tese doutoral marxiana era ainda permeada pelo idealismo típico dos
neo-hegelianos, mas em um certo gradiente, estendida a um novo patamar no
que se refere à problemática entre filosofia e mundo, entre consciência e
substância: conclui Marx neste texto que as provas da existência de deus não
são mais do que as provas da existência da autoconsciência humana essencial –
o que, de um certo modo, confina Marx ao quadro da autoconsciencialidade.
Nesse sentido, a exaltação de Epicuro padece da autoconsciencialidade
especialmente na análise dos corpos celestes (teoria dos meteoros), que
deveriam ser por lógica não-eternos, a fim de garantir a ataraxia da consciência,
ou melhor, a infinitude dos corpos celestes levaria a uma perturbação mental
pela contradição entre limite da consciência e ilimitabilidade do cosmos – a
despeito da objetividade, o mundo, nesta filosofia, era regido pela consciência do
mundo. Posto de lado a autoconsciencialidade dominante, ao opor Epicuro a
Demócrito, Marx engrandece o primeiro por sua lucidez ateísta e estoicista e pela
análise dos fenômenos físicos em relação ao ser humano. A teoria dos meteoros
revela, em si, a determinação da autoconsciência como divindade suprema –
mais tarde, num salto qualitativamente superior, Marx percebe nessa visão de
mundo um estranhamento característico do próprio processo de não
reconhecimento da atividade humana como um pôr teleológico que coloca em
movimento uma série de cadeias causais.
Chasin sustenta que a autoconsciencialidade se estende pelos textos da
Gazeta Renana. Parte significativamente grande dos artigos de Marx na Gazeta
50
Renana gira em torno da universalidade do estado, da particularidade da
propriedade privada e do estado concebido como a própria universalidade
humana. Isso está expresso em Sobre a Liberdade de Imprensa, publicado na
Gazeta Renana em maio de 1842:
As leis não são medidas repressivas contra a liberdade, mais do que a lei da gravidade é uma medida repressiva contra o movimento; a lei da gravidade impulsa os movimentos eternos dos corpos celestes, mas, como lei de queda, mata-nos se tentamos dançar no ar. As leis são normas positivas, claras e universais, nas quais a liberdade ganhou uma existência impessoal e teórica, independente do capricho de qualquer indivíduo. Um texto legal é a Bíblia da liberdade de um povo. (Marx, 2007, p. 56).
Chasin demonstra outros exemplos desta posição marcadamente neo-
hegeliana de Marx na fase da Gazeta Renana, inclusive em correspondências
com Arnold Ruge. Numa destas correspondências, Marx expõe uma frase
lapidar: “Ser humano deveria significar ser racional; homem livre deveria
significar republicano” (Marx apud Chasin, 2000, p. 135), e mais adiante Marx
reivindica um estado democrático. Chasin observa a data da correspondência
mencionada entre Marx e Ruge, maio de 1843, isto é, dois meses após Marx ter
abandonado a Gazeta Renana, e no trânsito para os materiais preparatórios dos
Anais Franco-Alemães. Do primeiro artigo como articulista ao seu último
opúsculo publicado sob a estampa da Gazeta Renana, Marx não duvidou da
universalidade do estado – grife-se aqui um texto fundamental deste período:
Debates sobre a lei punitiva dos roubos de lenha – crendo neste a razão política
e jurídica, portanto da eticidade racional.
Este período de Marx não marca somente a determinação ontopositiva da
política e do estado, mas marca também uma fase de transição entre o idealismo
neo-hegeliano de talhe democrático para uma fase de democracia revolucionária
– ou como chamou Lukács (2009) em O jovem Marx, a fase de um hegelianismo
radical. Esta fase transitória ocorreu nos quatro meses seguintes ao abandono
da Gazeta Renana por Marx. Neste tempo, Marx se retira do cenário público para
viagens à Holanda e Dresden, monta seu gabinete de estudos em Kreuznach e
na sequência se desloca a Paris. Segundo Chasin, apoiado no autobiográfico
Prefácio de 1859, Marx trazia dois problemas fundamentais a este gabinete de
51
estudos em Kreuznach: a questão dos interesses materiais em choque com a
realidade, que o fez justamente abandonar a Gazeta Renana; e a necessidade
subsidiária de se inteirar das ideias dos socialistas franceses. Para a realização
deste objetivo foi imprescindível a revisão teórica da filosofia de Hegel, da qual
redundou a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, texto nitidamente gregário da
crítica feuerbachiana. Por mais inacabada e obscura que seja, esta Crítica da
Filosofia do Direito de Hegel – que só se tornou conhecida com este nome bem
depois da morte de Marx – é o produto de uma ruptura ontológica de Marx contra
Hegel, marcando o nascimento do Marx propriamente marxiano. Chasin afirma
que:
Só uma cabal redefinição ontológica permite e explica um salto tão extremado como esse – que vai da sustentação ardorosa do estado universal, racionalmente posto, à negação radical de sua possibilidade, e não por mero recurso a algum volteio cético, mas pela emergência de um complexo determinativo que se afirma como reprodução ideal do efetivamente real, ou seja, pela via da crítica ontológica à mais elevada expressão, à época, da reflexão política. (Chasin, 2000, p. 138).
1.2 Ontonegatividade da politicidade
É, portanto, ao tomar contato com os textos aludidos de Feuerbach e a
partir de seu deslocamento a Kreuznach para análise da Filosofia do Direito de
Hegel que Marx promove uma ruptura e um liminar afastamento do hegelianismo
do qual ele ainda era tributário. Chasin (2009, p. 56-57) demonstra que esse
contato com a tese feuerbachiana implica numa ruptura em três dimensões –
nitidamente vislumbradas a partir da exaltação marxiana de Feuerbach como o
único verdadeiro triunfador da velha filosofia dentre os neo-hegelianos, como se
lê nos Manuscritos de 1844 (Marx, 2004) –, e são elas: o descarte da
especulação; o reconhecimento do caráter determinante da objetividade
autoposta; a identificação da sociabilidade como base da inteligibilidade. Chasin
percebe nesta guinada ontológica de Marx um caminho sem volta:
52
É o trânsito da especulação à reflexão, a transmigração do âmbito rarefeito e adstringente, porque genérico, de uma razão tautológica, pois autossustentada – e nisso se esgota a impostação imperial da mesma, para a potência múltipla de uma racionalidade flexionante, que pulsa e ondula, se expande ou se diferencia no esforço de reproduzir seus alvos, empenho que ao mesmo tempo entifica e reentifica a ela própria, no contato dinâmico com as “coisas” do mundo. Racionalidade não mais como simples rotação sobre si mesma de uma faculdade abstrata em sua autonomia e rígida em sua conaturalidade absoluta, porém, como produto efetivo da relação, reciprocamente determinante, entre a força abstrativa da consciência e o multiverso sobre o qual incide a atividade, sensível e ideal, dos sujeitos concretos. (Chasin, 2009, p. 58).
A chegada a um novo ponto de partida da investigação do mundo agora
realizada por Marx, a partir da sua própria leitura crítica de Hegel e do contato
com a crítica feuerbachiana de Hegel, se estendeu por todo o seu momento em
Kreuznach. Nestes escritos, pela primeira vez cai por terra a concepção
hegeliana de estado, pois Marx percebe que em Hegel:
São transformados em sujeitos: a realidade abstrata, a necessidade (ou a distinção substancial), a substancialidade; portanto, as categorias lógicas abstratas. Com efeito, a “realidade abstrata” e a “necessidade” são designadas como “sua” realidade e necessidade, isto é, do estado, embora 1) “ela”, “a realidade abstrata” ou “substancialidade”, seja sua “necessidade”. 2) ela é que “se divide nas distinções conceituais de sua atividade”. As “distinções do Conceito” são, “do mesmo modo, graças àquela substancialidade, determinações estáveis e reais, poderes”. 3) A “substancialidade” não é mais tomada como uma determinação abstrata do estado, como “sua” substancialidade; ela é, como tal, transformada em sujeito, pois diz-se, por fim: “Tal substancialidade é, porém, precisamente, o espírito que, por haver passado pela forma da cultura, sabe-se e quer a si mesmo”. (Marx, 2005, p. 38).
Marx alude a Hegel uma inversão da realidade: o conteúdo concreto, a
determinação real, aparece como formal, enquanto a forma inteiramente abstrata
de determinação aparece como o conteúdo concreto. A natureza especulativa
dissipa as determinações existentes e em seu lugar, no lugar de capturar a lógica
da coisa, depõe a coisa da lógica. Chasin demonstra que sem que se expurgue o
momento predominante do ontológico sobre o gnosiológico, do “ser-
53
precisamente-assim” em relação à sua representação ideal, não se obtém um
resultado efetivamente concreto, já que “as ‘determinações existentes’ não são
passíveis de reprodução intelectual pelos andamentos a priori de qualquer
configuração da lógica, e não podem conviver com qualquer démarche
especulativa” (Chasin, 2009, p. 59). Pela primeira vez e definitivamente, Marx
abandona sua concepção positiva de estado democrático ao mesmo tempo que
critica toda a filosofia hegeliana: em Crítica da filosofia do direito de Hegel –
Introdução, testamento marxiano de Kreuznach, Marx (2005) demonstra que a
especulação do mundo deve ser trocada pela análise do mais aquém, da
terrenalidade do mundo, e a partir disso conclui que o estado burguês não toma
o homem por sua relação humana mais direta, mas a partir de uma realidade
abstrata inexistente. Para Chasin, é nesse momento que pela primeira vez Marx
teoriza sobre a determinação ontonegativa da politicidade; esta teorização, uma
vez realizada, jamais fora abandonada por Marx até o fim de sua vida. Isso
implica dizer que Marx não atribuía à esfera política (i) um halo neutral que paira
sobre o conjunto dos indivíduos; e (ii) um papel perpétuo, não circunstancial
historicamente. Ao contrário, ao determinar a esfera política como um patamar
inferior na comunhão social – cujo patamar superior seria o nível humano –,
declina-a como não-permanente e transitória no evolver do gênero humano em
direção à emancipação, em direção a uma generidade universal. De maneira
absolutamente diversa de toda a trajetória da politicidade, da constituição do
estado na política clássica como interlocutor da vida em sociedade, chegando a
Maquiavel e Hobbes, para quem o estado intervém no convívio social como o
único modo possível de evitar o caos – porque a determinação ontopositiva da
politicidade demarca uma composição negativa do próprio homem (Chasin, 2000
b) –, Marx apresenta um ponto realmente novo que não fora superado jamais (ao
contrário, a própria determinação habermasiana de um estado como um
interlocutor racional se ancora em bases liberais anteriores à formulação teórica
marxiana), sobre o caráter peremptório do estado. Marx, pela primeira vez no
decurso da história do pensamento filosófico, não mais credita à esfera política o
papel resolutivo e imprescindível da vida dos homens, e cede lugar ao complexo
da emancipação humana. O que torna paulatinamente patente a contraposição
54
entre emancipação política (parcial) e emancipação humana (total), sendo a
primeira de importância resguardada à fase de grau transitório da liberdade
limitada da revolução política, de natureza mediadora destrutiva; enquanto à
segunda cabe a revolução radical ou total, para o terreno da liberdade – “o télos
permanente, onímodo e, como tal, último em sua infinitude, por isso mesmo
demanda sempre reiterada”, e doravante não se esgota no transcurso da
primeira etapa, “perfazendo no conjunto a universalidade da sucessão
contraditória e sem termo de todos os patamares de afirmação e construção do
ser humano-societário” (Chasin, 2009, p. 62), isto é, revolução radical que passa,
a partir de agora, a ser pedra angular na qual Marx talha seu universo categorial,
tornando-se o complexo entificador da universalidade e da racionalidade
humanas, da autêntica realização do homem – e não mais de uma forma
qualquer de estado imaginado, e, destarte, um universo marxiano realmente
marxiano, em oposição clara e abrupta àquela da Gazeta Renana, de um Marx
pré-marxiano democrata radical, de origem hegeliana. Essa nova posição
marxiana, a primeira das três críticas ontológicas formativas de seu arcabouço
filosófico, incidiu primeiramente à política como simples decorrência do itinerário
pessoal de Marx, porque, diga-se de passagem, as três críticas ontológicas
instauradoras compõem o corpus teórico marxiano de um modo completo, sendo
que não podem ser destacadas isoladamente.
A perfectibilização do estado e da política que demarcou e demarca o
discurso político na edificação da era moderna, a tônica da apologética do
capital, é demolida pela composição ontológica marxiana a partir de seus escritos
de 1843 até o fim de sua vida. Chasin (2000 a, p. 140) apresenta os textos
marxianos Sobre a questão judaica (de outubro de 1843), a introdução de Para a
crítica da filosofia do direito de Hegel (inverno de 1843-44), e as Glosas críticas
de 44 (redigido contra Ruge em agosto de 1844) como os responsáveis pela
guinada de Marx à crítica da politicidade.
Tal empresa da crítica ontológica da política, que faz Marx chegar à
determinação ontonegativa da politicidade, exige que a prática revolucionária
seja metapolítica, o que é entendida por Chasin nos seguintes termos:
55
[...] conjunto de atos de efetivação que não apenas se desembarace de formas particularmente ilegítimas e comprometidas de dominação política, para substituí-las por outras supostas como melhores, mas que vá se desfazendo, desde o princípio, de toda e qualquer politicidade, à medida que se eleva da aparência política à essência social das lutas históricas concretas, à proporção em que promove a afloração e realiza seus objetivos humano-societários, os quais, em suma, têm naquela ultrapassagem, indissociável da simultânea superação da propriedade privada dos bens de produção, a condição de possibilidade de sua realização. Numa frase, a crítica marxiana da política, decifração da natureza da politicidade e de seus limites, é por consequência o desvendamento da estreiteza e insuficiência da prática política enquanto atividade humana racional e universal, donde o salto metapolítico ao encontro resolutivo da sociabilidade, essência do homem e de todas as formas da prática humana. (Chasin, 2009, p. 65-66).
É assim que Marx (2010) se posiciona desde Sobre a questão judaica até
seus escritos políticos maduros, após a Comuna de Paris, A guerra civil na
França (Marx, 2011 b), notando que a Comuna foi a revolução que pela primeira
vez destituiu o poder do estado e reabsorveu suas forças na própria sociedade.
Atenta-nos Chasin (2000 a, p. 143) que coube a Marx, nesta primeira obra na
qual realmente é apresentada a determinação ontonegativa da politicidade de
modo evidente, uma dupla tarefa analítica: submeter à crítica o estado enquanto
tal, o estado político em sua construção secular, ou seja, as bases determinativas
do estado em sua forma mais desenvolvida possível – o objeto maturado, em seu
grau possível de abstração de sua anatomia completa; e a contraposição entre a
emancipação política e a emancipação humana.
Marx apresenta a relação mediada entre os homens pelo estado: o homem
se liberta através de um desvio, através da liberdade formal que o estado lhe
confere. Declarar-se livre pela mediação do estado faz com que os homens se
prendam a um caráter de servidão com a entidade que os supervisiona. No
momento em que Bauer discursa sobre a emancipação do estado em relação à
religião – sobretudo a judaica –, Marx adverte, numa composição intelectual que
voltará a ser construída em seus escritos de A sagrada família:
[...] quem deve emancipar? Quem deve ser emancipado? A crítica tinha uma terceira coisa a fazer. Ela devia perguntar: de que tipo de emancipação se trata? Quais são as condições que têm sua
56
base na essência da emancipação exigida? Tão somente a crítica à emancipação política mesma poderia constituir a crítica definitiva à questão judaica e sua verdadeira dissolução na “questão geral da época” (Marx, 2010 b, p. 36).
Analisando esta obra, Chasin chama a atenção para o delineamento sobre
a forma da política que é apresentada originalmente por Marx como uma
deficiência intrínseca e orgânica em sua forma acabada: longe de eliminar as
diferenças sociais existentes, o estado as legitima e as conforma. Temos aqui,
portanto, a essência da determinação negativa do estado. De um lado, a
universalidade humana, politicamente entificada, é a parte abstrata de uma
generidade cindida, parte que expele de si todos os traços e supostos sensíveis
da vida entificada em seus particulares reais, os quais, por outro lado, enquanto
pressupostos da vida egoísta continuam a existir na sociedade civil, fora da
esfera política, como predicados da sociedade civil. A contradição exposta faz
com que onde o estado político tenha alcançado pleno desenvolvimento, o
homem leve uma dupla existência: vive na comunidade política, na qual é
considerado membro de uma comunidade; e vive isolado como indivíduo privado.
Senão vejamos esta passagem marxiana contida em Sobre a questão judaica:
O estado político pleno constitui, por sua essência, a vida do gênero humano em oposição à sua vida material. Todos os pressupostos dessa vida egoísta continuam subsistindo fora da esfera estatal na sociedade burguesa, só que como qualidades da sociedade burguesa. Onde o estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o homem leva uma vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na realidade, na vida concreta; ele leva uma vida celestial e uma vida terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ente comunitário, e a vida na sociedade burguesa, na qual ele atua como pessoa particular, encara as demais pessoas como meios, degrada a si próprio à condição de meio e se torna um joguete na mão de poderes estranhos a ele. A relação entre o estado político e a sociedade burguesa é tão espiritualista quanto a relação entre o céu e a terra. A antítese entre os dois é a mesma, e o estado político a supera da mesma maneira que a religião supera a limitação do mundo profano, isto é, sendo igualmente forçado a reconhecê-la, produzi-la e deixar-se dominar por ela. Na sua realidade mais imediata, na sociedade burguesa, o homem é um ente profano. Nesta, onde constitui para si mesmo e para outros um indivíduo real, ele é um fenômeno inverídico. No estado, em contrapartida, no qual o homem equivale a um ente genérico, ele é o membro imaginário de uma soberania fictícia, tendo sido
57
privado de sua vida individual real e preenchido com uma universalidade irreal. (Marx, 2010 b, p. 40-41).
O que leva o desfecho conclusivo marxiano de que emancipação política
não é o mesmo que emancipação humana. De modo que a emancipação política
não é meramente processo ou caminho conciliatório para a chegada da
emancipação humana; antes, fere sua pretensão de princípio universalista se
interrompida neste processo peremptório. Diz Chasin em sua apresentação de
Marx: a determinação ontonegativa da politicidade:
É muito importante notar que não se trata apenas de uma conciliação contra o princípio de universalidade, que lastreia idealmente os atos políticos, mas de uma subordinação degenerativa da política às particularidades da sociedade civil, no sentido de que “a cidadania, a comunidade política são reduzidas a simples meio”, o que se efetiva estrutural e reiteradamente, dado que “o cidadão é declarado servo do ‘homem’ egoísta, ou seja, a esfera em que o homem age como ser genérico é degradada ao plano em que ele atua como ser parcial”, o que é traduzido, “por fim, na declaração de que homem enquanto burguês, e não enquanto cidadão, é que seja o homem verdadeiro e autêntico”. Repetindo: “a vida política se declara como simples meio cuja finalidade é a vida da sociedade civil”, o que equivale a dizer, generalizando uma frase de Marx – que a política é em princípio superior aos poderes da sociedade civil, mas que na realidade se torna sua escrava. (Chasin, 2000 a, p. 146)4.
Vale observar as próprias determinações marxianas acerca dos direitos do
homem estabelecidos na Declaração dos Direitos do Homem, a cidadania de
1791. Marx percebe que cada homem vê no outro homem não a realização, mas
a limitação da sua própria liberdade. Trata-se, então, de uma liberdade
mesquinha e egoísta, ainda estreitamente limitada no horizonte do estado 4 As citações entre parênteses realizadas por Chasin se referem ao escrito de Marx Sobre a questão judaica. Antes de sua formatação expositiva contida no prefácio de Francisco Teixeira, Pensando com Marx, de 1995, Chasin apresentou a tese da determinação ontonegativa da politicidade em julho de 1993, em formato de comunicação no XVII Simpósio Nacional de História promovido pela ANPUH na cidade de São Paulo. A edição de Antonio Rago Filho e Ester Vaisman destes textos possibilitaram ao leitor o acesso ao texto original e inacabado de Chasin, bem como a um conjunto de textos que corroboram a exposição sobre o entendimento da politicidade em Marx, nos cadernos Ad Hominem, Tomo III – Política (Chasin, 2000), textos dos quais ainda destaco a importância da tentativa de dilucidação da politicidade por parte de Chasin, numa trajetória que se parte do mundo antigo e acaba, por fim, na chegada da modernidade – este texto inacabado é o mencionado Futuro ausente, texto que encerra a coletânea.
58
burguês, e por isso mesmo, sua existência é confinada à própria estrutura do
estado. Noutras palavras, nenhum dos direitos do homem pressupostos deste
modo transcende ao homem egoísta, ao homem enquanto membro da sociedade
burguesa. Nestes direitos humanos, o homem está longe de ser concebido como
um ser genérico, mas, ao contrário, a própria vida genérica aparece como um
sistema externo ao indivíduo, como uma limitação de sua independência
originária. O gesto originário criador da suposta comunidade política na
sociedade burguesa é o mesmo ato gerador da separação destes indivíduos
como privados. O que equivale a dizer que “o gesto que cria politicamente a
comunidade dos homens ao mesmo tempo a pulveriza civilmente”. A resultante
disso desenrola uma contradição de elementos destroçados: “a comunidade
política não tem corpos, apenas evanescências éticas e jurídicas, enquanto os
corpos dos indivíduos isolados são destituídos de qualquer comunidade”, por
estarem absolutamente confinados ao egoísmo naturalista – que os priva de
qualquer traço ético ou humano. E conclui Chasin arrimado em Marx, que “o
cidadão sem corpo e o homem sem gênero são ambos, efetivamente, contornos
atróficos, resultantes de predicações usurpadas” (Chasin, 2000 a, p. 149). Por
isso mesmo, o estado ético é uma impossibilidade prática, porque toma o homem
não em sua efetiva base humana, mas numa abstração ficcional de um dever ser
moral. A emancipação política, conclui Marx, é a redução do homem a um
membro da sociedade burguesa, a um indivíduo independente e egoísta, de um
lado, e cidadão, de outro. Somente quando o homem se converte
conscientemente em ser genérico, diz Marx, é que a emancipação humana pode
ser levada a cabo. Nesta trajetória marxiana, a conclusão a que se chega, na
trama da impugnação da politicidade moderna como geradora de uma ética, só
pode ser apresentada do seguinte modo: (i) a emancipação política é a
emancipação parcial, e por mais que seja um inegável avanço em termos de um
estágio político subordinado, jamais será o ponto de chegada da construção da
ética e da liberdade, pois sua liberdade é a liberdade do homem fragmentado, a
máxima liberdade possível no horizonte da vida burguesa; (ii) a emancipação
humana é o estágio em que o homem centraliza as suas forças pelo fenecimento
do próprio estado, pela organização social da produção, e só é possível a partir
59
da efetivação consciente do homem genérico, ou da generidade humana; (iii) a
emancipação humana compreende: a integração do homem real pela figura do
então homem cidadão, de modo que ele não mais aliene de si sua força humano-
societária, degenerada e transfigurada em força política, tornando inútil o próprio
estado como barreira limitadora destas potencialidades humanas; e o
reconhecimento das próprias forças individuais como forças do gênero humano.
A luta que pode levar à emancipação humana foi, na época de Marx,
historicamente nova. Marx presenciou o crescimento de uma classe cuja força
social personificava todo o gênero humano devido à sua forma universal de
produção de valores, e na Introdução de 1843 da Critica da filosofia do direito de
Hegel, anuncia com todas as letras:
Onde existe então, na Alemanha, a possibilidade positiva de emancipação? Eis a nossa resposta: Na formação de uma classe que tenha cadeias radicais, de uma classe na sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil, de um estamento que seja a dissolução de todos os estamentos, de uma esfera que possua caráter universal porque seus sofrimentos são universais e que não exige uma reparação particular porque o mal que lhe é feito não é um mal particular, mas o mal em geral, que já não possa exigir um título histórico, mas apenas o título humano; de uma esfera que não se oponha a conseqüências particulares, mas que se oponha totalmente aos pressupostos do sistema político alemão; por fim, de uma esfera que não pode emancipar-se a si mesma nem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade, sem emancipá-las a todas – o que é, em suma, a perda total da humanidade, portanto, só pode redimir-se a si mesma por uma redenção total do homem. A dissolução da sociedade, como classe particular, é o proletariado. (Marx, 2005 a, p. 155-156).
Nas Glosas críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma
social”. De um prussiano, de 1844, escritas por Marx por ocasião da publicação
de um texto de Arnold Ruge – “o prussiano”, último neo-hegeliano de esquerda
com quem Marx ainda mantinha contato após seu rompimento com o grupo de
Bauer – também são claras esta distinção entre a emancipação política,
meramente parcial, e a emancipação humana. Nestas glosas, Marx (2010)
percebe o caráter limitado da crítica de Ruge, cuja tese de fundo estabelecia que
a Alemanha, por ainda não viver sob a égide do estado político pleno, não
60
poderia compreender o que se passava no mundo avançado de modo universal.
Por este motivo, a Alemanha era um país sem alma política e deveria enfrentar
tal revolução política, daí sua crítica à revolta social dos tecelões da Silésia. É
possível notar que Marx reordena seu pensamento a partir dos fatos históricos
ocorridos na Silésia, de modo que o seu pensamento ganha um contorno
inteiramente novo sobre a politicidade, fruto de reflexões que vinham
acontecendo desde 1843, mas que ganharam destaque a partir deste texto.
Muito pouco conhecido, este texto marxiano guarda elementos muito distintos
dos textos anteriores, porque ali a determinação ontonegativa da política é
realmente afirmada em todas as suas letras – e este texto é justamente muito
pouco conhecido porque o século passado manteve uma incapacidade de
compreensão de sua importância. Ainda mais significativo é o fato de que Marx,
a partir do momento embrionário de sua formulação sobre a ontonegatividade da
política, como já mencionado anteriormente, esta sua descoberta se transformará
em pedra angular de seu pensamento posterior, jamais sendo abandonada até
os seus últimos escritos.
Neste texto, Marx afirma que todos os estados buscam a explicação dos
males sociais na própria administração do estado, e acabam não percebendo
que o problema está justamente na própria natureza do estado – já que o estado
repousa na própria contradição entre a vida pública e a vida privada; Marx
retoma seu raciocínio contido em Sobre a questão judaica. Não obstante, neste
momento, Marx vai além:
Por fim, todos os estados buscam a causa nas falhas casuais ou intencionais da administração e, por isso mesmo, em medidas administrativas o remédio para suas mazelas. Por quê? Justamente porque a administração é a atividade organizadora do estado. O estado não pode suprimir a contradição entre a finalidade e a boa vontade da administração, por um lado, e seus meios e sua capacidade, por outro, sem suprimir a si próprio, pois ele está baseado nessa contradição. Ele está baseado na contradição entre a vida pública e a vida privada, na contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. Em consequência, a administração deve restringir-se a uma atividade formal e negativa, porque o seu poder termina onde começa a vida burguesa e seu labor. Sim, frente às consequências decorrentes da natureza associal dessa vida burguesa, dessa propriedade privada, desse comércio, dessa indústria, dessa espoliação
61
recíproca dos diversos círculos burgueses, frente a essas consequências a lei natural da administração é a impotência. Porque essa dilaceração, essa sordidez, esse escravismo da sociedade burguesa é o fundamento natural sobre o qual está baseado o estado moderno, assim como a sociedade “burguesa” do escravismo era o fundamento natural sobre o qual estava baseado o estado antigo. A existência do estado e a existência da escravidão são inseparáveis. (Marx, 2010, p. 39).
Marx articula a determinação geral do estado e da racionalidade política de
um modo interligado, o que Chasin (2000 a, p. 155) chama de crítica da razão
política. A distinção objetiva entre a revolta política parcial e a emancipação
humana volta ao discurso marxiano; e desfecha o texto numa afirmação, mais
uma vez, da determinação ontonegativa da politicidade, ou seja, que o processo
revolucionário, de acordo com a objetividade da vida cotidiana pode tomar forma
de uma revolta política, mas, seu fechamento, contudo, deve ser a anulação e a
dissolução completa do próprio estado e da política, por via de consequência:
[...] Contudo, na mesma medida em que uma revolução com alma política é parafrástica ou absurda, uma revolução política com alma social faz sentido. A revolução como tal – a derrubada do poder constituído e a dissolução das relações antigas – é um ato político. No entanto, sem revolução o socialismo não poderá se concretizar. Ele necessita desse ato político, já que necessita recorrer à destruição e à dissolução. Porém, quando tem início a sua atividade organizadora, quando se manifesta o seu próprio fim, quando se manifesta a sua alma, o socialismo se desfaz do seu invólucro político. (Marx, 2010, p. 52).
É válido observar que ainda em 1995, mesmo ano da publicação do ensaio
de Chasin como posfácio do livro de Teixeira – no qual temos a apresentação da
determinação ontonegativa da política –, István Mészáros em seu Para além do
capital já havia notado esta superação da política em Marx, notando, inclusive,
esta determinação marxiana nos mesmos escritos apontados por Chasin
(Mészáros, 2002, p. 564, nota de rodapé nº. 3), notadamente em seus escritos de
ruptura com o hegelianismo, sem se esquecer do aludido destaque das Glosas
contra Ruge. A certa altura, Mészáros apresenta a posição marxiana da política
como contingente e limitada:
62
A política, dada a forma como se constitui, não pode evitar a substituição da autêntica universalidade da sociedade por sua própria parcialidade, impondo assim seus próprios interesses sobre os indivíduos sociais, e apropriando-se, para si própria, do poder de abstrair os interesses parciais conflitantes em nome de sua universalidade usurpada. (Mészáros, 2002, p. 565).
Mészáros continua sua argumentação numa linha muito próxima da de
Chasin, apontando que a revolução social na formulação de Marx deve acabar
com qualquer forma de estado e de política; assim Marx executa sua construção
ontológica da política, em vez de apresentar qualquer via de substitucionismo de
poder político, o que resulta “a manutenção da definição predominantemente
negativa da política, inclusive em seus últimos escritos” (Mészáros, 2002, p. 565).
Adiante, apresentando os traços da teoria política marxiana, Mészáros (2002, p.
566-567) vê uma unidade de elementos orgânicos em sua composição que não
pode ser desvinculada, dadas as suas interconexões recíprocas, elencadas em
sete pontos que assim podem ser resumidos: (1) a política e o estado devem ser
transcendidos por meio de uma transformação radical, mas que não pode ser
abolido por algum decreto ou voluntarismo de qualquer ordem; (2) a revolução
destrutiva do estado e da política não pode ser simplesmente uma revolução
política, mas deve ser uma revolução radical social, para que não fique
aprisionada nos limites do sistema autoperpetuador da exploração
socioeconômica; (3) revoluções sociais buscam remover a contradição entre
parcialidade e universalidade que as revoluções parcias – isto é, políticas –
sempre reproduziram no passado, submetendo a sociedade à regência da
parcialidade política e à manutenção da ordem econômica sob controle de uma
classe; (4) o sujeito da emancipação, naquele momento, só poderia ser o
proletariado devido à sua posição central nas contradições antagônicas do
sistema do capital; (5) lutas políticas e socioeconômicas constituem uma unidade
dialética e consequentemente a negligência da dimensão socioeconômica
despoja a política de sua realidade; (6) a ausência de condições econômicas
objetivas para a implantação das medidas socialistas ironicamente pode apenas
levar adiante as políticas dos adversários na eventualidade de uma conquista
prematura do poder; (7) a revolução social bem sucedida não pode ser local ou
63
nacional, porque as revoluções políticas podem ser confinadas a uma situação
limitada, e por este motivo a revolução deve ser universal e global, o que implica
a extinção do estado em escala global.
Outros pontos convergem também de modo peculiar entre a exposição de
Chasin acerca da filosofia marxiana e a posição de Mészáros, como o
posicionamento de Marx frente a crítica da filosofia do direito de Hegel como
interligada ao modo de superação da economia política.
1.3 Críticas da filosofia especulativa e da economia política: a constituição marxiana da ontologia do ser social
Essa primeira crítica instauradora do decurso analítico ontológico marxiano
anteriormente explicitada surgiu acompanhada da crítica à filosofia especulativa
e da economia política; ambas aparecem no itinerário marxiano ao mesmo
tempo. O que não significa, absolutamente, a ocorrência cronologicamente
anterior da crítica ontológica da política; esta também ocorre processualmente
ligada à crítica da filosofia especulativa – a crítica do estado e da razão filosófica
hegeliana são ligadas, de modo que esta separação explicativa é um recurso
meramente artificial da forma expositiva.
Como anteriormente mencionado, no gabinete de Kreuznach, Marx se
depara com a contraposição da realidade em choque com a teoria especulativa,
notadamente contra a tese hegeliana presente na Filosofia do direito; mas
também, a partir disso, critica a Fenomenologia do espírito (Hegel, 2012) e A
ciência da lógica (Hegel, 2011). É o que se vê nas obras marxianas: Manuscritos
econômico-filosóficos (Marx, 2004); A ideologia alemã (Marx & Engels, 2007); A
sagrada família (Marx & Engels, 2003); e Miséria da filosofia (Marx, 1976).
64
Se, por um lado, existe a transformação da crítica à filosofia especulativa
em Feuerbach; por outro, a dissipação da política como atributo ineliminável e
entificador do homem não é característica de Feuerbach, em nenhum dos seus
momentos, razão pela qual não se pode atribuir a Marx um estatuto filosófico
feuerbachiano. Ao contrário, Feuerbach, nos círculos intelectuais neo-hegelianos,
fora um defensor indefectível da positividade da política e do estado, a tal ponto
que sua referência de negação à religião veio acompanhada de uma troca em
que se deixa de exaltar a deus para se exaltar religiosamente a política, na qual o
homem absoluto só poderia ser o estado, então como mediador universal do
gênero humano.
Apoiado e extrapolando a crítica de Feuerbach a Hegel, Marx percebe que
o próprio núcleo metodológico hegeliano está fadado ao fracasso, porque, por
mais volteios que se faça, é sempre a ideia a determinante das ações humanas;
isso impossibilita a autêntica reprodução da peculiaridade concreta dos objetos
reais – e não meramente ideais, ou seja, Marx percebe a preponderância da
objetividade. A crítica marxiana
[...] ascende à decifração da mundaneidade (sic) imperfeita em sua realidade, para esclarecê-la, compreendendo sua gênese e necessidade, ou seja, para capturá-la em seu significado próprio, por meio da determinação das lógicas específicas que atualizam os objetos de seu multiverso. É a extraordinária passagem da tópica negatividade absoluta do criticismo neo-hegeliano à crítica ontológica – investigação do ente autoposto em sua imanência, seja esse uma formação real ou ideal; procedimento teórico – “verdadeira crítica filosófica”, diz Marx – em que a tematização, isto é, a reprodução ideal das coisas é procedida a partir delas próprias, da malha ou do aglutinado de seus nexos constitutivos, processo analítico pelo qual são desvendadas e determinadas em sua gênese e necessidade próprias. (Chasin, 2009, p. 74).
Marx recompõe o caminho determinativo do ser na afirmação concreta de
que a determinação do ser é dada por sua imanência, e não por um crivo
metodológico a priori. Nos Manuscritos de 1844, Marx percebe que as categorias
hegelianas ligadas à essência humana são abstrações que não têm lugar na
realidade objetiva, “de modo que sensibilidade, religião, poder do estado etc., são
seres espirituais” (Marx, 2004, p. 122), apenas concebidos abstratamente. A
65
própria humanidade aparece não como produto natural e histórico, mas ideal,
produto do pensamento. Marx critica Hegel justamente na proposição dialética
entre sujeito e objeto, porque para Hegel, o homem é o mesmo que a
consciência de si próprio, de modo que o objeto não é outra coisa senão a
consciência de si externada, a consciência de si objetivada. Marx continua:
Quando o homem efetivo, corpóreo, com os pés bem firmes sobre a terra, aspirando e expirando suas forças naturais, assenta suas forças essenciais objetivas e efetivas como objetos estranhos mediante sua exteriorização (Entäusserung), este assentar não é o sujeito; é a subjetividade de forças essenciais objetivas, cuja ação, por isso, tem também que ser objetiva. O ser objetivo atua objetivamente e não atuaria objetivamente se o objetivo (Gegenständliche) não estivesse posto em sua determinação essencial. Ele cria, assenta apenas objetos, porque ele é assentado mediante esses objetos, porque é, desde a origem, natureza (weil es von Haus aus Natur ist). No ato de assentar não baixa, pois, de sua “pura atividade” a um criar do objeto, mas sim seu produto objetivo apenas confirma sua atividade objetiva, sua atividade enquanto atividade de um ser natural objetivo. (Marx, 2004, p. 126-127).5
Na seção destinada à crítica de Hegel em Para uma ontologia do ser
social, Lukács (2012), baseado nos estudos dos escritos marxianos de
Kreuznach e verificando na obra do próprio Hegel a sua ontologia, diz:
Hegel nega toda espécie de prioridade do dever-ser em relação ao ser. Isso empresta às suas considerações – e não apenas às que ele faz da sociedade e da história – uma notável objetividade, que se situa acima de intenções e desejos. Já nisso está presente a nova ontologia, cuja adequada compreensão é a meta última de todo o seu pensamento: ou seja, a posição central e máxima da realidade no sistema categorial global, a supremacia ontológica do ser-propriamente-assim da realidade com relação a todas as demais categorias, subjetivas e objetivas. Não menos importante: a grandeza de Hegel como pensador liga-se ao fato de ter por vezes advertido com extrema clareza esse problema ontológico e de ter tentado captá-lo conceptualmente em todas as suas consequências. (Lukács, 2012, p. 188).
Enquanto na ontologia de Kant, a relação ontológica do ser humano com a
verdadeira realidade – transcendental – surge a partir do dever-ser moral; na de 5 Para a análise das concepções marxianas e hegelianas de alienação e estranhamento, Cf. os artigos de Costa (2001 e 2012) e D’Abbiero (2014), indicados na bibliografia desta tese.
66
Hegel, a inteira moralidade é “tão somente uma parte da práxis humana que
encaminha para a autêntica eticidade”. (Lukács, 2012, p. 189). Para Hegel, de
acordo com Lukács, o dever-ser tem um significado real apenas enquanto
expressa a defasagem entre a vontade humana e o que é em-si. Superada a
defasagem na eticidade, o dever-ser acaba sendo dissolvido também no mundo
da práxis. No entanto, se o ente-em-si enquanto eticidade já existe de maneira
adequada no presente, a defasagem ontológica entre o sujeito da práxis e a
essência desta é eliminada, desaparecendo com isto o dever-ser. O resultado
disso é que Hegel coloca o momento atual da práxis como a eticidade já
alcançada, determinando, portanto, um fim da história.
Embora admita que esta crítica à filosofia hegeliana seja justa, Lukács
defende que Hegel não pretendia falar nem do presente, nem do seu caráter de
ponto último quando tratou da eticidade e da eliminação do dever-ser. No
entanto, a sociedade do tempo de Hegel, segundo o próprio Hegel, já teria
alcançado a adequação plena a ideia, e, logicamente, uma ultrapassagem deste
momento seria uma impossibilidade.
Essa concepção hegeliana, de acordo com Lukács (2012, p. 190), implica
duas premissas ontológicas: a primeira – que será desenvolvida até seu limite
nos Prolegômenos para uma ontologia do ser social (Lukács, 2011) –, se refere
ao fato de que a história não é feita apenas de atos imediatamente teleológicos
do conjunto dos seres humanos, porque do conjunto dos pores teleológicos
nasce algo diverso daquilo que se pretendiam os atos singulares; a segunda, a
coincidência da ideia realizada e do presente histórico é metodologicamente
fundada sobre uma lógica. Diz Lukács sobre Hegel:
O critério de realização da ideia no presente não se apoia sobre uma espécie de revelação, mas sobre o caráter específico da lógica hegeliana. Já no início, essa lógica é implantada ontologicamente; ou seja, não apenas as categorias lógicas singulares pretendem ser, em última análise, idênticas ao em-si real, mas também o seu edifício [Aufbau], a sua sequência, a sua hierarquia querem corresponder exatamente ao edifício ontológico da realidade. (Lukács, 2012, p. 190).
67
Na Fenomenologia do Espírito de Hegel (2007), o espírito autorrealizador
do mundo possui o caráter essencial da generidade humana, e Lukács aponta
para uma contradição. Tal contradição está centrada na relação direta que há do
ser humano com a sociedade. Quando Hegel atribui a esta relação uma figura
autônoma que ele determina como sendo o espírito, ele ainda não está se
afastando da realidade objetiva, justamente porque o ser social tem uma
existência independente da consciência individual do homem singular. Esta
autonomia não é alterada pelo fato de ser o movimento do ser social uma síntese
das ações, dos esforços individuais, a despeito de o conjunto desses esforços
levar a um resultado distinto da soma das consciências originárias. Partindo
desta percepção, atribuir a um ser sui generis a totalidade social é ainda
ontologicamente legítimo, de acordo com o raciocínio de Lukács (2012, p. 201), e
ainda não apresenta uma contraditoriedade em sua ontologia. Tampouco o fato
do acento excessivo de Hegel sobre o espírito se apoiar substancialmente em si
próprio, como na Filosofia da História. É, todavia, na Filosofia do Direito que o
espírito assumirá uma “figura fetichizada e enrijecida; isso ocorre quando ele é
despojado dos vínculos dinâmicos, decisivos no plano da gênese concreta, com
a atividade dos indivíduos, adquirindo por consequência uma autoconsciência em
termos de puro existente para si”, na medida em que os componentes que
constituíram o ser – e aqui se inclui a sociedade civil – aparecem completamente
suprassumidos na universalidade do espírito, “na qual a dialética conceptual das
formas do espírito que se apoia apenas em si mesmo substitui a dialética real do
histórico-social” (Lukács, 2012, p. 202).
Hegel atribui à natureza um télos objetivo, na sua concepção de sujeito-
objeto idêntico – e isso só é possível através de uma concepção teológica da
natureza. Para Lukács, este é o ponto insolúvel na ontologia de Hegel:
Se for verdade que a doutrina iluminista da mimese, por seu caráter mecanicista, era incapaz de explicar o espelhamento correto, no sujeito, dos objetos da realidade independentes desse sujeito, é igualmente verdade que a teoria do sujeito-objeto idêntico constitui um mito filosófico, o qual – com essa suposta unificação de sujeito e objeto – deve necessariamente violentar os fatos ontológicos fundamentais. (Lukács, 2012, p. 204).
68
Ainda que pudesse representar um avanço sobre a teoria do conhecimento
subjetivo-transcendente kantiana, esse retorno a Espinosa, que só pode ser
realizado por meio da figura fantasmagórica do sujeito-objeto idêntico, chega a
uma posição não somente insustentável do ponto de vista ontológico, mas
também leva a um retrocesso, porque constitui um dos momentos superados –
pré-Iluminismo – nos quais a dicotomia entre materialismo e idealismo era ainda
obscura. Este é um dos motivos pelo qual o retorno a Espinosa por Hegel chega
a ser mais problemático do que fora a tese de Espinosa em seu tempo. Embora
Hegel tenha sido um dos pioneiros no discurso de historicidade da sociedade,
sua ontologia era pobre do ponto de vista natural a tal ponto de negar uma
historicidade da natureza.
O mesmo ocorre quando Hegel logiciza a ontologia, como no caso da
negação da negação. Todas as categorias hegelianas são dirigidas para as
formas do ser; mas, por estarem subordinadas à lógica, tais categorias aparecem
quase sempre generalizadas para muito além da esfera do ser real, deformando-
se do ponto de vista da ontologia do ente-em-si.
Lukács examina que o nascimento de uma formação natural, de um
organismo, de uma formação social é ontologicamente um problema de gênese
real. As legalidades do surgir e de sua processualidade são as que determinam a
caracterização real do respectivo ser específico. No entanto, diferentemente do
plano ontológico, quando um ser é determinado pelo plano lógico, um conceito é
deduzido do outro “não importando se essa dedução vai de baixo para cima ou
de cima para baixo”. E “enquanto a lógica dor usada metodologicamente como
algo que não determina a realidade, ou seja, como abstração dessa realidade,
nada deriva necessariamente dessa diferença que leva a uma deformação do
conhecimento da realidade” (Lukács, 2012, p. 223). No caso de Hegel, cuja
lógica é entendida como fundamento teórico da ontologia, as deduções lógicas
obrigatoriamente devem ser vistas como as próprias formas da gênese
ontológica. Por este motivo, Hegel hierarquiza a lógica à ontologia, gerando um
sistema arbitrário. Senão, vejamos este exemplo de Hegel citado por Lukács,
referente à Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio:
69
A natureza animal é a verdade da vegetal, esta da mineralógica, a Terra é a verdade do sistema solar. Num sistema, o mais abstrato é o primeiro, o verdadeiro de cada esfera é o último; justamente, porém, este é apenas o primeiro de um degrau [ou estágio] mais alto. A complementação de um degrau a partir de outros é a necessidade da ideia, a variedade de formas deve ser entendida como necessária e determinada. (Hegel apud Lukács, 2012, p. 223).
Com isso, Hegel converte a ontologia da natureza numa base subordinada
para a sociedade; deturpando o fato ontológico real com tal subordinação, “na
medida em que o acaso no surgimento da vida e da sociedade sobre a Terra é
transformado em necessidade lógica, com o que a conexão legal-casual adquire
um inadmissível acento teleológico” (Lukács, 2012, p. 223-224). E Lukács
percebe a contradição irresoluta que uma subordinação da ontologia à lógica
pode levar, no surgimento do ser social:
Por um lado, Hegel descobre no trabalho o princípio no qual se expressa a forma autêntica da teleologia, o pôr e a realização real da finalidade por parte de um sujeito consciente; por outro, essa categoria ontológica genuína é incorporada no meio homogêneo de uma sistemática na qual os princípios lógicos se tornam predominantes; segundo tal sistemática, encontramo-nos num estágio que ainda não produziu nem a vida, nem o ser humano, nem a sociedade. Com efeito, em conformidade com os princípios lógicos de explicitação do sujeito-objeto idêntico, a vida só pode tomar forma no estágio da ideia, e a teleologia tem precisamente a função lógico-sistemática de conduzir do estágio do conceito àquele da ideia. Desse modo a hierarquia lógica produz o seguinte absurdo: ela desenvolve as categorias do trabalho antes que, na sequência evolutiva lógico-ontológica, tivesse surgido a vida. (Lukács, 2012, p. 225).
O mérito de Hegel em descobrir no trabalho a forma da existência
ontológico-real da teleologia é acentuado por Lukács, que também demonstra
que essa era uma antinomia até então sem solução, que se guiava na
contraposição entre uma teleologia guiada pela transcendência e o domínio
exclusivo da causalidade na ontologia. Hegel, por sua vez, ainda segundo
Lukács, reconhece um fato fundamental sem o qual não se é possível manter
uma verdadeira ontologia do ser social, que se trata do contraste entre
causalidade da natureza e teleologia do trabalho. Mas Hegel, por outro lado,
70
ainda guarda uma subordinação da ontologia pela lógica que acaba por interferir
em sua mais importante descoberta filosófica para uma ontologia do ser social,
porque apesar de todo esforço, a concepção hegeliana do trabalho como
teleologia posta é uma mera ilustração da conexão lógica, na qual a teleologia se
manifesta como verdade do mecanicismo e do quimismo, como categoria da
própria natureza.
Apesar da subordinação da ontologia pela lógica, há uma característica
totalmente inovadora e que deve prevalecer para a ontologia do ser social em
Hegel, que é a processualidade ontológica. Em suma, Lukács (2012, p. 242)
percebe que Hegel (i) concebe a realidade como uma totalidade de complexos
que são em si mesmos também totalidades; (ii) a dialética objetiva consiste na
gênese real e na autoexplicitação, interação e síntese reais desses complexos;
(iii) de tal sorte que o absoluto não poderá jamais se converter na imobilidade de
uma indiferença transcendente com relação aos movimentos concretos, de modo
que este absoluto também é processual; (iv) a forma originária da contradição, a
identidade da identidade e da não-identidade mantém-se ineliminavelmente ativa
também no absoluto. E Lukács defende a percepção da contradição entre o
sistema lógico e ontológico de Hegel, do qual este o tempo todo se esquivou. E,
todavia, o resultado de seu método chega a uma determinação ontológica.
Assim, no início da lógica do conceito, ele [Hegel] repete que a essência surgiu do ser, o conceito surgiu da essência e, portanto, em última instância, também do ser. Mas acrescenta ainda algo interessante e sintomático: “Esse devir, porém, tem o significado de uma autorrepulsão, de modo que o que veio a ser é, muito antes, o incondicionado e o originário”. Nessa admissão – que, se pensado até o fim, deveria pôr abaixo, ou pelo menos transformar radicalmente, todo o sistema lógico – triunfa a realidade última da concepção ontológica hegeliana, ou seja, que a realidade (o mundo do conceito) é ontologicamente o fato primário, que ontologicamente se obtém da realidade, mediante abstração, a essência, e desta, o ser; que, portanto, a lógica reproduz as verdadeiras relações ontológicas em sequência inversa, que, contudo, é necessária do ponto de vista lógico-metodológico. (Lukács, 2012, p. 242).
71
A questão central é que em todo processo do conhecimento as abstrações
são forçosas; no entanto, em tais abstrações não se pode perder de vista que o
ponto de partida deve ser a própria realidade. Mas em Hegel, as abstrações
formadas no processo de apreensão da realidade são também derivadas da
lógica, tendo sua base fundamental no idealismo objetivo, na concepção do
sujeito-objeto idêntico,
que não só impede uma clara separação entre as categorias e métodos ontológicos e categorias e métodos lógico-gnosiológicos, não só gera uma permanente mistura entre os dois níveis, mas também subordina continuamente as verificações ontológicas aos pontos de vista lógico-hierárquicos, e, desse modo, violenta e deforma aquelas verificações. (Lukács , 2012, p. 243).
Para Lukács, o momento de maior importância na construção da teoria do
conhecimento hegeliana – ainda que seja pelo viés gnosiológico – são as
determinações de reflexão [Reflexionsbestimmungen]. O centro da dialética
hegeliana, portanto, estabelece-se nesta formulação, tanto da dialética da
dinâmica e estrutura da realidade quanto da dialética de seus diversos
espelhamentos na consciência subjetiva. Contida especialmente na
Fenomenologia do Espírito, em seu aspecto fundamental pretende demonstrar
como as diversas fases do pensamento humano surgem na consciência ao
mesmo tempo como produtos e instrumentos da dominação ideal e prática da
realidade, paralelamente ao desenvolvimento peculiar dessa mesma realidade.
Hegel pretende determinar o modo pelo qual o cérebro pensante apreende a
realidade, observando que este sempre busca apreender pela forma imediata e
isoladamente os elementos da realidade. O primeiro passo da apreensão se
torna o entendimento, “a primeira morada das determinações de reflexão”
(Lukács, 2012, p. 247).
Ainda que o tema das determinações de reflexão tenha aparecido
inicialmente em Kant, neste momento o destaque gnosiológico comprometia a
dialética; em sua Crítica da faculdade do juízo, as determinações de reflexão
apareciam tão somente como o caminho que no pensamento leva do universal
ao particular – em Hegel, por outro lado, a complexidade chega à passagem do
entendimento [Verstand] à razão [Vernunft], enquanto em Kant o entendimento e
72
a razão são contrapostos metafisicamente, porque a razão se apresenta como
transcendente em relação aos fenômenos. A tradição da filosofia clássica alemã
decorrente da negação da cognoscibilidade da coisa-em-si chega a gerar uma
vertente que aborda a transcendência de modo irracional, na qual a reflexão
chega a ser encarada com o seu determinar, como ocorre em Schelling. Lukács
afirma:
Desse modo, da crítica unilateral ao caráter não dialético do simples conhecimento intelectivo infere-se um salto na irracionalidade transcendente; o entendimento não é contraposto à razão, enquanto esta brota da própria contraditoriedade daquele, como o faz Hegel, mas arrisca-se o salto para a intuição intelectual, o que tem como consequência [...] também a suprassunção das contradições, na forma de sua extinção, no absoluto. Já na época de sua colaboração com Schelling, Hegel havia protestado contra esse rebaixamento do entendimento. (Lukács, 2012, p. 248).
Já em Hegel, a razão aparece como um patamar acima do entendimento
em que ela reconhece a verdadeira conexão entre objetos que parecem ter uma
existência inteiramente autônoma e reciprocamente independente na vida, nas
categorias e relações categoriais correspondentes na realidade objetiva e no
pensamento. “Todo ato da razão é, portanto, ao mesmo tempo, uma confirmação
e uma suprassunção da concepção que o entendimento possui da realidade”.
(Lukács, 2012, p. 248). Diferentemente de Kant, para quem a razão e o
entendimento estão diante de um mundo de fenômenos puros e diante da
incognoscibilidade objetiva, em Hegel a razão e o entendimento aparecem diante
do mesmo mundo de objetos. A razão sempre é subordinada ao entendimento, e
o entendimento é a reprodução das abstrações da realidade. A diferença
aplicada à razão de Hegel em relação a Kant, é que o primeiro não delega ao
reino do incognoscível a razão. O mérito de Hegel, ainda que sua lógica
determine e subordine sua ontologia verdadeira, foi ter transformado a essência
em uma categoria do processo dedutivo ontológico, uma categoria da realidade,
e não mais uma contraposição metafísica entre fenômeno e essência.
Portanto, a dialética da realidade que é conhecida pela razão consiste no seguinte: os momentos da realidade são simultânea e
73
indissoluvelmente independentes e vinculados, de tal modo que sua verdade é falsificada tão logo se atribua a um desses aspectos um significado absoluto, que exclua o seu contrário, mas também quando as diferenças e as oposições são eliminadas em sua unidade. Essência, aparência e fenômeno são, portanto, determinações de reflexão na medida em que cada qual expressa essa relação; todo fenômeno é essência que aparece, toda essência aparece de algum modo. Nenhuma das duas pode estar presente sem essa relação dinâmica, contraditória; cada qual existe na medida em que ininterruptamente conserva a sua própria existência e renuncia a ela, na medida em que se esgota nessa relação antitética. (Lukács, 2012, p. 254).
A ontologia idealista hegeliana do sujeito-objeto idêntico produz uma
deformação, a saber, a dedução lógica de uma determinação de reflexão a partir
de outra, ordenando hierarquicamente de acordo com as categorias da lógica. As
categorias aparecem em tal ordenação que a “verdade” de uma categoria se
refere à sua precedente inferior. No entanto, o grande progresso de Hegel em
relação às determinações de reflexão consiste na impossibilidade de projetar na
natureza a concepção da forma que era teleologicamente condicionada pelo
trabalho, como ocorre em Aristóteles, por exemplo. Ainda assim, embora Hegel
tenha sido o primeiro a esclarecer a relação dialética da teleologia, ele a
transforma em princípio universal, em vez de apresentá-la unicamente à
ontologia do ser social. Ao apresentar a teleologia para a ontologia naturalista,
Hegel pressupõe uma teleologia como “verdade” do mecanismo e do quimismo
da própria natureza, estabelecendo uma força transcendental finalística como
criadora do universo, da natureza em-si e de todas as formas existentes.
Na primeira parte da ontologia ocupada ao tratamento da questão
ontológica por Marx, Lukács afirma que a filosofia marxiana parte de um princípio
filosófico hegeliano – ainda que de modo crítico –, motivo pelo qual não se é
possível uma verificação em Marx de um tratado sobre ontologia de um ponto de
vista lógico ou da teoria do conhecimento.
Por um lado, nenhum leitor de Marx pode deixar de notar que todos os seus enunciados concretos, se interpretados corretamente, isto é, fora dos preconceitos da moda, são ditos, em última análise, como enunciados diretos sobre certo tipo de ser, ou seja, são afirmações puramente ontológicas. Por outro lado, não há nele nenhum tratamento autônomo de problemas
74
ontológicos; ele jamais se preocupa em determinar o lugar desses problemas no pensamento, em defini-los com relação à teoria do conhecimento, à lógica etc. de modo sistemático ou sistematizante. Essa duplicidade, intimamente interligada, tem a ver indubitavelmente com o fato de que seu ponto de partida é decididamente, ainda que desde o início em termos críticos, a filosofia hegeliana. (Lukács, 2012, p. 281).
Está claro para Lukács que a viragem crítica de Feuerbach contra Hegel
significou, no século XIX, a primeira crítica aberta ao idealismo pelo materialismo,
sendo de caráter também ontológico. O juízo marxiano acerca de Feuerbach,
desde o princípio de seu contato com o materialismo, já nas primeiras cartas de
1841 a Feuerbach, sempre possuiu dois momentos: o primeiro, o
reconhecimento de sua virada ontológica como um ato sem precedentes na
história alemã; o segundo, a constatação de seu limite, isto é, “de que o
materialismo alemão feuerbachiano nem mesmo se deu conta do problema da
ontologia do ser social” (Lukács, 2012, p. 283). Lukács percebe a determinação
ontológica do pensamento marxiano já em sua fase de juventude, em sua tese
de doutoramento, na discussão acerca de Kant e das provas da existência de
deus, que não passam de meras tautologias vazias. De sorte que já na
juventude, a realidade social era para Marx o critério final do ser social de um
fenômeno – ainda que Marx, naquele momento, não fosse capaz de dominar tal
problemática do conhecimento. Marx, neste momento juvenil, critica a vaga
explicação kantiana da existência de deus a partir da tautologia “o que eu
imagino realmente é uma representação real pra mim”, demonstrando que esta
afirmação parte do princípio de que a imaginação determinaria a objetividade;
mas não só isso, Marx demonstra como a questão subjetiva não é capaz de
determinar a objetividade pelo pensamento, e, que no fundo, este pensamento
tem um caráter social nas ações dos indivíduos. Lukács chamou isso de “função
prático-social de determinadas formas de consciência”, o que independe do fato
de elas serem representações ideais baseadas numa realidade efetiva ou num
falseamento da realidade.
A crítica marxiana a Hegel se fundamenta no princípio de que a ontologia
hegeliana está erigida sobre um patamar determinado pela lógica. Partindo
sempre da realidade realmente existente, Marx terá sua primeira expressão
75
ontológica nos Manuscritos de 1844, cuja originalidade reside no fato de que as
categorias econômicas aparecem como categorias da produção e da reprodução
da vida humana, o que tornou possível a exposição da ontologia do ser social
sobre base materialista. É fato que o elemento propulsor de crítica a Hegel
chegou a Marx através de Feuerbach, mas, diz Lukács (2012, p. 285), é certo
que Marx muito cedo assume uma posição crítica a Feuerbach, especialmente
sobre a separação operada por este do reino social em relação ao reino natural.
Em Marx, o problema da natureza aparece sob uma luz ontológica totalmente
reconfigurada. Diz Lukács,
No momento em que Marx faz da produção e da reprodução da vida humana o problema central, surgem, tanto no próprio ser humano como em todos os seus objetos, relações, vínculos etc. como dupla determinação de uma insuperável base natural e de uma ininterrupta transformação social dessa base. (Lukács, 2012, p. 285).
A relação que o trabalho traz na natureza é dupla, mediando o
metabolismo entre homem e natureza: por um lado, o ser humano que trabalha é
transformado por seu trabalho, modificando a natureza exterior – o que acaba
por modificar sua própria natureza, desenvolvendo todas as potencialidades
encontradas latentes na natureza; por outro lado, os próprios pressupostos do
trabalho (os objetos naturais) são transformados a tal ponto que tais
pressupostos vão deixando de ser objetos naturais para se transformarem em
objetos da própria criação humana. Essa transformação da natureza é um
processo teleológico. E é exatamente este o ponto de partida da ontologia do ser
social em Marx6 (Lukács, 2012, p. 286).
Lukács é taxativo nesta determinação do ser social: todo ser social é
originário da natureza orgânica, e esta, por sua vez, da natureza inorgânica. Não
se pode considerar o ser social como independente da natureza, como se faz em
grande parte da filosofia não-marxista. De igual modo, a ontologia marxiana
exclui a transposição simplista das leis naturais para a sociedade – como ocorre 6 Marx, em A ideologia alemã, diz: “Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou pelo que se queira. Mas eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo começam a produzir seus meios de vida, passo que é condicionado por sua organização corporal. Ao produzir seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material”. (Marx & Engels, 2007, p. 87).
76
com o darwinismo social. “As formas de objetividade do ser social se
desenvolvem à medida que a práxis social surge e se explicita a partir do ser
natural, tornando-se cada vez mais claramente sociais”, demonstra Lukács
(2012, p. 287). Este processo ocorre através de um salto ontológico (ainda que
este salto seja um processo muito longo com inúmeras formas de transição), que
é um processo dialético do pôr teleológico no trabalho, inédito na natureza.
As categorias e as leis da natureza serão sempre a base irrevogável das
categorias sociais; já as categorias sociais, completamente inéditas na natureza,
serão transformadas pelo pôr teleológico surgindo objetividades totalmente novas
em relação à natureza, de tal sorte que até objetos próprios da natureza, dada a
sua potencialidade de uso, adquirirão novas objetividades distintas. E por mais
que a sociedade recue as suas barreiras naturais, há um ponto intransponível em
sua natureza orgânica, de modo que o ser mais complexo sempre guarda em si a
anatomia do mais simples. O intercâmbio social é resultado, portanto, do pôr
teleológico, que determina a produção e a reprodução da vida material. Lukács
(2012, p. 289) chama a isso de ontologia materialista da natureza. Àqueles que
interpretam Marx como tendo uma transformação de um Marx filósofo, de
juventude, para um Marx economista, da maturidade, Lukács traz a confirmação
definitiva de que esta é uma conclusão completamente apressada e típica
daqueles que transformam a economia numa ciência particular e desvinculada da
materialidade. Marx, ao contrário, jamais abandonou o terreno da filosofia,
sobretudo porque inexistem em Marx tais separações disciplinares. A economia
marxiana sempre parte da totalidade do ser social e volta a desembocar nesta
mesma totalidade. A este respeito, e impugnando a visão de que o marxismo
poderia ser um empirismo, defende Lukács:
Eles [os escritos econômicos de Marx] são obra da ciência e não da filosofia. Mas seu espírito científico passou pela filosofia e jamais a abandonou, de modo que toda verificação de um fato e toda apreensão de um nexo, não são simplesmente fruto de uma elaboração critica na perspectiva de uma correção factual imediata; ao contrário, partem daí para ir além, para investigar ininterruptamente toda factualidade na perspectiva do seu autêntico conteúdo de ser, de sua constituição ontológica. (Lukács, 2012, p. 293).
77
Adiante, Lukács demonstra que tal cientificidade está longe daquela posta
como ciência pela vertente positivista, justamente porque a nova cientificidade de
Marx tem sempre como saída o processo de generalização e de gênese do ser
social visando a totalidade, especialmente porque o objeto de análise de Marx
não é um objeto estático.
Acreditamos que, agindo assim, Marx criou uma nova forma tanto de cientificidade em geral quanto de ontologia, uma forma destinada a superar no futuro a constituição profundamente problemática, apesar de toda a riqueza dos fatos descobertos, da cientificidade moderna. Nas críticas que os clássicos do marxismo endereçaram a Hegel desponta sempre e sobretudo a polêmica contra a ideia hegeliana de sistema. Com toda razão, porque precisamente nela se concentram as tendências filosóficas que Marx rechaça com a máxima energia. Assim, o sistema enquanto ideal da síntese filosófica contém, sobretudo, o princípio da completude e da conclusividade, ideias que são a priori inconciliáveis com a historicidade ontológica do ser, e que já no próprio Hegel suscitam antinomias insolúveis. Mas tal unidade estática surge inevitavelmente no pensamento quando as categorias são ordenadas numa determinada conexão hierárquica. E até a busca por uma ordem hierárquica entra em conflito com a concepção ontológica de Marx. (Lukács, 2012, p. 296).
A recusa marxiana de um sistema parte da ideia de que ao sistematizar
determinadas categorias, elas perderão ao extremo sua dimensão com a
realidade, empobrecendo-as. De outro modo, a rejeição simplista de um sistema
de categorias gera o erro gêmeo de um empirismo ontológico ingênuo, isto é,
uma sobrevalorização instintiva da realidade imediatamente dada – em parte, a
análise de Hartmann acerca dos fenômenos sociais, motivos pelos quais
aproveita-se somente parte de sua ontologia naturalista. A crítica marxiana, como
aponta Lukács, parte da totalidade do ser na investigação das próprias conexões,
e busca apreendê-las em todas as suas intrincadas e múltiplas relações, no grau
máximo de aproximação possível. Especialmente porque a totalidade não
aparece, nesse sentido, como um fato formal do pensamento, mas constitui a
“reprodução ideal do realmente existente” (Lukács, 2012, p. 297), o que implica a
admissão de que as categorias não são elementos de uma hierarquia sistemática
– como em Hegel –, sendo, em verdade, “formas de ser, determinações da
78
existência”. Diante disso, a lógica perde o seu papel de hierarquizar as estruturas
do pensamento. As tentativas de apreensão do ser social como totalidade e
como ser efetivo, ainda que já se tenha indício desde a antiguidade, começa a
tomar forma concreta a partir de Vico. Mas somente com Marx essa percepção
completa da ontologia do ser social, diz Lukács, pode aparecer em sua plenitude
consciente. A ruptura com o sistema hegeliano e a apresentação metodológica
marxiana a partir de 1848 foi de uma magnitude tão gigantesca que os próprios
seguidores de Marx tiveram dificuldade de compreendê-la. Do mesmo modo,
seus críticos pensavam na crítica da economia política marxiana como mais uma
ciência particular e inferior à suposta ciência burguesa, dita axiologicamente
neutra.
Lukács identifica inclusive no próprio Engels essas reminiscências
hegelianas e assentimento à tradicional economia política: Engels em alguns
momentos fora muito menos rigoroso ao não acolher integralmente as críticas de
Marx contra Hegel, provavelmente por não compreendê-las plenamente. Do
mesmo modo, ao tratar de Lenin, Lukács anuncia falhas em seu tratado sobre o
empiriocriticismo quando o revolucionário russo estabelece uma unidade entre
teoria do conhecimento e ontologia – unidade não só nitidamente distinguida por
Marx, como também um dos motivos da crítica de Marx ao idealismo hegeliano.
Todavia, uma ressalva é imperiosa e justa:
A obra de Lenin é, após a morte de Engels, a única tentativa de amplo alcance no sentido de restaurar o marxismo em sua totalidade, de aplicá-lo aos problemas do presente e, portanto, de desenvolvê-lo. As circunstâncias históricas desfavoráveis impediram que a obra teórica e metodológica de Lenin agisse em extensão e profundidade. (Lukács, 2012, p. 301).
Jamais houve um escrito marxiano sistemático acerca da lógica e da
dialética hegelianas, afirma Lukács, e, no entanto, em Para a crítica da economia
política, Marx deixa clara a divisão em dois complexos: “o ser social, que existe
independentemente do fato de ser mais ou menos corretamente conhecido, e o
método de sua apreensão ideal mais adequada possível” (Lukács, 2012, p. 303).
E neste momento, a exposição marxiana da prioridade ontológica da objetividade
é evidente. Isso implica demonstrar que em Marx, o ponto de vista subjetivo
79
nunca determina a objetividade – como em Kant, por exemplo; dado que o
campo da metodologia em Marx foi marginalizado através de insumos teóricos
kantianos na época da Segunda Internacional, Lukács percebe que a explicitação
da ontologia marxiana deve passar obrigatoriamente pela impugnação desta
concepção kantiana. Senão, vejamos:
Sendo a objetividade uma prioridade ontológica primária de todo ente, é nela que reside a constatação de que o ente originário é sempre uma totalidade dinâmica, uma unidade de complexidade e processualidade. [...] Quer tomemos a própria totalidade imediatamente dada, quer seus complexos parciais, o conhecimento imediatamente direto de realidades imediatamente dadas desemboca sempre em meras representações. Por isso, essas devem ser mais bem determinadas com a ajuda de abstrações isoladoras. Com efeito, no início, a economia enquanto ciência tomou esse caminho; foi cada vez mais longe no caminho da abstração, até que nasceu a verdadeira ciência econômica, que toma como ponto de partida os elementos abstratos lentamente obtidos para então “dar início à viagem de retorno”, chegando novamente à população, “desta vez não como a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações”. (Lukács, 2012, p. 304).
Não é diferente, porém, em Lukács: “Desse modo, é a própria essência da
totalidade econômica que prescreve o caminho a seguir para conhecê-la”
(Lukács, 2013, p. 304). Mais adiante, a exemplo da crítica de Chasin ao
idealismo hegeliano a partir da explicitação marxiana na Introdução de 1857,
Lukács afirma:
A ruptura com o modo idealista de conceber as coisas é dupla. Em primeiro lugar, é preciso compreender que o caminho, cognoscitivamente necessário, que vai dos “elementos” obtidos pela abstração até o conhecimento da totalidade concreta é tão somente o caminho do conhecimento, e não o da própria realidade. Este último, ao contrário, é feito de interações reais e concretas entre esses “elementos”, dentro do contexto da atuação ativa ou passiva da totalidade graduada. Disso resulta que uma mudança da totalidade (inclusive das totalidades parciais que a formam) só é possível trazendo à tona a gênese real. Fazer tal modificação derivar de deduções categoriais realizadas pelo pensamento pode facilmente, como mostra o exemplo de Hegel, levar a concepções especulativas infundadas. (Lukács, 2012, p. 305).
80
E o movimento de retorno das abstrações formais para a dilucidação da
objetividade, chamado por Chasin de teoria das abstrações, também é percebido
por Lukács:
É claro, portanto, que o método da economia política, que Marx designa como uma “viagem de retorno”, pressupõe uma cooperação permanente entre o procedimento histórico (genético) e o procedimento abstrativo-sistematizante, os quais evidenciam as leis e as tendências. A inter-relação orgânica, e por isso fecunda, dessas duas vias do conhecimento, só é possível sobre a base de uma crítica ontológica permanente de todos os passos dados, já que ambos os métodos tem como finalidade compreender, de ângulos diversos, os mesmo complexos da realidade. (Lukács, 2012, p. 306).
É deste modo que Lukács analisa o modo pelo qual Marx edificou o
conjunto de seu escrito que deu origem a O capital. Para Lukács, Marx começa a
análise do capital pelo valor, porque o ponto de partida deve ser uma
objetividade central no plano ontológico, determinado pelos momentos
preponderantes que perfazem a formação das abstrações, de tal modo que estes
momentos preponderantes não são outra coisa senão a própria ordem dos
fatores objetivos que determinam a realidade, como a interdependência das
coisas. E, assim, a explicitação do modus operandi de Marx por Lukács se
aproxima daquela exposta por Chasin sobre a abstração razoável, cujo exemplo
acerca do conceito de valor nos dão uma compreensão muito próxima daquela
elencada por Lukács. Senão, vejamos:
Não é por acaso que, em O capital, Marx investigou como categoria inicial, como “elemento” primário, o valor. E, em particular, investigou-o tal como ele se apresenta em sua gênese: por um lado, essa gênese nos revela a história de toda a realidade econômica num resumo generalíssimo, em abstrato, reduzida a um só momento decisivo; por outro, a escolha mostra imediatamente a sua fecundidade, já que essa categoria, juntamente com as relações e conexões que derivam necessariamente da sua existência, ilumina plenamente o que de mais importante existe na estrutura do ser social, ou seja, o caráter social da produção. A gênese do valor descrita por Marx esclarece, de imediato, o duplo caráter do seu método: essa gênese não é nem uma dedução lógica do conceito de valor, nem uma descrição indutiva das fases históricas singulares do desenvolvimento que o levou a adquirir a forma social pura; ao contrário, é uma síntese peculiar de novo tipo, que associa de
81
modo teórico-orgânico a ontologia histórica do ser social com a descoberta teórica das suas legalidades concretas e reais. (Lukács, 2012, p. 312-313).
Esta posição central da categoria do valor não é, por conseguinte, um
axioma que serve de ponto de partida para deduções lógicas ou teóricas, mas
esta posição é um fato ontológico sustentado na realidade imanente.
Diferentemente do sustentado por Lukács (1957) em seus Prolegômenos para
uma estética marxista, a categoria do valor não aparece mais como derivação de
uma lógica silogística. O caráter realmente novo imposto por Marx, diz Lukács
(2012) já neste trabalho, refere-se ao modo de tratar a própria abstração. A
metamorfose do trabalho, em relação cada vez mais evidente entre valor e valor
de uso, transforma o trabalho concreto sobre um objeto determinado em trabalho
abstrato que cria valor, o qual recai sobre a realidade do trabalho socialmente
necessário. Também esta categoria não é uma dedução lógica, mas uma
“realidade, um momento da ontologia do ser social, uma abstração real de
objetos reais, que se dá de modo inteiramente independente da circunstância de
que seja ou não realizada também pela consciência” (Lukács, 2012, p. 315). De
modo que a consequência da exposição marxiana chega à forma do valor e do
dinheiro.
À medida que o ser social vai se afastando das suas barreiras naturais –
ainda que este sempre guardará o elemento eminentemente natural do qual é
derivado e parte integrante permanente –, as categorias de valor e valor de uso
se acentuam em sua diferenciação. E o procedimento marxiano, novamente, é
ontológico, ou seja, não embute neste progresso nenhum juízo de valor subjetivo.
O procedimento marxiano, dilucida Lukács, parte de caminhos ontológicos
objetivamente – em contraposição direta à analise subjetiva axiológica, na
medida em que apresenta as categorias econômicas em inter-relação dinâmica
com o complexo de objetos e forças do ser social, no qual essas inter-relações
encontram seu ponto fundamental no indivíduo. E esta colocação do indivíduo na
totalidade do ser social é também ontológica. Lukács dá exemplos, mais uma
vez, muito próximos daqueles que Chasin entende ser o modus operandi
82
marxiano, pela analítica das coisas, partindo do próprio objeto e desvendando a
essência ontológica da matéria tratada:
As análises econômicas, mantidas num plano científico rigoroso e exato, abrem continuamente perspectivas fundadas, de tipo ontológico, sobre a totalidade do ser social. Nessa unidade, manifesta-se a tendência básica de Marx: desenvolver generalizações filosóficas a partir dos fatos verificados pela investigação e pelo método científicos, ou seja, a constante fundação ontológica das formulações tanto científicas quanto filosóficas. É essa unidade entre faticidade solidamente fundada e corajosa generalização filosófica que cria, na obra que estamos analisando, sua atmosfera específica de proximidade à vida. Para o leitor teoricamente despreparado, passa a segundo plano, ou desaparece por inteiro, um momento fundamental da estrutura de conjunto, ou seja, a abstração econômica que lhe serve de premissa: a abstração segundo a qual todas as mercadorias seriam compradas e vendidas pelo seu valor. É certo que se trata de uma abstração sui generis: em sua base temos a lei realmente fundamental e efetiva da circulação social das mercadorias, uma lei que em última instância se afirma sempre na realidade econômica, apesar de todas as oscilações dos preços, numa totalidade que funciona de modo normal. Por isso, ela não opera como abstração quando se trata de revelar tanto as conexões econômicas do ser social; e, por isso, todo o Livro I se apresenta como reprodução da realidade e não como experimento ideal abstrativo. [...] Por isso, nessa redução abstrativa ao dado mais essencial, todos os momentos – econômicos e extraeconômicos – aparecem sem deformações, ao passo que uma abstração não fundada ontologicamente, ou dirigida para aspectos periféricos, leva sempre a uma deformação das categorias decisivas. Com isso, revela-se mais uma vez o ponto essencial do novo método: o tipo e o sentido das abstrações, dos experimentos ideais, são determinados não a partir de pontos de vistas gnosiológicos ou metodológicos (e menos ainda lógicos), mas a partir da própria coisa, ou seja, da essência ontológica da matéria tratada. (Lukács, 2012, p. 321-322).
O caminho marxiano para a construção teórica passa pela formação das
abstrações, que Marx lida não obstante a evidência do mundo real. Mas tais
abstrações são emanadas da própria realidade, e o conjunto destas abstrações
perfaz a compreensão possível da totalidade, afirma Lukács. Ao exemplificar o
procedimento adotado por Marx para estruturar seus estudos em O capital,
Lukács chega à impugnação da forma lógica-silogística ao lembrar que o próprio
Marx rejeitou as formulações da economia burguesa, que considerava as
categorias produção e consumo como idênticas.
83
Marx, antes de tudo, acerta contas com a variante hegeliana dessas falsas conexões, uma variante que – com o auxílio de universalidade, particularidade e singularidade entendidas em sentido lógico – pretendia estabelecer entre as citadas categorias econômicas um desenvolvimento de tipo silogístico. “Há, sem dúvida, aqui, um nexo, mas ele é superficial”, diz Marx; e mostra como o aparato lógico que produz a forma silogística funda-se apenas em traços superficiais, abstratos. Nesse ponto, ele empreende uma breve polêmica com os defensores ou os adversários da economia política, que a “censuram pela bárbara cisão daquilo que é relacionado”. Marx, recusando-se novamente a enfrentar as relações em termos lógico-definitórios, objeta que essas relações têm caráter de ser, são ontológicas: “Como se essa dissociação não fosse passada da realidade aos livros-texto, mas inversamente dos livros-texto à realidade, e como se aqui se tratasse de um nivelamento dialético dos conceitos e não da concepção de relações reais”. De modo igualmente resoluto, ele se posiciona contra o ponto de vista hegeliano, para o qual produção e consumo são idênticos. [...] Marx adverte aqui contra fazer da unidade última, dialética, contraditória da sociedade, unidade que surge como resultado último da interação entre inúmeros processos heterogêneos, uma unidade homogênea em si, e, desse modo, impedir, por meio dessas homogeneizações simplificadoras e inadmissíveis, seu conhecimento adequado; e, podemos acrescentar, o resultado é o mesmo, quer se trate de uma homogeneização especulativa, quer positivista. (Lukács, 2012, p. 331).
Neste processo de dissecação do objeto, as determinações que surgirão
deverão respeitar o momento preponderante como prioridade ontológica: é a
própria coisa que dá os sinais de sua dilucidação, por uma questão de prioridade
ontológica. O exemplo marxiano da prioridade da produção em relação ao
consumo é uma relação de ordem ontologicamente prática, isto é, não é possível
o consumo antes mesmo da produção ser realizada. O objeto sempre é um
objeto específico que segue uma lógica específica; não é sem motivos que o
exemplo marxiano de que a fome que se sacia com carne cozida, comida com
talheres, é diferente daquela saciada com carne crua comida com mãos e unhas,
o que se conclui que não somente o objeto do consumo é produzido pela
produção, mas o próprio modo de consumi-lo, objetiva e subjetivamente. Lukács
chama a atenção para a similaridade que estas abstrações têm em relação às
determinações de reflexão de Hegel. Mas Lukács percebe que estas
determinações podem parecer relacionadas apenas no âmbito metodológico;
84
contudo, em Marx, domina o momento do ser: essas determinações são
momentos reais de complexos reais em movimento real, e só a partir desta
premissa é que se pode ser compreendidas em sua relação reflexiva – enquanto
em Hegel, a determinação busca a apreensão do ser privado de determinações.
E Lukács afirma que nesta relação de determinação de reflexão se revela um
traço fundamentalmente materialista: nenhuma determinação de reflexão existe
sem momento predominante.
Diferentemente do que supõe a ciência positivista, a análise do ser social
deve levar em consideração a datidade do objeto, apreendendo o ser-
precisamente-assim. De modo que, contrariando qualquer veleidade weberiana
de classificação dos fenômenos sociais, ou qualquer racionalismo primitivo que
tentava abarcar uma unidade nomotética aos fenômenos sociais, o que se tem a
partir da análise ontológica é a possibilidade de apreensão do objeto específico
num momento específico. Qualquer consideração de uma formação de uma
ciência marxista que visa a previsibilidade de fenômenos sociais deve levar em
consideração que o conhecimento marxista dialético tem um caráter aproximativo
– vale a lembrança citada por Lukács da passagem de Lenin, na qual o
revolucionário russo lembra que a história da revolução é sempre mais rica, mais
dinâmica e mais complexa do que poderia prever qualquer revolucionário ou a
mais avançada vanguarda da classe revolucionária. Isso porque a realidade é
constituída pela infinita interação de complexos que têm relações heterogêneas
em seu interior e com seu exterior, relações que são, deste modo, sínteses
dinâmicas de componentes heterogêneos praticamente infinitos. Lukács (2012, p.
367) impugna, destarte, aquela concepção racionalista de ciência ao mesmo
tempo que demonstra o quão pueril é a ciência social que almeja a construção de
arquétipos para a formulação de uma estrutura analítica da sociedade e dos
fenômenos sociais com caráter nomotético, isto é, criando leis universais de
funcionamento. Isto porque a sociedade é formada por um conjunto de pores
teleológicos – e não simplesmente de causalidades naturais. Entretanto, a
riqueza de elementos que interferem no processo teleológico do conjunto dos
indivíduos é tão rica e imprevisível que o resultado dos pores teleológicos
invariavelmente desembocam em uma outra realidade que não aquela prevista
85
pela intencionalidade de seus agentes. Ainda que as ações humanas singulares
entre as alternativas não levem, no desenvolvimento da totalidade, aos
resultados visados originalmente pelos indivíduos, o resultado final não pode ser
independente ou completamente diferente destes atos originários singulares
(Lukács, 2012, p. 382). De tal sorte que a ontologia marxiana, ao apreender a
objetividade, leva em conta que a realidade é inexoravelmente processual e
irreversivelmente histórica. Justamente por este motivo, “a aproximação ao
conhecimento tem um caráter não primariamente gnosiológico” (Lukács, 2012, p.
367). O caráter não nomotético do reflexo ontológico, ou seja, esta
impossibilidade de estabelecimento de leis universais de previsibilidade, não faz
com que não se possa apreender a realidade objetiva; ao contrário, a apreensão
da realidade objetiva de modo ontológico é possível, ainda que o
estabelecimento de um critério de previsibilidade só possa despontar no
horizonte como uma tendência aproximativa, em meio a infinitas acidentalidades.
Quando Marx, por sua vez, analisa as leis econômicas do valor, ele o faz a partir
da especificação dos complexos e das conexões concretas. Lukács afirma que
este tertium datur marxiano em relação ao racionalismo e ao empirismo significa,
pois, em termos ontológicos, “examinar a incidência de determinadas leis, de sua
concretização, modificação, tendencialidade, de sua atuação concreta em
determinadas situações concretas, em determinados complexos concretos”
(Lukács, 2012, p. 369).
Lukács não mede esforços para comprovar como uma filosofia da história
de caráter logicizante hegeliano transforma o marxismo numa teoria de previsões
inexoráveis, numa filosofia da história, ignorando a validade da crítica do Marx
ainda jovem contra Hegel. Marx protestou contra isso na ocasião em que redige
uma carta, em 1877, à redação da revista russa Otetchestveniie Zapiski, o que
atesta que esta generalização metodológica e logicizante no próprio marxismo
teve lugar ainda com Marx vivo. Marx verificou que a generalização da sua teoria
da acumulação originária constituiria uma lei imutável, segundo a qual
inexoravelmente deveria ocorrer do mesmo modo em todos os lugares, e, neste
caso específico, na Rússia. Igualmente crítica a Hegel e à generalização da
filosofia da história, Marx jamais presumiu que a análise das categorias geraria
86
uma sucessão de categorias lógicas. Lemos isso nas palavras do filósofo
húngaro:
Em Marx, ao contrário, estas jamais são encarnações do espírito no caminho que leva da substância ao sujeito, mas simplesmente “formas de ser, determinações da existência”, que devem ser compreendidas ontologicamente, tal como são, no interior dos complexos onde existem e operam. O fato de que os processos de onde elas surgem estejam presentes ou tenham desaparecido, que possuam a sua racionalidade bem própria regida por leis e portanto também a sua lógica própria, é um importante meio metodológico para conhecê-las, mas não é, como em Hegel, o fundamento real de seu ser. Quando se negligencia essa crítica metodologicamente decisiva dirigida contra Hegel, quando se conserva – a despeito de toda inversão de sinal em sentido materialista – o edifício hegeliano radicado sobre a lógica, mantém-se não superado no interior do marxismo um motivo próprio do sistema hegeliano, e a historicidade ontológico-crítica do processo global se apresenta como filosofia logicista da história de cunho hegeliano. (Lukács, 2012, p. 372).
Essa tendência no interior do próprio marxismo – que é absolutamente
alheia a Marx – leva a uma inexorabilidade da história, concluindo o socialismo
como um momento teleológico obrigatório, e não como uma potencialidade
histórica. Lukács percebe que o próprio marxismo de Engels sucumbiu a esta
falsidade “numa de suas resenhas da Crítica da economia política de Marx”
levantando a questão “do dilema metodológico de decidir entre ‘histórico ou
lógico’” (Lukács, 2012, 372). Na ocasião, Engels aplica a categoria marxiana da
classicidade, erigida por Marx para complexos totais, a momentos singulares7.
Para Lukács, este é um recurso de Engels a Hegel, porque retrata uma história
despojada da forma histórica:
7 Diz Engels: “Portanto, só o modo lógico era adequado para tratar a questão. Mas esse não é senão o modo histórico, só que despojado da forma histórica e das causalidades importunas. Com aquilo que começa a história também deve começar o raciocínio, e seu curso subsequente não será mais do que o reflexo, em forma abstrata e teoricamente consequente, do curso da história; um reflexo corrigido, mas corrigido segundo as leis disponibilizadas pelo próprio curso real da história, no qual todo momento pode ser examinado no ponto do desenvolvimento que atinge a plena maturidade, a sua classicidade”. (Engels apud Lukács, 2012, p. 372) [Marx-Engels, Ausgewählte Schriften (Moscou/Leningrado, 1934), v.I, p. 371s, MEW, v. 13, p. 475. Edição brasileira: Engels, F. “Contribuição à crítica da economia política de Karl Marx”, Obras escolhidas, p. 338-47].
87
Na filosofia hegeliana isso era possível: uma vez que a história, tal como toda realidade, se apresentava apenas como realização da lógica, o sistema podia despojar o acontecer histórico de sua forma histórica e reconduzi-lo à sua essência própria, ou seja, à lógica. Mas para Marx – e de resto também para Engels – a historicidade é uma característica ontológica não ulteriormente redutível do movimento da matéria, particularmente marcado quando, como é o caso aqui, trata-se apenas do ser social. As leis mais gerais desse ser podem também ser formuladas em termos lógicos, mas não é possível derivá-las da lógica ou reduzi-las a ela. Na passagem citada, Engels faz isso, o que já fica evidente pelo uso da expressão “casualidades importunas”; no plano ontológico, algo casual pode muito bem ser portador de uma tendência essencial, não importando se, da perspectiva da lógica pura, o acaso seja entendido como “importuno”. (Lukács, 2012, p. 373).
Ao contrário, Marx – diz Lukács – toma como ponto de partida que o lugar
histórico de categorias singulares só pode ser compreendido em sua
concretização histórica, na especificidade histórica que lhes é fornecida por sua
formação, e não através da caracterização lógica. Marx, ao tratar sobre o método
da economia política na introdução dos Grundrisse, na seção em que critica
Hegel, diz isso do seguinte modo:
[...] permanece sempre o fato de que as categorias simples são expressões de relações nas quais o concreto ainda não desenvolvido pode ter se realizado sem ainda ter posto a conexão ou a relação mais multilateral que é mentalmente expressa nas categorias mais concretas; enquanto o concreto mais desenvolvido conserva essa mesma categoria como uma relação subordinada. (Marx, 2011, p. 56).
Um caso emblemático é a determinação das vias de entificação do capital.
O fato de Marx ter estabelecido o caso inglês como clássico obriga a análise post
festum de cada caso em particular, o que, obviamente, não impugna o
tratamento do caso americano também como sendo clássico, por exemplo. O
que se deve pesar é a determinação histórica e momentânea de cada caso
singular a ser observado, antes de se tornar modelo de abstração da realidade,
como categoria de facilitação analítica. Lenin soube observar este caso quando
determinou o desenvolvimento do capitalismo na Rússia – conforme observa
acertadamente Lukács (2012, p. 380) –, diferentemente de Stalin, que utilizou o
modelo como valor absoluto e de inexorabilidade universal.
88
Apoiando-se na crítica de Marx contra Feuerbach, Lukács admite o gênero
humano como central na peculiaridade do ser social. Ao perceber que Feuerbach
só consegue conceber o indivíduo como ser isolado e como mudo em seu
gênero, Marx realiza a crítica desvelando a generidade. A vida orgânica, afirma
Lukács produz gêneros; e em última instância, ela produz apenas gêneros, já
que os exemplares singulares que realizam imediatamente o gênero perecem,
enquanto o gênero se mantém estável a essa modificação. A relação, deste
modo, surgida entre o gênero e o exemplar da espécie na vida orgânica é
puramente natural, o que nos faz admitir que o gênero se realiza nos exemplares
singulares, e, igualmente, o conjunto destes exemplares realiza o gênero. Para
Lukács, o gênero não pode ter consciência – não pelo fato de os animais não
terem consciência, fato questionável pela biologia – porque “a produção e
reprodução real de sua vida não criam por si relações que possibilitem a
explicitação objetiva da unidade dual entre exemplar e gênero” (2012, p. 395).
Este momento decisivo de abandono do mutismo do gênero só pode ser posto
pelo trabalho, atividade teleológica humana por excelência. O indivíduo,
exemplar do gênero, só pode ser observado como ser social, do mesmo modo, o
seu trabalho é a atividade que realiza o seu gênero enquanto gênero, o trabalho
é a objetivação da vida genérica dos homens, porque por meio do trabalho o
homem objetiva a transformação ativa do próprio gênero. Diferentemente do que
ocorre com o exemplar do gênero na natureza orgânica não social, no ser social
a generidade não é muda porque ela é mediatizada por categorias sociais que
operam no plano da teleologia (o trabalho, a linguagem, intercâmbio etc).
Portanto, o exemplar do gênero não pode ser isolado como um ser abstrato,
porque todo exemplar do gênero contém em si a totalidade da generidade; e, o
gênero no ser social não se apresenta sob sua forma de generidade muda, como
no ser meramente orgânico. Lukács resume da seguinte forma ao final da
primeira parte da sua Ontologia:
Enquanto o gênero mudo é algo puramente objetivo, não transformável pela ação do exemplar singular, a relação do homem com o complexo social no qual realiza sua consciência genérica é uma relação ativa, de cooperação, em sentido construtivo ou destrutivo. (Lukács, 2012, p. 401).
89
Este é um fenômeno ulterior que acompanha o desenvolvimento do
trabalho como ato transformador do ser biológico em ser social, para, somente a
partir daí, a atividade ser mediada por uma teleologia. O fato originário da
efetuação do trabalho pelo homem é, a princípio, não teleológico, mas ao
desenvolver as forças de trabalho, o gênero humano surge concomitante aos
atos teleológicos que o desenvolvem e o aprofundam em seu gênero não mais
mudo.
Esta transformação desenhou o escopo formal, diz Chasin (2009), para a
guinada ontológica a caminho de um Marx marxiano. A crítica ontológica da
economia política ocupou o maior espaço na atividade laboral marxiana e por
isso foi a mais desenvolvida, o que inclui o conjunto de sua obra dos Manuscritos
de 1844 a O capital. Chasin (2009) amparado na Ontologia de Lukács (2012)
destaca que as três críticas perfazem um caminho que chega à conclusão pela
primeira vez na história de que as categorias econômicas aparecem realmente
como categorias de produção e reprodução da vida humana, tornando, deste
modo, possível a descrição ontológica do ser social sobre a base material. Marx
(2004), ao debater com a economia nacional nos Manuscritos de 1844, coloca
em evidência o casamento das três críticas ontológicas, ao mesmo tempo que
clarifica o novo ponto de partida, agora tomado das bases materiais. A passagem
a seguir é elucidativa, porque Marx percebe o deslocamento da economia
nacional para um hipotético estágio primitivo da humanização quando pretende
explicar algum fato dado – em contraposição, afirma Marx, “nós partimos de um
fato nacional-econômico, presente” (Marx, 2004, p. 80), e continua demonstrando
que o trabalho não produz somente as mercadorias, mas, simultaneamente,
produz a si mesmo e ao trabalhador como uma própria mercadoria no processo
de trabalho:
Esse fato nada mais exprime, senão: o objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal (sachlich), é a objetivação (Vergegenständlichung) do trabalho. A efetivação (Verwirklichung) do trabalho é a sua objetivação. Esta efetivação do trabalho aparece ao estado nacional-econômico
90
como desefetivação (Entwirklichchung) do trabalhador, a objetivação como perda do objeto, a apropriação como estranhamento (Entfremdung), como alienação (Entäusserung). (Marx, 2004, p. 79).
Na mesma crítica em que Marx descortina que a economia inglesa oculta o
estranhamento na essência do trabalho por desconsiderar a relação imediata
entre o trabalhador e a produção, expondo de um modo inimaginável à economia
nacional a vida genérica dos homens, o filósofo já pela primeira vez contrapõe a
forma distinta de objetivação em relação a Hegel, atestando que são
inextrincáveis a crítica a Hegel e a crítica da economia política, ou seja, uma
crítica complementa e dá apoio à outra:
A vida genérica, tanto no homem quanto no animal, consiste fisicamente, em primeiro lugar, nisto: que o homem (tal qual o animal) vive da natureza inorgânica, e quanto mais universal o homem é do que o animal, tanto mais universal é o domínio da natureza inorgânica da qual ele vive. Assim como plantas, animais, pedras, ar, luz etc., formam teoricamente uma parte da consciência humana, em parte como objetos da ciência natural, em parte como objetos da arte – sua natureza inorgânica, meios de vida espirituais, que ele tem de preparar prioritariamente para a fruição e para a digestão –, formam também praticamente uma parte da vida humana e da atividade humana. Fisicamente o homem vive somente destes produtos da natureza, possam eles parecer na forma de alimento, aquecimento, vestuário, habitação etc. Praticamente, a universalidade do homem aparece precisamente na universalidade que faz da natureza inteira o seu corpo inorgânico, tanto na medida em que ela é o objeto/ matéria e o instrumento de sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem, a saber, a natureza enquanto ela mesma não é corpo humano. O homem vive da natureza significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do homem está interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza. (Marx, 2004, p. 84).
Da mesma maneira, Marx determina que enquanto os animais se
relacionam com a natureza de modo apenas para suprir a carência fisiológica
imediata, o homem suplanta isto: relaciona-se com o seu gênero também de um
modo consciente, e o objeto do trabalho acaba sendo, também, ao homem a
objetivação de sua vida genérica.
91
De sorte que a generidade do homem aparece para Marx da seguinte
forma: o homem é imediatamente um ser natural, e por sua característica natural,
jamais consegue abandonar sua natureza biológica direta, apesar de sempre
recuar as barreiras naturais; e como ser natural, ele é dotado de forças naturais,
vitais, cujas forças naturais existem nele como potencialidades, pulsões. Como
ser que vive de modo limitado e que sofre, essas pulsões existem como objetos
fora dele próprio. Mas esses objetos são objetos de seu carecimento, objetos
indispensáveis na conformação de suas forças sociais.
[...] Que o homem é um ser corpóreo, dotado de forças naturais, vivo, efetivo, objetivo, sensível significa que ele tem objetos efetivos, sensíveis como objeto de seu ser, de sua manifestação de vida (Lebensäusserung), ou que ele pode somente manifestar (äussern) sua vida em objetos sensíveis efetivos (wirkliche sinnliche Gegenstände). (Marx, 2004, p. 127).
E, adiante, Marx nos dá um exemplo direto:
[...] A fome é uma carência natural; ela necessita, por conseguinte, de uma natureza fora de si, de um objeto fora de si, para se satisfazer, para se saciar. A fome é a carência confessada de meu corpo por um objeto existente (seienden) fora dele, indispensável à sua integração e externação essencial. O sol é o objeto da planta, um objeto para ela imprescindível, confirmador de sua vida, assim como a planta é objeto do sol, enquanto externação da força evocadora de vida do sol, da força essencial objetiva do sol. (Marx, 2004, p. 127).
O homem não é somente um ser natural, percebe Marx. O homem é um
ser natural humano, o que significa diretamente que o homem é um ser existente
para si mesmo, um ser genérico que enquanto tal deve se afirmar em seu ser e
em seu saber. Por via de consequência, nem os objetos humanos são objetos
puramente naturais, a “natureza não está, nem objetiva nem subjetivamente,
imediatamente disponível ao ser humano de modo adequado” (Marx, 2004, p.
128). Daí a imprescindibilidade da exteriorização da vida. O conceito de
Entäusserung se apresenta a Hegel como sinônimo de objetividade, todavia em
Marx se desdobra em Lebensäusserung e em Entfremdung – precisamente, a
alienação se desdobra em exteriorização da vida e em estranhamento.
92
De um modo geral, a distinção que se impõe é a de que a objetivação – a
objetividade do ser em-si8 [objetividade aparece originalmente em Hegel como
Gegenständlichkeit] – e a alienação [Entäusserung] aparecem para Hegel como
diretamente interligadas. A objetivação em Marx não necessariamente será posta
como alienação, e a alienação (ou exteriorização, mais precisamente) se
desdobra, no sociometabolismo do capital, em estranhamento [Entfremdung], um
como sendo expressão do modo seguinte: (i) o estranhamento entre trabalhador
e seu produto; (ii) o estranhamento do trabalhador no interior da atividade
produtiva; (iii) o estranhamento do homem em relação ao gênero humano; e (iv)
o estranhamento dos homens em relação direta aos outros homens. E o ponto de
maior divergência com as categorias hegelianas é proveniente da própria
estrutura categorial marxiana: todos estes aspectos não são meramente
fatalidades da natureza, aliás, não são efeito de uma força metafísica oriunda de
um demiurgo fora da homem, ou de uma força natural ou transcendental, mas
são o resultado de um tipo determinado de desenvolvimento histórico que pode
ser positivamente alterado pela intervenção consciente – o pôr teleológico –
neste processo histórico. Estes desdobramentos inexistentes em Hegel e que
compõe parte decisiva do arcabouço filosófico marxiano estão presentes pela
primeira vez nos Manuscritos de 1844. Nele não consta a indefectível confusão
hegeliana entre objetivação e alienação, do qual Lukács, de acordo com Chasin,
padeceu em sua Introdução à Estética. O reconhecimento de Lukács (2010)
sobre este procedimento é visto também por Tertulian, que defende a existência
da prioridade ontológica da objetividade em Marx. Senão vejamos:
Lukács indicou várias vezes por que os Manuscritos de 1844 foram para ele uma revelação que lhe permitiu libertar-se de seus preconceitos hegelianos. Descobre em Marx a afirmação da prioridade ontológica da objetualidade [sic] (die Gegenständlichkeit) em relação à atividade da subjetividade. A afirmação dessa prioridade põe em causa a tese de Hegel que identificava a objetualidade [sic] com a exteriorização da subjetividade (mais precisamente da consciência-de-si, do Selbstbewusstsein). “Ein ungegenständliches Wesen ist ein
8 A expressão utilizada por Hegel é an sich, que adquiriu um uso filosófico consolidado no tempo de Hegel quando Wolff a empregou para traduzir kath’hauto de Aristóteles, que pode ter o significado mais próximo de “a coisa como tal” ou a coisa à parte de sua relação com qualquer outra coisa.
93
Unwesen.” (Um ser não-objetivo é um não-ser.) Essa fórmula lapidar de Marx, cujas conotações feuerbachianas parecem evidentes, impressionou Lukács desde sua primeira leitura dos Manuscritos de 1844: ela teria tido sobre ele um efeito libertador, fazendo cair as viseiras herdadas de seu antigo idealismo filosófico. Objetualidade [sic] (Gegenständlichkeit) e objetivação (Vergegenständlichtung) são, por outro lado, duas coisas distintas. Lukács se dá conta de que cometeu um erro considerável identificando a objetualidade [sic] com a objetivação das coisas por um sujeito. Além disso, “objetivação” está longe de ser sinônimo de “alienação” ou de “reificação”, pois inúmeras atividades objetivantes não têm um caráter alienante. A objetualidade [sic] tem uma existência independente de todo ato objetivante. (Tertulian, 2011, p. 20).9
O caráter definitivamente distinto da filosofia marxiana em relação ao
sistema filosófico hegeliano provém do modo como Marx concebe o sujeito e o
objeto na história. Desvelado por Marx que um ser que não possua sua natureza
fora de si não é nenhum ser natural, portanto, é um não-ser, um ser não-objetivo,
temos daí a conclusão de que ter a própria natureza fora de si mesmo é o modo
de existência necessário de qualquer ser natural, ou seja, esta não é uma
característica peculiar do ser social ou do homem em geral. Mészáros (2006), no 9 As tradutoras Maria Loureiro e Isabel Loureiro criaram uma neologia para traduzir Gegenständlichkeit, facilmente traduzível por objetividade. Parece-me que as tradutoras quiseram dar destaque à qualidade daquilo que é ser objetivo, em oposição direta do ser subjetivo. Não obstante, na sexta acepção do verbete objetividade, Antonio Houaiss determina, em oposição à subjetividade, que objetividade é a “realidade exterior ou dessemelhante ao sujeito (o intelecto cognitivo humano), passível de por ele ser conhecida ou transformada”, de modo que a criação desse neologismo não tem fundamento na língua portuguesa. Talvez, a tradução tentou se aproximar do original, pois um cotejamento com o texto original em francês de Tertulian traz a expressão francesa objetctualité, o que, todavia, não justifica a criação de um neologismo quando ainda se há um verbete na vernácula que exprima claramente esta expressão. O original, a fim de comparação, segue: “Lukács a indiqué à plusieurs reprises pourquoi les Manuscrits de 1844 ont été pour lui une révélation qui lui a permis de se libérer de ses préjugés hégéliens. Il découvre chez Marx l’affirmation de la priorité ontologique de l’objectualité (die Gegenständlichkeit) par rapport à l’activité de la subjectivité. L’affirmation de cette priorité met en cause la thèse de Hegel qui identifiait l’objectualité avec l’extériorisation de la subjectivité (plus précisément de la conscience-de-soi, du Selbstbewusstsein). «Ein ungegenständliches Wesen ist ein Unwesen». (Un être non-objectif est un nonêtre). Cette formule lapidaire de Marx, dont les connotations feuerbachiennes semblent évidentes, a frappé Lukács dès sa première lecture des Manuscrits de 1844 ; elle aurait eu sur lui un effet libérateur, en faisant tomber les oeillères héritées de son ancien idéalisme philosophique. Objectualité (Gegenständlichkeit) et objectivation (Vergegenständlichung) sont par ailleurs deux choses distinctes. Lukács se rend compte qu’il a commis une erreur majeure en identifiant l’objectualité avec l’objectivation des choses par un sujet. En outre, «objectivation» est loin d’être synonyme d’ «aliénation» ou de «réification», car de nombreuses activités objectivantes n’ont pas un caractère aliénant. L’objectualité a une existence indépendante de tout acte objectivant”. (Nicolas Tertulian. Nicolai Hartmann et Georg Lukács. Une alliance féconde. Centres Sèvres. Archives de Philosophie 2003/3 - Volume 66, ISSN 1769-681X | pages 663 à 698, p. 676).
94
capítulo dedicado aos aspectos ontológicos e morais da filosofia marxiana, de
sua tese de 1970 sobre a teoria da alienação em Marx, deixa claro que:
[...] se alguém quiser identificar externalização com alienação humana (como fez Hegel, por exemplo), só poderá fazê-lo confundindo o todo com uma parte específica dele. Em conseqüência, a ‘objetivação’ e a ‘externalização’ só são relevantes para a alienação na medida em que ocorrem numa forma inumana. (Mészáros, 2006, p. 155).
A ocorrência terminológica das categorias hegelianas no universo de Marx
fica restrita a uma correção de ordem estrutural que Marx realizou ao se
apropriar dos termos, e que podem ser assim elencadas: (i) se o homem é uma
parte específica da natureza, ele não pode limitar o trabalho a apenas o trabalho
abstratamente mental; o que é abstratamente mental não pode gerar fisicamente
algo natural, ao passo que sobre a base natural da realidade pode-se explicar a
gênese do trabalho abstratamente mental; (ii) no mesmo sentido, a identificação
de “objetivação” com “alienação” é inaceitável. A objetivação não é o mesmo que
a alienação, porque o objetivar é o modo natural da existência, de modo que
alienação e objetivação só se tornam a mesma coisa quando concebemos um
ser abstratamente espiritual; (iii) consequentemente, objetividade não é o mesmo
que relações humanas estranhadas; e (iv) por fim, a suprassunção da alienação
deve ser vislumbrada em termos da realidade social efetiva, e não a partir de
uma teleologia teológica que destaca a formação das coisas – da natureza e do
homem aí incluídos – como um ato finalístico realizado assim por uma entidade
metafísica supra-racional.
Mészáros (2006), em sua tese doutoral A teoria da alienação em Marx,
descreve a crítica marxiana ao sistema filosófico monista de Hegel como também
sendo um sistema – a despeito das implicações pejorativas que o uso do
conceito “sistema” possa envolver. Este sistema complexo se estrutura sobre as
críticas do materialismo de Feuerbach e sobre a dialética hegeliana, de maneira
que Marx verifica que a alienação exposta por Hegel estava incompleta porque
prescindia da análise econômica: se, por um lado, a “atividade” se torna um
termo de importância decisiva na análise hegeliana; por outro, este termo,
destinado à gênese e desenvolvimento humanos em geral, perdia a forma
95
sensível que o “trabalho” tinha na economia política. Foi Marx, portanto, quem
percebeu esta debilidade no sistema filosófico hegeliano. Mészáros vê da
seguinte forma:
O conceito de Marx de “atividade” como prática ou “atividade produtiva” – identificada tanto em seu sentido positivo (como objetivação e autodesenvolvimento humanos, como a automediação necessária do homem com a natureza), quanto em seu sentido negativo (como alienação ou mediação de segunda ordem) – assemelha-se à concepção dos economistas políticos, por ser concebida numa forma sensível. Sua função teórica é, no entanto, radicalmente diferente. Pois Marx compreende que o fundamento não-alienado daquilo que se reflete de uma forma alienada na economia política como uma esfera particular é a esfera ontológica fundamental da existência humana e, portanto, o fundamento último de todos os tipos e formas de atividade. Assim, o trabalho, em sua “forma sensível”, assume sua significação universal na filosofia de Marx. Ele se torna não só a chave para entender as determinações inerentes a todas as formas de alienação, mas também o centro de referência de sua estratégia prática apontada para a superação real da alienação capitalista. (Mészáros, 2006, p. 86).
Ao se debater contra o sistema filosófico hegeliano, Marx – de acordo com
Mészáros (2006) – tende a germinar virtualmente um sistema filosófico próprio,
que percebe que a alienação, ou seja, o fato de o homem externar suas forças
para garantir a produção de sua sobrevivência, pode ser superada, e é
imperativo que seja, quando esta alienação é mediada pela alienação de
segunda ordem, ou seja, pelo estranhamento. Vale ressaltar, ainda que seja um
detalhe notório, que Chasin (2009) prefere estatuto ontológico a sistema
filosófico, porque a ruptura de Marx com toda a filosofia precedente marca, para
Chasin (2009), o nascimento de um estatuto ontológico em que a sua filosofia
abandona o idealismo sistemático hegeliano – isso já demarca um ponto de
autonomia e originalidade do pensamento de Chasin em relação àqueles
discípulos lukacsianos com os quais sua teoria encontra respaldos, de alguma
maneira, dentre estes, o mais próximo sendo István Mészáros. De modo direto, o
que já é anunciado na teoria da reificação – ainda não nestes termos e tampouco
com tal propositura em relação a Hegel – de Lukács (2003) de História e
96
consciência de classe, e passa a ser teorizado por Mészáros (2006), enquanto a
superação da alienação é um ato ineliminável na teoria hegeliana (porque é o
puro ato de tornar-se humano, de externar-se objetivamente), e impossível para
os economistas políticos devido ao seu naturalismo positivista, para Marx, a
exteriorização da vida passa por mediações de segunda ordem, onde o processo
de produção, além de alienado, é estranhado nesse mesmo processo e por isso
deve ser superado por meio da liberação do trabalho de sua sujeição reificada ao
poder das coisas. E é exatamente esta crítica marxiana que a faz ser, como
indica Mészáros, um sistema in statu nascendi.
[...] a concepção geral que Marx tem da gênese histórica e da alienação das relações sociais de produção, juntamente com sua análise das condições ontológicas objetivas de uma superação necessária da alienação e da reificação, constituem um sistema, no melhor sentido do termo. Esse sistema não é menos, e sim mais rigoroso do que os sistemas filosóficos de seus predecessores, inclusive Hegel; o que significa que qualquer omissão, mesmo que de uma de suas partes constituintes, é capaz de deformar todo o quadro, e não apenas um aspecto particular dele. Além disso, o sistema marxiano não é menos, mas sim muito mais complexo do que o hegeliano; pois uma coisa é inventar, engenhosamente, as “mediações” logicamente adequadas entre “entidades do pensamento”, e outra muito diferente é identificar na realidade os complexos elos intermediários dos múltiplos fenômenos sociais, encontrar as leis que governam suas institucionalizações e transformações recíprocas, as leis que determinam sua relativa “fixidez”, bem como suas “modificações dinâmicas”, demonstrar tudo isso na realidade, em todos os níveis e esferas da atividade humana. Consequentemente, qualquer tentativa de ler Marx, não em termos de seu próprio sistema, mas de acordo com algum “modelo científico” preconcebido e banal, em moda nos nossos dias, priva o sistema marxiano de seu significado revolucionário e o converte numa coleção morta de conceitos pseudocientíficos inúteis. (Mészáros, 2006, p. 93-94).
Mészáros vai além na crítica: percebe que por mais que as visões
históricas particulares de Hegel pudessem ser agudas e sensíveis, este
precisava negar a história de um modo ou de outro, devido às suas suposições
a-históricas nas quais a relação direta da objetivação com a alienação gerava um
télos a priori metafisicamente traçado. E continua:
97
Não é que Hegel – a fim de completar seu sistema – tenha incoerentemente abandonado o terreno de sua concepção histórica: desde o início sua concepção era inerentemente a-histórica. Esse é o motivo pelo qual ele teve de operar com o método da racionalização da história e da relativização da sequência lógica de categorias. E por isso teve de “deduzir” uma história humana sublimada a partir das categorias do pensamento, em lugar de esclarecer estas em termos da primeira. (Mészáros, 2006, p. 110).
Ao determinar o fim da história como o ponto da reconciliação do espírito
absoluto – um demiurgo fora do homem –, Hegel obnubilou a emergência do
reconhecimento de um agente eminentemente humano na história da
humanidade, tarefa somente possível a partir da compreensão de uma ontologia
do ser social. Do ponto de vista da teoria marxiana, todas as categorias são
históricas: toda necessidade é uma necessidade histórica e o objetivo da história
humana é definido por Marx em termos da imanência do desenvolvimento
humano – em oposição direta ao transcendentalismo a priori da teleologia
teológica.
Quando Hegel toma por pressuposto o ser privado de determinações, ele o
faz, sem assumir, tomando dado ser específico de determinada forma social
específica. Não foi sem motivos que Marx qualificou o ponto de vista de Hegel
como sendo o ponto de vista do capital, ou, mais especificamente, o ponto de
vista da economia política, e esta última, por sua vez, Marx caracterizou como
tomada de um ponto de vista que se baseou numa condição primordial fictícia.
Ao passo que Hegel não parte do ser privado de determinações – porque isso é
uma impossibilidade –, mas de um ser determinado de um dado momento
histórico e de uma relação social específica, no entanto crendo ser o ente em seu
momento uno, totalmente despido de determinidade. Aqui podemos incluir
também o ser da natureza orgânica e inorgânica, de modo que sua existência,
sempre histórica e irreversível, só é possível na objetividade, o que perfaz da
existência do ser livre de predicados um absurdo, uma inexistência na prática.
Em seus Manuscritos de 1844, Marx se opôs ao ponto de vista da economia
política – e de Hegel, por suposto – como medida imprescindível para a
superação da alienação, afirmando que nenhuma relação social pode ser tomada
como dada, mas, ao contrário, como um vir-a-ser [Werden], de modo que
98
nenhuma condição primordial pode ser suposta. É por isso que Marx definiu a
relação historicamente primária entre homem e natureza como a relação da
natureza consigo mesma e inerentemente histórica.
A despeito da ideia de uma simples inversão lógica que Marx teria
realizado contra o método hegeliano, o que se vê em Marx é uma crítica áspera
ao intento lógico-ontológico hegeliano, do ser privado de pressupostos em que
este deveria ser ao mesmo tempo algo além do mero ser pensado, no entanto,
simultaneamente, algo ainda privado de determinações. A ontologia como uma
análise da estrutura primária do ser ainda privado de qualidades, como aparece
em Hegel, é uma abstração irrazoável porque pressupõe a possibilidade do
desmembramento da realidade num sistema lógico-hierárquico, ou, como a
tradição filosófica alemã tratou, a teoria das categorias. Esta análise gnosiológica
hegeliana se preocupa em traçar a determinação do ser a partir de categorias
lógicas enquanto pressuposto da própria realidade, secionando o ser em seu
suposto momento de pré-interação com a realidade objetiva. Hegel em A Ciência
da Lógica, na primeira seção, que trata da determinidade, assim expõe a sua
ontologia:
O ser é o imediato indeterminado; ele é livre da determinidade diante da essência, bem como de qualquer determinidade que pode conservar no interior de si mesmo. Esse ser destituído de reflexão é o ser tal como é imediatamente apenas nele mesmo. Porque é indeterminado, ele é ser destituído de qualidade; mas em si cabe-lhe o caráter da indeterminidade apenas em oposição ao determinado ou o qualitativo. Diante do ser em geral, porém, surge o ser determinado como tal; com isso, sua indeterminidade constitui ela mesma sua qualidade. Mostrar-se-á, por conseguinte que o primeiro ser é ser determinado em si e, com isso, em segundo lugar, que passa para a existência, é existência; mas que essa como ser finito se supera e, na relação infinita do ser consigo mesmo, em terceiro lugar, passa para o ser-para-si. (Hegel, 2011, p. 67).
De tal modo que a apreensão do ser em sua pureza exige, em Hegel, a
indeterminação deste ente que lhe é própria, porque a determinação do ser por
meio de algum conteúdo ou contradição faria com que este não fosse apreendido
em sua natureza ontológica pura – Hegel constrói sua ontologia na análise de
Parmênides e Heráclito, analisando, por conseguinte, a crítica kantiana da prova
99
ontológica da existência de deus. Para Hegel, a essência provém do ser como
resultado de um movimento.
Marx parte da observação de que o homem é uma parte específica da
natureza, e, por conseqüência, não pode ser identificado com alguma coisa
abstratamente espiritual. Mészáros remete esta determinação ontológica
marxiana lembrando que “a questão ontológica da existência e sua origem é uma
questão tradicional tanto da teologia como da filosofia. O quadro no qual Marx a
levanta – a definição do homem como uma parte específica da natureza, como ‘o
ser-por-si-mesmo da natureza’ – transforma radicalmente essa questão”
(Mészáros, 2006, p. 150).
Qualquer jusnaturalismo, transcendentalismo moral kantiano, teologia
hegeliana ou teoria da maldade natural – seja hobbesiana, seja maquiavélica –
cai por terra quando Marx determina o homem em sua relação ontológica
originária: o ser-por-si-mesmo da natureza e do homem significa diretamente que
o homem não é outra coisa senão parte integrante da natureza e que há uma
relação causal particular, na qual o homem age e transforma a natureza,
transformando, por conseguinte, a si mesmo e a sociedade como um todo. De tal
sorte que uma teoria da moral inexiste nos escritos marxianos. O ser-por-si-
mesmo da natureza e do homem aparece em Marx como o homem sendo parte
da natureza, e, por este mesmo motivo, como sendo um ser auto-constituinte, e
não uma contrapartida animal de uma série de ideais morais abstratos; o homem
não é, portanto, nem bom, nem mau; nem benevolente, nem malevolente; nem
altruísta, nem egoísta. O homem é, como bem explicitou Mészáros (2006)
remetendo a Marx, simplesmente um ser natural cujo atributo é a automediação,
e isso quer dizer que o homem pode se transformar em quaisquer desses
atributos dadas as circunstâncias predominantes. O homem guarda em si
potencialidades que podem ou não ser desenvolvidas ao longo das
circunstâncias estabelecidas.
Do mesmo modo, Marx rejeita o transcendentalismo de Kant a Stirner ao
estabelecer que a possibilidade da superação de determinadas formas sociais
deve englobar a superação da alienação e dos próprios entraves impostos pela
natureza. É neste sentido que Marx desfere a sua aguda crítica ao
100
transcendentalismo moral, observando a necessária demolição do estratagema
segundo o qual o homem é egoísta por natureza. Observar que o homem é
egoísta em uma dada relação social – porque o é – e creditar este egoísmo a
uma natureza egoísta humana é cometer uma falácia ideológica de igualar o a-
historicamente a parte com o todo. Em suma, trata-se de analisar o ser
determinado de um dado momento histórico e de uma relação social específica
enquanto se pensa analisar o suposto ser livre de determinações.
Marx (2004) se reporta imediatamente à objetividade enquanto
fundamento de todo ser, especialmente a partir do terceiro manuscrito, dedicado
à fenomenologia hegeliana, em seus Manuscritos de 1844. Essa identidade se
traduz no reconhecimento da objetividade como categoria primária de toda
entificação; Marx remete-se ao exemplo da fome, supramencionado. O elemento
central da análise marxiana é a explicitação da objetividade humana,
identificando o ser em geral e a natureza, aliás, a relação existente entre o
singular-exemplar e o universal na formação da generidade do ser. Com o
surgimento do organismo ocorre uma mudança radical diante da natureza
inorgânica, uma vez que cada organismo é um complexo movido por forças
internas causais – neste sentido, Kant acertadamente classificou como finalidade
sem escopo –, que possui como determinação do seu ser o surgir e o passar.
Esse processo de reprodução de um organismo singular transcorre no quadro de
sua generidade – a relação de um organismo e a sua interferência no mundo
inorgânico. Num estágio superior, quando o processo de reprodução do
organismo pressupõe uma mobilidade independente de seu ambiente, surgem as
reestruturações biológicas dos processos físicos do ambiente. Esse fato
ontológico tem como resultado uma comunicação sempre determinada
concretamente entre os exemplares do mesmo gênero por sinais percebidos por
todo o gênero.
Esta identidade entre ser e objetividade é a forma peculiar da existência
dos homens – tese observada por Mônica Hallak da Costa (2001) em seu artigo
sobre os Manuscritos –, de tal sorte que a sociedade é a plena unidade essencial
do homem com a natureza.
101
Portanto, somente para o ser social o vínculo com a natureza é ao mesmo tempo sua relação com os demais homens e apenas desse modo a inter-relação entre os homens se realiza na relação com a objetividade natural que, assim, reemerge como objetividade social. (Costa, 2001, p. 169).
A exteriorização da vida do homem na natureza e na sua relação com os
outros homens é o que faz a entificação essencial do homem; o homem só pode
existir porque existe fora dele objetos de sua necessidade – este é o caráter
eminentemente objetivo da existência humana. A própria vida individual na
espécie humana é ao mesmo tempo vida genérica, é um relacionamento do ser
com o objeto em geral: Marx cita o exemplo de que até na atividade científica,
uma atividade em que raramente se pode levar a cabo em comunidade imediata
com outros homens, também nesta o homem está em atividade social, desde em
relação ao material de sua atividade prática até à linguagem que o cientista fará
uso para a manifestação de seus resultados. A exteriorização da vida produz a
identidade, da qual não se pode prescindir, entre o indivíduo e seu gênero.
Somente a partir da compreensão do caráter social de toda a ação humana é
que pode se pensar a própria relação do homem com a natureza. A elaboração
do homem acerca da natureza inorgânica é, assim, a confirmação do homem
como ser genérico consciente. Costa percebe esta observação marxiana de
forma clara ao afirmar que “o gênero humano é qualitativamente distinto da
natureza em geral mesmo no mais primário estágio de sua geração, visto que
mesmo neste momento sua produção é genérica”. (Costa, 2001, p. 171). Esta
sentença nos remete à estruturação da necessidade objetiva do homem em se
manter vivo, como condição inicial, para sua produção, elaborada por Marx em A
ideologia alemã; contudo, nesta conformação, o homem altera conscientemente
a natureza e este ato teleológico é um ato genérico, sobretudo porque foge da
circularidade da natureza.
Marx situa desde logo a atividade consciente e a generidade como forjas
distintivas entre o homem e a natureza. Estas determinações, percebe Costa
(2001, p. 172) em sua análise da obra marxiana, realizam-se e se expressam em
condicionamento mútuo, deslocando o ser humano para um novo patamar na
escala do ser. O homem se reproduz como ser social e, por isso, ultrapassa
102
qualquer necessidade estritamente orgânica, realizando-se como ser genérico.
No ato humano,
[...] a produção é genérica porque implica a produção do mundo humano para si num movimento que se supera através da construção de novas objetividades que aproximam o homem de si enquanto ser social. A atividade que assim se realiza envolve, portanto, o ser que vive e se reproduz como outra objetividade distinta da natural e a sensibilidade peculiar que o torna capaz para a apropriação e produção genéricas. [...] O homem, ao se apropriar da natureza sensível e de si mesmo em sua sensibilidade própria, transforma a objetividade natural em objetividade social, em objetos da produção e reprodução do ser social, do gênero humano. (Costa, 2001, p. 173).
A objetivação da vida humana produz simultaneamente objetividades
sociais exteriores ao homem, fazendo com que o homem reconheça objetos fora
dele e ele mesmo como objeto social; conforme o exemplo da fome como
objetivação externada do homem, como um objeto fora dele. Marx, como
explicitado acima, percebe que o homem é um ser objetivo que necessita de
objetos exteriores a ele para poder continuar sua existência. Não obstante, o
homem não necessita de outros objetos apenas para sua existência física, mas
também para sua existência social, e, por este mesmo motivo, inicia a produção
de valores de seu mundo humano, de tal maneira que a própria natureza se
emergirá como nova objetividade para o homem.
A percepção que os Manuscritos de 1844 nos dão é que a contraposição a
Hegel efetuada por Marx ocorre a partir da crítica imanente de Hegel, utilizando
para isso a própria terminologia hegeliana; e nessa explicação terminológica da
crítica do sistema filosófico hegeliano, Marx se apropria das expressões
Entäusserung e Entfremdung re-significando-as. Marx impugna definitivamente a
especulação na demonstração, inscrita nestes mesmos manuscritos, de que o
homem como ser objetivo põe suas forças objetivas mediante sua exteriorização,
mas não é o homem subjetivo que se exterioriza, e sim suas forças objetivas,
exteriorizando suas forças genéricas, aliás, numa palavra, a generidade. Marx
elucida, não obstante, a objetividade como determinação primordial do homem
que atualiza a subjetividade de suas forças essenciais no objeto externo. Ao se
exteriorizar, o ato da subjetividade é a própria produção do mundo material para
103
o gênero humano, objetivamente. Os objetos produzidos contêm
obrigatoriamente as subjetividades, mas estas só podem se expressar nas
relações objetivas entre os indivíduos.
[...] Todo aquele movimento de alienação e superação da alienação, que para Hegel se passa apenas no pensar, assume, na abordagem marxiana, a densidade do movimento efetivo no qual o homem real põe suas forças objetivas “como objetos estranhos mediante sua alienação”. (Costa, 2001, p. 196).
Retornando à análise de Chasin acerca das três críticas instauradoras,
após a demonstração da superação da especulação, percebe-se que a anatomia
da sociedade civil deve ser buscada no seio da economia política, já que é,
portanto, na “busca da anatomia da sociedade civil que as categorias da
economia política são ontocriticamente elevadas à esfera filosófica, onde
esplendem como malha categorial da produção e reprodução da vida humana”
(Chasin, 2009). Em A ideologia alemã, Marx (2007, p. 87) estabelece o
pressuposto da vida humana, que é a imprescindibilidade da objetividade – o
pressuposto da história humana é a existência de indivíduos humanos vivos, e
para a produção do seu mundo, os homens se deparam com objetos reais
determinados numa específica época. A crítica ontológica da economia, ao
contrário do que faziam os economistas ingleses, que reduziam ou
unilateralizavam seus objetos, promove a universalização no reconhecimento da
centralidade ontológica da atividade humana e seu fator econômico subjacente.
Marx, por sua vez, “rompe com a concepção excludente entre natureza e
sociedade, pondo em primeiro plano o metabolismo humano-societário que as
relaciona no qual a primeira se apresenta como plataforma natural”, consumando
deste modo o “progressivo ‘afastamento das barreiras naturais’, que tipifica o
autoengendramento do ser humano, no sentido da presença necessária, mas
não determinante da natureza na infinitude intensiva e extensiva dessa
entificação” (Chasin, 2009, p. 78).
A forma produtiva mais avançada da humanidade, a grande indústria, é o
metabolismo social que mais interessa a Marx, já que foi a partir desta que a
economia política descobriu a essência subjetiva da riqueza. A relação do
trabalho é o laço inexpugnável entre o homem e a natureza, e esta se dá sob a
104
forma mais complexa de objetivação na indústria capitalista, dada a
irreversibilidade dos processos históricos (Lukács, 2010). A crítica marxiana
alcança a impugnação da economia nacional já nos Manuscritos de 1844, conclui
enfatimante Chasin.
Chasin é perspicaz na afirmação de que as três críticas ontológicas
encadearam formalmente a constituição do pensamento de Marx, resultando
num panorama integrado realmente autônomo, dispensando quaisquer formas de
artificialismo ou misturas de universos teóricos extrínsecos. E conclui:
Precisamente por sua condição de pensamento pós-especulativo ou pós-gnosiológico e antipoliticista, a obra marxiana não é, nem poderia ter sido, a aglutinação ressintetizada das melhores porções do pensamento de ponta de seu tempo. Lidou com o mesmo em suas vertentes mais avançadas, todavia, não para operar a mágica canhestra de um somatório absurdo de “partes vivas”, nem mesmo, e puramente, para se fazer herdeiro de uma dita tradição dialética, aliás, palavra ambígua e traiçoeira se empregada genérica e indeterminadamente, e que já serviu de termo cabalístico para dissimular ignorâncias e perversidades de toda ordem. Lidou, sim, com as melhores cabeças de toda uma época, mas para armar um salto para além delas. [...] o pensamento especulativo, a economia política e a reflexão política [...] não foram bases ou fontes provedoras de materiais teóricos acabados ou semielaborados para a montagem da obra marxiana, mas, rigorosamente, objetos de crítica, dos quais não foram retidos e reaproveitados certas peças ou procedimentos. (Chasin, 2009, p. 86).
E Chasin, elucidando a natureza ontológica do pensamento marxiano e
aprofundando uma assertiva lukacsiana, cuja ideia se forma a partir da
prerrogativa de que todo problema gnosiológico só encontra solução no campo
ontológico, pretende impugnar certo marxismo para o qual a perspectiva de Marx
se refere a um método específico. O que Chasin expõe, ao contrário disso, é que
em Marx não há um crivo metodológico pelo qual se devem passar os objetos,
como no positivismo, por exemplo, e que em vez disso há um predomínio da
objetividade. Senão vejamos a discussão na própria letra de Chasin:
Se por método se entende uma arrumação operativa, a priori, da subjetividade, consubstanciada por um conjunto normativo de procedimentos, ditos científicos, com os quais o investigador deve levar a cabo seu trabalho, então, não há método em Marx. Em
105
adjacência, se todo método pressupõe um fundamento gnosiológico, ou seja, uma teoria autônoma das faculdades humanas cognitivas, preliminarmente estabelecida, que sustente ao menos parcialmente a possibilidade do conhecimento, ou, então, se envolve e tem por compreendido um modus operandi universal da racionalidade, não há igualmente, um problema do conhecimento na reflexão marxiana. E essa inexistência de método e gnosiologia não representa uma lacuna, nem decorre, como sugere Lukács, às primeiras linhas de seu capítulo sobre Marx na Ontologia do ser social, do fato deste jamais ter se preocupado em estudar as relações entre ontologia, gnosiologia, lógica etc., uma vez que partira “ainda que desde os inícios em termos críticos, da filosofia hegeliana”, e que esta “se move dentro de uma certa unidade, determinada pela idéia de sistema, entre ontologia, lógica e teoria do conhecimento; o conceito hegeliano de dialética implica, no próprio momento em que põe a si mesmo, uma semelhante unificação e, inclusive, tende a fundir uma coisa com a outra”. Como se depreende dos passos ontocríticos que instauraram o pensamento marxiano, não terá sido por resquícios de hegelianismo que Marx rompeu com o método-lógico especulativo, nem se situou, pela mediação do pressuposto ineliminável da atividade sensível do homem, para além da fundamentação gnosiológica. Isso equivale a admitir que a suposta falta seja antes uma afirmação de ordem teórico-estrutural, do que uma debilidade por origem histórica insuficientemente digerida. (Chasin, 2009, p. 89-90).
Ainda que Marx não tenha elaborado nenhum escrito direto sobre seu
procedimento analítico, o conjunto da obra marxiana aponta não para uma
lacuna, mas para um modus operandi consciente do qual Chasin percebe quatro
fatores determinantes: a fundamentação ontoprática do conhecimento; a
determinação social do pensamento e a presença histórica do objeto; a teoria
das abstrações; e a lógica da concreção.
Nessa fundamentação ontoprática do conhecimento, a generidade se
destaca: a objetividade e a subjetividade humanas são produtos da
autoconstutividade humana, a partir da qual se firma após a suprassunção de
sua condição unicamente natural. O homem e o mundo ao seu redor não são
outra coisa senão a produção genérica humana, que tem por protoforma o
trabalho, ou seja, a atividade sensível. No terceiro manuscrito de seu caderno de
Paris, Marx (2004, p. 107) crava que o indivíduo é o ser social, e sua
manifestação de vida, ainda que não pareça diretamente à primeira vista, é uma
externação da vida social, de modo que a vida individual e a vida genérica do
106
homem não são duas coisas absolutamente diversas. E mais adiante, expõe
Marx sobre a objetividade:
Se as sensações, paixões etc. do homem não são apenas determinações antropológicas em sentido próprio, mas sim verdadeiramente afirmações ontológicas do ser (natureza) – e se elas só se afirmam efetivamente pelo fato de seu objeto ser para elas sensivelmente, então é evidente: 1) que o modo da sua afirmação não é inteiramente um e o mesmo, mas, ao contrário, que o modo distinto da afirmação forma a peculiaridade (Eigentümlichkeit) da sua existência, de sua vida; o modo como o objeto é para elas, é o modo peculiar de sua fruição; 2) aí, onde a afirmação sensível é o supra-sumir imediato do objeto na sua forma independente (comer, beber, elaborar o objeto etc.), isto é a afirmação do objeto; 3) na medida em que o homem é humano, portanto também sua sensação etc., é humana, a afirmação do objeto por um outro é, igualmente, sua própria fruição; 4) só mediante a indústria desenvolvida, ou seja, pela mediação da propriedade privada, vem a ser (wird) a essência ontológica da paixão humana, tanto na sua totalidade como na sua humanidade; a ciência do homem é, portanto, propriamente, um produto da auto-atividade (Selbstbetätigung) prática do homem; 5) o sentido da propriedade privada – livre de seu estranhamento – é a existência dos objetos essenciais para o homem, tanto como objeto da fruição, como da atividade. (Marx, 2004, p. 157).
Em A ideologia alemã, Marx (2007, p. 87) definitivamente posta sua
ultrapassagem de Feuerbach na relação entre sujeito e objeto, quando afirma
que o objeto não é uma coisa estática e determinada perenemente, mas, ao
contrário, sempre um produto histórico determinado socialmente, resultado da
atividade de toda uma série de gerações que, assim por diante, foi alterando e
construindo seu mundo. Ao mesmo tempo que ultrapassa Feuerbach, Marx
rejeita como uma impossibilidade absurda a teoria hegeliana da apreensão do
ser livre de determinações.
Marx critica a forma apresentada da generidade por Feuerbach como
ainda muda, como se verá na crítica de Lukács. E Chasin (2009, p. 95) percebe
isso quando anuncia parafraseando Marx que de fato, como previu Feuerbach, o
ser é uno com a coisa que é, mas que este último não chegou jamais a
ultrapassar a concepção de um indivíduo humano abstrato, e por isso despojado
das interações sociais fundantes – estas interações entendidas, portanto, como
generalidades que unem os indivíduos apenas de modo natural. Feuerbach,
107
anuncia Marx, fora incapaz de perceber a essência humana como uma efetiva
objetividade social, e por consequência, não consegue apreender a atividade
humana como atividade objetiva. Isso alude, obrigatoriamente, à primeira tese de
Marx ad Feuerbach, cuja crítica marxiana demonstra que Feuerbach enxerga
“[...] n’A essência do cristianismo, apenas o comportamento teórico como o
autenticamente humano, enquanto a prática é apreendida e fixada apenas em
sua forma de manifestação judaica, suja” (Marx, 2007, p. 533).
Resultado de um culturalismo antiontológico, esta tese fora empurrada
para a interpretação gnosiológica por uma série de vertentes da filosofia desde
que foi escrita. Chasin chama a atenção para isso na análise da própria tese, na
qual o velho materialismo nem ao menos é questionado em relação aos seus
procedimentos científicos ou cobrado por suas insuficiências epistemológicas. A
crítica direta de Marx, como se lê sem imputações hermenêuticas, denuncia uma
lacuna ontológica, a saber, a de que o materialismo antigo ignora por completo a
qualidade da objetividade social. Ignorada essa transitividade entre objetividade e
subjetividade, a ação humana para Feuerbach é estática, e para Hegel, uma
atividade espiritual abstrata. A explicação de Chasin é precisa:
Transitividade ou conversibilidade entre objetividade e subjetividade compreende, pois, a dissolução da unilateralidade ou limites desfiguradores, materialistas e idealistas, do sujeito e do objeto: aquele perde a estreiteza de pura interioridade espiritual e este a de mera exterioridade inerte. Pela constatação do intercâmbio, a subjetividade é reconhecida em sua possibilidade de ser coisa no mundo, e a objetividade como dynameis – campo de possíveis. O sujeito se confirma pela exteriorização sensível, na qual plasma sua subjetividade, e o objeto pulsa na diversificação, tolerando formas subjetivas ao limite de sua plasticidade, isto é, de sua maleabilidade para ser outro. Cara a cara, em tensão dinâmica, fazem emergir a regulação de suas trocas, nunca arbitrárias. O objeto pode ser compelido à existência multiforme, contanto que a prévia ideação do escopo, a teleologia – configuração da subjetividade que almeja ser coisa no mundo – seja capaz de pôr a seu serviço, sem transgressão, a lógica específica do objeto específico, ou seja, a legalidade da malha causal de sua constitutividade material primária. (Chasin, 2009, p. 99).
E anunciando a segunda Tese ad Feuerbach de Marx, Chasin demonstra
que o plano gnosiológico jamais instaura o discurso marxiano, só vindo a ocupar
108
um espaço depois que o sujeito e o objeto já tenham sido tematizado. Enquanto
a primeira das teses sobre Feuerbach anuncia a natureza da existência social em
termos de atividade sensível, somente na segunda o problema do conhecimento
é tematizado, como oriundo e dependente do primeiro. Em Marx, o “tratamento
ontológico dos objetos, sujeito incluso, não só é imediato e independente, como
autoriza e fundamenta o exame da problemática do conhecimento” (Chasin,
2009, p. 101). Todo produto humano é antes de tudo um produto social, e,
portanto, a própria problemática do conhecimento também o é; e liga-se
diretamente ao que Chasin (2009, p. 105-6) chamou de determinação social do
pensamento: o pensamento tem caráter eminentemente social, inclusive pelos
materiais e instrumentos empregados. O que não significa outra coisa senão que
a consciência sob qualquer tipo de formação ideal – das mais gerais às mais
específicas – dependem do ser da atividade sensível, socialmente configurado,
ao qual confirmam por sua atividade abstrata, igualmente social. Isso fica
evidentemente aclarado nas passagens iniciais de A ideologia alemã, com
passagens bem definidas e claras sobre o caráter social da consciência. A
consciência é determinada pela ação concreta dos indivíduos, o que significa que
toda atividade ideal tem como fonte primária a vida societária, conduzindo um
grau mais avançado ou mais obscurecido de consciência sobre o mundo
dependendo de como o intercâmbio entre os indivíduos se processa em cada
forma social determinada. O próprio recurso marxiano contido em O capital
atinente à análise aristotélica do valor acaba por evidenciar tanto a presença
histórica do objeto como a determinação social do pensamento. Aristóteles nunca
chega à descoberta da substância comum que uma mercadoria representa, ou
melhor, ao valor. Não chega à descoberta porque havia uma impossibilidade
disso, não por qualquer limitação peculiar ou vicissitude no pensamento de
Aristóteles, mas pela própria realidade material obliterante: na forma dos valores
de mercadorias todos os trabalhos são expressos como trabalho humano igual,
e, portanto, como equivalentes; e na Grécia clássica a sociedade se baseava no
trabalho escravo, tendo por base natural a desigualdade entre os homens e suas
forças de trabalho. O limite da análise de Aristóteles é o limite histórico de seu
tempo. A falsidade ou o acerto de uma dada teoria depende de um condicionante
109
histórico, e a própria ideologia é uma determinação social e histórica. O exemplo
marxiano se estende também à economia clássica, conforme anunciado por
Chasin:
Mais uma vez deve ser ressaltado que – de uma ponta a outra do processo, da vigência à dissolução da economia clássica – as condições de possibilidade dos distintos momentos da configuração teórica são dadas pelas inflexões da sociabilidade, favorecendo ou desfavorecendo, pelo grau de desenvolvimento do objeto e pelas mutações de ótica correspondentes, a exercitação apropriada e clarificadora da cientificidade ou, às avessas, a parcialidade desfiguradora da mesma. De modo que a objetividade científica é uma complexa resultante de produtivos influxos sócio-históricos, e não, meramente, a virtude de uma forma de discurso pré-moldada. Os próprios discursos, em todas as suas modalidades, são predicações sociais, mediadas pelos sujeitos que integram a formação real sob clivagens de inserções efetivas e óticas de adoção igualmente societárias. (Chasin, 2009, p. 117).
Razão pela qual, dado o parco desenvolvimento econômico alemão, faltou
aos economistas alemães aquilo que estava dado há tempos aos economistas
ingleses: a maturação do objeto, ou, noutras palavras, o pleno desenvolvimento
do capitalismo industrial. Não foi sem motivos que Marx fez a célebre afirmação
de que a economia política era uma ciência estrangeira. Isso não significa outra
coisa senão que o objeto em graus desenvolvidos possui a condição
imprescindível para a apreensão mais autêntica de suas formas: “a presença
histórica de seu corpo maturado faculta, de seu pólo, o conhecimento, ao passo
que em graus imaturados atua como obstáculo” (Chasin, 2009, p. 119). E
continua:
Ocorre, portanto, no tratamento marxiano da questão do saber, um deslocamento corretivo, que vai da rarefação das formas gnosiológicas de abordagem para a encorpada analítica da determinação social do pensamento e da entificação do objeto, ou seja, o problema é transmutado em circunscrição peculiar no universo de investigação concreta do complexo humano-societário global, delimitada e operacionalizada sobre os esteios da nova ontologia histórico-imanente constituída em fundamento. A problemática do conhecimento não é, pois, abandonada ou dissolvida, mas recaracterizada no lugar próprio e em seus devidos termos, distantes de qualquer artificialismo escolástico, como demarca e suscita a tese II de “Ad Feuerbach”. Com essa
110
redefinição é ampliada, pois concebida em sua maior complexidade, desde seu momento protoformático – o trabalho – já que este implica a inteligibilidade da malha causal dos objetos sobre os quais atua, e também a prévia ideação do alvo a objetivar, imagem interior que responde a carências sentidas e (re)conhecidas, dado que teleologia não é vaga aspiração ou simples desejo, só guardando a identidade na medida em que comporta possibilidades efetivas de realização. (Chasin, 2009, p. 120-121).
A conjunção cognitiva, portanto, entre sujeito e objeto é reiterada pela
práxis social. E esta conjunção cognitiva ideal é dependente do encontro entre
um sujeito plasmado em posição adequada à objetivação científica.
Diferentemente de como se processa nas ciências naturais, os experimentos não
são possíveis no campo social, dado o específico predomínio do elemento
histórico enquanto base e forma de movimento do ser social. Por isso, captar os
elementos sociais depende de uma força de abstração. Embora Marx jamais
tenha elaborado um conjunto sistemático de escritos sobre isso, a teoria da
abstração fica evidente pelo modus operandi por toda a sua obra madura. As
abstrações admitidas por Marx são exemplos reais obtidos da experiência do
mundo real. Quando Marx, na Introdução de 1857 chega às abstrações razoáveis
[verständige Abstraktion], o filósofo alemão não parte de nenhuma interrogação
meramente gnosiológica, mas ontológica. Senão vejamos o excerto a seguir, que
também foi objeto de análise demonstrativa por Chasin na elucidação desta
questão:
A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável, na medida em que, efetivamente sublinhando e precisando os traços comuns, poupa-nos a repetição. Esse caráter geral, contudo, ou esse elemento comum, que se destaca através da comparação, é ele próprio um conjunto complexo, um conjunto de determinações diferentes e divergentes. Alguns desses elementos comuns pertencem a todas as épocas, outros apenas são comuns a poucas. Certas determinações serão comuns à época mais moderna e à mais antiga. Sem elas não se poderia conceber nenhuma produção, pois se as linguagens mais desenvolvidas têm leis e determinações comuns às menos desenvolvidas, o que constitui seu desenvolvimento é o que as diferencia desses elementos gerais e comuns. As determinações que valem para a produção em geral devem ser precisamente separadas, a fim de que não se esqueça a diferença essencial por causa da unidade, a qual decorre já do fato de que o sujeito – a
111
humanidade – e o objeto – a natureza – são os mesmos. (Marx, 2000, p. 27).
As abstrações são conceitos retirados da própria realidade, utilizando uma
forma que poupa a repetição de uma explicação já concebida. O todo caótico de
cada conceito, de cada abstração, a um certo custo deve ser organizado e
ordenado, como se vê na argumentação da passagem acima de Marx. Esse
recorte de abstrações e organização delas para a ordenação da apresentação
das ideias é chamado por Lukács (2012, p. 304) de abstrações isoladoras. Estas
são, na realidade, o ponto de partida de uma elaboração teórica. A formação de
um conceito, para Marx, é uma apreensão material direta da realidade posta, e
esta realidade é sempre socialmente determinada – o que anula definitivamente
a possibilidade de apreensão de um ser ainda privado de qualidades, ainda
privado de determinações. Essa apreensão do conceito puro ainda não-
determinado é uma impossibilidade efetiva, já que todo ser é um feixe interlaçado
de inúmeras determinações.
A abstração razoável não é outra coisa senão a maneira de proceder do
pensamento, razão pela qual o concreto aparece no pensamento como processo
de síntese, como um resultado e não como um ponto de partida isolado. Acerca
disso, Marx expõe em sua célebre e tão citada Introdução de 1857:
O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação [...]. Por isso é que Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se sintetiza em si, se aprofunda em si, e se move por si mesmo; enquanto o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado. (Marx, 2000, p. 39-40).
Na rota explicativa, as abstrações razoáveis devem perder seu caráter de
generalizações e, por este motivo, acabam se transformando em elementos de
particularizações e singularizações, tornando-se conceitos delimitados, a fim de
se aproximar o máximo possível da representação formal da realidade, do ser-
112
precisamente-assim. De tal sorte que as categorias emanadas de uma
abstração, como, por exemplo, produção, consumo, valor, distribuição não são
categorias idênticas, mas categorias que fazem parte de uma mesma totalidade;
cada conceito forma momentos de um mesmo ser, pelos quais, em suas
conexões, Marx consegue determinar o momento preponderante de cada ser.
Disso resulta que cada categoria conserva sua própria peculiaridade ontológica e
a manifesta em todas as interações com as demais categorias, mesmo tendo
valores díspares, ao qual se identifica na realidade imanente a sua prioridade
ontológica.
A elaboração marxiana a partir de sua postura crítica contra Feuerbach,
ainda em sua juventude, já demarcava a posição pela resolução ontoprática do
problema conhecimento. Em verdade, qualquer forma da coisa-em-si abstrata e
especulada cede lugar à resolução ontoprática do conhecimento, que
“compreende a globalidade das determinações da atividade sensível, tanto sob a
figura do objeto quanto do sujeito, e em plena atualização objetiva de suas
formas de existência” (Chasin, 2009, p. 204). Isso não significa outra coisa senão
que os objetos específicos e determinados – já que não existe a possibilidade de
lograr resultados na análise do ser livre de determinações, como supõe Hegel –
são confirmados em suas existências específicas e determinadas, e isso é válido
também para os sujeitos sensíveis e cognoscentes. Numa passagem resolutiva,
Chasin fecha a questão do seguinte modo:
[...] Diante desse complexo repleno, opulentamente determinado, que falta pode fazer ou que papel restaria ao puro em-si abstrato, na pobreza de conteúdo que é toda a sua virtude? Nenhuma, é óbvio, só podendo servir como ilustração de um grande equívoco, cuja inferioridade teórica traduz, ao contrário do pretendido, o esvaziamento epistêmico da realidade, em contraste com a farta conquista ontológica da mesma levada a cabo por Marx. (Chasin, 2009, p. 204).
E Chasin não poupa a crítica ao destino que tal adulteração do
pensamento marxiano teve no marxismo – inclusive a partir de conceitos que
partem de um cenário epistêmico ou que formam categorias abstratas conferidas
ao método, como a totalidade. Basta citar o indefectível relevo ao nervo
metodológico hegeliano de Marx que esteve presente em História e consciência
113
de classe – e, diga-se de passagem, reconhecido pelo próprio Lukács em seu
Posfácio de 1967 para a republicação da mesma obra. No ensaio elaborado em
1921, diz Lukács a propósito da totalidade:
O que diferencia decisivamente o marxismo da ciência burguesa não é a tese do predomínio dos motivos econômicos na explicação da história, mas o ponto de vista da totalidade. A categoria de totalidade, o domínio onímodo e determinante do todo sobre as partes, é a essência do método que Marx tomou de Hegel e transformou de maneira original para fazer dele o fundamento de uma nova ciência. (Lukács, 2003, p. 105, grifo nosso).
Ainda que Lukács reconsidere um acerto de contas quatro décadas
depois, já em sua fase de elaboração final dos manuscritos que dão origem à
Ontologia, percebendo que realizou “um exagero hegeliano, porquanto opunha a
posição metodológica central da totalidade à prioridade da economia” (Lukács,
2003, p. 21), Chasin vai além, observando inclusive que a autocrítica lukacsiana
é limitada: enquanto Lukács admitia que seu equívoco era creditar à categoria da
totalidade um princípio revolucionário na ciência, Chasin evidencia que esta
admissão não explicita o paradoxo de que a totalidade era definida como ponto
de vista.
[...] Que, no contexto dado, esse ponto de vista seja o do proletariado, enquanto sujeito e objeto idênticos “do conhecimento da realidade social”, apenas acentua que a totalidade é concebida como uma configuração da consciência, simplesmente como um prisma ou ângulo visual, embora privilegiado, mas não altera em nada que se trata de uma identificação equivocada da mesma, pois, ainda que o proletariado seja o portador da visão da totalidade, ele não é a própria totalidade social, de modo que seu privilégio seria o de poder ver e não de ser a totalidade. [...] a totalidade é reduzida aos contornos de uma simples potência mental ou possibilidade cognitiva. (Chasin, 2009, p. 205-206).
Vale notar as inferências de István Mészáros (2002) em Para além do
capital acerca da ideia de Lukács contida em História e consciência de classe de
que o ponto de vista do proletariado era o ponto de vista da totalidade. Lutando
pela defesa da Revolução Russa, Lukács promove um substitucionismo
determinando que o sujeito-objeto idêntico se manifestava no proletariado, pela
114
sua posição estratégica no processo produtivo. Mas a questão não saía da
perspectivação hegeliana: o sujeito-objeto como o espírito autorrealizador do
mundo era agora adaptado para a consciência do proletariado, que, por sua vez,
era entificado num ser supra-individual totalmente abstrato encarnado no partido
soviético. A decorrência disso, para Mészáros (2002, p. 385) era dupla: a de que
a suposta “real” consciência de classe do proletariado era convertida em um
imperativo moral ao qual os trabalhadores deveriam se conformar no curso da
realização de sua missão histórica; e a de que, por via de consequência, o
partido era postulado como “encarnação ativa e organizada da consciência de
classe”, para efetivar seu destino historicamente determinado.
Observemos o desfecho da sua crítica em relação à identidade do sujeito-
objeto:
[...] a relação entre sujeito e objeto, na sua constituição original, é inseparável das condições de produção e reprodução da atividade humana e da valoração do objeto (os meios e materiais de produção), sem a qual nenhuma reprodução sociometabólica – por meio do modo historicamente específico de trocas humanas entre os próprios indivíduos e com a natureza – é concebível. Contudo, através do prisma refratário da mistificação filosófica [...], a substância tangível das relações concretas, materiais e sociais subjacentes é metamorfoseada em um enigma metafísico cuja solução apenas pode assumir a forma de algum postulado ideal irrealizável, decretando a identidade de sujeito e objeto. E precisamente porque a questão, na sua determinação estrutural fundamental, concerne à relação entre o sujeito que trabalha e o objeto de sua atividade produtiva – que, sob a regência do capital, só pode ser uma relação intrinsecamente exploradora –, a possibilidade de desvelar a natureza real dos conflitos e problemas em jogo, visando transcendê-los em algo diferente de uma forma puramente fictícia deve ser inexistente na prática. [...] Portanto, a verdadeira questão da relação sujeito-objeto é como reconstruir, em patamar completamente compatível com o desenvolvimento produtivo historicamente atingido da sociedade, a necessária unidade dos sujeitos que trabalham com as condições objetivas atingíveis de sua vida-atividade plena de significado. Tal identidade do sujeito e do objeto nunca existiu; nem poderia jamais existir. Além do mais, a unidade de sujeito e objeto que encontramos em fases anteriores da história só poderia ser aquela primitiva. Ela foi esgarçada e destruída pelas fases subseqüentes do desenvolvimento histórico. Apenas um sonhador incurável poderia imaginar sua ressurreição. (Mészáros, 2002, p. 427 e p. 429).
115
E a exemplo de Tertulian (2011), Mészáros percebe a composição mista
em Hegel entre alienação e objetivação, questão da qual Lukács tergiversa
inclusive no mencionado Posfácio de 1967. E adverte que esta confusão
categorial particular não é uma ocorrência isolada no universo hegeliano, mas
que sua obra é caracterizada pela confusão sistemática das categorias da lógica
com as determinações objetivas do ser, numa tentativa de conciliar a realidade
histórica aos artifícios criados na Ciência da lógica.
A categoria da totalidade – reduzida aos contornos de uma simples
possibilidade cognitiva – não é qualificação limitada à História e consciência de
classe. Retornando à crítica de Chasin, o décimo terceiro capítulo da Estética
guarda um resíduo dessa acepção de totalidade, embora já despojada da
artificial elaboração da identidade sujeito-objeto. Neste capítulo, Lukács volta a
compor a teoria do em-si epistêmico, elaborada na Introdução à Estética, como
algo próximo de um arquétipo da subjetividade: “Por essas razões se pode dizer
que a tipologia do para-nós [...] está contida na do em-si. Isso determina antes de
tudo a forma do para-nós no reflexo científico, a forma adequada ao método
desantropomorfizador” (Lukács apud Chasin, 2009, p. 206). Lukács acaba por
configurar a totalidade como uma premissa, uma fórmula, da teoria do
conhecimento – numa frustrada tentativa de unir a uma ontologia do ser social.
Isso significa, para Chasin, um rebaixamento epistemológico das possibilidades
de apreensão da realidade, sob a qual o em-si real (a totalidade efetiva) é
pulverizado da diversidade dos reflexos e, destarte, isolada de sua efetividade
concreta, tornando-se uma espécie de inatingível dever-ser da cientificidade. O
ponto de vista expresso na obra juvenil é agora, na Introdução à Estética,
transformado em postulado científico. “Pressuposto do conhecimento da
realidade na primeira e princípio epistêmico na segunda, em ambas a totalidade
é estreitada e expressa como forma da subjetividade que sobrepaira à realidade”
(Chasin, 2009, p. 208). No Posfácio de 1967, Lukács tanto não desfaz a
confusão sobre a totalidade, quanto acaba por reafirmar a já mencionada posição
sobre o método marxiano.
Preenchendo espaço vital no pensamento marxiano, a categoria de
totalidade jamais é tratada como postulado científico ou ponto de vista. Em Marx,
116
a totalidade é integrada pelas figuras da atividade sensível, seja na explicitação
de um universal ou de um particular de um objeto determinado. A totalidade é a
formação real e concreta de um objeto, seja na sua forma de um concreto ideal,
seja na forma de um concreto real. No pensamento marxiano,
conhecer é precisamente capturar e expor a totalidade real da única maneira pela qual isso é possível, ou seja, na forma da totalidade pensada. Não há lugar, pois, para uma acepção da totalidade enquanto ponto de vista ou postulado, mesmo porque ambos são por natureza, meramente, uma espécie de autoimperativo da subjetividade, quando, marxianamente, o único imperativo a ser cumprido pela subjetividade cognitiva é posto pela esfinge do objeto. (Chasin, 2009, p. 209).
Advertência imperiosa àqueles que imaginam que Chasin tenta afastar
liminarmente Hegel de Marx: a recusa da tese do vínculo lógico entre Marx e
Hegel, bem como a crítica da impropriedade da formulação lógica do universal,
particular e singular como método marxiano de extração hegeliana, “não implica
a inexistência de qualquer tipo de nexo entre Marx e Hegel, mas o deslocamento
de quaisquer vínculos possíveis à devida esfera secundária de influências,
ressonâncias e absorções difusas, que se deram por certo em mais de um plano”
(Chasin, 2009, p. 215). Donde a diferença fundamental guardada por Marx não é
somente de ordem discursiva; já reafirmado por Marx no Posfácio de 1873 de O
capital, o método marxiano não é somente diferente do hegeliano, mas a recusa
direta dele. Se, por um lado, o processo de pensamento hegeliano é processado
num demiurgo do real; por outro, no marxiano o ideal nada mais é do que o
material transposto e traduzido na cabeça do homem, uma exposição e
apreensão do único modo possível de se chegar do concreto ao concreto
pensado. Numa frase, a diferença é de caráter ontológico: “o ser é prioritário em
relação ao pensamento, e este é um concreto pensado, não um produto
autônomo” (Chasin, 2009, 215). E Chasin demonstra a relação de Marx com
Hegel da seguinte forma:
Isso não impede, todavia, que no mesmo “Posfácio” Marx reconheça a propósito da dialética, como em diversas outras oportunidades e sempre praticamente do mesmo modo, que Hegel “tenha sido o primeiro a expor as suas formas gerais de
117
movimento, de maneira ampla e consciente”, na qual reconhece também um “cerne racional”. De modo que nada impede que os movimentos de concreção da teoria das abstrações, a síntese de múltiplas determinações, contenha subsidiariamente a contribuição de momentos ao objeto e nunca a ele atribuídos pelo pensamento. Nesse sentido, na medida em que todo processo de concreção analítica sempre se move, necessariamente, nos três níveis, reais e ideais, de generalização, uma dialética de universal, particular e singular sempre estará presente como o momento mais remoto e abstrato do processo determinativo. Sob essa condição, uma lógica ou dialética do universal, particular e singular será o feixe – “o elemento comum que é ele próprio um conjunto de determinações diferentes e divergentes” (“Introdução de 1857”) – mais abstrato das abstrações razoáveis, que enquanto tal não determina nenhum objeto concreto. [...] Donde o lugar e o sentido precisos de uma dialética do universal, particular e singular, no âmbito da reprodução ideal dos objetos, são dados precisamente pela teoria das abstrações, fora da qual e em particular como sua forma substitutiva é uma extração sub-hegeliana, convertida em contrafação marxista do procedimento marxiano. (Chasin, 2009, p. 215-216).
De modo que não implica dizer que não existe em Marx nenhum traço do
filósofo pelo qual ele iniciou sua descoberta filosófica, o que seria, no mínimo,
estranho10. A implicação do legado hegeliano em Marx está muito mais na
10 Para Ranieri, há uma questão de fundo que enlaça a filosofia marxiana à filosofia hegeliana: a herança de uma unidade “metodológica que trata o objeto a partir de sua consistência interna” (Ranieri, 2011, p. 23). De acordo com Ranieri, esta herança marxiana, que pode ser realçada de forma evidente dos Manuscritos de 1844 ao Capital, tem paralelo em Hegel, especialmente nos escritos ienenses de juventude, na Fenomenologia do Espírito, na Grande Lógica, e nas Linhas fundamentais da filosofia do direito; e refere-se ao fim da ambivalência entre o ser ontológico e o dever-ser sociomoral, que significa o fim da prioridade do dever-ser sobre a materialidade do próprio ser. O que significa dizer que os estudos de Ranieri o levaram à conclusão de que Hegel prioriza a realidade sobre qualquer outra categoria gnosiológica; muito embora, mais à frente, Ranieri exemplifique a hipóstase hegeliana idealista da seguinte maneira: a ideia se estrutura como a plena realização de um conceito, “o que a aponta como sendo o verdadeiro ou a verdade, já que ela não se confunde com qualquer ente subjetivo ou mesmo mental – a ideia é o universal cuja manifestação está presente na particularidade do conceito”, e, contraditoriamente à afirmação anterior da prioridade ontológica da realidade objetiva, “todo objeto correspondente à ideia pura é determinado por sua própria ideia ou conceito, ‘uma vez que nenhum material sensorial extra é requerido para a sua existência ou para o nosso conhecimento de sua existência’”. Nota-se que a tese de Jesus Ranieri, nitidamente um opúsculo em favor de Hegel, com o objetivo de demonstração do autêntico papel de Hegel na teoria social marxiana, esbarra na mesma questão levantada por Lukács na Estética, o lamento acerca de um inexistente escrito sobre método na obra de Marx, do mesmo modo que se busca em qual momento da Grande Lógica de Hegel, Marx teria se apropriado para a elaboração teórico-metodológica do Capital. “É [...] bastante difícil não se incomodar e surpreender com o alcance das reflexões presentes em distintas obras hegelianas acerca do método científico e não notar, a partir disso, que também não é gratuita a ‘esquiva’ de Marx à escrita de notas metodológicas”. (Ranieri, 2011, p. 76). Não é sem motivos que – realmente se esquivando dos Prolegômenos da Ontologia – Ranieri seleciona apenas as determinações lukacsianas em que o filósofo húngaro esteve em torno de
118
apropriação marxiana de alguns resultados expostos por Hegel, mas não sem
antes se debater contra os rumos e os meios pelos quais certas conquistas
hegelianas se efetivaram – a exemplo do que Marx fizera em relação a
Feuerbach. Sobretudo porque um dos lineamentos mais característicos de Marx
no processo de ruptura essencial com Hegel é a sua crítica da especulação, vista
de A ideologia alemã até A sagrada família.
O reconhecimento vital de Chasin de que houveram processos ontológicos
decifrados nesta nova empreitada lukacsiana veio acompanhado da crítica da
não-superação efetiva de alguns problemas, talvez pela falta de tempo de
amadurecimento deste novo caminho interpretativo; o que fez restar ainda em
Lukács uma vasta “aura hegeliana e uma ênfase praticamente irretocada sobre a
questão metodológica, mesmo sob o novo diagrama da subordinação dos
problemas gnosiológicos ao plano ontológico”, bem como a ainda não bem
definida questão da resolução ontoprática da problemática do conhecimento em
Marx, donde os resultados lukacsianos mais evidentes estão nas “suposições
exóticas como os ‘experimentos ideiais da abstração’, entendidos enquanto
meios de investigação científica” (Chasin, 2009, p. 219), do mesmo modo que
faltou a Lukács o reconhecimento da crítica da política através de sua percepção
da determinação ontonegativa da politicidade, demarcada em Marx desde o ano
de 1843 e jamais abandonada. A teoria das abstrações, descoberta de Chasin
acerca do modo de proceder de Marx, não foi advertida por Lukács e não possui
similaridades desta análise nem mesmo na Ontologia, o que “dimensiona bem a
incompletude da transição lukacsiana ao marxismo ontológico”, já que o filósofo
um hegelianismo, e, por este mesmo motivo, acredita que Lukács é “uma espécie de leitor hegeliano de Marx, porque nos oferece praticamente a totalidade da medida da presença hegeliana no sistema marxiano” (Ranieri, 2011, pp. 125-126). Portanto, Ranieri não vê, como Chasin observa, o hegelianismo da Introdução de 1956 da Estética de Lukács como uma debilidade ou não superação de um momento analítico que está aquém da ontologia marxiana, mas como uma qualidade louvável, pois, para ele, o próprio Marx jamais teria ultrapassado tal nervo metodológico hegeliano. Chasin, ao contrário, coloca a discussão na bifurcação crítica ontológica versus a clássica teoria do conhecimento. Cf. o capítulo Da teoria das abstrações à crítica de Lukács (Chasin, 2009), composto em Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. Marx não tergiversa ou se esquiva das questões metodológicas, mas a questão metodológica é subsumida pela própria análise objetiva da realidade, de modo que se é possível observar em Marx um modus operandi. Do mesmo modo, a questão da política é apresentada em Marx não em suas formas abstratas e genérica, num tratado sobre política, mas no transcurso habitual da realidade objetiva.
119
húngaro não percebe que o “método marxiano, tomado por seus momentos
estruturais, pode ser reconhecido e enunciado como o modo de produção de
concretos de pensamentos a partir da destilação prévia de abstrações razoáveis”
(Chasin, 2009, p. 221).
Chasin sustenta que desde a Crítica de Kreuznach em 1843 até o último
escrito de Marx, a teoria das abstrações apontou seus sinais e, longe de
desaparecer, foi se intensificando em densidade e explicitação. A teoria das
abstrações não é outra coisa senão a sustentação categórica da prioridade
ontológica do objeto, ou ainda, a regência da coisa enquanto tal para todo o
processo do conhecimento. Já em Kreuznach, analisando Feuerbach, Marx
defende que a sensibilidade tem que ser a base de toda a ciência; e que
somente quando esta parte daquela na dupla figura tanto da consciência sensível
quanto da carência sensível, aliás, somente quanto a ciência parte da natureza,
ela é ciência efetiva. A afirmação de Chasin esclarece que
Não importa o transfundo feuerbachiano do excerto, nem mesmo o abafamento do conteúdo que o mesmo acarreta, mas observar que as expressões consciência sensível e carecimento sensível remetem ao conhecimento direto, sem qualquer interstício gnosiológico, de sujeitos e objetos reais, à consciência das coisas e dos homens enquanto entificações sensíveis, forma que prenuncia a tematização posterior da atividade sensível como sujeito e objeto, propugnando, assim, uma cientificidade enraizada e regida pela terrenalidade das coisas e dos homens concretos. (Chasin, 2009, p. 223).
O trecho em destaque de Marx citado por Chasin não significa que Marx
busque um empirismo ou um naturalismo, mas busca a definitiva ruptura com a
especulação hegeliana de conceber o objeto primeiro em seu conceito,
concepção que parte sempre do conceito do objeto como pressuposto da análise
do objeto. Já anunciado por Marx (2003, p. 143) em A sagrada família,
Feuerbach foi o primeiro a realizar a efetiva crítica de Hegel, e em A ideologia
alemã fica clara a posição marxiana de que o que importava era a agudez da
crítica antiespeculativa de Feuerbach – já que as teses de Marx ad Feuerbach
trarão a questão a fundo sobre os limites dessa crítica a Hegel – como se vê:
120
[...] ali, onde termina a especulação, na vida real, começa também, portanto, a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens. As fraseologias sobre a consciência acabam e o saber real tem de tomar o seu lugar. (Marx, 2007, p. 95).
Aqui já há a substituição de sensibilidade e natureza pela mais consistente
fórmula vida real e atividade prática. A resultante disso pode ser exposta através
destes pontos, conforme Chasin (2009, p. 227): (i) o movimento analítico é
esboçado num processo em dois tempos, formados, de uma parte, pelas
abstrações, que resumem e facilitam a classificação das matérias, e de outra
pela exposição real; (ii) a exposição real é uma ordenação, ou seja, uma
articulação dos materiais, e nisto reside a dificuldade da operação cognitiva; e (iii)
as dificuldades são resolvidas tão somente pelo estudo, isto é, pela análise ou
dissecação do próprio objeto, por meio da qual é elucidada sua ordenação ou
lógica própria.
Já se lê na Miséria da Filosofia a crítica de Marx (1976) ao sistema
hegeliano, demonstrando sua severa improdutividade analítica – o que depois é
reafirmado por Marx numa carta a Schweitzer de 24 de janeiro de 1865:
Nessa réplica demonstro, entre outras coisas, o pouco que Proudhon penetrou nos segredos da dialética científica e até que ponto, por outro lado, compartilhava das ilusões da filosofia especulativa, quando, ao invés de considerar as categorias econômicas como expressões teóricas de relações de produção históricas e correspondentes a um determinado nível de desenvolvimento da produção material, as converte, absurdamente, em ideias eternas, preexistentes. (Marx apud Chasin, 2009, p. 230).
A abordagem cognitiva dos objetos coloca em relevo as dificuldades
interpostas no exercício científico pelo complexo da determinação social e
histórica destes mesmos objetos. Já no Prefácio a O capital, Marx (2013) afirma
que não há estrada ou um caminho pré-determinado para a ciência seguir, ou
seja, o caminho é dado e posto pelo próprio objeto, inexistindo uma determinada
metodologia de acesso ao verdadeiro, pois o que está em jogo é o
reconhecimento do objeto específico, que seguirá um caminho que depois de
121
demonstrado não servirá de exemplo senão para comprovação da objetividade
alcançada. E Marx continua, a propósito da exposição da forma do valor:
Porque é mais fácil estudar o corpo desenvolvido do que a célula que o compõe. Além disso, na análise das formas econômicas não podemos nos servir de microscópios nem de reagentes químicos. A força da abstração [abstraktionskraft] deve substituir-se a ambos. (Marx, 2013, p. 78)
A teoria das abstrações pode ser demonstrada como procedimento
analítico engendrado por Marx na exposição da forma do valor, e só tem validade
como caminho comprobatório de chegada ao resultado, dado que cada objeto
guarda a sua forma específica de observação dele próprio. O exemplo adotado
por Chasin (2009, p. 233) é o seguinte: Marx parte da mercadoria, que é uma
abstração razoável da riqueza das sociedades em que se processa o modo de
produção capitalista, sob o qual a riqueza aparece como uma “imensa coleção de
mercadorias”, e por intensificação ontológica dessa categoria simples, são
determinados os dois fatores que a integram, a saber, o valor e o valor de uso.
Enquanto valor de uso tem sua delimitação direta pela propriedade física do
objeto produzido, o valor é a medida fantasmagórica sob a qual se resume um
tempo de produção, ou “materialização de trabalho humano abstrato”, cuja
grandeza se mede pela quantidade impregnada de trabalho socialmente gasto
naquela substância. Nesta dupla concepção de valor está embutida outra
distinção, que por intensificação ontológica se chega ao duplo caráter do
trabalho, o trabalho útil e o trabalho abstrato. Este foi o caminho realizado por
Marx para demonstrar a forma do valor sob a qual sincretiza a gelatina de
trabalho humano, fazendo encontrar a forma equivalente geral, transitada para a
forma do dinheiro. Este é o resultado direto do valor. “Ponto de chegada, nesse
panorama de traços sumários em que, pela articulação ontológica do conjunto
das abstrações presentes, delimitadas” de acordo com os “nexos do próprio
objeto, desponta a decifração da ‘propriedade sobrenatural’ das mercadorias,
pois ‘o valor não traz escrito na testa o que ele é’; hieróglifo social, no entanto,
que por sua exposição real emerge na verdadeira dimensão de sua existência
122
efetiva” como uma “obra comum do mundo das mercadorias” (Chasin, 2009, p.
234).
Tomando por suposto que cada objeto guarda em si a forma de sua
apreensão, cada passo identificado pela teoria das abstrações é um ato de
apreensão de conteúdo. O que torna frustrada qualquer tentativa de estabelecer
o ato de apreensão deste conteúdo, o modus operandi marxiano, como uma
lógica ou dialética entre universal e o particular da qual recai sobre isso um
padrão epistêmico, como tentou Lukács na Estética. Isso porque cada apreensão
de conteúdo não é operada por “um movimento formal ou qualquer tipo de
circularidade ou desdobramento tautológico, mas a cada uma daquelas
determinações emerge um novo aspecto substantivo” do qual nenhuma lógica
das categorias ou “derivação dialética” é “capaz de fazer surgir” (Chasin, 2009, p.
236). Rejeitando o método formal da dialética como substrato operacional em
Marx, Chasin conclui:
De modo que tanto é postiço conferir à investigação marxiana as demarcações de uma associação ou justaposição de momentos históricos e lógicos, quanto é legítimo identificar a imbricação de graus ou níveis de abstração e concreção analíticas, em que o objeto por sua efetividade, sempre histórica, e por sua lógica, reproduzido em sua gênese e necessidade, historicamente engendradas e desenvolvidas. Donde a identificação da dialeticidade como lógica do real, movimento das categorias enquanto formas de existência, que os concretos de pensamento reproduzem. Razão pela qual a dialética só é passível de descobrimento, jamais de aplicação. (Chasin, 2009, p. 236, grifo nosso).
Não é necessário recorrer a outros exemplos, todavia, Chasin ainda
elabora a explicitação de outros dois momentos – da peculiaridade da forma
equivalente e do fetichismo da mercadoria – como exemplos de como o objeto
talha a forma pela qual ele será apreendido, de modo a evidenciar que a
démarché marxiana não é integrada por qualquer elemento exógeno à pura
exposição real do objeto examinado. Note-se que o tratamento marxiano da
análise e demonstração do fetichismo da mercadoria é o mais abrangente no
capítulo inaugural de O capital, mas isso não é aleatoriedade expositiva, antes
disso, essa forma é decidida pelo teor real do objeto, “vertido à forma em que o
123
homem dele se apropria idealmente, ou seja, por meio do concreto de
pensamentos” (Chasin, 2009, p. 243). Ou seja, a amplitude temática no primeiro
capítulo da obra máxima marxiana é resultado direto da forma e da complexidade
material exigida e compreendida na dilucidação do objeto mesmo. Neste
capítulo, Marx elabora o elemento expositivo do mais simples ao mais complexo.
Tomada enquanto tal, como abstração razoável da riqueza do mundo do capital,
a intensificação ontológica do objeto “mercadoria” determina e delimita seus
fatores: valor de uso, valor; o duplo caráter do trabalho; o dinheiro; o fetichismo
da mercadoria como caráter misterioso que retroespelha sobre os homens.
Chasin percebe que expor de ordem inversa à apresentada, esse conjunto de
características não faria sentido, o que nos leva a conclusão que nem o modo de
exposição do objeto ao final do percurso de análise é uma aleatoriedade
qualquer. No exemplo, enquanto a dupla natureza do valor e do trabalho é
independente da abstração do fetiche da mercadoria, a reprodução teórica deste,
pelo contrário, depende por inteiro dos resultados do trabalho das abstrações
anteriormente expostas, bem como da subsequente reintensificação ontológica
destes, de sorte a revelar e a incorporar o novo elemento ao concerto pensado
em elaboração. Ao modo que
a ordem de entrada dos materiais à cena discursiva e os lugares que nela ocupam não são estipulados por algum tipo de legalidade expositiva autônoma, mas pelo estatuto da reprodução ideal, forjado em subsunção ao composto ontológico do complexo estudado. (Chasin, 2009, p. 244).
De modo equivalente, a ordem de apresentação do objeto também não é a
mesma pela qual o pesquisador tracejou seu processo, mas é a ordem pertinente
ao concreto de pensamentos, da integração de cada um dos elementos a serem
apresentados. De tal maneira que existe o modo de apreensão do objeto – pela
teoria das abstrações – e o modo de exposição do objeto. E de nenhuma
maneira tanto o primeiro como o segundo respeitam uma lógica extrínseca ou
podem ser apreendidos ou apresentados por alguma aleatoriedade. É o próprio
objeto e a própria ordenação do concreto pensado que determinam a apreensão
124
e a apresentação do objeto. Isso determina a subordinação da exposição – a sua
reprodução ideal – ao objeto em-si. Em Marx, as categorias,
[...] sendo nas coisas, podem vir a figurar no pensamento, mas é excluída in limine, como fantasia da mera especulação, a possibilidade da existência de algum tipo de categoria ante res. Isso confirma, indiretamente, a inadmissão de qualquer função premonitória do método científico, ou de qualquer idealidade em papel equivalente, na condução ou regulagem da atividade cognitiva. E, não havendo, nem podendo haver caminho cognitivo previamente estabelecido, nem conduto ideal extrassubjetivo a seguir, o ponto de partida do conhecimento só pode ser o próprio objeto. (Chasin, 2009, p. 247-248).
O último escrito de Marx, Glosas marginais ao Tratado de economia
política de Adolf Wagner, remetido por Chasin, confirma a assertiva mencionada.
E após demonstrar que a tentativa de Wagner de determinar a forma geral do
valor foi fracassada exatamente pela sua tentativa de universalizar os conceitos
de Ricardo, Marx expõe de forma lapidar o que Chasin chamou de analítica das
coisas:
De prime abord, eu não parto nunca de “conceitos”, nem portanto, do “conceito de valor”, não tenho, pois, que “dividir” de algum modo esse conceito. Meu ponto de partida é a forma social mais simples que toma o produto do trabalho na sociedade contemporânea, a mercadoria. É a esta que analiso, em primeiro lugar na forma sob a qual ela aparece. Aí constato que ela é, tout d’abord, em sua forma natural, um objeto de uso, em outros termos, valor de uso, e que, em segundo lugar, portadora de um valor de troca, ela é, sob esse aspecto, um “valor de troca”. Prosseguindo essa análise, me dei conta que ela não é mais do que uma “forma fenomênica”, uma representação autônoma do valor contido na mercadoria, é então que passo à análise desse valor. (Marx 1987, p. 415-416).
125
CAPÍTULO 2 GENERIDADE E INDIVIDUALIDADE
2.1 O pôr teleológico: o desenvolvimento da generidade
Aprofundando a temática há pouco debatida sobre as forjas da generidade
humana, deparamo-nos com os Prolegômenos para uma ontologia do ser social;
a obra de Lukács que mais aprofunda a questão do campo de ação dos
indivíduos, na decifração da teleologia e da causalidade; nesta obra, diante do
cenário mundial das possibilidades da emancipação humana, abertas com a
universalização do mercado e com a potencialidade revolucionária, Lukács
vislumbrava a possibilidade da emancipação humana – não foi por outro motivo
que Lukács apresentou o subtítulo para a obra como Questões de princípio para
uma ontologia hoje tornada possível. Marx nunca deixou de apresentar as
perspectivas nas quais a classe operária estava a lutar e quais eram as suas
possibilidades históricas na tomada do controle do rumo da humanidade. Deste
modo, a proposta do redescobrimento de Marx empreendida por Lukács “não
está na tarefa de resgatar questões e problemas da antiga ontologia dedutiva a
priori, e nem de compactuar com o que ele próprio denomina de ontologias da
126
derrelição”, anuncia Fortes, “mas na de realizar uma nova ontologia crítica,
tomando por base o campo de possibilidades aberto pelo pensamento marxiano
e as conquistas advindas do desenvolvimento científico de seu tempo” (Fortes,
2011, p.11). De modo que Lukács se volta contra a filosofia da derrelição de seu
tempo, ou seja, contra a filosofia anti-humanista que caracteriza a fase
gnosiológica do pensamento ocidental do século XX, apresentada como um
mundo sem saída ou ainda, no melhor dos casos, que a história é a repetição ad
perpetum da sociabilidade do capital – muitas vezes prolongando
anacronicamente o modo de produção do capital inclusive para o passado
remoto –; a ontologia do ser social, amplamente alicerçada na filosofia marxiana,
recoloca o problema filosófico essencial do ser social e do destino da
humanidade, especialmente a partir de um momento em que o desenvolvimento
das forças do trabalho chega a facultar efetivamente a possibilidade de
suprassunção desta ordem sociometabólica.
Ao mesmo tempo que Lukács impõe a necessidade da retomada do
marxismo para a superação dos entraves contemporâneos vividos pela
humanidade, ele percebe que esta retomada não poderia advir senão através do
monumental edifício teórico do próprio Marx, o que significa o despojar em
definitivo das suposições exógenas a Marx, de um corte epistemológico de talhe
althusseriano, ou ainda de um determinismo economicista característico da
Segunda Internacional e de boa parte do marxismo da primeira metade do século
passado. A tese do materialismo histórico e dialético cai por terra na análise
lukacsiana, que vai estabelecer pela análise textual que todos os enunciados de
Marx, em última instância, são sempre enunciados sobre um tipo de ser, sendo,
portanto, afirmações ontológicas.
Se, por um lado, os interlocutores da ontologia do ser social em Lukács
aparecem, desde o início, em Hegel e Hartmann; por outro, em toda a obra
madura do filósofo húngaro, é Marx quem dá a tônica, não sendo criticado em
nenhum momento – diferentemente do que ocorre com a dialética de Hegel na
obra de Lukács, ou mesmo com a ontologia de Hartmann, da qual se aproveita
apenas a sua ontologia naturalista. Neste ponto, Ronaldo Vielmi Fortes (2014),
num ensaio convincente, rejeita a exacerbação da influência de Hartmann em
127
Lukács, realizada por Nicolas Tertulian (2003) em seu artigo sobre a tal aliança
fecunda.
Lukács foi o primeiro a perceber que a questão metodológica em Marx se
encontra subsumida à questão ontológica; de modo que a elucidação dos
princípios ontológicos fundamentais é o elemento que dita a análise marxiana,
não tendo a questão do método um estatuto completamente autônomo em Marx,
sendo determinado pela compreensão do modus operandi no conjunto da obra
marxiana.
Poder-se-ia argumentar que a ênfase na totalidade como ponto de partida da análise, assim como a própria noção de processo, são temas já desenvolvidos pelo pensamento de Hegel, por esse motivo pesaria sobre o pensador húngaro a herança da sua filosofia hegeliana. Porém este não é o caso. No capítulo da Ontologia dedicado à análise do pensamento hegeliano existem advertências enfáticas sobre os limites da concepção de totalidade por ele desenvolvida. Hegel sucumbiu na efetivação de seu sistema filosófico ao ordenamento prevalentemente lógico das categorias em detrimento das determinações ontológicas. A filosofia hegeliana lida com categorias e determinações ontológicas reais, porém sob a égide da articulação sistemático-filosófica eminentemente lógica, o que faz com que seu pensamento se caracterize pela presença de uma “verdadeira e uma falsa ontologia”. Afirmar isto não é se render à acusação simplista segundo a qual Hegel incorre no erro de estabelecer uma lógica não correspondente aos fatos da realidade. Diferentemente disso, Lukács denuncia o papel de centro ordenador assumido pela lógica no interior do sistema filosófico hegeliano, aspecto que leva ao insucesso sua tentativa de “tornar compreensíveis as categorias da lógica como simultaneamente ontológicas e lógicas em seu automovimento partindo do simples ser não objetivo, desprovido de predicados, até o sistema perfeito do mundo como um todo nesse seu processo”. (Fortes, 2011, p. 30).
Quando analisamos os Prolegômenos para uma ontologia do ser social
(Lukács, 2010), devemos levar em consideração que esta é uma obra inacabada,
do mesmo modo como a Ontologia também é, redigida como trabalho
introdutório da grande ética, texto jamais desenvolvido por Lukács. A ontologia
lukacsiana teve como objetivo direto a realização da tentativa de basear o
pensamento filosófico do mundo sobre o ser efetivamente existente;
especialmente porque o predomínio filosófico do século XX havia pairado sobre a
128
teoria do conhecimento e sobre a lógica. Em janeiro de 1971, Lukács redige uma
carta a Tertulian mencionando que o texto ainda era um esboço (Lukács, 2010,
p. 383), e que necessitava de uma revisão e de uma eventual reelaboração –
contudo, isso não ocorreu devido à doença que o levou, cinco meses depois.
Não foi sem motivos, então, que Tertulian denominou os Prolegômenos como o
testamento filosófico lukacsiano.
Justamente pela intenção de Lukács da apreensão do ser social, o ponto
de partida de sua análise não pôde ignorar a natureza classificatória dos três
grandes tipos de ser: o ser inorgânico, o ser orgânico e o ser social. Porque o
fundamento invariável do ser social é que ele se funda e se desenvolve a partir
de uma ligação inextrincável com sua natureza biológica, da qual este jamais
poderá se despojar, apesar de sempre dar passos largos em direção a um recuo
dessas barreiras naturais ao longo de um processo de constituição social
histórico e irreversível, tal como se vê na seção anterior. Herdeiro de uma
bifurcação histórica no processo de evolução do ser orgânico, ocorrido ainda por
meio de um processo casual não-teleológico, o ser social fundamenta sua práxis
na correlação direta entre sua forma de ser e a esfera orgânica da qual é
adjacente.
É a partir desta percepção de que o homem tem uma natureza orgânica
que guarda elementos insusceptíveis de despojamento que Lukács (2010, p. 42)
percebe a falsa ideia de existência de uma clivagem do ser social em humano,
de um lado, e natural de outro. De igual modo, a clivagem entre essência
humana espiritual e corporal é também uma constituição dualista religiosa sem
representação efetiva na realidade. Não é incomum que a psicologia trate o
homem como um ser meramente biológico e contraponha as determinações
sociais a este elemento natural, estabelecendo pseudo-critérios de natureza e
anti-natureza humana. E é justamente neste ponto que Lukács apresenta o fator
ontológico fundamental do ser: todo ser é histórico e todo processo histórico do
ser é absolutamente irreversível.
Lukács nos fornece uma explicação precisa do trabalho como protoforma
do pôr teleológico na segunda parte de sua Ontologia, baseando-se diretamente
no conjunto dos escritos marxianos, especialmente em O capital. Ainda que
129
Hegel já vislumbrasse no trabalho a atividade teleológica, somente foi possível a
partir de Marx a verdadeira identificação do trabalho como a forma originária e
exclusiva da formação do ser social, vê Lukács. O trabalho, portanto, não é uma
das muitas formas fenomênicas da teleologia em geral, mas o ponto no qual a
teleologia se origina. Ainda que Aristóteles e Hegel tenham se detido à
verificação de tal ato finalístico na atividade humana, suas análises tentaram
interpretar de igual modo o mundo orgânico geral (Lukács, 2013, p. 51), e viram-
se obrigados a imaginar a presença de um sujeito consciente na natureza. Hegel
estende a atividade finalística do ser social para além da esfera do trabalho, e, ao
executar tal raciocínio, apresenta a objetividade natural precedente também
como teleológica, numa incessante busca de uma finalidade na natureza
orgânica, o sujeito-objeto idêntico transfigurado no espírito autorrealizador; é
verdade, vale notar, que Aristóteles mantinha seu pensamento profundamente
balizado por um pseudo-finalismo irresistível atuante em todas as esferas, da
natureza às ações humanas, numa espécie de teodiceia teleológica, ou numa
consciência que põe uma finalidade na natureza. A história mostra que a filosofia
buscou resolver a questão da teleologia e causalidade desde os seus primórdios.
A filosofia teológica foi obrigada a proclamar a superioridade da teleologia sobre
a causalidade para poder operar intelectualmente uma harmonia entre o suposto
deus e o universo com o conjunto do mundo natural e humano – a prioridade do
criador em relação à criatura guardava em si a prioridade do pôr teleológico
sobre a causalidade. Somente com Marx, reconhece Lukács (2013, p. 52), a
teleologia fora reconhecida como categoria operante no trabalho, demonstrando
a coexistência concreta entre teleologia e causalidade.
A natureza sempre conheceu processos causais, até o momento em que o
homem surge, ainda de modo causal, e executa de modo teleológico a atividade
do trabalho, alterando todo o princípio causal natural e possibilitando pela
primeira vez e irreversivelmente a atividade como pôr teleológico, como ato
finalístico consciente. O trabalho é, portanto, o responsável por introduzir no ser
“a unitária inter-relação, dualisticamente fundada, entre teleologia e causalidade”
(Lukács, 2010, p. 44). Por este motivo, o trabalho é o fundamento ontológico
originário de toda práxis social. As ações humanas originadas por um longo
130
processo irreversível não faz com que o homem, não obstante, consiga controlar
conscientemente todas as consequências de sua atividade teleológica, isto é, o
homem não toma suas decisões com base em conhecimento ou previsão de
todos os elementos envolvidos no processo teleológico, de modo que o resultado
de seu pôr teleológico leva a resultados não totalmente controlados por estas
ações; portanto, são causais. Este é um ponto completamente original na
demonstração da ontologia por Lukács. Os momentos controlados vão,
irreversivelmente, ampliando-se. Mas o conjunto dos pores teleológicos leva a
um resultado que não é totalmente controlado por estes mesmos pores por
ocasião da infinitude de elementos circunstanciais constituintes neste processo
teleológico, que acabam por levar a resultados causais.
Ipso facto, o procedimento de apreensão da realidade é também um
elemento processual, e a determinação social do pensamento – que é histórica e
ideologicamente determinada pelas ações dos indivíduos – é o elemento da
relatividade histórica. A apreensão mais aproximada de uma totalidade objetiva
depende de inúmeros elementos incontroláveis pelo ser social e de outra gama
de elementos controláveis e ajustáveis às necessidades da explicação científica
de cada momento histórico; Lukács recorre diversas vezes à demonstração de
como as explicações ptolomaicas serviram precisamente para uma realidade
histórica específica e deram conta das necessidades postas naquele momento,
até que a teoria fora suplantada por uma teoria que abordava mais elementos da
realidade e se aproximava ainda mais da totalidade concreta. Diz Lukács,
Dessa maneira, como sempre enfatizou o marxismo, a práxis, especialmente o metabolismo da sociedade com a natureza, se revela como o critério da teoria. Todavia, para aplicar sempre corretamente essa concepção, correta no sentido histórico, nunca se pode ignorar o elemento da relatividade histórica. Exatamente porque também o desenvolvimento social da humanidade é um processo irreversível, esse critério só pode exigir uma validade geral processual, uma verdade só respectivamente rebus sic stantibus. A totalidade jamais inteiramente cognoscível das respectivas determinações do ser torna socialmente possíveis e necessários tanto sua superação como um longo funcionamento imperturbado de teorias incompletas, que contenham apenas verdades parciais. (Lukács, 2010, p. 46).
131
A diferença existente entre a adaptação passiva de um organismo
biológico não-social e a adaptação do ser social é que o primeiro processa sua
adaptação de modo completamente causal e espontâneo. O ser social, por sua
vez, interage com o meio de modo teleológico e sua adaptação sofre
intervenções finalísticas conscientes, ainda que o resultado final destas
intervenções não seja completamente finalístico, mas mediado pela causalidade
das múltiplas interações e pela impossibilidade de se controlar a totalidade das
variáveis.
O processo que este tipo de pôr desencadeia permanece sempre causal em sua essência. Em todos os atos teleológicos do metabolismo da sociedade com a natureza, desencadeiam legalidades naturais existentes independentemente deles, ainda que em muitos casos, que com o desenvolvimento vão se multiplicando, trata-se de descobertas na preparação de tais atos; estes podem impor-lhes uma nova forma de objetividade que ainda não existia na natureza (pensemos novamente na roda), mas isso tudo não muda em nada o fato básico de que pelo pôr teleológico se desencadeiam séries causais; pois, conexões, processos teleológicos próprios etc. não existem em si de modo algum. (Lukács, 2010, p. 52).
Do mesmo modo como a apresentação até então genial de Kant acerca do
télos sem escopo das interações puramente orgânicas são obstruídas por sua
fracassada tentativa de adaptar a realidade a uma teoria geral do conhecimento
que se encaixaria ao crivo dos juízos sintéticos a priori – ainda some-se à teoria
gnosiológica kantiana o ineliminável fator da incognoscibilidade da coisa-em-si,
que apesar de reconhecer a possibilidade da existência real dos fenômenos, o
que foi um avanço em termos filosóficos em relação à filosofia medieval, ainda
peca com a suposta impossibilidade de apreensão ontológica – a teleologia
hegeliana é obstaculizada pelo fator do dever-ser-para-si, transformado-se em
uma teleologia teológica, na qual a co-atuação entre o mecânico e o químico, por
si só, geraria um elemento teleológico. Apesar do quimismo e do mecanismo
serem fatores naturais importantes no processo de constituição do ser, eles por
si só não geram espontaneamente uma teleologia, diz Lukács.
Na medida em que Hegel não parte aqui de pores teleológicos, mas dos próprios processos naturais, ele ignora, primeiro, que a coexistência do mecânico e do químico é fator natural importante,
132
mas não uma etapa de desenvolvimento para a teleologia; pertence apenas à objetividade geral da natureza inorgânica, na qual forma um elemento processual importante, sem ter em si nada a ver com a teleologia. Portanto, os processos teleológicos, segundo essa concepção, não deveriam aparecer em uma fase concreta determinada do processo total do ser (do trabalho), mas seriam momentos essenciais de muitos fenômenos da natureza, com o que toda a construção dialética-logicizada de Hegel teria de superar a si mesma. (Lukács, 2010, p. 56-57).
Simultaneamente à exigência marxiana, imposta desde a sua juventude,
da validade universal da historicidade, o centro dinâmico da apreensão da
objetividade deve buscar não um ser a-histórico ou despojado de determinações,
mas o ser-precisamente-assim [Geradesosein]. O conteúdo e a forma de cada
ente só podem ser concebidos através daquilo em que ele se tornou no curso de
seu desenvolvimento histórico; Marx especificou que as categorias são, deste
modo, formas do ser, determinações da existência.
O contínuo recuo das barreiras naturais no desenvolvimento humano
ocorre no gênero humano de modo peculiar e é um traço determinante na
realização da sociabilidade; não existe paralelo no reino animal, nada há que se
aproxime deste processo. E este procedimento que talha a generidade humana
ocorre num duplo processo de causalidade e teleologia, cuja origem fora
introduzida pela primeira práxis, isto é, o trabalho. Só a partir do momento em
que o homem trabalha é que ele se torna realmente homem. Embora o processo
natural que tenha potencializado a possibilidade da execução do trabalho fora
causal, o resultado disso gerou a possibilidade do homem de executar atividades
agora teleológicas, modificando o rumo do próprio gênero humano através de
cada ente. Lukács, ao analisar essa percepção marxiana, traz ao mesmo tempo
a crítica de Marx contra a lógica de Hegel, demonstrando como os objetos ideais
são mediados por uma lógica silogística na filosofia hegeliana, quando, na
realidade, deveriam ser tratados como objetos cuja lógica específica é emanada
diretamente dele. Diz Lukács, tratando deste estudo: “que o universal e o singular
não sejam contraposições lógicas no sentido da lógica hegeliana, mas
expressões, no pensamento, de determinações do ser obrigadas a coexistir,
parece já uma convicção inicial de Marx” (Lukács, 2010, p. 77).
133
Na segunda seção dos seus Prolegômenos da Ontologia, Lukács aborda a
correção marxiana sobre o materialismo de Feuerbach. Acolhida a crítica de
Feuerbach contra o idealismo da filosofia clássica alemã, especialmente de
Hegel, Marx ao mesmo tempo amplia e suplanta a teoria feuerbachiana. O ser
orgânico aparece como uma transformação radical em relação ao ser inorgânico,
cuja generidade – ainda muda – é a sua marca ontológica fundante. Marx chama
esta generidade de muda, porque apesar dos seres já estabelecerem uma
relação direta com o universo em que vivem, esta ação é ainda completamente
causal e a sua comunicação não é permeada por um télos. Todo o organismo se
reproduzirá genericamente, e todos os exemplares do gênero guardam em si o
gênero total, pois a sua comunicação gera um campo de ação totalmente
limitado à ordem de sua reprodução biológica. No ser humano, a partir de uma
comunicação de cada ente com seu gênero, o surgimento da sociabilidade a
partir da práxis – a execução da atividade teleológica – gera uma transmutação
no gênero que é ao mesmo tempo uma ruptura e uma continuidade no processo
biológico – de modo que também é irreversível. A sua comunicação entre
exemplar e gênero deixa de ser passiva e esta sua reprodução passa a ser
mediada por ações transformadoras que são determinadas por uma
intencionalidade. O ser humano jamais cessa de ser, contudo, um ser biológico e
também ligado ao reino inorgânico; mas esta sua característica biológica
inextrincável é, cada vez mais, mediada por determinações do ser social. E
somente na generidade não mais muda é que a singularidade de cada exemplar
do gênero pode vir a se tornar a individualidade. A singularidade é uma categoria
fundamental de todo ser, tal como a universalidade; não existe ser que não tenha
sua singularidade como uma existência única em relação ao seu gênero. No
entanto, essa tendência paulatina de transformação do singular em indivíduo só
pode ocorrer no gênero humano, diz Lukács (2010, p. 80) baseando-se na crítica
marxiana a Feuerbach. A singularidade aparece, nos seres biológicos em geral,
como um mero fato natural, porque ainda a sua relação sujeito-objeto é
inexistente.
Lembra Lukács que Leibniz demonstrou essa característica de que cada
gênero tem o seu exemplar único singular, com o exemplo das folhas de uma
134
árvore, cada uma com sua característica única, que jamais se repete na
natureza. Leibniz poderia ter ampliado esta relação às pedras de cascalho de um
parque, provando a existência disso também na natureza inorgânica, diz Lukács
(2010, p. 81). No entanto, o desenvolvimento da individualidade é um novo
processo que rompe com esta relação meramente natural que acontece na
natureza orgânica – ainda que na natureza orgânica já aconteça um processo
inteiramente novo em relação à natureza inorgânica. O processo de
individualidade é, assim, um conjunto de pores teleológicos da práxis, com todas
as suas circunstâncias e variáveis, mas que não tem em absoluto um caráter de
processo teleológico. E num processo longo, aos poucos a sociabilidade vai
sendo construída, e os campos de ação vão sendo ampliados cada vez mais
pelas próprias ações dos indivíduos, ações originadas por motivações sociais
primárias.
Assim, devido à práxis, o homem que continua a se desenvolver em uma multilateralidade cada vez mais variada se encontra defronte à sociedade, ao seu metabolismo com a natureza, à sua formação de órgãos para desenvolvimento próprio etc., com o que não apenas cresce a corporificação objetiva da generidade, tornando-se cada vez mais variada em muitos aspectos, mas ao mesmo tempo coloca múltiplas e diferenciadas exigências ao indivíduo humano nela praticamente ativo. Esse processo que se desenrola, em constante interação entre objetividade e subjetividade, faz surgir as bases ontológicas, das quais a singularidade do ser humano, ainda em muitos aspectos meramente natural, pode adquirir aos poucos caráter de individualidade. (Lukács, 2010, p. 82).
Deste modo, surge a relação de sujeito-objeto na sociabilidade:
[...] o surgimento do sujeito e do objeto na práxis social pode trazer à existência o complexo de problemas da generidade-não-mais-muda em seu modo bem próprio de ser, o que sucede da seguinte maneira: para o homem, em sua práxis, não só as coisas [Gegenstände] concretas, em cuja existência e elaboração está baseado o metabolismo da sociedade com a natureza, convertem-se em objetos [Objekten] com que ele passa a se defrontar como sujeito da práxis social, mas também as formas de sociabilidade daí resultantes fazem surgir, em última análise, como destacou Marx,a sua própria generidade como conjunto das relações sociais. (Lukács, 2010, p. 82).
135
Enquanto nos animais – deixa claro Marx (2007) em A ideologia alemã –
não existe relação de uns com os outros do ponto de vista da consciência, a
relação humana possui um salto qualitativamente grande em relação aos
animais: a linguagem consciente. Obviamente, a linguagem é um salto que é
derivado das relações mais básicas de instintos de sobrevivência que existe nos
animais em geral – como a ave que avista seu predador e emite sons e sinais
evidentes aos outros exemplares do seu gênero –, mas esta se desenvolve a
partir disso e se torna o elemento primordial e exclusivo da comunicação
humana. Aquela generidade estranha típica dos seres biológicos vai sendo
processualmente superada para uma generidade objetiva a partir do
reconhecimento que cada exemplar do gênero tem de si mesmo e de seu
gênero. Neste processo, a relação entre gênero e o exemplar-singular não é
anulada, mas modificada fundamentalmente, na altura em que o gênero se torna
uma totalidade articulada, internamente diferenciada, cuja própria reprodução
pressupõe certas atividades dos indivíduos que a eles pertencem, mas de modo
que, de um lado, proporcione espaço de manobra para os pores teleológicos dos
seres singulares, e, de outro, que também seja determinado por esses atos e
impulsos individuais. Essa mudança estrutural é provocada, pois, pelo conjunto
dos pores teleológicos na relação sujeito-objeto ontologicamente nova que se
forma, alterando, por conseguinte, a sua generidade.
Observemos esta passagem esclarecedora de Lukács:
Desde Darwin (ou mesmo, desde Geoffroy de Saint-Hilaire, Goethe e Lamarck) temos que conceber também a generidade dos seres vivos como um processo essencialmente histórico. Este reproduz, porém, em um nível mais geral, o fato básico ontológico da natureza orgânica: o devir e o passar dos organismos. De maneira ontologicamente semelhante, também existe um devir e um passar para os gêneros. Esse processo pode conduzir à extinção de um antigo e ao florescer de um novo, mas sempre – não importa por meio de quantas formas de transição – traz apenas um devir e um passar de gêneros num sentido biológico. Para a humanidade, o processo do desenvolvimento [...] repousa, em contrapartida, precisamente sobre a transformação das formas essenciais ontológicas do gênero humano, que nesse processo se mantém como tal e ao mesmo tempo se desenvolve para um nível superior. As forças motrizes de sua última instância dessa tendência a um nível de desenvolvimento superior são aqui
136
também a economia, o modo de reprodução social do ser social. (Lukács, 2010, p. 88).
Ao mesmo tempo que os pores teleológicos humanos vão se
desenvolvendo e ampliando o campo de ação, conforme fica evidente na citação
de Lukács acima, o próprio pressuposto social – a economia – é também um
produto do homem em sua práxis. E assim é um grande acerto a frase de Marx,
contida nas linhas iniciais de seu Dezoito brumário, de que os homens fazem a
sua própria história, ainda que não em circunstâncias por eles diretamente
escolhidas. Doravante, a própria generidade humana não é capaz de se
desenvolver sem que os indivíduos tomem posições conscientes e práticas
quanto aos problemas nela contidos.
A divisão do trabalho leva a conclusão de Lukács de que o próprio gênero,
desde seu início de transmutação, não pode agir meramente unitariamente. Ele
tem que agir coletivamente. O modo como se processa a primeira divisão social
do trabalho já é uma característica inteiramente nova em relação a como se
processa a reprodução biológica no mundo animal: enquanto as atividades
humanas e sua divisão social do trabalho já são elementos típicos da generidade
não mais muda; nos animais, a execução das tarefas de reprodução de seu
gênero dependem de funções biológicas previamente estabelecidas.
Quanto mais longe das barreiras naturais uma sociedade está em relação
ao ser biológico, mais se exigirá de ação e de campos de ação dos exemplares
de seu gênero, e esta é a formação da individualidade.
Nesse momento, quando a individualidade é formada, o campo de ação
dos indivíduos é ampliado e as decisões que estes possam tomar dependem de
um número muito grande de elementos de mediação, contudo, são tomadas a
partir de uma determinação de valor. Entretanto, há uma escala de mediações
que vai desde as transformações sociais mais relevantes a grupo social inteiro
àquelas que nem são realmente percebidas. Os indivíduos, na maior parte das
vezes, não têm – nem podem ter – dimensão exata dos acontecimentos em sua
datidade, e essas decisões são sempre intrincadas e conectadas, desde as mais
simples às mais complexas. O que pode parecer insignificante em termos de
decisão para o gênero humano, pode, por um lado, ser vitalmente decisivo para o
137
indivíduo singular, e, por outro lado, este mesmo indivíduo pode passar
inadvertidamente por encruzilhadas objetivamente bastante significativas para o
gênero humano. A valoração, neste sentido, nunca é totalmente um ato individual
ou mesmo um ato aleatório entre os exemplares do gênero. No geral, tais
determinações são provocadas pelo ser econômico. Lukács descreve este
processo do seguinte modo:
[...] o gênero, que determina os homens singulares e se constrói sobre sua existência e práxis, não é simplesmente um processo de diferenciações sempre mais acentuadas e por isso criador de diferenciações sempre novas, mas é – a partir de certa fase de desenvolvimento –, por sua essência ontológica, um resultado de forças em luta recíproca que são colocadas em movimento socialmente: um processo de lutas de classes na história do ser social. Portanto, o homem singular que busca reproduzir a si mesmo socialmente pelas decisões alternativas de sua práxis precisa, na maioria esmagadora dos casos – não importa com quanto de consciência –, assumir posição sobre como imagina o presente e o futuro da sociedade na qual, como ele a deseja enquanto ser, sobre qual direção do processo corresponde a suas ideias sobre o curso favorável de sua própria vida e da de seus semelhantes. (Lukács, 2010, p. 99).
As decisões dos indivíduos não somente está aumentada em termos de
alternativas possíveis com o desenvolvimento da sociabilidade, mas estas
alternativas e decisões são tomadas através de um processo de colisão de
forças antagônicas. E essas decisões emergem de contradições práticas que
põem em movimento a própria dinâmica social em questão; ainda é importante
mencionar que tais decisões influenciam seu desfecho, apesar de nunca ser a
ação individual (as variáveis são múltiplas) que dará o resultado da práxis social.
Há aqui uma conexão indissolúvel entre finalismo e causalidade, uma vez que as
ações humanas são sempre atos resultantes de pores teleológicos individuais,
mas devido ao número enorme de variáveis, o resultado nunca é exatamente
igual ao intencionado primitivamente, e é sempre, portanto, causal.
A questão primordial em Lukács é a própria separação entre a vida
orgânica e a vida social: enquanto a primeira é dominada pela causalidade – e
não por uma teleologia teológica ou metafísica, de qualquer parte –, a segunda é
constituída através dos atos finalísticos dos indivíduos. E estes atos finalísticos
138
são sempre determinados, em maior ou menor grau, pelo valor. Portanto, a
valoração é irredutível desde que a sociabilidade surge. A este respeito, Nicolas
Tertulian, em seu posfácio dos Prolegômenos da Ontologia de Lukács, tem uma
conclusão muito precisa:
A diferenciação entre os diversos tipos de pôr teleológico funda-se, em última instância, na distinção entre as ações realizadas sob o imperativo da coação (especialmente econômica) e aquelas que gozam de uma margem maior de escolha e de decisão livre. Chegamos assim a um ponto crucial da demonstração lukacsiana: o modo como o autor da Ontologia do ser social concebe a relação entre teleologia e causalidade no interior da vida social. A tese de fundo é que os processos sociais são postos em movimento exclusivamente através dos atos teleológicos dos indivíduos, mas a totalização desses atos numa resultante final tem um caráter eminentemente casual, privado de qualquer caráter finalístico. A tese pareceu de tal modo paradoxal, ou tão difícil de ser aceita, que os primeiros leitores do manuscrito da Ontologia do ser social (Ferenc Fehér, Agnes Heller, György Markus, Mihály Vajda) concluíram que no texto de Lukács coexistiam duas ontologias divergentes e incompatíveis entre si: uma dominada pelo conceito de necessidade, ainda tributária do marxismo tradicional, e outra cujo centro de gravidade era a autoemancipação do homem e, portanto, de caráter finalístico. (Tertulian, 2010, p. 396).
O que de fato Lukács percebe – que não é diferente da composição
marxiana – é que o resultado das ações finalísticas dos indivíduos nunca é
inteiramente o mesmo em relação a estas intenções, pois o resultado das ações
de cada exemplar do gênero interfere no resultado do outro, modificando o
desfecho das ações e modificando o próprio gênero em uma rede causal. Ainda
que o resultado do conjunto dos pores teleológicos não seja finalístico, mas
causal, o resultado causal nunca é completamente diverso da soma do conjunto
destes mesmos pores teleológicos, ainda que seja permeados por uma rede de
variáveis incontrolável do ponto de vista do exemplar do gênero. E com isso,
Lukács não nega a existência de um campo de ação dos indivíduos; ao contrário,
Lukács afirma plenamente a eficácia imediata primária dos fatores subjetivos da
dinâmica humana. Diz:
De fato, sem reconhecer esse caráter ontológico na imediatidade da vida dos indivíduos, estes não poderiam se tornar individualidades, mas apenas produtos mecânicos do
139
desenvolvimento social. E, com isso, todos os traços específicos do ser social, que o distinguem de qualquer outro ser, seriam outra vez idealmente eliminados. Uma ontologia do ser social deve, portanto, se não quiser falsear os nexos ontológicos, tentar apreender exatamente seus traços específicos em seu originário ser-propriamente-assim. E para o ser social é profunda e decisivamente característico que todos os processos dinâmicos dos complexos da práxis humana, só nele constituídos e só nele possíveis, sejam quanto à sua gênese fundados no respectivo modo de desenvolvimento da sociedade, em sua economia, e que sejam por ela determinados até em suas características específicas; em sua dinâmica imediata, ao contrário, podem reclamar para si uma muito ampla vida própria, um desdobramento dinâmico próprio, tanto em termos formais como em termos de conteúdo. (Lukács, 2010, p. 100).
Portanto, fica claro que, para Lukács, a individualidade humana não pode
ser colocada como uma característica biológica inata do ser humano, mas como
um desenvolvimento de um processo longo de sociabilização da vida social a
partir do surgimento da práxis, a execução teleológica do trabalho. O campo de
ação dos indivíduos singulares, resultado da generidade não mais muda,
perpassa duas redes causais ligadas – mas que aparentemente estão separadas
no campo da imediaticidade. Aquelas ações mais básicas dos indivíduos na
reprodução do seu gênero e aquelas mais elevadas, que nega ou afirma a
própria condição de sociabilidade em que ele está posto. Do ponto de vista da
ação dos indivíduos, há aquelas ações que desfrutam de uma liberdade mais
direta, e outras cujo limite de ação é mediado pelos valores. Por este motivo, há
vários níveis da realização da generidade, que acabam por se manifestar através
do enraizamento dos valores nas ações da personalidade dos indivíduos
singulares.
As decisões teleológicas dos indivíduos só podem ser postas em
movimento por séries causais, a tal ponto que, com frequência “surge na
realidade alguma coisa diferente daquela que foi teleologicamente posta”
(Lukács, 2010, p. 114), fazendo com que as decisões dos indivíduos
desencadeiem uma série causal – no entanto, não completamente incontrolável.
A generidade, deste modo, vai se tornando cada vez mais complexa e de modo
gradual possibilita cada vez mais um campo de ação dos indivíduos singulares
140
mediado por valores. Deste modo, Lukács demonstra o processo da formação da
generidade não mais muda com um caractere historicamente irreversível:
Aqui se mostra um novo traço essencial da generidade não-mais-muda frente àquela muda. Esta última está fundada biologicamente, por isso age imediatamente, sem necessidade de uma consciência mediadora. A generidade humana supera desde o início essa imediatidade, por isso necessita sempre de atos mediadores conscientes, para em geral poder funcionar. Essa separação do novo ser da objetividade natural se apresenta desde o início. Mesmo o mais insignificante instrumento, produto etc. do trabalho, desde logo possui um ser essencialmente social. De tal modo que, não importa por quais motivos, estes, ao perderem sua função, retornam à mera naturalidade. No próprio homem, o salto – mediado pelo trabalho e pela linguagem – para além da generidade muda (apenas biológica) não é mais reversível. (Lukács, 2010, p. 115).
Baseado nos escritos marxianos A sagrada família e Teses ad Feuerbach,
Lukács (2010, p. 121) rejeita as antigas ontologias metafísicas e as pretensões
ontológicas de que a individualidade tenha uma originalidade e um papel
determinantes nos fundamentos da vida social, comprovando, com isto, que só
uma fase particular do processo de desenvolvimento da humanidade pôde
produzir esse desenvolvimento da singularidade para a individualidade, e que
esta é um resultado específico causal do processo de transformação do conjunto
dos fundamentos da humanidade.
A terceira grande seção dos Prolegômenos é iniciada por Lukács a partir
da exposição das possibilidades de apreensão do ser, chegando à conclusão da
historicidade e da irreversibilidade de todo o ser – é também nesta seção que
Lukács se dedica a demonstrar os limites do pensamento de Engels. Aquilo que
J. Chasin (2009) chamou de presença histórica do objeto na determinação do
estatuto ontológico marxiano, pode ser observado em Lukács (2010, p. 130), que
confirma as dificuldades de apreensão da realidade em cada momento histórico
distinto, demonstrando como o conhecimento é um resultado parcial da
apreensão do objeto em constante processo histórico de maturação. A forma
como os homens percebem os objetos no mundo como coisas diante deles – e
ainda a eles mesmos como sujeitos e objetos deste mundo – tem sua raiz na
imediatidade: as explicações míticas da existência da natureza e do homem
141
como criatura de um ser semelhante e sobrenatural que executou a atividade
criadora tem sua base nas próprias ações do trabalho, e na medida em que as
sociedades se tornam mais complexas, mais complexas também são suas
explicações teológicas da formação e da criação do mundo.
Entretanto, Lukács peca ao atribuir a Marx elementos de sua ontologia
ainda em sua tese doutoral (Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito
e Epicuro) que apenas aparecerão no itinerário marxiano após 1844 e suas
incursões contra a filosofia hegeliana. A análise dos textos de juventude efetuada
por Chasin (2009) demonstra tanto um padrão analítico de Marx ainda envolvido
com a sua formação hegeliana de esquerda – e, portanto, ainda um liberal radical
que percebia na política o elemento inextrincável do ser social –, como a radical
influência de Feuerbach neste processo de ruptura, percebendo inclusive a
filosofia da autoconsciencialidade existente em Epicuro. Alguns elementos, diz
Lukács (2010, p. 134), da própria ontologia marxiana já estão presentes em
germe no seu texto de juventude em questão. E este princípio marxiano da
objetividade, segundo Lukács (2010, p. 135), marca em definitivo um elemento
de recusa da incognoscibilidade da coisa-em-si kantiana, ao mesmo tempo que
declina o princípio hegeliano da estrutura do ser com o ser abstrato privado de
determinações. Lukács percebe no jovem Marx um traço que sempre esteve
presente e que é a base da ontologia do ser social: a característica
eminentemente histórica de todo ser. Tal característica é uma novidade frente ao
conjunto da epistemologia do século XIX, inclusive em relação a Dilthey e a
Rickert, cujas teorias da história guardavam um elemento anti-histórico do ser,
“uma acentuada concepção antiprocessual da natureza e da ciência natural”
(Lukács, 2010, p. 139), justamente pela história ser apresentada, para estes
autores, como uma expressão meramente individual do irrepetível, portanto,
“uma forma cultural cuja essência consiste precisamente na oposição às leis
universais baseadas numa constituição anti-histórica da natureza e da ciência
natural” (idem). E, complementa:
O desenvolvimento do saber humano chegou, assim, a apreender no grande pensamento da juventude de Marx, a história como princípio fundamental de todo ser, no “de onde?” de sua gênese, no “o quê” e “como” de seu ser presente, e nas tendências de seu
142
desenvolvimento ulterior, ou seja, em suas perspectivas. (Lukács, 2010, p. 150).
Para Lukács, a herança hegeliana, nesse sentido, no marxismo em geral,
fez com que esse princípio fundador central do modus operandi marxiano não
tenha tido o apreço adequado. E continua:
Hegel foi o único filósofo antes de Marx no qual – especialmente na Fenomenologia, em que Engels vê, com razão, “um paralelo da embriologia e paleontologia do espírito” – os novos problemas da compreensão de mundo, principalmente a significação primária da processualidade histórica, da complexidade das formas da concretude, se expressaram com clareza. Mesmo se numa forma idealista muitas vezes exagerada, em que sempre se repete a tentativa de tornar as categorias lógicas da história da filosofia, igualmente transmitidas na prática, fundamentos espirituais da nova visão de mundo. Marx que, correspondendo às circunstâncias da época de sua juventude, partiu das considerações metodológicas de Hegel vigentes à época já em seus primeiros escritos, critica, como vimos, a predominância do momento lógico e, corretamente, vê nisso uma violação intelectual, niveladora, estática, do ser. Mais tarde, em suas importantes obras filosóficas da juventude, ele se opõe sempre mais energicamente às recém-descobertas categorias ontológicas às abstrações de Hegel. (Lukács, 2010, p. 150-151).
Remetendo-se às interpretações gnosiológicas – de caráter althusseriano
–, Lukács também afirma que a contraposição de um Marx “filosófo” jovem a um
Marx “econômico” maduro são absolutamente improcedentes. Ao contrário disso,
diz Lukács, são impensáveis as formulações econômicas de Marx sem a posse
desta compreensão filosófica de que todo ser é histórico e irreversível. E contra a
prioridade ontológica da economia, certos marxismos, logo após a morte de Marx
e estendendo-se por todo o século XX, fizeram desaparecer a ontologia marxiana
e a transformaram num movimento, por vezes, de uma crença inexorável dos
processos históricos que apareciam apenas como potencialidades. Em certa
medida, a teoria marxiana da ontologia do ser social não fora compreendida pelo
marxismo imediatamente posterior a Marx, afirma Lukács. E este problema
começa muito antes do que se possa imaginar, tendo suas raízes já em Engels,
apesar de ressalvados os impedimentos da época e os esforços do próprio
Engels em perpetuar a teoria da história marxista:
143
Ninguém negará as tentativas de deter esse desenvolvimento, de reconduzi-lo ao caminho do marxismo, nem especialmente os esforços de Engels, perspicazes e ao mesmo tempo diplomaticamente compreensivos e obstinados, por vezes heroicos, em obras sistemáticas e históricas, assim como em cartas no tempo em que Marx estava vivo e, também, sobretudo após a morte deste. Todavia, é uma questão que só o futuro poderá esclarecer definitivamente: em que medida ele, nas questões metodológicas decisivas, se apossou com total coerência da transformação ontológica da imagem de mundo realizada por Marx, e em que medida se contentou em colocar Hegel “materialisticamente de pé”. Em seus escritos teóricos [...] podemos encontrar – falando de modo geral – as duas tendências: exposições em parte teóricas e históricas, na linha da ontologia marxiana, em parte aquelas que, na recepção da validade atual da dialética hegeliana, vão muito além do que Marx julgava teoricamente permitido. (Lukács, 2010, p. 155).
Lukács afirma em consonância com Chasin – apesar das ressalvas a
Lenin realizadas pelo filósofo brasileiro – que desde a morte Marx e capitulação
social-democrata subsequente, excetuando as descobertas e pesquisas
econômicas e políticas de Lenin, o marxismo padeceu de um desgaste teórico do
qual Marx desconheceu, enfraquecendo a luta da esquerda radical,
especialmente porque o marxismo careceu de uma análise realmente à altura do
filósofo alemão, que pudesse se mostrar como uma autêntica ontologia do ser
social, demonstrando o ser em sua forma precisamente-assim, como um
processo histórico e irreversível em seus fundamentos. Lukács (2010, p. 157)
julga, deste modo, inevitável proceder com uma análise para a verificação de
quanto a influência pejorativa no marxismo posterior a Marx esteve contaminada
com um legado metodológico hegeliano – sobretudo após as incursões stalinistas
no movimento comunista internacional. Neste sentido, Lukács aponta
particularmente o princípio da negação da negação. Em suas palavras:
Quero apontar em particular para a famosa negação da negação. No próprio Marx, ela praticamente nem aparece. A única menção importante a esse momento hegeliano está em O capital, nos comentários de encerramento da análise da “acumulação primitiva”. Lá, Marx dá explicações precisas, puramente econômicas, sobre como o desenvolvimento econômico do capitalismo levou à expropriação da “propriedade privada individual, baseada no próprio trabalho”, e como a perspectiva da
144
“expropriação dos expropriadores” não prevê, de modo algum, uma restauração da propriedade privada, mas “a propriedade individual com base na conquista da era capitalista”. Marx menciona aqui esse segundo processo como “negação da negação”. Porém, a introdução dessa categoria hegeliana nada tem a ver, objetivamente, com a argumentação essencialmente econômica de Marx. Poderíamos dizer que é algo estilisticamente decorativo. Aqui vale, muito provavelmente, o comentário de Marx no prefácio da 2ª edição dessa obra afirmando que seu método dialético é o “oposto direto” do hegeliano, e que “coqueteou”, “aqui e ali, no capítulo sobre a teoria do valor com modo de expressão que lhe era peculiar”. (Lukács, 2010, p. 157).
No entanto, percebe Lukács, a postura de Engels é completamente
diferente da de Marx no tocante a Hegel. Quando Engels em seu Anti-Dühring
defende a posição de Marx que fora apresentada por Lukács em citação de O
capital, ele deixa claro que Marx provou sua tese de maneira concreta e histórica,
e depois de realizada a demonstração científica surge a defectível referência a
Hegel.
No entanto, Engels não para por aí. Ele considera a negação da negação “um procedimento muito simples, realizado diariamente por toda parte”, e ilustra esse pensamento em seguida nos diversos exemplos na natureza, sociedade e ideologia. Nos seus trabalhos preparatórios sobre a dialética da natureza, há todo um capítulo dedicado à característica geral do método dialético. E também aí ele aborda igualmente a negação da negação como um dos três princípios fundamentais. Assim, surge-nos, evidentemente, a pergunta: com que direito? (Lukács, 2010, p. 158).
E Lukács é definitivo na resposta: com nenhum direito. No entanto, se a
pergunta fosse formulada a partir da questão “qual é o papel que a negação da
negação desempenha na filosofia de Hegel?”, a resposta seria definitivamente
outra: desempenha um papel fundamental. O que aqui Lukács não somente
demonstra que o método de Marx e o de Hegel são distintos, como indica passos
para a demonstração de que Marx não subordina sua explicação do ser a partir
do método dialético hegeliano, nem dele deriva suas conclusões materialistas
histórico-irreversíveis. E continua:
Sabidamente, foi Hegel o primeiro a advertir tanto para a complexidade dos fenômenos quanto para a processualidade de
145
sua essência, suas relações, e as colocou no centro da estrutura metodológica de toda filosofia.No entanto, fez isso – e apontamos para esse lado do seu filosofar exatamente em relação àquela áspera crítica feita por Marx já nos inícios de sua atividade – em tentativas heroicas e insolúveis de tornar compreensíveis as categorias da lógica como simultaneamente ontológicas e lógicas em seu automovimento partindo do simples ser não objetivo, desprovido de predicados, até o sistema perfeito do mundo como um todo nesse seu processo. (Lukács, 2010, p. 158).
De início, a insolubilidade já é posta: para Hegel, o ser deve ser a forma
mais geral e, posteriormente, teria a função de desenvolver suas determinações
concretas partindo da dialética (da não datidade).11 De modo que o ser, para
realizar sua função de tal ponto de partida lógico-ontológico privado de
qualificações, o ser deveria ser ao mesmo tempo algo além do mero ser-
pensado, mas ainda privado de determinações. E Lukács indaga: “pode o ser
ainda ser existente como ser em geral, se ele deve permanecer como ser real, e,
todavia, é concebido provado de determinações objetivas?” (Lukács, 2010, p.
159); e adverte demonstrando que Marx já havia respondido a esta questão de
um modo radicalmente negativo, porque seu ponto de partida do ser não é o ser
em sua formação abstrata idealmente, mas o próprio ser em sua objetividade
imanente, aliás, a própria realidade objetiva, em suas múltiplas determinações
concretas. Marx resume esta crítica na sua formulação de que um ser não
objetivo é um não-ser, ou seja, um ser que é privado de objetivações não existe
senão na formulação abstrata ideal. Lukács vê que o próprio Marx, em seus
textos de ruptura com o neohegelianismo de esquerda, já assinalava a
irrazoabilidade de Hegel, pois, este, ao invés de tentar compreender o objeto em
sua efetividade concreta, envereda-se por um caminho em que o único interesse
11 Do mesmo modo, atribuir à natureza processos históricos finalísticos através da ideia de que a dialética da natureza funciona como uma negação efetiva das contradições que geram uma nova determinação é mais uma forma absurda. Lukács, quanto a isso, no segundo volume de sua Ontologia afirma: “Lembramos aqui, quanto a isso, exposições anteriores em que se mostrou que conceber a negação como fator ontológico geral é totalmente absurdo. A natureza inorgânica possui tão somente um tornar-se outro, sendo que até mesmo os componentes, objetos, processos que contrastam do modo mais extremo só podem ser designados como positivos ou negativos de forma totalmente arbitrária. Em termos puramente objetivos, visto puramente como processo natural, na natureza orgânica há vida e morte, sendo que esta última até pode ser interpretada ontologicamente como negação da primeira, mas só quando não se usa isso para tentar obscurecer, mediante a introdução por contrabando de categorias que não existem aí, a objetividade ‘muda’ e pura do processo natural, que produz ambas pela mesma necessidade”. (Lukács, 2013, p. 287).
146
está em voltar a encontrar a ideia pura e simples, a ideia lógica em qualquer
elemento, seja no estado, seja na natureza. De tal sorte que o Lukács dos
Prolegômenos para uma ontologia do ser social clarifica que o que está em jogo
nesta crítica de Marx ao processo hegeliano das abstrações formais é a própria
ontologia: para Hegel, os entes reais são substituídos por idealidades, cuja
natureza é substancializada, tornando-se dessa forma agentes ou identificações
que atuam por lógicas próprias e que, por necessidade interna, engendram as
determinações finitas, antes de tudo como confirmação de si mesmas. Esta
crítica marxiana identificada por Lukács estabelece que o conjunto de
determinações que deve ordenar o intento investigativo não pode ser outro senão
as determinações reais, concretamente existentes. Já na lógica hegeliana, não é
a particularidade de determinados existentes que (mesmo tendo a substância
como fundamento) deve ser determinada, mas do ser privado de determinações
(portanto, apenas abstratamente pensado) em seu auto-movimento. De sorte que
Hegel não busca a determinação ontológica do ser realmente existente, mas de
uma determinação meramente ideal. Se para Marx categorias são determinações
que partem do ser efetivo; para Hegel, as categorias partem de uma abstração
fora da objetividade, da existência de um objeto ideal, não-objetivo. É a partir
dessa formulação que Hegel se depara com o método de determinação de um
conceito: ele é determinado por seu contrário, ou seja, pela negação da
negação12: o elemento contrário de dada determinação que classificará
exatamente o seu significado.
12 Michael Inwood (1997) exemplifica claramente a lógica de funcionamento da negação da negação hegeliana. A passagem é longa, contudo necessária. A negação da negação operam em diferentes níveis: “(a) Um simples (e supersimplificado) análogo histórico da dialética da coisa e do outro é o seguinte: antes do surgimento do protestantismo, o catolicismo é o próprio cristianismo (ocidental) como tal. Gera depois o protestantismo, que o nega. O protestantismo não é apenas não-catolicismo, mas diferencia-se ativamente dele e mostra as marcas do catolicismo que nega. O catolicismo, por seu turno, nega o protestantismo, deixando assim de ser simplesmente cristianismo como tal e apresentando os sinais de sua ativa autodiferenciação do protestantismo. (b) Um católico e um protestante não dados à reflexão passam a refletir sobre suas respectivas fés (talvez devido à sua percepção da dificuldade em justificar uma fé em oposição à outra). Eles abjuram então de suas fés, ou as negam. Mas cada um ostenta ainda as marcas da fé que nega ou suprassume: um católico renunciante é diferente de um protestante renunciante, uma vez que tal negação é determinada. Subseqüentemente, por reflexão adicional, cada um readquire a fé que perdera ou a que renunciara: ele nega a negação. Mas nem um nem outro volta à fé irrefletida que perdeu: é agora uma fé reflexiva, enriquecida pela jornada de regresso pela qual ela foi alcançada [...].
147
A negação da negação hegeliana – o alemão vernáculo para negação é
Verneinung, embora Hegel (1981; 2007) prefira a declinação erudita Negation –
teve seu princípio na filosofia de Espinosa, na qual “toda determinação é uma
negação”, [omnis determinatio est negatio] isto é, determinar algo é demonstrar
exatamente aquilo que este algo não é. Na lógica ambivalente clássica, se algo é
negado e a negação é, por sua vez, negada, volta-se ao ponto inicial; entretanto,
para Hegel, a negação da negação resulta diretamente numa afirmação (numa
determinação), mas não é um mero retorno a seu estágio originário, e sim uma
afirmação diferente em algum grau daquela que foi negada: o estágio primeiro é
o simples ser livre de determinações; o estágio segundo é o caminho entre uma
determinação e sua negação; o estágio terceiro é a afirmação da coisa, por sua
negação da outra.
Para Hegel, a primeira negação é o ato do ser exteriorizar a ideia, e a sua
suprassunção seria a negação da negação; o pensamento abstrato é um ente
que age sem sujeito, conclui Marx em sua crítica. E a suprassunção da ideia, que
alcança a natureza, o ser livre de determinações, é também em Hegel uma
abstração sem sentido; isolada do homem, esta natureza é nada. Marx, ainda em
sua juventude, em seus textos de rompimento com o hegelianismo, promove
uma refutação completa da negação da negação hegeliana ao mesmo tempo (c) Os casos (a) e (b) envolvem a vinculação e indivíduos a um de uma série de credos coordenados, cada um dos quais nega o outro (ou outros). Mas a negação da negação acarreta freqüentemente a transcendência de toda uma gama de negações coordenadas. Assim, a negação da negação pode ser (i) uma tentativa de adotar e saborear cada um, por sua vez, da variedade aparentemente infindável de credos concorrentes [...]; (ii) um recolhimento a si mesmo, afastando-se de todos os credos e fés concorrentes; ou (iii) a adoção de um credo que abranja todos os outros e não os negue, mas rechace suas pretensões de exclusividade ou suas negações recíprocas. Esse tipo de dupla negação é infinidade. A resposta (i) é, ou está governada por, má infinidade, um desfile interminável de entidades finitas, cada uma das quais nega a sua predecessora. (ii) é um tipo de boa infinidade, porquanto envolve o retorno circular de uma coisa a si mesma. Na Lógica, apresenta-se como ser-para-si, exemplificado pelo eu auto-reflexivo, que transcende a gama de qualidade determinadas. (iii), também boa infinidade, manifesta-se de um modo mais destacado na idéia absoluta, a qual engloba todas as determinações do pensamento que se manifestam mais cedo na Lógica. Embora Hegel considere (i) e (ii) como necessárias fases históricas, ele prefere (iii) como resposta, por exemplo, à diversidade de filosofias aparentemente concorrentes.” (Inwood, 1997, p. 238-239). Jesus Ranieri, acerca disso, escreve em sua obra Trabalho e dialética: “A negação é o refletir sobre a relação entre as características materiais desse mundo e o uso que elas podem ter para que a própria vida tenha continuidade. Negar é sinônimo de absorção subjetiva de um mundo objetivo a partir do reconhecimento das propriedades do objeto, propriedades que são inúmeras e, na maioria esmagadora das vezes, não apreensíveis em sua totalidade pela consciência que elabora mentalmente o teor da atividade laborativa”. (Ranieri, 2011, p. 46).
148
que percebe a inconsistência da suprassunção da ideia. Senão, vejamos o que
Marx diz nos Manuscritos de 1844:
Como a natureza foi encerrada pelo pensador na própria figura dele, oculta e misteriosa, como idéia absoluta, como coisa de pensamento, então ele na verdade, na medida em que a separou de si, separou de si apenas esta natureza abstrata, apenas a coisa de pensamento da natureza – mas agora com o significado de que ela é o ser-outro do pensamento, de que ela é a natureza efetiva intuída, distinta do pensar abstrato. Ou, para falar uma linguagem humana, o pensador abstrato experimenta, junto de sua intuição da natureza, que os seres que ele, na dialética divina, imaginava criar a partir do nada, da pura abstração, como produtos puros do trabalho do pensar que se tece sobre si próprio e nunca olha para fora em direção à efetividade, nada mais são que abstrações de determinações da natureza. A natureza inteira repete para ele, portanto, apenas em forma sensível, externa, as abstrações lógicas. Ele a analisa novamente nestas abstrações. Sua intuição da natureza é, portanto, somente o ato de confirmação de sua abstração da intuição da natureza, o curso gerador de sua abstração, repetido por ele com consciência. (Marx, 2004, p. 135-136).
Tudo isso não anula o fato de que é uma possibilidade real o pensamento
nas operações lógicas poder abstrair as determinações do ser e obter um
conceito de um ser privado de determinações como categoria de abstração ideal.
No entanto, como afirma Lukács (2010, p. 159), uma coisa é impossível: “do
conceito logicamente esvaziado do ser, desenvolver um ser real mediante uma
reversão ideal do processo de abstração”; o que acaba sendo o programa do
sistema de Hegel em sua grande Lógica.
Nos Prolegômenos da Ontologia, Lukács vê com uma clareza até então
inédita a diferença específica das ontologias marxiana e hegeliana,
demonstrando que uma lógica determina a formulação sistemática hegeliana,
enquanto em Marx inexiste tal procedimento. Na explicitação da ontologia
hegeliana, seguida da evidente demonstração do conceito de negação da
negação na teoria marxiana, Lukács se depara com a fundamentação hegeliana
em Espinosa; e conclui tal reflexão com a assertiva sobre Marx, ao mesmo
tempo que pontua a diferenciação com o sistema filosófico hegeliano. Vejamos
então esta passagem nos escritos de Lukács:
149
Assim, Marx a utiliza [a formulação dialética da determinação dos objetos] ao delimitar, no pensamento, consumo produtivo da produção e consumo verdadeiros, indicando sua alteridade no interior do conceito totalmente generalizado de produção e consumo. Na lógica hegeliana, trata-se de um problema inteiramente diferente. Não é a particularidade de determinados existentes que (mesmo tendo a substância como fundamento) deve ser determinada, mas do ser privado de determinações (portanto, não existente, apenas abstratamente obtido pelo pensamento) devem ser desenvolvidas, de modo processual e ontológico, todas as determinações ontológicas do ser no processo real de seu automovimento. A visão inovadora e revolucionária do mundo de Hegel, a tentativa de transformar coisidade em processualidade, depara-se assim com uma tarefa insolúvel. Não que o problema de reconhecer e descrever a processualidade das coisas seja insolúvel; Marx mostrou exatamente a sua possibilidade de solução, e até mesmo como única solução correta. Insolúvel é apenas desenvolver de forma imanente, a partir do ser privado de determinações, possível apenas como produto do pensar, aquelas determinações e categorias do ser efetivo. (Lukács, 2010, p. 160-161).
Na realidade concreta, determinação e negação dizem respeito a o ser-
precisamente-assim, isto é, ao ser concreto. Na atividade laboral, um
determinado homem se depara com objetividades e estas deverão ser mediadas
a partir de seu conhecimento do mundo destas próprias objetividades: afirmar ou
negar determinadas objetividades só será possível em contato direto com o ser
posto imediatamente. Lukács nos dá um exemplo prático disso: um trabalhador
se depara com uma pedra para ser polida, e então este mesmo trabalhador
deverá verificar seu estado de dureza, se é dura ou se é a sua negação, ou seja,
flexível. O mesmo acontece com todo o processo de trabalho do homem na
transformação da natureza, no qual os conhecimentos dos meios, dos
procedimentos de execução, etc. são absolutamente indispensáveis. A negação
ou a afirmação na práxis geral tem uma constituição totalmente diversa da
negação da negação hegeliana, pois estas sempre têm que ser confrontadas
com uma constituição concreta do ser, com uma objetividade determinada. As
decisões dos homens são postas de acordo com as objetividades imediatas
realmente postas. Por mais que na imediatidade da vida cotidiana as entonações
da afirmação e negação costumem ser bem mais características, o sentido
prático de um enunciado não está ligado à sua forma de expressão afirmativa ou
150
negativa. Lukács não somente demonstra a inexistência da negação da negação
em Marx, como também verifica que a realidade concretamente posta é que dá a
tônica da análise marxiana, verificando que a não percepção dos fenômenos em
Hegel o leva a um exercício pueril:
Hegel não percebeu absolutamente essa característica do fenômeno. Quando, por exemplo, em Princípios da filosofia do direito, apresenta o castiço como concretização da negação da negação, parte da “nulidade” do ato criminoso. “A nulidade é ter suprimido o direito com o direito”. Por isso, “o ato do criminoso [...] não é algo primeiro, positivo, ao qual sobrevém o castigo como negação, mas algo negativo, de modo que o castigo é apenas negação da negação”. Mas nada no ato, especialmente como em Hegel, é contrastado com o caráter absoluto do direito e do Estado, uma forma determinada, embora essencialmente fraca, de negação no sentido estritamente jurídico. Na realidade social, porém, a ação contrária ao direito não é a forma real, geral, de infringir a lei. (Lukács, 2010, p. 164).
E continua:
Segundo a natureza da coisa, isso se mostra de modo ainda mais explícito na própria Lógica, em que exatamente a negação da negação deve ser aquele meio milagroso lógico-ontológico com cujo auxílio se extrairia, magicamente, de um ser privado de determinação, que, portanto, nem é verdadeiramente um ser (no próprio Hegel: ser/nada), o ser legítimo totalmente desenvolvido em sua determinação (em Hegel, a realidade). [...] como consequência da própria coisa, suas demonstrações concretas não podem ter força alguma de persuasão. Assim, como etapa importante no caminho dessa dedução, declara-se que “O algo é a primeira negação da negação”, mas, para mostrar que aqui não se trata simplesmente da Omnis determinatio est negatio, e sim, de avançar efetivamente para além dela no processo real, que se trata da negação da negação, Hegel é obrigado, ao tentar uma derivação do algo ainda muito abstrato, de pouco conteúdo, acrescentar, como provas, formas do ser mais concretas, que, por esse caminho, foram “desenvolvidas posteriormente”. [...] Portanto, para explicar como, do ainda não existente como abstração, se desenvolvem dialeticamente determinados modos do ser, o próprio processo é apresentado como “prova” de si mesmo, embora ainda não sido deduzido. (Lukács, 2010, p. 165-166).
Quando Hegel concebe o processo como um mundo de objetividades a
partir de deduções lógicas do concreto a partir do abstrato, é obrigado a
151
desprezar as categorias efetivas de desenvolvimento do ser processual,
concebendo a derivação lógica do concreto (que sempre aparece no post festum)
a partir do abstrato como o próprio concreto, diz Lukács. Hegel ignora que,
mesmo logicamente, o abstrato só pode ser desenvolvido a partir da objetividade
concreta, e não o contrário. Destarte, Lukács desfecha que é “compreensível que
– tornando Espinosa ‘dialético’ – ele tenha incorrido na negação da negação
como motor do processo. Mas é igualmente compreensível que esse método
tenha fracassado, no todo e nas partes” (Lukács, 2010, p. 166).
E neste momento da crítica, Lukács percebe em Engels as reminiscências
hegelianas originárias do marxismo pós-morte de Marx. De tal maneira que
Lukács se espanta ao verificar que Engels, segundo ele até então muito lúcido,
tenha se contentado em não aniquilar Hegel na crítica – como fez Marx desde a
sua juventude, diga-se de passagem, desde os textos de 1843 –, mas em colocar
de pé e de maneira materialista a construção hegeliana lógica da negação da
negação; mais grave ainda, determinando “que a negação da negação nos dois
reinos do mundo orgânico realmente acontece” (Engels apud Lukács, 2010, p.
166). Mais à frente, Engels destaca que na natureza orgânica, por exemplo, um
grão de cevada germina, negando sua essência de semente. Contra isso, ferino
e clamando para o debate diante da realidade racional, Lukács afirma que Engels
descreve um processo evolutivo normal do ser orgânico, como momentos de um
processo que nada tem a ver com negação de negação ou outros exercícios
lógicos absurdos. E continua:
Se fizermos uma concessão, para além do possível, à transferência da negação lógica para processo de transformação do ser, mesmo assim, quando muito, a morte, como fim de qualquer processo de reprodução no organismo, pode ser concebida como negação da vida, pois aí todo o seu complexo cessa de funcionar, e com isso, simultaneamente, todos os seus componentes materiais tornam-se meras substâncias etc. da natureza inorgânica. Não há fundamento racional pelo qual essa troca de formas do processo normal de reprodução (como o murchar e o cair das folhas no outono, novo crescimento na primavera) seja concebida como negação e negação da negação de alguma coisa. Além disso, esse esquema binário apenas se confirma no processo de reprodução em ocorrências bem determinadas de um tal caso. (Lukács, 2010, p. 167).
152
A aplicação deste esquema binário hegeliano por Engels, afirma Lukács,
se transforma em um esquema bizarro quando aquele é forçado a acrescentar
novos processos na explicação dos mamíferos e posteriormente no caso da
borboleta – a série: ovo, larva, crisálida, borboleta – cujo nascimento da
borboleta não nega o ovo, simplesmente, sendo destarte um caricatural e
grosseiro esquema de “negação da negação da negação” (Lukács, 2010, p. 168).
E referindo a abstrações matemáticas, Engels nos traz exemplos dignos de um
gracejo, que do ponto de vista matemático são exemplos corretos, mas do ponto
de vista ontológicos não passam de absurdidades vazias. De acordo com
Lukács, essa limitação crítica
aponta exatamente para a fraqueza metodológica de toda a construção. Quando, de fato, se obtém uma abstração a partir da generalização de processos reais, o particular pode ficar de fora da consideração em certas exposições gerais. Mas a memória de tal particularidade, porém, nunca transforma esta última em absurdidade grotesca. (Lukács, 2010, p. 169).
A “absurdidade grotesca” obtida das deduções lógicas hegelianas
hipostasiadas por Engels só assim se procede porque tais delineamentos do ser
não foram obtidos do próprio ser, mas “de fora”, de domínios totalmente
diferentes, e arbitrariamente aplicados a qualquer ser que se tome como exemplo
aleatório. Diante disso, Lukács verifica que Engels não somente é responsável
pela reminiscência hegeliana no marxismo, como também foi inferior ao próprio
Hegel no que se refere à construção lógica da sua ontologia. Como se vê na
passagem a seguir:
Vê-se aqui como é importante uma crítica ontológica de construções ideais lógicas, gnosiológicas, metodológicas etc. Hegel evitou tal crítica, porque logicizou de modo geral os problemas do ser, por razoes de fundamentação e arredondamento da construção de seu sistema. E como Engels, em sua crítica a Hegel, não foi realmente até as raízes nesse ponto, como Marx já no início de sua atividade o fizera, não apenas omitiu a necessária crítica da logicização das relações do ser, mas até realizou a tentativa, necessariamente vã, de tornar a construção hegeliana plausível por meio de exemplos trazidos da natureza, da sociedade e da filosofia. Do ponto de vista histórico, é compreensível que uma concepção filosófica de todas as
153
relações de desenvolvimento em um período em que o movimento operário da época de Marx se defrontava com um empirismo e ecletismo obtusos e sem alma no terreno burguês, a doutrina da negação da negação pudesse ser fascinante para muitos, como síntese da história do mundo, e até filosófico-universal, da inevitabilidade das soluções socialistas dos problemas. Hoje não nos parece mais necessário entrar detidamente nas fontes concretas do erro de Engels. (Lukács, 2010, p. 170).
Engels não consegue distinguir as diferenças entre uma análise
gnosiológica de uma ontológica, conclui Lukács. As determinações são formas
de ser, para Marx, e estão estreitamente vinculadas ao ser-precisamente-assim,
às emanações diretas da objetividade. A importância dessa inversão da relação
entre categoria e ser – em relação ao concreto pensado, e à determinação de
que o ser livre de determinações é o elemento categorial da mediação – é
fundamental na decifração ontológica do ser.
Outra questão levantada por Lukács no decurso filosófico engelsiano diz
respeito à dialética da natureza. Se se compreende por dialética da natureza um
sistema unitário em si homogêneo de uma contraditória constelação ontológica
entre natureza e sociedade, “surge um protesto justo contra tal homogeneização
mecânica das categorias ontológicas” na natureza e na sociedade que resultam
num “retorno gnosiológico ao dualismo burguês” (Lukács, 2010, p. 189). Isso
remete à teoria das categorias, e por isso mesmo, à distinção entre a análise
ontológica e a gnosiológica. Em toda consideração ontológica o ser deve
constituir o centro fundante e medida geral de toda diferenciação, para a
gnosiologia e para a lógica, ao contrário, a necessidade é a categoria central.
Lukács explica que em Kant, essa subordinação hierárquica é um princípio tão
determinante que o ser, neste contexto categorial, só pode ser introduzido como
uma existência especificada no mundo dos fenômenos. O ser-em-si fora
concebido por Kant, a priori, como incognoscível por princípio. Por isto mesmo, a
necessidade exige um papel acentuado; está muito claro, portanto, que “em toda
visão de mundo religiosamente determinada, a necessidade tem de
desempenhar um papel multilateral privilegiado, como essência e modo de
manifestação do divino transcendente” (Lukács, 2010, p. 192). A necessariedade
já aparece na Estética lukacsiana na demonstração de elementos literários, e nos
154
Prolegômenos, novamente, Lukács demonstra, acertadamente, como em
Homero o “destino” abstrato-necessário – que nem os deuses mesmo eram
capazes de modificar – está representado como forma transcendente e sublime,
“suprarracional da necessidade” (idem). A natureza das coisas é, portanto, assim
determinada pela necessidade – Lukács percebe que isso claramente serve
ideologicamente à manutenção da economia capitalista, e está presente desde
Espinosa em seu epíteto Deus sive natura, na qual se fala da composição das
leis de deus sobre a corporificação da necessidade de modo tal que as leis de
deus são de natureza inviolável. E Lukács explica da seguinte forma:
Se vemos, no sistema de Hegel, a tentativa de tornar dinâmico-histórico esse lado de Espinosa certamente não esgotamos sua essência, mas certamente tocamos um de seus aspectos metodológicos e de conteúdo essenciais. Isso porque toda a estrutura lógica do sistema hegeliano é conduzida essencialmente pelo esforço de conferir à realidade já não concebida como estático-“eterna”, mas como histórico-dinâmica, a mesma necessidade absoluta e inabalável que estava contida no Deus sive natura de Espinosa. Já na dedução lógica do ser pudemos ver que das muitas etapas decisivas surgiriam contradições insolúveis. Contradições muito semelhantes aparecem quando a lógica da essência, em muitos aspectos tão fecunda no plano ontológico, prossegue em direção ao absoluto. (Lukács, 2010, p. 193).
Para que a lógica seja concebida como sistema da razão pura, a realidade
não pode ter em Hegel nem uma unitariedade ontológica, como em Espinosa,
tampouco pode transformar-se em um processo efetivo, como em Marx, mas
precisa ser introduzida numa hierarquia da lógica como realidade formal, em
processos dedutíveis. Lukács percebe que no desenvolvimento do capitalismo,
essa necessidade perde esse pathos metafísico-transcendente, mas preserva
ainda seu lugar no reino das ciências naturais através das categorias modais.
Não é diferente com o positivismo, que a todo custo promove uma eliminação do
próprio ser da imagem de mundo, para surgir uma arbitrariedade subjetivista na
doutrina das categorias. Esta teoria das necessidades leva, obrigatoriamente, na
teoria social a complexos de movimentos inexoráveis e necessários, isto é,
imutáveis. E, portanto, “a absolutização da necessidade conduz, se pensada
155
radicalmente até o fim, a uma negação da possibilidade objetiva, ontológica, da
existência do acaso” (Lukács, 2010, p. 196).
Como já demonstrado por Lukács, na natureza inorgânica, todos os seus
processos são causais – isto é, a natureza inorgânica desconhece o processo de
necessidade, uma formação peculiar da teleologia teológica. É somente com a
práxis que na natureza surge o télos, e mesmo assim, o pôr teleológico é
mediado por diversas variáveis que resultam num conjunto de pores cujo
processo se desfecha numa nova causalidade. Lukács é definitivo ao dizer que a
relação dual entre sujeito e objeto não ocorre nas naturezas orgânica e
inorgânica, senão somente na esfera do ser social, devido ao pôr teleológico. A
categoria modal da necessidade existe apenas de modo estático no reino animal
e vegetal. Não obstante, no ser social, a categoria de necessidade aparece,
juntamente com a categoria de possibilidade, como uma interferência objetiva do
sujeito. Lukács (2010, p. 214) exemplifica com o caso da criação da roda no
período Neolítico e com o domínio do fogo para funções não destrutivas, o que
caracteriza o reino das possibilidades como interferência direta da práxis social.
Isso, num primeiro estágio, é uma relação mais direta entre as possibilidades
existentes no reino da natureza orgânica; mas conforme a práxis social se
desenvolve, novas possibilidades são introduzidas nesse processo e são criadas
a partir das realizações das possibilidades mais primitivas. O fato do cultivo de
animais e plantas só foi possível quando a práxis humana possibilitou a
capacidade de criar novos ambientes e novas possibilidades de ação. O ser
humano, portanto, executa tarefas de acordo com as possibilidades objetivas
existentes, e nesse processo, novas possibilidades vão surgindo. Ainda que a
descoberta dos elos que causaram esse salto ontológico irreversível do ser
biológico para o ser social seja ainda obscura, dando-nos apenas indícios desse
processo evolutivo. O sujeito só pôde surgir no horizonte após a objetividade
estar posta como possibilidade. Do ponto de vista do sujeito, o ato de concretizar
sua finalidade – o pôr teleológico – só é possível a partir do momento que este
sujeito mesmo se torna capaz de divisá-las em sua constituição objetiva. Lukács
(2010, p. 216) chamou isso de “prioridade ontológica do fator objetivo”. O que
desencadeia o processo irreversível de que “precisamente porque o momento
156
subjetivo da práxis se realiza no pôr consciente de finalidades, a atividade
fundante de sua práxis precisa constituir sobretudo do conhecimento o mais
adequado possível da realidade objetiva”, segundo Lukács (2010, p. 217).
Quando o conjunto dos pores teleológicos progrediu a ponto da decifração
da própria condição humana, tornou-se possível a mediação entre as categorias
possibilidade e impossibilidade. E assumindo uma posição mais crítica em
relação a Kant do que aquela exercitada na Introdução à Estética, Lukács
impugna todo o conjunto reflexivo gnosiológico, e da dialética hegeliana,
inclusive, do seguinte modo:
É importante constatar a objetividade de tais enunciados e, assim, o campo de manobra real de sua objetividade. Isso porque as doutrinas lógico-gnosiológicas das categorias trabalham em toda a linha com tais acoplamentos entre um enunciado e sua negação, que muitas vezes costumam obscurecer as verdadeiras situações (como em Kant: ser/não ser, necessidade/causalidade). Vimos que a causalidade não é uma categoria negativa em relação à necessidade, mas uma concretização que a complementa no contexto dos complexos processuais. Menos ainda, não ser é, como negação, uma verdadeira categoria do ser. Em Kant, que por razoes gnosiológica não toma como fundamento o próprio ser, mas sua diferenciação concretizante, a existência, o não ser como negação da existência, tem um sentido pelo menos utilizável no plano lógico. As tentativas presumivelmente ontológicas de nossos dias, de tornar o nada, como negação do próprio ser, uma categoria real, não têm relações efetivas com a realidade: o nada como negação do ser é e permanece uma palavra vazia. (Lukács, 2010, p. 218-219).
Do mesmo modo que a natureza orgânica conhece a generidade muda,
mas desconhece a teleologia, a relação entre o exemplar do gênero e seu
gênero em-si acontece de maneira mecânica. No ser social, ao contrário, existe a
possibilidade da transformação constante e finalística do próprio gênero através
de seus exemplares singulares, agindo em um processo conjunto e dinâmico, o
que torna possível a ação em volta da generidade não mais muda – processo
inexistente nas outras formas de ser. A generidade não mais muda se manifesta
no processo social da adaptação ativa do ser humano ao seu ambiente, como
transformação desse ambiente em uma base ontológica que sirva às
necessidades sociais. O processo, doravante, que gerou um salto ontológico
para uma generidade não mais muda em relação àquela antiga generidade
157
muda, típica dos seres orgânicos não-sociais, não é algo acabado que surge
como um salto qualitativo terminado; ao contrário, é um ponto de partida de um
processo muito lento de desenvolvimento social, que não cessa neste processo
de ser da generidade muda para a generidade não mais muda. Este progresso
não é unitário e linear, mas um processo irreversível com saltos e momentos de
estagnação.
Neste processo, surge no gênero humano a característica peculiar de sua
forma de ser, que definitivamente a difere do ser simplesmente biológico: a
formação da personalidade. Esta formação da personalidade só pode ocorrer
após um longo processo de formação do ser a partir do momento em que sua
generidade não é mais muda, vindo a ocorrer com o desenvolvimento social
objetivo. Quanto mais complexa e desenvolvida é forma de produção da
supressão das carências elementares fisiológicas, mais complexa é também a
personalidade dos indivíduos de tal sociedade; quanto mais evidente e aguçado
for o processo contínuo de afastamento das barreiras naturas, mais complexa é
também a personalidade dos indivíduos que compõem esta dada sociedade,
porque estes indivíduos estarão diante de situações cujas decisões envolvem um
número maior de objetividades crescentes e um maior campo de possibilidades.
De tal sorte que a personalidade não é outra coisa senão a formação dos
indivíduos singulares diante da “destruição daqueles vínculos naturais originários
que se tornam, cada vez, inibidores do desenvolvimento da produção” (Lukács,
2010, p. 240). Em última instância, portanto, o fator econômico e a
independência cada vez mais acentuada dos indivíduos de uma sociedade em
relação à sua reprodução meramente natural são os fatores que potencializam o
surgimento da personalidade. Lukács resume do seguinte modo este processo:
Portanto, o ponto de partida imediato da origem e [do] desenvolvimento da personalidade humana repousa nesse recuo das barreiras naturais que [...] transforma a relação da pessoa singular com a sociedade como campo de sua existência e atividade em algo fundamentalmente casual, na medida em que as categorias de classe mais ou menos “naturais” (da casta até o casamento) perdem economicamente sua base de existência social, e confrontam a pessoa singular casualmente produzida imediatamente com a sociedade. (Lukács, 2010, p. 240).
158
Juntamente ao desenvolvimento da generidade não mais muda, surge o
domínio da natureza pela produção humana e, com isso, a objetivação e o
estranhamento. O primeiro, o ato de transformar a natureza objetivamente para
uma específica finalidade (um télos), está presente em todas as ações humanas
individuais que operam através de um comportamento determinado pelo meio
social concreto; o segundo, fruto de um desenvolvimento econômico no qual a
produção é coordenada por um conjunto de homens que não exatamente são os
mesmos produtores diretos da execução do trabalho, e por isso mesmo,
apropriam-se do trabalho alheio, apropriam-se do mais-trabalho. Desde que o
conjunto da humanidade se formou e a partir disso afastou-se gradativamente
dos limites impostos pelas barreiras naturais, o estranhamento esteve presente –
Lukács lembra que não somente este estranhamento esteve presente, como
também as tentativas de supressão deste estranhamento para uma generidade
qualitativamente de tipo superior podem ser vislumbradas em diversos exemplos
históricos clássicos desde a Antiguidade, inclusive no caso de Aristóteles,
remetido por Marx em O capital, que acreditou de algum modo que a inserção de
técnica e máquinas na produção poderia desembocar numa diminuição (ou até
mesmo cessação) do trabalho escravo. Apesar desta ilusão representar apenas
uma ideologia sem efeito real prático, porque era utópica, ela desempenha papel
nas ações humanas, e, portanto, influencia os pores teleológicos, que de algum
modo resultam em processos causais resultados do conjunto dos pores
teleológicos e das inúmeras variáveis neste processo. O estranhamento é,
portanto, um fato ontológico:
De maneira primária, ele pertence ao próprio ser social, tanto em sua constituição objetiva quanto em seus efeitos sobre os exemplares singulares do gênero. O fato de que ele muitas vezes se manifeste sob formas ideológicas, nada muda esse seu traço fundamental, pois a ideologia no ser social é a forma geral para a conscientização e combate dos conflitos que surgem no plano econômico-social. Por isso não é, em absoluto, um engano ver na forma dupla das reações ideológicas ao estranhamento um sinal de que o conflito manifesto neste, aponta, na respectiva generidade mesma e nos seus efeitos, sobre o ser de seus exemplares singulares, para uma duplicidade nas bases objetivas de todo o complexo de problemas (Lukács, 2010, p. 253).
159
Numa passagem que evidencia um passo fundamentalmente novo de
Lukács em relação a Hegel, ocorre a dilucidação da separação evidente entre
objetivação e estranhamento para Marx – corroborada por Lukács. Enquanto o
ato de objetivação é um processo que ocorre de modo irreversível no gênero
humano, e portanto ineliminável no decurso histórico da evolução do gênero
tanto do ponto de vista ontológico como filogenético, o ato de estranhamento é
passível de superação, de acordo com as descobertas marxianas percebidas por
Lukács. Ainda que não fosse possível em períodos de maior dependência do
gênero humano aos aspectos naturais, essa intencionalidade de superação dos
estranhamentos esteve presente em espectro ideológico. Senão, vejamos nas
palavras de Lukács a ocorrência deste processo:
O anseio da humanidade por uma vida já não dominada pelo estranhamento, portanto, por uma generidade que não traz à vida nenhum estranhamento, que atribui ao indivíduo humano tarefas que podem conduzir a uma vida – também pessoal – capaz de trazer substanciosa e real satisfação, permanece inarredável do pensamento e da emoção dos seres humanos. E como esses complexos de pensamento e sentimento não puderam se externar e se desenvolver nas manifestações práticas de vida e nas atividades humanas, pelos motivos dados, os seres humanos procuraram e encontraram um espaço de exteriorização no campo da ideologia pura, isto é, da que não se torna efetivamente ativa no plano prático-social imediato. Hegel, no seu tempo, tentou caracterizar esse mundo das ideologias como espírito objetivo e absoluto. Prescindindo do fato de que para ele, em última análise, estranhamento teria de significar a reabsorção do mundo até aqui “alienado” ao espírito no sujeito-objeto idênticos (essa essência, portanto, uma utopia logicizante). (Lukács, 2010, p. 258).
As primeiras formas primordiais de estranhamento, diz Lukács (2010, p.
279), consistem especialmente no fato de que a espécie humana, que emerge
lentamente no movimento de abandono de seu mutismo de gênero num
contraditório processo histórico causal, atribui suas próprias ações e conquistas a
poderes transcendentais, de caráter mágico. Posteriormente, atribuem aos fatos
um fado prévia e teologicamente determinado, numa característica que Marx
acertadamente denominou de natureza reificada do mundo. Lukács esbarra,
neste momento, no processo de compreensão social de uma teoria que se prova
mais próxima da representação e explicação dos fenômenos: no próprio
160
marxismo, a compreensão de uma ontologia do ser social não é nem mesmo
aceita pela maior parte dos marxistas atualmente – e nem sequer já desfrutou de
hegemonia filosófica em algum momento13. Daí a conclusão de Lukács (2010, p.
281) de que uma teoria só pode se firmar socialmente quando pelo menos uma
das camadas sociais então importantes avista nessa mesma teoria o caminho
para a própria conscientização e solução daqueles problemas que considera
indispensáveis para o seu presente, como se vê, por exemplo, nos casos de
Galileu, Copérnico e Darwin – o que acontece, do mesmo modo, com a teoria
social em geral. Lukács, como desenvolvimento conclusivo das ações dos pores
teleológicos resultando numa causalidade não absolutamente diversa do
conjunto teleológico, mas ainda assim uma causalidade, lembra que as ações
espontâneas dos indivíduos em geral resultam em objetividades diversas
daquelas orientadas pela intencionalidade dos atores. Memorando uma
passagem de Lenin acerca de Zinoviev e Rosa Luxemburgo, Lukács afirma:
Às vésperas da Revolução de Outubro, polemizando contra Zinoviev, ele [Lenin] mostra que mesmo rebeliões espontâneas e contundentes do fator subjetivo contra o sistema capitalista dominante têm um caráter alternativo, podendo também, portanto, espontaneamente tornar-se diretamente reacionárias. Essa crítica justa vincula-se a uma análise correta e profunda das possibilidades gerais de ação dos seres humanos no capitalismo, com o reconhecimento de que a mera rebelião espontânea dos seres humanos (que permanece particular), ainda que atinja as massas, não vai além, de modo necessário e espontâneo, do horizonte do capitalismo. (Lukács, 2010, p. 286).
A apresentação de uma nova teoria por Lenin renova o marxismo que
estava contaminado com teorias espontaneístas, conclui Lukács; Lenin descrevia
que a consciência política do proletariado só poderia ser trazida de fora para
dentro do movimento social, coordenado por uma vanguarda – embora isso
tenha resultado em consequências funestas com o stalinismo.
13 Ranieri transverte esta questão do marxismo numa resolução hegeliana: “[...] pensamento humano é resultado da atividade do espírito (que, a rigor, é o mesmo que ser social) e, portanto, demiurgo de um mundo concreto que depende do conteúdo conceitual fornecido a ele por este mesmo mundo [...] O espírito é, então, uma entidade cuja criação é marcadamente social. Se ela inicia o seu trajeto em um espaço de não identidade, a tendência é de que isso deixe de acontecer, em função de seu próprio desmembramento em consciência de um processo do qual ela é agente e resultado” (Ranieri, 2011, p. 62).
161
Aliando-se a essas consequências soturnas o aspecto irracionalista das
correntes filosóficas dominantes no século XX, especialmente aquelas que
procuraram excluir liminarmente o ser da esfera do conhecimento, o marxismo
fora artificialmente sepultado – o próprio desenvolvimento da teoria marxiana que
deixava de afastar a filosofia da ciência, característica bellarminiana, acabou por
ser deixado de lado, especialmente pelo empirismo, um tipo metodológico que
descarta as categorias do processo de apreensão da realidade –, juntamente
com a operação que desvinculou a história das outras disciplinas filosóficas,
criando uma disciplina particular que se tornou tendência nas ciências
acadêmicas formais. Tal degradação da história a uma ciência particular entre
outras, tem consequências ainda mais amplas. Não apenas o volume total da
história é artificialmente reduzido, como também a totalidade existente de cada
etapa histórica deve ser subdividida entre as diversas ciências particulares
igualmente reduzidas; isto é, a totalidade existente do histórico-social deve sofrer
em toda a linha esse tipo de fragmentação em disciplinas e linhas de pesquisa
detalhadamente separadas e especializadas, o que resulta num excluir da
historicidade dos processos científicos. Lukács afirmou repetidas vezes que a
tese marxiana da historicidade como fundamento de todo ser e por isso de toda consciência correta [...] só adquire sua forma concreta quando compreendida como inseparavelmente conectada com o caráter ontológico das categorias, como resultado necessário da objetividade originária de cada ente, com a práxis, com os pores teleológicos fundados em decisões alternativas como base elementar do ser social. (Lukács, 2010, p. 293-294).
Isso resulta na irreversibilidade das formas precedentes e mais simples
das quais evoluiu causal e historicamente cada tipo de ser. Reconhecer tal
processo é afirmar que o modus operandi da apreensão da realidade executado
por Marx é ontologicamente baseado no fato de que:
Os processos reais são de caráter causal, de que no seu domínio – com a óbvia exceção dos pores teleológicos da práxis humana, cujas consequências reais também têm caráter causal – não se pode falar nem de forças provenientes do exterior, de uma teleologia objetiva, nem de uma transcendência, não importa de
162
que tipo. Esse domínio total do princípio causal em todos os processos que constituem cada ser não permite senão um conhecimento post festum: que se volta para processos já decorridos, por isso, em um tratamento histórico-científico baseado em resultados fáticos, insuperáveis dos processos. Da historicidade do processo total nasce, portanto, a exigência metodológica da cientificidade precisa dessa investigação. (Lukács, 2010, p. 294).
A cientificidade do marxismo como um modo de ver que se funde,
inclusive, com o filosófico é um resultado da objetividade ontológica das
categorias. A própria separação entre ciência, de um lado, e filosofia, de outro,
implica assumir um episódico dualismo entre categorias do ser e do “ideal”. O
processo pelo qual a consciência chega aos homens é um processo da práxis:
de um lado, a ação teleológica faz surgir um mundo dos homens ativos; de outro,
os objetos da práxis nas objetividades dos fatos naturais. Nesse momento, a
práxis emerge e a consciência da interação entre o sujeito e objeto resulta numa
consciência sempre relativa mediada pelas ações de adaptação aos ambientes.
A consciência, aponta o filósofo húngaro, “é, em sua gênese no plano ontológico,
nada mais do que o momento fundante indispensável desse novo processo do
ser” (Lukács, 2010, p. 295). Não foi sem motivos, portanto, que somente com o
desenvolvimento do próprio processo de interação dos homens com a natureza,
na suplantação de sua condição meramente natural e na independência do
pressuposto natural do trabalho é que a consciência pôde surgir no horizonte do
ser social. É a práxis que liga a vida cotidiana dos homens à execução
teleológica consciente, da qual vários níveis de desenvolvimento vão surgindo,
desde a execução do trabalho como categoria primígena e a formação da
linguagem, ao desenvolvimento científico – como a própria conclusão da
segunda tese de Marx ad Feuerbach (Marx, 2007, p. 533) preconiza. Do mesmo
modo, é também na práxis que ocorre a determinação categorial do ser na
filosofia, de tal sorte que ciência e filosofia, por mais que se distingam no campo
de ação imediato da área de conhecimento, seus resultados finais têm objetivos
idênticos: “orientar de modo cada vez mais unívoco as atividades humanas para
a constituição categorial das totalidades, da totalidade do ser” (Lukács, 2010, p.
297). E complementa:
163
[...] nada poderia estar mais distante de Marx do que derivar a essência e o contexto da problemática categorial de um princípio abstrato, não importa de que tipo fosse. Ponto de partida e execução do método são, ao contrário, ler e entender, por um lado, na ontologia dos objetos e dos processos existentes em si a sua diversa constituição real, constituição ontologicamente ligada, mas não enquanto uma consequencialidade antes de tudo lógica, e, por outro lado, as necessidades sócio-históricas que a cada vez orientam seus respectivos modos de manifestação, formas etc. com o objetivo de obter uma base real para a práxis humana. Os princípios classificatórios abstratos que se tornaram tão importantes na teoria do conhecimento e na lógica, por exemplo, ponto de partida e conclusões concretas e abstratas, simples e complicadas etc., podem ter aí um papel apenas na medida em que neles se revelem as determinações ontológicas reais (históricas) da própria coisa e não permaneçam meras determinações de pensamento para introduzir os fenômenos em um sistema de pensamentos fixado previamente. (Lukács, 2010, p. 325-326).
A constatação de que todo ser é objetivo, já presente em Marx, é a
determinação ontológica pela qual se deve construir a abstração. Uma vez
realizada a abstração, o pensamento deve realizar o caminho de retorno – como
descreve Marx, observado por Lukács – chegando à totalidade, na origem
imediatamente percebida, mas não mais como uma representação caótica do
todo, e sim como uma totalidade complexa, rica de determinações. O método
marxiano, diz Lukács, não pode ser tomado como uma operação arrumativa a
priori na qual se tem uma fórmula nomotética, mas
O método de conhecimento é, pois, determinado pela constituição objetiva (ontológica, categorial) de seu objeto. Mas isso não significa, em absoluto, que seu caminho, seu método, possa ou deva ser modelo ou uma simples imitação do ser processual do concreto objetivo. Portanto, o conhecimento científico e também o filosófico devem partir da objetividade concreta existente que a cada vez torna-se seu objeto e desembocar no esclarecimento de sua constituição ontológica. (Lukács, 2010, p. 327).
Por este mesmo motivo, o método marxiano não pode seguir um modelo
para apreensão do próprio ser, senão como um exemplo de que é da própria
objetividade que é emanada a possibilidade de apreensão da realidade,
possibilitando a determinação de abstrações que auxiliam o pensamento na
reconstrução ideal da objetividade – chamado por Lukács, alicerçado em Marx,
164
de “abstração razoável”. A construção de uma metodologia positivista que
pudesse ser aplicada a elementos da construção não é nada mais que
vulgarização do pensamento marxiano – nada poderia ser mais distinto da
análise ontológica empreendida por Marx, conclui Lukács memorando o quão
grave o stalinismo foi para destino do marxismo. Ao contrário deste princípio de
uma universalidade das “aplicações” do “materialismo dialético” – conceito
exógeno a Marx –, na ontologia marxiana, a caracterização das categorias como
“formas do ser, determinações da existência” da objetividade como traço fulcral
de todo ser, pertence às determinações fundamentais resultantes da
historicidade geral como característica ontológica de todo ser. Não obstante, por
este mesmo motivo – diferentemente de uma teoria da história ou de um sistema
filosófico – não há em Marx um fim da história, nem a possibilidade de
estabelecimento de um limite histórico objetivo inexistente na realidade;
característica de várias correntes filosóficas que postulam o momento atual como
o culminante final de todo processo histórico objetivo.
Universalidade e singularidade são determinações objetivas do ser, e não
meras representações conceituais ou resultados de abstrações. Portanto, são
categorias (formas do ser). Sempre baseado no exemplo do procedimento
metodológico marxiano, Lukács exemplifica do seguinte modo esta determinação
da realidade:
Mas se, para nos referirmos apenas a um exemplo prático muito importante, pensarmos no experimento, reconheceremos logo que ele é apenas uma eliminação o mais perfeita possível, de um complexo do ser concretamente processual, daqueles elementos do ser que não costumam ser permanentemente atuantes, segundo as regras experimentadas na prática, para observar, em um ambiente (categorial-ontológico) componentes permanentemente atuantes em uma forma assim “depurada” de suas inter-relações, e poder torná-las cognoscíveis como resultado – conforme suas proporções. É igualmente claro que o ser examinado no experimento, na realidade, nunca aparece nem atua dessa maneira “depurada”. Mas é igualmente claro que no experimento, ainda que nessa forma “depurada”, também se examine um contexto ontológico como em nosso comportamento prático normal com nosso ambiente natural real. A universalidade que aparece no experimento e se torna conceitualmente apreensível não é, pois, primariamente produto de nosso pensar, embora essa experiência sobre o ser, que culmina com uma síntese, tenha um papel decisivo na preparação do experimento.
165
Mas seu papel é apenas um agrupamento consequente “depurador” de fatores ontológicos. De acordo com isso, o resultado também desvenda um contexto ontológico, e não uma mera tentativa de apreender o ser conceitualmente de modo abstrativante. (Lukács, 2010, p. 332).
A universalidade nas determinações das objetividades é, deste modo, um
momento ontológico de sua totalidade existente, e não uma mera abstração
conceitual, uma projeção abstrata. Devido à sua característica ineliminavelmente
histórica e irreversível de todo ser, o conhecimento só pode se mostrar no post
festum, isto é, não existe uma possibilidade de previsibilidade fenomênica na
esfera do ser social, justamente pela explicação aqui já apresentada da estrutura
do ser social apenas poder operar transformações teleológicas cujos resultados
sempre são causais devido aos infinitos transcursos possíveis das variáveis
aliados ao conjunto dos processos de cada pôr teleológico. Mas isto não
significa, de modo algum, que o conhecimento apreensível em sua totalidade
somente no post festum possa indicar um retorno a um empirismo, limitando-se
aos registros dos fatos meramente. Pois, como resultado direto dos processos
realmente transcorridos no conhecimento post festum, torna-se visível e
apreensível, em todas as determinações dinâmicas, o processo real, de modo
que a ciência pode conhecer ao mesmo tempo as tendências neles vigentes. De
sorte que apenas a teoria e o método que compreendem esse processo dinâmico
como a ação dos próprios homens reais, como faz Marx de modo original e
realmente inédito na história da filosofia, pode representar o verdadeiro papel da
ciência na sociedade de modo absolutamente concreto. Lukács nos apresenta de
forma clara, através da explicação dos momentos predominantes no processo
teleológico, que
quando o processo histórico no ser social aparece como resultado da colaboração de atividades humanas por meio de pores teleológicos, de seus efeitos causais, de novos pores teleológicos que colocam em movimento estes últimos etc., fica provado que pensar e saber aquilo que realmente é existente, de onde vem, para onde vai, aparecem como um grupo de forças fundamentais no processo que conduz os homens para sua verdadeira generidade, que supera a mudez animal, não só na forma, mas também no conteúdo. Exatamente por compreender as mais altas realizações do espírito humano como momentos ativos impulsores desse grande processo, Marx pode ser o primeiro a superar
166
realmente de forma radical a fase precedente da concepção transcendente do mundo. (Lukács, 2010, p. 353).
2.2 A política como pôr teleológico secundário e o campo de ação dos indivíduos singulares
Os atos finalísticos são, como vimos ao longo do capítulo, movidos por
aquelas ações que detém um pôr teleológico primário em espectro muito amplo –
o momento originário de interação do homem com a natureza na transformação
de seu próprio mundo – e por aquelas cuja ação depende de um reconhecimento
genérico e, portanto, são ações finalísticas de valores14. A causalidade
espontânea que, num dado momento histórico, lança a possibilidade humana da
execução do trabalho como pôr teleológico primário é a forma original que o 14 A questão dos desdobramentos dos pores teleológicos primários e dos secundários, aqueles que dependem de uma ação de valor, foi muito pouco compreendida até mesmo pelos discípulos de Lukács, o que fez de seus alunos – que escreveram as anotações sobre a ontologia para o companheiro Lukács, a saber, Férenc Fehér, Agnes Heller, György Markus e Mihály Vajda – pensarem numa suposta existência de duas ontologias dentro da obra lukacsiana que se contradiziam entre si. Senão vejamos em suas próprias palavras: “Em nossa opinião, a primeira parte contém duas concepções de ontologia que se contradizem em pontos essenciais. A primeira considera o processo que tem início com a humanização do homem (o trabalho) como um processo ‘ontologicamente necessário’ (afinal de contas, não entendemos em que modo a sua ‘necessidade ontológica’ se difere da necessidade lógica), que se realiza na esfera econômica, entendida como ‘esfera da essência’, através da mediação da atividade humana, com inúmeras variações e às vezes a partir de elementos casuais no que se refere à esfera fenomênica, mas que apesar disso se realiza absolutamente. A segunda apresenta a eventualidade de que com a humanização do homem, pelo trabalho, se forma a possibilidade do desenvolvimento de três momentos fundamentais. [nota: O primeiro momento é a tendência de diminuição constante da quantidade de trabalho para a reprodução física do homem. Para a segunda tendência no trabalho domina originalmente a naturalidade. No sucessivo desenvolvimento, socializa-se sempre mais o trabalho, a divisão do trabalho disso originada, e tudo disso decorrente. As categorias sociais são, em certo sentido, uma camada cada vez mais consistente que se eleva acima da existência fisiologicamente determinada do homem, modificando-a. O terceiro momento é o da integração sempre mais determinada da sociedade]. Na ‘pré-história’, essas tendências se desenvolveram independentemente da vontade humana, mas nunca na forma necessária. E porque a continuidade da história humana é garantida pela objetivação das necessidades, das capacidades, das atividades etc., a amplitude de movimento do agir humano é garantida pela objetivação já existente. Além disso, determina as possibilidades alternativas, a solução que decide o curso do desenvolvimento por períodos históricos mais amplos. Por necessidade, podemos falar apenas em relação ao movimento interno de uma formação, mas não em relação às transições históricas.” Fehér & Heller et.al. 1977, p. 21 (tradução livre).
167
homem encontrou para a produção do seu meio de vida, transformando o que na
natureza só existia diretamente como potência em valores de uso. Deste ato
originário acontecem desdobramentos causais que não são mais oriundos da
causalidade natural, mas agora determinadas pelo ato finalístico, que resultam
numa nova causalidade – agora não mais espontânea, mas, como explica
Lukács (2013, p. 83-84), uma causalidade posta. Enquanto o objeto dos pores
teleológicos primários é a própria natureza, os pores teleológicos desdobrados
desta causalidade resultante, chamados então de secundários, já não têm como
pressuposto a natureza, mas a causalidade posta. Estes pores teleológicos
secundários motivados a partir da valoração, dependentes de objetivações da
práxis, demonstram tanto o caráter teleológico na rede de causalidades dos
eventos, como o enraizamento dos valores que norteiam tais ações finalísticas.
Lukács (2010) menciona que as conquistas diretamente mais eficazes do método
marxiano da luta de classes como força motriz real do desenvolvimento social,
assim como motor decisivo na história do gênero humano, não podem ser
inteiramente compartilhadas como fatores operantes do ser sem que se aprenda
a compreender que o complexo de decisões do qual surge a individualidade
humana como superação da mera singularidade é momento do ser em seu
conjunto que valora e que é valorado. Para tanto, Lukács fornece-nos o exemplo
da passagem de Marx em A miséria da filosofia na qual fica evidente que é o
desenvolvimento econômico objetivo que transforma uma massa de homens em
trabalhadores, criando, somente a partir disso, interesses comuns para homens
comuns – nascendo, portanto, como classe objetiva, como uma classe que é em-
si para o mundo do capital, mas que ainda não é para-si, como uma classe que
age conscientemente para a sua própria luta de classes, isto é, somente a partir
do momento em que a classe pode se reconhecer enquanto classe é que seus
indivíduos podem agir de modo realmente finalístico com valoração a ponto de
engendrar a luta política emancipatória. E dando atenção à concepção de Lenin
de que a consciência política geralmente é trazida de fora para dentro do
movimento operário por uma vanguarda política, Lukács conclui que, de um lado,
cada decisão alternativa de cada trabalhador tornado individualidade pressupõe
como base um determinado estágio do desenvolvimento do ser social; e que, por
168
outro lado e ao mesmo tempo, a práxis coletiva assim originada (síntese prática
de muitas decisões alternativas pessoais imediatas) não pode ser, em absoluto,
mera consequência mecânico-causal direta do desenvolvimento (econômico)
social objetivo, e sim pressupõe a decisão individual – por esse motivo variada –
de muitos, por isso, obviamente, deve estar presente no pensamento a realidade
fundante de que cada uma dessas decisões alternativas é provocada pelo ser
econômico, que permanece em última análise seu único espaço real. O gênero,
então, se constrói por sua experiência na práxis, ainda que de um modo
teleológico resultando numa causalidade – que não será totalmente diversa da
soma do conjunto dos pores teleológicos da ação genérica. Portanto, cada
exemplar do gênero – no caso, cada ser individual, cada um em sua
personalidade – precisa se posicionar do ponto de vista de valor sobre a sua
existência e a existência de seu gênero, pensando no seu futuro e em seu
presente. Surge aqui o critério de eticidade do gênero, alicerçada sobre as ações
morais dos indivíduos, na qual se assenta a politicidade. Diz Lukács:
Sem poder entrar aqui nos complexos de problemas que a função central das lutas de classes levanta para o processo de desenvolvimento da sociedade como um todo, permanecendo no momento, portanto, primeiramente no problema da origem, do tornar-se ativo de seu papel para a individualidade, é preciso constatar que o devir social da sociedade já em fases iniciais, mais tarde de maneira extensa e intensivamente acrescida, lança de forma ininterrupta o problema da convergência ou divergência entre desenvolvimento individual e do conjunto da sociedade, determinando a essência de todos os atos de reprodução dos seres humanos. Exatamente aqui se expressa, de modo inequívoco, que a generidade socialmente fundada dos seres humanos já não pode ser muda, e de que maneira já não é muda. Não se trata, portanto, simplesmente do fato de que a diferenciação das decisões alternativas singulares está aumentada na vida do indivíduo, uma vez que ele não tem de tomar suas decisões em uma situação estática e sim em meio a um constante embate de forças existentes antagônicas, mas também porque essas decisões (conscientes ou inconscientes, ambas com muitas transições) emergem de contradições práticas que movem a sociedade, e influenciam quase sempre independente de sua consciência a esse respeito – de alguma maneira objetivo-prática, ainda que mínima – seu desfecho [Ausgang]. Se portanto, para compreender de modo mais multilateral e objetivo possível o tornar-se indivíduo do homem, quisermos entender suas tentativas vitalmente necessárias de
169
levar à unidade em si mesmo, as decisões isoladas altamente heterogêneas quer pelo conteúdo quer pela forma, como elementos dinâmicos da própria personalidade, só o poderemos fazer lembrando que nesse complexo sempre móvel, sempre processual, cada momento nasce de problemas sociais reais da respectiva fase da generidade, e, qualquer que seja a práxis em que se traduz, em última análise, da mesma forma nela desemboca. (Lukács, 2010, p. 99-100).
A atividade do trabalho gera um conjunto de valores – tanto valores de uso
como a própria capacidade de valoração dos atos do trabalho – que, num nível
mais complexo, ulterior à atividade original do trabalho, cria a dinâmica da vida
social. Remetendo à passagem marxiana contida nos Grundrisse, a saber, a de
que o homem, ao desenvolver a aptidão individual para a força de trabalho, gera
uma força produtiva social (Marx, 2011, p. 593-594), Lukács, na segunda parte
de sua Ontologia desenvolve esta ilação apontando para o nexo inextrincável
entre o desenvolvimento econômico objetivo e o desenvolvimento genérico do
homem. Através de atos alternativos, ou seja, por meio das escolhas motivadas
na valoração, a práxis econômica é consumada pelo homem, “mas a sua
totalidade constitui um complexo dinâmico objetivo, cujas leis, ultrapassam a
vontade de cada homem singular” (Lukács, 2013, p. 115), e acabam por produzir
o homem social, como resultado emanado das vontades individuais, mas que
ultrapassam a ação finalística individual, sendo, de fato, uma causalidade posta.
De tal sorte que, diz Lukács, Marx
[...] considera o processo econômico na sua totalidade dinâmica desdobrada, de modo que o homem não pode deixar de aparecer como o começo e o fim, como o iniciador e o resultado final do conjunto do processo, no meio do qual ele muitas vezes – e sempre na sua singularidade – parece desaparecer entre as suas inundações e, no entanto, apesar de toda aparência, mesmo tão fundamentada, ele constitui a essência real desse processo. (Lukács, 2013, p. 116).
As alternativas extra-econômicas, isto é, aquelas que extrapolam a
alternativa originária do trabalho, só podem ser formadas nos indivíduos
singulares, e, no entanto, mantém uma interdependência com as alternativas
postas originalmente pela prioridade ontológica econômica. Tais alternativas,
170
muitas vezes, aparecem na práxis social como uma forma de conflito entre
deveres, ainda que nessas alternativas o conflito apareça como um
reconhecimento de um valor para a tomada da decisão, o que acaba por
determinar a práxis coletiva gerando valores concretos, determinando as
decisões vitais de cada membro da sociedade. Os valores autênticos surgem,
deste modo, neste complexo de alternativas, e diz Lukács
Todo valor autêntico é, pois, um momento importante no complexo fundamental do ser social que nós denominamos práxis. O ser do ser social se preserva como substância no processo de reprodução; no entanto, este último é um complexo e uma síntese dos atos teleológicos que são de fato inseparáveis da aceitação ou da rejeição de um valor. Desse modo, em todo pôr prático é intencionado – positiva ou negativamente – um valor, o que poderia produzir a aparência de que os valores nada mais são do que sínteses sociais de tais atos. (Lukács, 2013, p. 122).
Tais valores não poderiam adquirir uma importância ontológica na
sociedade se não se tornassem objetos de tais pores teleológicos, continua
Lukács. Os homens individualmente acabam por responder às alternativas que
lhe são postas pelo desenvolvimento histórico, a partir de possibilidades sociais,
através de seu julgamento de valor, mais ou menos conscientemente. Essas
alternativas determinam o campo de ação dos indivíduos, todos eles realizados a
partir do critério de valor, e formam o resultado do conjunto social. As alternativas
são fundamentos insuprimíveis do tipo de práxis humano-social e não se
separam jamais da decisão individual, e o significado da resolução de
alternativas para o ser social depende desses valores, isto é, do complexo
respectivo de possibilidades reais de reagir praticamente diante do problema
realmente posto pelas determinações históricas e objetivas de seu tempo. Toda
decisão alternativa, então, constitui o centro de um complexo social que conta
com a determinidade e a liberdade entre os seus componentes dinâmicos: o pôr
de um fim com o qual o ontologicamente novo aparece enquanto ser social é um
ato nascente de liberdade, a partir do momento em que os meios para a
satisfação dessas necessidades cessam de ser cadeias causais espontâneas ou
meramente biológicas, mas resultados de ações decididas e intencionadas de
modo absolutamente consciente. Ao mesmo tempo, esse ato de liberdade das
171
ações humanas é, de algum modo, determinado pela própria necessidade
intrínseca que os homens possuem e que jamais se livrarão, ou seja, a sua
constituição fisiológica objetiva. De modo que tanto a necessidade quanto a
liberdade moldam as ações finalísticas numa cadeia de alternativas possíveis. O
surgimento progressivamente desigual dos pores teleológicos é, deste modo, um
resultado do desenvolvimento social, diz Lukács, que complementa: “as
diferenças decisivas surgem porque o objeto e o meio de realização do pôr
teleológico se tornam sempre mais sociais” (Lukács, 2013, p. 150) sem que, com
isso, desapareça completamente a base natural que lhe deu forma. Uma vez
surgida a sociedade de classes, com todas as complexidades dela emanadas, as
alternativas adquirem maior campo de possibilidade. A objetividade dos pores
causais passa a ser de caráter social, guiando as possíveis decisões alternativas
dos homens, por isso mesmo, por princípio, tais decisões não são homogêneas e
se encontram em mudanças ininterruptas. Mas tais decisões não serão tomadas,
simplesmente, a partir de um comportamento ético que parte do reconhecimento
de um indivíduo; ao contrário, diz Lukács,
a realidade social desse comportamento depende, não por último, de qual valor, entre os valores emergente do desenvolvimento social, esteja realmente ligado a ele, como ele se relaciona realmente com a manutenção, a duração etc. desses valores. Se, no entanto, esse momento é absolutizado de maneira improcedente, cai-se numa concepção idealista do processo histórico-social; se simplesmente ele é negado, incorre-se naquela carência de conceitos que se encontra indefectivelmente presente na praticista Realpolitik, mesmo quando esta afirma se basear em Marx. Mesmo nessa formulação forçosamente muito geral e abstrata é preciso não esquecer que a importância crescente, que aqui se revela, das decisões subjetivas alternativas é, em primeiro lugar, um fenômeno social. Não se trata de que a objetividade do processo de desenvolvimento esteja, dessa maneira, relativizada em termos subjetivistas – essa é apenas uma forma fenomênica socialmente condicionada de sua imediaticidade –, mas de que o próprio processo adjetivo, como consequência de seu desenvolvimento superior, sugere tarefas que só podem ser postas e mantidas em marcha através da crescente importância das decisões subjetivas. (Lukács, 2013, p. 154).
Todas as valorações que alcançam validade nessas decisões subjetivas
estão ancoradas na objetividade social dos valores, na importância destes para o
172
desenvolvimento da generidade, e todas essas ações são, de um modo
determinante, resultado do processo social objetivo que desemboca na
subjetividade.
Pela constituição humana, a esfera econômica – a produção e a
reprodução material do seu mundo próprio – antecede qualquer outro
desdobramento do ser social, por uma posição de prioridade ontológica: os
homens precisam, para se relacionar, manterem-se vivos num processo de
reprodução biológica, ou seja, a reprodução biológica da vida constitui o
fundamento ontológico de todas as manifestações vitais; e não por uma questão
de ordenação de valores ou posicionamentos posteriores, e sim por uma questão
irrevogavelmente factual, a saber, os homens precisam, para sobreviver,
continuar a produzir os seus meios de vida. E somente a partir da possibilidade
de o homem produzir e reproduzir os seus meios de vida é que o campo de ação
dos indivíduos aparece no diapasão das decisões – e sempre mediado pela
prioridade ontológica econômica. A organização social, portanto, é derivativa e
subordinada à esfera econômica, mas influenciando reciprocamente nesse
processo de interação.
Essa dependência originária determina o campo das possibilidades,
determinando, por sua vez, o campo de ação da práxis dos indivíduos singulares.
De sorte que o homem é o resultado de sua própria práxis, tenha ou não ele
consciência disso; sua práxis e seu campo de ação na cadeia de alternativas
possíveis é emanado ao indivíduo em circunstâncias e condições que ele não
escolhe – a assertiva marxiana inscrita no 18 brumário é mais uma vez verificada
por Lukács, que não tergiversa ao determinar que o campo de ação dos
indivíduos é fruto da própria práxis social cuja ação singular é a formadora efetiva
daquela. Senão, vejamos em suas próprias palavras a explicitação direta disto:
[...] o tipo dessas circunstâncias determina de modo inevitavelmente necessário a espécie, a qualidade etc. das questões postas a partir da vida, às quais as decisões alternativas de cada homem reagem com respostas de sua práxis (e com generalizações que brotam dessas respostas). Na avaliação de tais situações, jamais se deve esquecer que o homem, em seus atos e nas ideias, nos sentimentos etc. que os preparam, acompanham, reconhecem e criticam, sempre está dando respostas concretas a dilemas de ação perante a vida, com os
173
quais ele, enquanto homem que vive em sociedade, é confrontado, em cada caso, por uma sociedade bem determinada (de modo imediato: por classe, estrato etc. descendo até a família), mesmo que ele pense estar agindo puramente por impulsos advindos de sua necessidade interior. Do nascimento ao túmulo, essa determinação – do campo de ação da resposta posto pela pergunta – nunca cessa de atuar. (Lukács, 2013, p. 286-287).
Sumariamente, portanto, as atividades da consciência são postas em
movimento por pores teleológicos secundários, isto é, aqueles que vão além da
existência biológica do ser, e embora os pores teleológicos primários sejam
determinantes na própria reprodução física e social dos indivíduos no momento
originário, os pores teleológicos derivados deste engendram um sistema de
mediação que de modo irreversivelmente crescente retroagem sobre os próprios
pores e só depois de passarem por este desvio de mediações cada vez mais
amplas e de modo irreversível, partem novamente a servir à reprodução da vida
orgânica. Conforme o movimento contínuo do desenvolvimento cada vez mais
acentuado dos pores teleológicos cresce, com este movimento o homem se
afasta cada vez mais da mera supressão das carências básicas biológicas, e seu
pores teleológicos secundários serão firmados a partir de um homem cuja
necessidade biológica já se tornou em grande parte socializada. Lukács resumiu
essa questão numa fórmula prática: “o desenvolvimento da socialidade produz,
no que se refere à ação conjunta dos homens, uma centralização cada vez maior
dos impulsos e contraimpulsos sociais referentes a determinados tipos de práxis”
no indivíduo singular pelas ações dos pores teleológicos secundários (Lukács,
2013, p. 299). Isso significa, então, que quanto mais desenvolvida do ponto de
vista social for uma dada sociedade, quanto mais afastada da mera
substancialidade biológica for tal sociedade, “tanto mais nítida, multifacetada e
resolutamente se externará essa centralização da decisão no eu que deve levar
a cabo a respectiva ação” (idem). Quanto maior o número de decisões um dado
indivíduo da sociedade tem de tomar – quanto maior for a cadeia de complexos
de causalidades postas – tanto mais o homem singular formará dentro de si uma
espécie de sistema de prontidão que determinará suas ações neste campo de
possibilidades cada vez maior e mais dependente dos pores finalísticos. Daí que
“o campo de ação para esse desenvolvimento é socialmente determinado, sendo
174
que, no entanto, dentro desse mesmo campo de ação, os diversos homens
singulares, em situações ‘parecidas’, podem tomar decisões alternativas
distintas” (idem), gerando uma nova causalidade posta que não depende apenas
de suas ações alternativas, mas de uma rede complexa de tais ações.
Com o processo que torna cada vez mais complexa a rede de ações
humanas emana a formação da ideologia, que não é outra coisa senão “a forma
de elaboração ideal da realidade que serve para tomar a práxis social humana
consciente e capaz de agir” (Lukács, 2013, p. 465), de modo que toda ideologia
tem sua gênese no hic et nunc social dos homens, que sempre agem
“socialmente em sociedade” (idem). A exteriorização humana na objetividade
social da realidade imediata tem como consequência que toda reação humana
ao seu meio ambiente social e econômico pode se tornar ideologia. Vaisman e
Fortes determinam claramente essa concepção de ideologia em Lukács, como se
vê a seguir:
Segundo Lukács, tais considerações exprimem o cerne da compreensão marxiana do fenômeno da ideologia: de maneira clara demonstram que a questão ideológica não está restrita à dimensão política dos processos de dominação social, muito menos aparece como uma discussão circunscrita aos problemas de ordem gnosiológica. Trata-se de questão bem mais ampla que engloba outras importantes dimensões da sociabilidade, como o direito, a política, a arte, a filosofia, a religião. A ideologia é antes de tudo instrumento para dirimir conflitos surgidos no interior dos processos históricos do ser social. O que determina se dado conjunto de ideias é ou não ideologia é a sua função social e não o seu caráter de falsidade. (Vaisman & Fortes, 2014, p. 120-121).
E Lukács vai além: o campo das possibilidades aumenta a cada
complexificação social, e a possibilidade de um conjunto de ideias de um grupo
de se tornar de facto ideologia depende de suas ações diretas nos conflitos
sociais que surgem no processo de estranhamento. A ideologia se sustentará
num grupo social e essas marcas podem parecer imperceptíveis ou
absolutamente evidentes dependendo de suas funções no processo dos conflitos
sociais, pois a ideologia é um meio da luta social – e é neste meio da luta social
que também surge a concepção pejorativa de ideologia, que se relaciona a uma
175
falsa consciência. A política aparece como uma forma ideológica específica neste
processo:
A incompatibilidade factual das ideologias em conflito entre si assume as formas mais díspares no curso da história, podendo se manifestar como interpretação de tradições, de convicções religiosas, de teorias e métodos científicos etc., que, no entanto, constituem sempre antes de tudo meios de luta; a questão a ser decidida por eles sempre será um “o que fazer?” social, e decisivo para a sua confrontação fática é o conteúdo social do “o que fazer?”; os meios da fundamentação dessa pretensão de condução da práxis social permanecem meios cujo método, cuja constituição etc. sempre depende do hic et nunc social do tipo da luta, do tipo de “o que fazer?” contido nele. (Lukács, 2013, p. 465-466).
Aprofundando a questão abordada anteriormente sobre o surgimento da
personalidade, Lukács demonstra que a singularidade é uma propriedade
ontológica geral de todas as coisas e de todos os processos, incluído aí o
homem, e complementa na afirmação conclusiva de sua explicação sobre os
pores teleológicos: a singularidade, pois, no nível social é uma forma
complexamente sintética na qual ganha expressão a unidade pessoal que regula
a peculiaridade dos pores teleológicos e as reações aos pores de outros
membros da sociedade. E continua:
A unidade da pessoa daí resultante tem, em conformidade com isso, igualmente um caráter duplo objetivo inseparavelmente unitário. Por um lado, a unidade social do homem, a sua existência como pessoa se evidencia no modo como ele reage às alternativas com que a vida o confronta; as ponderações que precedem essas decisões em seu íntimo nunca chegam a ser totalmente indiferentes para o quadro global dessa sua singularidade, mas, ainda assim, trata-se da cadeia vital de decisões alternativas, na qual se manifesta a verdadeira essência da singularidade social, a dimensão pessoal no homem. Por outro lado e simultaneamente, porém, todas as alternativas, pelas quais o homem toma suas decisões, são produtos do hic et nunc social, no qual ele tem de viver e atuar; mas essas perguntas, às quais ele responde em cada caso, não são só levantadas pelo meio ambiente social; cada uma dessas perguntas também tem sempre um campo de ação de possibilidade de respostas reais concretamente determinado em termos sociais. Portanto, o homem é pessoa ao fazer ele próprio a escolha entre essas possibilidades. Ele até pode, em caso de autêntica originalidade,
176
encontrar uma resposta ainda não utilizada por nenhum dos seus contemporâneos, mas também essa se evidencia sempre como componente necessário justamente desse campo de ação. Quanto mais complexo, quanto mais ramificado for esse campo de ação, tanto mais desenvolvida será a sociedade; de modo correspondente, quanto maior for a parcela pessoal de quem responde, tanto mais desenvolvida pode ser sua personalidade. (Lukács, 2013, p. 469-470).
Ao mesmo tempo que o locus de todo e qualquer conflito social é a
realidade econômica dos grupos sociais, este conflito só pode se manifestar
diretamente no indivíduo singular, pois este é o portador de toda atividade social.
Por este motivo, todos os conflitos também se manifestam como embates de
interesses entre homens singulares ou entre estes e grupos humanos ou ainda
entre dois grupos deste tipo. O interesse vital dos homens singulares que
compõem cada grupo em conflito com outro grupo está em choque ou converge
de um modo inconciliável. Já neste caso originário dos conflitos das sociedades
humanas, Lukács percebe a existência primária da ideologia, pois
esses antagonismos só podem ser enfrentados eficazmente na sociedade quando os membros de um grupo conseguem convencer a si mesmos de que seus interesses vitais coincidem com os interesses importantes da sociedade como um todo, portanto, de que cada um daqueles que defende esses interesses, simultaneamente faz algo útil para a sociedade como um todo. (Lukács, 2013, p. 471).
Se estas imposições ocorrem por meio do convencimento através de
violência direta ou não, isto não será a determinante direta que resulta em
ideologia, mas a questão central é a que o surgimento das ideologias pressupõe
estruturas sociais, nas quais determinados grupos sociais agem com o intuito de
impor à sociedade os seus interesses ideológicos como se fossem o interesse
geral da sociedade. Baseando-se diretamente em Marx, Lukács conclui, então,
que o surgimento e a disseminação de ideologias são a manifestação notória da
sociedade de classes – embora a ideologia como funcionamento teria sua origem
ainda nas primeiras formações da ação teleológica na transformação das
sociedades coletoras. Conclusão que expulsa liminarmente a acepção de
ideologia como falsa consciência, pois nem todas as falsas consciências do
177
mundo vêm a se tornar de algum modo ideologia, e o contrário também é válido,
isto é, embora existam ideologias que são postas através de ações da falsa
consciência, nem toda ideologia é uma falsa consciência do mundo.
A ideologia está imbuída de um pôr teleológico que não visa a resposta
primária de uma ação transformadora para a supressão de uma carência básica,
mas, ao contrário, se põe como um pôr finalístico de segunda ordem, um pôr que
visa “suscitar um novo comportamento em seus semelhantes e lhes confere
importância crescente tanto extensiva como intensivamente, tanto quantitativa
como qualitativamente para o processo de produção, para a sociedade como um
todo” (Lukács, 2013, p. 483). Com o desenvolvimento da sociedade a partir do
trabalho – sobretudo a partir do momento em que o próprio pressuposto do
trabalho se torna também um produto do trabalho –, estes pores teleológicos
secundários se ampliam, especialmente na forma de educação, cultura, hábitos
etc. Justamente por este motivo, muitos destes pores operam por lógicas
ideológicas próprias para satisfazer as necessidades da totalidade social, como é
o caso do direito e da política. Nestes casos, os pores teleológicos
desencadeiam não somente uma série de cadeias causais mas também um novo
pôr teleológico no grupo social. Essa inferência deste por teleológico secundário
nutre a influência dos pores teleológicos futuros dele derivados ao (i) transformar
as experiências individuais em posse ideal comum de todo um grupo social; (ii)
por consequência, ao fazer isso não somente de modo fático, mas
proporcionando modelo de atuação, influencia as suas decisões futuras; e (iii)
converte no homem singular e no seu grupo social a continuidade objetivamente
disponível de suas ideias e atitudes, enfim, transfigurando as formas de
consciência social de toda humanidade.
Após determinar o lugar do direito na ideologia, Lukács empreende esforço
para determinar, desta vez, o lugar da práxis política no âmbito da própria
ideologia. Para Lukács, a política é um complexo universal da totalidade social,
tratando-se de um complexo da práxis social mediada, ou seja, a política jamais
terá a universalidade espontânea da linguagem, por exemplo, enquanto órgão
primordial da apropriação do mundo através da objetivação dos objetos e dos
sujeitos que os põe pela objetivação. Segundo Lukács, não se pode existir
178
nenhuma comunidade humana, contudo, sem que haja a mediação política como
determinação dos rumos de dada comunidade. Senão, vejamos em suas
próprias palavras:
Não pode haver nenhuma comunidade humana, por menor que seja, por incipiente que seja, na qual e em torno da qual não aflorassem ininterruptamente questões que, num nível desenvolvido, habituamo-nos a chamar de políticas. É impossível dar uma definição, isto é, fixar em termos de pensamento formal os limites, onde começa ou então termina a política. Gottfried Keller disse certa vez com alguma razão que tudo é política. Entendido da maneira certa, isso significa que é difícil até mesmo imaginar algum tipo de práxis social que, sob certas circunstâncias, não pudesse tomar corpo como questão importante e eventualmente até determinante do destino da comunidade inteira. Trata-se naturalmente apenas de uma possibilidade que raramente se torna real. Normalmente, os problemas que estão vinculados diretamente ou de forma intimamente mediada com o destino de toda a sociedade se distinguem com bastante nitidez das ações e relações do homem singular, a respeito das quais normalmente parece convincente dizer que seu ser ou não ser é indiferente do ponto de vista do todo. E, não obstante, o nosso raciocínio inicial deve ser levado em conta quando se fala de política como esfera da vida da sociedade num sentido bem diferente daquela que – como o direito – é delimitada diante da divisão do trabalho como tal e munida dos especialistas necessários; por outro lado, seria igualmente um exagero entender de modo demasiadamente literal essa generalidade diretamente entrelaçada com a vida. (Lukács, 2013, p. 502).
A política é, deste modo para Lukács, um tipo de práxis que está voltada
para a totalidade social, colocando em movimento o mundo fenomênico social
com o intuito de modificar ou conservar o existente do todo social em cada caso,
modificando, por conseguinte, a essência humana. O critério de cada decisão
política é mediado pelo seu conteúdo ideológico, e possui dois motivos – que
muitas vezes estão interligados. O primeiro, diz Lukács baseando-se em Lenin, é
o elo mais próximo da corrente, ou seja, aquele ponto culminante cuja influência
de sua resolução é capaz de ter um efeito sobre um acontecimento global, ou
mais precisamente, o critério imediato para a práxis ideológico-política, aquele
que diz como um conflito real, de causas em última instância econômicas, pode
ser enfrentado e resolvido por meios políticos. O segundo é a mediação capaz de
determinar o tempo histórico de cada atuação política efetiva. Lukács apresenta
179
a preponderância do fator socioeconômico representado como a essência,
enquanto a sua extração fenomênica possa se apresentar no elemento político.
Por isso que muitas das ações políticas que não alteram nada mais que o
fenômeno imediato não pode ser classificada como uma ação de caráter
ideológico, não alterando a essência senão de modo meramente fenomênico.
Apesar disso, há que se pesar que todos os atos políticos ideológicos – sejam
“eles geniais ou estúpidos, sinceros ou criminosos” (Lukács, 2013, p. 508) podem
influir sobre a essência de modo a acelerá-la ou retardá-la em certos caminhos,
levando inclusive a desvios definitivos. Fica claro, portanto, que também as
ações políticas são responsáveis pela transformação social que altera a essência
– econômica – da sociedade. Vaisman e Fortes observam que as considerações
lukacsianas acerca da essência e fenômeno acabam por não conferir uma
autonomia à dimensão política, “circunscrevendo-a no interior de uma dimensão
mais ampla dos complexos do ser social” (Vaisman & Fortes, 2014, p. 122), e
isso não significa um rebaixamento da questão política, mas a compreensão de
seu lugar no quadro da dinâmica societária humana.
Ao delimitar a política como campo de ação determinado pela essência
econômica da produção social, Lukács percebe que o ato político é o campo das
possibilidades de ação a partir do ser-precisamente-assim concreto, sob o qual a
ação teleológica dispõe de menor capacidade de previsibilidade do fenômeno.
Não cabe aos homens a indicação da ação política de modo genérico, restando a
análise pontual de cada caso em sua particularidade. Lukács afirma:
Somente dentro do campo de ação dado nesses termos podem se explicitar os conflitos concretos a serem enfrentados e resolvidos politicamente, sendo que o como do enfrentamento e suas consequências causais se defrontam com esse ser-propriamente-assim concreto novamente de modo concreto em uma determinação impregnada de casualidades. Num primeiro momento, portanto, o que importa é compreender esse campo de ação em seu ser-propriamente-assim. (Lukács, 2013, p. 513).
Remetendo-se a Marx, Lukács percebe como nos textos marxianos de
juventude já estava presente a percepção de que a determinação social objetiva
entalha os limites e potencialidades da ação política – para tanto, utiliza os
exemplos de Crítica da filosofia do direito de Hegel e Sobre a questão judaica, no
180
qual, no primeiro, Marx elabora o exemplo do surgimento do estado burguês, e
no segundo, como a revolução política chegou ao termo em seu limite máximo,
isto é, em seu limite burguês. Isso leva Lukács à conclusão de que a mudança
estrutural da economia de uma sociedade no seu processo de transformação
social confere tanto novos conteúdos à política, como também modifica o tipo de
ação possível para as novas formas sociais de produção. Conclusão também
que leva a determinar que o campo de ação real em que aparece o fator
subjetivo sempre está circunscrito pelo desenvolvimento econômico – o que não
significa uma anulação do fator subjetivo, mas uma interdependência entre as
ações do sujeito a partir do ser-precisamente-assim social que o condiciona
(Lukács, 2013, p. 518), a partir da ideologia. A ideologia, por sua vez, como já
explicitado, é uma forma de consciência do mundo, mas não é exatamente um
reflexo idêntico da consciência da realidade – é uma forma de consciência
possível. Na forma de dirimir conflitos que surgem no desenvolvimento
econômico, a ideologia é direcionada para a práxis política, para as ações da
manutenção ou ruptura de um sistema de produção.
Este processo contingente não é por este motivo menos importante para a
alteração de toda uma estrutura social de produção. Lukács analisa as
ramificações da práxis política para dentro do terreno ideológico nas situações
revolucionárias, acreditando que estas situações conferem uma expressão mais
clara à totalidade das determinações, clareando, inclusive, as determinações
singulares dos conflitos normais da vida cotidiana. Para isto, remete-se a Lenin,
que utiliza as generalizações marxianas para aplicá-las à luta de classes do
cotidiano dos trabalhadores – o excerto citado por Lukács a exemplo de como o
conflito da vida cotidiana requer uma intervenção política consta em Que fazer?
de Lenin, no qual o revolucionário russo expõe que a consciência política de
classe deve ser levada de fora ao trabalhador, isto é, de fora das relações
econômicas do conflito de classes cotidiano, dirimindo a relação meramente
espontânea da luta de classes e elevando-a ao momento de sua inter-relação
com a totalidade, isto é, a observação da política como fenômeno de intervenção
entre o próprio estado e as classes sociais em choque econômico. Neste
181
momento, Lukács chama a atenção para a dissolução necessária da distinção
entre os trabalhadores e os intelectuais, pois
O fator subjetivo da história consegue desenvolver todo o seu potencial para o enfrentamento e a resolução dos conflitos só quando, por um lado, a insatisfação meramente imediata com as condições sociais dadas, a oposição contra elas, chega também teoricamente à negação da sua totalidade e quando, por outro lado, a fundamentação daí resultante não permanece só como mera crítica da totalidade do existente, mas também se torna capaz de converter em práxis as concepções assim obtidas, ou seja, de elevar a noção teórica à condição de práxis eficaz da ideologia. (Lukács, 2013, p. 523).
Não é por outro motivo que Lukács confirma que as massas têm a
potencialidade de se apoderar das ideias e as convertê-las em poder material de
facto – note-se ainda a referência à crítica de Marx a Hegel, especialmente no
tocante à afirmação de que a arma da crítica não pode substituir a crítica das
armas, mas que também a teoria se converte neste poder material tão logo as
massas dela se apoderem (Marx, 2005, p. 151). Esta reflexão lukacsiana leva
novamente ao ponto do significado prático dos pores teleológicos, demonstrando
que somente o ser é portador da ideologia, e aqui novamente se recorre ao
processo teleológico como exclusivo do ser social, pois, tal como na natureza
orgânica na qual todas as transformações possuem caráter de uma causalidade
espontânea, nem o processo social que produz os atos políticos, nem mesmo os
fenômenos deles decorrentes têm alguma teleologia. O ato teleológico é,
portanto, desencadeado pelo seu agente, e seu resultado não poderá ser outra
coisa senão um conjunto dos pores teleológicos que resultam numa causalidade
social. Para Lukács, essa percepção está subentendida também nas análises de
Lenin, quando aborda a questão das possibilidades históricas e seu papel
histórico, nas quais um esforço coletivo dos agentes revolucionários através dos
atos políticos pode desencadear uma revolução. Esta concepção de Lenin tem
um duplo aspecto: o primeiro, é que nenhuma dominação rui por si própria, isto
é, as grandes transformações históricas jamais são decorrências meramente
mecânicas do desenvolvimento das forças do trabalho; o segundo, é a
efetividade da ação do ser social, o que constitui não só uma alteração de toda a
182
produção e organização social realizada pelos indivíduos singulares em conjunto,
mas também que estes indivíduos singulares acabam, por conseguinte, sendo
transformados neste processo revolucionário. Tudo isso significa que embora o
fator econômico seja objetivamente determinante no modo de organização social,
este por si só não desencadeia nenhuma transformação profunda na sociedade
autonomamente. O fator econômico pode potencializar as condições
revolucionárias, mas o fator político é o elemento ativo em tais transformações.
Lenin indicou reiteradamente que tais processos apresentados como
possibilidades não são postos em marcha senão pela ação dos indivíduos
singulares, no campo das alternativas15. Lukács entende que as circunstâncias
históricas abrem a potencialidade da ação revolucionária, que funcionam no
campo das possibilidades.
De modo universalmente ontológico, elas [as circunstâncias histórico-sociais] estão baseadas, em última análise, no caráter alternativo de toda resolução humana, cujo pressuposto necessário é que os mesmos acontecimentos sociais influem diferentemente sobre os diferentes estratos e, em seu âmbito, sobre os diferentes indivíduos. Contudo, só esses acontecimentos, as condições por eles criadas, podem ter uma determinidade evidentemente causal. Naturalmente, cada modo de reação de todo homem singular tem a sua pré-história causal concreta; a sua influência determinante não é nem de longe tão unívoca quanto a conexão entre dois fenômenos econômicos. Lenin sempre viu com clareza essa polissemia dos posicionamentos dos homens diante de grandes decisões. Quando, na véspera da decisão de novembro, concordou que estavam dadas as condições subjetivas para a revolta armada, ele constatou simultaneamente, sem otimismos, que havia parcelas das massas oprimidas que, em seu desespero imediato, aparentemente sem saída, foram parar na esfera de influência da reação mais extremada, e elucidou, com serena objetividade, por que isso teve de acontecer dessa maneira. (Lukács, 2013, p. 524-525).
15 Lenin enumera uma série de situações revolucionárias que não resultaram em revolução. “Porque não é de toda situação revolucionária que surge uma revolução, mas só de uma situação revolucionária em que, às transformações objetivas acima enumeradas, junta-se ainda uma transformação subjetiva, a saber: a capacidade da classe revolucionária para ações revolucionárias de massa, suficientemente fortes, para esmagar (ou abalar) o poder do antigo governo – este poder que nunca ‘cai’, nem mesmo em épocas de crise, a não ser que o ‘deixem cair’.” (apud Lukács, 2013, p. 525).
183
Esta passagem de Lukács representa tanto a ausência de uma
inexorabilidade dos processos revolucionários quando estão dadas as
circunstâncias econômicas objetivas para tal, como também representa como o
campo de ação dos indivíduos singulares está em plena conexão e subordinação
às circunstâncias histórico-concretas, que desencadeia a ação por uma das
alternativas postas no campo resolutivo destes indivíduos singulares – tais ações
teleológicas colocaram em marcha uma nova corrente de causalidades
totalmente determinadas pela congregação de tais ações resolutivas. A este
respeito, Vaisman e Fortes anunciam com precisão o papel da politicidade no
pensamento tardio de Lukács, demonstrando que na política não cabe espaço
para a realização da utopia ou a realização de um caos a partir de alternativas
inexistentes, isto é, que não foram apresentadas a uma realização prática no
campo das potencialidades. Em suas palavras:
Importante perceber em tais considerações a completa ausência de um caráter voluntarista da política em Lukács. Toda ação política implica o reconhecimento — ainda que não se dê de forma plena — e a atuação efetiva sobre nexos sociais objetivos. Não há espaço para a utopia no campo desses atos práticos, pois sua esfera de atuação implica as possibilidades objetivas concretamente postas pela dinâmica social de determinado contexto histórico-social. Nesses termos, toda revolução não é a mera realização de utopias, mas o pôr em movimento de nexos causais presentes na malha social que conduzem as tendências essências a um novo rumo e a uma nova orientação. (Vaisman & Fortes, 2014, p. 125).
Durante um processo revolucionário, as divergências do fator subjetivo não
são irracionais ou incompreensíveis – ao menos no post festum são plenamente
compreensíveis –, mas também são resultados causais originados pelos distintos
pores teleológicos. Tais divergências são, na realidade, uma exacerbação
elevada ao seu limite de uma situação na qual as consequências dos pores
teleológicos destinados a levar outras pessoas a novos pores jamais podem
atingir a mesma determinação unívoca, ao menos no plano imediato, a
exercerem outros pores que são baseados num conhecimento relativamente
correto dos nexos que o direcionam a uma nova forma social. Um pôr teleológico
desta natureza tem a intenção de agir no pôr teleológico de outro indivíduo
184
singular, dando-lhe capacidade ou condições de uma nova ação sugerindo uma
ação ou decisão desejada. O fato de que no caso das decisões políticas, os
fatores econômicos e a própria política anteriormente praticada influem
diretamente nos indivíduos singulares, não muda nada nessa estrutura, apenas a
torna nebulosa de se verificar no hic et nunc. O fato de as pessoas sempre
agirem em um espaço social com um entorno concreto obstaculiza a
homogeneidade dos pores teleológicos, mas isto não é, de modo algum, um fator
obliterante para a realização de um processo revolucionário.
As perguntas e resoluções com as quais os homens se deparam numa
situação cotidiana se tornam mais cruciais e decisivas durante um processo
revolucionário. Enquanto numa vida cotidiana normal todas as decisões
resolutivas no campo das alternativas que ainda não se converteram em rotina
completa é tomada numa atmosfera de inúmeros posicionamentos de modo que
os juízos sobre a totalidade dos fatos são formados de modo extremamente raros
e quase sempre em tons descomprometidos; durante um processo
revolucionário, diz Lukács (2013, p. 526), a maioria das pessoas se depara com
problemas atinentes ao destino de suas próprias vidas, que, em contradição com
o cotidiano normal, já adquirem forma de uma pergunta eminentemente clara, e
que exigem, por sua vez, uma resposta diretamente clara. Exatamente nos
momentos turbulentos de um processo revolucionário, emergem de modo
evidente as perguntas que durante um momento cotidiano simples não estariam
a um grupo tão significativo de pessoas. E isso pode, por sua vez, alterar então o
curso da história, o que modifica a essência econômica de uma sociedade – o
que Lukács chamou de o problema ontologicamente fundamental de toda
revolução. Com muita clareza, Lukács expõe o campo de ação dos indivíduos e
sua relação com os pores teleológicos secundários no campo de ação dos
indivíduos singulares:
O próprio processo econômico não determina mais se as respostas são dadas no sentido recém-indicado ou em sentido contrário, mas isso é consequência das decisões alternativas dos homens que são confrontados com elas por esse processo. Portanto, o fator subjetivo na história é, em última análise, mas só em última análise, produto do desenvolvimento econômico, pelo fato de as alternativas com que ele é confrontado serem
185
produzidas por esse mesmo processo, mas ele atua, num sentido essencial, de modo relativamente livre dele, porque o seu sim ou seu não estão vinculados com ele só em termos de possibilidades. Nisso está fundado o grande papel historicamente ativo do fator subjetivo (e, junto com este, da ideologia). (Lukács, 2013, p. 531).
Isso tudo reitera a posição lukacsiana de que é a necessidade do
desenvolvimento econômico que cria um campo de ação de possibilidades para
as decisões ideológicas dos homens. As resoluções que os homens são
obrigados a tomar durante as perguntas suscitadas pelos processos econômicos
na transformação dinâmica das relações e estruturas sociais de produção têm
sua base na realidade objetiva determinada dialeticamente pelas suas relações
econômicas; tais respostas a estas perguntas levam os homens singulares a se
desenvolverem tanto como individualidades quanto também como ser genérico,
numa transformação dependente e simultânea – saibam ou não os homens
disso, mas quanto mais afastada do processo de produção estiver tal práxis,
menos consciência da totalidade terá tal indivíduo, dada a preponderância do
fato econômico na vida social dos homens. A consciência, então, surge em
decorrência direta da situação em que cada indivíduo singular está posto na
sociedade, de sorte que a generidade é decorrente deste processo do mesmo
modo que reverbera e reflete este processo irrevogável e continuamente,
formando por sua vez a ideologia. Lukács (2013, p. 538) vê no campo do
surgimento das ideologias que a arte e a filosofia são as formas puras de
ideologia surgidas desta consciência do mundo, especialmente porque estas por
si só não têm a intenção ou a capacidade de exercer qualquer tipo de impacto
imediato e real sobre a economia nem sobre as formações sociais a elas
associadas – vale lembrar que Hegel também tratou a religião neste contexto,
mas rejeitado como exemplo por Lukács porque enquanto fator da realidade
social, a religião não é ideologia no sentido explicitado pelo revolucionário
húngaro, sendo um fator operante da práxis social real dos homens,
apresentando-se como uma forma sintética entre política e filosofia. Em outras
palavras, a religião pode por em cadência um conjunto objetivo de poderes, de
ordenações políticas ou econômicas nas transformações sociais, e justamente
186
por este motivo não é uma forma apenas contemplativa de espelhamento da
realidade.
A peculiaridade da arte, para Lukács, por sua intenção essencial consiste
num propósito mimético da realidade, mas não está direcionada para a práxis
diária imediata; embora criem condições de espelhamento que podem se tornar
significativas no agir e na resolução dos conflitos ideológicos. Do mesmo modo, a
observação de que a filosofia trata do gênero humano através de uma imagem
ontológica do universo, e não necessariamente do campo imediato das ações faz
com que Lukács (2013, p. 542 e 545) possa estabelecer em seu critério
classificatório dos pores teleológicos ambas como formas puras de ideologia. De
modo sintético, as formas puras de ideologia não podem exercer uma ação direta
sobre a economia e sobre as estruturas sociais a ela relacionadas, mas só
podem agir por meio de desdobramentos que levem as formas específicas de
ideologia – a política e o direito – à atuação prática e imediata no mundo
cotidiano. Lukács demonstra como a reificação [Verdinglichung] incide em cada
campo – da filosofia e da arte, de um lado, e do direito e da política, de outro –
num exemplo da própria explicação do processo genético de cada campo.
A partir dessa constituição dos objetos cotidianos surge, então, espontaneamente a seguinte atitude: não compreender as “coisas” como surgidas geneticamente, mas como necessariamente “prontas e acabadas”; quando se pergunta pelo seu surgimento, geralmente se aponta para um “criador” transcendente. É o que ocorre já nos mitos de Prometeu para explicar o uso do fogo, que objetivamente sem dúvida foi um produto da atividade bem própria dos homens; é o que ocorre mais tarde nos mitos sobre a essência e o poder do dinheiro etc., que penetraram até na ciência e na filosofia. Portanto, não é nenhum milagre que as atividades mais elevadas, positivamente avaliadas, dos homens igualmente foram reificadas como “dons” míticos vindos de cima; é o que se deu justamente na filosofia (sabedoria) e na arte. Onde, como acontece no direito, o vínculo imediato com a vida é muito forte para poder ser totalmente projetado para o transcendente, os legisladores foram transformados em figuras míticas, dando ao direito por eles proclamado uma base em revelações transcendentes (Moisés, mas também, embora mais seculares, Licurgo, Sólon, etc.). Essas mitificações originais dos próprios atos da humanidade em dons dos deuses, eventualmente mediados por heróis enviados por deus, ainda sobrevivem na concepção atual em nível científico altamente desenvolvido, na medida em que as áreas da intelectualidade mais elevada não são concebidas como resultado
187
da práxis humana, mas como valores “inatos”, “intuições” (matemática), “inspirações” (arte) etc. (Lukács, 2013, p. 550-551).
Todas as ações artísticas e filosóficas são motivadas pelos conflitos
existentes em cada época histórica em que são compostos tais enunciados; por
isso mesmo, o caráter genético de tais momentos de elaboração artística e
resolução filosófica está alicerçado no desenvolvimento social, no teor humano
dos conflitos. O conteúdo artístico e filosófico é constituído pelas questões postas
pelo mundo, para as quais tanto o artista quanto o filósofo buscam respostas às
questões práticas, empenhando-se – cada um ao seu modo – na construção do
modo mais adequado possível do espelhamento da realidade na elucidação da
generidade humana, “cuja totalidade direta ou indiretamente não só ‘resolve’ o
conflito causador, mas além disso, também o insere, como etapa necessária, no
itinerário da humanidade ao encontro de si mesma”, donde surgirá, portanto, os
complexos artísticos e filosóficos. (Lukács, 2013, p. 558). Tudo isso tem raízes
naquilo que Lukács denominou de ontologia da vida cotidiana, ou seja, no modo
de dirimir os conflitos da vida na imediaticidade do cotidiano. E se liga à sua
concepção prática da política, de uma reivindicação da democracia da vida
cotidiana, o que conecta o seu testamento filosófico com seu testamento político.
188
CAPÍTULO 3 O TESTAMENTO POLÍTICO DE LUKÁCS
Como mencionado na Introdução desta tese, este terceiro capítulo visa ao
aprofundamento da análise da politicidade no último Lukács, especialmente no
tocante à politicidade tratada objetivamente na realidade, nos processos de
interação social; depois de demarcada a rota de sua politicidade no âmbito
teórico contida na Ontologia. Para tanto, valemo-nos por ora de seu escrito
Demokratiesierungschrift, a partir de agora tratado como O processo de
democratização (Lukács, 2008), de 1968, como explicado anteriormente nesta
tese. A princípio, outros dois textos deste último período político lukacsiano
podem lhe fazer contraste: Carta sobre o stalinismo (Lukács, 1977), escrito em
1963 por ocasião do XXII Congresso do Partido Comunista da União Soviética, e
que debate o processo de desestalinização aberto em 1956 por Khrushchev; e
Meu caminho para Marx, escrito publicado originalmente em 1933 na revista
Internationale Literatur (Moscou, n. 2), logo após Lukács realizar sua autocrítica
acerca de História e consciência de classe16. Não obstante, interessa-nos agora
o seu pós-escrito de 1957 (Lukács, 2008), redigido por ocasião do Symposium on
16 Sobre este assunto, Cf. TERTULIAN, Nicolas. Metamorfoses da Filosofia Marxista: a propósito de um texto inédito de Lukács. In Crítica Marxista 13. São Paulo: Boitempo, 1991.
189
contemporary thought realizado no Japão – publicado pela primeira vez na
revista italiana Nuovi Argomenti (nº 33, 1958).
3.1 Carta sobre o stalinismo e o posfácio de Meu caminho para Marx
Cinco anos antes deste escrito sobre O processo de democratização, em
oportunidade de debater a questão central do stalinismo, Lukács (1977) redige
sua Carta sobre o stalinismo, cujo ponto central de suas críticas se estabelece a
partir da questão do método de Stalin. Por toda a sua carta, o problema central
do stalinismo não aparece como uma questão econômica, a despeito de sua
crítica da naturalização da economia, anos mais tarde nos Prolegômenos; todos
os problemas políticos, por sua vez, parecem ser originados de um problema
stalinista sobre o método. Stalin havia adulterado o pensamento de Lenin e de
Marx, criando um método próprio, que podia ser identificado como a formação
das leis fundamentais de Stalin. A nova metodologia de Stalin, vê Lukács (1977,
p. 8), fazia uma espécie de adaptação de sua tática política dependendo da
ocasião a ser implementada, adulterando a história, inclusive, ad hoc, e em nome
do marxismo. Por isso mesmo, Lukács afirmou que a “exigência do nosso tempo”
era justamente o afastamento do método stalinista. Vejamos um excerto que
caracteriza muito emblematicamente a crítica de Lukács ao stalinismo situada no
âmbito metodológico:
Stalin tinha necessidade de uma execução precisa das suas decisões por parte do aparelho, e, ainda, se possível, da aprovação das amplas massas; também por isso simplificou radicalmente as suas formulações teóricas. A supressão das mediações, a ligação direta entre os princípios mais gerais e as exigências concretas da atividade prática cotidiana, neste sentido, apareciam como meios bastante idôneos. Também aqui, não se concretizou a teoria aplicando-a à prática, mas, ao contrário, simplificando e vulgarizando os princípios segundo as exigências (comumente apenas presumidas) da prática. Limito-me a um exemplo particularmente expressivo, conquanto pudesse alinhar inúmeros outros: na sua última obra econômica, Stalin “descobriu”
190
aquilo que tinha “escapado” a Marx, Engels e Lenin, isto é, que toda formação econômica possui uma “lei fundamental”, a qual pode ser sintetizada numa proposição simples. Uma proposição tão simples que até o mais limitado e inculto dos funcionários a compreende logo, ficando, assim, em condições para, utilizando-a, condenar em seus desvios de “direita” ou de “esquerda”, qualquer trabalho de ciência econômica, mesmo que não entenda objetivamente nada da matéria. Marx, Engels e Lenin sabiam que as formações econômicas constituem sistemas móveis e complexos, cuja essência só pode ser definida mediante uma consideração exata de todas as suas determinações importantes, das suas interações recíprocas, proporções etc. As “leis fundamentais” de Stalin, por sua vez, enunciam meras banalidades, não esclarecem coisa alguma, porém dão a certos círculos a ilusão de saberem tudo antecipadamente. Nessa direção, da vulgarização através da supressão dos termos médios, situa-se a enunciação de Stalin no seu ensaio sobre a Lingüística, segundo o qual a decomposição de uma formação econômica determina também a decomposição da sua ideologia. (Lukács, 1977, p. 8-9).
Neste sentido, o acerto de Lukács sobre isto é evidente17. No entanto, é
verdade que na oportunidade em que teve de reforçar o quão grave para a
humanidade havia sido o fenômeno do stalinismo, Lukács parece resumir
completamente a questão à ordem metodológica e ao reducionismo tático de
Stalin. É também verdade que este esforço gerou a monumental tarefa de
demonstrar a ontologia do ser social em Marx, obra que certamente coloca
Lukács no panteão dos filósofos mais importantes do marxismo. Contudo,
Lukács, de princípio, manteve-se alinhado à política de Khrushchev e a sua
17 Vale notar sobre esta questão o método pseudo-científico da iarovização, implementado por Trofime Lyssenko – o que dá origem, mais tarde, ao lyssenkismo (Bottomore, 2001, p. 226). Lyssenko propôs uma agronomia revolucionária segundo a qual ao modificar conceitos simples como umidade e temperatura do solo poderia se alterar os padrões sazonais de colheita. Seus métodos e teorias contrariavam o padrão científico da botânica. A partir de 1935, com amplo apoio de Stalin, Lyssenko conseguiu vencer qualquer oposição no âmbito acadêmico, sob o discurso de que o método e o funcionamento da botânica eram influenciados pelas leis fundamentais da luta de classes. Importantes botânicos foram perseguidos e mortos na União Soviética sob o controle de Stalin e Lyssenko, que em 1938 fora nomeado presidente da Academia Lenin de Ciências Agronômicas, e em 1940 se tornara diretor do Instituto de Genética de Moscou, recebendo três prêmios Stalin de ciência. Enquanto a biologia molecular dava saltos gigantescos nos Estados Unidos, Lyssenko levou a União Soviética a um prejuízo agrícola sem precedentes na história russa. Apesar disso, amigo pessoal de Stalin, Lyssenko jamais chegou a ser questionado durante o governo stalinista. Após a morte de Stalin, Khrushchev continuou a perpetuar o lyssenkismo, até ambos, Lyssenko e Khrushchev, serem depostos em 1965. O lyssenkismo foi usado como arma ideológica ocidental durante a Guerra Fria e afastou importantes cientistas humanistas do campo marxista.
191
desestalinização meramente formal (Crankshaw, 1971) – e identificou a queda
deste e a ascensão de Brejnev como um passo atrás no processo de
democratização da União Soviética (Del Roio, 2013), que via em Stalin um
estadista que havia cometido excessos dos quais o estado soviético necessitava
expurgar. Observemos dois excertos de Carta sobre o stalinismo. No primeiro,
Lukács verifica o ponto positivo de Stalin na construção do socialismo soviético,
reivindicando o socialismo em um só país como possibilidade real:
Neste período Stalin se revelou um estadista notável e que via longe. Sua enérgica defesa da nova teoria leninista quanto à possibilidade do socialismo em um só país, contra os ataque sobretudo de Trotski, representou, como não se pode deixar de reconhecer hoje, a salvação da revolução soviética. É impossível fazer justiça histórica a Stalin sem considerar deste ponto de vista a luta de tendências havida no partido comunista. (Lukács, 1977, p. 3)
No segundo excerto, acerca dos Processos de Moscou, Lukács também
acabou por ser demasiado brando em sua crítica ao stalinismo:
Permitam-me uma breve digressão sobre o significado das reabilitações. Sem dúvida todos aqueles que, nos anos trinta e mais tarde, foram injustamente perseguidos, condenados e assassinados por Stalin, devem ser reabilitados quanto às “acusações” inventadas contra eles (espionagem, sabotagem, etc.). O que não implica que devam ser “reabilitados” também os seus erros políticos e as suas perspectivas falsas. Sobretudo no caso de Trotski, que foi o principal defensor teórico da tese de que a construção do socialismo em um só país era impossível. (Lukács, 1977, p. 3).
E Lukács finaliza a carta justamente a partir da premissa de que um
retorno a Marx era uma questão central, já que o campo das análises filosóficas
e políticas havia ficado estancado desde a morte de Lenin. No posfácio de 1957
de Meu caminho para Marx, Lukács (2008) nos dá os argumentos relativos a este
seu momento político, não deixando de frisar, contudo, o testemunho do “esforço
de Stalin para salvar a verdadeira herança de Lenin contra Trotski, Zinoviev etc.”
o que o fez verificar “que [com tal esforço] foram resgatadas e ulteriormente
desenvolvidas conquistas que Lenin nos legou” (Lukács, 2008, p. 42). Lukács se
referia ao ponto fundamental da luta de Lenin acerca da vanguarda política
192
revolucionária. Já em 1924, Lukács (2012) via o acerto de Lenin em determinar o
proletariado como a força motriz do processo revolucionário na Rússia atrasada,
porque a burguesia parca e insuficiente capitulava a ponto de exercer uma
aliança com o absolutismo feudal, conservando as velhas políticas; então, “a
burguesia, assim decaída ideologicamente, deixa para a revolução proletária a
tarefa de realizar suas antigas exigências revolucionárias” (Lukács, 2012, p. 41).
De modo que a tarefa da democracia política poderia ser transitada para uma
democracia radical da qual seu agente revolucionário deveria ser o operariado
russo – e não os camponeses, como queriam os narodnikis – já que “os
camponeses, não apenas por seu terrível atraso cultural, mas sobretudo por sua
situação objetiva de classe, são capazes apenas de uma revolta elementar
contra sua situação cada vez mais insustentável”; e continua, numa lucidez
intrépida, que os camponeses, “por sua situação objetiva de classe, estão
destinados a permanecer como uma camada oscilante, uma classe cujo destino
será decidido, em última instância, pela luta de classes na cidade, pelo destino
da cidade, da grande indústria” (Lukács, 2012, p. 42). A revolução proletária só
poderia se efetivar, segundo Lukács, a partir do desenvolvimento das forças
produtivas, e somente o proletariado poderia encabeçar tal luta num local onde a
burguesia era débil, o que “significa, a um só tempo a efetivação e a superação
da revolução burguesa”. (Lukács, 2012, p. 68). O posicionamento lukacsiano em
defesa do partido e de Lenin jamais foi abandonado, nem mesmo em sua
Ontologia:
É só com Lenin que se inicia um verdadeiro renascimento de Marx. Em particular nos seus Cadernos filosóficos, escritos nos primeiros anos da Primeira Guerra Mundial, volta a seguir o interesse pelos autênticos problemas centrais do pensamento marxiano: a cuidadosa e cada vez mais profunda compreensão crítica da dialética hegeliana culmina numa nítida rejeição de todo o marxismo tal como se apresentara até então. “Não se pode compreender plenamente O capital de Marx e, em particular, seu primeiro capítulo, sem estudar atentamente e sem compreender toda a lógica de Hegel. Por conseguinte, após meio século, nenhum marxista compreendeu Marx!”18 E Lenin não exime disso nem sequer Plekhanov, o melhor conhecedor de Hegel entre os
18 [Vladmir Ilitich Lenin. Aus dem philosophichen Nachlass, in Vladmir Adoratskij (org.) Sämtliche Werke, v. 21, Viena/Berlin, Dietz, 1960, p. 99 – citado por Lukács em nota].
193
marxistas de então, e que ele em outros pontos apreciava enquanto teórico. Sobre este ponto, Lenin prossegue com sucesso a linha do Engels tardio, aprofundando-o e desenvolvendo-o em muitas questões. (Lukács, 2012, p. 299).
Neste citado posfácio de 1957 de Meu caminho para Marx, Lukács volta a
reiterar o avanço que o debate de Lenin significou sobre a ortodoxia
plekhanoviana, abrindo novas possibilidades do debate filosófico. Entretanto, nos
anos 1930, quando percebe que deve tomar uma posição contrária ao processo
de burocratização da União Soviética de Stalin, Lukács se vê num dilema que o
leva à defesa do socialismo em um só país: o que estava em jogo, dizia, era a
defesa do “único Estado socialista – e, portanto, do próprio socialismo” (Lukács,
2012, p. 43) contra ofensiva de Hitler. Não fora por outro motivo, então, que
Lukács subordinava toda a sua obra e inclusive seus posicionamentos políticos
abertamente em defesa do partido. Acreditava que uma oposição ao stalinismo
ali não era possível fisicamente, além do que isso poderia lhe transformar “num
apoio intelectual e moral ao inimigo”, a ideologia do capital. A partir disso, Lukács
se viu obrigado a travar uma luta de guerrilha em defesa de suas ideias
científicas, recorrendo, para tanto, a citações protocolares de Stalin, embutindo
nelas de modo sutil a opinião de oposição sem que com isso se tornasse um
modelo anti-socialista a ser utilizado pelo Ocidente (Lukács, 2008, p. 43). Um dos
casos emblemáticos ocorreu quando o stalinismo qualificou Hegel como ideólogo
da reação feudal contra a Revolução Francesa, impedindo Lukács de publicar o
seu livro sobre O jovem Hegel. Na ocasião, Lukács opta por uma estratégia que
menos ultrajava sua concepção de emancipação humana: “já que a propaganda
anti-hitlerista resolveu ocupar-se precisamente deste tema, era mais importante
naquele momento vencer a guerra do que discutir a correta interpretação de
Hegel” (Lukács, 2008, p. 44), o que o fez publicar, somente posteriormente, o
livro sem ressalvas.
Quanto aos Processos de Moscou, neste momento, Lukács acreditava
serem necessários, apesar de ilegais, do mesmo modo como fora o Termidor na
França revolucionária:
Refiro-me, naturalmente, aos grandes processos, cuja legalidade, desde o princípio, vi com cetismo, não muito diversamente – por
194
exemplo – da legalidade dos processos contra os girondinos, os dantonianos, etc. no curso da grande Revolução Francesa. Ou seja: eu reconhecia a sua necessidade histórica, sem preocupar-me muito com a questão da sua legalidade. (Lukács, 2008, p. 44).
No momento em que Lukács viu os Processos de Moscou se
transformando nos Grandes Expurgos soviéticos, nos quais foram assassinados
os inimigos políticos de Stalin, inclusive a velha guarda bolchevique, ele toma
uma posição contrária. Mas jamais chegou a reagir publicamente, e a sua
justificativa para tal ato era uma justificativa moral: não poderia se opor à União
Soviética na iminência de um confronto decisivo contra o fascismo. “A um
comunista convicto”, escreve Lukács neste posfácio, “caberia dizer apenas:
‘Right or wrong, my party’. Fizesse o que fizesse naquela situação o partido
dirigido por Stalin [...] era necessário permanecer incondicionalmente solidário
com ele naquela luta, pôr esta solidariedade acima de tudo” (Lukács, 2008, p.
44). Esta defesa moral da União Soviética foi ratificada até os últimos momentos
de sua vida. István Eörsi, no roteiro de Pensamento Vivido, a autobiografia em
diálogos de Lukács, assim percebe esta posição de Lukács:
Pertencer ao partido era para ele uma necessidade vital. “Right or wrong, my party”, com esta frase, que soa bastante estranha na boca de um filósofo, ele justificava por que nem mesmo na época dos expurgos tinha se insubordinado contra o stalinismo. Nem mesmo intimamente! Ademais, sustentava essa posição apontando também motivos históricos, como na entrevista que concedeu à New Left Review, só publicada após sua morte no número de julho/agosto de 1971. Nela, repetiu enfaticamente sua convicção: “Só nas fileiras do movimento comunista é que se podia lutar de maneira eficaz contra o fascismo. Hoje ainda sou dessa mesma opinião”. Mas, por volta de 1970, o crítico que sabia apreciar as obras dos irmãos Mann e de Attila József só poderia manter-se fiel à essa convicção suprimindo generosamente os fatos. À guisa de argumentação, também tinha afirmado várias vezes que durante o conflito entre Stalin e Hitler, por obrigação moral, fora preciso adiar qualquer crítica à União Soviética. Mas, mesmo que assim fora naquela época, por que ele não rompeu o silêncio mais tarde? Por que, após seu regresso à Hungria, mesmo no estreito círculo dirigente dos comunistas húngaros, que não conheciam pessoalmente a União Soviética, ele agiu como se nada soubesse dos terríveis grilhões da existência física e espiritual, da atmosfera de medo geral, dos campos de concentração que funcionavam como excelentes campos de extermínio, ou seja, da orientação stalinista do desenvolvimento soviético? A sequência da entrevista à New Left Review responde
195
a esta pergunta: “Sempre fui da opinião que, mesmo na pior forma de socialismo, se pode viver melhor do que na melhor forma de capitalismo”. No número de maio de 1969 da revista Neues Forum, diz a mesma coisa de maneira ainda mais direta: “Mas, mesmo o pior socialismo é sempre melhor do que o melhor capitalismo. Só aparentemente isto é um paradoxo”. Quem defende esta opinião não precisa de motivos históricos especiais ou de considerações morais para se tornar membro de um partido que dirige a construção desse adorado socialismo. (Eörsi in Lukács, 1999, p. 11).
Tertulian (2002, p. 31), contudo, defende Lukács, acreditando ser o
contexto de uma luta contra o Ocidente – que de algum modo deixava sempre
oculto o avanço que o socialismo de tipo soviético tinha conquistado, sobretudo
acerca da paridade atômica nos esforços pela paz mundial ou da vitória contra os
nazistas – que fazia Lukács tomar uma posição em defesa do socialismo
realmente existente.
A insuficiente luta de Lukács pela oposição ao stalinismo culmina em 1945
com o seu escrito Literatura e democracia, no qual havia um apelo por um novo
socialismo, já que o autor vivenciava novamente a experiência do Grande
Expurgo, desta vez, por ocasião da ruptura da União Soviética com a Iugoslávia.
Contudo, Lukács considerou os erros de Stalin a partir de 1948 como um
retrocesso aos mesmos erros que motivaram a União Soviética a declarar a
social-democracia alemã como os inimigos do proletariado, inviabilizando a
Frente Popular anti-fascista. E justamente pelo fato de o dogmatismo stalinista
ter adulterado o marxismo, Lukács percebia a importância de se retomar Marx
como ponto de inflexão na luta contra o revisionismo, que tomava o stalinismo
como autêntico marxismo para deflagrá-lo inerte frente aos problemas do mundo.
Ainda assim, os problemas do stalinismo estavam resumidos ao método. Imbuído
desta tentativa de livrar o marxismo do método stalinista, não é diferente a
reivindicação de um crivo metodológico no pensamento marxiano como
exigência inicial de O processo de democratização. Lukács reforçava com este
empreendimento a tarefa fundamental do “retorno a Marx”, uma vez admitindo o
fracasso total das experiências revolucionárias – note-se que Lukács jamais
escreveu ou pronunciou sobre este fracasso, apenas declarou, em tom de
desabafo, a István Eörsi por ocasião do massacre húngaro de 1968 realizado
196
pelo Pacto de Varsóvia: “Parece que todo o experimento iniciado em 1917
fracassou e tudo tem de ser começado outra vez num outro lugar” (Eörsi in
Lukács, 1999, p. 12).
3.2 O processo de democratização
Lukács (2008, p. 83) inicia O processo de democratização sobre a
demonstração de que a universalização genérica dos conceitos tem levado a
interpretações equivocadas ao longo da história, e muito disso ocorreu também
no marxismo, a partir de uma generalização de Marx no Manifesto Comunista, na
qual lemos uma redução didática do movimento histórico segundo a qual a luta
de classes sempre leva a supressão das classes em conflito com a
transformação revolucionária de toda a sociedade, sejam elas as classes de
homens livres contra escravos, sejam de patrícios contra plebeus, enfim,
opressores contra oprimidos. Este reducionismo da análise do ser-precisamente-
assim e sua consequente generalização na história acabou por levar a
obliteração das análises que tentavam apreender a realidade histórica efetiva,
especialmente por parte dos marxistas. Justamente por tratar específicas
categorias como categorias universais e intransponíveis, acabou-se por
naturalizar determinadas relações sociais, apresentando-as como possuindo um
caráter universal sob forma gnosiológica, chegando ao dilema “totalitarismo
versus democracia”. Rejeitando esta concepção naturalista da história, Lukács
afirma que em Marx a análise do ser-precisamente-assim dos fenômenos sociais
formuláveis em termos universais jamais se constitui em antítese metodológica,
mas, ao contrário, formam uma indivisível unidade dialética. Em seus termos, o
ser-precisamente assim é “uma categoria histórico-social, ou seja, o modo
necessário pelo qual se apresenta o jogo contraditório das forças
socioeconômicas que operam em determinado momento no interior de um
197
complexo social situado num estágio específico de seu desenvolvimento
histórico” (Lukács, 2008, p. 84). O que implica dizer que o reconhecimento da
legalidade particular de um fenômeno é tão importante para a frutífera análise
quanto a verificação de sua legalidade universal. Para a práxis, por sua vez, que
só pode agir no hic et nunc concreto de uma situação concreta, a determinação
da legalidade particular é preponderante; de modo que os propagadores das
verdades universais abstratas que julgam se valer de Marx não fazem nada mais
que adulterar com insumos teóricos exógenos o seu pensamento. Exatamente
por este motivo, Lukács pretende, com tal texto, tratar de exemplos concretos,
tomando-os como ponto de partida, ainda que se trate de condições
superestruturais – como a democracia. Daí a opção de Lukács de tratar a
democracia em seu conjunto histórico dinâmico, reconhecendo nisso não uma
forma estática, mas um processo – uma democratização.
Lukács recoloca a discussão da democratização tendo como fundamento
a apresentação da democracia burguesa como falsa alternativa para a reforma
do socialismo soviético. Ao demonstrar que o mais hábil dos filósofos que se
detiveram a tratar da democracia na pólis grega incorreu em uma concepção
naturalista e generalizada da categoria, como Aristóteles, que se detinha ao
debate sobre o tamanho do estado ou às suas considerações jurídicas da
determinação de quem eram os cidadãos, Lukács vislumbra em Marx o primeiro
filósofo que parte do fato ontológico elementar na caracterização da pólis e da
vida social. Quando Marx fala da pólis, percebe Lukács (2008, p. 86), “ele
caracteriza seus fundamentos em termos econômicos”; e citando uma passagem
marxiana dos Grundrisse, Lukács visualiza que Marx demarca a questão
produtiva como predominante na relação da vida social da comunidade, isto
porque,
sua relação com sua propriedade privada é, ao mesmo tempo, uma relação com a terra e com sua existência enquanto membro da comunidade; sua manutenção como membro da comunidade significa a manutenção da própria comunidade e vice-versa. (Marx apud Lukács, 2008, p. 86).
198
De modo que a participação de um cidadão na vida pública democrática
não simboliza seu ingresso na superestrutura formal da democracia; antes disso,
a sua participação como cidadão é ineliminavelmente econômica, porque a
democracia se assenta sob a base econômica da manutenção produtiva e das
formas de produção da sociedade própria. A vida privada do indivíduo, neste
sentido, tem apenas uma importância secundária, socialmente menos relevante,
anuncia Lukács (2008, p. 87). A importância primária está vinculada a sua tarefa
social de produção, por isso a dissolução das bases econômicas da pólis leva
consigo a destruição dos laços da comunidade efetivamente superestrutural da
democracia. Lukács também menciona a característica fundamental percebida
por Marx acerca da dissolução da pólis: a sua base econômica é ainda
assentada sob um pressuposto natural, isto é, a terra. Com a crescente
proletarização e uma nova divisão do trabalho, o pressuposto do trabalho que
ainda era mantido em sua base estrutural na terra passa a ser o próprio produto
resultado do trabalho – a isto Marx denominou o crescente afastamento das
barreiras naturais através do trabalho. A realização da democracia na base da
antiga pólis não guarda uma perspectivação de um indivíduo singular “único”,
como se tem no metabolismo do capital, pois o campo de ação – a individuação
– era muito menor e condicionada às decisões coletivas da comunidade
democrática.
Baseando-se em Marx, Lukács (2008, p. 88) percebe que a forma política
da democracia burguesa engendrada pelo processo revolucionário que culmina
na Revolução Francesa guarda esta base superestrutural da pólis grega. No
entanto, em sua base econômica, têm-se o oposto disso, e a base do
intercâmbio das mercadorias traz consigo a forma produtiva real da comunidade
e acaba por determinar a realidade da liberdade e da igualdade do plano
ideológico. Com o afastamento liminar das bases naturais produtivas, a
humanidade deu saltos enormes em direção da sociabilidade efetiva, e livrou-se
de amarras naturais da comunidade e do estado, o que significa, em outras
palavras, que a “Revolução Francesa eliminou pela raiz toda esta estrutura
social; com isso, pela primeira vez na história do mundo, estabeleceu a relação
entre Estado e sociedade civil em termos puramente sociais” (Lukács, 2008, p.
199
89). Pela primeira na história da humanidade, uma vez liberada dos laços
comunitários que a amarrava a uma individuação mais limitada, a vida política
pôde se tornar objeto de interesse geral público, “numa independência ideal com
relação aos elementos particulares da vida civil” (idem). A Revolução Francesa
subverte tal ordenação, mas cria uma constituição em que o homem ideal
aparece com amarras que o atam a uma condição apenas de homem idealizado,
enquanto sua realidade material é a privação de sua individualidade plena.
Lukács percebe da seguinte forma:
Estas Constituições partem da oposição-unidade entre homme (bourgeois) e citoyen. Citoyen quer dizer aqui, obviamente, o cidadão tornado “idealista”, destacado de todos os vínculos materiais da existência socioeconômica: o homme, ao contrário, é aquele que faz parte da sociedade civil. E Marx não esquece de observar que, neste liame indissolúvel (na medida em que todo citoyen é também homme), as Constituições revolucionárias rebaixam o cidadão à condição de servidor dos chamados direitos humanos. Com isso, elas admitem a real supremacia social do homem material, econômico, privado, sobre o cidadão ideal. (Lukács, 2008, p. 89-90).
Na formação generidade, sob esta condição material da democracia
burguesa, os homens aparecem como limitadores mútuos de suas liberdades. A
generidade humana, alcançando o nível mais alto até então nesta fase de
democracia burguesa, é contraposta à vida material. Foi necessária a ativação,
durante o período revolucionário, de uma perspectiva muito elevada e
superestimada das possibilidades da democracia, para que pudesse sustentar tal
transformação social. Contudo, a realidade social desfez aquelas expectativas. A
própria contradição da realidade material – desde a forma de apropriação da
terra que dissolve a pólis grega, ao modo de reprodução do capital após a
Revolução Francesa – com a suposta superestrutura ideal que molda os
interesses das classes dominantes faz com que a dinâmica social assuma uma
nova forma, porque a ideologia também se manifesta na sociedade alterando a
relação entre os homens, e sua posição frente aos obstáculos sociais. A
característica principal de tal superestrutura ideal da sociedade burguesa, diz
Lukács, é a tentativa de universalização da característica básica da sociedade do
capital, ou seja, a perenização da suposta natureza humana egoísta, criando, por
200
consequência, uma necessidade de um estado regulador dos antagonismos
sociais que são tidos como naturais. Por isso mesmo, diz Lukács, “O que hoje se
costuma chamar de liberdade é o resultado da indiscutível vitória das forças
capitalistas” (Lukács, 2008, p. 94). Comportando muitas ilusões no período
revolucionário, a democracia burguesa pôde apenas se firmar após o
desenvolvimento do próprio capitalismo, mostrando realmente seu aspecto de
dominação de classe. Quando se trata, então, da categoria “democracia
burguesa”, tem-se então a caracterização geral dos conteúdos e formas que esta
assume do capitalismo desenvolvido atual. A superestrutura ideal da democracia
burguesa deve ser levada em consideração de acordo com a sua prática
objetiva, reivindica Lukács, isto é, a prioridade ontológica absoluta do presente
em relação às idealizações do passado:
Um político ou um teórico político de orientação ideológica abstrata poderia apelar para uma liberdade existente no passado ou para uma liberdade utopicamente projetada no futuro. Admitindo-se que seus esforços tenham consequências reais, práticas, essas poderiam hoje apenas servir de apoio à democracia que corresponde à economia capitalista atual e lhe é adequada. Refiro-me sobretudo àqueles ideólogos que vêem na democracia burguesa uma verdadeira alternativa ao socialismo atual. Seus sonhos podem ir de Cincinato a Rousseau, de Cromwell a Robespierre, mas o fato é que uma democracia burguesa hoje só pode se realizar ao modo de Nixon ou de Strauss. (Lukács, 2008, p. 95).
A democracia burguesa do presente não é outra coisa senão a democracia
possível no âmbito do capitalismo manipulatório. Nesta caracterização da
democracia burguesa, os seus ideólogos do século XX criaram uma
contraposição ilusória entre a democracia burguesa como o reino da liberdade e
o socialismo como o reino do totalitarismo. Lukács anuncia que, deste modo, foi-
se “criado e amplamente divulgado o conceito de sociedade ‘pluralista’ em
oposição a ‘totalitarismo’, termo com o qual se pretende transformar em
patrimônio intelectual comum a ideia de que fascismo e comunismo são
intimamente afins” (Lukács, 2008, p. 96)19. Conjuntamente com tal teorização da
19 Lukács se refere indiretamente a vários intelectuais do mundo ocidental que, naquela altura, estavam envolvidos na ideologia que culmina com a obra de 1951 de Hannah Arendt (2004),
201
liberdade democrática, o advento do capitalismo industrial transforma toda a
massa social em proletariado, e amplia a produção de bens de consumo
integrando nesta distribuição de mercadorias, obviamente, o proletariado. No
entanto, com isso, afirma Lukács, acredita-se na falsa ideia de que a extração de
mais-valor foi, portanto, extinta, ou ainda, que tal teoria se tornou obsoleta. Vale
notar que não somente este é um processo já observado por Marx em O capital,
como também é o caminho do desenvolvimento do capital em que o mais-valor20
Origens do totalitarismo. Nesta obra, a autora qualifica o movimento stalinista do Grande Expurgo como sendo o jus agendi do marxismo. Com isso, a autora divide a história do século XX em dois arquétipos: os totalitários e os liberais. Arendt é capaz de associar o comunismo – expressão empregada pela autora – com o nazismo, por ambos negarem a política liberal. Desvinculando o fenômeno nazista de capitalista, isto é, o seu fenômeno superestrutural político de sua estrutura econômica, a autora enseja a separação inexistente entre capitalismo (não-totalitário) e nazismo (totalitário), ao mesmo tempo que busca reforçar a pretendida identidade entre capitalismo e liberalismo, além de estabelecer que “os regimes de terror” são exatamente aqueles que negam a democracia burguesa, não pelos seus atos, mas pela sua categoria política não-legalista. Notamos que no posfácio de Meu caminho para Marx, Lukács (2008) faz referência direta a esta concepção legalista: afirma que o fato de ser ou não legal não modifica a sua característica essencialmente necessária. Os textos ocidentais de grande relevância da formação da apologética do capital eram rebatidos por Lukács neste posfácio. Na Origens do totalitarismo, Arendt se exime de explicar o fato de que o nazismo foi a fórmula última da miséria alemã, que se manifestou in articulo mortis. Com essa postura, a autora omite o vínculo causal entre capitalismo e nazismo, criando o conceito de totalitarismo. O reconhecimento disso é vital; do contrário, fica rompido exatamente o fundamento racional da história, possibilitando pensar a história através de um fim dela mesma, postulando o liberalismo como a forma última e suprema da evolução social. Cf. Chasin (2000 d), Sobre o conceito de totalitarismo. No segundo volume de sua Ontologia, Lukács (2013), ao tratar da irreversibilidade dos processos históricos, demonstra concomitantemente como tais ideologias se articulam sobre uma suposta história de caráter finalístico não-causal, de modo muito próximo às versões historiográficas teológicas. 20 O termo marxiano Mehrwert, e que foi tradicionalmente traduzido no Brasil por mais-valia, tem sofrido uma adaptação de tradução para a língua portuguesa. A tradução deste termo tem sido realizada por Mário Duayer e Nélio Schneider, corroborada posteriormente por Rubens Enderle, nas recentes edições brasileiras de Grundisse e de O capital de Marx, como mais-valor. Adotamos essa terminologia visando a ratificação desta postura, baseando-nos nas palavras de Duayer, sobre o uso do termo mais-valia: “Em nossa opinião, é impossível justificar tal tradução, seja em termos literais ou teóricos. Literalmente, Mehrwert significa ‘mais-valor’. Poderia também ser traduzida como ‘valor adicionado’ ou ‘valor excedente’. Uma vez que não é tradução literal de Mehrwert, o uso de ‘mais-valia’ teria de ser justificado teoricamente. Essa tarefa é impossível, pois, como ‘valia’ nada significa nesse contexto, não há como justificar ‘mais-valia’ do ponto de vista teórico pela simples anteposição do advérbio. Ademais, além de ser uma tradução ilícita, a expressão ‘mais-valia’ converte uma categoria de simples compreensão em algo enigmático, quase uma coisa. [...] Em síntese [...] adotou-se ‘mais-valor’ porque, além de ser a tradução literal de Mehrwert, contribui para esclarecer o conteúdo da categoria.” (Duayer, J. Apresentação, In MARX, K. Grundrisse. São Paulo, Boitempo, 2011, p. 23). Ratificamos essa postura de Duayer especialmente pela facilidade que nesta forma o termo se apresenta para a compreensão geral de sua fórmula; ainda que o substantivo “valia” possa ter a acepção direta de “valor” em língua portuguesa, o que acabou não sendo notado por Duayer.
202
absoluto cede lugar ao mais-valor relativo, quando a subsunção formal da
produção a categorias capitalistas é substituída pela subsunção real.
Novamente temos a dimensão de que generidade e politicidade estão
imbricadas de modo inextrincável na formulação lukacsiana. Ao recorrer à
explicação de como o modo de produção do capital gera uma sociedade que do
ponto de vista da generidade está qualitativamente mais elevada que as
sociedades que a precederam, Lukács (2008, p. 97) refaz o caminho da
superação marxiana do mutismo do gênero em Feuerbach, e repõe a questão
partindo dos Manuscritos de 1844 de Marx, exatamente como apresentado no
capítulo anterior desta tese. Igualmente, a questão é reposta sobre os processos
econômicos que fazem surgir, no capitalismo, uma economia capaz de trazer os
maiores avanços da independência do homem ao seu pressuposto natural. Daí,
então, a questão é recolocada sobre causalidade e teleologia na natureza e nas
relações sociais (Lukács, 2008, 99).
A exposição de Lukács sobre os limites da perspectiva humana diante da
regência econômica do capital fora realizada com a finalidade de uma completa
impugnação da democracia burguesa como alternativa aos problemas objetivos
da União Soviética. Após debater acerca de tais limites evidentes, ancorado em
Marx e nos exemplos práticos do mundo ocidental – da liberdade americana
como “liberdade” do mercado ao suposto movimento militar ocidental em nome
da democracia, Lukács conclui:
[...] todo meu exame da forma moderna de democracia visava a um único objetivo, ou seja, o de avaliar se esta democracia é, como muitos crêem até mesmo no interior do mundo socialista, uma real alternativa social nos casos em que se verifica uma crise de crescimento do socialismo. Nossa resposta é um forte e enfático “não”! De modo algum! [...] Limito-me aqui, em termos aproximativos e simplistas, à seguinte afirmação política: se num Estado que fosse conduzido pelos epígonos de Stalin a uma situação de crise econômico-social triunfasse a alternativa da democracia burguesa, seria possível prever – sem necessidade de ser profeta – um futuro onde a CIA criaria em pouco tempo uma nova Grécia. (Lukács, 2008, p. 105).
A despeito das boas intenções de vários ideólogos que apontavam a
democracia burguesa como uma saída digna para a União Soviética, o fato é que
203
nenhuma intencionalidade isolada ou idealmente pensada anula o fato básico
ontologicamente fundado da objetividade material: qualquer saída pela
democracia liberal levaria a um colapso da União Soviética e a sua democracia
seria tão ou mais parca que a democracia capitalista existente, concluía Lukács –
com veemente acerto, como a realidade pós-1991 pôde demonstrar. A tentativa
de transformação do socialismo em democracia burguesa, afirmava Lukács
(2008, p. 106) levaria não só a uma liquidação do empreendimento humano
iniciado em 1917, como também levaria a ruína a própria democracia, liquidando
o socialismo definitivamente.
Do mesmo modo que Lukács realizou a crítica do modo de ser da
democracia burguesa no capital, e não de sua mera formação idealizada, ele não
poderia propor como alternativa a forma idealizada do socialismo, porque seria a
impugnação de uma forma ideal através da apresentação do ser-precisamente-
assim desta forma, para em seu lugar propor a forma idealizada de um outro
sistema produtivo e de organização social. Para tanto, Lukács se deteve na
apresentação do ser-precisamente-assim do socialismo que se apresentava
objetivamente a ele – ou ao menos esta fora a sua tentativa analítica: “temos que
nos empenhar, antes de mais nada, em apreender em termos histórico-sociais o
real modo de ser do socialismo hoje, seu atual ser-precisamente assim”,
buscando efetivamente “uma correta formulação dos problemas da
democratização hoje possível e necessária” (Lukács, 2008, p. 106).
Esta tentativa de compreender a situação objetiva do socialismo soviético
implicava, segundo o próprio Lukács, a verificação da realidade aberta pelo
stalinismo. Mas não como mero culto à personalidade, como apontou o relatório
Khrushchev no XX Congresso; conjuntamente com a percepção de Palmiro
Togliatti, Lukács se recusa a ver na mera personalização de um indivíduo o
agravamento dos problemas sociais e econômicos vividos pela União Soviética
em meio século.
Para começar com tal análise, Lukács situa a revolução na Rússia como
um exemplo atípico, uma forma não-clássica que ocorreu no elo mais frágil do
capital, e somou-se a este fato a questão marxiana da inviabilidade da revolução
isolada em vez de se tornar um evento internacional. E a questão a ser
204
levantada, dizia Lukács, deveria passar obrigatoriamente pelo fato de que a
revolução ocorreu objetivamente, e isso não transformaria per se o atraso russo
– note-se que Lukács (2008, p. 108) se remete a Lenin (2004) para validar sua
análise. O que o faz pensar com Lenin que a transformação de uma sociedade
capitalista numa sociedade socialista é, antes de tudo, uma questão econômica.
Quanto mais desenvolvido for o país em questão, mais rapidamente serão
colocados os problemas da transição para uma resolução rápida e uma efetiva
transformação de sua produção. Por outro lado, a revolução ocorrida no elo mais
fraco coloca uma série de questões que inclusive já se encontram em resolução
nos países capitalistas avançados.
A questão camponesa na Rússia atrasada demandava uma solução
radical, diferente da própria saída social-democrata; do mesmo modo, mesmo
após a revolução de fevereiro, a questão do operariado russo estava muito
aquém àquela na qual o operariado europeu médio começava a sua luta. Lukács
reconhece isto, e, doravante, recoloca a questão de que a revolução de 1917
almejava resolver a questão central dos camponeses, mas admite que somente o
operariado russo poderia levar a cabo tal luta; dentre os motivos, aqueles já
expostos por Lukács (2012) em seu opúsculo sobre Lenin, dizia respeito à
capitulação de uma fraca classe burguesa que sempre se aliava ao
historicamente velho, de modo que somente a classe operária tinha forças
sociais capazes de alterar a forma produtiva russa e empreender um rompimento
efetivo com o czarismo. “Sendo assim”, dizia Lukács, “não há a menor dúvida de
que a deliberação de empreender uma solução não clássica de passagem ao
socialismo foi politicamente justa” (Lukács, 2008, p. 110). E mesmo que com
objetivos justos e louváveis, isso não elimina a consequência da parcimônia
econômica russa. Diante disso, a jovem república socialista russa teve de lutar
contra invasores externos e contra o imperialismo alemão, mostrando uma força
popular muito discrepante em relação à sua fraqueza econômica. Depois da
guerra civil, a problemática econômica ocupou lugar abertamente no centro da
vida soviética, aponta Lukács.
A revolução na Rússia não foi somente isolada no elo mais fraco da
corrente, mas, ao sair da guerra, o país possuía também barreiras
205
intransponíveis de desenvolvimento autônomo. Some-se aos danos oriundos da
Guerra Civil nos três anos sequentes à revolução e temos um cenário altamente
complexo para o desenvolvimento das forças produtivas de modo autônomo e
isolado dos outros países – uma vez fracassada a revolução mundial. Victor
Serge (1999, p. 385) aponta para alguns dados acerca do ônus trazido pela
Guerra Civil: escassez de combustível e problemas de transporte num país
continental como a Rússia poderiam isolar inteiras comunidades, já que foram
destruídas 3.672 pontes de estradas de ferro, e mais 3.597 pontes comuns,
1.750 quilômetros de vias férreas, 381 armazéns e oficinas das ferrovias e 180
mil quilômetros de fios telegráficos e telefônicos. Reduzida a capacidade de
comunicação e distribuição de alimentos, causando a fome, a desvalorização da
moeda desestimulava a plantação para além daquela agricultura de subsistência,
e isso leva a Rússia ainda mais para o atraso, pois enquanto o mundo capitalista
avançado adiantava a passos largos sua tendência de urbanização e
industrialização pesada, a Rússia vislumbrava um retorno dos trabalhadores
industriais para o campo: Moscou perde praticamente metade de sua população,
e a desvalorização da moeda trazia retrocessos para a troca através de escambo
(Serge, 1999, p. 387). Desestimulado pelo próprio estado russo, o plantio então
passava a ser praticado como economia de subsistência. O Exército Vermelho
acabou desabastecido de alimentos. Para sanar tal dificuldade, o estado
soviético solicitou aos camponeses o excedente de suas produções em troca de
um empréstimo em papel moeda – situação depois chamada de comunismo de
guerra como medida provisória da grande crise russa, que também empreendia
medidas de socialização das fábricas e combate aos grandes proprietários de
terras (Lenin, 2004). Com a crescente escassez da produção industrial e com o
déficit da distribuição da produção agrícola, somada ao fato do desestímulo
agrário para além das necessidades de subsistência, os soviéticos viram-se
obrigados a implantar a Nova Política Econômica (NEP) possibilitando a
emergência do departamento I da economia russa. A NEP permitia o avançar da
economia básica capitalista no campo, com contratação de trabalhadores
assalariados e a venda das mercadorias como medida de retornar o mais-valor
como investimento das forças produtivas.
206
A aberta questão da revolução na Rússia como o historicamente novo
impôs questões inteiramente inéditas inclusive a Marx e Lenin. Lukács as
observou do seguinte modo:
Já este objetivo demonstra que Lenin, embora jamais se tenha pronunciado sobre o tema em termos teóricos gerais, captara com clareza, no plano prático-intuitivo, o caráter específico do socialismo enquanto formação. Ao passo que nas formações sociais anteriores ao socialismo a mudança da estrutura econômica, considerada no nível social, ocorre geralmente por necessidade espontânea – o que naturalmente não exclui que os atos econômicos dos indivíduos sejam guiados pela consciência (embora frequentemente por uma falsa consciência) –, o primeiro grande ato da passagem ao socialismo, a socialização dos meios de produção, sua concentração nas mãos dos trabalhadores, tem como consequência necessária que os atos sociais referidos à totalidade da economia devam se tornar também eles conscientes. (Lukács, 2008, p. 111).
O centro da problemática está no fato de que a realidade entra em choque
com o utopismo idealizado, condição já mencionada por Marx nas teses ad
Feuerbach de que o educador deve também ser educado, isto é, o dirigente
revolucionário terá que receber o direcionamento do próprio desenvolvimento
objetivo da realidade para, com isso, saber lidar com os problemas que haverão
de aparecer no intercurso revolucionário. E foi nesta condição que Lenin teve que
atuar durante o processo revolucionário russo, sob o risco de pôr a perder toda a
revolução e os avanços que com ela vieram. E disso resultou um problema que
não fora formulado por nenhum teórico, assim sintetizado por Lukács, sobre esta
revolução sitiada no elo mais fraco do capital: qual seria a relação entre a práxis
meramente econômica durante um período de transição, destinada a eliminar o
atraso das forças de trabalho, e os atos diretamente orientados para o conteúdo
socialista, voltados para a promoção da democracia proletária? (Lukács, 2008, p.
113). Este ponto não poderia aparecer em nenhum momento como elemento
teórico, porque dele depende o andamento real do processo revolucionário. O
salto que deve ocorrer num momento de transição se refere àquele em que, no
reino das posições teleológicas, os pores unitários passam daqueles que
resultam em causalidade social para aqueles muito mais controlados cuja
dinâmica passa a ser causal-legal; noutras palavras, os indivíduos deverão, pela
207
generidade de qualidade superior, ter melhor condição de decisão entre as
possibilidades de ação objetivas. Quando se socializam os meios de produção,
afirma Lukács (2008, p. 114), elimina-se o fenômeno social pelo qual os
indivíduos conseguem pôr as funções sociais da economia a serviço de seus
interesses privados egoístas; e, concomitantemente surge a possibilidade
objetiva do pôr teleológico ser direcionado com grande margem de controle ao
desenvolvimento econômico a serviço dos interesses superiores da generidade,
característica se não totalmente inédita no âmbito da propriedade privada, ao
menos meramente acidental no percurso dos pores teleológicos. E isto resulta,
num momento posterior ao estágio transitório, na extinção do estado, como pôde
perceber Lukács remetendo-se a Lenin, particularmente à passagem de O
estado e a revolução em que o revolucionário russo demonstra o quão negativo
poderia ser um estado burocrático, e que pouco a pouco uma eticidade poderia
substituir, pela convivência harmoniosa entre a humanidade, o próprio estado.
Lukács acentua o caráter da análise da totalidade em Lenin e suas preocupações
na extinção do estado antes que ele se torne autocrático devido à burocratização
crescente do aparelho soviético. Nessas passagens, Lukács aponta a percepção
de Lenin de que tal eticidade não seria meramente uma democracia burguesa
ampliada, mas o seu oposto, porque difere da característica meramente ideal de
sua subordinação à ordem econômica; tal democracia operária deveria ser, por
conseguinte, a própria base resolutiva do conjunto social, “um fator material que
movimenta o próprio mundo social” (Lukács, 2008, p. 117). Isto implica um fator
não mais puramente baseado nas barreiras naturais, como no caso da pólis
grega, mas baseado no ser ontologicamente social que atinge, nesta ocasião,
uma generidade de nível qualitativamente superior. “Por isso, a tarefa da
democracia socialista”, conclui Lukács (idem), “é penetrar realmente na inteira
vida material de todos os homens, desde a cotidianidade até as questões
decisivas da sociedade; é dar expressão à sua sociabilidade enquanto produto
da atividade pessoal de todos os homens”. A democracia da vida cotidiana
significa, para Lukács, em agudo contraste com a democracia burguesa, a
tomada de posição sobre todas as decisões sociais. Enquanto na democracia
burguesa, a democracia e a decisão popular aparece como manipulada e
208
meramente acessória à constituição econômica da produção, porque é
puramente o momento ideal da estrutura econômica da qual está subsumida, a
autêntica democracia da vida cotidiana implica na reordenação da própria base
estrutural da sociedade por esta democracia, porque significará que os pores
teleológicos do conjunto social estejam voltados para a decisão coletiva com
maior capacidade de controle de seus resultados – que deixam de ser da ordem
da mera causalidade posta – controlando a própria dinâmica da generidade.
Tal democracia da vida cotidiana, segundo Lukács, é uma possibilidade
real naquele estágio transitório, e conforme a menção de Lenin acerca do hábito
social em transformação, sendo direcionado pela extinção do estado por meio de
conjunto ético, esta democracia é altamente viável em estágios revolucionários,
nos quais em geral toda a gama de potencialidades humanas estão afloradas,
não deixando nenhum membro da sociedade em indiferença frente aos
acontecimentos que dali podem resultar. Vejamos de que modo o hábito é
colocado como ponto central nesta eticidade, de acordo com Lukács:
Ora, o hábito é indubitavelmente uma categoria “sociológica” generalíssima, que não pode deixar de ter um papel significativo em qualquer sociedade; contudo, considerado neste plano geral, o hábito é inteiramente neutro em relação aos seus conteúdos e ao modo pelo qual atua sobre a vida cotidiana dos homens. O que Lenin tem em mente, portanto, é algo que vai muito além desta generalidade sociológica abstrata. Ele alude a um processo sócio-teleológico no qual todas as ações, instituições etc. do Estado e da sociedade têm como objetivo habituar os homens aos comportamentos por ele descritos. Alguns elementos desta teleologia existem certamente em todas as sociedades. Mas, por exemplo, toda a estrutura do direito nas sociedades de classe tem, por necessidade objetiva, a função de fazer que os homens se habituem espontaneamente a determinados comportamentos. Ou seja, a comportamentos que, seguindo Marx, podem ser assim descritos: os mandamentos e as proibições das leis, de modo predominante e na medida do possível, limitam a ação do outro e não as próprias ações, as quais, ao contrário, são submetidas ao “egoísmo econômico” de cada indivíduo. O hábito de agir segundo a lei, portanto, consolida necessariamente o egoísmo do homem cotidiano, ou seja, a consideração do próximo somente como um limite à própria existência e à própria práxis. (Lukács, 2008, p. 118).
O hábito deve criar as condições para uma eticidade em que o valor
determinante do gênero humano suplante o quadro do egoísmo econômico e da
209
democracia burguesa. Mas sabe-se, de acordo com Lukács, que o estágio
transitório que se convencionou chamar de socialismo, o direito burguês continua
a vigorar como norma de conduta social, e este direito burguês ainda é a forma
que se encontra subsumida pela estrutura basilar econômica que engendra as
relações de toda a sociedade. Por este motivo, para que a nova sociedade gere
este conjunto ético em todos os homens é necessário que intervenha na
realidade social algo que não está por surgir de modo meramente espontâneo e
natural, ou seja, de acordo com a concepção marxiana, é necessário que o
educador seja educado, aliás, é necessário “revolucionar até as raízes não
somente a ideologia, mas sobretudo o ser e o agir materiais da vida cotidiana”
(Lukács, 2008, p. 119). Lukács retorna ao argumento do controle social sob as
ações dos pores teleológicos: o conjunto dos pores teleológicos é a somatória
dos pores finalísticos dos indivíduos singulares, o que acaba por resultar não
numa ação completamente controlada, mas numa ação cujo resultado não pode
ser outra coisa senão causal; contudo, tal causalidade não é meramente natural
e espontânea, mas tal causalidade é posta, e não totalmente diversa das
intencionalidades dos indivíduos. Mas como tais indivíduos encontram-se em
choque e totalmente separados pelo egoísmo econômico na sociedade da
regência do capital, o controle sobre seus pores teleológicos é ainda muito
limitado e gera uma generidade muito aquém da possível pelo gênero humano.
Ao atingir um processo de transição para uma generidade de nível
qualitativamente superior, os homens estão dispostos a enfrentar um processo
de educação de seus hábitos rumo a esta generidade, e esta educação não pode
ser balizada por outros atos que não tenham como parâmetro a ética. Isto
significa que:
[...] na sociedade burguesa, o fundamento último da práxis deixa substancialmente às decisões humanas somente um campo objetiva e necessariamente circunscrito aos limites de sua base material, enquanto no comunismo, ao contrário, torna-se realmente possível formular objetivos capazes de levar à transformação qualitativa desta base. (Lukács, 2008, p. 119).
Não foi por outro motivo, percebe Lukács, que Lenin lutou nos últimos dias
de sua vida, contra o processo de burocratização que tomava conta da transição
210
russa, consciente do fato de que “toda burocratização oculta necessariamente a
tendência a consolidar o domínio do passado sobre o presente, por causa da
rotina que decorre deste tipo de prática” (Lukács, 2008, p. 119), ou seja, toda
burocratização é um entrave para o desenvolvimento humano genérico. Lenin
esforçava-se na criação de uma ética que deveria começar a reinar no período
de transição, já que o hábito seria então a força social motora das bases sociais
para uma generidade mais ampla do ponto de vista qualitativo.
Quando Lenin implementou o subbotnik21, tinha como intenção que a
sociedade russa se habituasse ao trabalho coletivo que não visava ao interesse
econômico privado, mas ao desenvolvimento da comunidade. Acerca disso,
Lenin lembrava que o regime de transição na recente União Soviética nada tinha
de comunista, de tal maneira que este elemento comunista só poderia aparecer
na emergência do subbotnik como hábito cultural da sociedade não
regulamentado por alguma força de poder. Entretanto, Lukács não tergiversa
desta questão e demonstra que o real problema deste subbotnik era a sua
implementação pela força burocrática, que retirava toda a potencialidade criadora
da nova ética, do hábito como conduta social para a hipertrofia altruísta da
comunidade. Senão, observamos: “É claro que, quando são programados e
implementados de modo burocrático, estes movimentos perdem precisamente
este seu caráter e terminam por se transformar em componentes normais da
normal economia do período” (Lukács, 2008, p. 120).
Lukács não tem dúvidas em reivindicar Marx e Lenin para a demonstração
de que com o estado extinto, as formas da política em geral são com elas
abolidas por sua obsolescência evidente, inclusive e principalmente a
democracia: “com a extinção do Estado, extingue-se também a democracia, ou
seja, que o comunismo realizado é uma formação social na qual a questão da
democracia não mais se coloca”. (Lukács, 2008, p. 120-121). Deste modo, ao
propor a democracia da vida cotidiana, Lukács recoloca o problema da transição
e da preocupação que nenhum outro grande marxista até então havia pensado:
21 Subbotnik ou sábado comunista, eram dias de trabalho não-remunerados na União Soviética, e em geral, durante o comunismo de guerra. Normalmente foram utilizados para trabalhos coletivos de limpeza das ruas ou de construção civil. Lenin participava ativamente destes sábados comunistas, retratado na célebre pintura de Vladimir Krikhatsky, Lenin no subbotnik, de 1920.
211
qual é o momento em que se funde o desenvolvimento das forças produtivas e a
efetiva democratização da vida cotidiana com a decisão comunal da produção? À
frente, Lukács ainda insiste para a discrepância entre o stalinismo e a teorização
de Lenin, caracterizada como similares pela apologética do capital com a
finalidade de obscurecer a figura de Lenin, e de algum modo, pela vulgarização
do marxismo: “as correntes burocráticas que buscam conservar os princípios de
Stalin” têm em comum com a apologética do capital a “tendência a derivar a
teoria e a prática de Stalin das posições de Lenin” (Lukács, 2008, p. 121). E
sobre esta característica dos governos soviéticos que sucederam a morte de
Lenin, Lukács (2008, p. 126) afirma que enquanto Lenin tinha como estratégia o
desenvolvimento da generidade, seus sucessores tinham a tática da
continuidade do poder como referência. Todos sucessores supunham estar
diante de problemas factuais que requeriam a tomada de decisões puramente
táticas, negligenciando amplamente a situação estratégica da revolução social
que primava pela emancipação humano-genérica. Neste ponto, Lukács amplia a
visão sobre o stalinismo que havia sido exposta em Carta sobre o stalinismo e
abandona aquela sua visão dúbia acerca de Stalin: “Quando as decisões táticas
se vinculavam a uma perspectiva que ia além do imediato, também esta se
mantinha substancialmente como uma perspectiva tática” (idem), não mantendo
como fundamento uma plataforma pela emancipação humana; chegava-se ao
limite de adulterar as concepções lenineanas e marxianas a fim de adaptar uma
estratégia ad hoc para tal tática. Lukács, todavia, não deixa de frisar que Lenin
fora o primeiro grande teórico da estratégia socialista depois de Marx e que
nenhum outro substituto chegou à sua altura, e que esta foi a grande tragédia da
transição socialista – transição que já contava com inúmeros problemas de
ordem objetiva do desenvolvimento econômico e social. Deste modo, a vitória de
um ou outro líder soviético na sucessão da representação oficial da União
Soviética não teria influenciado decisivamente para a solução dos problemas que
a sociedade soviética teve de enfrentar nos anos seguintes até o fim da Segunda
Guerra, de modo que a vitória de Stalin sobre Trotsky não fora, para Lukács
(2008, p. 128) nada além de uma vitória de um tático superior contra outro.
212
Tanto nos debates sobre a incursão da NEP na industrialização soviética,
tomada por Trotsky e Preobrajenski pela esquerda (uma “acumulação primitiva
socialista” na qual a construção de uma forte indústria estaria ancorada na
exploração do campesinato); ou por Bukharin pela direita (o enriquecimento
privado do campesinato como tentativa de fornecimento de bens de consumo ao
operariado russo e sua nova industrialização), como nos debates táticos que daí
se desenvolveram, Stalin agiu de modo oportunista: Lukács verifica a saída pela
esquerda, a mesma posição de Trotsky, após, contudo, aniquilar a oposição
trotskista, executando um plano muito mais violento que aquele proposto por
Trotsky, massacrando os kulaks. E foi somente a partir deste momento que um
novo acontecimento brota das questões imediatas: a sustentação ou não do
“socialismo em um só país”.
De acordo com Lukács (2008, p. 130), Lenin tinha perfeitamente a
dimensão de que a revolução deveria tomar forma de revolução mundial para
não se isolar e fracassar; contudo, os processos de transição poderiam ser
completamente desiguais, devido ao próprio desenvolvimento desigual do
capitalismo e também ao fator subjetivo do movimento revolucionário em cada
local. Lenin estava convencido de que a revolução na Rússia poderia ser o
primeiro e mais importante passo da revolução mundial, que, como resultado da
crise da Guerra Mundial, faria emergir os países capitalistas avançados ao
processo revolucionário. Contudo, nos últimos anos de vida de Lenin, a
revolução mundial fora retirada da agenda da esquerda, e o momento defensivo
dos revolucionários se voltou para a manutenção da revolução vitoriosa. Junto
com os problemas da revolução ter ocorrido no elo mais fraco do capital,
sobreveio outro problema ainda mais grave: de que modo a Revolução Russa
abriria caminho para a manutenção do socialismo. Para Lukács, a discussão da
via não-clássica da revolução foi se extinguindo cada vez mais das análises
revolucionárias, e os líderes da União Soviética tomaram posições meramente
táticas acerca deste problema imediato. Sobre o problema do socialismo em um
só país, a questão fora reduzida, então, à sua característica unicamente
econômica: se era ou não viável o desenvolvimento do estado soviético em face
do isolamento que o fracasso da revolução mundial lhe impusera. Neste
213
momento, Stalin impôs ao debate sobre a edificação do socialismo de tipo
soviético – isolado num só país – a única saída possível, ou seja, a manutenção
da revolução. Anos mais tarde, reconhece Lukács, Stalin tratou a questão
absurda da edificação do socialismo em um só país como tática e fez dela uma
propaganda de que não somente o socialismo era possível em tais condições,
como também a sua passagem para o comunismo se colocava como uma
realidade cada vez mais presente, “embora o Estado, por causa do cerco
capitalista, devesse continuar existindo, com todos os seus instrumentos
repressivos” (Lukács, 2008, p. 132). Diferentemente de uma defesa de Stalin em
relação a Trotsky e a Zinoviev – e posteriormente a Bukharin –, contida em sua
Carta sobre o stalinismo, Lukács agora, no Processo de democratização, repõe
os acontecimentos com maior lucidez, percebendo que num primeiro momento,
por sua melhor característica de comando militar, Stalin assume um
posicionamento à esquerda, muito próximo da tática trotskista, mas aniquila a
oposição de Trotsky associando-se a Bukharin, e num momento imediatamente
posterior, utiliza a perspectiva trotskista da “acumulação primitiva socialista”,
obviamente sem anunciá-la nestes termos, para exterminar a oposição de direita
de Bukharin – inclusive levando seus adversários políticos à morte.
O evidente despreparo de Stalin para as questões centrais do
desenvolvimento da economia soviética não era, segundo Lukács, exclusividade
do líder soviético. Outros também padeceram do mesmo problema metodológico,
em especial aqueles vinculados à social-democracia. Trata-se do abandono da
concepção marxiana do papel da economia no desenvolvimento global da
sociedade, de modo que se atribui uma autonomia fictícia à economia e a elevam
a uma ciência mais ou menos exata, perdendo a sua ligação orgânica com o
conjunto do destino histórico do gênero humano, e por consequência, a
economia fora aplicada apenas de modo tático. Lukács (2008, p. 136), deste
modo, mostra que Stalin fez uso específico da economia desvinculando-a de sua
base social, e a certa altura, impediu inclusive que os dados de produção per
capita fossem calculados oficialmente, para não apresentar a União Soviética
como inferior do ponto de vista produtivo em relação ao mundo capitalista.
214
Um pouco antes de sua morte, Stalin, com seu poder político
absolutamente estabilizado, publica Os problemas econômicos do socialismo na
União Soviética. Stalin, segundo ele próprio, almejava assegurar “que a teoria
econômica do socialismo evitasse desvios subjetivistas” (Lukács, 2008, p. 136).
E Lukács indaga: que seriam tais desvios subjetivistas que fizeram supostamente
Stalin retornar ao debate da lei do valor inscrita na teoria marxiana? A sua
resposta é direta: “precisamente a manipulação burocrática da produção” (idem).
Lukács crê que novamente, ao apontar Marx, Stalin confunde – por um desvio
tático e por um recurso metodológico alheio a Marx – a lei de valor enquanto tal
com sua forma fenomênica na circulação de mercadorias. Segundo Stalin, o
valor, como também a lei do valor, é uma categoria histórica ligada à existência
da produção mercantil; no socialismo, com a produção mercantil em
desaparecimento, com ela desapareceriam o valor e a lei do valor. Não obstante,
Lukács remete-se a Marx, especificamente ao primeiro livro de O capital,
exemplificando que a unidade de medida do tempo de trabalho socialmente
gasto para produzir um bem é também uma medida universal da produção
porque nela contém um indicador acerca da participação individual dos
produtores no trabalho comunitário e sua cota pessoal na parte do produto global
destinado ao consumo. De modo que enquanto existir produção, a lei do valor
como referência de tempo socialmente gasto permanecerá, conclui Lukács,
rejeitando as inferências de Stalin.
Portanto, já que Stalin fala da mesma fase do comunismo, ou seja, do socialismo – e o comunismo propriamente dito, como vimos, era para ele algo muito próximo ao socialismo existente na época –, emerge, na análise desta fase, uma contradição entre seus pontos de vista e os de Marx. (Lukács, 2008, p. 138).
O fator crucial desconsiderado por Stalin e observado por Lukács é que
Marx determina a lei do valor não exatamente vinculada à produção de
mercadorias, mas à execução da produção em geral. Esta discrepância
metodológica de Stalin em relação a Marx não era, acusa Lukács, apenas um
erro de interpretação da teoria do valor marxiana por parte de Stalin, mas um
feito cônscio de tentar ludibriar as análises acerca da economia soviética,
215
escamoteando a realidade e em seu lugar apresentando a ideia de que a União
Soviética colocava em termos práticos a teoria econômica de Marx. O objetivo de
Lukács, com isso, fora o de “tornar evidente como não passam de pura
manipulação os métodos stalinianos de apresentar o socialismo como realização
teórica e política do marxismo-leninismo” (Lukács, 2008, p. 138).
A partir desta demonstração de Lukács acerca da teoria do valor em Marx,
a concepção de Stalin segundo a qual desaparece no mundo socialista o valor,
possibilita também a distorção da sua concepção de mais-valor. Destarte, ao
supostamente desaparecer o valor no socialismo, com ela, obrigatoriamente,
desaparece o mais-valor. Senão, vejamos a citação de Stalin apresentada por
Lukács:
Igualmente é estranho falar-se de trabalho “necessário” e “suplementar”, como se o trabalho dos operários, em nossas condições consagrado à sociedade para ampliar a produção, desenvolver a instrução, preservar a saúde pública, organizar a defesa etc., não fosse tão necessário para a classe operária, que agora se encontra no poder, como o trabalho dispendido para satisfazer as necessidades pessoais do operário e de sua família. (Stalin apud Lukács, 2008, p. 51). [Stalin, Problemas econômicos do socialismo na União Soviética].
Lukács vai de encontro a esta teorização, demonstrando como em Marx a
diferença entre o trabalho socialmente necessário à reprodução do trabalhador e
o trabalho excedente não é de modo algum uma particularidade do modo de
produção do capital, e sim uma característica econômica decisiva presente na
reprodução econômica em geral desde o início da produção da humanidade e
que se estende para qualquer forma produtiva, inclusive e especialmente ao
comunismo. Marx sublinha – percebe Lukács (2008, p. 139) – que mesmo na
escravidão, tal lei do valor não é anulada. Ainda que desapareça à primeira vista
na escravidão o trabalho necessário para a reprodução do trabalhador, como
também no capitalismo pode desaparece superficialmente o valor excedente do
processo de produção de mercadorias, trata-se apenas de uma aparência
necessária do processo regulador de tais economias. De todo modo, tanto na
escravidão como no capitalismo industrial, a existência do valor excedente e sua
contradição com o valor necessário para a manutenção da vida do trabalhador
216
estão presentes e, no fundo, regem objetivamente tais formações econômicas. A
diferença é a forma como este mais-valor é apropriado pela classe dominante,
isto é, se de modo violento e coercitivo do ponto de vista político e social, ou se
puramente através de coerção econômica, como no modo capitalismo
plenamente desenvolvido. Lukács demonstra que Marx “registrou um fato
econômico fundamental do desenvolvimento social”, a saber,
a constante diminuição tendencial do trabalho socialmente necessário à reprodução da vida individual, bem como o crescimento também tendencialmente constante do trabalho excedente; e mostrou que tais tendências, que de imediato dão lugar à exploração podem também servir ao objetivo social universal do desenvolvimento da personalidade. Para ele, também este fato é uma lei imutável do progresso econômico-social. (Lukács, 2008, p. 139-140).
Já na Ontologia, Lukács citava esta preponderância econômica ao mesmo
tempo que anunciava a questão da irreversibilidade dos processos históricos.
Deste modo, a socialização dos meios de produção torna impossível esta
apropriação do trabalho excedente por meio da propriedade privada, no entanto,
não faz desaparecer esta estrutura de base da reprodução econômica. O
socialismo apenas modifica o modo como a extração do trabalho excedente na
sociedade é reabsorvida pelas próprias forças sociais, numa crescente
sobrevalorização da atividade produtiva visando a diminuição do esforço humano
produtivo, “tornando assim possível a crescente utilização social do trabalho
excedente” (Lukács, 2008, p. 140). Vale notar que Marx, nos Grundrisse, após
demonstrar como também o valor excedente existia nas sociedades antigas de
base escravista – a construção de monumentos religiosos não pode ser
proveniente de outro lugar senão do próprio trabalho excedente –, percebe que o
livre desenvolvimento das individualidades não requer a redução do tempo de
trabalho necessário para criar trabalho excedente, mas a redução do próprio
trabalho a um mínimo necessário, o que corresponde, por outro lado, ao
desenvolvimento pleno das individualidades, potencializando o desenvolvimento
cultural, científico e artístico de tal sociedade e de modo equilibrado entre os
membros da sociedade, obviamente, graças à ampliação do tempo livre dos
homens e do ulterior desenvolvimento gradual da potência geradora de
217
produção. Lukács verifica uma passagem que corrobora tal acepção marxiana de
valor excedente nos Grundrisse, e a anuncia também, do mesmo modo, em
Crítica ao programa de Gotha, na qual Marx rebate a vulgarização da teoria do
socialismo de Lassalle, segundo a qual o socialismo significaria um pagamento
integral do trabalho ao operário. Marx não somente sublinha que o excedente de
trabalho deve subsistir no socialismo, como também percebe que sob o
socialismo, o excedente de trabalho assume uma posição bem mais ampla que
em qualquer forma produtiva passada pôde assumir. Ao retornar a Marx, Lukács
verifica o erro grosseiro de Stalin e o associa à formulação vulgarizada de
socialismo que já estava presente em Lassalle (Lukács, 2008, p. 141): a crença
de que o socialismo seja um sinônimo da passagem de todos os produtos do
trabalho humano para a esfera imediata da auto-reprodução do trabalhador
individual. Conclui Lukács, que tanto Lassalle quanto Stalin falsificam a realidade,
porque ambos se baseiam na ignorância sistemática das reais mediações
econômicas do processo de produção, tanto do socialismo quanto do capitalismo
existente.
O exemplo de Lukács, de como a educação é apresentada como
necessária à formação de contingente de trabalho no capital é suplantada como
momento do desenvolvimento humano-genérico no socialismo; e, apesar disso,
em ambos os casos, devem ser extraídos do processo de produção este trabalho
excedente:
Tomemos como exemplo, para simplificar, o momento da educação. No processo da auto-reprodução individual, tal momento não está contido diretamente; basta recordar que, no capitalismo, a necessidade de promovê-lo surge apenas a partir das exigências da produção de capital, tendo sido simplesmente imposto à classe operária na medida em que determinadas atividades laborativas não podiam ser tecnicamente desempenhadas por analfabetos. O socialismo põe na ordem do dia o momento da educação com uma intensidade inimaginável nas anteriores sociedades de classe, mas isso não pretende nem pode eliminar a mediação puramente econômica desta esfera. Contudo, com relação ao capitalismo, o socialismo produz algo completamente novo no plano qualitativo, na medida em que põe esta mediação como um problema fortemente determinado pela ideologia, que os trabalhadores devem resolver por meio de sua própria atividade. Bastará recordar que Lenin, ao introduzir a NEP,
218
colocou na ordem do dia a liquidação do analfabetismo como problema político-ideológico central. (Lukács, 2008, p. 141).
Obviamente, o que decide se o trabalho excedente será apropriado como
forma de elevar a produção do capital para a sua enorme parte do mais-valor ser
absorvido pelos indivíduos singulares privados ou se o trabalho excedente será
reapropriado para a obtenção de meios a tornar cada vez mais facilitada a
atividade humana produtiva, é uma questão puramente do momento do estágio
do desenvolvimento social. Num primeiro momento, no modo de produção do
capital, o trabalho excedente volta-se como extração de mais-valor e a sua
apropriação é parcialmente reabsorvida na sociedade para o contínuo
desenvolvimento das forças produtivas. Mas parte substancial desta extração de
mais-valor se volta ao proprietário dos meios de produção, gerando uma
discrepância econômica na sociedade. Noutro momento, quando esta extração
de mais-valor é ideologicamente controlada para ser reabsorvida entre os
membros da sociedade, isto possibilita o aperfeiçoamento das individualidades
de modo que a discrepância econômica não atue mais como entraves sociais, e
de sorte que o avançar de um membro da sociedade é, simultaneamente, o
desenvolvimento humano-genérico, aumentando o campo das ações dos
indivíduos singulares e consequentemente a possibilidade objetiva de tais
individualidades se manifestarem de modo livre – a superação do reino da
necessidade para o reino da liberdade. Este segundo momento implica uma
propriedade socializada dos meios de produção. Sobre isto, em consonância
sobre o que seria a democracia socialista, diz Lukács:
Terão tais formulações, que se referem ao mesmo objeto, um significado utópico? Muitos pensam assim; e, com efeito, cai-se na utopia quando este “reino da liberdade”, concebido como um “estado de coisas”, é confrontado de modo imediato com o atual “estado de coisas” e se supõe possível imaginar ou mesmo realizar arbitrariamente a passagem direta de um estado a outro. Algo diverso ocorre quando os “estados” contrapostos como pólos extremos são considerados, ao contrário, como processos sociais criados em cada ocasião concreta por homens (e é isso o que ocorre em ambos os casos); e quando, com Lenin, tomamos consciência de que aquilo que chamamos de democracia socialista ou proletária é precisamente o processo que une ambos os “estados”, de modo real e criador, no interior do
219
desenvolvimento do gênero humano. Então, o socialismo, como primeira fase do comunismo, aparece como uma formação em si, cuja economia e cuja sociabilidade só podem se explicitar adequadamente se, para as pessoas que atuam, as estruturas sociais – que se apresentam diante delas em termos objetivos (e que, por sua própria natureza, são sempre processos que envolvem as demais pessoas) – funcionarem, ainda que sem jamais perder sua objetividade, como resultados de uma atividade humana consciente de si mesma e de seu próprio caráter social. (Lukács, 2008, p. 143).
A democracia socialista seria, então, a passagem da produção alienada
para uma produção que satisfaça as necessidades humanas e ainda crie
potencialidades para que os indivíduos não se apresentem entre si com uma
sociabilidade que entrava o desenvolvimento mútuo dos homens que compõem
tal sociedade. Segundo Lukács, o grau do desenvolvimento econômico de tal
sociedade em transição é o que definirá o quando de excedente de trabalho será
convertida em trabalho excedente socialmente liberado pela revolução proletária,
e o quanto será convertido em força de desenvolvimento econômico objetivo. Daí
que a revolução na Rússia principiou este processo em franca desvantagem
econômica; no entanto, o entusiasmo das massas em períodos revolucionários
coloca o desenvolvimento da práxis – das tarefas cotidianas mais básicas aos
momentos decisórios mais importantes do rumo do mundo – em primeiro plano e
acaba por ocultar tais dificuldades: note-se, com isso, como as negociações de
paz de Brest-Litovski contaram com participação popular intensa. Deste mesmo
modo, a democracia socialista envolve os homens em expedientes totalmente
novos, entusiasmando as massas justamente porque suas ações partem da
própria atividade cotidiana, organizando suas funções através das atividades
imediatas. Nas palavras de Lukács, o espontaneísmo das massas num período
revolucionário é a forma embrionária do agir consciente:
O fato é que o conhecimento verdadeiro da realidade objetiva pode desenvolver, a partir destes movimentos espontâneos, o máximo de suas possibilidades objetivas e subjetivas, para depois transformar-se cada vez mais em consciência, se – e somente se – esta conexão entre os interesses imediatos do dia-a-dia e as grandes questões gerais tornar-se algo real e vivo na vida cotidiana dos homens. As situações revolucionárias distinguem-se da vida cotidiana corriqueira precisamente porque nelas estas
220
conexões induzem espontaneamente à ação e não se tornam conscientes somente por meio do conhecimento. (Lukács, 2008, p. 145).
E Lukács retorna à pergunta anteriormente realizada: era possível – e se
era, de que modo? – a edificação do socialismo a partir do desenvolvimento
econômico e ao mesmo realizar a democracia da vida cotidiana? Deveria, em
nome do desenvolvimento das forças produtivas, a democracia socialista ser
colocada em segundo plano? Antes de morrer, Lenin estivera centrado nos
esforços de compor um desenvolvimento econômico sem que, com isso, se
perdesse a democracia socialista, diz Lukács (2008, p. 147). O problema é em
seguida colocado por Lukács, novamente, como uma questão de desvio tático de
Stalin, e a questão de que se cabia ou não a evolução econômica russa ao
mesmo tempo que a democracia de base fosse alcançada, é reduzida a uma
questão da personalidade de Stalin, já que o problema da revolução no elo mais
fraco trouxe o desafio do desenvolvimento econômico sob o qual Stalin não
estava preparado para lidar (Lukács, 2008, p. 149-150); somando-se a isso a
questão de que “toda práxis staliniana” estivera “repleta de decisões teóricas
deste tipo, manipuladas por motivos táticos” (Lukács, 2008, p. 151). E a partir
disso, Lukács envereda-se numa tarefa que, do ponto de vista ontológico, seria
no mínimo secundária: não parte do andamento da União Soviética e das
possibilidades do socialismo daí decorrentes; em vez disto, aborda o raquitismo
teórico de Stalin para demonstrar o quão grave são as adulterações promovidas
por ele do pensamento marxiano e lenineano. Contudo, centro do debate deveria
ceder lugar à evidente questão do campo das possibilidades em face do
socialismo soviético nos anos 1960. E então a problemática da possibilidade do
socialismo em um só país recua e em seu lugar os fracassos da revolução sitiada
no elo mais fraco da cadeia capitalista acabam por ser personalizados na figura e
nas ações de Stalin:
A solução tática dada por Stalin aos problemas que então se apresentavam foi o desmantelamento radical de qualquer tendência capaz de se transformar em condição preparatória de uma democracia socialista. O sistema dos sovietes deixou na prática de existir. Os principais órgãos do Estado, ainda que permanecessem formalmente democráticos, ganharam uma forma
221
que, com exceção do sistema de partido único, tornava-os bastante próximos dos parlamentos da democracia burguesa; os níveis inferiores do sistema dos sovietes reduziram-se a órgãos de administração local, eleitos do mesmo modo que tais parlamentos. Desapareceram assim todas as tentativas ideológicas dos últimos anos de Lenin, que visavam a construir uma democracia socialista real. (Lukács, 2008, p. 153-154).
As práticas de Stalin, então, são os impeditivos para que se efetivassem
as bases da democracia socialista implementada por Lenin, segundo Lukács. E,
se por um lado, Stalin deixou de lado a democracia da vida cotidiana; por outro,
conseguiu hipertrofiar o campo econômico: removeu a Rússia do panteão dos
países atrasados e a transformou na segunda maior potência industrial do
mundo. E acrescenta Lukács: Stalin teve o mérito de executar tal
empreendimento sem colocar em risco o socialismo em um só país, “sem fazer
nenhuma concessão no que se refere ao ponto central da economia socialista,
ou seja, a socialização dos meios de produção” (Lukács, 2008, p. 155), além de
ter conseguido enfrentar Hitler e botar abaixo o nazismo, tarefa que nenhuma
potência capitalista ousou realizar. A atividade nuclear e armamentista soviética
também pôde garantir a paz mundial, de acordo com Lukács, porque a União
Soviética pôde equiparar-se aos Estados Unidos em seu poder de destruição,
obliterando a possibilidade de ataques estadunidenses em zonas de influência
soviética e impediu, com isso, um domínio imperialista mundial. Mas isso só foi
possível porque a base da economia soviética era desprovida de propriedade
privada, acredita Lukács:
Dado que os meios de produção não mais pertencem a indivíduos ou a grupos, não mais existem na União Soviética estratos sociais que possam estar economicamente interessados na guerra. As divisões do povo provocadas pela guerra não têm mais base econômica: na União Soviética, toda guerra só pode se apresentar no plano econômico como algo negativo, ou seja, como diminuição do nível de vida atual ou potencial dos trabalhadores. Este decisivo e automático efeito econômico da socialização dos meios de produção cria a base material para a espontânea orientação pacífica de toda a sociedade socialista. (Lukács, 2008, p. 157).
222
Com isso, Lukács tende a acreditar que o trabalho excedente extraído no
processo produtivo da indústria russa é reabsorvido por inteiro pela sociedade
russa. Em especial, porque Lukács – baseado na análise de Férenc Jánossy22 –
determinou as fases de reconstrução da União Soviética como sendo a dos anos
1930 e aquela logo após o término da Segunda Guerra Mundial; e, nestas fases,
acredita Lukács, a economia planificada trazia uma “dialética espontânea do
desenvolvimento econômico”, tendo em si a tendência de reconstruir o país e
elevar a economia a patamares superiores aos dos momentos de crise. Uma
economia planificada, diz Lukács, “e centralizada tem grandes vantagens com
relação ao caráter concorrencial próprio do capitalismo, precisamente porque
aqui não tem lugar o contínuo cálculo da rentabilidade dos investimentos
singulares” (Lukács, 2008, p. 159). Contudo, com este desenvolvimento
planificado, ocorreu de fato uma acumulação originária de capital na União
Soviética, que teve término ao final dos anos 1920, de acordo com Lukács – em
suas palavras “acumulação primitiva socialista” (Lukács, 2008, p. 160). E esta
diferenciação categorial estabelecida por Lukács não é meramente terminológica;
para Lukács, baseando-se em Marx, no processo de gênese do capitalismo
houve a necessidade de um período de acumulação originária dominado por
“medidas de violência extremamente brutal” (idem), efetivando uma nova
distribuição da população entre os diversos ramos produtivos, para que, com
isso, o capitalismo se efetivasse como capitalismo industrial, dominando todas as
esferas produtivas da sociedade. Já a “acumulação primitiva socialista” guarda
um caractere completamente distinto, reitera Lukács. Caso o processo
revolucionário tivesse ocorrido num país cuja acumulação original de capital
houvesse se efetivado pelo modo clássico, esta etapa do desenvolvimento das
forças produtivas já estaria devidamente superada. No entanto, no caso russo,
uma estrutura capitalista atrasada, não fornecia a base para a socialização
industrial, e daí a necessidade de elevar a produção a um nível capaz de
funcionar como base de um sistema econômico socialista. E complementa
Lukács:
22 A referência de Lukács é proveniente da seguinte obra: Férenc Jánossy. Das Ende der Wirtschaftwunder. Frankfurt, Suhrkamp, 1966. (O fim dos milagres econômicos).
223
Por isso, o uso da violência, cujo papel é inegável também neste caso, assume uma função fundamentalmente diversa: decerto, aparece frequentemente como um veículo para destruir relações de produção primitivas (através da construção de fazendas coletivas), mas seu objetivo fundamental é o de agir diretamente a fim de que se formem condições de produção quantitativa e qualitativamente evoluídas, capazes de possibilitar, no plano econômico objetivo, a efetiva construção do socialismo. Aqui, em contraste com a gênese do capitalismo, o emprego da violência é sempre dominado por intenções de tipo meramente econômico: portanto, uma vez criados os fundamentos, os momentos específicos do socialismo (que não são mais apenas econômicos) terminam – de novo em contraste com a gênese do capitalismo – por exercer seus direitos sociais. (Lukács, 2008, p. 161).
Adiante, Lukács não tem dúvidas acerca do caráter socialista desta
experiência da transição soviética: no capitalismo, tudo o que se refere à cultura
é somente um produto secundário do desenvolvimento da economia, e devido a
isso, se apresenta com enormes desigualdades sociais. Por este motivo mesmo,
no campo das artes, a cultura se apresenta no capitalismo como ponto
culminante da circulação de mercadorias, e volta sua ideologia para tal. No
socialismo, mesmo na fase staliniana de “acumulação primitiva socialista”, já se
nota o caráter socialista da sociedade, porque se respeita o princípio da
promoção social da cultura, que deixa de ser determinada exclusivamente pela
economia. A promoção social da cultura faz, ainda no caráter de acumulação
primitiva socialista, com que todos os estratos sociais tenham acesso aos níveis
mais altos de instrução científica e educacional, o que ocorre também com o
acesso aos produtos artísticos. Note-se, então, que para Lukács, o socialismo
em um só país, a forma de transição e manutenção do socialismo de tipo
soviético, já demarca a passagem para um novo estágio de desenvolvimento
humano-genérico e, portanto, já se alude o título de socialismo para a forma
produtiva soviética.
Para Lukács (2008, p. 166), o estágio de transição do socialismo é
demarcado pela presença ainda muito marcante da divisão econômica do
trabalho típica da relação do capitalismo. Esta relação tende a se dissipar num
longo processo cultivado pelo hábito, que transformam os homens de toda a
sociedade, que, por sua vez, não operará mais seguindo o critério da coerção
224
econômica. Toda a história da humanidade, acentua Lukács, foi permeada de
tentativas de promoção do verdadeiro ser homem do homem, “de conduzi-lo à
sua plena e consciente generidade”, mas tais tentativas encontraram sempre
como obstáculo para seu triunfo a ação social contrária, motivada pela economia;
disso resulta que tais tentativas só puderam se realizar episodicamente e em
casos isolados, em indivíduos singulares. Tais tentativas “só poderão se tornar
patrimônio comum do gênero humano quando a vida média da cotidianidade”,
isto é, a regulação da sua práxis econômica, “for estruturada, objetiva e
socialmente, tendo em vista promovê-las e não reprimi-las ou convertê-las em
fatos negativos dos mais diferentes tipos” (Lukács, 2008, p. 167) como ocorre no
organismo da práxis na relação social de produção do capital. E esta modificação
não pode vir senão da práxis cotidiana, que, por sua vez, é engendrada pela
práxis efetiva do trabalho. Enquanto o trabalho não for organizado para a
supressão das necessidades sociais, e for organizado para o consumo tendo
como meta o triunfo na concorrência, esta possibilidade do desenvolvimento do
gênero humano estará obstruída. Ainda segundo Lukács, na União Soviética, o
trabalho estava organizado para a essencial satisfação das verdadeiras
necessidades vitais, o que demanda, portanto, uma modificação adaptativa da
vida cotidiana, aliás, uma democratização da vida cotidiana.
Novamente remetendo-se ao Marx de 1843, de Sobre a questão judaica,
Lukács apresenta o dualismo enfrentado na questão da cidadania burguesa. O
que está em jogo no texto marxiano, e que é levantado ora por Lukács, é o
exsudar da emancipação humana diante da condição ainda estreita da
“emancipação cidadã” (Marx, 2010 b, p. 33). Nesta obra marxiana, o filósofo
alemão atribui à emancipação política – a democracia burguesa – um importante
passo para a emancipação humana. Dentro da sociabilidade do capital, aponta
Marx, a emancipação política é a emancipação definitiva, a única que se pode
alcançar; portanto, são feitos necessários da organização política, ainda que
insuficientes. Este trajeto marxiano, como vimos no primeiro capítulo, faz parte
da transição marxiana da democracia radical, inscrita no liberalismo renano, à
emancipação humana, aliás, à formulação marxiana do comunismo, e está
demarcada na passagem de 1843 para 1844, especialmente na crítica de Hegel
225
e nesta supracitada obra, Sobre a questão judaica. Este momento crucial de
Marx germina a sua concepção ontonegativa da política e do estado, levando,
assim, à exigência do fenecimento do estado. Nesta obra, a clivagem entre droits
de l’homme, de um lado, e droits du citoyen, de outro, é rebatida por Marx, que
demonstra que os direitos do homem nada mais são que os direitos do homem
burguês, que, isolado da comunidade humana, proclama a base de seus direitos
o acesso à liberdade limitadora e egoísta dos homens (Marx, 2010 b, p. 48). Nas
palavras de Marx, o limite dentro do qual cada homem pode se mover de modo a
não prejudicar o outro “é determinado pela lei do mesmo modo que o limite entre
dois terrenos é determinado pelo poste da cerca” (Marx, 2010 b, p. 49). Não se
trata de uma liberdade que emancipa o gênero humano; a liberdade possível
dentro dos limites da propriedade privada e do direito burguês é uma liberdade
que trata o homem como “mônada isolada recolhida dentro de si mesma” (idem).
Isto significa que o direito burguês não apresenta a liberdade do homem em
vinculação com outros homens, mas, de modo contraditório, apresenta a
liberdade na separação entre um homem e outro. Os direitos humanos são,
portanto, os direitos que os homens têm em viver tal separação limitadora. De
igual modo, o direito à segurança e à propriedade privada constituem esta
separação entre homem e comunidade. Foi por este motivo que Marx concluiu
que “nenhum dos assim chamados direitos humanos transcende o homem
egoísta, o homem como membro da sociedade burguesa, a saber, o indivíduo
recolhido ao seu interesse privado e ao seu capricho privado e separado da
comunidade” (Marx, 2010 b, p. 50). O homem não é concebido como um ser
genérico, e por mais que avancem em relação à antiga ordem social, os direitos
burgueses são ainda limitadores à emancipação humano-genérica, não
transcendem a generidade encapsulada nos liames da propriedade privada dos
indivíduos singulares. A passagem a seguir, alude a este momento e sublinha a
superação do liberalismo radical do jovem Marx:
Fato deveras enigmático é ver um povo que mal está começando a se libertar, a derrubar todas as barreiras que separam os diversos membros do povo, a fundar uma comunidade política, é ver esse povo proclamar solenemente a legitimidade do homem egoísta, separado do semelhante e da comunidade (Déclaration de 1791), e até repetir essa proclamação no momento em que a
226
única coisa que pode salvar a nação é a entrega mais heróica possível, a qual, por isso mesmo, é exigida imperativamente, no momento em que se faz constar na ordem do dia o sacrifício de todos os interesses da sociedade burguesa e em que o egoísmo precisa ser punido como crime [...]. Este fato se torna ainda mais enigmático quando vemos que a cidadania, a comunidade política, é rebaixada pelos emancipadores à condição de mero meio para a conservação desses assim chamados direitos humanos e que, portanto, o citoyen é declarado como serviçal do homme egoísta; quando vemos que a esfera em que o homem se comporta como ente comunitário é inferiorizada em relação àquela em que ele se comporta como ente parcial; quando vemos, por fim, que não o homem como citoyen, mas o homem como bourgeois é assumido como o homem propriamente dito e verdadeiro. (Marx, 2010 b, p. 50).
A emancipação política significa uma dissolução da antiga ordem
econômica feudal, e neste sentido, traz consigo avanços imprescindíveis para a
emancipação humana, embora ainda seja limitada e limitadora. A emancipação
humana só será possível, anuncia Marx, quando o homem individual real tiver
ocupado para si o cidadão abstrato e se tornado o homem genérico. É sobre esta
clivagem que precisa ser unida na forma da emancipação que Lukács aborda
sobre a democracia da vida cotidiana em Sobre o processo de democratização.
Para Lukács, a democracia socialista tem a tarefa de superar esta clivagem entre
o homem abstrato e o cidadão burguês (Lukács, 2008, p. 168). Com a revolução
soviética, colocou-se em prática a superação desta clivagem pela autorregulação
do trabalho e da comunidade em geral, das fábricas, da moradia, isto é, da
sociedade em seu conjunto. Contudo, observa Lukács (2008, p. 169), Stalin
demoliu o sistema de sovietes e em seu lugar institucionalizou um regime
altamente burocratizado que pôs entraves a esta autorregulação. Na prática, isso
tornou o socialismo estancado em sua fase transitória, e daí a necessidade,
ainda de acordo com Lukács, de suplantar tal burocracia através de uma
democracia da vida cotidiana.
Sob o jugo do stalinismo, a decisão política e a regulação da vida cotidiana
das massas desapareceram. Tal desaparecimento, segundo Lukács, deveu-se
especialmente à postura metodológica de Stalin, que fazia do marxismo uma
cartilha às avessas: a certa altura, proclamou que a ditadura do proletariado não
fazia outra coisa senão intensificar a luta de classes. Já o processo de
227
desestalinização aberto no XX Congresso, continuou a tratar as massas e as
opiniões divergentes do mesmo modo que se tratou durante o período de guerra
civil: liquidando-as repressivamente.
Para Lukács, o stalinismo burocratizou as liberdades individuais para além
daquelas necessárias no processo de “acumulação primitiva socialista”. Neste
processo de acumulação primitiva, o socialismo de tipo soviético precisou lidar
com uma camada de técnicos do trabalho que deveriam colocar a
industrialização pesada a funcionar no país, superando aquela debilidade
econômica e técnica do trabalho. Estes técnicos eram oriundos do próprio
capitalismo adjacente à revolução, e o tratamento brutal e repressivo durante os
anos da guerra civil foi necessário, de acordo com Lukács, para possibilitar um
desenvolvimento industrial e a superação daquele estágio atrasado, o que
potencializaria a transição no elo mais fraco. Todavia, ao término da guerra civil e
da posterior “acumulação primitiva socialista”, tais técnicos, que em geral
poderiam se opor ao socialismo ou, na melhor das hipóteses, que não tinham
uma intenção ideologicamente comunista, foram se aposentando ou haviam
morrido. A maior parte dos novos especialistas técnicos da atividade industrial,
então, haviam crescido na ordem educativa socialista, e, ainda que não fossem
deliberadamente comunistas, não eram opositores anti-socialistas ou
observadores céticos do desenvolvimento econômico soviético. A União
Soviética havia conseguido superar o desafio da acumulação primitiva socialista
e, ao mesmo tempo, conseguido criar um manancial técnico de jovens para a
industrialização pesada. Estes homens entendiam o trabalho na produção
soviética como suas verdadeiras profissões; portanto, afirma Lukács, tinham “a
justificada pretensão de serem considerados verdadeiros colaboradores do
sistema e de receberem um tratamento correspondente” (Lukács, 2008, p. 173).
Contudo, o sistema stalinista trouxe obstáculos a este reconhecimento dos
trabalhadores e da comunidade soviética. Ao concentrar esforços no
departamento I da economia, a comunidade soviética em geral começou a não
ter a equivalência de seus esforços na oferta de produtos de primeira
necessidade. Mas uma vez superada a debilidade industrial que caracterizava a
União Soviética em sua fase de guerra civil, e passado o enfrentamento da
228
Segunda Guerra e a luta pela paz mundial, Lukács acreditou que havia chegado
momento em que era possível, então, erigir uma democracia socialista
verdadeiramente efetivada. Mas tal alternativa não poderia vir nem da
manutenção da burocratização de tipo stalinista, nem do modelo burguês do
ocidente, de modo que a verdadeira alternativa que coloca para a democracia de
tipo socialista era a superação das debilidades do método staliniano de
tratamento da sociedade soviética (Lukács, 2008, p. 174). Stalin bloqueou o
motor social dos movimentos populares, e trouxe obstáculos para que os
populares tivessem acesso a quaisquer meios de decisão dos rumos da União
Soviética, sejam eles os rumos da política econômica geral, sejam eles aqueles
mais diretos e ligados à vida cotidiana dos homens. As pessoas passaram a
participar de reuniões e de assuntos da vida cotidiana estritamente quando
obrigadas para tal ou quando diziam respeito exclusivamente às decisões que
impactavam suas vidas cotidianas de forma absolutamente direta e imediata. A
opinião pública se limitou à opinião formal e mecânica, e as pessoas da
comunidade soviética chegaram à verdadeira conclusão de que suas opiniões
não trariam quaisquer modificações nos rumos e encaminhamentos da vida
pública soviética, e, ao contrário, além de não trazerem modificações
substantivas, suas opiniões poderiam lhes render a censura e a morte. Ao
trucidar com a opinião pública, o stalinismo criou na comunidade soviética uma
opinião subterrânea, que não se manifestava abertamente, mas de modo
clandestino e desorganizado, sobre os problemas do cotidiano. Ainda assim,
observou Lukács, esta opinião pública não era inexistente: “é verdade que jamais
deixa de existir uma ‘opinião pública’, a qual, mesmo se expressando plenamente
apenas nas conversas privadas, toma posição sobre todos os problemas da vida
social” (Lukács, 2008, p. 175-176). Por isso Lukács acreditou que o primeiro
passo em direção desta democracia socialista seria realizado por meio da
transformação desta opinião pública subterrânea em práxis pública sistemática.
Mas, por bloquear o sistema autêntico dos sovietes, Stalin interrompeu a
dinâmica democrática da experiência socialista de um modo tão brutal que a
transformação da opinião pública subterrânea só poderia ser lenta e gradual
naqueles anos 1960, acreditou Lukács. “Não pode nem assumir uma forma
229
espontaneamente explosiva nem estender-se a todos os campos da vida social,
como foi a característica dos movimentos soviéticos nos períodos
revolucionários” (Lukács, 2008, p. 176). E complementa que o renascimento do
marxismo estará insuficientemente posto se não analisar a realidade direta que a
vida social russa lhe impunha – não era viável e estaria “preso ao círculo mágico
da prioridade burocrática da tática” se supuser que tal deformação da vida social
russa, fruto de décadas de repressão e estanque de movimentos populares,
poderia ser superada por algum movimento espontâneo imediato. Dizia sobre
isto:
Essa incapacidade resulta, antes de mais nada, do fato de que o longo período de duração do sistema staliniano teve necessariamente efeitos profundos sobre o caráter das pessoas, sobretudo no que se refere à atitude diante da possibilidade de uma práxis social autônoma. Enquanto o movimento dos sovietes, que surgiu de modo explosivo e espontâneo nas revoluções mencionadas, habituou as massas a agirem autonomamente nas questões públicas, mesmo quando estas não a envolviam diretamente, na época do domínio de Stalin ocorreu algo inteiramente diverso, gerando também um hábito. (Lukács, 2008, p. 177).
Lukács retorna à explicação do hábito que a comunidade deve adquirir,
justamente pelo fato desta ambivalência: ao mesmo tempo que cria uma
sociedade espontânea e voltada para as decisões coletivas, o hábito também
pode, por outro lado, criar uma sociedade acostumada a viver sob as barreiras
que limitam a vida social na comunidade. Por este motivo, a inserção das
massas, dessas opiniões subterrâneas, não podem vir por um decreto ou como
uma força explosiva e descontrolada. Devem, novamente, partir de um hábito,
devem vir através das modificações engendradas pela vida cotidiana dos
homens, pouco a pouco, concebendo “no dia-a-dia, por sua própria experiência,
a realidade desta mudança como uma ruptura prática com as tradições
stalinistas” (Lukács, 2008, p. 178). Mas, com isso, a sociedade soviética não
perdeu seu caráter socialista. Lukács não consegue conceber que a União
Soviética ficou presa ao incompletável processo transitório do socialismo, pois,
para ele, isto não passava de uma propaganda difamatória da Guerra Fria, uma
calúnia burguesa:
230
Uma análise mais aprofundada e detalhada das sociedades socialistas atualmente existentes, contudo, mostra-nos um quadro contraditório. Por um lado, elas certamente liquidaram e impossibilitaram objetivamente qualquer exploração do homem pelo homem; mas, por outro, o desenvolvimento econômico-social que nelas teve lugar ainda não foi capaz de produzir as situações e tendências que permitam aos trabalhadores, enquanto sujeitos, tornarem-se no futuro homens livres na formação social comunista. Duvidar do caráter objetivamente socialista do socialismo real, portanto, é manifestação de insensatez e não passa de calúnia burguesa. (Lukács, 2008, p. 180).
E, ulteriormente, Lukács insiste que o problema do stalinismo se originou
na “inversão da hierarquia marxista, ao pôr a tática acima da teoria e da
estratégia”, o que originou uma “distorção de todo o método de Marx” (Lukács,
2008, p. 186). O que o leva à conclusão de que a resolução dos conflitos
soviéticos deveria passar indefectivelmente pelo regresso da questão
metodológica: “Portanto, a realização prática da democracia socialista pressupõe
a restauração do método do marxismo” (Lukács, 2008, p. 187). Reivindicando
Lenin, Lukács acredita que essa opinião subterrânea deve emergir à democracia
socialista por intermeio de uma liderança de fora dela mesma, guiada por uma
vanguarda marxista que, ao mesmo tempo que rejeita a reivindicação pluralista
da democracia burguesa e da abertura soviética ao capitalismo, conduz as
massas a uma democracia efetiva e popular, demanda básica para o efeito
transitório e educativo do hábito social que o socialismo deve manter para levar
toda a sociedade ao comunismo. Mas de que maneira isso era viável? Ou ainda,
quem comporia esta vanguarda de fora a executar a democracia socialista, tão
emasculada pelo Partido Comunista stalinizado? E Lukács nos dá a resposta:
“para um marxista, bastam estes poucos (mas fundamentais) fatos para
demonstrar que, neste caso, trata-se de um ativismo cuja força motriz e guia
natural só pode ser o partido comunista” (Lukács, 2008, p. 189). Lukács não
estava a reivindicar a formação de um novo partido comunista no seio do
movimento operário ou da opinião popular subterrânea; não estava também
promovendo uma ruptura com o partido comunista que estava a promover a
parca e limitada desestalinização da União Soviética. Lukács, por sua vez,
reivindicava que a democracia da vida cotidiana fosse instaurada exatamente por
231
aqueles agentes que outrora obliteraram a sua possibilidade. Para isso, Lukács
lista dois fatores fundamentais para que a própria prática burocratizada do
partido não atue novamente como obstáculo a esta viragem democrática: o
primeiro fator, o renascimento do marxismo e a crítica da metodologia stalinista
no seio do partido; e o segundo, também dentro do partido, uma democratização
do comitê central, sem qual não se era viável guiar a democratização da
sociedade russa. Com isso, Lukács rejeita aquilo que ele – desta vez,
acertadamente – mesmo viu como golpismo e regresso à mera democracia
burguesa: a opção pelo pluralismo partidário.
Não resta dúvida de que Lukács entendia o partido comunista à visão
leninista. O partido deveria conduzir à democracia da vida cotidiana, e não
conduzir a uma esfera legal do direito burguês em que prevalecerá a mera
democracia burguesa representativa a partir de partidos eleitoreiros. A
democracia não deveria ser meramente formal e subordinada à vida econômica
do capital, ao contrário, a democracia da vida cotidiana implica ela mesma ser a
base transformadora e guiadora que engendra o processo econômico da
sociedade. O partido, por isso mesmo, não deveria ser o órgão meramente
legislativo e executivo das transformações, o estratagema do sistema
representativo burguês: Lukács entendia o partido como o órgão dirigente da
classe operária, ainda que este órgão dirigente estivesse necrosado por décadas
de práticas espúrias do stalinismo. Como tarefa do próprio partido comunista,
após implementar uma democracia interna, seria também reprimir e “eliminar da
vida cotidiana os resíduos da sociedade de classe que ainda existem e operam
amplamente” (Lukács, 2008, p. 190). Ainda, novamente, neste aspecto, a
mudança deveria ser guiada pelo hábito, numa clara reivindicação da concepção
de Lenin. Com isso, Lukács não subestima que o campo de ação dos indivíduos
no processo de ruptura com o historicamente determinado, mas percebe que o
movimento social que leva a comunidade a adquirir o hábito é sempre uma força
social mais forte e determinante inclusive na esfera dos indivíduos singulares –
como fora demarcado no capítulo anterior desta tese, nas linhas de sua
Ontologia e que agora é novamente afirmado por Lukács em O processo de
232
democratização – motivo pelo qual vislumbrou-se na humanidade
individualidades de generidade elevadas, mas nunca um gênero elevado para-si.
Reiterando a posição de Lenin, Lukács acredita que a ativação do
movimento comunista deveria se orientar para um renascimento do marxismo,
“no sentido de revitalizar o seu autentico papel de guia teórico e prático da
renovação revolucionária” (Lukács, 2008, p. 194), sem o qual a democracia da
vida cotidiana não emergirá das camadas subterrâneas nas quais se encontra o
conjunto da sociedade soviética. Por outro lado, um espontaneísmo subversivo
da esquerda levaria somente a um fracasso pela repetição de sua limitação
teórica e metodológica originária. Somente uma revisão do marxismo eliminaria
os resquícios stalinistas do partido comunista, e ipso facto, possibilitaria o longo
processo de viragem à democracia da vida cotidiana.
3.3 Os limites da resolução lukacsiana
O processo de democratização demarca um momento muito mais lúcido
de Lukács em relação ao stalinismo e ao destino da União Soviética, quando o
comparamos a todos os outros textos políticos do mesmo período. Entretanto,
guarda ainda alguns limites que não foram jamais superados por Lukács, sendo
os principais deles: a identificação do fenômeno stalinista como puramente de
uma ordenação social que partiu de um grave problema metodológico, que
acabava por reduzir a estratégia do movimento comunista internacional em
elementos de ordem tática; o problema da organização dos trabalhadores para a
efetivação da democracia socialista, dentro e fora do partido; e a questão da
divisão social do trabalho no socialismo, a partir de seu reconhecimento de que a
União Soviética havia realizado realmente o transcurso socialista, como fase
transitória ao comunismo.
233
Vale notar, com especial atenção, que O processo de democratização fora
escrito a partir de um preceito básico: de que a consciência socialista deveria ser
trazida de fora ao movimento dos trabalhadores; de que nenhuma iniciativa
autônoma e autêntica poderia surgir como expressão das massas naquelas
circunstâncias soviéticas.
Lukács fora enfático na afirmação de que para o desenvolvimento da
democracia socialista, naquele estágio em que se encontrava, era
“absolutamente necessário um trabalho plenamente consciente para despertá-la”
de modo que esta consciência “não pode hoje tornar-se consciente de modo
espontâneo, mas deve ser guiada – segundo a expressão de Lenin – a partir de
‘fora’.” (Lukács, 2008, p. 188). Evidentemente, Lukács baseava-se no escrito de
Lenin Que fazer?, um momento em que o revolucionário russo escreve sobre as
circunstâncias históricas da classe operária russa, numa qualificação conjuntural
muito específica, a saber, a superação de um czarismo que emasculava inclusive
o desenvolvimento das forças produtivas, traçando obstáculos para a própria
organização livre dos trabalhadores e para o próprio desenvolvimento do
capitalismo. O Partido Operário Social-Democrata Russo, especialmente sua
fração bolchevique, era uma minoria clandestina perseguida, e não o partido do
poder, que controla a produção geral da sociedade.
A ausência da autonomia do movimento de massas é uma tácita aceitação
de Lukács de que o partido comunista deveria continuar a guiar as massas,
inclusive reprimindo, se necessário, os movimentos insurgentes – tanto os
movimento insurgentes da esquerda anti-soviética, como aqueles voltados a uma
orientação da democracia burguesa como escapatória (escapatória, e não
alternativa) do socialismo de tipo soviético. De tal maneira que, para Lukács, o
papel do intelectual era conduzir as massas à organização socialista, justamente
porque nenhum movimento espontâneo poderia surgir dali sem que fosse
primeiramente formado pela consciência dos intelectuais. No fim das contas, a
burocracia soviética negava espaço às massas do mesmo modo que negava o
acesso dos intelectuais ou de suas ideias às massas, o que tornava virtualmente
impossível a organização de fora das massas ao mesmo tempo que criava
barreira entre o contingente de trabalhadores e seus intelectuais orgânicos. A
234
proposta até então descabida de Lukács de uma consciência política de fora,
numa referência descontextualizada a Lenin, não poderia ser outra coisa senão
uma indicação de um controle do próprio partido soviético sobre o processo de
democratização – uma veleidade absolutamente ilusória de Lukács, como a
história pôde provar vinte anos depois com o desmoronamento da União
Soviética.
Muito diversa é a situação de fora proposta por Lenin. Senão, vejamos:
quando a classe trabalhadora sob o jugo do controle do modo de produção do
capital se organizava de modo autônomo, a despeito da repressão política e
sobretudo econômica que lhe era transposta, esta organização autônoma tomava
caráter de espontaneísmo e poderia levar a luta por demandas minoritárias ou
parciais, e uma consciência de fora poderia atentar para a totalidade da força que
o movimento dos trabalhadores poderia obter pela sua posição central na
transformação do mundo e geração das riquezas sociais pelo trabalho. Note-se
bem que os intelectuais orgânicos da classe trabalhadora, para utilizarmos uma
feliz expressão de Antonio Gramsci, poderiam surgir das massas, mas na maior
parte das vezes – como no caso do próprio Lenin –, estes intelectuais eram
formados numa classe burguesa ou nobre, o que lhe favoreciam um
enriquecimento cultural em relação ao conjunto do operariado, dada a parca
condição de vida da classe trabalhadora como um todo. A questão fulcral de
Lenin, em Que fazer?, refere-se imediatamente à possibilidade de organizar a
classe trabalhadora para uma revolução. E dado o seu espaço de organização
muito limitado pelo aparato de poder czarista, Lenin se indagava se era viável,
então, uma organização de massa, abertamente contestatória, ou se aquele
momento exigia uma luta clandestina realizada por intelectuais revolucionários
que poderiam guiar o rumo da classe operária sob condições políticas de
segredo rigoroso, na mais alta e perigosa luta clandestina revolucionária, até o
momento em que o desencadeamento da revolução fosse possível, dissipando o
poder czarista numa revolução ordenada de fora para a própria classe operária,
por sua centralidade no processo produtivo e importância nos passos seguintes à
revolução, na manutenção do sistema produtivo para a satisfação das
necessidades da sociedade revolucionária. Até o momento em que a fusão entre
235
o de fora e a classe operária como um todo dissolvesse a distinção entre
trabalhadores, de um lado, e intelectuais, de outro.
Mas já não eram estas as condições dos trabalhadores soviéticos.
Despojados da possibilidade de se organizarem em partidos políticos, porque o
partido político em que se organizavam era ao mesmo tempo o partido da ordem,
os trabalhadores soviéticos estavam sob a mais severa repressão política e
econômica (o estacanovismo como moral produtiva do operariado soviético é um
bom exemplo desta repressão econômica, apresentado por Lukács sob a
questão de uma “acumulação primitiva socialista” necessária para a
ultrapassagem das debilidades formativas de um socialismo no elo mais fraco da
cadeia, através de sua concepção de um bom trabalho para a efetivação do
hábito gerador da nova ética), e seus intelectuais de fora, no mundo burguês,
não tinham a menor inserção no movimento dos trabalhadores, dada a vigilância
muito eficiente da polícia política soviética; e os intelectuais de fora das máquinas
das fábricas eram também tolhidos em seu potencial de liberdade e acabavam
torneados aos moldes do partido institucional na defesa incondicional da União
Soviética, obrigados a ignorar a repressão mais severa sobre a sociedade como
um todo. Mészáros (2002, p. 482) também observa que o discurso de Lukács é
bastante problemático sobre esta tomada de consciência de fora das massas
pois este discurso se refere à tomada do poder pelas massas em uma revolução
socialista; mas depois da revolução socialista, não pode haver mais o de fora,
porque a atividade da produção deveria ser centralizada pelos próprios
trabalhadores numa associação de produtores. Então, se Lukács acredita
fielmente que o regime soviético é de facto um regime socialista (Lukács, 2008,
p. 180), e que acusar a União Soviética do seu contrário seria “uma calúnia
burguesa”, como Lukács poderia admitir a consciência de fora dentro do
socialismo? Admitir isso impugnaria a legitimidade da transição socialista
efetuada pela União Soviética. O de fora se transforma obrigatoriamente no de
cima, mas isto também não significa que o movimento possa de dentro encontrar
maneiras de administrar a transição diante de seus problemas existenciais. Se,
por ventura, por de fora Lukács estivesse entendendo a ruptura necessária com
o partido da ordem e uma revolução dentro da revolução, ainda poderia, de
236
algum modo, fazer sentido, reivindicando Lenin num contexto similar: de fora da
classe trabalhadora soviética e de fora do partido comunista da ordem, os
intelectuais guiariam uma luta clandestina contra o próprio partido comunista (o
partido da ordem) e soergueria o conjunto do povo russo à dissolução do poder
de classes. Mas não era sobre isso que Lukács falava. A consciência social, para
Lukács, deveria ser trazida de fora das opiniões subterrâneas, no sentido de ser
o próprio partido comunista o elemento de fora, o próprio partido da ordem.
Lukács não via um movimento revolucionário contrário à União Soviética e de
viés marxista como sendo o de fora, até pela inexistência de tal movimento.
Decerto, tampouco Lukács propôs qualquer tentativa de sublevação contrária ao
partido comunista. O elemento de fora era o próprio partido comunista, que do
seu patamar mais elevado da consciência de classe, ordenaria o movimento pela
democracia. Em suma, a democracia socialista obstruída pelo partido comunista
só poderia ser posta em prática pelo próprio partido comunista que a obstruía,
tendo como primeiro passo a democratização do próprio partido. Neste sentido, a
analogia de Lukács sobre Que fazer? só poderia ser válida se Lenin tivesse
entendido por de fora como sendo os intelectuais da ordem czarista, e não os
intelectuais do movimento insurgente revolucionário controlado pelo partido
clandestino. A questão central é o lugar que o partido comunista ocupa numa e
noutra épocas históricas. Mészáros (2002, p. 483) estava certo ao perceber a
contradição absurda que há numa sociedade de produtores associados gerida e
administrada de fora destes mesmos produtores associados. Lukács só poderia
admitir isso se, conjuntamente, admitisse o fracasso do socialismo de tipo
soviético. Mas Lukács, em O processo de democratização, não só não admite tal
fracasso, como atribui qualquer crítica que impugne a União Soviética como
autêntica transição socialista a uma calúnia burguesa.
István Mészáros adverte de modo muito consistente sobre isso, nesta
longa passagem da qual não se podem secionar excertos:
Após a revolução, quando o partido detém as rédeas do poder e o controle social, não pode mais haver qualquer coisa parecida com o “de fora”. Este “de fora” – vis à vis às massas de trabalhadores – se transforma simultaneamente no hierarquicamente autoperpetuador de cima. Assim, a liderança intelectual não pode ser exercida nas sociedades pós revolucionárias simplesmente
237
“de fora”, como acontece sob as circunstâncias de comando capitalista, quando os trabalhadores e intelectuais progressistas são igualmente o objeto deste domínio. Diferentemente, sob as circunstâncias alteradas, a “liderança intelectual” se transforma num controle político das massas institucionalizado, exercido de cima e imposto com todos os meios à disposição do Estado pós-capitalista. E, claro, esta circunstância negativa, em vista da constituição objetiva e da força determinante das estruturas materiais de poder herdadas não se torna melhor apenas por ser inevitável na sequência imediata da conquista do poder. Assim, a nova tarefa histórica é a reestruturação radical das estruturas de poder hierarquicamente dadas, numa genuína base de massa, em contraste com a dolorosa perpetuação da divisão da sociedade em mandantes (ou, com um nome mais palatável, líderes) e mandados, em nome de uma necessidade, que se considera inevitável, de introduzir “de fora” do movimento dos trabalhadores a consciência socialista. As medidas estratégicas adotadas, adequadamente justificadas no tempo certo, não podem mais ser consideradas historicamente legítimas. Após a conquista do poder, a consciência socialista não pode ser desenvolvida “de fora”, que já não existe, e ainda menos de cima, que existe e é contraproducente. A consciência socialista pode apenas ser gerada de dentro da base de massa da sociedade pós-revolucionária, pelas próprias massas, em resposta às tarefas e aos desafios que elas têm de enfrentar em suas tentativas de solucionar problemas materiais, políticos e culturais de sua vida cotidiana, por meio do aprendizado e dos processos de ajustamento recíproco à atividade produtiva planejada cooperativamente. (Mészáros, 2002, p. 482).
Neste sentido, os indivíduos que no modo de produção socialista estariam
diante de escolhas muito mais conscientes nas quais as possibilidades de
controle teleológico dos resultados dos pores dos indivíduos singulares seriam
muito mais amplas e muito mais afastadas da causalidade natural, não se realiza
no socialismo de tipo soviético. Mas Lukács tem que subverter sua própria
concepção de generidade ao, então, determinar o socialismo de tipo soviético
como socialismo de fato. Se, por um lado, a democracia meramente idealizada
da vida burguesa implica numa subordinação da questão da política à economia
de mercado, por outro, a democracia socialista ordenando a própria produção,
sendo, então, uma verdadeira democracia, implica novamente numa rejeição de
fundo do socialismo de tipo soviético.
Quando Lukács utiliza o recurso metodológico para demonstrar que em
Stalin estava ausente a mediação, e que Stalin reduzia todo o conjunto das
decisões estratégicas do movimento comunista internacional a questões
238
meramente táticas, Lukács aponta que, então, o grave problema do qual o
stalinismo padeceu era de ordem metodológica. Mas Lukács não aponta
qualquer outra saída para tal questão senão apenas também no âmbito
metodológico, utilizando como recurso a mediação. Contudo, a categoria de
mediação por si só é absolutamente impotente para produzir as mudanças
estruturais e objetivas necessárias. Justamente porque mediações
transformadoras exigem intervenções práticas sustentáveis de um agente social
da vida real, e não a suposição auto-suficiente de um ponto vista hipostasiado
idealisticamente – e, neste sentido, um retorno aos problemas contidos em
História e consciência de classe pode ser visualizado.
Lukács a certa altura em seu ensaio sobre O processo de democratização,
por não romper com seu ideal da defesa do socialismo no elo mais fraco,
acreditou que determinadas concessões feitas para a organização democrática
de base poderia salvar o regime de seu burocratismo; mas Lukács
desconsiderou o fato de que tais concessões, por menores que fossem, jamais
seriam permitidas pelo estado soviético, mais ainda que fossem, seriam
absolutamente inócuas, pois Lukács não foi ao cerne da questão: o controle
soviético da produção engendrava um metabolismo socioeconômico que operava
a extração politicamente do trabalho excedente como sua própria forma de
personificação do capital, como percebeu Mészáros (1985 e 2002, p. 505) e José
Chasin (1988). De modo que o burocratismo não era uma questão marginal que
poderia ser resolvida com medidas emergenciais ad hoc, mas era, em verdade, a
própria essência política do controle econômico de produção, controlando a
reabsorção do mais-valor extraído do processo produtivo, administrando o
capital. E a democracia socialista, diz Mészáros, para ter qualquer efeito
precisava como conditio sine qua non de uma equidade factual dos produtores
associados – e não meramente no terreno das abstrações éticas.
Quando Lukács em seu testamento político se envereda para questões de
ordem prática, como as questões do trabalho da linha de produção soviética, ele
tem que sustentar tais argumentos ainda em abstrações ilusórias sobre a
coletivização dos bens de produção, já que o processo de trabalho ainda
guardava tudo aquilo que havia de mais abominável no modo de produção
239
capitalista. A eliminação das classes sociais que Marx elaborava, que poderia ser
executada somente por aquele contingente de ponta da lógica do trabalho –
naquela ocasião, o proletariado – é simplesmente subvertida numa moral em
Lukács. Primeiro, porque Lukács fazia um apelo moral à consciência dos
trabalhadores; segundo, no momento em que redige O processo de
democratização, Lukács insistia na tese de que o proletariado deveria voltar-se
contra si próprio como indivíduos para agir pela classe numa ditadura que volta
contra si mesma para estabelecer um novo hábito ético. O foco sobre o ator do
processo é a única diferença entre Tática e ética e O processo de
democratização; enquanto num primeiro momento o apelo é feito aos
trabalhadores, neste segundo momento, os trabalhadores impotentes de ação
política, não são solicitados, mas em seus lugares entram os burocratas do
estado soviético. A consciência de fora era composta exclusivamente pelas
lideranças do partido em parco processo de desestalinização – um apoio direto a
Khrushchev.
No embate veemente contra a ideologia do pluralismo democrático
burguês, Lukács almeja uma saída para a União Soviética que não seja aquela
do retorno ao capitalismo, e para isso, sua reivindicação de uma democracia
popular socialista da vida cotidiana através das vozes emanadas do subterrâneo
é uma autêntica tentativa de colocar o controle produtivo nas massas
trabalhadoras da Rússia soviética. No entanto, sua saída se limita ao partido
comunista. Lukács verifica que o partido comunista stalinizado colocou entraves
à vida cotidiana, afastando liminarmente das massas quaisquer decisões
importantes da vida social soviética. Contudo, Lukács novamente recai sobre a
reivindicação da posição de Lenin, de que as massas dependem de um elemento
de fora, e novamente rejeita a possibilidade da consciência das massas na União
Soviética. Diz Mészáros:
[...] o modelo de Lukács, pelo qual indivíduos isolados, na qualidade de indivíduos autoconscientes, podem – com as consequências radicalmente reformadoras previsíveis- “escolher entre alternativas”, simplesmente não funciona, pois, no que ele denomina “assuntos econômicos”, a questão não é de modo algum realmente econômica mas uma questão de relações estruturais de poder politicamente articulada. Ou seja, não é
240
consumo econômico seletivo, comparável ao consumo cultural seletivo e que permite a recusa dos produtos oficialmente favorecidos. Diz respeito, em primeiro lugar, à alocação do excedente socialmente produzido, junto com a embaraçosa definição: quem o aloca? A questão de colocar a “opinião pública subterrânea nos assuntos econômicos”, analogamente à aceitação ou à rejeição de produtos culturais em oferta, pode apenas surgir mais tarde, com base nas relações de poder existentes. Em outras palavras, pressupõe a redefinição radical da questão vital do controle da produção social total na ordem socioeconômica e política existente. (Mészáros, 2002, p. 484-485).
Do mesmo modo, quando Lukács reivindica uma saída de conduta de
hábitos para a formação de uma ética comunista, tais hábitos novamente só
poderiam ser impostos pelo bastião da classe trabalhadora, o partido comunista
que controlava a própria produção e reprodução do capital no estado soviético.
Não percebeu Lukács, que tais indicações eram absolutamente inócuas quanto à
forma de como os membros da força de trabalho realmente existente poderiam
se tornar, sob tais condições desumanizadoras de vida, mais livres de sua
sujeição aos imperativos econômicos e políticos do estado soviético. O discurso
lukacsiano da manutenção da divisão de trabalho tal qual a existente no modo de
produção de capital e da acumulação primitiva socialista não se alinhava à
possibilidade de uma autêntica ética emergir da conduta dos trabalhadores –
porque, do contrário, sob a mesma forma produtiva que havia no mundo
capitalista, por qual razão a ética pelo hábito não emergiria dali também? Essa
era uma resposta que Lukács não conseguiria elaborar sem recorrer a
elucubrações totalmente abstratas e ilusórias. Por isso, esta tentativa de
demonstrar como a potencialidade humana de se chegar a uma generidade
humana de caráter qualitativamente superior ficava, em Lukács de Sobre o
processo de democratização, emperrada num futuro muito distante no qual as
individualidades deveriam ser reprimidas e educadas para se chegar a este
objetivo. Motivo pelo qual a margem de intervenções de Lukács no processo
soviético era totalmente limitada a apontar saídas fictícias executadas pelos
mesmos burocratas que o haviam inúmeras vezes o encarcerado. Quanto à
Lukács não guardar veleidades à economia de mercado, o filósofo não pode dar
mais do que apontamentos genéricos, já que o próprio socialismo real já
241
anunciava seus passos na entrada da economia de mercado, passos executados
pelos próprios membros do partido comunista. A manutenção da divisão do
trabalho no regime socialista foi outra questão que Lukács não pode debater sem
recorrer a um estratagema ilusório. Disse, sobre isso, Mészáros:
Da internalização das restrições do “elo mais fraco” resultou, para Lukács, que o Estado pós-revolucionário, sob controle do partido, não poderia ser sujeito a qualquer crítica substantiva. Esta é a razão de, em sua busca de alternativas, ele concluir não apenas pela defesa autopunitiva da separação das atividades política e intelectual, na vã esperança de uma margem de atividade autônoma, estruturalmente incompatível com o sistema pós-capitalista, como também de uma alternativa totalmente falsa ao existente: “uma divisão do trabalho bem pensada e realista entre o partido e o Estado”. Nada poderia ser mais irrealista, como demonstrou a supressão do seu ensaio acerca da Democratização e das suas entrevistas de 1971 – dadas a pedido do partido, então profundamente preocupado com a onda de greves de massa na Polônia. De fato, todo o sistema deveria implodir antes que a crítica limitada e as propostas marginais de Lukács para a melhoria das condições estabelecidas pudessem ver a luz do dia, muito menos influenciar a ação. (Mészáros, 2002, p. 504).
Do contrário, o que seria a emancipação socialista senão a radical
transcendência da divisão social do trabalho? Quando Lukács estabelece a
similitude de uma ordenação social construída para a produção do capital em
relação à do socialismo, ele procura dar sustento à ideia de que o socialismo de
tipo soviético é, de fato, um tipo de socialismo. Mas para isso desconsidera o fato
de que cada sistema produtivo da humanidade utilizou formas de produção e
organização do trabalho de modo distinto – bem como formas políticas
organizativas (remetemo-nos ao próprio exemplo marxiano inserido em A miséria
da filosofia, no qual é demonstrado que todos os estamentos feudais são
abolidos na Revolução Burguesa, do mesmo modo que todos as formas de
controle do capital são abolidas na revolução socialista). Ainda que Lukács
estivesse se referindo à neutralidade dos instrumentos de trabalho, como de um
martelo ou serrote, por exemplo – mas não estava –, esses instrumentos ainda
assim não são totalmente neutros em relação à forma produtiva que o engendra:
embora o serrote ou o martelo não tenham sido descartados num sistema de
produção do capitalismo verdadeiro, seus usos foram, no mínimo, marginalizados
242
ao mínimo possível, e as ferramentas novas de trabalho, mesmo mantendo
alguns princípios básicos de outras ferramentas já existentes, foram remodeladas
ou até mesmo criadas para esta nova forma social produtiva, organizadas de
acordo com tal configuração do trabalho. De modo que o socialismo implica a
modificação também da forma produtiva da humanidade, e não apenas em
relação à apropriação dos bens produzidos. Os limites da neutralidade da
instrumentalização capitalista são decididos pela sua capacidade ou
incapacidade de se tornarem partes constitutivas de um sistema global coerente.
Por isso mesmo, se podemos pensar no instrumento isolado e o modo como este
instrumento organiza ou modela a vida numa fábrica do capital, como devemos
pensar a estrutura da própria fábrica do capital em relação à fábrica no
socialismo?, já que a fábrica é o mais poderoso sistema da produção do
capitalismo, em franca interconexão com as estruturas do mercado – basta, para
tanto, pensarmos na organização da distribuição dos produtos no capitalismo, ou
ainda na forma toyotista de organização das fábricas e da própria dinâmica na
cidade (o just in time). Teria, então, o socialismo um modelo toyotista de
produção? Nesta formulação lukacsiana em O processo de democratização,
Lukács responderia positivamente a esta questão, se isso significasse a defesa
da forma produtiva soviética contra o escrutínio da razão.
Lukács, para a afirmação de que o valor de trabalho que é determinado
pelo tempo social de produção é mantido no socialismo, faz uso de uma
distorção de Marx. Mas tal distorção segue o propósito de assegurar que a forma
produtiva soviética pode ter a mediação da produção de mercadorias e mesmo
assim ser socialista. Porque o que está posto em Marx é que no lugar de uma
divisão do trabalho, na produção social para a humanidade, temos uma
organização coletiva do trabalho. Vejamos, no entanto, a explicitação na íntegra
do longo excerto marxiano do qual Lukács se remete adulterando tal propositura:
Considerado no próprio ato da produção, o trabalho do indivíduo singular é o dinheiro com o qual ele compra imediatamente o produto,o objeto de sua atividade particular; mas é um dinheiro particular que só compra exatamente esse produto determinado. Para ser imediatamente o dinheiro universal, teria de ser, desde o início, não um trabalho particular, mas universal, i.e., ser posto desde o início como elemento da produção universal. Sob esse
243
pressuposto, entretanto, a troca não lhe conferiria mais o caráter universal, mas seu caráter coletivo pressuposto determinaria a participação nos produtos. O caráter coletivo da produção faria do produto desde o início, um produto coletivo, universal. A troca, que originalmente tem lugar na produção – que não seria uma troca de valores de troca, mas de atividades que seriam determinadas pelas necessidades coletivas, por fins coletivos –, incluiria, desde o início, a participação do indivíduo singular no mundo coletivo dos produtos. Sobre a base dos valores de troca, somente por meio da troca o trabalho é posto como trabalho universal. Sobre a base anterior, o trabalho seria posto como trabalho universal antes da troca; i.e., a troca dos produtos não seria de modo algum meio pelo qual seria mediada a participação dos indivíduos singulares na produção universal. A mediação tem, naturalmente, de ocorrer. No primeiro caso, que parte da produção autônoma dos indivíduos singulares – por mais que essas produções autônomas se determinem e se modifiquem post festum por suas relações recíproca –, a mediação tem lugar por meio da troca das mercadorias, do valor de troca, do dinheiro, que são todos expressões de uma única e mesma relação. No segundo caso, o próprio pressuposto é mediado; i.e., está pressuposta uma produção coletiva, a coletividade como fundamento da produção. O trabalho do indivíduo singular está posto desde o início como trabalho social. Por conseguinte, qualquer que seja a configuração material do produto que ele cria ou ajuda a criar, o que compra com seu trabalho não é um produto determinado particular, mas uma cota determinada na produção coletiva. Por isso, não tem nenhum produto particular para trocar. Seu produto não é um valor de troca. O produto não tem de ser primeiro convertido em uma forma particular para adquirir um caráter universal para o indivíduo singular. Em lugar da divisão do trabalho que é necessariamente gerada na troca de valores de troca, teria lugar uma organização do trabalho que tem por consequência a participação do indivíduo singular no consumo coletivo. No primeiro caso, o caráter social da produção só é posto post festum, pela ascensão dos produtos a valores de troca e pela troca destes valores de troca. No segundo caso, o caráter social da produção está pressuposto e a participação no mundo dos produtos do trabalho independentes uns dos outros. (Marx, 2011, p. 118-119).
Quando Lukács postula a divisão do trabalho e a manutenção da forma do
valor na sociedade socialista, acaba removendo a mediação necessária para a
interpretação por Marx acima elaborada, e transfere para a ética a questão da
organização social da produção e reabsorção das riquezas sociais no modo de
produção comunal. Para Marx, diferentemente, a divisão do trabalho que
prevalece na sociedade de mercado engendra uma dinâmica em que os
indivíduos são mediados reciprocamente e combinados em um todo social
244
estruturado e organizado de forma contraditória pelo modo de produção
capitalista. A troca de mercadorias, observa Marx, é governada pela necessidade
de uma permanente ampliação do valor de troca, imperativo que subordina todas
as outras dimensões da sociedade em que o capital rege a dinâmica social. Na
sociedade comunal, por sua vez, a troca não se resume à troca de mercadorias,
mas à troca de atividades, anulando o valor de troca dos produtos, que deixam
de ser mercadorias, porque nesta produção e distribuição dos produtos da
atividade humana deve caber a autodeterminação correspondente das
necessidades humanas nas quais os indivíduos se engajam de acordo com suas
próprias necessidades como seres humanos ativos.
245
CONSIDERAÇÕES COMPLEMENTARES
No entanto, sem revolução o socialismo não poderá se concretizar. Ele necessita desse ato político, já que necessita recorrer à destruição e à dissolução. Porém, quando tem início a sua atividade organizadora, quando se manifesta o seu próprio fim, quando se manifesta a sua alma, o socialismo se desfaz do seu invólucro político. (Marx, Glosas críticas... 2010, p. 52). A classe trabalhadora substituirá, no decorrer do desenvolvimento, a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes [...] e já não haverá poder político propriamente dito, pois o poder político é precisamente o resumo oficial do antagonismo na sociedade civil. (Marx, A miséria da filosofia. 1976, p. 137). Após reler seu ensaio sobre a Democratização – condenado e engavetado pela liderança do partido como “politicamente perigoso” – Lukács teve sérias restrições em relação a ele. Escreveu, em uma carta ao seu editor alemão, que “como panfleto é muito científico e, como estudo científico, parece mais um panfleto”. Na verdade, este ensaio é muito mais problemático do que indicam as reservas de seu autor, pois ele tenta oferecer soluções para agudos problemas políticos e socioeconômicos no plano metodológico abstrato e num discurso ontológico remoto, sem indicar as necessárias mediações materiais e institucionais que pudessem superar, pelo trabalho crítico estratégico, as dificuldades e contradições identificadas do presente. [...] Ele não poderia admitir para si mesmo que muitas das agudas questões políticas e socioeconômicas do desenvolvimento pós-revolucionário receberam o mesmo tipo de tratamento não-mediado em A ontologia do ser social e nos fragmentos de sua Ética irrealizável. (Mészáros, Para além do capital, 2002, p. 501).
246
Trespassar o itinerário da politicidade e da generidade em Lukács implicou
um retorno ao pensamento marxiano, sem o qual não seria possível construir as
bases que sustentam as afirmações ontológicas lukacsianas – que, no fundo, são
originadas nos escritos de Marx. Tal itinerário fora demarcado pelo transcurso
marxiano de passagem de uma democracia radical de base liberal à sua posição
marcadamente revolucionária, que, uma vez formulada, fora mantida
definitivamente em seus escritos ulteriores. Esta posição marxiana, visualizada
por Chasin como a determinação ontonegativa da politicidade, também foi
percebida, na mesma época, por István Mészáros, como notamos no capítulo
inicial da tese. Contudo, Chasin pôde demonstrar textualmente a passagem da
fase pré-marxiana para a marxiana como nenhum outro teórico conseguiu, além
de verificar como as inúmeras vertentes interpretativas de Marx
desconsideravam desde esta determinante concepção marxiana da politicidade,
até seus posicionamentos acerca do idealismo – o que, de algum modo,
acabavam por recair em interpretações típicas de que Marx teria construído seu
arcabouço teórico através de um amálgama tríplice originário. A importância da
demonstração da autonomia filosófica marxiana foi crucial, inclusive, na
justaposição de seus ordenamentos revolucionários, o que se inclui aí uma
intensa busca pela transformação de toda a sociedade em vistas à emancipação
humana, da qual Marx jamais tergiversou ou se eximiu. Tal propositura marxiana
exigia uma transformação do todo existente, mas não guardava veleidades de
que esta transformação pudesse ser efetivada por meios idílicos e graduais,
numa elevação quase natural da democracia burguesa. Ao contrário disso, para
Marx, este ato político original revolucionário era uma tarefa destruidora e
violenta da ordem social vigente, como anuncia ipsis litteris a epígrafe acima,
criando uma nova ordenação produtiva voltada aos interesses não mais dos
indivíduos privados e egoístas em contraposição à sociedade, mas do próprio
gênero humano, realizando a transformação positiva de todos os indivíduos
singulares. E por mais que estivesse coberta por um invólucro político, tal
transformação revolucionária promove a destruição da própria política, porque
dela, no socialismo, não restaria nada senão sua inócua sombra obsoleta
remetida ao passado histórico da humanidade.
247
Não nos resta dúvida da acepção marxiana da dissolução do poder político
no estágio de superação da propriedade privada dos meios de produção, que é
comprovada em inúmeras passagens textuais de Marx, postas à prova tanto por
Chasin como por Mészáros. Este último ainda lembrou adequadamente uma
passagem marxiana inscrita em A miséria da filosofia, na qual Marx (1976) é
enfático ao afirmar sobre a dissolução do poder político como condição da
transição revolucionária23, e a lembrança de Mészáros, originalmente escrita na
New Left Review nº 108, de março de 1978 (Mészáros, 1985), veio
acompanhada de uma observação extremamente pertinente: a de que a questão
do poder político nas sociedades pós-revolucionárias é uma das questões mais
desprezadas e esquivadas por toda a esquerda mundial; incluimos neste rol
aquele que fora um dos maiores filósofos marxistas do século XX, György Lukács
– o autêntico e pioneiro verificador de um estatuto ontológico em Marx. Na
aludida passagem marxiana, o revolucionário alemão afirma que a condição para
a emancipação da classe trabalhadora é a abolição de todas as classes, o
perecimento do poder político propriamente dito, uma vez que este é
precisamente a expressão oficial do antagonismo na sociedade civil. Condição
novamente expressa por Marx em sua crítica de Kreuznach e sustentada ao
limite nos anos posteriores, com seu indefectível relevo sobre a negatividade da
manutenção do estado, como se observa em seus escritos sobre a Comuna de
Paris. Está devidamente impressa em linhas indeléveis da Crítica da filosofia do
direito de Hegel, que a vitória, portanto, do proletariado enquanto classe que
consubstancia o sofrimento universal da humanidade – especialmente por sua
posição central no metabolismo entre o homem e a natureza na produção de seu
mundo – não era apenas uma vitória de uma classe sobre a outra, mas a vitória
de uma classe que não pode vencer sua situação ultrajante sem abolir a si
própria enquanto classe, desaparecendo junto consigo aquele elemento que a
determina como classe, isto é, a propriedade privada dos meios de produção e o
estado que a consubstancia.
23 Notemos textualmente em Marx (1976, p. 136-137): “[...] após a queda da antiga sociedade haverá uma nova dominação de classe, resumindo-se num novo poder político? Não. A condição de libertação da classe trabalhadora é a abolição de todas as classes, do mesmo modo que a condição de libertação do Terceiro Estado, da ordem burguesa, foi a abolição de todos os estados e de todas as ordens”.
248
Abolir, portanto, a política e todos os elementos que dela derivam é o
fundamento ético da humanidade para uma generidade de forma
qualitativamente superior. Este ponto fundamental da concepção marxiana da
ontologia do ser social levanta inúmeras questões, dentre as quais se pode
formular até que ponto a ontologia do ser social estava textualmente em Marx e
até que ponto é uma formulação totalmente inédita no marxismo realizada por
Lukács. Lukács não tem dúvidas ao descrever que toda a sua percepção da
ontologia do ser social está amplamente condicionada às posições ontológicas
marxianas. Não foi por outra razão que enquanto a ontologia de Hartmann é
apresentada na demonstração de seus limites, e a de Hegel como superação
ainda formal e limitada destes limites da ontologia naturalista, Marx não recebe
tratamento de crítica no conjunto de Para uma ontologia do ser social de Lukács.
Não obstante, um dos pontos mais fundamentais da ontologia lukacsiana formula
– partindo das descobertas críticas de Marx contra Hegel e superando a crítica
de Feuerbach – a concepção da generidade: como se articula o gênero humano
e quais são as origens e os limites deste gênero? Lukács percebe que todo ser
possui uma generidade em-si, e no caso do ser social, dada a natureza
teleológica de suas intervenções, este possui uma generidade em-si e também
uma generidade para-si (que nada mais é do que o auto-reconhecimento do
gênero, que passa à adaptação ativa em seu processo de transformação), um
reconhecer-se consciente de sua existência. Por tal razão, o homem pode intervir
de modo finalístico na reprodução de sua vida – e, dada a irreversibilidade dos
processos históricos, uma vez realizada tal transformação, o ser social já não
pode agir de outro modo, senão através de seu pôr consciente e finalístico sobre
o mundo, apesar de não possuir em suas mãos o controle absoluto dos
resultados do conjunto social de tais pores teleológicos. Lukács, no dilucidar
desta generidade, critica toda a forma de uma teoria da história que visa
estabelecer uma finalidade da história. Estes são dois pontos fundamentalmente
novos no marxismo – ainda que tenham suas bases elementares já nos escritos
marxianos –: a irreversibilidade dos processos históricos e a ausência de um
finalismo (tanto de cunho naturalista, como de caráter teológico) na história.
Tertulian (2003 e 2010) anunciou com grande precisão esta conclusão da
249
ontologia do ser social, uma das mais importantes contribuições lukacsianas para
o marxismo.
Do mesmo modo, avançando e adentrando nestas questões, o filósofo
húngaro identifica que os estranhamentos não existem em nenhuma outra esfera
da generidade muda, ganhando dimensão e existência apenas na generidade
não mais muda, de modo que a história da humanidade é também uma história
de seus estranhamentos. A possibilidade de superação de tais estranhamentos
para uma generidade qualitativamente superior em relação ao enraizamento de
valores é chamada por Lukács em seus Prolegômenos para uma ontologia do
ser social de “generidade humana finalmente universal”, realizada na superação
do estranhamento do trabalho (Lukács, 2010, p. 323). Vale notar que nestes
Prolegômenos, Lukács (2010), diferentemente do que se apresenta na segunda
grande seção de sua Ontologia (Lukács, 2013), não utiliza nem ao menos uma
única vez o termo generidade para-si [Gattungsmässigkeit für sich] ou
generidade em-si, e o tratamento da questão da superação dos estranhamentos
passa a ter a mesma qualificação que está composta no conjunto de sua
Ontologia, embora conceitualmente passe a definir como generidade humana
finalmente universal. A razão desta modificação conceitual é desconhecida, mas
podemos atribuir à forma inacabada de seus textos.
Supomos que a explicação da adaptação ativa consciente do gênero
humano (primeiro, apenas gênero em-si, isto é, um gênero com existência
objetiva, para um ulterior gênero de auto-reconhecimento, e, portanto, um gênero
para-si, com existência objetiva ativa) que então se define completamente
distinto do gênero meramente mudo está mais próxima do conjunto conceitual
marxiano, imbuída tanto nos seus Manuscritos de Paris (Marx, 2004,
especificamente no tocante às questões sobre o estranhamento) quanto em A
miséria da Filosofia (Marx, 1976), na qual a classe é em-si enquanto existência
objetiva, e para-si no seu auto-reconhecimento de classe – e não no momento de
sua suplantação ou dissolução, já que para Marx o comunismo dissolve não
somente o estado, mas, por via de consequência, todas as classes sociais
existentes para uma comunidade realmente universal dos homens. Novamente e
de modo direto: a classe é em-si pela sua existência efetiva no seio do
250
desenvolvimento do capitalismo; e, ao reconhecer-se enquanto classe, pode agir
para-si, isto é, em vias finalísticas objetivando seus interesses, mas quando se
efetiva a transição revolucionária, ela cessa de existir. Do mesmo modo, Lukács
chama a atenção para a existência objetiva do gênero, isto é, o gênero em-si
(que pode ser mudo, como nos animais, isto é, ter uma existência passiva e
causal espontânea), e percebe que o gênero passa a destruir a sua mudez a
partir do momento em que toma, por meio do trabalho como pioneiro ato
teleológico, o controle ativo de seu destino, abandonando então seu mutismo
originário. O gênero passa a ser gênero para-si, mas não significa que este é seu
estado último, este abandono do gênero mudo para uma adaptação ativa.
Significa, aliás, que este abandonar do mutismo em direção a uma generidade
realmente universal é um longo processo pelo qual o homem apenas começou a
trafegar.
Ronaldo Fortes defende a percepção desta objetivação da generidade
muda e da generidade em-si de modo radicalmente diferente. Porque ele
acredita que a generidade muda é um estágio anterior da generidade em-si.
Supondo isso, os animais, que têm uma generidade muda porque sua adaptação
ao meio ambiente é meramente espontânea e natural (passiva, absolutamente
causal) não teria uma existência de gênero? Isto é, seu gênero objetivo – e aqui
não entramos no mérito finalístico disso –, seu gênero em-si, é inexistente?
Senão vejamos a explicação de Fortes no excerto a seguir:
O processo espontâneo de objetivações produz a generidade em-si, generidade esta que se diferencia radicalmente da mera generidade muda característica da esfera da natureza. A formação desta generidade em-si – que pode ser definida como a crescente socialização do homem e dos seus processos interativos – não implica o desenvolvimento consentâneo das individualidades, ao contrário, muitas vezes, o desenvolvimento da primeira, do ponto de vista econômico, por exemplo, ocorre em detrimento do processo de humanização dos indivíduos. Em outras palavras os atos de objetivação criam a possibilidade de suplantar a generidade muda da natureza, embora tão somente produzam do ponto de vista social a generidade humana em-si. A produção da generidade para-si, que é a superação desta ambigüidade de desenvolvimentos, depende dos atos de alienação dos indivíduos. (Fortes, 2011, p. 198).
251
O que o leva à conclusão de que:
Nessa questão em particular a proximidade com o pensamento hegeliano é bem mais nítida do que a leitura precisa das determinações marxianas. Fato que pode ser observado nos desdobramentos do problema, quando, ao tratar da questão da superação do estranhamento, introduz os conceitos de generidade em-si [Gattungsmässigkeit an sich] e generidade para-si [Gattungsmässigkeit für sich]. Não há duvidas de que essas últimas são categorias completamente estranhas ao universo conceitual do pensamento marxiano. Sob esse aspecto, independente do fato de as ideias de Lukács estarem ou não corretas, não se pode atribuir, como ele o faz, o conjunto desses desdobramentos e mesmo a natureza do problema à obra marxiana. (Fortes, 2011, p. 257).
Não obstante, se debruçarmo-nos na analogia do tratamento de classe
em-si e classe para-si composto em A miséria da filosofia, chegamos a
percepção de que Lukács está impregnado deste mesmo raciocínio para
determinar a ultrapassagem do mutismo do gênero (que é a sua existência
meramente formal e objetiva, ou seja, existência em-si), para o caminho do
abandono do mutismo do gênero (que é a sua existência consciente e ativa na
adaptação do mundo através de atos finalísticos, o seu abandono do mutismo
em vias de uma generidade para-si), que não pode ser outra coisa senão um
longo processo. A analogia é, obviamente, limitada ao uso conceitual das
expressões marxianas, justamente pelo fato de que a dissolução das classes
dissolve consequentemente a própria classe para-si, enquanto o avançar da
generidade para-si, que é um processo em direção a uma generidade finalmente
universal, não pode dissolver o gênero humano; o homem não pode cessar de
ser homem e de pertencer ao gênero humano, mas pode cessar de pertencer a
uma classe social, não limitada à esfera orgânica de sua existência, mas a uma
objetividade social e historicamente determinada. Deste mesmo modo, no
segundo volume da Ontologia, Lukács trata a questão exatamente nestes
termos, apresentando a questão da generidade em-si como sendo a generidade
muda – frise-se o grifo “totalmente”, nas palavras de Lukács, dando a percepção
de (i) um processo, e (ii) de que o processo de algum modo já se iniciou quando
o homem passa a ter a atividade de transformação da natureza de modo ativo e
teleológico por meio do trabalho:
252
Com efeito, sabemos que o ser-para-si propriamente dito do gênero humano, a sua mudez totalmente superada até hoje não foi realizada. Por outro lado, igualmente está estabelecido que o mero ato do trabalho significa o pôr a si mesmo do homem, seu devir homem, e, desse modo, o salto já efetuado da animalidade genericamente muda. A ligação entre início e fim constitui a história universal da humanidade, a plena explicitação do ser-para-si do gênero humano. Este só pode se realizar adequadamente de forma consciente: o gênero humano não mais mudo deve estar presente como tal também na consciência dos homens. No caminho continuado até lá, essa consciência só pode se mostrar adequadamente realizada em casos excepcionais, e mesmo nestes, num primeiro momento, de um modo meramente valorativo, pseudossubjetivo, e não como consciência de um ser já alcançado, realizador de valores, que constrói essas formas em um patamar ainda mais elevado. [...] O que se quis indicar com isso é que o ser-para-si do gênero humano já está presente no devir homem do homem, que já o trabalho mais primitivo corporifica – em-si – essa nova relação do singular com o gênero. (Lukács, 2013, p. 207).
Mais adiante, Lukács (2013, p. 301-302) é taxativo em demonstrar como
não há uma inexorabilidade para um desfecho de uma generidade-para-si como
um ponto de chegada definitivo do homem. Ao contrário, Lukács afirma que a
humanidade está sempre em busca de uma generidade de caráter mais elevado,
e ainda afirma com todas as letras que “a essência real deste processo seria
falsificada se quiséssemos fazer dessa linha tendencial da história universal uma
diretriz geral abstrata para todos os casos singulares” (Lukács, 2013, p. 302).
Noutros momentos na Ontologia (2013), Lukács deixa claro que a humanidade
possui uma generidade para-si, isto é, não mais muda, em contraposição àquela
muda, de caráter existente apenas em-si – em plena consonância com a crítica
de Marx a Feuerbach anunciada em linhas gerais nos Manuscritos de Paris sobre
a objetivação do ser. Doravante, Lukács não diminui seus esforços de
demonstração de um caminho processual da generidade, na impressão de que
Aristóteles já pensava numa generidade qualitativamente superior pela
possibilidade da superação da escravidão, mas que historicamente isso ainda
era inviável, dado o baixo desenvolvimento das forças do trabalho (isto é, do
próprio gênero humano); não foi sem motivos, então, que Lukács divisou no
mercado mundial a potencialidade da superação do próprio capital e então a
253
qualificação ontológica de uma generidade posta qualitativamente superior,
subtitulando, então, sua Para uma ontologia do ser social com a frase que
diretamente mostra o caminho processual em direção à generidade
universalmente posta pelo homem: Questões de princípios para uma ontologia
hoje tornada possível (Lukács, 2010). O que vemos na Ontologia é uma cabal
rejeição de fundo à história posta como movimento finalístico – incluindo neste
contexto a compreensão teológica do mundo ou a ideia de que a generidade
para-si colocaria a história humana no último patamar dos acontecimentos
históricos possíveis (o que impugna tanto um fim da história como uma história
finalística). Lukács veicula a ideia que a generidade não mais muda totalmente
posta (e por “posta”, aqui e anteriormente, entendamos como “conscientemente
articulada”) só pode ser a generidade de caráter mais elevado, que se constitui
somente no comunismo (Lukács, 2013, p. 354 e 757 e seguintes até o fim da
obra), na superação do estranhamento do trabalho que lhe é característico. Mas
Lukács não trata a questão como uma redenção teológica da humanidade, como
um destino finalístico de onde toda a ética humano-societária deveria
desembocar, como se vê implicitamente nas conclusões sobre este assunto nos
textos de Tertulian (em especial, Tertulian, 1999 e 2010) – que ainda assim,
paradoxalmente, percebe o grande mérito de Lukács como tendo erigido a
elucidação acerca da causalidade posta oriunda da teleologia dos indivíduos
singulares. Mas é um fato facilmente visualizável que os Prolegômenos guardam
uma diferença terminológica, e não exatamente categorial, sobre a generidade
muda, apontada como em-si e a generidade não mais muda, apresentada como
generidade-para-si no segundo volume da Ontologia. Há que se lembrar um fato
importante: que os Prolegômenos são elementos pontuais escritos sobre a
Ontologia que vieram a público de modo inacabado e posterior a este volume
que lhe dá origem.
Em 1968, contudo, no ensaio sobre O processo de democratização,
Lukács, que havia interrompido seu trabalho sobre a ontologia para realizar tal
inferência política, notadamente pela importância que o filósofo húngaro
emprestou a seu texto político naquela circunstância soviética da invasão da
Tchecoslováquia pelo exército de Brejnev, aponta do seguinte modo tal questão
254
da generidade – atestando mais uma vez como a politicidade está vinculada à
generidade no pensamento lukacsiano de modo inextrincável:
No capitalismo, estamos diante de uma sociedade verdadeiramente socializada; trata-se de uma realização da generidade humana em si, mas que ocorre numa sociedade que só pode ser posta em movimento por contradições insuperáveis, numa sociedade na qual o homem, por motivos econômicos necessários, não pode elevar-se, em sua dimensão social, à verdadeira generidade, ao verdadeiro ser-homem (Lukács, 2008, p. 98).
A questão não fica formalmente clareada, mas o ponto culminante deste
raciocínio é a de que a generidade para-si não fora alcançada – ou ao menos
não fora totalmente alcançada – posição terminológica dúbia de Lukács que,
então, levou às conclusões de Fortes (2011) e Tertulian (2010). O fato é que se
pode perceber em Lukács um desenvolvimento da ideia de que a generidade do
homem não é muda, isto é, não é estática e causal como nos animais, mas que o
homem ainda pode desenvolver ainda mais o processo de tal generidade a partir
de seu ser econômico, derrubando as obliterações de seu pressuposto natural do
trabalho a um ponto qualitativamente superior, quando, então, a individualidade –
característica típica da generidade não mais muda –, caso peculiar do exemplar
do gênero humano, começa a exercer maior papel na generidade. O modo como
a vida social é determinada pelas amarras impostas por fatores econômicos
obliterantes do desenvolvimento do gênero, fora tratado por Lukács na Ontologia,
que via na própria suprassunção das barreiras naturalmente impostas ao homem
o desenvolvimento de tal generidade. Neste salto qualitativo sempre se preserva
uma determinação ontológica essencial do ponto de partida originário: a imediata
e inseparável unidade do gênero com o exemplar do gênero. Isso implica uma
permanência insuperável de todo exemplar na própria generidade. O gênero
humano se desenvolve transformando suas forças essenciais ontológicas,
mantendo, ao mesmo tempo, a sua generidade orgânica e suprassumindo-a a
um nível superior. Superar o mutismo da natureza significa, então, que o homem
impôs seu próprio processo de reprodução na natureza – note-se novamente a
noção de processo, um caminho em que cada vez mais torna o homem menos
diretamente dependente da natureza, um recuo de suas barreiras naturais.
255
Lukács é enfático em afirmar que tal noção está presente no pensamento
marxiano, caracterizando a transformação do exemplar genérico
[Gattungsmässig Typischen] em individualidade, numa individualidade que é
formada pelo gênero, mas que também singularmente determina os rumos do
próprio gênero:
Exatamente em relação a esse complexo de problemas já apresentamos a concepção marxiana da generidade-não-mais-muda; Marx determina-a como conjunto das relações sociais. Com isso, a constituição mais geral da relação de gênero e exemplar singular não é anulada, mas modificada fundamentalmente, uma vez que o gênero se torna uma unidade articulada, internamente diferenciada, cuja própria reprodução, altamente complicada, pressupõe e exige certas atividades, modos de comportamento etc. dos indivíduos que a ele pertencem, mas de modo que, de um lado, proporcione ocasião, caráter, espaço de manobra etc. para os pores teleológicos dos seres humanos singulares – determinando e concretizando-os amplamente – e, de outro lado, que também seja determinado, de maneira não irrelevante, em seu movimento total, por esses atos e impulsos individuais. (Lukács, 2010, p. 89).
Lukács permanece alinhado à perspectiva marxiana da preponderância
que a atividade laboral exerceu na constituição do gênero humano. Não obstante
os desenvolvimentos biológicos se realizarem diretamente nos exemplares
individuais dos gêneros, um desenvolvimento do processo econômico só pode
ser realizado por pores teleológicos dos seres humanos. A economia se torna,
diz Lukács, por isso, ao mesmo tempo produtora e produto do homem em sua
práxis. A questão de que se a generidade para-si [Gattungsmässigkeit für sich] é
absolutamente estranha ao universo categorial marxiano ou não é um ponto de
menor relevância que aquele por Fortes (2011, p. 257 e seguintes) demonstrado:
a correta elucidação da ontologia marxiana por Lukács depõe a seu favor, a
despeito de trazer à ontologia o universo categorial próximo do hegeliano. No
entanto, o ponto fundamental na questão ontológica, não anunciado por
Tertulian, é que, diferentemente de Marx, para quem toda e qualquer categoria
estava envolvida diretamente em questões da ordem de resolução dos
problemas sociais impostos pela objetividade, em Lukács, a generidade para-si
acaba por se apresentar como postulado ético abstrato no decorrer de seu
256
itinerário político. Como Lukács tinha se comprometido completamente com a
procura de soluções na margem de ação criada pelo elo mais fraco da cadeia –
do socialismo em um só país – ele não consegue a liberdade de questionar em
termos substantivos as determinações e consequências fatais desta margem de
ação para o movimento socialista historicamente dado. Se, de um lado, todos os
enunciados marxianos são enunciados sobre uma forma de ser, e, portanto, são
enunciados ontológicos, emitidos sempre da reflexão concreta da objetividade;
de outro, ao reconhecer isso e não poder se posicionar efetivamente sobre o
campo de ação dentro da limitada margem do socialismo de tipo soviético,
Lukács se aprisiona numa ontologia do ser social cujos traços fundamentais não
enunciam saídas objetivas para o movimento socialista, refugiando-se em termos
estritamente metodológicos, combinados ao apelo efetivo e incontornável da
emancipação humana, da humanidade tomar para-si a sua totalidade social,
tornando-se um gênero de nível qualitativamente superior – embora nunca
plenamente acabado, pois aí vale a assertiva de Marx de que se começa, no
comunismo, a verdadeira história da humanidade (e não se termina a história
sucedânea da humanidade). No entanto, a questão fundamental de como fazer
os trabalhadores nas sociedades capitalistas e os trabalhadores do socialismo de
tipo soviético se tornarem homens cujas ações conduzirão a humanidade em
direção à generidade humana efetivamente universal não é sequer levantada nas
páginas de sua Ontologia – e também não é posto senão como postulado
abstrato irrealizável e imponderado nos seus escritos políticos maduros, como
percebemos no decorrer da tese.
Nada disso significa, entretanto, que Lukács havia abandonado a defesa
do marxismo. É importante frisar que do ponto de vista da análise das categorias,
Lukács anunciou energicamente a diferença de uma democracia burguesa e de
uma democracia da vida cotidiana, de nítida inspiração leninista: enquanto a
democracia burguesa – meramente formal – era uma forma superestrutural
subordinada à base econômica, engendrada pela disparidade plutocrática e
existente como medida ideológica de sustentação da estrutura social de classes,
a democracia da vida cotidiana implicava uma forma política mediativa em que a
própria vida coletiva dos homens daria expressão às decisões mais importantes
257
da produtividade – e não o oposto, e não o trabalho morto determinando o
trabalho vivo, como na democracia do capital –, o que acabaria por determinar,
por conseguinte, o próprio complexo de decisões cotidianas da sociedade,
movendo a sociabilidade em geral para as questões mais decisivas dos rumos da
humanidade. Lukács empreende esforços, então, de luta contra a nova posição
do movimento comunista internacional, que via na democracia burguesa a saída
para os impasses do socialismo de tipo soviético, por isso mesmo afirmou que a
saída para a crise soviética não poderia se direcionar à falsa alternativa da
democracia burguesa. Lukács, de modo muito hábil, vislumbrava a crise da
esquerda ocidental, e anunciava, antecipadamente, uma questão que mais tarde
seduziria tal esquerda: a democracia como valor universal, tese erigida por
Berlinguer na década seguinte – mas que igualmente servia a manutenção da
União Soviética por se evitar qualquer confronto aberto contra os Estados Unidos
por alguma insurreição revolucionária.
E apesar disso, Lukács desloca a resolução prática de Lenin ao
movimento comunista de 1917 para os anos 1960, mantendo o seu conjunto
categorial intacto sem, contudo, dar-se conta da monumental discrepância entre
as realidades que separavam o movimento revolucionário bolchevique da
instrumentalização burocrática do partido comunista soviético. Por isso mesmo,
apresentou propostas políticas irrealizáveis e não-objetivas. Tartamudeou
questões sobre o hábito e sobre a ética: o hábito através de uma imposição
coercitiva regulará a vida humana para uma nova ética? Seria esta a tal saída
ética, o enunciado inexpugnável da emancipação humana?
A questão acerca dos impasses para a emancipação humana sob o
regime socialista de tipo soviético não é sequer levantada, porquanto tudo se
resume imediatamente às considerações metodológicas abstratas sobre o fato
de Stalin subordinar a teoria à tática. Quando, em 1919, Lukács redige seu texto
Tática e ética sob a luz dos acontecimentos revolucionários na Rússia e na
Alemanha, após o desfecho da Primeira Guerra Mundial, a associação direta
entre uma tática política correta e a ética é um ponto patente – visualizado por
Mészáros (2002), mas que escapa mais uma vez das análises de Tertulian
(1999). A hipóstase do partido como detentor de uma ética política é presente,
258
então, em todos os seus ensaios que compõem História e consciência de classe,
porque o partido deveria assumir o seu mandato moral conferido pelo
proletariado na luta de transição para uma sociedade ética de facto, ativando a
“personalidade total”. A própria ética era, na verdade, um posicionamento político
possível, ou, em outras palavras, a correta política poderia ser vista como
diretamente ética, conforme expôs Mészáros (2002, p. 498). As quatro décadas
que separam os primeiros ensaios de História e consciência de classe e os
derradeiros manuscritos de Para uma ontologia do ser social fazem com que a
possibilidade da ética seja deslocada do partido que continha um mandato moral
para as esferas mais abstratas; não é por nenhum outro motivo senão este que a
política é tratada na Ontologia não mais como o campo de ação moral sobre o
qual recai toda ética, mas é tratada em termos puramente abstratos – neste
sentido, sim, divergindo do legado marxiano, e não na mera formalidade do
conteúdo nominal ou categorial ter se originado em Hegel –, escapando-se das
questões práticas de sua época: o pôr teleológico é a articulação humana
consciente em vista da transformação da natureza, de modo que a ação não
sugere apenas a finalidade das ações singulares dos indivíduos, como também a
ação que visa a consciência de outras individualidades, uma vez que a
consciência dos indivíduos é posta numa cadeia de movimentos que funciona
apenas de modo articuladamente social. Mas como fazer este pôr teleológico
secundário mover as engrenagens da história em direção da generidade mais
ampla? De modo que, totalmente diverso de Marx, as lucubrações lukacsianas
operam de modo formal no terreno abstrato; não vemos um tratado formal de
Marx sobre a política do ponto de vista ético ou abstrato, nem ao menos sobre a
própria categorização do ser social ou sobre metodologia, porque todo o conjunto
da obra marxiana é voltado para as questões práticas da vida humana, e a
percepção da ética no conjunto dos textos de Marx é dada através da dimensão
prática de seus posicionamentos diretos sobre o mundo – como lhe impõe o
imperativo de sua segunda e de sua décima primeira teses ad Feuerbach. Do
mesmo modo, a percepção de que a política em Marx opera sobre os homens
como um impasse a ser superado quando a humanidade superar o modo de
259
produção do capital é dada através de uma dimensão prática e não puramente
teórica do ponto de vista abstrato.
Retomar Marx implica o reconhecimento de tal práxis, e não somente a
sua percepção das bases ontológicas do conhecimento; implica sua aplicação
objetiva na práxis dos homens. A retomada de Marx, deste modo, exige, como
caráter imperativo, a confrontação cabal da concepção marxiana de socialismo
com os regimes de tipo soviético. Exigir uma resolução pela práxis em face do
mundo objetivo não significa, no entanto, um elogio à prática sem teoria ou a um
empirismo. Ao contrário, significa um reconhecimento de que essas formulações
teóricas e filosóficas sobre o destino da humanidade devem ser pensadas na
objetividade das questões que decidem o rumo do ser social.
Partindo deste princípio, como determinar a sociedade pós-capitalista, as
sociedades de tipo soviético? Lukács não teve dúvidas ao determinar esta rota
soviética como um autêntico socialismo, que levaria ao reino ético abstrato da
generidade finalmente universal. No entanto, pode-se dizer, de facto num
socialismo de tipo soviético? Mészáros demonstra que a falaciosa explicação da
esquerda comunista apologética da União Soviética de uma nova classe surgida
pela ditadura do proletariado não servia à realidade e, então, escamoteava a
verdadeira face opressora da União Soviética; do mesmo modo, aquela parcela
da oposição trotskista que corroborava a explicação weberiana de um
burocratismo como natureza de um poder político na sociedade pós-
revolucionária também não conseguia dar conta do novo tipo de sociedade que
estava a surgir no Leste Europeu. Ainda a explicação de um capitalismo de
estado não chegava à raiz do problema soviético, e a questão continuava
camuflada na terminologia de um socialismo versus capitalismo de estado.
E, novamente, István Mészáros recoloca as questões centrais do problema
da transição: sabe-se que as assertivas marxianas são diretas e inequívocas
sobre a anulação do poder político pelo proletariado vencedor no processo
revolucionário; no entanto, o que acontece neste entretempo? E a sua pergunta é
o ponto fundamental da questão da transição e da política: “É possível remover
um poder político fortemente centralizado sem que se tenha que recorrer ao
exercício de um sistema político plenamente articulado?” (Mészáros, 1985, p.
260
34). Como executar a transição de um sistema auto-suficiente de poder político
que controla completamente a sociedade, transferindo as funções do poder
político para o corpo social, permitindo deste modo a emergência da livre
associação dos produtores? Estas questões não foram formuladas
adequadamente por Lukács, que ora refugiou-se em questões meramente
abstratas de um postulado ético, ora aceitou o socialismo de tipo soviético como
uma autêntica forma transitória para o comunismo. Na oportunidade de expor o
problema em O processo de democratização, mais uma vez eximiu-se de
verificar a infeliz realidade de um socialismo fracassado, acreditando que aquele
pior socialismo era qualitativamente superior ao melhor capitalismo. Vale notar
que também neste sentido e mais uma vez de modo condescendente, Tertulian
lembra que após a queda dos regimes do Leste, esta descuidada frase de
Lukács fora utilizada contra ele próprio numa espécie de método de Guerra Fria.
Diz Tertulian que Lukács não é “perdoado por sua fidelidade ao ideal comunista e
por sua obstinação em não deixar seu país, como fizeram por exemplo Ernest
Bloch ou os velhos membros da Escola de Budapeste”; e continua em sua
defesa do velho mestre húngaro que “o que nunca é mencionado é sua vontade
claramente expressa de lutar por uma ‘reforma radical’ nos regimes do Leste, luta
que deveria partir do interior dessas sociedades” (Tertulian, 2002, p. 30).
Tertulian só não menciona, com isso, o fato de que a concepção leninista de
Lukács de que a consciência de classe só poderia vir do elemento de fora como
vanguarda ativa do processo revolucionário também, de algum modo, guiou a
decisão de Lukács de acreditar que a tal “reforma radical” que deveria tomar
forma na vida cotidiana só poderia ser implementada pelo mesmo partido
comunista que outrora havia burocratizado a dinâmica da vida social soviética.
Tertulian prefere se refugiar à sombra do indubitável significado filosófico que
Lukács teve para o marxismo, que está na dilucidação da ontologia do ser social
e não em sua “fidelidade ao ideal comunista” de tipo stalinista. O elemento de
fora, que poria a consciência na sociedade socialista, como vimos, era o próprio
estamento burocrático do partido comunista, numa dupla crença de Lukács:
primeiro, de que a consciência das massas era anulada pelo seu modo de vida;
segundo, que nenhuma iniciativa autônoma poderia surgir das massas. Eis a
261
uma enorme contradição de Lukács, então. Se a consciência das massas era
nula, e a União Soviética era de fato um socialismo, temos a conclusão
silogística de que no socialismo as massas têm suas consciências anuladas pelo
brutal controle político imposto a elas? Ademais, o fato do preceito inicial de
Lukács de que nenhuma insurreição poderia surgir do interior da sociedade
soviética era um fator que depunha contra o próprio socialismo de tipo soviético,
porque com isso Lukács almejava controlar o movimento insurgente, atribuindo o
controle da democratização da vida cotidiana ao aparelho burocrático do partido
comunista. Por mais que se tente, as defesas de Tertulian (1991) diante da
realidade são inócuas, e por isso, por mais volteios que se faça, serão sempre
insuficientes.
Na guinada ao marxismo empreendida por Lukács no decorrer dos anos
1917-1924, a sua concepção leninista de partido como porta-voz da transição da
humanidade para uma generidade qualitativamente superior fora formulada e
nunca mais abandonada, nem mesmo em sua Ontologia. Se, por um lado,
Lukács mantinha a crença de que o partido encarnaria a transição para esta
generidade superior, advinda através de um papel histórico moral, oferecendo
espaço para a realização da personalidade total dos indivíduos; por outro, o
filósofo húngaro se deparou com uma vida inteira de tentativas de superação dos
obstáculos impostos pelo próprio partido comunista, das derrotas de suas teses
de Blum à sua prisão durante a revolta húngara quatro décadas depois. Como
continuar a crer no potencial emancipatório do partido que deveria encarnar um
papel histórico moral na transição pós-revolucionária? Lukács não teve outra
saída para a manutenção de sua teoria sobre a eticidade do proletariado senão a
defesa contingente e a racionalização – como percebe Mészáros (2002, p. 470) –
da estratégia do socialismo em um só país.
Ainda que Lukács tivesse sido expulso do partido e impedido de participar
da vida política húngara por longos anos devido ao seu potencial de liderança
intelectual de oposição ao stalinismo, ele mesmo não poderia romper com sua
ideia de partido político, tampouco estabelecer um rompimento definitivo com a
União Soviética (senão numa única frase de desabafo, no fim de sua vida,
testemunhada apenas por István Eörsi) porque não conseguia encontrar um
262
substituto alternativo à instrumentalidade emancipatória do próprio partido do
proletariado. Ao não realizar duas críticas importantes, a primeira, a crítica da
estrutura econômica e política da União Soviética e seu modo de produção
explorador; a segunda, do partido como elemento moral e absoluto do processo
de transição do socialismo para uma generidade mais plena do ponto de vista
qualitativo, Lukács refugiou-se na crítica da escala de tempo curta demais para a
análise das transformações que estavam a ser realizadas pelo bastião da moral
soviética. Lukács pôde atribuir ao tempo relativamente curto da perspectiva
histórica, aqueles problemas do socialismo realmente existente; deixou intocada
a crítica à organização da sociedade soviética e a suas teorias sobre o partido,
apesar de, neste momento final de seus escritos derradeiros, o autor não guardar
veleidades idealistas sobre o sujeito-objeto idêntico ou sobre a entificação do
espírito transformador no proletariado envolto ao partido como um substituto do
Geist hegeliano, como ele mesmo pôde reconhecer no seu posfácio de 1967 de
História e consciência de classe (Lukács, 2003). Atribuindo, então, a um estágio
transitório os problemas do stalinismo, para o bem do desenvolvimento histórico
mundial, talvez um mal necessário, Lukács pôde divisar uma saída positiva para
os problemas do socialismo realmente existente sem que, com isso, tivesse que
romper com o partido institucional – partido que não detinha a reciprocidade por
Lukács. Mas tal saída positiva só poderia ser, então, uma abstração ilusória sem
apoio firme na realidade.
Se pensarmos que os escritos políticos de Lukács reiteram uma posição
política de defesa do partido institucional, e para não se chocar com os
interesses do partido, Lukács refugia-se no campo da cultura, teremos O
processo de democratização como uma exceção: nele, ao menos, Lukács aborda
diretamente todas as questões políticas. Não foi sem motivos que o ensaio ficou
engavetado por duas décadas pelo próprio partido, como vimos na Introdução
desta tese. Mas ainda assim, neste escrito, o campo da cultura é reforçado, e a
solicitação de uma urgente democratização não chega ao limite da crítica radical
e não rompe em nenhuma circunstância com o socialismo em um só país,
referindo-se ao stalinismo apenas como uma conduta equivocada no campo da
metodologia, como o faz em Carta sobre o stalinismo (Lukács, 1977). É um
263
sintoma muito característico dessa fase de Lukács, então, recorrer ao ponto
metodológico dos problemas da alienação na sociedade. Não é por acaso a sua
reivindicação de um marxismo com argumentos puramente metodológicos, o que
acaba por adquirir uma significação política passiva no contexto da repressão
soviética. Vale notar, que neste momento de desestalinização, todos erros de
Stalin haviam sido cometidos por uma questão de redução da estratégia à mera
tática de ocasião. No fundo, dizia Lukács em inúmeras passagens, todo o
problema do stalinismo se reduzia ao método, ou à prioridade metodológica da
tática. Esta característica patente já posta em relevo em História e consciência
de classe24 é soerguida ao patamar das resoluções políticas.
As inferências lukacsianas sobre a politicidade em sua última fase, como
percebeu Mészáros (2002), funcionam como postulado ético abstrato, porque as
afirmações de que somente a ética superaria o dualismo entre o particularismo
dos indivíduos e sua generidade jamais indicam concretamente como o recurso
ético postulado poderia ser praticamente aplicado, nem demonstra explicitamente
o dilema que se vive sobre uma transição para o socialismo que não guarda o
postulado ético almejado e a defesa deste mesmo socialismo realmente existente
fracassado como socialização dos meios de produção. E o ponto fundamental é
deixado de lado: pode-se dizer que existe socialismo sem a socialização dos
meios de produção?
É forçoso que se diga que esta posição de Lukács não era uma
subserviência ao stalinismo ou à União Soviética – basta para tanto lembrar do 24 Vejamos a abertura de História e consciência de classe: “Suponhamos, pois, mesmo sem admitir, que a investigação contemporânea tenha provado a inexatidão prática de cada afirmação de Marx. Um marxista “ortodoxo” sério poderia reconhecer incondicionalmente todos esses novos resultados, rejeitar todas as teses particulares de Marx, sem, no entanto, ser obrigado, por um único instante, a renunciar à sua ortodoxia marxista. O marxismo ortodoxo não significa, portanto, um reconhecimento sem crítica dos resultados da investigação de Marx, não significa uma “fé” numa ou noutra tese, nem a “exegese” de um livro sagrado. Em matéria de marxismo, a ortodoxia se refere antes e exclusivamente ao método”. (LUKÁCS, 2003, p. 64). Acerca da noção do método científico, vale notar brevemente algumas palavras de Chasin: “[...] as categorias, sendo nas coisas, podem vir a figurar no pensamento, mas é excluída in limine, como fantasia da mera especulação, a possibilidade da existência de algum tipo de categoria ante res. Isso confirma, indiretamente, a inadmissão de qualquer função premonitória do método científico, ou de qualquer idealidade em papel equivalente, na condução ou regulagem da atividade cognitiva. E, não havendo, nem podendo haver caminho cognitivo previamente estabelecido, nem conduto ideal extrassubjetivo a seguir, o ponto de partida do conhecimento só pode ser o próprio objeto” (Chasin, 2009, p. 247-248).
264
apoio de Lukács a Imre Nagy contra a inquisição soviética, recusando-se a
delatá-lo, apesar daquele guardar diferenças teóricas e políticas com o líder
húngaro. As questões centrais de um não-rompimento com a ideia do socialismo
em um só país e as suas proposições éticas como postulados abstratos
ocorreram porque Lukács realmente tinha esta posição como parâmetro de vida,
por uma crença irredutível nestes posicionamentos. Não era uma covardia do
revolucionário húngaro, e este aspecto Tertulian (2007) anuncia com precisão, e
jamais seria lícito assim concluir, porque o itinerário biográfico de Lukács
contesta cabalmente tal incorreção de análise sobre sua vida política. Poderia,
por inúmeras vezes, ter deixado o mundo do socialismo realmente existente, mas
não o fez; poderia simplesmente ter se calado, mas continuou a publicar suas
obras e a contrabandeá-las para a Alemanha Ocidental, já que não tinha espaço
dentro de seu partido para publicá-las. Mészáros reconhece esta característica
em Lukács, demonstrando que Lukács jamais se acomodou de modo oportunista
em seu partido – o que pode ser facilmente comprovado pelo fato de que mesmo
após a sua morte, seus textos ainda eram considerados politicamente perigosos
pelo partido comunista, ou então em sua resistência à ocupação russa da
Tchecoslováquia, quando endereçou uma carta a G. Aczél, secretário do
Politburo, que deveria ser remetida à János Kádár, líder do partido húngaro,
rejeitando a intervenção soviética em termos contundentes. Lukács preferiu lutar
no campo institucional do seu partido, no limite, ainda por acreditar nesta luta de
algum modo. Mas precisou se deter em suas principais obras ao campo abstrato
da ética, porque o campo prático da ética e da política demandava um
rompimento de fundo com toda a sua crença política no socialismo realmente
existente. Motivo pelo qual continuou a repetir o paradoxo acerca da pior forma
de socialismo ser melhor que a melhor forma de capitalismo.
Lukács, apesar de seu sincero esforço em resgatar o autêntico Marx, ao
reconhecer que uma fábrica do capitalismo serve igualmente ao socialismo e
vice-versa, posterga a resolução dos problemas da organização produtiva
(especialmente na questão da opressão sobre o trabalhador imposta pela divisão
social do trabalho típica da relação produtiva do capital) para um inviável futuro
remoto. Abstendo-se de debater a tal divisão do trabalho no socialismo, imputa a
265
Marx a falsa fraseologia de que a divisão social do trabalho no próprio socialismo
se mantém intacta, e para rejeitar as afirmações do Marx da juventude, Lukács
reitera uma clivagem entre o jovem e o maduro Marx – justamente o Lukács, que
tanto demonstrou ao longo da sua obra o substrato da continuidade entre os
escritos marxianos de juventude e O capital. Mais uma vez apresentando o
problema da União Soviética como sendo de fator subjetivo defeituoso, Lukács
aguarda que os indivíduos da sociedade soviética possam ser guiados pelo
elemento portador da consciência revolucionária, o partido, a fim de caminhar
para uma generidade plenamente autoconsciente, e assim deixa de lado a
questão de como chegar nesta generidade através da própria práxis política
destrutiva da ordem produtiva do capital, tão considerada, o tempo todo e em
todas as obras, por Marx.
De um lado, Lukács em seu História e consciência de classe atribui ao
partido a realização de uma personalidade total para a transição possível para o
socialismo. De outro, passadas quatro décadas, este caráter imperativo moral da
missão histórica do partido do proletariado não somente não desaparece – a
despeito de sua visão crítica de ser superado o substitucionismo do partido como
encarnação do sujeito-objeto idêntico, de caráter hegeliano demiúrgico – como
toma forma ainda mais abstrata. Ou seja, Lukács não abandona o caráter
imperativo moral, que antes era consubstanciado no partido como sujeito-objeto
idêntico, mas torna este imperativo cada vez mais abstrato na Ontologia e em O
processo de democratização. Na juventude, a personalidade total era ativada por
meio de soluções práticas no interior da estrutura política pela realização da
“missão moral” do partido, como percebeu Mészáros (2002). Contudo, os
mesmos postulados morais imperativos são agora apresentados sem
corporificação histórica – ainda que Lukács mantivesse a ideia do partido como
detentor da consciência revolucionária até seus últimos escritos políticos,
incluindo neles a entrevista de sua biografia, Pensamento vivido (Lukács, 1999).
A verdadeira tragédia lukacsiana, segundo Mészáros, portanto, é que o filósofo
húngaro, mesmo sendo um dos mais importantes pensadores do século XX,
mantém a idealização do partido como postulado abstrato moral, e à luz dos
acontecimentos soviéticos, promove uma substituição deste postulado abstrato
266
moral do partido para uma ética ainda mais abstrata e irrealizável, atribuindo ao
pôr teleológico do indivíduo singular a autêntica tarefa de uma generidade de
nível qualitativamente superior, ao optar em seu campo de ação na decisão da
práxis correta. Mas ao fazer isso, não indica objetivamente a práxis correta e se
exime de analisar a realidade objetiva da condição do socialismo de tipo
soviético, e, por este mesmo motivo, todo seu discurso recai sobre um universo
de depurações categoriais – desimportando a realidade prática, o que por si só já
é o avesso das concepções marxianas. Razão pela qual Mészáros (2013), em
seu trabalho sobre a dialética lukacsiana, apresenta a seguinte epígrafe: a
dualidade entre ser e dever-ser não foi superada (aludindo a uma passagem de
A teoria do romance). Diretamente, Mészáros faz tal crítica demonstrando,
acertadamente, que o partido idealizado de História e consciência de classe, que
realiza a mediação concreta entre o homem e a história, passa a ser a ética, que
assume a função equivalente – reformulando o velho dilema entre ser e dever-
ser – por meio de seu papel ideal de mediação entre o particularismo limitado
dos indivíduos em seus pores teleológicos estreitos e a própria generidade
finalmente universal, ou humanidade para-si. Deste modo, a tarefa de identificar
na prática as mediações históricas possíveis e socialmente específicas entre o
presente e o futuro é contornada por uma solução hipostasiada dos dilemas
éticos que devem ser enfrentados pelos indivíduos no decorrer de suas vidas
cotidianas. Isto resulta numa crença de que os indivíduos, em resposta aos
desafios da mundanidade tomarão consciência de sua responsabilidade
decorrente do seu pertencimento do gênero, incidindo positivamente diante das
alternativas postas nestes pores teleológicos. De um modo bastante óbvio,
podemos estender a crítica de Mészáros aos trabalhos de outros defensores de
Lukács, com especial relevo a Tertulian, sobretudo quando remetemo-nos ao seu
artigo Lukács e o stalinismo (Tertulian, 2007), para quem a luta anti-stalinista
deveria realmente ser travada no terreno metodológico (por consequência,
mantendo intacto o seu sustentáculo político coercitivo e a sua noção de que tal
socialismo posterga a divisão social do trabalho do capital e a eleva a uma forma
ainda mais violenta de extração de mais-valor). E, se a objetividade da vida
prática é o ponto de partida de Marx, em vez de apresentar postulados éticos
267
remotos, porque “toda vida social é essencialmente prática” (Marx, 2007, p. 534),
outro ponto ainda separa Lukács de Marx: este último manteve como força motriz
de seus escritos a luta prática e intempestiva contra a divisão social hierárquica
do trabalho, na tentativa prática de superá-la, isto é, de superar a insignificância
estruturalmente imposta aos indivíduos degradados a meros trabalhadores
subsumidos ao trabalho. Para tanto, analisou o capital em todas as suas
dimensões, como força social que engendra o capitalismo, mas não se limitou a
analisar o capital no capitalismo, mostrando que a relação social do capital
antecede e extrapola a própria dinâmica do capitalismo; em sua teorização, Marx
apontou caminhos práticos da luta operária para a viável transformação
revolucionária e superação do modo de produção do capital. Noutras palavras, o
esforço marxiano da construção do socialismo foi erigido no sentido de uma
ruptura com a divisão do trabalho específica do modo de produção do capital,
que aprisiona os homens e os transforma em meros homens trabalhadores
subsumidos ao trabalho, homens que nada significam senão a carcaça do tempo
de trabalho, como afirma Marx em A miséria da filosofia. Do contrário, qual seria
a vantagem em substituir o modo de produção do capital por um modo de
produção soviético que mantém intacta a exploração econômica e a coerção
política sobre os trabalhadores, mantendo também a sua relação de valor e
extração de mais trabalho? Se, em Lukács, tanto em sua Ontologia como em O
processo de democratização, o caráter único da sociabilidade ética é produzido
na consciência individual pela consciência ética de pertencimento ao gênero
elevado; em Marx, totalmente ao contrário disso, a verdadeira sociabilidade
corresponde ao ser social objetivamente construído nas condições comunais
desenvolvidas pelos homens. Isto implica reconhecer que não é uma
sociabilidade produzida na consciência, mas na realidade produtiva, e,
justamente por este motivo, a posição marxiana exclui a permanência da divisão
social do trabalho e do modo de produção de capital num estágio mais avançado
de sociabilidade por Marx denominado socialismo. Lukács se exime da óbvia
questão posta nos escritos marxianos a partir de 1844 e carregada até as últimas
linhas de O capital: a necessária e contingente alteração do modo de produção
do capital por um novo modo de mediar a troca da humanidade com a natureza e
268
com as mais outras atividades produtivas dos indivíduos entre si. Por ser acrítico
acerca do modo de produção soviético, Lukács atribui a erros de conduta ou a
um sistema manipulador o fracasso do socialismo de acumulação; porquanto se
trate apenas de um desvio de conduta, uma prioridade metodológica da tática.
Em sua crítica a Lukács, Mészáros percebe como em Marx a práxis
revolucionária cede lugar ao socialismo utópico, porque Marx não projeta sobre a
realidade objetiva um conjunto de imperativos morais, por mais nobre que seja
em seus desejos, como contra-imagem do existente. Justamente porque o que
está em decisão direta culminante em Marx é a articulação das práticas materiais
tangíveis e suas correntes formas institucionais. O que significa dizer que o
sistema comunal de Marx sustentado como verossimilhança histórica de
alternativa para a divisão social do trabalho do capital só pode ser estabelecido
se as condições de sua realização forem expressas em termos de tarefas
concretas e seus correspondentes instrumentos, e não com imperativos
abstratos de uma moral que reivindica uma generidade qualitativamente mais
ampla para um futuro remoto, dinamizada pela consciência dos indivíduos
singulares em seu campo limitado de alternativas. Essa crítica de Marx funciona
como reação ao socialismo utópico, que possuía um ideal abstrato ao qual a
realidade tem que se adequar. Recorrendo ao próprio Lukács, tal adequação da
teoria à realidade não passa de uma inversão ontológica da realidade. A questão
escamoteada por Lukács é a chave para o entendimento da União Soviética: é
possível realizar uma democracia da vida cotidiana se a vida cotidiana é
determinada pelas formas de produção e distribuição de riquezas de modo
absolutamente antidemocrático, regidas pela ordem social do capital?
No mesmo esforço lukacsiano de retorno a Marx, J. Chasin (1988) teve
uma postura diversa em relação à União Soviética e aqui, naturalmente, merece
ser brevemente descrita porque parte exatamente dos limites da politicidade
lukacsiana. Por ocasião do centenário da morte de Marx, J. Chasin redigiu seu
texto Marx: da razão do mundo ao mundo sem razão, no qual evidencia a dupla
barbárie então vivida pelo mundo: a barbárie do mundo do capital e do
socialismo de acumulação, como ele denominou o socialismo de tipo soviético.
Interessa-nos aqui a sua posição acerca da barbárie do socialismo de
269
acumulação, o que, para Chasin, remete-se ao conjunto de eventos no
transcurso das tentativas de transição para o socialismo efetuadas por aquele elo
mais débil da cadeia capitalista, redundando numa série de mazelas e problemas
insuperáveis, caracterizando uma transição parca e incompleta – e, por isso
mesmo, limitada a uma parcela menor do globo –, sob a qual o espaço da
carência toma forma de opressão e restabelecimento das vicissitudes típicas da
ordem sociometabólica do capital. Neste sentido, as afirmações de Mészáros
confluem às de Chasin:
A verdadeira tragédia (e não apenas “no reino do ético”) foi que, sob as circunstâncias de revoluções derrotadas por toda parte, exceto na Rússia – o que inevitavelmente também significou o isolamento da única revolução sobrevivente –, se negaram cruelmente as condições históricas para o desenvolvimento bem-sucedido dos termos materiais e institucionais exigidos pelo modo socialista da alternativa metabólica ao domínio do capital como empreendimento global. Abriram-se totalmente as portas, não somente para a estabilização do sistema do capital seriamente abalado no Ocidente, mas também para a emergência, na Rússia pós-revolucionária, de uma nova forma de “personificação do capital”, que poderia operar um ritmo forçado de extração do trabalho excedente em nome da revolução e para o propósito declarado da necessária “acumulação socialista”, justificada pela promessa de ultrapassar em pouco tempo os principais países capitalistas na produção per capita de ferro gusa, aço e carvão como medida do sucesso socialista. Como estrutura de comando desse novo gênero de controle sociometabólico, o Partido teria de pairar acima de todos como regulador da extração politicamente compulsória do trabalho excedente, com todos os seus corolários culturais/ideológicos. Com isso, o Estado foi reforçado e, mais do que nunca, centralizado na forma de Partido-Estado, em vez de dar início ao próprio “encolhimento”, conforme previsto no projeto socialista original. (Mészáros, 2002, p. 80-81).
Chasin observou que o processo que culmina no bloco soviético jamais
conseguiu se livrar do capital – ainda que se diferencia, em todo caso e com
razão, o capital do capitalismo, o primeiro como coexistente a outros momentos
sociais de produção, anteriores ou posteriores à própria lógica que faz surgir e
efetivar o capitalismo verdadeiro industrial, como anteriormente mencionado; o
capital se põe como forma de captação do excedente mercantil –, de modo que a
transição socialista ainda se manteve regulada pela lógica do capital, o que não
pôde perceber Lukács em seu ensaio sobre O processo de democratização, mas
270
como foi anunciado por Mészáros (2002). Diz Chasin (1988, p. 25) que “valor,
mercadoria, mercado, etc. [...] continuam a integrar a composição do aparato
econômico-social”, o que vale dizer que o capital ainda regia o funcionamento
social pela estruturação da produção e distribuição de mercadorias. Isto implica
que, sob a regência do capital, o processo transitório não se efetivou, daí a
existência de uma sociedade de produtores de mercadorias cuja relação social
de produção consiste no relacionamento dos produtores e de seus produtos
como meras mercadorias, de modo que o próprio trabalho humano se enquadra,
reificado, na esfera também de mais uma das mercadorias.
Questão que aprofunda o problema da transição, posto que a transição
socialista não é o fim, mas o caminho intermediário entre uma sociedade
regulada pela regência do capital e sua transitoriedade por uma sociedade dos
produtores associados, numa sociedade onde a própria humanidade é destituída
de propriedade e que se encontre ao mesmo tempo numa situação de riquezas
(espiritual e material) de facto, o que pressupõe um incremento de forças
produtivas de magnitude qualitativamente superior àquelas vislumbradas nos
países de capitalismo pouco desenvolvido ou desenvolvido por vias atrasadas e
cujos influxos econômicos ainda incidem de modo a retardar as relações
produtivas e a própria dinâmica nacional do capitalismo industrial. Isso nos leva à
questão da estrutura necessária para a potencialidade de uma transição efetiva,
já determinada nos escritos marxianos e assim observada nestes termos por
Chasin: (i) amplo grau de desenvolvimento das forças produtivas, que se resume
num mundo de riquezas material e cultural; (ii) interdependência, simultaneidade
internacional das revoluções; (iii) efetivação da revolução através da iniciativa
dos povos dominantes (Chasin, 1988, p. 28), o que não significa outra coisa
senão que a possibilidade viável da superação da regência do capital só se
concretizará mediante um processo global e simultâneo sob hegemonia do bloco
de ponta da produção de riquezas do mundo do capital – vale notar, que em
diversas passagens de Para uma ontologia do ser social (Lukács, 2013), Lukács
chama a atenção para o mercado mundial como potencializador iminente de um
processo revolucionário rumo à plena efetivação humano-genérica, mas acaba
271
por esconder a discussão do capital como regente das formas de trabalho e de
divisão do trabalho no socialismo de tipo soviético.
Percebendo o transcurso problemático, portanto, da via russa
revolucionária, ou melhor, do isolamento da revolução mundial em seu pólo
produtivo pouco desenvolvido, Chasin verifica a impossibilidade de os países
atrasados per se impulsionarem o salto qualitativo da transição socialista,
justamente pela ausência de meios de produção que tornem reais a suplantação
da regência do capital, o que por si só contraria a possibilidade de tal
acumulação primitiva socialista implementada por Stalin e defendida por Lukács.
Diz Chasin:
Na polaridade conhecida, ao capital básico privado corresponde o capitalismo, do mesmo modo que ao capital básico social corresponde o comunismo. Ou seja, o capital, força gerada socialmente, é apropriado no capitalismo por uma pluralidade de personae do capital, enquanto no comunismo ele é apropriado pela universalidade de seus produtores. Neste caso perde seu caráter de força de dominação, deixando, então, de reger aos homens e à sociedade, para passar a ser regido conscientemente pelos seus produtores. Em suma, no modo de produção comunista desaparece a regência do capital e advém a consciente regência dos trabalhadores, livremente associados. (Chasin, 1988, p. 31).
Desfecho que não pode ser outro senão a transição de uma regência do
capital para uma regência do trabalho, o que passa a valer não mais os
indivíduos reificados em relações sociais de produção cuja dominação é a
mercadoria, mas passa a ser dominante os próprios homens, ou nas palavras de
Marx, a regência do trabalho morto sobre o vivo é invertida em sua significação
direta. Note-se que de todo modo, tanto no capitalismo verdadeiro quanto no
comunismo, há que se ter um pressuposto material de efetivação das riquezas; e
nos países cujo capitalismo ainda não se desenvolveu ou se desenvolveu de
modo muito parco, este pressuposto inexiste. De sorte que o núcleo da questão é
a forma de apropriação do capital: como ter a posse social, se este capital não
está desenvolvido, não existe efetivamente? A propriedade social do capital onde
este não está devidamente criado não pode ser outra coisa senão a subdivisão
social da miséria. Por este motivo, a transição no elo débil da cadeia capitalista
272
trouxe uma acumulação de incrementos para o capital industrial, cuja
apropriação só foi passível de ser coletiva/não-social (Chasin, 1988, p. 31), sob a
qual se tem um ponto de inflexão numa gestão deste capital de modo também
coletivo e não-social, motivo pelo qual uma gestão de caráter social é
duplamente impossível nas condições próprias ao elo débil, “pois o atraso é
também miséria social, cultural e política”. Por esta razão, o processo soviético
nos aparece como sui generis na história, porque mesmo sem a figura do
burguês e do próprio capitalismo, ainda se reitera a regência do capital. Vale
notar que através daquilo que o próprio Lukács aceitou ser a acumulação
primitiva socialista. Nada disso significa que Lenin tinha em mente o processo
por onde se daria o transcurso transitório soviético – da revolução de outubro à
instituição da NEP –, mas que a ocorrência do fracasso da revolução mundial
levou a tal caminho. Neste ponto, Isaac Deutscher em sua análise intitulada A
revolução inacabada afirma:
Como partido revolucionário, os bolcheviques não tinham por onde escolher, a menos que abdicassem e se despojassem do poder, entregando-o, com efeito, aos inimigos que acabavam de ser derrotados na guerra civil. Santos ou idiotas poderiam tê-lo feito, mas os bolcheviques não eram uma coisa nem outra. Encontraram-se, inesperadamente, numa posição que, mutatis mutandis, era comparável à dos decembristas, populistas e narodnovoltsi, no século XIX, isto é, a posição de uma elite revolucionária sem uma classe revolucionária a respaldá-la. Mas a elite era agora o governo, na posse de uma fortaleza sitiada que fora precariamente salva mas ainda era preciso defender, erguer das ruínas e converter na base de uma nova ordem social. É muito difícil que uma fortaleza sitiada seja alguma vez governada de maneira democrática. Os vencedores de uma guerra civil raramente podem permitir-se conceder liberdade de expressão e organização aos vencidos, especialmente quando estes estão amparados por nações estrangeiras poderosas. Por via de regra, uma guerra civil resulta no monopólio do poder pelos vencedores. O sistema de partido único converteu-se numa necessidade inevitável para os bolcheviques. Sua própria sobrevivência e, sem dúvida, a da Revolução, dependiam disso. Não visavam tal medida como premeditação. Estabeleceram-na com apreensão, como um expediente temporário. (Deutscher, 1968, p. 29).
Tal expediente temporário se tornou em expediente efetivo, e a aberração
de uma regência de capital sem capitalismo gerou uma série de problemas no
âmbito da transição socialista a partir da ofensiva do capital no bloco ocidental.
273
Donde se tornou questão primordial a impugnação, por parte de Chasin, de (i)
uma existência de um bloco socialista, havendo, em seu lugar, portanto, um
bloco pós-capitalista de capital coletivo/não-social – ou, em outras palavras, um
socialismo de acumulação; (ii) a própria ideia de uma ditadura do proletariado
reinando num eixo transitório, porque o proletariado foi derrotado na revolução
russa, como também fracassou na Primavera dos Povos em 1848 e na Comuna
de Paris de 1871; (iii) um padrão de um partido do trabalho, organização fictícia e
meta-estrutural responsável por um processo de transição mundial, um modelo
demiúrgico e detentor do baluarte dos trabalhadores; e, por fim, a impugnação de
(iv) todo stalinismo como saber ou corpus da filosofia marxista. Destes itens,
apenas o último é compactuado também por Lukács no decorrer de sua obra
política madura. Os três itens iniciais da impugnação de Chasin, que também
podem ser visualizados na obra de Mészáros, é de uma total divergência com o
pensamento político de Lukács.
Sob a regência do capital, a revolução situada no elo mais débil da cadeia
capitalista de produção não poderia ter gerado outra coisa senão um socialismo
de acumulação do qual todas as mazelas do mundo do capital ainda caem sob
seus trabalhadores, especialmente porque a revolução estava isolada enquanto
processo de transição ou revolução mundial. Sob a regência do capital na
sociedade capitalista, a mercadoria se torna hieróglifo social pelas obnubilações
inerentes ao processo produtivo que separa a apropriação dos produtores que a
produziram – característica típica da mercadoria, que não está em seu corpo
físico, mas na relação social de produção da qual ela é engendrada, de modo
que o que determina o fetiche da mercadoria não é a mercadoria em si, mas o
processo social de produção desta mercadoria e, por via de consequência, o
modo como a apropriação privada é realizada deste bem produzido socialmente.
E, então, sob a regência do capital também no bloco soviético, a mercadoria não
poderia ter outra forma senão a mesma do mundo do capital, com todas as
mazelas e obnubilações que escondem a forma perversa de sua produção, não
superando a sua forma característica fetichizada. Donde a opressão que crava
seus espinhos nos homens no mundo do capital não é meramente na relação
burguês-proletariado, mas a opressão é uma opressão sobre o gênero humano –
274
esta característica estava já demarcada nas linhas iniciais de História e
consciência de classe de Lukács. Chasin, por sua vez, estende para fora do
capitalismo a percepção desta opressão, porque percebe que o modo de
produção pós-capitalista ainda guarda o essencial da produção do capital, que,
na verdade, não é outra coisa senão a própria regência do capital pela burocracia
soviética. E por esta razão, a mercadoria se manifesta de modo similar nas
sociedades capitalista e socialista de tipo soviético. Nas palavras de Chasin:
Enquanto território peculiar da mercadoria e de seu fetiche, submerso, portanto, às formas sociais “em que o processo de produção domina o homem” e não o inverso como pretende, a formação do pós-capitalismo diversifica os fatores de estranhamento da consciência: a) tal como em qualquer sistema de produção de mercadorias, estas aparecem “com vida própria”, (des)regulando a vida e a consciência dos homens; b) dada a carência fundamental que matriza o quadro, as coisas aparecem reforçadas em seu poder sobre o homem; afirmam-se como o sine qua nom da existência geral e individual, no que não são mais do que verdade real, mas uma verdade “fisicamente metafísica”; c) mundo do capital básico para além do capitalismo, é suposto como “processo de produção dominado pelo homem”, no que deixa de ser metafísica corporificada para se tornar pura e simples configuração metafísica: mística especulativa. (Chasin, 1988, p. 39).
Ainda mais problemático, é a forma alienada de produção e apropriação do
produto do trabalho nas sociedades socialistas de tipo soviético, que acabou por
se tornar modelo de socialismo, o que não somente reforçava o anti-comunismo
pelas sociedades ocidentais – dados, entre outros motivos, os tipos de opressão
aos trabalhadores em geral – e convertia a revolução social num “fantasma que
ronda sem sedução e sem sentido”, como afirmou Chasin. Tudo isso mais
obstaculizou do que pôde auxiliar a luta pela emancipação humana, ou, ainda
nas palavras de Chasin, “o stalinismo em todas as suas modalidades, inclusive
em sua derivada contraposição euro-liberal, como ideologia desta barbárie,
converte-se, na sua pletora de falsificações, em obstáculo fundamental na luta
pela emancipação do trabalho” (Chasin, 1988, p. 40).
Mészáros alude à situação revolucionária que a Europa estava vivendo,
especialmente pela possibilidade da revolução alemã desencadear a revolução
mundial. No entanto, fracassada a revolução mundial, o que fazer com o poder,
275
senão perpetuá-lo até o limite à espera de uma nova ofensiva do movimento do
trabalho? Mas esta pergunta não estava colocada para Lenin – segundo
Mészáros (1985, p. 35) – por uma questão de conflito de interesses, de modo
que Lenin deveria proclamar a viabilidade da estratégia da revolução russa como
predicado para a revolução mundial, mas, apesar disso, Lenin estava envolto a
um duplo problema, em uma contradição irresoluta: primeiro, o problema de
seguir isolado com o processo de transição na Rússia como condição primordial
para o sucesso da revolução bolchevique, e segundo, a dependência externa da
revolução mundial. E seguir isolado implicava a criação de bases materiais
inexistentes e indispensáveis para a transição.
Havia um erro curioso no seu raciocínio [de Lenin], frequentemente impecável. Ele argumentava que, “graças ao capitalismo, o aparato material dos grandes bancos, sindicatos, estradas de ferro, além de outros, cresceu”, e “a imensa experiência dos países avançados acumulou um estoque de maravilhas da engenharia cujo uso está sendo obstruído pelo capitalismo”, concluindo que os bolcheviques (que, de fato, estavam confinados em um país atrasado) podem “apoderar-se desse aparato e colocá-lo em movimento”. Assim, a imensa dificuldade da transição de uma revolução particular ao sucesso irrevogável de uma revolução global (sucesso que está além do controle de qualquer agente particular, ainda que tenha disciplina e consciência de classe) foi mais ou menos deixada de lado pela postulação voluntarista de que os bolcheviques eram capazes de tomar o poder e de “retê-lo até o triunfo da revolução socialista do mundo”. (Mészáros, 1985, p. 35).
Não foi por outro motivo senão o acima apontado que Lenin transgrediu de
um momento, durante o processo revolucionário de 1917, em que defendia um
estado sem exército e a substituição da polícia pelas vanguardas proletariadas,
reivindicando os mesmos estatutos outrora estabelecidos pelos communards,
para um momento bem distinto, que pode ser visto em O estado e a revolução,
no qual desaparece qualquer referência à Comuna de Paris, frisando, por
conseguinte, “a necessidade de uma autoridade central, de ditadura e de uma
vontade conjunta de assegurar que a vanguarda do proletariado irá cerrar suas
fileiras, desenvolver o Estado e colocá-lo sobre nova base, enquanto retém
firmemente as rédeas do poder” (apud Mészáros, 1985, p. 36). Este subterfúgio
ideológico sugeria o deslocamento da força de opressão dos proprietários
276
privados dos meios de produção para a opressão do próprio estado, agora como
centralizador e distribuidor da força de trabalho. A solução encontrada por Lenin,
após desaparecer de seu horizonte prático a dissolução do estado, foi denominar
esta opressão exercida pelo estado como poder proletário do estado. Lenin
percebeu a iminência da burocratização do partido no controle do país, mas não
pôde fazer outra coisa senão apelar por uma maior representação dentro da
burocracia soviética. Pode-se ver isto em Lenin, já em abril de 1918, apontando
para uma possível burocratização soviética; vemos em seu texto As tarefas
imediatas do poder soviético (Lenin, 1988, p. 584) uma reivindicação de força
para a manutenção dos conselhos populares, já que havia uma “tendência
pequeno burguesa para converter os membros dos Sovietes em ‘parlamentares’,
ou, por outro lado, em burocratas” e já se verificava uma burocratização de
diversas seções soviéticas. Mas foi em vão, pois as condições do atraso levaram
também ao fenômeno do stalinismo na produção soviética. Mészáros alude a um
texto de Lukács de 1919 (Mészáros, 1985, p. 37-38, As erkoles ezerepe a
komunista termelesben. [Sobre o papel da moral na produção comunista]), no
qual a sua percepção da realidade ali imposta exigia uma saída moral da classe
trabalhadora, num dilema, a saber: ou os indivíduos que compõem o conjunto do
proletariado revolucionário vitorioso compreendem que se precisa criar a força de
trabalho necessária para a superação do atraso russo através da disciplina do
trabalho; ou, se não forem capazes de tal execução de tarefa, teria de criar
instituições que fossem capazes de organizar este estado de coisas e superar o
atraso. Neste último caso, porém, cria-se um sistema legal através do qual o
proletariado compele os seus membros individuais a agir de um modo que
corresponda não em favor de suas vontades individuais, mas em favor de seus
interesses de classe, voltando a sua ditadura contra si mesmo. Nestes dois
casos, o processo estava assentado sobre uma base moral do processo
revolucionário transitório, e de acordo com este processo, criando a situação
material necessária, a dissolução do aparato legal de coação sobre o próprio
proletariado deveria acontecer automaticamente pelo desenvolvimento histórico.
Mészáros percebe a inconsistência de impor uma dominação de classe
contra o proletariado, pelo próprio proletariado, uma vez que esta imposição já é
277
a situação atual das sociedades capitalistas. Senão, vejamos, observando
inclusive a sua referência a uma citação de Marx em A ideologia alemã:
Quais são as estruturas de dominação sobre cuja base se ergue a nova forma política que deve ser descartada, sob o risco de tornar-se obstáculo permanente para a realização do socialismo? Nas discussões da crítica do Estado de Marx, o que é frequentemente esquecido é que ela não está preocupada com a determinação de uma forma específica de dominação de classe – a capitalista –, mas com uma questão muito mais fundamental: a total emancipação do indivíduo social. A seguinte citação é bastante clara: “Os proletários, caso venham a se impor como indivíduos, terão que abolir a condição de existência que tem prevalecido até o momento (que tem sido, ademais, a das sociedades conhecidas) especificamente o trabalho. Assim, eles se encontram diretamente opostos à forma na qual, até hoje, os indivíduos, nos quais consiste a sociedade, se deram expressão coletiva, isto é, o Estado. Portanto, para que se imponham como indivíduos, eles devem pôr abaixo o Estado”. Tente-se remover o conceito de indivíduos deste raciocínio e ele se torna sem sentido, uma vez que a necessidade de abolir o Estado surge porque os indivíduos não podem “se impor como indivíduos” e não simplesmente porque uma classe é dominada pela outra. (Mészáros, 1985, p. 40).
A acusação de Mészáros está em consonância plena com o filão
marxiano, pois qual seria a vantagem para os rumos da emancipação humana se
a dominação do proletariado, que ora é dominado pela burguesia, fosse
substituída pela dominação de um estado opressor em nome do proletariado; o
que está em jogo é a emancipação humana, a dissolução das formas de
dominação de classe possibilitando a emergência dos indivíduos enquanto tais
se liberarem de suas condições de classe, dissolvendo, por consequência, o
estado e as dominações de classe, porque toda a classe seria dissolvida junto
com a propriedade privada dos meios de produção e a forma atual do modo de
trabalho. Qual é a vantagem de tal troca? Para Mészáros e Chasin, como vimos
em vossos argumentos, não há vantagem. Há uma desvantagem, porque sobre a
alcunha do socialismo se pesará um modelo opressor a ser utilizado como
ideologia pela apologética do capital. Para Lukács, há uma vantagem: a
transformação, pela violência coercitiva da política, da sociedade para um novo
hábito em que o subbotnik (uma reivindicação do exemplo de Lenin?) se torne a
nova ética, a única ética realmente possível – já que, para o filósofo húngaro, o
278
socialismo realmente estava efetivado na União Soviética. As inferências
precisas, em meados dos anos 1980, de Ernest Mandel, também são expressam
o modo como tal organização da sociedade soviética criava uma barreira
intransponível para a sua socialização de facto, que já não era devido a uma
vontade da burocracia soviética, tampouco por alguma questão subjetiva:
Em resumo: isolada num país atrasado, a revolução socialista russa não podia desdobrar-se no caminho classicamente previsto da ditadura do proletariado e da construção de uma sociedade socialista sem classes. A produtividade insuficiente gerou a carência generalizada. Sob estas condições, o baixo nível cultural do proletariado facilitou a perda gradual do poder político para as mãos de um aparato de dirigentes profissionais: a burocracia. O proletariado internacional e russo eram igualmente débeis (principalmente por razões subjetivas em relação ao primeiro e por razões objetivas com relação ao segundo) para garantir a limitação progressiva da economia monetária e de mercadorias, apesar da intensa crise do imperialismo e do capitalismo. Isto, por sua vez, condiciona o modo pelo qual o funcionamento específico (não a dominação) da lei do valor e da nova divisão do trabalho baseada na carência se estabeleceram na sociedade soviética: não sob a forma do surgimento de uma nova classe dominante, mas antes, através da hipertrofia de uma camada burocrática (casta) ainda presa à propriedade coletiva dos meios de produção e a uma economia centralmente planejada. Esta camada burocrática desfruta de privilégios materiais cada vez maiores e de um monopólio político do poder para garanti-los; mas ela deve, ao mesmo tempo, restringir esses privilégios à esfera dos bens de consumo. Em consequência, temos as crescentes e insuperáveis contradições dentro da economia e da sociedade soviéticas. E, portanto, a necessidade de uma segunda revolução (política) – a única alternativa à desintegração da economia planejada e da propriedade coletiva que impeça a transformação de um segmento da burocracia numa classe capitalista dominante. (Mandel, 1985, p. 77).
Volta-se à questão: as sociedades pós-capitalistas ou socialistas de tipo
soviético apresentam alguma forma de capitalismo (ainda que seja capitalismo
de estado)? Num estado liberal, a extração de mais-valor não é politicamente
dominada, mas economicamente regulada pelo próprio mercado, enquanto nas
sociedades pós-revolucionárias até então existentes a extração de mais-valor é
determinada economicamente da forma mais sumária e utilizando-se, para isso,
critérios meta-econômicos. Mandel (1985, p. 67) verificou que o trabalho
excedente na sociedade capitalista se transforma imediatamente em mais-valor,
279
enquanto na sociedade de transição – seja ela a transição efetiva, seja a União
Soviética – o trabalho excedente retorna em valores de uso diretamente ao
conjunto social como meios de produção (sobretudo no departamento I da
economia). Tudo isso coloca claramente o dilema entre capital e capitalismo, e
suas diferenças. Problema que não foi adequadamente vislumbrado nem mesmo
por Engels, que supervisionou a primeira tradução de O capital para a língua
inglesa com o subtítulo Uma análise crítica da produção capitalista, quando,
como sabemos, o subtítulo correto é O processo de produção do capital [Der
produktionsprozess des Kapitals]. E isso é bastante diferente, porque Marx não
se deteve a explicar a produção capitalista, mas extrapolou em muito este
objetivo ao demonstrar a regência do capital e o modo de produção do capital, o
que significa que é o próprio capital em sua regência máxima – capitalista – e
sua existência ainda nas sociedades em que a regência do capital ainda não
existia de forma plena, isto é, nas sociedades antecedentes. Mészáros, antes do
ensaio de Chasin, já alertava para uma questão crucial: o conceito do capital é
muito mais fundamental que o conceito de capitalismo. Enquanto o último é
relacionado ao período histórico mais curto e recente da história produtiva da
humanidade, o primeiro abarca as condições de origem e desenvolvimento da
sociedade capitalista, o que inclui, evidentemente, as fases em que a produção
de mercadorias não era abrangente e dominante como o são no capitalismo. Do
mesmo modo, Mészáros (1985, p. 44) crê que o capital ainda existirá nas
sociedades pós-revolucionárias, mas com uma tendência decrescente até que a
transição se complete e anule a sua regência. Para tanto, Mészáros impõe seis
condições pelas quais o capitalismo, ou a regência do capital, se impõe como
fase particular: (i) no capitalismo, a produção é essencialmente para a troca; (ii) a
força de trabalho é tratada exclusivamente como mercadoria; (iii) o lucro é a
motivação social máxima; (iv) a extração do mais-valor assume uma forma
inerentemente econômica – e não política; (v) o mais-valor é apropriado
privadamente pelo capitalista; (vi) a produção do capital assume uma tendência
globalizada. De modo, portanto, que falar em capitalismo na sociedade soviética
é ignorar os itens quatro, cinco e seis, ou então, como fez até mesmo Engels,
não conseguir distinguir a força social do capital com a ordem de produção
280
capitalista, isto é, não reconhecer que a relação social de produção do capital
existia como germe antes mesmo da subsunção real do trabalho ao capital.
Contudo, a regência do capital era ainda praticada na União Soviética, numa
forma mutante do controle do capital (Mészáros, 2002), bem como a extração de
mais-valor e a opressão sobre a classe do trabalho perpetrada pela divisão social
do trabalho idêntica ao modo de produção do capital – inclusive com relações
comerciais integrantes e articuladas ao metabolismo produtivo do capitalismo.
Não obstante, o que torna o socialismo de tipo soviético uma forma pós-
capitalista é justamente o fato de que o poder político é o executante da extração
de mais-valor, já que o capital não poderia ser regulado pela pluralidade de
capitais privados, mas num poder estatal burocrático, excluindo a participação
popular na regulação do trabalho. Isto significa, então, que a posse do trabalho
não era fragmentada em capitais privados, mas por um estado, com as mais
severas disciplinas de trabalho impostas durante o período stalinista, criando
uma camada de membros do funcionalismo burocrático.
Conjuntamente ao não-fenecimento do estado e sua evidente hipertrofia
no período soviético pelos motivos do não-acabamento da transição socialista e
do fracasso da revolução mundial, o mundo ocidental vislumbrou as ditaduras
fascistas como ocorrências episódicas da ordem sociometabólica do capital, de
modo que a hegemonia burguesa se ordenou, no plano geral dos
acontecimentos, por meio de um conjunto democrático de direitos burgueses
(ainda que muito limitado e por meio de uma imposição violenta contra os
trabalhadores, apesar de uma aparência de liberdade formal, construída e
articulada ideologicamente, influenciando a sua aceitação na consciência coletiva
como natural) – o que coloca o impasse das liberdades individuais serem
suprimidas pelo estado transitório revolucionário, acabando por funcionar como
exemplo negativo a qualquer suposição de transposição revolucionária, por parte
da ideologia burguesa apologética do capital, pela falsa analogia do modelo
soviético como paradigma exclusivo de transição.
A derrocada do sistema soviético veio acompanhada da crise estrutural do
capital que se iniciou nos anos 1970, revelando a sua subordinação à ordem
sociometabólica do capital, a sua mera organização da regência do capital dentro
281
de uma ordem de um capital coletivo não-social. Do mesmo modo que a
desintegração dos partidos comunistas do Leste Europeu aconteceu
simultaneamente à implosão da União Soviética, a reestruturação produtiva do
capital trouxe entraves concorrenciais ao modo de produção do capital na União
Soviética – Lukács não pode vislumbrar o quanto estavam a União Soviética e os
partidos comunistas do socialismo subordinados à dinâmica internacional dos
mercados; obviamente, vinte anos após a sua morte, já não era mais possível
sustentar as afirmações em defesa do socialismo de tipo de soviético. Contra a
nova dinâmica da reestruturação produtiva do capital no final dos anos 1980, os
partidos comunistas gestores do capital soviético não estavam preparados para
lidar: não conseguiram equiparar o montante produtivo de bens de consumo e
bens de capital em relação aos países capitalistas. Os partidos comunistas que
organizavam a classe trabalhadora fora do mundo soviético também não
possuíam estratégias viáveis a oferecer sobre a forma como sua base tradicional
deveria lutar contra as novas formas de imposição do mercado ofensivo à classe
trabalhadora, que levava à miséria social um contingente muito grande de
trabalhadores no mundo subdesenvolvido. O eurocomunismo fora, deste modo, a
tentativa de acertar as contas, dentro das expectativas de uma não-transição
socialista, com o mundo do capital através de ganhos marginais para a classe
trabalhadora, numa aceitação deliberada da democracia como valor universal,
que fora, de algum modo rechaçada antecipadamente – duas décadas antes –
por Lukács em sua crítica do stalinismo contra aqueles que almejavam a
transposição soviética à linha do socialismo de mercado.
Não somente o partido comunista burocratizado fora incapaz de promover
o ilusório e sempre defendido por Lukács socialismo em um só país, como agiu
de modo tão ou mais opressor em seu modo de produção e gestão do capital
que o próprio modelo burguês capitalista. Sem a democratização da vida
cotidiana, proposta por Lukács, porque era uma estratégia inviável,
principalmente se pensada no modo como fora articulada (uma democratização
cuja consciência coletiva deveria ser imposta de fora via partido burocratizado e
deixando intacto o modo de produção que engendra a vida social); sem a
existência das liberdades civis e com grande sufocamento da opinião pública
282
subterrânea; e com outros problemas típicos da gestão stalinista, como os
grandes julgamentos e perseguição constante aos próprios membros do partido,
a escritores e intelectuais em geral, o sistema soviético viveu um impasse até o
seu total desmoronamento. A manutenção da extração política do mais-valor fora
substituída pela extração econômica numa perestroika em que o capital
controlava o conjunto da vida social russa pela imposição de novos mercados em
que a glasnost nada significou de inserção popular em sua política
antidemocrática. Mas antes de seu desfecho óbvio, estes fatores aqui
enumerados terminaram por colocar inclusive a classe operária mundial contra a
própria ideia de socialismo, criando ainda mais obstáculos para a emancipação
humana, reforçando ideologicamente a apologética do capital na ideia de que (i)
o sistema sociometabólico do capital é uma ordenação produtiva de caráter
natural e imutável; e de que (ii) qualquer tentativa de ultrapassagem de seu
sistema produtivo levará invariavelmente a uma ditadura e sucessivo colapso
produtivo, associando diretamente stalinismo e marxismo.
Por este motivo mesmo, antes da União Soviética dar sinais de seu
desmoronamento, J. Chasin rejeitava a ideia de que uma reforma no mundo do
socialismo de tipo soviético pudesse salvar o socialismo, sobretudo pela razão de
que tal socialismo não era um socialismo, mas uma ordem produtiva pós-
capitalismo que controlava a regência do capital coletivo/não-social ordenando a
extração de trabalho excedente:
Há que se assumir que se trata de fazer tudo pela primeira vez, não de tentar, mais uma vez, refazer mostrengos. O que se impõe é algo completamente distinto de uma cogitação a propósitos de corretivos, nos quais a última metade de século foi infrutífera e bisonhamente consumida, mesmo porque não há nada a remendar. As derivações de 17 já realizaram funestamente suas inviabilidades originárias, deixando historicamente virgem a exercitação do horizonte socialista. Assim, o desastre do leste não é uma derrocada do socialismo, pelo simples fato de que não há até aqui qualquer vestígio de uma transição socialista efetivada. O desastre, isto sim, antes confirma do que nega a demanda pela transição socialista, a necessidade humano-societária da ultrapassagem do capital, bem como sua síntese ideal – o pensamento de K. Marx. O horizonte socialista ou comunista continua posto, lá onde o deixaram a crítica marxiana da existência capitalista e sua correlata tematização da emancipação humana, complexo
283
problemático que mobiliza, do começo ao fim, a ocupação teórica do filósofo do trabalho. (CHASIN, 1991. p. 10-11)
Não é possível aceitar os constrangimentos estruturais que acompanham
as premissas da defesa do socialismo em um só país e a manutenção da divisão
social do trabalho e do modo de produção do capital no socialismo – ainda que
isto seja resultado trágico na vida de Lukács de décadas do fracasso da
esperança socialista –, tendo como imperativo moral um discurso pelo postulado
ético abstrato, porque tal discurso não apresenta substância material para
superar as contradições do presente diante da crise estrutural do sistema do
capital, e acabam por ser apenas uma ilusão vazia, em vez de se apresentar
como uma estratégia socialista realizável – estratégia que, contraditoriamente,
não pode contornar a ontologia do ser social, muito menos o imperativo de
retorno a Marx na rejeição das filosofias irracionalistas, ambos movimentos tão
habilmente dilucidados por Lukács, sob o ônus de mais um iminente fracasso,
que significará novamente a prostração das potencialidades do próprio gênero
humano.
284
BIBLIOGRAFIA ALTHUSSER, Louis. Advertência aos leitores do livro I d´O Capital. In MARX, K.
O capital. Livro I. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. ANDERSON, Perry. A Crise da Crise do Marxismo: introdução a um debate
contemporâneo. 3ª ed. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Brasiliense, 1987.
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
BALLESTERO, Manuel. Introdução. In LUKÁCS, G. Marx, ontologia do ser social. Madri: Bakal, 2007.
BERMAN, Marshall. Aventuras no Marxismo. Tradução de Sonia Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
CHASIN, José. Marx: da razão do mundo ao mundo sem razão. In ______. Marx Hoje. 2ª ed. São Paulo: Ensaio, 1988.
______. Marx: A Determinação Ontonegativa da Politicidade. Ensaios Ad Hominem, Tomo III – Política. Santo André: Ad Hominem, 2000 a.
______. O Futuro Ausente. Ensaios Ad Hominem, Tomo III – Política. Santo André: Ad Hominem, 2000 b.
______. Abertura – Rota e Prospectiva de um projeto marxista. Ensaios Ad Hominem, Tomo III – Política. Santo André: Ad Hominem, 2000 c.
______. Sobre o Conceito de Totalitarismo. Ensaios Ad Hominem, Tomo III – Política. Santo André: Ad Hominem, 2000 d.
285
______. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.
COSTA, Mônica Hallak da. A Exteriorização da Vida nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Ensaios Ad Hominem. Tomo IV – Dossiê Marx. Santo André: Ad Hominem, 2001.
______. De como Lukács Chegou à Distinção entre Alienação e Estranhamento para depois Abandoná-la. Verinotio 14, ano VIII, jan. 2012.
COUTINHO, Carlos Nelson. A democracia como valor universal. Encontros com a Civilização Brasileira, p. 33-47, nº 9, março de 1979.
______. O estruturalismo e a miséria da razão. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
CRANKSHAW, Edward. Khrouchtchov Souvernirs. Traduction du russo de Strobe Talbott. Paris: Éditions Robert Laffont, 1971.
D’ABBIERO, Marcella. A “alienação” em Hegel: usos e significados de Entäusserung, Entfrendung, Veräusserung. In Verinotio 19, abril de 2014.
DEL ROIO, Marcos. (org.) György Lukács e a emancipação humana. São Paulo: Boitempo, 2013.
DEUTSCHER, Isaac. A revolução inacabada. Rússia 1917-1967. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro, 1968.
ENGELS, Friedrich. Dialectics of Nature. 4ª impressão. Translate from the Germany by Clemens Dutt. Moscow: Progress Publishers, 1966.
______. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. In MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Textos. São Paulo: Edições Sociais, 1975.
______. A Origem da Família, da Propriedade e do Estado. 4ª ed. Tradução de H. Chaves. Lisboa: Editorial Presença, 1980.
FEHÉR, Férenc. HELLER, Agnes. MARKUS, György. VAJDA, Mihály. Annotazioni sull'ontologia per il compagno Lukács. Aut-Aut 157/8, Milano, La Nuova Itália Editrice, de jan-abr 1977, p. 21-37.
FORTES, Ronaldo Vielmi. As novas vias da ontologia em György Lukács: as bases ontológicas do conhecimento. Tese de doutorado em Filosofia. Universidade Federal de Minas Gerais, 2011.
______. O sentido e a extensão da crítica lukacsiana à ontologia de Nicolai Hartmann. In Vaisman, Ester & VEDDA, Miguel (orgs). Arte, filosofia e sociedade. São Paulo: Intermeios, 2014. p. 187-238.
FREDERICO, Celso. O Jovem Marx (1843-44 As origens da ontologia do ser social). São Paulo: Cortez, 1995.
HEGEL, G. W. F. Ciencia de la Logica. 2 v. Trad. Augusta y Rodolfo Mondolfo. 3. ed. Buenos Aires: Ediciones Solar, 1974.
______. Enciclopedia delle Scienze filosofiche in compendio. A cura di V. Verra, Torino: Utet, 1981.
286
______. Filosofia da História. Tradução de Maria Rodrigues e Hans Harden. 2ª ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1999.
______. Cursos de Estética (4 volumes). Tradução de Marco Aurélio Werle. São Paulo: Edusp, 2005.
______. Fenomenologia do Espírito. Tradução de Paulo Meneses, colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
______. Ciência da Lógica. Seleção e tradução de Marco Aurélio Werle. São Paulo: Barcarolla, 2011.
HELLER, Agnes. Entrevista a Francisco Ortega. Rio de Janeiro: Eduerj, 2002. ______. O cotidiano e a história. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro
Konder. 4ª ed. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1992. HERF, Jeffrey. O Modernismo Reacionário: tecnologia, cultura e política na
República de Weimar e no Terceiro Reich. Tradução de Cláudio F. Ramos. São Paulo: Ensaio, 1993.
INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
LENIN, V. I. Karl Marx. In: Obras escolhidas, t.1. São Paulo, Alfa-Omega, 1986 a. ______. As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo. In: Obras
Escolhidas, t.1. São Paulo, Alfa-Omega, 1986 b. ______. Obras escolhidas, t.2. São Paulo, Alfa-Ômega, 1988. ______. Obras escolhidas, t.3. São Paulo, Alfa-Ômega, 2004. LEBRUN, Gérard. A Paciência do Conceito. Ensaio sobre o discurso hegeliano.
São Paulo: Unesp, 2000. LÖWY, Michael. A evolução política de Lukács: 1909-1929. São Paulo: Editora
Cortez, 1998. LUKÁCS, György. Prolegomeni a Un'Estetica Marxista. Trad. di Fausto Codino e
Mazzino Montinari. Roma: Editori Riuniti, 1957. ______. Estetica. 2 v. Trad. di Anna Marietti Solmi. Torino: Giulio Einaudi Editore,
1963. ______. Ensaio sobre literatura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. ______. El asalto a la razón. Tradução Wenceslao Roces. 3ª ed.
Barcelona/México, Grijalbo, 1972. ______. Carta sobre o stalinismo. In Temas de Ciências Humanas. vol. 1. São
Paulo: Temas, 1977. ______. El Joven Hegel y los Problemas de la Sociedad Capitalista. Trad. de
Manuel Sacristán. Barcelona: Ed. Grijalbo, 1985.
287
______. Pensamento vivido. Autobiografia em diálogo. Tradução Cristina Alberta Franco. São Paulo/Viçosa, Estudos e Edições Ad Hominem/Editora UFV, 1999.
______. O romance como epopéia burguesa. In Estudos e Edições Ad Hominem. Tomo II. Música e Literatura. Santo André: Ad Hominem, 1999 b.
______. História e Consciência de Classe: Estudos sobre a Dialética Marxista. Tradução de Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. Socialismo e Democratização. Trad. de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.
______. O Jovem Marx e outros escritos de filosofia. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. 2ª ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
______. Arte e Sociedade. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009 b.
______. A Teoria do Romance. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. 2ª ed. 3ª reimpressão. São Paulo: Ed. 34, 2009 c.
______. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. Tradução de Lya Luft e Rodnei Nascimento. São Paulo: Boitempo, 2010.
______. O Romance Histórico. Tradução de Rubens Enderle e Arlenice Almeida da Silva. São Paulo: Boitempo, 2011.
______. Para uma Ontologia do Ser Social I. Trad. de Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider. Revisão de Ronaldo Vielmi Fortes e Ester Vaisman. São Paulo: Boitempo, 2012.
_____. Lenin. Um estudo sobre a unidade de seu pensamento. Trad. Rubens Enderle. Revisão de Miguel Vedda. São Paulo: Boitempo, 2012 b.
______. Para uma Ontologia do Ser Social II. Trad. de Nélio Schneider, Ronaldo Vielmi Fortes. Revisão de Ronaldo Vielmi Fortes e Elcemir Paço Cunha. Prefácio de Guido Oldrini. São Paulo: Boitempo, 2013.
MANDEL, Ernest. Marx e Engels: a produção de mercadorias e a burocracia – bases teóricas para a compreensão marxista da União Soviética. In Ensaio 14. São Paulo, Editora Ensaio, 1985.
______. O papel do indivíduo na história: o caso da II Guerra Mundial. In Ensaio 17/18. São Paulo, Editora Ensaio, 1989.
MARX, Karl. El Capital. Livro 3. 2ª ed. Traducion de Wenceslao Roces. México: Fondo de Cultura Económica, 1968.
______. O Capital. Livro 2. O processo de Circulação do Capital. Tradução de Reginaldo Sant’anna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
______. Miséria da Filosofia. Tradução de José Silva Dias e Maria Carvalho Torres. Porto: Publicações Escorpião: 1976.
______. Escritos Económicos Menores. Trad. de Wenceslao Roces. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1987.
288
______. Formações Econômicas Pré-Capitalistas. 6ª ed. Introdução de Eric Hobsbawm. Tradução de João Maia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
______. Para a Crítica da Economia Política. Tradução de Edgard Malagodi. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
______. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. 7ª ed. Tradução de Leandro Konder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
______. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2004.
______. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005.
______. Liberdade de Imprensa. Tradução de Cláudia Schilling e José Fonseca. Porto Alegre, LP&M, 2007.
______. Glosas Críticas ao artigo “‘O Rei da Prússia e a Reforma Social’ de um prussiano”. In: ______. As lutas de classes na Alemanha. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2010.
______. Sobre a Questão Judaica. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2010 b.
______. Grundrisse. Tradução de Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.
______. A guerra civil na França. Tradução de Rubens Enderle. Apresentação de Antonio Rago Filho. São Paulo: Boitempo, 2011 b.
______. O Capital. Livro I. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo; Boitempo, 2013.
______. & ENGELS, Friedrich. Selected Correspondence. 2.ª ed. Translate by I. Lasker. Moscow: Progress Publishers, 1965.
______. A Sagrada Família. Tradução de Marcelo Bakes. São Paulo: Boitempo, 2003.
______. A Ideologia Alemã. Tradução de Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. Poder político e dissidência nas sociedades pós-revolucionárias. In Ensaio 14. São Paulo: Editora Ensaio, 1985.
______. Para além do capital. Tradução de Paulo César Castanheira e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2002.
______. A Teoria da Alienação em Marx. Tradução de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2006.
______. O Conceito de Dialética em Lukács. Tradução de Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo, 2013.
______. A montanha que devemos conquistar. Tradução de Maria Lagoa e revisão de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2015.
289
NETTO, José Paulo. Apresentação. In LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. Tradução de Carlos Nelson Coutinho, Mário Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012.
NOBRE, Marcos. Lukács e os limites da reificação. Um estudo sobre História e Consciência de Classe. São Paulo, Editora 34, 2001.
NYERS, Rezsö. The present and future of Restructuring. In The New Hungarian Quarterly. N.113. 1989.
OLDRINI, Guido. Em busca das raízes da ontologia (marxista) de Lukács. In: PINASSI, Maria Orlanda. & LESSA, Sérgio (orgs.). Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo, 2002.
QUARTIM DE MORAES, João. A universalidade da democracia: esperanças e ilusões. Ensaios Ad Hominem, Tomo I – Marxismo. Santo André: Ad Hominem, 1999.
RANIERI, Jesus. Trabalho e Dialética. Hegel, Marx e a Teoria Social do Devir. São Paulo, Boitempo, 2011.
REZENDE, Claudinei Cássio. Suicídio revolucionário: a luta armada e a herança da quimérica revolução em etapas. São Paulo: Cultura acadêmica, Editora Unesp, 2010.
SERGE, Victor. O ano I da Revolução Russa. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo: Editora Ensaio, 1993.
TERTULIAN, Nicolas. Metamorfoses da Filosofia Marxista: a propósito de um texto inédito de Lukács. In Crítica Marxista 13. São Paulo: Boitempo, 1991.
______.O Grande Projeto da Ética. Ensaios Ad Hominem, Tomo I – Marxismo. Santo André: Ad Hominem, 1999.
______. Lukács hoje. In: PINASSI, Maria Orlanda. & LESSA, Sérgio (orgs.). Lukács e a atualidade do marxismo. São Paulo: Boitempo, 2002.
______. Nicolai Hartmann et Georg Lukács. Une alliance féconde. Centres Sèvres. Archives de Philosophie 2003/3 – v. 66, pp. 663- 698; p. 676.
______. “Lukács e o stalinismo” in Verinotio nº 7, ano IV novembro de 2007. ______. Georg Lukács: Etapas de seu Pensamento Estético. São Paulo: Editora
Unesp, 2008. ______. Posfácio. In Lukács, G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social.
Tradução de Lya Luft e Rodnei Nascimento. São Paulo: Boitempo, 2010. ______. Nicolai Hartman e Georg Lukács: uma aliança fecunda. Crítica Marxista
n. 32. São Paulo: Editora Unesp, 2011. VAISMAN, Ester. A usina onto-societária do conhecimento. In: _____ (org.).
Ensaios Ad Hominem, Tomo I – Marxismo. Santo André: Ad Hominem, 1999.
______. O “jovem” Lukács: trágico, utópico e romântico?, Kriterion, Belo Horizonte, v. 46, n. 112, 2005.
290
______. & FORTES, Ronaldo V. Apresentação. In LUKÁCS, G. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. Tradução de Lya Luft e Rodnei Nascimento. São Paulo: Boitempo, 2010.
______. A politicidade no pensamento tardio de György Lukács. Revista Estudos Políticos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 1, dezembro de 2014. p. 118-32.
______. O jovem Lukács: trágico, utópico e romântico? Outras aproximações. In ______. & VEDDA, Miguel. Arte, filosofia e sociedade. São Paulo, Intermeios, 2014.