gelain - notas introdutórias acerca do naturalismo de strawson

Upload: marcos-fernandes-otsuka

Post on 05-Mar-2016

7 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

naturalismo

TRANSCRIPT

  • Vol. 11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291

    Revista Litterarius Faculdade Palotina www.fapas.edu.br/revistas/litterarius

    [email protected]

    NOTAS INTRODUTRIAS ACERCA DO NATURALISMO DE STRAWSON:

    UMA LEITURA E INTERPRETAO DA OBRA SKEPTICISM AND NATURALISM

    Itamar Lus Gelain*

    Vis--vis traditional skepticism, then, I am proposing that we adopt, at least provisionally (and everything in philosophy is provisional),

    the naturalist position (Strawson, 1985, p.24)

    Resumo: O presente texto tem por objetivo analisar a obra Skepticism and Naturalism de Strawson.

    Considerando isso, far-se- primeiramente uma abordagem do naturalismo de Hume e de Wittgenstein; posteriormente analisar-se-o as diferenas entre o naturalismo dos dois autores supracitados; e, por fim, buscar-

    se- compreender como Strawson se posiciona diante do naturalismo humiano e wittgenstaniano.

    Palavras-chave: Naturalismo. Hume. Wittgenstein. Strawson.

    Introductory notes on Strawson's naturalism:

    reading and interpretation of the work Skepticism and Naturalism

    Abstract: This paper aims to analyse the work of Strawson Skepticism and Naturalism. Considering so far first

    the naturalism of Hume and Wittgenstein will be approached; later the differences between the naturalism of the

    two authors will be analysed; and, finally, it will seek to understand Strawsons position on the Humean and the Wittgensteinian naturalism.

    Keywords: Naturalism. Hume. Wittgenstein. Strawson.

    Este texto toma a obra Skepticism and Naturalism de Strawson como locus de estudo.

    O que interessa desta obra, para o presente artigo, a argumentao que Strawson desenvolve

    acerca do naturalismo1 na sua relao com o ceticismo. Uma vez que Strawson traz Hume e

    Wittgenstein para abordar o naturalismo,2 o problema que se coloca o seguinte: que tipo de

    * Doutorando em Filosofia na UFSC. Professor no Centro Universitrio Catlica de Santa Catarina - CATLICASC. E-mail: [email protected] 1 importante deixar claro que Strawson no est filiado a qualquer tipo de naturalismo como aquele de Quine,

    que busca uma naturalizao da epistemologia, ou ainda aquele de Goldman que busca naturalizar tanto a justificao no contexto da epistemologia aps as crticas de Gettier, bem como o prprio conhecimento.

    (DUTRA, 2010; GOLDMAN,1998; STRAWSON, 1985). 2 Adotar o naturalismo causa surpresa aos leitores de Strawson. Como possvel compatibilizar uma perspectiva

    naturalista com uma postura at ento transcendental. Diante disso alguns apontam que na verdade h dois Strawsons, um de vertente kantiana que teria sido abandonado e outro de vertente humiana e wittgenstaniana adotado aps as crticas de Stroud. Olhando do ponto de vista do combate ao ceticismo, isso correto, mas

    enfrenta uma dificuldade. Antes de Strawson lanar Individuals e a discusso sobre os argumentos

    transcendentais ele j teria adotado uma postura naturalista em relao induo na polmica com Salmon (Cf.

    PUTNAM, 1998). Ou seja, o naturalismo j era um elemento integrado filosofia de Strawson antes mesmo do

  • Notas introdutrias acerca do naturalismo de Strawson: uma leitura e interpretao da obra

    Skepticism and Naturalism

    Itamar Lus Gelain

    Revista Litterarius Faculdade Palotina | Vol.11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291 3

    naturalismo Strawson defende? E como ele se posiciona diante de Hume e Wittgenstein, uma

    vez que estes autores tm abordagens diferentes sobre o naturalismo?

    1 O naturalismo de Hume

    De acordo com Strawson, no final do livro I do Tratado da Natureza Humana, Hume

    limita as pretenses da razo em determinar a formao das crenas a respeito das questes

    de fato e de existncia (STRAWSON, 1985, p.10-11). Nesse caso, limitar as pretenses da

    razo significa, para Hume, declarar que a razo no tem poder algum para garantir, por

    exemplo, contra o ctico, que a crena no mundo externo possa ser justificada racionalmente.

    E mais do que isso, Hume limita tambm a pretenso dos prprios argumentos cticos, pelo

    fato de serem ineficazes e inteis frente fora da natureza. Quando Hume reconhece que a

    razo no tem o poder de justificar racionalmente as crenas, e os argumentos que sustentam a

    posio ctica em relao s crenas so ineficazes e inteis frente fora da natureza, ele

    quer dizer que quaisquer que sejam os argumentos que se possam produzir de um lado ou de

    outro da questo, simplesmente no podemos deixar de crer na existncia dos corpos

    (STRAWSON, 1985, p.11). Se tratando de ceticismo sobre crenas, como a do mundo

    externo, Hume recorre natureza, para dizer que essas crenas se impem naturalmente, ou

    seja, a natureza, por uma necessidade absoluta e incontrolvel, determinou-nos a julgar,

    assim como a respirar e a sentir (HUME, 2002, p.216). Para Hume, mesmo ainda no caso de

    um ceticismo total que professa que tudo incerto, ou mais especificamente, que os juzos ou

    raciocnios humanos so falveis, isso no destri as crenas que se tem. Sobre este ponto

    argumenta Hume: Quem quer que tenha se dado ao trabalho de refutar as cavilaes desse

    ceticismo total, na verdade debateu sem antagonista e fez uso de argumentos na tentativa de

    estabelecer uma faculdade que a natureza j havia antes implantado em nossa mente, tornado-

    a inevitvel (HUME, 2002, p. 216). Segundo Strawson, esse mesmo modo de proceder

    contra o ceticismo total, adotado por Hume para proceder tambm contra o ceticismo a

    respeito do mundo externo. Hume pensa que mesmo aquele que se professa ctico

    deve dar seu assentimento ao princpio concernente existncia dos corpos, embora

    no possa ter a pretenso de sustentar sua veracidade por meio de argumentos

    surgimento dos argumentos transcendentais. Independentemente desta questo, poder-se-ia admitir

    tranquilamente que no pensamento de Strawson h uma virada naturalista (Cf. STERN, 2003) no que concerne

    aos problemas cticos. Mas isso no implica que do ponto de vista da metafsica, seu projeto basilar, seja

    possvel afirmar qualquer tipo de cmbio no proceder filosfico. Este problema compe uma das preocupaes

    da minha Tese de Doutorado que tem por ttulo: Metafsica e Ceticismo em Strawson.

  • Notas introdutrias acerca do naturalismo de Strawson: uma leitura e interpretao da obra

    Skepticism and Naturalism

    Itamar Lus Gelain

    Revista Litterarius Faculdade Palotina | Vol.11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291 4

    filosficos. A natureza no deixou isso sua escolha; sem dvida, avaliou que se

    tratava de uma questo demasiadamente importante para ser confiada a nossos

    raciocnios e especulaes incertos [...] intil perguntar se existem ou no corpos.

    Esse um ponto que devemos dar por suposto em todos os nossos raciocnios

    (HUME, 2002, p.220).

    Para Strawson, avaliando o pensamento de Hume, a dvida ctica acerca do mundo

    externo no passa de uma dvida terica, pois, no representa uma posio que seja possvel

    manter na prtica (STRAWSON, 1988, p.443). Desse modo, em Hume a certeza

    psicolgica ou a inevitabilidade da natureza salva o homem da inao graas vida ordinria

    (Badiola, 2003, p.15). Ou melhor, as dvidas cticas derivam sua fora das ideias tericas

    num campo terico, no entanto, tais dvidas tericas postas num campo prtico perdem sua

    fora, pois a a certeza psicolgica ou a inevitabilidade da natureza se encarregam de

    neutralizar as mesmas. Diante disso Strawson afirma que em Hume se segue o que parece ser

    uma inconsistncia surpreendente entre princpio e prtica (STRAWSON, 1985, p.12). Essa

    inconsistncia entre princpio e prtica se d em virtude de que Hume, aps ter afirmado que a

    existncia nos corpos deveria ser tomada como dada em todos os raciocnios, ele no a toma

    como dada nos raciocnios sobre a causalidade. De tal modo, que as discusses sobre a

    causalidade, como sabido, conduzem Hume para o ceticismo. Segundo Strawson, essa

    posio de Hume guarda uma tenso irresoluta, a qual reconhecida pelo prprio filsofo

    escocs. A posio de Hume irresoluta ou no resolvida porque neste ponto se produz uma

    incoerncia no pensamento de Hume: depois de ter aceitado a inevitabilidade de determinadas

    crenas impostas pela natureza, no conta com elas em seu trabalho terico, o que o leva,

    como Hume mesmo afirma, ao ceticismo (BADIOLA, 2003, p.16). Portanto, como se v no

    final do Livro I do Tratado da Natureza Humana, Hume est convencido que o ceticismo

    deixado pelas investigaes tericas s pode ser sanado com a vida cotidiana. Em vista disso,

    ele chega a afirmar que estou pronto a lanar ao fogo todos os meus livros e papis, e resolvo

    que nunca mais renunciarei aos prazeres da vida em benefcio do raciocnio e da filosofia

    (HUME, 2002, p.302).

    Diante desta tenso irresoluta no pensamento de Hume, Strawson pensa que possvel

    falar de dois Humes: do Hume ctico e do Hume naturalista. Sendo que o naturalismo

    professado por Hume surge como um refgio de seu ceticismo (STRAWSON, 1985, p.12).

    Mais do que falar em dois Humes, Strawson fala em dois nveis de pensamento em Hume, a

    saber, o nvel do pensamento filosoficamente crtico (Hume ctico) e o nvel do pensamento

    emprico cotidiano (Hume naturalista). No primeiro nvel, Hume teria mostrado que nada fica

    garantido contra o ceticismo; j, no segundo nvel, ele teria declarado que as pretenses do

  • Notas introdutrias acerca do naturalismo de Strawson: uma leitura e interpretao da obra

    Skepticism and Naturalism

    Itamar Lus Gelain

    Revista Litterarius Faculdade Palotina | Vol.11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291 5

    pensamento crtico esto completamente anuladas e suprimidas pela natureza, por um

    compromisso natural inevitvel de crer na existncia dos corpos (STRAWSON, 1985, p.13).

    Sem dvida, o que interessa a Strawson o Hume naturalista, pois este teria ensinado que o

    ceticismo no deve ser enfrentado por meio de argumentos, mas, ignorado e abandonado

    porque intil e no tem poder contra a fora da natureza, isto , contra a nossa disposio

    naturalmente implantada para a crena (Strawson, 1985, p.13). No obstante, quando

    Strawson filia-se ao naturalismo de Hume, ele estaria assumindo de certo modo, o ceticismo

    embutido nesse naturalismo? Ou Hume seria uma parte da resposta ao ceticismo integrada no

    interior da estratgia de Strawson? Entende-se por uma parte da resposta ao ceticismo a

    adeso provisria de Strawson ao naturalismo de Hume como refgio do ceticismo, ou seja,

    na prtica as dvidas cticas so neutralizadas pela inevitabilidade da natureza ou pela certeza

    psicolgica. No entanto, as dvidas cticas sobre questes tericas ainda tm a ltima palavra

    em Hume. Mas, as dvidas cticas no podem ser combatidas por um naturalismo que possa

    estender-se tambm teoria, no precisando adotar a estratgia de Hume, a saber, usar o

    naturalismo como um refgio do ceticismo? Ser que Strawson no busca justamente este tipo

    de naturalismo em Wittgenstein? Um naturalismo capaz de neutralizar, ou melhor, capaz de

    mostrar que as dvidas cticas sobre questes tericas num campo terico tambm so inteis

    e, portanto, devem ser abandonadas e ignoradas (Cf. STERN, 2003, p.109; BADIOLA, 2003,

    p.17; GRAYLING, 1985, p.92).

    2 O naturalismo de Wittgenstein

    Strawson toma a obra Da certeza de Wittgenstein para expor o naturalismo do mesmo

    como uma resposta ao ceticismo. Desse modo, assim como Hume, Wittgenstein tambm faz a

    distino entre as questes que so suscetveis de questionamento e deciso a luz da razo e

    da experincia, e as questes que no esto abertas negociao, ou melhor, que so isentas

    de dvida (Cf. STRAWSON, 1985, p.14). Entretanto, Strawson observa que existem

    diferenas entre Hume e Wittgenstein. Uma diferena notvel que no ltimo no se encontra

    um apelo explcito natureza, como h no primeiro. Contudo, as semelhanas so mais

    notveis que as diferenas. Nesse sentido, tanto em Wittgenstein como em Hume possvel

    distinguir, por um lado, entre aquilo que vo colocar em questionamento ou que se deve

    dar por suposto em todos os raciocnios, e, por outro lado, aquilo que, de fato, objeto de

    investigao e questionamento (Cf. STRAWSON, 1985, p.14-15). Agora a tarefa consiste em

    averiguar com Strawson, como Wittgenstein procede contra o ceticismo, para mostrar que

  • Notas introdutrias acerca do naturalismo de Strawson: uma leitura e interpretao da obra

    Skepticism and Naturalism

    Itamar Lus Gelain

    Revista Litterarius Faculdade Palotina | Vol.11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291 6

    algumas questes no esto abertas negociao ou isentas de dvida. Em outras palavras,

    ver que estratgia utiliza Wittgenstein para declarar que certas questes so vs, quando

    colocadas em questionamento ou em investigao.

    De acordo com Strawson, Wittgenstein se vale de diversas frases ao longo da obra Da

    Certeza, para mostrar a anttese entre o que suscetvel de dvida e aquilo que no

    suscetvel de dvida. Nessa perspectiva, Wittgenstein teria falado num tipo de crena como

    algo situado alm de ser justificado ou injustificado; portanto, como que uma coisa animal

    (359) 3. Strawson considerando esta passagem citada, afirma que a mesma um eco do apelo

    de Hume natureza, bem como do comentrio de Hume de que a crena mais

    propriamente um ato da parte sensitiva que da parte cogitativa de nossa natureza (HUME,

    2002, p.217). Aps apontar esse eco humiano em Wittgenstein, Strawson no quer s mostrar,

    a partir de Wittgenstein, que algumas crenas no so suscetveis de dvida, mas tambm, que

    essas crenas no suscetveis de dvida formam a base ou a estrutura do pensamento humano.

    Para tanto, num primeiro bloco de frases retiradas de Wittgenstein, Strawson quer

    realar, portanto, que algumas crenas no esto abertas negociao, isto , so crenas que

    no exigem fundamentao, so crenas isentas de qualquer questionamento. Dentro deste

    domnio argumentativo, Wittgenstein afirma que certas proposies parecem estar

    subjacentes a todas as perguntas e a todo o pensamento (415). Que algumas proposies

    esto isentas de dvida (341) ou que certas coisas de facto no so postas em dvida (342).

    Ele fala ainda de uma crena ou convico no fundamentada (253). Agora num segundo

    bloco de frases tambm retiradas de Wittgenstein, Strawson quer pontuar que esse corpo de

    crenas que no exigem fundamentao ou que esto subjacentes ao pensamento, compem a

    estrutura bsica do pensamento humano. Em vista disso, Wittgenstein afirma que as citadas

    crenas, na totalidade do sistema dos nossos jogos de linguagem, isto pertence base (411).

    Nessa mesma direo ele escreve que essas crenas pertencem ao quadro de referncia (83),

    quadro este que permanece firme e slido (151). Em um pargrafo subsequente, ele diz que

    esse corpo de crenas constitui a imagem do mundo (...) o substrato de todas as minhas

    perguntas e afirmaes (162). Ou ainda, que as crenas, que no so passveis de

    questionamento, formam a estrutura de nossos pensamentos (211), como o elemento onde

    vivem os argumentos (105). Sobre a imagem do mundo, Wittgenstein sentencia: eu no

    obtive a minha imagem do mundo por me ter convencido da sua justeza, nem a mantenho

    3 Assim como fez Strawson, tambm aqui as citaes sero feitas pelo nmero do pargrafo da obra Da Certeza,

    e no pela paginao. As citaes esto de acordo com a traduo portuguesa da obra. Cf. WITTGENSTEIN,

    Ludwig. Da Certeza. Traduo de Maria Elisa Costa. Lisboa: Edies 70, 1998.

  • Notas introdutrias acerca do naturalismo de Strawson: uma leitura e interpretao da obra

    Skepticism and Naturalism

    Itamar Lus Gelain

    Revista Litterarius Faculdade Palotina | Vol.11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291 7

    porque me convenci da sua justeza. Pelo contrrio, o quadro de referncias herdado que me

    faz distinguir o verdadeiro do falso (94). E, por conseguinte, que as proposies que

    descrevem esta imagem do mundo poderiam pertencer a uma espcie de mitologia. E o seu

    papel semelhante ao das regras de um jogo. E o jogo pode ser aprendido puramente pela

    prtica, sem aprender quaisquer regras explcitas (95). Aqui acaba o segundo bloco de

    citaes retiradas de Wittgenstein. At nesse momento o que se tem uma apresentao de

    um corpo de crenas que no exigem fundamentao, as quais formam a estrutura ou a

    imagem do mundo, isto , o substrato do pensamento humano.

    Para Strawson, Wittgenstein, por meio deste grupo de metforas, busca dar uma

    descrio de como realmente nosso sistema ou corpo de crena humano (STRAWSON,

    1985, p.16). Para tanto, como j afirmado acima, Wittgenstein traa uma distino, quando

    descreve esse sistema de crenas, entre aquelas proposies, por um lado, que esto sujeitas

    confirmao ou falsificao emprica, que ns incorporamos conscientemente a nosso

    sistema de crenas (quando o fazemos) por esta ou aquela razo ou baseando-se nesta ou

    naquela experincia, ou que tratamos realmente como algo que podemos investigar ou

    duvidar (STRAWSON, 1985, p.16). E aquelas proposies, por outro lado, que tm um

    status diferente no sistema de crenas, formando aquilo que anteriormente foi chamado de

    estrutura, substrato, fundamento, entre outras metforas usadas. Considerando a posio de

    Wittgenstein exposta por Strawson, pergunta-se: quais so as crenas ou proposies que

    esto isentas de dvida ou que no exigem fundamentao? Qual o critrio usado para a

    distino entre proposies isentas de dvida e proposies empricas ou suscetveis de

    dvida?

    Em conformidade com Strawson, Wittgenstein no adotou uma distino ntida,

    absoluta e imutvel para decidir acerca de que proposies esto isentas de dvida, e que

    proposies esto sujeitas dvida. Em outras palavras, ele no explicitou um princpio ou

    critrio propriamente dito, o qual permitiria efetuar a distino entre esses tipos de

    proposies (Cf. STRAWSON, 1985, p.16; BROWN, 2006, p.147). No obstante,

    Wittgenstein indicou por meio de uma metfora como se daria as distines entre as duas

    classes de proposies. Nessa metfora, ele compara as proposies sujeitas dvida, com o

    movimento das guas de um rio, e as proposies isentas de dvida, com as margens ou leito

    dum rio (96). Referindo-se s proposies isentas de dvida, Wittgenstein admite tambm,

    atravs da mesma metfora, que estas no so imutveis ou isentas de movimento, pois, pode

    acontecer mudanas na margem ou no leito do rio, ainda que seja de modo imperceptvel. No

    entanto, de um modo geral, ele pensa que a margem daquele rio consiste, em parte, em rocha

  • Notas introdutrias acerca do naturalismo de Strawson: uma leitura e interpretao da obra

    Skepticism and Naturalism

    Itamar Lus Gelain

    Revista Litterarius Faculdade Palotina | Vol.11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291 8

    dura no sujeita a alterao ou apenas a uma alterao imperceptvel e, noutra parte, em areia

    que ora arrastada, ora se deposita (99). Assim, adotando a metfora do rio como um

    princpio para distinguir as duas classes de proposies, possvel afirmar que as proposies

    no sujeitas dvida constituem a estrutura, o substrato, o fundamento do pensamento

    humano, aquilo que metaforicamente Wittgenstein chama de rocha dura no sujeita a

    alterao. Enquanto que as proposies empricas so tidas como gua em movimento,

    portanto, sujeitas mudana, isto , dvida.

    3 O cotejo entre o naturalismo de Hume e de Wittgenstein

    Uma vez explicitada a posio de Hume e de Wittgenstein acerca do ceticismo e do

    naturalismo, cabe agora uma tematizao sobre a relao entre essas posies. Para tanto,

    Strawson afirma que a posio de Hume, em relao de Wittgenstein, mais simples. Pois,

    Hume teria deixado explcito que um dos elementos que compem a estrutura da investigao

    ou do pensamento, ou seja, aquilo que deve ser suposto em todos os raciocnios (Hume,

    2002, p.220), equivale aceitao da existncia dos corpos, isto , do mundo externo. Assim,

    essa crena, convico ou preconceito natural (a existncia do mundo externo) est

    implantado inevitavelmente em nossa mente pela natureza (Strawson, 1985, p.18). Para

    Strawson, isto constitui a base ou fundamento da estrutura do pensamento de Hume.

    Agora se tratando de Wittgenstein, a posio do mesmo parece ser mais complexa que

    a de Hume. Aquelas proposies isentas de dvida, isto , as cripto-proposies da estrutura,

    da qual fala Wittgenstein, embora incluam o elemento humiano - a crena no mundo externo

    - so mais diversas ou variadas. No que diz respeito estrutura ou o substrato, Strawson,

    tendo em mente a metfora do rio usada por Wittgenstein nos pargrafos 96-99 em Da

    Certeza, afirma que a mesma sob certo ponto pode ser concebida dinamicamente, ou seja, o

    que uma vez foi parte da estrutura pode mudar de condio, pode assumir o carter de uma

    hiptese a ser questionada e qui falsificada (...) enquanto que outras partes da estrutura

    permanecem fixas e inalterveis (Strawson, 1985, p.18-19). Entretanto, analisando este ponto

    Strawson observa que a aceitao de Wittgenstein de um elemento dinmico no sistema de

    crenas que no exigem fundamentao parece questionar toda a sua proposta. Em vista

    disso, Strawson escreve:

    Seguramente a viso geocntrica do universo ou pelo menos do que agora chamamos sistema solar numa determinada poca formou parte da estrutura do pensamento humano em geral (...) Se nosso quadro de referncia, para usar a

  • Notas introdutrias acerca do naturalismo de Strawson: uma leitura e interpretao da obra

    Skepticism and Naturalism

    Itamar Lus Gelain

    Revista Litterarius Faculdade Palotina | Vol.11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291 9

    expresso de Wittgenstein, pode sofrer tais revolues radicais como a Copernicana

    (a revoluo real e no a kantiana), porque alguma coisa nele fixo e imutvel? (STRAWSON, 1985, p.26).

    Contudo, isso no quer dizer que todas as cripto-proposies podem vir a perder esse

    status, ou melhor, nem todas as proposies isentas de dvida podem vir a ser proposies

    empricas. Quando Susan Haack afirma que algumas proposies que compem a estrutura do

    pensamento humano possuem um estatuto emprico (Cf. HAACK, 1998, p.53-54), Strawson

    responde a ela dizendo: Wittgenstein observou que, apesar delas terem a forma de

    proposies empricas, elas no so realmente tais, nem, certamente, elas so garantidas

    lgica ou analiticamente. Pode-se at desafiadoramente sugerir que elas lembram aquelas s

    quais Kant chamaria proposies sintticas a priori (STRAWSON, 1998, p.65). Haack pode

    at ter razo se tratando de uma afirmao a posteriori, mas no a priori, ou seja, a

    estrutura do pensamento humano possua uma proposio emprica. Pois, olhando agora, para

    a proposio que declarava uma viso geocntrica do universo, pode-se dizer, hoje, que a

    mesma no passa de uma proposio emprica sujeita verificao. Mas que, no entanto, por

    um longo tempo fez parte da imagem do mundo ou da estrutura do pensamento em geral.

    Destarte, antes da revoluo Copernicana a estrutura do pensamento humano estava

    contaminada por uma proposio emprica. Contudo, isso no acarreta em problema algum.

    Apenas revela o carter dinmico da imagem do mundo. Nesse sentido, Strawson sublinha

    que a imagem do mundo ou o quadro de referncia pode sofrer mudanas. Todavia,

    permanece uma imagem humana do mundo: a imagem de um mundo de objetos

    fsicos (corpos) no espao e no tempo, incluindo observadores humanos capazes de

    ao e de adquirir e transmitir conhecimento (e erro) tanto de si mesmos quanto dos

    outros, ou de qualquer outra coisa que pode ser encontrado na natureza. Assim uma

    concepo constante, do que, na expresso de Wittgenstein, no est sujeito alterao ou apenas a uma alterao imperceptvel, dada juntamente com a prpria ideia de alterao histrica na viso de mundo humana (STRAWSON, 1985,

    p.27).

    Strawson nota que Wittgenstein jamais tentou especificar quais aspectos de nossa

    imagem do mundo, ou quadro de referncia, so no sujeitos alterao ou somente a uma

    alterao imperceptvel, a quais aspectos nosso comprometimento humano ou natural to

    profundo que eles permanecem firmes, e podem ser considerados como permanecendo firmes,

    atravs de todas as revolues do pensamento cientfico ou do desenvolvimento social

    (Strawson, 1985, p.27). Assim como para Hume, tambm para Wittgenstein, a crena no

    mundo externo uma das cripto-proposies que compe a imagem do mundo no sujeita a

  • Notas introdutrias acerca do naturalismo de Strawson: uma leitura e interpretao da obra

    Skepticism and Naturalism

    Itamar Lus Gelain

    Revista Litterarius Faculdade Palotina | Vol.11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291 10

    qualquer mudana ou alterao. Vale dizer, a crena no mundo externo participa daquela

    imagem humana do mundo permanente (Cf. STRAWSON, 1990, p.312-313; STRAWSON,

    1985, p.27).

    Por fim, segundo Strawson, Wittgenstein no fala, assim como faz Hume, que a

    natureza a fonte dos prjugs ou cripto-proposies. Em contrapartida, ele fala de nossa

    aprendizagem, a partir da infncia, de uma atividade, de uma prtica, de uma prtica social

    de fazer juzos e formar crenas com as quais as cripto-proposies guardam uma relao

    especial que ele procura ilustrar com as figuras da estrutura, do andaime, do substrato

    (Strawson, 1985, p.19). Desse modo, as cripto-proposies no so juzos, e nem mesmo

    coisas que so aprendidas ou ensinadas explicitamente na prtica. As proposies isentas de

    dvida refletem o carter geral da prpria prtica, formam um quadro dentro do qual os

    juzos que realmente fazemos esto unidos de uma maneira mais ou menos coerente

    (Strawson, 1985, p.19). Em outras palavras, a estrutura ou quadro geral do pensamento

    humano formado pelas cripto-proposies a condio para os juzos. Ou melhor, as cripto-

    proposies, usando a metfora de Wittgenstein, constituem-se como as margens e o leito do

    rio, pelo qual correm juntos (unidos) os juzos como gua em movimento.

    De acordo com a exposio acima, h diferenas entre as posies de Hume e

    Wittgenstein no que diz respeito s cripto-proposies da estrutura e a fonte das mesmas. No

    entanto, segundo Strawson, quanto s questes cticas, possvel discernir uma profunda

    semelhana entre ele e Hume (STRAWSON, 1985, p.19). Segundo Stein, a caracterstica

    comum a esses filsofos (Hume e Wittgenstein) a recusa de tentar fundamentar o

    conhecimento humano em princpios primeiros que garantam, sem apelo a quaisquer outros

    conhecimentos, a verdade daquilo que afirmamos acerca do mundo (STEIN, 2000, p.192).

    Isto , ambos concordam que a crena no mundo externo no exige fundamentao, bem

    como no est exposta a questionamentos. Pois, aqui especificamente, a crena no mundo

    externo se encontra fora da competncia racional e crtica, isso porque, tal crena ajuda a

    definir o campo no qual essa competncia exercida (Strawson, 1985, p.19). Ou seja, a

    crena no mundo externo uma cripto-proposio que no est aberta duvida, pelo fato de

    constituir a estrutura do pensamento, pela qual faz possvel a prpria competncia racional.

    Seria como que dizer, sem o andaime ou a estrutura, a qual formada por crenas no

    justificadas racionalmente, no seria possvel o prprio pensamento (Cf. STRAWSON, 1998,

    p.371). Desse modo, uma vez que a crena no mundo externo est para alm da competncia

    racional, tentar enfrentar a dvida ctica profissional por meio de argumentos que apoiem

    essas crenas, por meio de justificao racional, equivale simplesmente a mostrar que no se

  • Notas introdutrias acerca do naturalismo de Strawson: uma leitura e interpretao da obra

    Skepticism and Naturalism

    Itamar Lus Gelain

    Revista Litterarius Faculdade Palotina | Vol.11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291 11

    tem compreendido, em absoluto, o papel que estas tm realmente em nossos sistemas de

    crenas (STRAWSON, 1985, p.19). Portanto, Strawson pensa que a maneira correta de fazer

    frente s dvidas cticas no consiste em combat-las por meio de argumentos racionais,

    seno em mostrar que as mesmas so inteis, irreais e enganosas. Assim, a refutao ao

    ceticismo com argumentos sem sentido e intil. Pois, as razes aduzidas naqueles

    argumentos para justificar [...] a crena na existncia dos corpos no so, e no se tornam,

    nossas razes para tais crenas (STRAWSON, 1985, p.19-20). Isso pelo fato que na maneira

    naturalista de abordar a questo ctica, no h algo como as razes pelas quais se sustenta a

    crena no mundo externo. Pelo contrrio, o que temos aqui so comprometimentos originais,

    naturais e inevitveis que ns nem escolhemos nem podemos renunciar (Strawson, 1985,

    p.28). Ou seja, o que h na perspectiva naturalista proposta por Strawson, uma aceitao

    inevitvel e natural das cripto-proposies (nesse caso a existncia do mundo externo), as

    quais so condies de possibilidade para o pensamento e para o conhecimento.

    Uma vez que Strawson encontra na filosofia de Hume e de Wittgenstein sua estratgia

    antictica, examina-se agora o alcance do naturalismo dos mesmos. Para Wittgenstein a

    dvida ctica no tem nenhuma consequncia prtica, enquanto que para Hume ela teria

    consequncias nefastas na prtica, se no fosse a natureza (Cf. SMITH, 2000, p.248). dentro

    deste domnio argumentativo que se pode afirmar que o naturalismo de Hume se apresenta

    como um refgio de seu ceticismo, ou melhor, o naturalismo humiano evitaria as

    consequncias prticas das dvidas cticas. Segundo Smith, as consequncias prticas da

    dvida ctica seriam a apatia e a letargia, uma vez que no teramos mais nenhuma crena e

    seramos incapazes de agir. Nossos instintos, no entanto, nos obrigariam a agir para satisfaz-

    los, independentemente de qualquer considerao terica, mostrando o ridculo da tentativa

    ctica de mortific-los (SMITH, 2000, p.248). No entanto, conforme discutido acima, no

    caso de Hume, o ceticismo ainda tem a ltima palavra sobre questes tericas, de tal modo

    que o naturalismo humiano consiste apenas em uma resposta no mbito prtico para as

    dvidas cticas acerca de questes tericas.

    Entretanto, em Wittgenstein no h uma concepo de naturalismo como refgio do

    ceticismo em virtude da investigao terica (Cf. SMITH, 2000, p.248). Ele no recorre ao

    mbito prtico para mostrar um tipo de naturalismo que serviria de estratgia contra o ctico.

    Pelo contrrio, o seu naturalismo est colocado num mbito terico (Cf. BADIOLA, 2003,

    p.17). Segundo GRAYLING, para Wittgenstein h certas coisas que devemos aceitar para

    poder continuar com nossas maneiras habituais de pensar e falar. Proposies como: existe

    um mundo externo ou que o mundo existe h muito tempo, simplesmente no do margem

  • Notas introdutrias acerca do naturalismo de Strawson: uma leitura e interpretao da obra

    Skepticism and Naturalism

    Itamar Lus Gelain

    Revista Litterarius Faculdade Palotina | Vol.11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291 12

    dvida; no temos a opo de question-las (GRAYLING, 2002, p.59). O prprio

    Wittgenstein na obra Da Certeza afirma que no possvel ser formulada uma proposio

    como H objetos fsicos (36). E por isso a proposio H Objetos fsicos um absurdo

    (35). Pois, este tipo de proposio aprendida de um modo puramente prtico, ou seja, no se

    aprende a partir de uma teoria da prtica, isto , esse tipo de proposio no ensinada e nem

    aprendida teoricamente (Cf. STRAWSON, 1985, p.17-18). Nesse ponto Wittgenstein assevera

    que as proposies isentas de dvida possuem um papel semelhante ao das regras de um

    jogo. E o jogo pode ser aprendido puramente pela prtica, sem aprender quaisquer regras

    explcitas (95). A crena no mundo externo uma proposio que no est aberta dvida,

    pois, constitui o andaime para nosso pensamento e nossa fala comuns, [...] so como o leito e

    as margens de um rio, ao longo do qual a corrente do discurso comum flui. Nesse sentido, as

    crenas que o ceticismo tenta questionar no esto abertas negociao; o que, diz

    Wittgenstein, d conta do ceticismo (Grayling, 2002, p.59).

    4 Strawson entre o naturalismo de Hume e de Wittgenstein

    Williams em seu livro Unnatural Doubts (1991) afirma que Strawson um humiano

    na medida em que professa um pessimismo epistemolgico, ou seja, o ceticismo aparece

    como algo inerente s investigaes tericas, o qual no pode ser enfrentado com argumentos

    racionais. Entretanto, este aspecto humiano no pensamento de Strawson se apresenta como

    algo incmodo ou ainda como um pessimismo equvoco. Isso decorre do fato de que

    Strawson aceita em princpio o pessimismo inicial em relao a nossa incapacidade de

    justificar epistemologicamente as crenas (Hume) e depois se serve de Wittgenstein para

    promover uma crtica terica ao ceticismo. Ou melhor, com Hume o ceticismo enfrentado

    num campo prtico, mas com Wittgenstein ele enfrentado num campo terico. Disso

    decorre, segundo Williams, que a posio de Strawson instvel, pois, ele tenta combinar o

    naturalismo substantivo ou doutrinrio de Hume (as crenas no possuem justificao

    epistmica) com o naturalismo metodolgico de Wittgenstein (assinala o estatuto lgico

    destas crenas) (Cf. Williams, 1991; Badiola, 2003). O naturalismo, aqui, em questo, est

    pensado somente em relao s crenas questionadas pelo ceticismo (crena no mundo

    externo, a questo do passado, as outras mentes).4

    4 Quando se menciona o naturalismo substantivo e o naturalismo metodolgico no se est fazendo qualquer

    referncia ao naturalismo epistmico substantivo e o naturalismo epistmico metodolgico que so discutidos na

    Epistemologia Analtica aps as crticas de Gettier. Cf. GOLDMAN, Alvin. Epistemologia Naturalista e

  • Notas introdutrias acerca do naturalismo de Strawson: uma leitura e interpretao da obra

    Skepticism and Naturalism

    Itamar Lus Gelain

    Revista Litterarius Faculdade Palotina | Vol.11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291 13

    importante sublinhar que Strawson comunga com Hume no que diz respeito ao

    ceticismo derivar sua fora das ideias tericas. Em outras palavras, Strawson reconhece que o

    ceticismo se trata de uma dvida puramente terica, pois no possvel mant-la na prtica

    (1988). Portanto, ele d a entender que o seu naturalismo precisa ser colocado num mbito

    terico e no somente num campo prtico, como fez Hume. Disso pode-se concluir como

    assinalou Sosa (1998, p.362) que o naturalismo de Strawson um naturalismo epistemolgico

    (pelo fato de tentar combater o ceticismo em nvel terico). Alm disso, o que Strawson

    resgata de Hume o lcido reconhecimento de ter se deparado com um limite, alm do qual

    no possvel estabelecer qualquer justificao racional. Se o naturalismo de Hume se

    configura como um refgio do ceticismo, o naturalismo de Strawson no aceita esta postura

    prtica. Strawson est filiado a Hume pelo fato deste reconhecer que as crenas questionadas

    pelo ceticismo no so passveis de justificao, disto, portanto, decorre o pessimismo

    epistemolgico de Strawson (e tambm de Hume), conforme argumentou Williams.

    Todavia, o naturalismo de Hume no suficiente para os propsitos de Strawson.

    Portanto, Wittgenstein tem um recurso eficiente para aquilo que Strawson busca. Este recurso

    consiste no fato de que Wittgenstein afirma que algumas proposies no so passveis de

    justificao, pois, estas constituem o andaime, a estrutura com a qual pensamos. O que

    Strawson quer realar aqui que as crenas que o ceticismo questiona fazem parte da

    estrutura com a qual operamos, e a verificao e justificao das mesmas impossvel. Sobre

    isso afirma Wittgenstein: difcil encontrar o comeo. Ou melhor, difcil comear no

    comeo. E no tentar recuar mais (471). E aqui poderamos at mencionar Heidegger (que

    faz oposio a Kant) que Strawson faz referncia: O escndalo da filosofia no consiste em

    que essa prova ainda no tenha sido oferecida, seno que se esperem e se empreendam

    frequentemente essas provas (1985, p.24). Por isso, enfrentar o ceticismo uma tarefa intil,

    pois, tentar enfrentar o desafio do ctico, seja qual for o meio, seja qual for o modo de

    argumentar, tentar recuar ainda mais. Para comear do princpio, devemos recusar o desafio

    como faz nosso naturalista (Strawson, 1985, p.24-25).

    Do mesmo modo que o ceticismo se torna inofensivo em nossa vida cotidiana (aceno a

    proposta de Hume), o que Strawson quer por em evidncia com Wittgenstein, que to pouco

    na vida terica constitui-se um desafio srio. Em outras palavras, com Wittgenstein Strawson

    Confiabilismo. In: VORA, Ftima; ABRANTES, Paulo C. (Eds). Naturalismo Epistemolgico. Cadernos de

    Histria e Filosofia da Cincia. Srie 3, v.8, n.2, jul. dez. 1998. p.109-118; Cf. WILLIAMS, M. Unnatural Doubts. Oxford: Blackwell, 1991.

  • Notas introdutrias acerca do naturalismo de Strawson: uma leitura e interpretao da obra

    Skepticism and Naturalism

    Itamar Lus Gelain

    Revista Litterarius Faculdade Palotina | Vol.11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291 14

    pretende estender o naturalismo s questes tericas, o que Hume reservou somente ao mbito

    prtico. Nessa perspectiva, afirma Badiola:

    A proposta de Strawson, portanto, pretende integrar no mbito terico essas certezas

    ou pressuposies que subjazem a nosso pensamento sobre o mundo. O que para

    Hume pertencia to somente ao mbito da necessidade prtica , para Strawson, parte integrante da terica. Vale dizer, o naturalismo de Strawson como resposta ao

    desafio ctico tradicional consiste em aceitar certas tendncias naturais a crer em

    determinadas coisas, certos hbitos do pensamento que no podem ser colocados em

    dvida, mas sem os quais no podemos j somente viver, seno comear a pensar

    (Badiola, 2003, p.18-19).

    As crenas colocadas em questo pelo ceticismo so assumidas como compromissos

    pr-tericos que se encontram arraigados no esquema conceitual com o qual pensamos o

    mundo. O filsofo naturalista, no caso de Strawson, no pretende justificar tais crenas, mas

    descrever os traos mais fundamentais e gerais do pensamento humano. Em Individuals e

    Analysis and Metaphysics Strawson esclarece que o papel da filosofia, como ele a entende,

    consiste em descrever os conceitos mais bsicos que compe o esquema conceitual. Assim,

    como o gramtico pretende tornar explcita a estrutura gramatical, o filsofo pretende

    explicitar a estrutura conceitual com a qual operamos. Neste sentido argumenta Badiola: o

    reconhecimento terico dos pressupostos operantes no pensamento menos sofisticado (a

    existncia do mundo externo, a determinabilidade do passado ou a relao causal) supe um

    primeiro passo na tarefa metafsica de elucidao dos traos estruturais que constituem a

    estrutura de nosso pensamento (2003, p.20).

    Por um lado, o naturalismo de Strawson mesmo assumindo esta postura terica

    herdeiro de um pessimismo epistemolgico que reconhece a impossibilidade de justificao

    das crenas colocadas em questo pelo ceticismo. Mas, por outro lado, o naturalismo de

    Strawson parece encerrar tambm um dogmatismo, uma vez que de antemo fecha a

    possibilidade de qualquer justificao racional. Essa ltima acusao de vertente kantiana

    que no aceita o naturalismo como uma resposta adequada ao ceticismo, pois, o naturalismo

    representa uma fuga do problema. Assumir o naturalismo, nesse caso, significa negar a nossa

    capacidade de justificao racional, aquilo que Kant pretensamente pensou ser possvel,

    quando afirmou permanece contudo, um escndalo da Filosofia e da razo humana geral ter

    que admitir a existncia das coisas fora de ns (...) com base apenas da f e, ao ocorrer a

    algum colocar essa existncia em dvida, no lhe poder contrapor nenhuma prova

    satisfatria (Kant, 1980, p.20). Cabe observar que o naturalista muito mais modesto em

    relao ao nosso poder racional do que os kantianos. Enquanto que os ltimos mergulham

  • Notas introdutrias acerca do naturalismo de Strawson: uma leitura e interpretao da obra

    Skepticism and Naturalism

    Itamar Lus Gelain

    Revista Litterarius Faculdade Palotina | Vol.11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291 15

    numa busca frentica de justificao racional contra o ceticismo, o naturalista simplesmente

    acolhe a nossa impossibilidade de justificao racional e apela para a inutilidade do ceticismo

    num campo terico (Wittgenstein e Strawson) e prtico (Hume).

    Referncias bibliogrficas

    BADIOLA, Suzana. El Naturalismo Filosfico de P. F. Strawson: Inevitabilidad Natural y

    aceptabilidad Metafsica. In: STRAWSON, Peter Frederick. Escepticismo y Naturalismo.

    Traduo de Suazana Badiola. Madrid: Mnimo Trnsito, 2003.

    BROWN, Clifford. Peter Strawson. Trowbridge: Cromwell Press, 2006.

    DUTRA, Luiz Henrique de Arajo. Introduo epistemologia. So Paulo: Editora da

    UNESP, 2010.

    GELAIN, Itamar Lus. Ceticismo e Naturalismo: algumas variedades, de P. F. Strawson.

    Princpios. Natal: Editora da UFRN, 2008. (Resenha)

    GOLDMAN, Alvin. Epistemologia Naturalista e Confiabilismo. In: VORA, Ftima;

    ABRANTES, Paulo C. (Eds). Naturalismo Epistemolgico. Cadernos de Histria e Filosofia

    da Cincia. Srie 3, v.8, n.2, jul. dez. 1998.

    GRAYLING, A. C. Epistemologia. In: BUNNIN, Nicholas; TSUI-JAMES, E. P. (Org.).

    Compndio de Filosofia. So Paulo: Loyola, 2002.

    ____. The Refutation of Scepticism. London: Duckworth, 1985.

    HAACK, Susan. Between the Scylla of Scientism and the Charybdis of Apriorism. In: In:

    Lewis E. Hahn (Org.). The Philosophy of P. F. Strawson. Chicago and Lassalle, Illinois:

    Open Court, 1998.

    HUME, David. Investigao acerca do Entendimento Humano. Traduo de Anoar Aiex.

    So Paulo: Nova Cultura, 1999. (Os Pensadores)

    ____. Tratado da Natureza Humana. Traduo de Dborah Danowski. So Paulo: Unesp,

    2002.

    KANT, Immanuel. Crtica da Razo Pura. Traduo de Valrio Rohden e Udo Baldur

    Moosburger. So Paulo: Abril Cultural, 1980. (Os Pensadores)

    PUTNAM, Hilary. Strawson and Skepticism. In: HAHN, Lewis Edwin (Ed). The Philosophy

    of P. F. Strawson. Chicago and Lassalle, Illinois: Open Court, 1998.

    SMITH, Plnio Junqueira. Wittgenstein: racionalidade e ceticismo. In: SMITH, Plnio

    Junqueira. O ceticismo filosfico. Curitiba: Editora da UFPR, 2000.

    SOSA, Ernest. P. F. Strawsons Epistemological Naturalism. In: HAHN, Lewis E. (Ed.). The Philosophy of P. F. Strawson. Chicago and Lassalle, Illinois: Open Court, 1998.

  • Notas introdutrias acerca do naturalismo de Strawson: uma leitura e interpretao da obra

    Skepticism and Naturalism

    Itamar Lus Gelain

    Revista Litterarius Faculdade Palotina | Vol.11 | N. 03 | 2012 ISSN 2237-6291 16

    STEIN, Sofia Ins Albornoz. A Epistemologia Naturalizada e a Negao de Princpios a priori

    do Conhecimento. In: DUTRA, Luiz Henrique de A.; MORTARI, Cezar Augusto (Orgs.).

    Princpios: seu papel na filosofia e nas cincias. Coleo Rumos da Epistemologia.

    Florianpolis: NEL/UFSC, 2000.

    STERN, Robert. On Strawsons Naturalistic Turn. In: GLOCK, Hans-Johann (org.). Strawson e Kant. Oxford: Clarendon Press, 2003.

    STRAWSON, Peter Frederick. Anlise e Metafsica: uma introduo filosofia. Traduo de

    Armando Mora de Oliveira. So Paulo: Discurso Editorial, 2002.

    ____. Analysis, Science, and Metaphyisc. In: RORTY, Richard (ed.). The linguistic turn.

    London: The University of Chicago Press, 1967.

    ____. Individuals: an essay in descriptive metaphysics. London: Methuen, 1959.

    ____. Ma Philosophie: son dveloppement, son thme central et sa nature gnrale. In:

    Revue de Thologie et de Philosophie, n. 120, 1988.

    ____. Reply to Susan Haack. In: Lewis E. Hahn (Org.). The Philosophy of P. F. Strawson.

    Chicago and Lassalle, Illinois: Open Court, 1998.

    ____. Skepticism and Naturalism: some varieties. New York: Columbia University Press,

    1985.

    ____. Two Conceptions of Pilosophy. In: BARRET, Robert. B; GIBSON, Roger F. (orgs.).

    Perspectives on Quine. Cambridge: Basil Blackwell, 1990.

    STROUD, Barry.Transcendental Arguments. In: The Journal of Philosophy. Vol. LXV, n.9,

    1968.

    WILLIAMS, M. Unnatural Doubts. Oxford: Blackwell, 1991.

    WITTGENSTEIN, Ludwig. Da certeza. Traduo de Maria Elisa Costa. Lisboa: Edies 70,

    1998.