fritjof capra - sabedoria incomum

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    Fritjof Capra

    Sabedoria incomumConversas com pessoas notveis

    TraduoCARLOS AFONSO MALFERRARI

    EDITORA CULTRIX

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    So Paulo1995

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    Ttulo do original:Uncommon Wisdom

    Conversations with Remarkable PeopleCopyright 1988 by Fritjof Capra.

    Edio brasileira:Edio: 10 Ano: 1995.

    Direitos de traduo para o Brasil adquiridos com exclusividadepela

    EDITORA CULTRIX LTDA.Rua Dr. Mrio Vicente, 374 - 04270 - So Paulo, SP - Fone:

    272-1399que se reserva a propriedade literria desta traduo.

    Impresso nas oficinas grficas da Editora Pensamento.

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    Agradecimentos

    Mais que qualquer outro livro, bvio que este no poderia ter sido escrito sem a inspirao e o apoio dos muitos homens emulheres notveis mencionados em suas pginas, e de muitosoutros que no chegam a ser citados. Eu gostaria de expressar a todos a minha mais profunda gratido. Agradeo tambm aminha famlia e a meus amigos por suas leituras crticas de

    diversas partes do manuscrito, especialmente minha me,Ingeborg Teuffenbach, por suas valiosas sugestes editoriais, eminha esposa, Elizabeth Hawk, por me ajudar a aprimorar otexto medida que ia sendo escrito. Finalmente, gostaria deagradecer a meus editores na Simon and Schuster AliceMayhew, John Cox e Debra Makay por sua magnfica e

    sensvel edio final do texto.

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    ndice

    Prefcio ............................................................ ........................9

    1. Uivando com os lobos ................................................. .....13Werner Heisenberg J. Krishnamurti

    2. Fundamento nenhum .......................................................41Geoffrey Chew

    3. O padro que une ................................... ..........................59Gregory Bateson

    4. Nadando no mesmo oceano ............................................75Stanislav Gr of R. D. Laing

    5. A busca de equilbrio .................................... ..................123Carl Simonton Margaret Lock

    6. Futuros alternativos ...................................................... ..169E. F. Schumacher Hazel Henderson

    7. Os dilogos de Big Sur .............................................. .....215Gregory Bateson, Antonio Dimalanta, Stanislav Grof,Hazel Henderson, Margaret Lock, Leonard Shlain,Carl Simonton

    8. Uma qualidade especial de sabedoria ...........................255Indira Gandhi

    Bibliografia .......................................................... ..................271

    [7]Observao do digitador da obra:

    O nmero que aparece entre barras [x] remete oleitor ao nmero da pgina do livro impresso.

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    Prefcio

    Em abril de 1970, recebi meu ltimo pagamento referente apesquisas na fsica terica das partculas. Desde ento tenhocontinuado essas pesquisas em diversas universidades norte-americanas e europias, mas no foi possvel persuadir nenhuma delas para me oferecer apoio financeiro. O motivo

    dessa falta de apoio que a partir de 1970 minhas pesquisasno campo da fsica, ainda que constituindo parte essencial demeu trabalho, passaram a ocupar apenas uma parcelarelativamente pequena de meu tempo. Venho dedicando amaior parte dele a pesquisas de alcance muito mais amplo,pesquisas que transcendem os limites estreitos das atuais

    disciplinas acadmicas, pesquisas em que muitas vezesavano por territrios inexplorados, indo s vezes alm doslimites da cincia, conforme so atualmente entendidos, oumelhor, tentando estender esses limites para novas reas.Embora eu tenha empreendido essas pesquisas com tantatenacidade, mtodo e meticulosidade quanto meus colegas da

    comunidade dos fsicos empreendem as suas, e embora eutenha publicado meus resultados numa srie de ensaios e emdois livros, esses frutos eram, e ainda so, por demais novos econtrovertidos para receberem o apoio de alguma instituioacadmica.

    Qualquer pesquisa levada a cabo nas fronteiras do

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    conhecimento tem por caracterstica o fato de no sabermos jamais aonde ela levar; no final, porm, se tudo correr bem,em geral podemos discernir uma evoluo coerente de nossasidias e de nosso entendimento. Certamente foi isso o queaconteceu com meu trabalho. Nos ltimos quinze anos, passeimuitas horas em intensas discusses com alguns dos maisimportantes cientistas de nossa poca; explorei diversosestados alterados de conscincia, com e sem mestres e guias;convivi demoradamente com filsofos e artistas; discuti eexperimentei toda uma gama de terapias, fsicas e psicolgicas;e participei de inmeras reunies de atividades sociais onde ateoria e a prtica da transformao social eram discutidassegundo as mais variadas perspectivas e por pessoas das maisdiferentes formaes culturais. Muitas vezes parecia que cadanovo entendimento abria novos caminhos a serem trilhados egerava mais perguntas a serem feitas. Entretanto, hoje, emmeados dos anos 80, ao rever essa poca, verifico que durantetodos os ltimos quinze anos tenho perseguido constantementeum nico tema: a transformao fundamental da viso demundo que ocorre na cincia

    [9]e na sociedade, o desdobramento de uma nova viso darealidade e as implicaes sociais dessa transformaocultural. Publiquei os resultados de minhas pesquisas em doislivros, O tao da fsica e O ponto de mutao, e discuti asimplicaes polticas concretas dessa transformao cultural

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    numa terceira obra, Green politics, que escrevi em co-autoriacom Charlene Spretnak.

    O propsito do livro que o leitor tem em mos no apresentar alguma idia nova ou desenvolver ou modificar as idiasapresentadas em meus livros anteriores, mas sim contar ahistria pessoal existente por trs da evoluo dessas idias. Ea histria de meus encontros com muitos homens e mulheresnotveis que me inspiraram, me ajudaram e apoiaram minha

    busca Werner Heisenberg, que me descreveu de maneiravivida como ele vivenciou pessoalmente a mudana deconceitos e de idias na fsica; Geoffrey Chew, que me ensinoua no aceitar nada como fundamental ou essencial; J.Krishnamurti e Alan Watts, que me ajudaram a transcender opensamento sem abandonar o meu compromisso com a

    cincia; Gregory Bateson, que ampliou a minha viso de mundoao colocar a vida no centro; Stanislav Grof e R. D. Laing, queme desafiaram a explorar toda a amplitude da conscinciahumana; Margaret Lock e Carl Simonton, que me revelaramnovos caminhos para a sade e a cura; E. F. Schumacher eHazel Henderson, que partilharam comigo as suas vises

    ecolgicas do futuro; e Indira Gandhi, que enriqueceu a minhapercepo da interdependncia global. Com esses homens emulheres, e com muitos outros que conheci e convivi nodecorrer da ltima dcada e meia, aprendi os principaiselementos do que acabei por chamar de nova viso darealidade. Minha prpria contribuio foi a de estabelecer os

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    elos entre suas idias e as tradies cientficas e filosficas querepresentam.

    As conversas registradas aqui se deram entre 1969, ano emque pela primeira vez vivenciei a dana das partculassubatmicas como a Dana de Xiva, e 1982, ano em que O

    ponto de mutao foi publicado. Eu as reconstru, em parte defitas gravadas, em parte de minhas extensas anotaes, e emparte de memria. As conversas culminaram nos Dilogos de

    Big Sur, trs dias de instigantes e esclarecedoras discussesem meio a um grupo extraordinrio de pessoas, quepermanecero entre os momentos culminantes de minha vida.

    Minha busca foi acompanhada de uma profunda transformaopessoal, que teve incio sob o impacto de uma era de magia, osanos 60. Os anos 40, 50 e 60 correspondem aproximadamente

    s trs primeiras dcadas de minha vida. Os anos 40 foramminha infncia, os 50, a adolescncia, e os 60, juventude eincio de minha vida madura. Revendo minhas experinciasnessas dcadas, posso melhor caracterizar os anos 50 pelottulo do famoso filme com James Dean, Juventude transviada.Havia conflito entre as geraes, sem dvida, mas a gerao

    de James Dean e a gerao mais velha na realidadepartilhavam a mesma viso de mundo: a mesma crena natecnologia, no progresso, no sistema educacional. Nada dissoera questionado nos anos 50. Foi somente nos anos 60 que osrebeldes comearam a enxergar uma causa, e o resultado foiuma contestao fundamental da ordem social existente.

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    A era dos anos 60, que teve o mais decisivo impacto sobre aminha viso de mundo, foi dominada por uma expanso daconscincia em duas direes, uma delas rumo a um novo tipode espiritualidade, semelhante das tradies msticas doOriente; foi uma expanso da conscincia que incorporavaexperincias, as quais os psiclogos comearam a chamar detranspessoais. A outra foi uma ampliao da conscinciasocial, desencadeada pelo questionamento e contestaoradicais da autoridade; foi algo que ocorreu independentementeem diversas reas. O movimento norte-americano pelos direitoscivis exigiu que os cidados negros fossem includos noprocesso poltico; o Movimento pela Livre Expresso, emBerkeley, e os movimentos estudantis em vrias outrasuniversidades dos Estados Unidos e da Europa exigiram omesmo para os estudantes; os cidados tchecos, durante aPrimavera de Praga, contestaram a autoridade do regimesovitico; o movimento feminista comeou a contestar aautoridade patriarcal; e os psiclogos humanistas abalaram eminaram a autoridade dos mdicos e terapeutas. As duastendncias dominantes dos anos 60 a expanso daconscincia na direo do transpessoal e na direo do social tiveram profunda influncia em minha vida e em meutrabalho. Meus dois primeiros livros tm claramente suas razesnaquela dcada mgica.

    O final dos anos 60 coincidiu para mim com o fim do meuemprego, mas no do meu trabalho, como fsico terico. No

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    outono de 1970, deixei o cargo de professor na Universidade daCalifrnia, campus de Santa Cruz, e fui para Londres, ondepassei os quatro anos seguintes explorando os paralelos entrea fsica moderna e o misticismo oriental. Esse trabalho emLondres foi o meu

    [11]

    primeiro passo num longo e sistemtico esforo para formular,sintetizar e transmitir uma nova viso da realidade. As etapas

    dessa jornada intelectual e os encontros e conversas com osmuitos homens e mulheres notveis que partilharam comigo oseu saber inslito constituem a histria deste livro.

    Fritjof Capra

    Berkeley, outubro de 1986.

    [12]

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    Uivando com os lobos

    Werner Heisenberg

    Meu interesse pela mudana da nova viso de mundo nacincia e na sociedade foi despertado quando eu, ainda um

    jovem estudante de fsica de dezenove anos, li Fsica e filosofiade Werner Heisenberg o seu relato clssico da histria e dafilosofia da fsica quntica. Esse livro exerceu, e exerce ainda,enorme influncia sobre mim. E uma obra erudita, bastantetcnica em certos momentos, embora cheia de passagens decarter pessoal, s vezes carregadas de emoo. Heisenberg,

    um dos fundadores da teoria quntica e, junto com AlbertEinstein e Niels Bohr, um dos gigantes da fsica moderna,descreve e analisa o singular dilema enfrentado pelos fsicosdurante as trs primeiras dcadas do sculo, quandocomearam a explorar a estrutura dos tomos e a natureza dosfenmenos subatmicos. Essa explorao os colocou em

    contato com uma estranha e inesperada realidade, queestilhaou os alicerces da sua viso de mundo e os forou apensar de maneira inteiramente nova. O mundo material queento observavam j no se assemelhava a uma mquina,constituda de uma multido de objetos distintos; surgia-lhes,em vez disso, como um todo indivisvel, uma rede de relaes

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    que inclua o observador humano de modo essencial. Em suastentativas de compreender a natureza dos fenmenossubatmicos, os cientistas tornaram-se dolorosamente cientesde que seus conceitos bsicos, sua linguagem e todo o seumodo de pensar eram inadequados para a descrio dessanova realidade.

    Em Fsica e filosofia,Heisenberg oferece no s uma brilhanteanlise dos problemas conceituais, mas tambm um relato

    fascinante das enormes dificuldades pessoais que esses fsicosenfrentaram quando suas pesquisas os obrigaram a umaexpanso da conscincia. Seus experimentos atmicosforaram-nos a pensar em novas categorias sobre a naturezada realidade, e o grande feito de Heisenberg foi ter reconhecidoisso claramente. A histria de seu esforo e triunfo tambm a

    histria do encontro e da simbiose de suas personalidadesexcepcionais: Werner Heisenberg e Niels Bohr.

    Heisenberg envolveu-se com a fsica atmica aos vinte anos deidade, quando assistiu a uma srie de palestras dadas por Bohr em Gttingen. O tema das palestras era a nova teoria atmicade Bohr, saudada com um grande feito intelectual, que estava

    sendo estudado por fsicos de toda a Europa. Na discusso quese seguiu a uma dessas palestras, Heisenberg discordou deBhr num determinado aspecto tcnico, e este ficou toimpressionado com a argumen-

    [13]

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    tao clara daquele jovem estudante que o convidou para umpasseio, a fim de continuarem a conversa. Esse passeio, quedurou vrias horas, foi o primeiro encontro de duas mentesexcepcionais, cuja interao posterior iria se tornar a principalfora no desenvolvimento da fsica atmica.

    Niels Bohr, dezesseis anos mais velho que Heisenberg, era umhomem de suprema intuio, profundo apreciador dos mistriosdo mundo, influenciado pela filosofia religiosa de Kierkegaard e

    pelos escritos msticos de William James. Nunca apreciou ossintomas axiomticos e declarou repetidas vezes: Tudo o quedigo deve ser entendido no como uma afirmao, mas comouma pergunta. Werner Heisenberg, por outro lado, possua amente clara, analtica, matemtica, com razes filosficas nopensamento grego, com que estava familiarizado desde a

    juventude. Bohr e Heisenberg representavam ploscomplementares da mente humana, cuja interao recproca dinmica e freqentemente dramtica constituiu umprocesso nico na histria da cincia moderna, acabando por lev-la a um dos seus maiores triunfos.

    Quando eu, ainda um jovem estudante, li o livro de Heisenberg,

    fiquei fascinado por seu relato dos paradoxos e aparentescontradies que atribulavam as investigaes dos fenmenosatmicos no incio dos anos 20. Muitos desses paradoxosestavam ligados natureza dual da matria subatmica, quesurge s vezes como partculas, s vezes como ondas. Oseltrons, costumavam dizer os fsicos naqueles dias, so

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    partculas s segundas e quartas-feiras, e ondas s teras equintas. E o que causava maior estranheza era o fato de quequanto mais os fsicos tentavam esclarecer a situao, maisacentuados se tornavam os paradoxos. Apenas muitogradualmente os fsicos conseguiram desenvolver uma certaintuio para saberem quando um eltron surgiria como umapartcula e quando surgiria como uma onda. Os fsicos, naspalavras de Heisenberg, tiveram de entrar no esprito da teoriaquntica antes de elaborarem um formalismo matemticopreciso. O prprio Heisenberg desempenhou um papel decisivopara que isso acontecesse. Ele verificou que os paradoxos dafsica nuclear surgem quando tentamos descrever osfenmenos atmicos em termos clssicos, e foi suficientementeousado e corajoso para rejeitar todo o arcabouo conceitualclssico. Em 1925, publicou um ensaio onde abandonava adescrio convencional dos eltrons no interior de um tomoem termos de suas posies e velocidades que era adescrio de Bohr e de todos os outros na poca esubstituiu-a por um arcabouo terico muito mais abstrato, emque as quantidades fsicas eram representadas por estruturasmatemticas chamadas matrizes. A mecnica matricial deHeisenberg foi a primeira formulao lgica coerente da teoriaquntica. Ela foi suplementada um ano depois por outraexplicao formal, desenvolvida por Erwin Schrdinger, econhecida como mecnica ondulatria. Ambas as estruturasformais so coerentes em termos lgicos e matematicamenteequivalentes o mesmo fenmeno atmico pode ser descrito

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    por meio de duas linguagens matemticas diferentes.

    No final de 1926, os fsicos j possuam um formalismomatemtico completo e logicamente consistente, embora nemsempre soubessem como

    [14]

    interpret-lo para descrever uma determinada situaoexperimental. Nos meses seguintes, Heisenberg, Bohr,Schrdinger e outros foram pouco a pouco tornando mais claraa situao em discusses intensas, exaustivas e no rarocarregadas de muita emoo. Em Fsica e filosofia,Heisenbergapresentou um retrato vivido desse perodo crucial da histriada teoria quntica:

    Um estudo intensivo de todas as questes referentes interpretao da teoria quntica em Copenhague levoufinalmente a um esclarecimento completo da situao. No foi,porm, uma soluo que pudssemos aceitar com facilidade.Lembro-me de discusses com Bohr que se prolongavam por muitas horas, at alta madrugada, e terminavam num estadoque beirava o desespero. E quando, ao final de uma discusso,

    eu saa sozinho para passear num parque das redondezas,ficava me perguntando sem parar: 'Pode a natureza ser assimto absurda quanto nos parece em nossos experimentosatmicos?'

    Heisenberg reconheceu que o formalismo da teoria qunticano pode ser interpretado nos termos das nossas noes

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    intuitivas de tempo e espao, ou de causa e efeito;simultaneamente, ele estava ciente de que todos os nossosconceitos esto ligados a essas noes intuitivas. E concluiuque no havia outra sada seno manter os conceitos intuitivosclssicos, restringindo porm a sua aplicabilidade. O grandefeito de Heisenberg foi expressar essas limitaes dosconceitos clssicos de uma forma matematicamente precisa que hoje leva seu nome e conhecida como princpio deindeterminao. Consiste numa srie de relaes matemticasque determinam at que ponto os conceitos clssicos podemser aplicados aos fenmenos atmicos, estabelecendo assimos limites da imaginao humana no mundo subatmico.

    O princpio de indeterminao mede o grau em que o cientistainfluencia as propriedades dos objetos observados pelo prprio

    processo de mensurao. Na fsica atmica, os cientistas jno podem exercer o papel de observadores objetivos eimparciais; eles esto envolvidos no mundo que observam, e oprincpio de Heisenberg mede esse envolvimento. No seu nvelmais fundamental, o princpio de indeterminao uma medidade quanto o universo uno e interrelacionado. Nos anos 20, os

    fsicos, liderados por Heisenberg e Bohr, constataram que omundo no uma coleo de objetos distintos; pelo contrrio,ele parece uma teia de relaes entre as diversas partes de umtodo unificado. Nossas noes clssicas, provenientes daexperincia cotidiana, no so inteiramente adequadas paradescrever esse mundo. Werner Heisenberg, mais que qualquer

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    outro, explorou os limites da imaginao humana os limitesat onde nossos conceitos convencionais podem ser ampliados e o grau em que, necessariamente, nos envolvemos nessemundo que observamos. Sua grandeza foi no s a de ter reconhecido esses limites e suas profundas implicaesfilosficas, mas tambm a de conseguir especific-las comclareza e preciso matemtica.

    Aos dezenove anos, no compreendi todo o livro de

    Heisenberg. Para falar a verdade, nessa primeira leitura a maior parte da obra permaneceu um

    [15]

    mistrio para mim. No entanto, ela despertou em mim o fascnioque tenho at hoje por esse perodo memorvel da cincia.Todavia, um estudo mais completo e aprofundado dosparadoxos da fsica quntica e da sua resoluo teria deesperar vrios anos, o tempo para eu receber uma slidainstruo em fsica: inicialmente na fsica clssica, depois namecnica quntica, na teoria da relatividade e na teoriaquntica dos campos. Fsica e filosofia permaneceu meucompanheiro durante esses estudos e, olhando emretrospectiva, posso ver que Heisenberg plantou a sementeque, mais de uma dcada depois, amadureceria na minhainvestigao sistemtica das limitaes da viso de mundocartesiana. A ciso cartesiana, escreveu Heisenberg,penetrou fundo na mente humana nos trs sculos apsDescartes, e levar muito tempo para ser substituda por uma

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    atitude realmente diferente diante do problema da realidade.

    Os anos 60

    Entre os meus anos de estudante em Viena e a poca em queescrevi meu primeiro livro est o perodo da minha vida em quepassei pela mais profunda e mais radical transformaopessoal o perodo dos anos 60. Para aqueles de ns que se

    identificam com seus movimentos, esse perodo representa notanto uma dcada quanto um estado de conscincia,caracterizado pela expanso transpessoal, questionamento daautoridade, senso da possibilidade das coisas e vivncia dabeleza sensual e do esprito comunitrio. Tal estado deconscincia penetrou por quase toda a dcada seguinte, e

    poderamos dizer que os anos 60 s chegaram ao fim emdezembro de 1980, com o tiro que matou John Lennon. Aenorme sensao de perda que dominou tantos de ns foi emgrande parte a perda de toda uma era. Por alguns dias apsaquele tiro assassino, todos ns revivemos a magia dos anos60; embora com tristeza e lgrimas, a mesma sensao de

    magia e comunidade esteve viva novamente. Aonde quer quefssemos naqueles dias, em todos os bairros, todas as cidades,todos os pases do mundo ouvia-se a msica de Lennon, eaquele sentimento intenso que nos acompanhara durante osanos 60 manifestou-se de novo e pela ltima vez:

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    You may say I'm a dreamer,

    but I'm not the only one.

    I hope some day you'll join us,

    and the world will live as one.

    [Voc talvez diga que sou um sonhador, mas no sou o nico.Espero que um dia voc se junte a ns, e o mundo viver entocomo um s. (N. do T.)]

    Depois de formar-me pela Universidade de Viena em 1966,meus dois primeiros anos de pesquisas de ps-doutoramentoem fsica terica foram passados na Universidade de Paris. Emsetembro de 68, minha esposa Jacqueline

    [16]

    e eu nos mudamos para a Califrnia, onde assumi o posto deprofessor e pesquisador na UC (Universidade da Califrnia) deSanta Cruz. Lembro-me de ter lido The structure of scientific revolutions,de Thomas Kuhn, durante o vo transatlntico, e dehaver ficado ligeiramente desapontado com esse livro tofamoso ao constatar que j conhecia suas idias principais

    graas s minhas repetidas leituras de Heisenberg. Entretanto,o livro de Kuhn apresentou-me a noo de paradigma cientfico,que se tornaria o ponto central do meu trabalho muitos anosdepois. O termo paradigma, do gregoparadeigma ( modelo,padro), foi usado por Kuhn para denotar uma estruturaconceitual partilhada por uma comunidade de cientistas, que

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    lhes proporciona modelos de problemas e de solues. Nosvinte anos seguintes se tornaria muito popular falar deparadigmas e mudanas de paradigma tambm fora do campoda cincia, e em O ponto de mutao eu usaria esses termosnum sentido bastante amplo. Um paradigma, para mim,significaria a totalidade de pensamentos, percepes e valoresque formam uma determinada viso de realidade, uma visoque a base do modo como uma sociedade se organiza.

    Na Califrnia, Jacqueline e eu nos deparamos com duasculturas muito diferentes; dominante, a cultura habitual ortodoxada maioria dos norte-americanos, e a contracultura doshippies. Ficamos encantados com a beleza natural daCalifrnia, mas tambm perplexos com a falta geral de gosto evalores estticos na cultura normal. Em nenhum outro lugar o

    contraste entre a estonteante beleza da natureza e a feiramesquinha da civilizao era mais intenso do que na costaoeste dos Estados Unidos, onde nos parecia que toda aherana europia fora relegada. No nos foi difcil compreender porque a oposio da contracultura ao American way of lifetivera origem aqui, e naturalmente fornos atrados por esse

    movimento.Os hippies se opunham a muitos traos culturais queconsidervamos igualmente pouco atraentes. Para sedistinguirem dos cabelos escovinha e dos ternos de polister tpicos dos homens de negcios, eles usavam cabeloscompridos, roupas coloridas e individualistas, flores, contas e

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    outras jias. Os hippies viviam de forma natural, semdesinfetantes ou desodorantes, vrios deles eram vegetarianos,muitos praticavam ioga ou alguma outra forma de meditao.Costumavam fazer o prprio po, e freqentementeexecutavam alguma forma de artesanato. Eram chamados dehippies sujos pelo status quo, mas referiam-se a si mesmoscomo the beautiful people. Insatisfeitos com um tipo deeducao que visava preparar os jovens para uma sociedadeque eles haviam rejeitado, muitos hippies abandonaram osistema educacional por completo, embora fossem comfreqncia muito talentosos. Essa subcultura era imediatamenteidentificvel e bastante unida. Tinha seus prprios rituais, suamsica, sua poesia, sua literatura, um fascnio comum pelaespiritualidade e pelo ocultismo e a viso de uma sociedadecheia de beleza e paz partilhada por todos. O rock e as drogaspsicodlicas eram elos poderosos entre os membros da culturahippie, e influenciaram intensamente sua arte e seu estilo devida.

    Enquanto eu prosseguia com minhas pesquisas na UC deSanta Cruz, fui me envolvendo na contracultura tanto quanto

    minhas obrigaes acadmicas[17]

    o permitiam, levando uma vida um tanto esquizofrnica partedo tempo como pesquisador em nvel de ps-doutoramento, eparte como hippie. Pouqussimas pessoas que me deramcarona, vendo-me com mochila e saco de dormir, suspeitaram

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    que eu tivesse um Ph.D., e menos ainda que eu acabara decompletar trinta anos no sendo portanto digno de confiana,conforme um clebre provrbio hippie. Em 69 e 70 vivencieitodas as facetas da contra-cultura os festivais de rock, asdrogas psicodlicas, a nova liberdade sexual, a vidacomunitria, os muitos dias com o p na estrada. Viajar era fcilnaqueles dias. Bastava esticar o polegar para conseguir umacarona sem o menor problema. Uma vez dentro do carro,ramos indagados sobre nosso signo astrolgico, convidadospara partilhar um baseado ao embalo do som de Grateful Dead,ou ento envolvidos numa conversa sobre Hermann Hesse, o I ching, ou algum outro assunto esotrico.

    Os anos 60 proporcionaram-me sem dvida as mais profundase radicais experincias de minha vida: a rejeio dos valores

    convencionais e ortodoxos; a intimidade, a paz e a confianaexistentes na comunidade hippie; a liberdade da nudezcomunitria; a expanso da conscincia por meio das drogaspsicodlicas e da meditao; a alegria, o esprito leve e aateno ao aqui e agora. O resultado disso tudo foi umasensao de contnua magia, assombro, pasmo e maravilha

    que, para mim, estar perpetuamente associada aos anos 60.Foi tambm a poca em que aumentou a minha conscinciapoltica. Isso ocorreu primeiro em Paris, onde muitos ps-graduandos e jovens pesquisadores eram ao mesmo tempomembros ativos do movimento estudantil que culminou namemorvel revolta conhecida simplesmente como Maio de 68.

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    Lembro-me das longas discusses no Departamento deCincias em Orsay, durante as quais os estudantes no sanalisavam a Guerra do Vietnam e a guerra rabe-israelensede 1967, mas tambm questionavam a estrutura de poder dauniversidade, propondo estruturas no-hierrquicasalternativas.

    Afinal, em maio de 1968 todas as atividades docentes e depesquisa foram interrompidas por completo quando os

    estudantes, liderados por Daniel Cohn-Bendit, estenderam suacrtica sociedade como um todo e buscaram a solidariedadedos trabalhadores no intuito de mudarem toda a organizaosocial. Durante cerca de uma semana, o governo municipal, ostransportes pblicos e negcios de todos os tipos foramcompletamente paralisados por uma greve geral. As pessoas

    passavam a maior parte do tempo discutindo poltica nas ruas,e os estudantes, que haviam ocupado o Odon, o espaosoteatro da Comdie Franaise, transformaram-no numparlamento do povo por vinte e quatro horas.

    Jamais me esquecerei da excitao daqueles dias, que eramoderada apenas pelo meu medo da violncia. Jacqueline e eu

    passvamos os dias participando de comcios e manifestaesgigantescas, evitando, cuidadosos, os confrontos entremanifestantes e as tropas policiais, reunindo-nos com pessoasnas ruas, em restaurantes e nos cafs, e discutindo polticainfindavelmente. A noite amos ao Odon ou Sorbonne paraouvir Cohn-Bendit e outros exporem suas vises bastante

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    idealistas mas muito estimulantes a respeito de uma futuraordem social.

    [18]

    O movimento estudantil europeu, de orientao basicamentemarxista, no foi capaz de transformar suas vises emrealidades durante os anos 60. No entanto, manteve suaspreocupaes sociais vivas na dcada seguinte, quando muitosde seus membros sofreram profundas transformaes

    pessoais. Sob a influncia dos dois temas de maior interessedos anos 70, o movimento feminista e a ecologia, essesmembros da nova esquerda ampliaram seus horizontes semperder a conscincia social, e no final da dcada comearam aingressar nos recm-formados partidos verdes europeus.

    Quando nos mudamos para a Califrnia no outono de 68, oracismo ostensivo, a opresso dos negros e o resultantemovimento do Poder Negro tornaram-se outra parte importanteda minha experincia dos anos 60. Eu no s participaria dasmanifestaes e passeatas contra a guerra, como tambmcompareceria aos eventos polticos organizados pelos PanterasNegras e assistiria a conferncias e palestras de oradorescomo Angela Davis. Minha conscincia poltica, que se tornarabastante aguada em Paris, ampliou-se ainda mais com essesacontecimentos, e tambm com a leitura de Alma no exlio,deEldridge Cleaver, e de outros livros de autores negros.

    Lembro que minha simpatia pelo Poder Negro foi despertada

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    por um fato dramtico e inesquecvel, pouco depois de nosmudarmos para Santa Cruz. Lemos no jornal que umadolescente negro desarmado fora brutalmente morto a tirospor um policial branco numa pequena loja de discos de SanFrancisco. Chocados e enfurecidos com o fato, minha esposa eeu fomos at San Francisco para acompanhar o enterro dorapaz, esperando encontrar uma grande multido de brancostambm emocionados. Havia, de fato, uma grande multido,mas para nosso grande espanto verificamos que, ao lado dedois ou trs outros, ns ramos os nicos brancos. O prdio dacongregao estava rodeado de Panteras Negras de aspectoferoz, com roupas de couro preto e braos cruzados. O climaera tenso, e nos sentimos inseguros e assustados. No entanto,quando me aproximei de um dos guardas e perguntei-lhe sepodamos acompanhar o enterro, ele olhou diretamente emmeus olhos e disse apenas: Seja bem-vindo, irmo, seja bem-vindo!

    O caminho de Alan Watts

    Meu primeiro contato com o misticismo oriental ocorreu quandoainda estava em Paris. Conhecia vrias pessoas interessadasnas culturas indiana e japonesa, mas quem realmente meintroduziu no pensamento oriental foi meu irmo Bernt. Desde ainfncia fomos sempre muito prximos, e Bernt partilha o meuinteresse pela filosofia e pela espiritualidade. Em 66 ele era

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    estudante de arquitetura na ustria e, como tal, talvez tivessemais tempo para estar aberto s novas influncias dopensamento oriental sobre a cultura jovem da Europa e dosEstados Unidos, j que eu estava ocupado em me estabelecer como fsico terico. Bernt deu-me uma antologia de poetas eescritores beat para ler, introduzindo-me nas obras de JackKerouac, Lawrence Ferlin-

    [19]

    ghetti, Allen Ginsberg, Gary Snyder e Alan Watts. Por meio deWatts fiquei conhecendo o budismo zen, e pouco depois Berntsugeriu que eu lesse o Bhagavad-Gita, um dos textosespirituais mais belos e profundos da ndia.

    Logo depois de me mudar para a Califrnia, constatei que AlanWatts era um dos heris da contracultura, e que seus livrosestavam presentes nas estantes da maioria das comunidadeshippies, juntamente com os de Carlos Castaeda, J.Krishnamurti e Hermann Hesse. Embora eu tivesse feito leiturassobre a filosofia e a religio do Oriente antes de ler Watts, foiele quem mais me ajudou a compreender sua essncia. Seuslivros me levaram at onde um livro pode levar, estimulando-mea ir adiante por meio da experincia direta no-verbal. Aindaque Watts no fosse um erudito do porte de um D. T. Suzuki oude certos outros autores orientais mais conhecidos, possua odom nico e singular de ser capaz de descrever osensinamentos orientais em linguagem ocidental, e de um modoleve, inteligente, elegante e cheio de humor e sagacidade.

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    interessantes e expressivas. (Foi no Catalyst que vi CarlosCastaeda dando uma palestra informal sobre suas aventurascom Don Juan, o mtico sbio yaqui, pouco depois de ele haver escrito seu primeiro livro.)

    Depois de trocar a Califrnia por Londres, em 1970, continueimantendo contato com Watts, e quando escrevi A Dana deXiva meu primeiro artigo sobre os paralelos entre a fsicamoderna e o misticismo oriental , ele foi um dos primeiros a

    receber uma cpia. Recebi dele uma carta muito encorajadora,dizendo que considerava esse um campo importantssimo deinvestigao. Sugeriu tambm alguns textos budistas e pediuque eu o mantives-

    [20]

    se informado de meus progressos. Desgraadamente foi nossoltimo contato. No decorrer de todo o meu trabalho em Londreseu ansiava por rever Alan Watts pensava sempre no dia emque voltaria para a Califrnia a fim de discutir com ele sobre omeu livro , mas ele faleceu um ano antes de eu terminar Otao da fsica.

    J. Krishnamurti

    Um dos primeiros contatos diretos que tive com aespiritualidade do Oriente foi meu encontro com J. Krishnamurtino final de 1968. Quando ele proferiu uma srie de palestras na

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    UC de Santa Cruz, estava com setenta e trs anos e a suaaparncia era absolutamente estonteante. Seus traos indianosbem marcados, o contraste entre a pele escura e os cabelosbrancos impecavelmente penteados, a elegncia dos trajeseuropeus, a dignidade do semblante, o ingls medido e perfeito,e acima de tudo a intensidade da concentrao e dapresena dele deixaram-me encantado e perplexo. Osensinamentos de Don Juan, de Carlos Castaeda, acabara deser publicado, e ao ver Krishnamurti no pude deixar decomparar sua aparncia com a da figura mtica do sbio yaqui.

    O impacto do carisma e da aparncia fsica de Krishnamurti foiintensificado e aprofundado pelas coisas que disse. Pensador muito original, rejeitava toda autoridade espiritual e todas astradies espirituais. Seus ensinamentos eram muito

    semelhantes aos do budismo, mas ele jamais empregavaalgum termo budista ou de qualquer outro ramo de pensamentotradicional do Oriente. A tarefa a que se propusera (usar alngua e o raciocnio racional para levar seus ouvintes alm dalinguagem e do uso da razo) era extremamente difcil, mas omodo como ele se desincumbia dela era impressionante.

    Krishnamurti escolhia algum problema existencial bemconhecido medo, desejo, morte, tempo como tpico deuma palestra, e principiava a falar usando palavras parecidascom estas: Entremos nisso juntos. No vou lhes dizer nada;no possuo autoridade alguma; vamos explorar essa questo juntos. Em seguida, mostrava a futilidade de todos os modos

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    convencionais para se eliminar, por exemplo, o medo, eperguntava, lenta e intensamente, com um senso acurado doimpacto dramtico de suas palavras: possvel que vocs,neste exato momento, aqui neste lugar, possam se livrar domedo? No suprimi-lo, no neg-lo, nem opor resistncia a ele,mas sim elimin-lo de uma vez por todas? Esta ser a nossatarefa hoje noite: eliminarmos o medo por completo, de umavez por todas. Se no conseguirmos isso, minha palestra tersido em vo.

    A cena j estava armada; a platia, arrebatada, dominada peloenlevo, e absolutamente atenta. Examinemos ento aquesto, prosseguia Knshna-

    [21]

    murti, sem julgarmos, sem condenarmos, sem justificarmos. Oque o medo? Examinemos isso juntos, vocs e eu. Vejamosse conseguimos realmente nos comunicar, estar no mesmoplano, na mesma intensidade, no mesmo momento. Usando-mecomo espelho, ser que vocs conseguiro encontrar aresposta a esta pergunta extraordinariamente importante: o que o medo? E Krishnamurti passava ento a tecer uma teiaimaculada de conceitos. Mostrava que, para compreendermoso medo, temos de compreender o desejo; que paracompreendermos o desejo, temos de compreender opensamento; e, consecutivamente com o tempo, oconhecimento, o ser, e assim por diante. Apresentava umaanlise brilhante de como tais problemas existenciais bsicos

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    esto interrelacionados no na teoria, mas na prtica.Krishnamurti no s confrontava cada membro da platia comos resultados da sua anlise, como tambm instava econvencia cada um a se envolver no processo de anlise. Nofinal, ficava uma sensao ntida e forte de que o nico meiopara se resolver qualquer um de nossos problemas existenciais ir alm do pensamento, alm da linguagem, alm do tempo libertar-se do conhecido, como diz no ttulo de um de seusmelhores livros,Freedom from the known.

    Lembro-me de que fiquei fascinado, mas tambmprofundamente perturbado, com as palestras de Krishnamurti.Aps cada uma delas, Jacqueline e eu permanecamosacordados durante vrias horas, sentados junto nossa lareira,discutindo o que Krishnamurti dissera. Esse foi meu primeiro

    encontro direto com um mestre espiritual radical, e logo me viem face de um grave problema. Eu mal iniciara uma promissoracarreira cientfica, com que estava bastante envolvidoemocionalmente, e ento vinha Krishnamurti, com todo o seucarisma e persuaso, dizendo para eu parar de pensar, para eume libertar de todo o conhecimento, para eu deixar o raciocnio

    lgico para trs. O que isso significava no meu caso? Deveriadesistir da carreira cientfica nesse estgio inicial, ou deveriacontinu-la, abandonando toda esperana de alcanar a auto-realizao espiritual?

    Eu ansiava por me aconselhar com Krishnamurti, porm eleno permitia nenhuma pergunta em suas palestras e recusava-

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    se a receber quem quer que fosse depois delas. Fizemosdiversas tentativas para v-lo, mas foi-nos dito, com firmeza,que Krishnamurti no queria ser perturbado. Foi uma felizcoincidncia ou no? que finalmente nos propiciou umencontro com ele. Krishnamurti tinha um secretrio francs e,aps a ltima palestra, Jacqueline, que nasceu em Paris,conseguiu estabelecer um dilogo com esse homem. Eles seentenderam bem e, como resultado, terminamos por nosencontrar com Krishnamurti em seu apartamento na manhseguinte.

    Senti-me um tanto intimidado quando finalmente vi o mestrecara a cara, mas no quis perder tempo. Eu sabia por queestava ali. Como posso ser um cientista, perguntei-lhe, eainda assim seguir seu conselho para interromper o

    pensamento e libertar-me do conhecido? Krishnamurti nohesitou sequer um instante. Ele respondeu a minha perguntaem dez segundos, e de um modo que resolveu completamenteo meu problema. Primeirovoc um ser humano, disse ele,e depois um cientista. Antes voc tem de se

    [22]

    tornar livre, e essa liberdade no pode ser atingida por meio dopensamento. Ela atingida pela meditao a compreensoda totalidade da vida, em que cessam todas as formas defragmentao. Uma vez que eu alcanar tal compreenso davida como um todo, explicou, poderia me especializar etrabalhar como cientista sem problema algum. E evidentemente

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    nem se cogitava na abolio da cincia. Passando para ofrancs, Krishnamurti acrescentou: J'adore la science. C'est merveilleux!

    Aps esse rpido mas decisivo encontro, s vi Krishnamurti denovo seis anos depois, ao ser convidado, juntamente comvrios outros cientistas, a participar de uma semana dediscusses com ele em seu centro educacional no BrockwoodPark, ao sul de Londres. Sua aparncia ainda era

    extremamente marcante, embora houvesse perdido um poucoda intensidade. No decorrer daquela semana fiquei conhecendoKrishnamurti muito melhor, inclusive alguns de seus defeitos.Quando falava, ele ainda era muito poderoso e carismtico,mas fiquei desapontado pelo fato de jamais podermosrealmente inclu-lo numa discusso. Ele falaria, mas no se

    disporia a ouvir. Por outro ladq, mantive muitas discussesexcitantes com meus colegas cientistas David Bhm, KarlPribram e George Sudarshan, entre outros.

    Depois disso praticamente perdi contato com Krishnamurti.Nunca deixei de reconhecer sua influncia decisiva sobre mim,e com freqncia ouvia falar dele por meio de vrias pessoas;

    porm, no compareci a nenhuma outra palestra sua, nem liqualquer um de seus outros livros. Ento, em janeiro de 1983,me vi em Madrasta, no sul da ndia, participando de umaconferncia da Sociedade Teosfica Mundial, que ficava emfrente propriedade de Krishnamurti. Como ele estava l e iadar uma palestra naquela noite, resolvi aparecer para

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    apresentar-lhe meus cumprimentos. O belssimo parque, comsuas gigantescas rvores seculares, estava repleto de gente,quase todos indianos, sentados em silncio no cho,aguardando o incio de um ritual de que a maioria j participaramuitas vezes antes. s oito horas Krishnamurti apareceu,vestido com trajes indianos, e caminhou lentamente mas comenorme segurana at uma plataforma que fora erguida. Foimaravilhoso v-lo, aos oitenta e oito anos de idade, fazendosua entrada como durante mais de meio sculo, subindo asescadas da plataforma sem ajuda de ningum, sentando-senuma almofada, e unindo as mos no tradicional cumprimentoindiano para iniciar sua palestra.

    Krishnamurti falou durante setenta e cinco minutos semnenhuma hesitao, e quase com a mesma intensidade que eu

    presenciara quinze anos antes. O tpico dessa noite era odesejo, e ele teceu sua teia com a clareza e habilidade desempre. Foi uma oportunidade nica para eu avaliar a evoluode meu prprio entendimento desde a poca em que oconhecera, e senti pela primeira vez que eu realmentecompreendia seu mtodo e sua personalidade. A sua anlise do

    desejo foi bela e cristalina. A percepo causa uma reaosensorial, disse ele; o pensamento ento intervm Euquero..., Eu no quero..., Eu desejo... , e assim geradoo desejo. O desejo no causado pelo objeto de desejo, maspersistir com diversos objetos enquanto intervier o pen-

    [23]

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    pensamento sem abandonar um compromisso com a cincia?Esse , acredito, o motivo pelo qual tantos de meus colegassentiram-se ameaados por minhas comparaes entre a fsicae o misticismo. Talvez lhes seja proveitoso saber que eutambm j senti a mesma ameaa. E a senti com todo o meuser. No entanto, isso foi no incio de minha carreira, e tive umaenorme felicidade: a mesma pessoa que me fez perceber aameaa foi tambm a que me ajudou a transcend-la.

    Paralelos entre a fsica e o misticismo

    Ao travar meu primeiro contato com as tradies do Oriente,descobri paralelos entre a fsica moderna e o misticismooriental quase que imediatamente. Lembro-me de haver lido em

    Paris um livro francs sobre o zen-budismo, por meio do qualfiquei conhecendo pela primeira vez o importante papel doparadoxo nas tradies msticas. Aprendi que os mestresespirituais do Oriente no raro recorrem, com grandehabilidade, a enigmas paradoxais para fazer seus estudantesperceberem as limitaes da lgica e do uso da razo. A

    tradio zen, em particular, desenvolveu um sistema deinstrues no-verbais que utiliza enigmas primeira vista semsentido, chamados koans,que no podem ser resolvidos peloraciocnio. Eles visam precisamente interromper o processo depensamento, preparando assim o estudante para umaexperincia no-verbal da realidade. Li que todos os koans tm

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    solues mais ou menos peculiares que um mestre competentelogo reconhece. Uma vez encontrada a soluo, o koan deixade ser paradoxal e torna-

    [24]

    se uma assero muito significativa, feita a partir do estado deconscincia que ele prprio ajudou a despertar.

    Quando li pela primeira vez a respeito do mtodo dos koans notreinamento zen, senti algo estranhamente familiar. Eu passaramuitos anos estudando outro tipo de paradoxo que pareciadesempenhar papel semelhante no treinamento dos fsicos.Havia diferenas, claro. A minha prpria formao como fsicocom certeza no tinha a mesma intensidade de um treinamentozen. Lembrei-me do relato de Heisenberg sobre o modo comoos fsicos dos anos 20 vivenciaram os paradoxos qunticos,esforando-se para compreender uma situao onde o nicomestre era a natureza. O paralelo mostrou-se bvio efascinante, e posteriormente, quando j havia aprendido maissobre o zen-budismo, verifiquei que era de fato muitosignificativo. Como no zen, as solues dos problemas dosfsicos permaneciam ocultas em paradoxos que no podiam ser resolvidos pelo raciocnio lgico, mas apenas entendidos emtermos de uma nova capacidade perceptiva que incorporasse arealidade atmica. Os fsicos s tinham a natureza para lhesensinar. E ela, como os mestres do zen-budismo, no afirmavanada; apenas apresentava os enigmas.

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    A similaridade entre as experincia dos fsicos qunticos e doszen-budistas marcou-me profundamente. Todas as descriesdo mtodo koan enfatizam que a resoluo de tal enigma exigeum esforo supremo de concentrao e de envolvimento daparte do estudante. O koan, diz-se, toma conta do corao e damente do aluno, criando um verdadeiro impasse mental, umestado de tenso constante em que o universo inteiro se tornauma enorme massa de dvidas e indagaes. Quandocomparei essa descrio com aquela passagem do livro deHeisenberg, de que eu me lembrava to bem, tive a ntidasensao de que os fundadores da teoria quntica vivenciaramexatamente a mesma situao:

    Lembro-me de discusses com Bohr que se prolongavam por muitas horas, at alta madrugada, e terminavam num estado

    que beirava o desespero. E quando, ao final de uma discusso,eu saa sozinho para passear num parque das redondezas,ficava me perguntando sem parar: 'Pode a natureza ser assimto absurda quanto nos parece em nossos experimentosatmicos?'

    Tempos depois, eu tambm vim a compreender por que os

    fsicos qunticos e os msticos orientais depararam comproblemas semelhantes e passaram por experinciassemelhantes. Sempre que a natureza essencial das coisas analisada pelo intelecto, ela parecer absurda ou paradoxal.Isso foi sempre reconhecido pelos msticos, mas s muitorecentemente tornou-se um problema para a cincia. Durante

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    sculos, os fenmenos estudados pela cincia faziam parte domundo cotidiano dos cientistas e, portanto, pertenciam aodomnio da sua experincia sensorial. Como as imagens econceitos da linguagem que usavam provinham exatamentedessa experincia dos sentidos, eles eram suficientes eadequados para descrever os fenmenos naturais.

    [25]

    No sculo XX, contudo, os fsicos penetraram a fundo no

    mundo submicroscpico, em regies da natureza muitoafastadas do mundo macroscpico em que vivemos. O nossoconhecimento da matria nesse nvel j no provm daexperincia sensorial direta; em conseqncia, a linguagemcomum j no mais adequada para descrever os fenmenosobservados. Os fsicos nucleares proporcionaram aos cientistas

    os primeiros vislumbres da natureza essencial das coisas.Como os msticos, os fsicos passaram a lidar com experinciasno-sensoriais da realidade e, tambm como eles, tiveram deenfrentar os aspectos paradoxais dessas experincias. A partir desse momento, os modelos e as imagens da fsica modernatornaram-se vinculados aos da filosofia oriental.

    A descoberta do paralelismo entre os koans do zen e osparadoxos da fsica quntica, que eu mais tarde chamaria dekoans qunticos, estimularam muito meu interesse pelomisticismo oriental, aguando minha ateno. Nos anosseguintes, medida que me envolvia mais na espiritualidadeoriental, deparava repetidas vezes com conceitos que me eram

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    relativamente familiares em virtude de minha formao emfsica atmica e subatmica. A princpio, a descoberta dessassimilaridades no foi muito mais que um exerccio intelectual,ainda que muito emocionante. Mas ao entardecer de um dia devero de 1969, vivi uma poderosa experincia que me fez levar os paralelos entre a fsica e o misticismo muito mais a srio. Amelhor descrio dessa experincia a que est na pginainicial deO tao da fsica:

    Eu estava sentado na praia, ao cair de uma tarde de vero, eobservava o movimento das ondas, sentindo ao mesmo tempoo ritmo da respirao. Nesse momento, de sbito, apercebi-meintensamente do ambiente que me cercava: este se meafigurava como se participasse de uma gigantesca danacsmica. Como fsico, eu sabia que a areia, as rochas, a gua e

    o ar a meu redor eram feitos de molculas e tomos emvibrao, e que tais molculas e tomos, por seu turno,consistiam em partculas que interagiam entre si por meio dacriao e da destruio de outras partculas. Sabia do mesmomodo que a atmosfera da Terra era permanentementebombardeada por chuvas de 'raios csmicos', partculas de alta

    energia que sofriam mltiplas colises medida quepenetravam na atmosfera. Tudo isso me era familiar em razode minha pesquisa em fsica de alta energia; at aquelemomento, porm, tudo isso me chegara apenas por intermdiode grficos, diagramas e teorias matemticas. Sentado napraia, senti que minhas experincias anteriores adquiriam vida.

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    Assim, 'vi' cascatas de energia csmica, provenientes doespao exterior, cascatas em que, com pulsaes rtmicas,partculas eram criadas e destrudas. 'Vi' os tomos doselementos bem como aqueles pertencentes a meu prpriocorpo participarem dessa dana csmica de energia. Senti oseu ritmo e 'ouvi' o seu som. Nesse momento compreendi quese tratava da Dana de Xiva, o deus dos danarinos, adoradopelos hindus.

    [26]No final de 1970, o meu visto americano venceu e tive de voltar para a Europa. No tinha certeza de onde queria prosseguir minhas pesquisas, de modo que planejei visitar os melhoresinstitutos e universidades do meu campo, sempreestabelecendo contato com pessoas que eu conhecia, a fim de

    obter uma bolsa de pesquisa ou algum outro tipo de posio.Minha primeira parada foi Londres, onde desembarquei emoutubro, ainda hippie de corao. Quando entrei na sala de P.T. Matthews, fsico especialista em partculas subatmicas queeu conhecera na Califrnia e que era agora o chefe da divisode teoria do Imperial College, a primeira coisa que vi foi um

    pster gigante de Bob Dylan. Interpretei isso como um bomaugrio, decidindo na mesma hora que iria permanecer emLondres, e Matthews afirmou que ficaria muito feliz em mereceber no Imperial College. Nunca lamentei essa deciso, queresultou na minha estada em Londres por quatro anos embora os primeiros meses aps minha chegada tenham sido,

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    talvez, os mais difceis de minha vida.

    O final de 1970 foi para mim uma poca difcil de transio.Comeava uma longa srie de dolorosas separaes de minhaesposa, que eventualmente terminaria em divrcio. Eu notinha amigos em Londres, e logo verifiquei que seria impossvelobter qualquer tipo de bolsa de pesquisa ou posioacadmica, pois j havia iniciado minha busca de um novoparadigma e no estava disposto a abandon-la para aceitar os

    limites estreitos de um cargo acadmico de dedicao integral.Foi durante essas primeiras semanas em Londres, quando meumoral esteve mais baixo do que jamais estivera, que tomei adeciso que deu minha vida uma nova direo.

    Pouco antes de deixar a Califrnia eu concebera umafotomontagem uma figura de Xiva danando sobreposta as

    trilhas de partculas em coliso numa cmara de bolhas parailustrar minha experincia de dana csmica na praia. Certodia, sentado em meu minsculo quarto perto do ImperialCollege, olhei para essa linda imagem e de sbito percebi algomuito claramente. Soube, com certeza absoluta, que osparalelos entre a fsica e o misticismo, que eu apenas

    comeara a descobrir, um dia se tornariam o saber comum; esoube que ningum estava em melhor posio do que eu paraexplorar esses paralelos a fundo e escrever um livro a respeitodisso. Decidi naquele instante e lugar escrever esse livro; masdecidi tambm que ainda no estava preparado para faz-lo.Deveria primeiro estudar o meu assunto mais a fundo e publicar

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    alguns artigos sobre ele, e s depois escrever o livro.

    Encorajado por essa resoluo, peguei a fotomontagem, quepara mim continha uma afirmao intensa e profunda, e levei-aat o Imperial College a fim de mostr-la para um colegaindiano com quem eu dividia um escritrio. Quando lhe mostreia fotomontagem, sem fazer nenhum comentrio, ele ficou muitocomovido e, espontaneamente, comeou a recitar versossagrados em snscrito que lembrava da infncia. Disse-me que

    fora criado na religio hindu, mas que esquecera tudo dessaherana espiritual quando sofreu uma lavagem cerebral, emsuas palavras, da cincia ocidental. Ele prprio jamais teriaconcebido paralelos entre a fsica das partculas e o hindusmo,afirmou, mas ao ver minha fotomontagem eles se tornaramimediatamente evidentes.

    Nos dois anos e meio seguintes, empreendi um estudosistemtico do hin-

    [27]

    dusmo, do budismo e do taosmo, e dos paralelos que eu viaentre as idias bsicas dessas tradies msticas e as teorias e

    conceitos bsicos da fsica moderna. Nos anos 60, euexperimentara diversas tcnicas de meditao e lera vrioslivros sobre o misticismo oriental sem de fato me dispor a seguir qualquer um de seus caminhos. Mas agora, estudando astradies do Oriente com mais cuidado, senti-meparticularmente atrado pelo taosmo.

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    modo que o taosmo, de forma bastante natural, tornou-se paramim o caminho a ser seguido.

    Castaeda tambm exerceu forte influncia sobre mimnaqueles anos, e seus livros mostraram-me mais uma maneirade abordar os ensinamentos espirituais do Oriente. Constateique os ensinamentos das tradies ndias americanas,expressos pelo lendrio brujo yaqui Don Juan, esto muitoprximos aos da tradio taosta transmitidos pelos lendrios

    sbios Lao-Tse e Chuang-Tzu. O saber-se imerso no fluir natural das coisas e a habilidade de agir em harmonia com issoso fundamentais em ambas as tradies. Enquanto o sbiotaosta flui na corrente do Tao, o homem de sabedoria yaqui tem de ser leve e fluido para enxergar a natureza essencialdas coisas.

    O taosmo e o budismo sao tradies que lidam com a prpriaessncia da espiritualidade, que no restrita a nenhumacultura em particular. O budismo, em especial, tem mostradoem toda a sua histria ser adaptvel a diversas situaesculturais; Ele se originou com o Buda na ndia, espalhou-sepela China e sudoeste da sia, chegou ao Japo e, muitos

    sculos depois, atravessou o Pacfico, desembarcando naCalifrnia. A influncia mais forte da tradio budista sobre omeu pensamento foi sua nfase no papel vital da compaixo

    [28]

    para se obter sabedoria. De acordo com o pensamento budista,

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    no pode haver sabedoria sem compaixo, o que para mimsignifica que a cincia no tem valor se no for acompanhadade preocupao social.

    Ainda que 1971 e 1972 tenham sido anos muito difceis paramim, foram tambm cheios de emoo. Continuei a viver metade do tempo como fsico e metade como hippie, e adesenvolver pesquisas em fsica ds partculas no ImperialCollege, paralelamente s minhas outras pesquisas de maior

    abrangncia, agora mais organizadas e sistemticas. Conseguiobter vrios empregos de meio-perodo ensinava fsica dealta energia a um grupo de engenheiros, traduzia textostcnicos do ingls para o alemo, lecionava matemtica acolegiais que me proporcionavam dinheiro suficiente parasobreviver, mas no me permitiam nenhum luxo material. Minha

    vida durante esses dois anos foi muito semelhante de umperegrino; seus luxos e alegrias no eram os do plano material.O que fez com que eu conseguisse atravessar esse perodo foiuma crena forte nas minhas idias e a convico de queminha persistncia seria eventualmente recompensada.Durante esses dois anos, ccmservei sempre uma citao do

    mestre taosta Chuang-Tzu pregada na parede: Busquei umsoberano que me empregasse por um longo tempo. Que euno o tenha encontrado mostra o carter do tempo.

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    Fsica e contracultura em Amsterdam

    No vero de 1971 realizou-se uma conferncia internacional de

    fsica em Amsterdam, de que eu ansiava muito participar por dois motivos: queria continuar mantendo contato com osprincipais pesquisadores em meu campo; alm disso, nacontracultura Amsterdam era famosa por ser capital hippie daEuropa, e eu vi a reunio como uma excelente oportunidadepara conhecer melhor o movimento europeu. Inscrevi-me a fim

    de ser convidado para a conferncia como parte da equipe querepresentava o Imperial College, mas disseram-me que onmero de vagas dessa equipe j estava completo. Como euno tinha dinheiro para pagar a viagem, as despesas de hotel ea taxa de inscrio, decidi viajar para Amsterdam do modocomo me habituara a fazer na Califrnia: de carona. Seguiriaprimeiro para o sul at o Canal da Mancha, atravessando-onuma balsa barata at Oostende e, depois de passar pelaBlgica, chegaria Holanda e a Amsterdam.

    Guardei meu terno, algumas camisas, um par de sapatos decouro e documentos de fsica numa mochila, pus meus jeansremendados, sandlias e uma camisa florida, e botei o p naestrada. O tempo estava magnfico, e adorei viajar sem pressapela Europa dessa maneira, conhecendo muitas pessoas evisitando lindas aldeias antigas pelo caminho. A experincia quemais se sobressaiu nessa viagem, a primeira na Europa depoisde dois anos de Califrnia, foi me dar conta de quanto asfronteiras nacionais europias so divises artificiais. Reparei

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    que a lngua, os costumes e as caractersticas fsicas daspessoas no mudam de maneira abrupta nas fronteiras, e simgradual, e notei que as pessoas de ambos os lados das divisasfreqentemente tinham muito mais em

    [29]

    comum umas com as outras do que, digamos, com oshabitantes da capital de seu pas. Hoje essa percepo estformalizada no programa poltico de uma Europa das Regies

    proposto pelo Movimento Verde europeu.A semana que passei em Amsterdam foi o apogeu da minhavida esquizofrnica comohippie e fsico. Durante o dia colocavao terno e ficava discutindo problemas de fsica subatmica commeus colegas na conferncia (em que tinha de entrar sorrateiramente todos os dias por no ter como pagar a taxa deinscrio). A noite, vestia minhas roupas hippies e freqentavaos cafs, as praas e as casas flutuantes de Amsterdam,levando depois meu saco de dormir a um dos parques dacidade, juntamente com outras centenas de jovens vindos detoda a Europa no mesmo estado de esprito. Fiz isso, em parte,porque no tinha dinheiro para um hotel, mas tambm porquequeria participar plenamente dessa excitante comunidadeinternacional.

    Amsterdam era uma cidade fabulosa naqueles dias. Os hippieseram um novo tipo de turista. Vindos de toda a Europa e dosEstados Unidos, visitavam a cidade no para ver o Palcio Real

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    ou os quadros de Rembrandt, mas para se encontrar, estar juntos. Um grande atrativo era o fato de a maconha e o haxixeserem tolerados a ponto de se tornarem virtualmente legais;porm a atrao dessa linda cidade ia muito alm. Havia entreos jovens um desejo genuno de se conhecer e partilhar experincias e vises novas e radicais de um futuro diferente.Um dos pontos de encontro mais populares era um lugar enorme chamado Via Lctea. Havia ali um restaurantevegetariano e uma discoteca, alm de todo um andar comgrossos tapetes, luz de velas e cheiro de incenso, onde aspessoas se sentavam em grupos para fumar e conversar. NaVia Lctea era possvel passar horas discutindo o budismomaaiana, os ensinamentos de Don Juan, os melhores locais doMarrocos para se comprarem contas de vidro, ou a ltima peado Living Theatre. A Via Lctea lembrava um lugar sadodiretamente de um livro de Hesse, animado pela criatividade,herana cultural, emoes e fantasias de seus prpriosfreqentadores.

    Certa vez, por volta da meia-noite, eu estava sentado nosdegraus de entrada da Via Lctea com alguns amigos italianos

    quando subitamente as duas realidades distintas da minha vidacolidiram. Um grupo de turistas comuns vinha se aproximandodos degraus onde eu estava sentado e, ao chegarem maisperto, pude reconhecer, no sem horror, os fsicos com quemestivera discutindo naquele mesmo dia. O choque entre asrealidades foi maior do que pude suportar. Ergui minha jaqueta

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    de l at cobrir as orelhas e escondi a cabea nos ombros damoa sentada ao meu lado, esperando que meus colegas,agora distantes poucos passos de mim, terminassem seuscomentrios sobre os hippies malucos e fora da realidade epartissem.

    A Dana de Xiva

    No final da primavera de 1971, senti-me preparado paraescrever meu primeiro artigo sobre os paralelos entre a fsicamoderna e o misticismo oriental.

    [30]

    O artigo girava em torno da minha experincia da danacsmica e da foto-montagem que ilustrava a experincia, e dei-lhe o ttulo de A Dana de Xiva: a concepo hindu da matria luz da fsica moderna. O artigo foi publicado emMainCurrents in Modern Thought, um belo peridico dedicado apromover estudos interdisciplinares e integradores.

    Ao mesmo tempo em que oferecia meu artigo para publicao

    no Main Currents, enviei cpias dele para alguns dos principaisfsicos tericos que a meu ver estavam abertos aconsideraes filosficas. As reaes variaram muito: a maioriafoi cautelosa, mas algumas, muito encorajadoras. Sir BernardLovell, o famoso astrnomo, escreveu: Sua tese e suasconcluses me so inteiramente simpticas... Parece-me que a

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    questo toda de importncia fundamental. O fsico JohnWheeler observou: Sente-se que os pensadores do Orientesabiam de tudo, e que se pudssemos traduzir suas idias paraa nossa linguagem teramos respostas a todas as nossasperguntas. A resposta que mais me agradou veio, porm, deWerner Heisenberg: Sempre fui fascinado pelas relaes entreos antigos ensinamentos do Oriente e as conseqnciasfilosficas da teoria quntica moderna.

    Conversas com Heisenberg

    Alguns meses depois fui visitar meus pais em Innsbruck. Comoeu sabia que Heisenberg morava em Munique, a uma hora decarro, e como eu me sentira muito encorajado pela sua carta,

    escrevi-lhe perguntando se poderia visit-lo. Telefonei-lhequando cheguei a Innsbruck, e ele disse que ficaria muitocontente em me receber.

    A 11 de abril de 1972, fui para Munique encontrar-me com ohomem que exercera uma influncia decisiva em minha carreiracientfica e em meus interesses filosficos, o homem que era

    considerado um dos gigantes intelectuais do nosso sculo.Heisenberg recebeu-me em seu escritrio no Instituto MaxPlanck. Ao sentar-me cara a cara com ele diante da sua mesa,fiquei imediatamente impressionado. Ele usava um ternoimpecvel, e sua gravata estava presa camisa por um alfineteque formava a letra h, smbolo da constante de Planck, a

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    constante fundamental da fsica quntica. Fui notando essesdetalhes pouco a pouco durante nossa conversa. Logo deincio, o que mais me impressionou foram os lmpidos olhosazul-acinzentados de Heisenberg, olhos atentos que revelavamgrande clareza mental, plena presena, compaixo e serenodesprendimento. Pela primeira vez na vida senti que estavaface a face com um dos grandes sbios da minha prpriacultura.

    Iniciei a conversa perguntando-lhe at que ponto ele aindaestava envolvido com a fsica, e ele me disse que desenvolviaum programa de pesquisas com um grupo de colegas, ia aoinstituto todos os dias e acompanhava com grande interesse aspesquisas em fsica fundamental que se fazia pelo mundo todo.Quando lhe perguntei que tipo de resultados ele ainda esperava

    alcanar, Heisenberg exps-me um breve esboo das metas deseu programa de pesquisas, acrescentando porm que sentiatanto prazer no processo de pesquisa quanto

    [31]

    em atingir essas metas. Tive a ntida sensao de que essehomem desenvolvera sua disciplina ao ponto da auto-realizao plena.

    O mais admirvel desses primeiros minutos de conversa foi ofato de eu ter me sentido completamente vontade. No haviao menor vestgio de pompa ou pose; nem por um segundoHeisenberg me fez sentir a diferena existente entre as nossas

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    condies. Passamos a discutir os mais recentes avanos dafsica das partculas e, para meu assombro, vi-mecontradizendo Heisenberg poucos minutos depois. Meussentimentos iniciais de pasmo e reverncia haviam cedido lugar excitao intelectual que se apossa de ns numa boadiscusso. Havia plena igualdade dois fsicos que discutiamidias mais instigantes a seu ver na cincia que amavam.

    Naturalmente nossa conversa logo voltou-se para os anos 20, e

    Heisenberg me entreteve com vrios casos fascinantes daquelapoca. Percebi que ele amava falar sobre fsica e relembrar aqueles anos emocionantes. Descreveu-me, por exemplo, emcores vivas, as discusses entre Erwin Schrdinger e NielsBohr quando o primeiro visitou Copenhague em 1926 paraapresentar, no instituto de Bohr, sua recm-descoberta

    mecnica ondulatria, incluindo a clebre equao que leva seunome. A mecnica ondulatria de Schrdinger era umformalismo contnuo, que utilizava tcnicas matemticasfamiliares, ao passo que a interpretao que Bohr fazia dateoria quntica se baseava na mecnica matricial descontnua epouqussimo ortodoxa de Heisenberg, uma mecnica que

    envolvia os chamados saltos qunticos.Heisenberg contou-me que Bohr tentara convencer Schrdinger dos mritos da interpretao descontnua em longos debatesque no raro tomavam dias inteiros. Num desses debatesSchrdinger exclamou com grande frustrao: Se for precisoaceitar esses malditos saltos qunticos, ento lastimo haver me

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    envolvido nessa histria toda. Bohr, entretanto, continuouinsistindo e repreendendo Schrdinger to intensamente queeste acabou por adoecer. Lembro-me bem, prosseguiuHeisenberg com um sorriso, do pobre Schrdinger deitadonuma cama na casa de Niels, com a sra. Bohr servindo-lhe umprato de sopa, enquanto ele, sentado em sua cama, insistia:'Mas, Schrdinger, voc tem de admitir...'

    Quando falamos sobre os fatos que levaram Heisenberg a

    formular o princpio de indeterminao, ele me contou uminteressante detalhe que eu no lera em nenhum relato escritosobre aquele perodo. Disse que, no incio dos anos 1920, NielsBohr sugeriu-lhe, durante uma de suas longas conversasfilosficas, que eles talvez houvessem atingido os limites doentendimento humano no domnio do infinitamente pequeno.

    Talvez, ponderou Bohr, os fsicos jamais seriam capazes deencontrar um formalismo preciso que descrevesse osfenmenos atmicos. Heisenberg arrematou, com um sorrisoevanescente e o olhar perdido em lembranas, que fora seugrande triunfo pessoal poder provar que Bohr estava erradonesse aspecto.

    Enquanto Heisenberg me contava essas histrias, notei que Oacaso e a necessidade, de Jacques Monod, estava em cima daescrivaninha; como eu tambm acabara de l-lo com grandeinteresse, fiquei muito curioso para ouvir

    [32]

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    inconscientemente, pela filosofia indiana.

    Em 1929, Heisenberg passou um certo tempo na ndia comoconvidado do clebre poeta indiano Rabindranath Tagore, comquem manteve longas conversas sobre cincia e filosofiaindiana. Essa introduo ao pensamento indiano lhe trouxeraum grande conforto, contou-me Heisenberg. Ele comeou a ver que o reconhecimento da relatividade, da interrelaode todasas coisas e da no-permanncia como aspectos fundamentais

    da realidade fsica um reconhecimento que fora to difcilpara ele mesmo e para seus colegas fsicos era a prpriabase das tradies espirituais indianas. Depois daquelasconversas com Tagore, disse ele, algumas idias que haviamparecido to loucas passaram de sbito a ter muito maissentido. Isso foi de grande ajuda para mim.

    A essa altura no pude deixar de abrir o corao a Heisenberg.Contei-lhe que eu deparara os paralelos entre a fsica e omisticismo h muitos anos, que comeara a estud-lossistematicamente e que estava convencido de que essa erauma importante linha de pesquisa. Todavia, no conseguiraobter nenhum apoio financeiro da comunidade cientfica, e

    verificara que trabalhar sem tal apoio era difcil e desgastanteao extremo. Heisenberg sorriu: Tambm sou sempre acusadode entrar demais em filosofia. Quando lhe mostrei que nossassituaes eram bastante distintas, ele manteve seu sorrisocaloroso e disse: Sabe, voc e eu somos fsicos de um tipodiferente. De vez em quando, porm, temos de uivar com os

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    lobos1 [Expresso alem equivalente a correr com o bando.].Essas palavras extremamente amveis de Werner Heisenberg Voc e eu somos fsicos de um tipo diferente

    [33]

    ajudaram-me, talvez mais do que tudo, a perseverar e manter af em momentos difceis.

    Escrevendo O tao da fsicaAo voltar para Londres, continuei com renovado entusiasmomeu estudo das filosofias orientais e de sua relao com afilosofia da fsica moderna. Ao mesmo tempo, comecei apreparar uma apresentao dos conceitos da fsica modernapara um pblico leigo. Na realidade, naquela poca tentei levar a cabo esses dois objetivos separadamente, pois achei quetalvez fosse possvel publicar minha apresentao da fsicamoderna como um manual antes de escrever o livro sobre osparalelos com o misticismo oriental. Enviei os primeiroscaptulos desse manuscrito a Victor Weisskopf, que no sum fsico famoso como tambm um extraordinrio divulgador eintrprete da fsica moderna. Recebi uma resposta muitoencorajadora. Weisskopf disse que estava impressionado comminha capacidade de apresentar os conceitos da fsicamoderna em linguagem nao-tcnica, e insistiu para eu levar adiante o projeto, que ele considerava muito importante.

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    Durante o ano de 1972, houve tambm oportunidades para euapresentar minhas idias sobre os paralelos entre a fsicamoderna e o misticismo oriental a diversas platias de fsicos notadamente num seminrio internacional de fsica na ustria enuma palestra especial que proferi no CERN (o institutoeuropeu de pesquisas em fsica subatmica localizado emGenebra). O fato de eu ser convidado para dar uma confernciasobre minhas idias filosficas numa instituio to prestigiosasignificava um certo reconhecimento de meu trabalho, mas areao da maioria dos meus colegas fsicos no foi alm de uminteresse polido e algo divertido.

    Em abril de 1973, um ano depois de minha visita a Heisenberg,voltei Califrnia para uma visita de algumas semanas, duranteas quais proferi conferncias na UC de Santa Cruz, em

    Berkeley, e renovei meus contatos com muitos amigos ecolegas do estado. Um desses colegas era Michael Nauenberg,fsico de partculas da UC de Santa Cruz, que eu conhecera emParis e que me convidara a integrar o corpo docente daquelaescola em 1968. Em Paris, e durante meu primeiro ano na UC,Nauenberg e eu fomos bastante ntimos, trabalhando juntos em

    diversos projetos de pesquisa e mantendo uma forte amizadepessoal. Entretanto, medida que eu fui me envolvendo mais emais com a contracultura, passamos a nos ver cada vezmenos, e durante meus dois primeiros anos em Londresacabamos perdendo contato completamente. Agora, estvamosambos contentes de nos rever, e fomos dar uma longa

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    caminhada no bosque de sequias do campus.

    Nesse passeio, contei a Nauenberg sobre meu encontro comHeisenberg, e fiquei surpreso diante de sua empolgaoquando mencionei as conversas de Heisenberg com Tagore eas idias dele acerca da filosofia oriental. Se Heisenberg disseisso, Nauenberg exclamou emocionado, porque deve mes-

    [34]

    mo haver algo, e voc definitivamente tem de escrever um livroa esse respeito. Naquele instante, o grande interesse de meucolega que eu sabia ser um fsico pragmtico e obstinado levou-me a alterar minhas prioridades. Logo que voltei aLondres, abandonei o projeto do livro didtico e decidiincorporar o material que j estava escrito ao texto de O tao dafsica.

    Hoje O tao da fsica um best seller internacional, sendoelogiado com freqncia como um clssico que influencioumuitos outros escritores. Porm, quando planejei escrev-lo, foiextremamente difcil encontrar uma editora. Alguns amigoslondrinos, que eram escritores, sugeriram que antes eu deveria

    procurar um agente literrio, e mesmo isso levou um tempoconsidervel. Quando afinal encontrei um agente queconcordou em aceitar esse projeto pouco comum, ele me disseque precisaria de um sumrio do livro, alm de trs captulos deamostra, para oferecer s possveis editoras. Isso me colocoudiante de um grande dilema. Eu sabia que planejar todo o livro

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    em detalhes, preparar um resumo de seu contedo e escrever trs captulos exigiria muito tempo e esforo. Deveria eudedicar seis meses ou mais a essa tarefa, vivendo do modocomo eu sempre vivera no passado, isto , ganhando meusustento durante o dia com empregos de meio perodo ecomeando meu verdadeiro trabalho ao anoitecer, quando jestava cansado? Ou deveria abandonar todo o resto econcentrar-me apenas no livro? E, nesse caso, de onde tiraria odinheiro para pagar o aluguel e comprar comida?

    Lembro-me de deixar o escritrio de meu agente e me sentar num banco na Leicester Square, no centro de Londres,pesando as possibilidades e tentando encontrar uma soluo.Senti que de algum modo precisava mergulhar de cabea,comprometendo-me em definitivo com minha viso,

    independentemente dos riscos que isso pudesse envolver. Eassim fiz. Decidi deixar Londres por um perodo; mudei para acasa de meus pais em Innsbruck a fim de escrever os trscaptulos, resolvendo que s voltaria a Londres quando tivessecompletado essa tarefa.

    Meus pais ficaram contentes de me ter em casa enquanto eu

    escrevia, embora se sentissem bastante preocupados com asperspectivas de minha carreira. No entanto, aps dois mesesde trabalho concentrado, eu estava pronto para voltar aLondres e oferecer o manuscrito s eventuais editoras. Estavaciente de que isso no resolveria de imediato meu dilemafinanceiro, pois por ora no tinha esperana de receber nenhum

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    adiantamento de editora alguma. Mas ento uma antiga amigade nossa famlia, uma senhora de Viena razoavelmente rica,veio em minha salvao e ofereceu-me apoio financeiro paraque eu me mantivesse por alguns meses. Enquanto isso, meuagente ia apresentando o manuscrito s principais editoras deLondres e Nova York, sendo recusado por todas. Aps cerca deuma dzia de rejeies, uma editora londrina, a WildwoodHouse, pequena mas empreendedora, aceitou a proposta epagou um adiantamento que me permitiu terminar de escrever o livro. Oliver Caldecott, seu fundador, atualmente trabalhandona Hutchinson, tornou-se no apenas meu editor ingls desse ede outros livros subseqentes, mas tambm um bom amigodesde aqueles primeiros dias de O tao da fsica. No

    [35]

    decorrer de sua longa carreira editorial, Caldecott sempre teveuma notvel intuio para novas idias radicais capazes de setornar pilares de todo um pensamento baseado num novoparadigma. Ele no s foi a primeira pessoa a publicar O taoda fsica o melhor dos seus muitos palpites, muitas vezesdiria a mim com orgulho , como tambm o responsvel pela

    publicao na Gr-Bretanha de algumas das obras maisinfluentes mencionadas nestas pginas. A partir do dia em queassinei o contrato com a Wildwood House, minha vidaprofissional deu uma virada decisiva e tem sido cheia de xitose emoes desde essa poca. Sempre me lembrarei dosquinze meses subseqentes, durante os quais escrevi O tao da

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    fsica, como dos mais felizes de minha vida. Eu tinha dinheirosuficiente para continuar no estilo de vida a que me acostumara modesto no que se refere a luxos materiais, mas rico deexperincias interiores. Tinha diante de mim um projetoexcitante em que trabalhar. E agora tambm um grande crculode amigos muito interessantes escritores, msicos, pintores,filsofos, antroplogos e outros cientistas. Minha vida e meutrabalho harmonizavam-se plenamente num meio intelectual eartstico rico e estimulante.

    Discusses com Phiroz Mehta

    Ao descobrir os paralelos entre a fsica moderna e o misticismooriental, as similaridades das afirmaes dos fsicos e dos

    msticos pareceram-me muito evidentes; porm, de certa formaainda me mantinha ctico. Afinal, pensei, podem tratar-se demeras similaridades de palavras, que sempre surgem quandocomparamos diferentes escolas de pensamento, simplesmenteporque temos um nmero limitado de palavras nossadisposio. De modo que comecei meu primeiro artigo, A

    Dana de Xiva, com essa observao cautelosa. Entretanto,ao prosseguir em meu estudo sistemtico da relao entre afsica e o misticismo e ao escrever O tao da fsica, os paralelosiam se tornando mais profundos e significativos medida queeu os investigava. Percebi muito claramente que no estavalidando com qualquer similaridade superficial de palavras e que

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    se tratava de uma profunda harmonia entre duas vises deuniverso que surgiram de maneira bastante distinta. O msticoe o fsico, escrevi naquele livro, chegam mesma concluso;um partindo do domnio interno, o outro, do mundo exterior. Aharmonia entre suas vises confirma a antiga sabedoria dandia em que h perfeita identidade entre brahman, a derradeirarealidade exterior, e atm, a realidade interior.

    Dois avanos distintos em meu estudo levaram-me a esse

    entendimento. De um lado, as relaes conceituais que euestudara mostravam uma impressionante consistncia interna.Quanto mais reas eu explorava, com mais consistnciasurgiam os paralelos. Por exemplo, na teoria da relatividade, aunificao do espao e do tempo e o carter dinmico dosfenmenos subatmicos tm urra estreita relao entre si.

    Einstein reconheceu que espao e tempo no so entidadesdistintas; esto intimamente ligados e formam umcontinuum

    [36]

    quadridimensional: o espao-tempo. Conseqncias diretasdessa unificao espao-tempo so o fato de haver equivalncia entre massa e energia e tambm de as partculassubatmicas precisarem ser compreendidas como padresdinmicos, como eventos e no como objetos. No budismo, asituao muito semelhante. O budismo maaiana fala dainterpenetrao entre espao e tempo uma expressoperfeita para descrever o espao-tempo da teoria darelatividade e diz que quando percebemos o espao e o

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    tempo interpenetrando-se, os objetos aparecem como eventos,e no como coisas ou substncias. Esse tipo de consistnciame tocou fundo e surgiu repetidamente ao longo de minhaexplorao.

    O outro avano que fiz em meu estudo referiu-se ao fato de nopodermos compreender o misticismo lendo livros a seurespeito; preciso pratic-lo, vivenci-lo, sabore-lo, aomenos um pouco, para termos idia do que os msticos esto

    falando. Isso significa seguir uma disciplina e praticar algumaforma de meditao que nos leve a experimentar um estadoalterado de conscincia. Embora eu no tenha progredido muitonesse tipo de prtica espiritual, minhas experincias aindaassim permitiram que eu compreendesse os paralelos queinvestigava no s intelectualmente, como tambm num nvel

    mais profundo, por meio de uma percepo intuitiva.' Essesdois avanos foram sendo feitos juntos. Enquanto via aconsistncia interna dos paralelos cada vez mais clara, osmomentos de experincia intuitiva direta foram ocorrendo commais freqncia, e aprendi a usar e a harmonizar esses doismodos complementares de cognio.

    Nesses dois desenvolvimentos, fui muito ajudado por umgrande estudioso e sbio indiano, Phiroz Mehta, que vive ao sulde Londres escrevendo livros sobre filosofias religiosas e dandoaulas de meditao. Com grande bondade, Mehta me orientouem meio ao grande corpo da literatura existente sobre afilosofia e a religio da ndia, e generosamente permitiu que eu

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    consultasse sua excelente biblioteca pessoal, tendo aindadedicado longas horas a discutir comigo o pensamento orientale a cincia. Tenho lembranas muito claras e belas das visitasregulres que fazia a ele, quando permanecamos sentados emsua biblioteca ao entardecer, tomando ch e discutindo osupanixades, os escritos de Sri Aurobindo ou algum outroclssico indiano.

    A medida que a sala ia escurecendo, nossas conversas muitas

    vezes davam lugar a longos momentos de silncio, queajudavam a aprofundar minhas percepes. Mas eu tambmforava para que houvesse entre ns entendimento intelectual eexpresso verbal. Olhe essa xcara de ch, Phiroz, lembro-mede haver dito em certa ocasio; em que sentido ela se tornauna comigo numa experincia mstica? Pense em seu prprio

    corpo, respondeu ele; quando voc est com sade, no estciente de suas mirades de partes. Voc se percebe como umorganismo nico. Somente quando algo est errado que vocse torna ciente de suas plpebras ou de suas glndulas. Demodo semelhante, o estado de experimentar a realidade comoum todo unificado o estado saudvel para os msticos. A

    diviso em objetos distintos deve-se, para eles, a umaperturbao mental.

    [37]

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    Segunda visita a Heisenberg

    Em dezembro de 1974, terminei meu manuscrito e deixei

    Londres para retornar Califrnia. Foi algo arriscado, poisnovamente eu estava sem dinheiro, meu livro s seriapublicado dali a nove meses, e no tinha contrato comnenhuma outra editora nem outro tipo de emprego. Tomei doismil dlares emprestados de uma grande amiga a quasetotalidade de suas economias , fiz as malas, coloquei o

    manuscrito na mochila e marquei passagem num vo fretadopara San Francisco. Porm, antes de deixar a Europa fui dizer adeus a meus pais e aproveitei mais uma vez a viagem parauma visita a Werner Heisenberg.

    Nessa minha segunda visita, ele recebeu-me como se j nosconhecssemos h anos, e passamos outras duas horas epouco em animada conversa. Nossa discusso sobre os misrecentes avanos da fsica na poca girou basicamente emtorno da abordagem bootstrap da fsica das partculas pela qualeu me interessara, estando muito curioso para ouvir a opiniode Heisenberg. Voltarei a esse assunto no prximo captulo[Veja tambm o captulo 18 de O tao da fsica e as ltimas seis

    pginas do captulo 3 de O ponto de mutao . (N. do E.)]

    O outro propsito da minha visita era, claro, descobrir o queHeisenberg pensava do meu Tao da fsica. Mostrei-lhe omanuscrito, captulo por captulo, resumindo em poucaspalavras seu contedo e enfatizando especialmente os temas

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    ligados ao seu prprio trabalho. Heisenberg mostrou-se muitointeressado pelo manuscrito todo e aberto para ouvir minhasidias. Eu lhe disse que via dois temas bsicos percorrendotodas as teorias da fsica moderna, e que ambos eram tambmos dois temas bsicos de todas as tradies msticas ainterrelaoe a interdependncia fundamentais entre todos osfenmenos, e a natureza intrinsecamente dinmica darealidade. Heisenberg concordou comigo no que se referia fsica e afirmou que tinha conscincia do destaque que opensamento oriental dava interrelaode tudo. No entanto,desconhecia o aspecto dinmico da viso de mundo oriental emostrou-se intrigado quando lhe mostrei em meu manuscritonumerosos exemplos de que os principais termos snscritosusados na filosofia hindu e na filosofia budistabrahman,rita, lila,carma, samsara, etc. tinham conotaesdinmicas. Ao final de minha apresentao um tanto demoradado manuscrito, Heisenberg disse apenas: Basicamente estoude pleno acordo com voce .

    Como ocorrera aps nosso primeiro encontro, deixei a sala deHeisenberg bastante animado. Agora que esse grande sbio da

    cincia moderna revelara tanto interesse pelo meu trabalho eestava to de acordo com os resultados, eu no tinha maismedo de enfrentar o resto do mundo. Enviei-lhe uma dasprimeiras cpias de O tao da'sica quando foi publicado emnovembro de 1975, e ele respondeu prontamente que estavalendo e que me escreveria de novo depois de haver lido mais.

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    Essa carta foi nosso ltimo contato. Werner Hei-

    [38]

    senberg morreu aps algumas semanas, no dia do meuaniversrio, enquanto eu estava sentado na varandaensolarada de meu apartamento em Berkeley, consultando o /ching. Sempre lhe serei grato por haver escrito o livro que foi oponto de partida de minha busca de um novo paradigma e quetem me mantido sempre fascinado pelo assunto, e por seu

    apoio pessoal e sua inspirao.[39]

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    Fundamento nenhum

    Geoffrey Chew

    As famosas palavras de Isaac Newton, Acho-me sobre osombros de gigantes, valem para todos os cientistas. Todos

    devemos nosso conhecimento e nossa inspirao a umalinhagem de gnios criativos. Meu prprio trabalho dentro ealm do campo da cincia foi influenciado por uma mirade degrandes cientistas, muitos dos quais desempenham papis damaior importncia nessa histria. Na fsica propriamente dita,minhas principais fontes de inspirao foram dois homens

    notveis: Werner Heisenberg e Geoffrey Chew. Chew, que esthoje com sessenta anos, pertence a uma gerao de fsicosdiferente da de Heisenberg, e embora seja muito conhecido narea no de modo algum to famoso quanto os grandesfsicos qunticos. Entretanto, no tenho a menor dvida de queos futuros historiadores da cincia iro julgar as contribuies

    de Chew fsica no mesmo plano que as deles. Se Einsteinrevolucionou o pensamento cientfico com sua teoria darelatividade, e se Bohr e Heisenberg, com suas interpretaesda mecnica quntica, efetuaram mudanas to radicais queat o prprio Einstein se recusou a aceit-las, Chew deu oterceiro passo revolucionrio na fsica do sculo XX. Sua teoria

  • 8/14/2019 Fritjof Capra - Sabedoria Incomum

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    bootstrap das partculas unifica a mecnica quntica e a teoriada relatividade numa teoria que abrange os aspectos qunticose relativistas da matria subatmica em sua totalidade e, aomesmo tempo, representa um rompim