entre texto e obra

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JOˆO PAULO LEITE GUADANUCCI ENTRE TEXTO E OBRA Ronaldo Brito e Waltercio Caldas (1973-1983) Sªo Paulo 2007 pdfMachine - is a pdf writer that produces quality PDF files with ease! Get yours now! “Thank you very much! I can use Acrobat Distiller or the Acrobat PDFWriter but I consider your product a lot easier to use and much preferable to Adobe's" A.Sarras - USA

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Ronaldo Britto e Waltercio Caldas

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  • JOO PAULO LEITE GUADANUCCI

    ENTRE TEXTO E OBRA Ronaldo Brito e Waltercio Caldas

    (1973-1983)

    So Paulo 2007

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  • JOO PAULO LEITE GUADANUCCI

    ENTRE TEXTO E OBRA Ronaldo Brito e Waltercio Caldas

    (1973-1983)

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Artes Visuais; rea de Concentrao: Teoria, Ensino e Aprendizagem da Arte; Linha de Pesquisa: Histria, Crtica e Teoria da Arte; da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do Ttulo de Mestre em Artes Visuais, sob a orientao da Prof. Dr. Snia Salzstein Goldberg.

    So Paulo 2007

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  • Banca Examinadora:

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    So Paulo, _________________________________

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  • RESUMO

    Os objetos da dissertao Entre texto e obra - Ronaldo Brito e Waltercio Caldas (1973-1983) so as trajetrias do crtico de arte Ronaldo Brito e do

    artista Waltercio Caldas durante a dcada de 1970 e incio da dcada seguinte, as interseces entre ambas e uma parte da dinmica da arte contempornea brasileira do perodo que sofreu os impactos dessas trajetrias.

    Esta dissertao props investigar as principais linhas de fora que perpassaram a arte brasileira entre 1973 e 1983, e em que medida estes vetores marcaram os desdobramentos do meio artstico brasileiro a partir de ento, tendo como referncias os textos de Ronaldo Brito e a obra de Waltercio

    Caldas. Foi possvel identificar alguns aspectos que marcaram as trajetrias

    pesquisadas e conseqentemente, parte do panorama da arte brasileira do perodo, como as relaes dialticas estabelecidas com a experincia da arte moderna, as mudanas ocorridas paralelamente ao estabelecimento de um novo contexto internacional e o fortalecimento de preocupaes ligadas ao papel do mercado de arte no meio artstico.

    PALAVRAS-CHAVE: Arte contempornea; Arte brasileira; Ronaldo Brito; Waltercio Caldas; Arte no sculo XX

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  • ABSTRACT

    Between writings and art work Ronaldo Brito and Waltercio Caldas (1973-1983) dissertation objects are the trajectory of Ronaldo Brito, art reviewer, and the artist Waltercio Caldas in the 70s and beginning of the 80s, the intersection between them and a part of the discussion about Brazilian contemporary art of the time that suffered the impact of these trajectories. The proposal of this text was investigate the main power lines that crossed over Brazilian art between 1973 and 1983 and, in what measure these vectors remarked the evolution of Brazilian art environment since then, using as references Ronaldo Brito texts and Waltercio Caldas works of art. It was possible to verify some aspects that remarked the studied trajectories and, consequently, a part of Brazilian art scene of the time as the dialectic relations settled with the modern art experience, the changes that occurred in parallel to the establishment of a new international context and the strengthen of concerns tied to the role of the art market in artistic environment.

    KEY WORDS: Contemporary art; Brazilian art; Ronaldo Brito; Waltercio Caldas; Art in XX century

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  • ENTRE TEXTO E OBRA Ronaldo Brito e Waltercio Caldas (1973-1983)

    SUMRIO

    Introduo ............................................................................. 7

    1 - Entre Malasartes e A Parte do Fogo ................................. 14 2 - Como funciona? ................................................................ 48 3 - Leitura silenciosa e a imagem em Malasartes .................. 67 4 - Gramtica Ronaldo Brito? ................................................. 83 5 - A dcada de 1970 e o moderno ........................................ 101 6 - Alto design ........................................................................ 125 7 - Os jogos de Aparelhos ...................................................... 149 8 - Determinada circulao .................................................... 169 9 - Sobre o Manual da Cincia Popular ................................. 188 Consideraes finais ........................................................... 214 Referncias bibliogrficas ................................................... 215

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    uso de remisso: os captulos esto a todo momento remetendo-se uns aos outros, estimulando leituras transversais. Esta caracterstica, que menos uma escolha formal do que uma tentativa de mimetizar um determinado processo ou campo de foras, funcionar atravs da ferramenta da remisso (indicada, em notas de rodap, pelo smbolo ), pretendendo inclusive evitar uma repetio exaustiva de

    determinadas passagens. aceitao do aspecto polissmico do objeto: o objeto estudado

    polissmico, nutriu-se das contradies presentes em seu contexto e foi descrito segundo algumas verses. Sua dinmica est muitas vezes marcada pela ambigidade. O desenvolvimento dos ensaios articula-se para acolher estas ambigidades em sua tessitura, colocando-se vontade para perscrutar sentidos diferentes e mesmo contraditrios.

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  • 12

    pretende abordar a dinmica existente entre as trajetrias individuais de ambos e suas reas de convergncia, e a insero deste fenmeno em contextos mais amplos (incluindo outros artistas e tericos que operaram num mesmo espao e tempo, alm de outros espaos e outros tempos). Considerando um objeto destes, com contornos pouco ntidos e pleno de movimentaes internas, a maneira menos eficaz de abord-lo seria construir um texto unvoco, cujas subdivises tivessem a ambio de se aproximar progressivamente de uma verdade conclusiva, aos poucos desvendada. O resultado decerto seria artificial, pois buscaria localizar um objeto ntegro, sem contradies internas, semelhana do mtodo de investigao empregado e o encontraria, numa vitria da rigidez do mtodo. A alternativa escolhida flexibilizar o mtodo, de modo que ele adquira o maior nmero de articulaes, as mais variadas possveis, habilitadas a acompanharem as imprevisibilidades do objeto.

    Dessa forma, o presente texto compreende nove ensaios, cada um dirigido a um determinado aspecto ou elemento do tema geral da pesquisa. Muito embora os ensaios tenham uma vocao autonomia, eles foram organizados de acordo com uma determinada seqncia que no aleatria, e nem exterior aos mesmos. Os ensaios pretendem se valer da posio em que se encontram no conjunto, aproveitando-se do que foi dito nos textos anteriores e preparando o terreno para os prximos. Esta seqncia caminha menos na direo de uma concluso do que de uma sobreposio de pontos de vista, e investe na expressividade advinda da frico entre estes. Para isso, os ensaios tm em comum as seguintes caractersticas:

    incompletude: cada ensaio se refere a um recorte no interior de um processo maior e visa manter no recorte a lgica do processo. Os ensaios no esto encerrados por uma configurao externa clara, dependem de outros para estabelecerem relaes, embora pretendam tambm funcionar de forma autnoma.

    variedade: as estratgias de cada ensaio so diferentes: se um

    determinado ensaio pretende abordar uma contenda esttica, o prximo pode se concentrar especificamente em um ou dois trabalhos de arte. Cada ensaio tem uma lgica prpria de estruturao, e pretende abordar um aspecto distinto do mesmo foco de ateno.

  • 11

    disboom (1976)12, a realizao do livro Aparelhos (1979)13 - em torno da obra de Waltercio Caldas, com texto de Ronaldo Brito - e a edio do nmero nico de A Parte do Fogo (1980)14. Todos esses momentos constituem objetos desta pesquisa, bem como as conexes mais ou menos visveis que possam ser inferidas entre eles.

    A opo por no interromper a pesquisa no final da dcada de 1970, incluindo nela os desdobramentos que se estendem at os primeiros anos da dcada seguinte, leva em conta a constatao bvia de que a diviso por dcadas apenas uma referncia aproximada para a dinmica das aes humanas. Assim, este estudo entende que a dcada de 1970 tem incio e fim pouco precisos, independentes de datas redondas. Optamos portanto por investigar a hiptese de que os vetores caractersticos da arte brasileira da dcada de 1970 tenham permanecido ativos e predominantes at, ao menos, os anos de 1982 ou 1983. A partir da, uma nova movimentao se impe, medida em que linhas de fora que estavam subterrneas passam a ganhar destaque, substituindo paulatinamente o ritmo que se observava at ento. Ocioso lembrar que estas divises revelam menos uma verdade dos fatos e mais uma escolha metodolgica do presente texto, que acredita desta forma obter um acesso mais efetivo aos desdobramentos da arte brasileira que esto sendo pesquisados.

    O objeto do presente estudo arredio. Embora este texto esteja focado nas aes de Waltercio Caldas e Ronaldo Brito na dcada de 1970, ele

    12 BRITO, Ronaldo; CALDAS, Waltercio; RESENDE, Jos; ZILIO, Carlos. O boom, o ps-boom

    e o disboom. In: BASBAUM, Ricardo (org.). Arte contempornea brasileira: texturas, dices, fices, estratgias. Rio de Janeiro: Rios ambiciosos, 2001. 13

    CALDAS, Waltercio. Aparelhos. Texto de Ronaldo Brito. Rio de Janeiro, GBM Editoria de Arte, 1979. 14

    O nmero nico de A Parte do Fogo tem como editores, alm de Brito e Waltercio, Cildo Meireles, Jos Resende, Joo Moura Jr., Paulo Venancio Filho, Paulo Sergio Duarte, Rodrigo Naves e Tunga.

  • 10

    anterior reaparecem, como a nfase dos trabalhos numa dimenso conceitual ou intelectual8 e a suposta inteno do artista em surpreender o espectador. O que parece ser uma observao nova de Brito a suposio de que Narrativas seria no apenas um agrupamento de trabalhos, mas uma exposio planejada pelo artista9, na qual elementos como luz e msica-ambiente seriam fundamentais na construo de uma atmosfera que condicionaria determinada recepo das obras.

    A partir de 1975, a relao entre Ronaldo Brito e Waltercio Caldas, at ento passvel de ser descrita segundo um formato convencional de relao

    crtico/artista, experimentaria substancial transformao. Neste ano, Brito

    escreveria o texto O espelho crtico10 para o catlogo da exposio A natureza dos jogos de Waltercio Caldas, realizada no Museu de Arte de So Paulo. Pelo simples fato de fazer parte de um catlogo de exposio, esse texto j testemunha uma maior aproximao entre os dois. Afinal de contas, j no se trata de um crtico analisando uma exposio de um artista a partir de

    um ponto de vista externo e no envolvido, a servio da seo cultural de um veculo de comunicao, mas de um convite feito por um artista para que o

    crtico se aproximasse de seu processo criativo e de algum modo tomasse parte neste processo no preciso lembrar que um texto presente num catlogo de exposio indica uma aposta do autor em direo relevncia do

    trabalho comentado; estabelece-se um compromisso intelectual entre ambos. A partir de O espelho crtico, a ligao entre o crtico e o artista ganha densidade, e torna-se mais instigante. Essa nova etapa na relao entre Ronaldo Brito e Waltercio Caldas permite reflexes mais complexas, e acreditando nessas potencialidades que o presente estudo se desenvolver.

    No mesmo ano, ambos compartilhariam com outras sete pessoas11 uma iniciativa significativa para o meio artstico brasileiro a edio da revista Malasartes. A esta iniciativa somariam-se outros lances protagonizados pelo artista e pelo crtico, como a redao do texto O boom, o ps-boom e o

    8 BRITO, Ronaldo. Jogos Mentais. Opinio, Rio de Janeiro, n.86, p.20, 17 maio 1974.

    9 Idem.

    10 BRITO, Ronaldo. O espelho crtico. In: CALDAS, Waltercio. Waltercio Caldas: a natureza dos

    jogos. So Paulo: MASP, 1975. 11

    Bernardo de Vilhena, Carlos Vergara, Carlos Zilio, Cildo Meireles, Jos Resende, Luiz Paulo Baravelli e Rubens Gerchman.

  • 9

    Por outro lado, Racional e absurdo refere-se primeira exposio individual de Waltercio Caldas, intitulada Objetos e Desenhos e realizada no segundo semestre de 1973 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, aps o artista ter participado de algumas exposies coletivas desde 1967. Em meados de 1973, Brito e Waltercio iniciavam, cada um a seu modo, intervenes culturais no meio artstico brasileiro; o texto Racional e absurdo marca, de uma certa forma, esses batismos.

    No se trata de um texto de flego, o que se reflete no apenas em sua brevidade, mas ainda em dois outros aspectos. Primeiramente, Racional e absurdo um texto acomodado a uma estrutura tradicional de crtica jornalstica. Organiza-se a partir de uma afirmao de carter geral, acerca da pouca receptividade do meio de arte brasileiro a manifestaes artsticas no-retinianas5, para concluir pela relevncia da exposio de Waltercio Caldas:

    Num pas sem uma tradio surrealista eficaz, vtima de um surto de falso primitivismo que parece incurvel, as manifestaes artsticas no-retinianas (de acordo com o conceito de Marcel Duchamp, separando os artistas entre os que s usam a retina e os que, alm dela, usam tambm a cabea) so constantemente reprimidas, pelo menos no nvel do mercado. Da a importncia de exposies como a de Waltercio Caldas, no MAM, at o dia 9 de setembro.6

    Alm disso, seu flego curto se deve tambm ao exguo prazo de validade que as idias nele contidas revelariam, j que um par de anos mais tarde, Brito j estaria defendendo idias distintas e inclusive opostas s presentes em Racional e absurdo - principalmente aquelas relacionadas a uma suposta ascendncia fantstica ou surrealista do trabalho de Waltercio Caldas, evocada atravs de comparaes ao clima de sereno pnico dos contos do escritor argentino Jorge Lus Borges e do uso de termos como fantstico e sbrio clima mgico7.

    No ano seguinte, Waltercio Caldas realiza a sua segunda exposio individual Narrativas, na Galeria Luiz Buarque de Holanda e Paulo Bittencourt o que suscitaria um segundo texto de Ronaldo Brito sobre o artista: Jogos mentais, tambm publicado em Opinio. Alguns aspectos apontados no texto

    5 BRITO, Ronaldo. Op. cit., 1973.

    6 Idem.

    7 Idem.

  • 8

    a trajetria artstica de Waltercio Caldas, do incio de sua carreira at aproximadamente a publicao de Manual da cincia popular1, em 1982;

    os textos de Ronaldo Brito publicados entre 1973 e 1983, de suas primeiras incurses na arte at a publicao de Malasartes: um depoimento pessoal2;

    os momentos de interseco das trajetrias de Waltercio Caldas e Ronaldo Brito durante a dcada de 1970 e incio da dcada seguinte;

    os espaos existentes entre o trabalho de Waltercio Caldas e a atuao crtica de Ronaldo Brito, incluindo outros artistas e crticos que ocuparam

    estes espaos, constituindo parte importante do meio de arte brasileiro do perodo.

    A aproximao entre Waltercio Caldas e Ronaldo Brito tem seu primeiro momento pblico em 1973, com a publicao de Racional e Absurdo3 no semanrio Opinio, texto de Brito sobre a exposio que o artista apresentava no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Este texto indica um duplo batismo: por um lado, trata-se do terceiro texto publicado pelo crtico sobre artes visuais4 e o seu primeiro texto sobre um artista brasileiro cuja carreira ele passaria a acompanhar de perto. S alguns meses mais tarde, Brito publicaria textos sobre outros artistas cujas produes tambm lhe interessariam ao longo das dcadas seguintes, como Eduardo Sued, Antonio Dias, Tunga, Iole de Freitas e Jos Resende. Desta forma, Ronaldo Brito iniciou sua atuao pblica como crtico de arte analisando especificamente o trabalho de Waltercio Caldas, e desenvolveu parte importante de suas especulaes tericas tendo o artista como uma de suas referncias.

    1 CALDAS, Waltercio. Manual da cincia popular. Rio de Janeiro: Funarte, 1982.

    2 BRITO, Ronaldo. Malasartes, um depoimento pessoal. Arte em revista, So Paulo, n.7, ago.

    1983., p. 53. 3 BRITO, Ronaldo. Racional e absurdo. Opinio, Rio de Janeiro, n. 41, p. 24, ago. 1973.

    4 Quando Racional e absurdo foi publicado no semanrio Opinio, em agosto de 1973, a

    experincia de Ronaldo Brito como crtico cultural ainda no havia completado um ano, e fazia apenas alguns meses que ele dedicava seus textos prioritariamente s artes visuais; em suas primeiras incurses jornalsticas, seu foco era a literatura, rea de interesse que foi aos poucos passando para segundo plano. Antes de Racional e absurdo, Brito publicou dois textos sobre artes visuais, ambos no Opinio: um por ocasio da morte de Picasso e outro sobre uma exposio de Kozo Mio na Galeria Bonino, no Rio de Janeiro.

  • 7

    INTRODUO A arte brasileira da dcada de 1970 no tem atrado a ateno da crtica na medida de sua importncia. Muitas das questes que so consideradas centrais para a discusso da arte contempornea nos dias de hoje foram esboadas nos anos 1970 ou tiveram neste perodo uma inflexo importante: a relao paradoxal entre produo artstica e mercado de arte; a crescente internacionalizao da arte brasileira; o questionamento do papel das instituies de arte; as conexes ambguas entre arte e design; o esvaecimento das fronteiras entre produo artstica e terica etc. A despeito desses fatores, a dcada de 1970 tem sido abordada quase que exclusivamente atravs de monografias de artistas como Cildo Meireles, Waltercio Caldas, Jos Resende, Antonio Dias, Carmela Gross etc, mas mesmo estas monografias atravessam rapidamente o perodo e comentam apenas de modo passageiro o processo geral da arte brasileira nestes anos. O presente texto tem como objeto de estudo uma parte da arte brasileira nos anos 1970, ligada atuao do crtico Ronaldo Brito e do artista Waltercio Caldas, bem como s relaes que ambos mantiveram neste perodo. Eles ocupam o centro desta pesquisa no apenas devido importncia e qualidade de suas intervenes no meio cultural brasileiro, mas principalmente pelo fato de haverem tomado parte em uma rede de aes que incluiu outros artistas e crticos e que resultou em diversas iniciativas coletivas e marcou posies

    relevantes no circuito artstico nacional. Alm disso, ocuparam por diversas vezes o mesmo campo de jogo, estabelecendo um dilogo que est entre os mais profcuos do passado recente da arte brasileira, cujos desdobramentos podem ser sentidos na atualidade.

    O texto Entre texto e obra - Ronaldo Brito e Waltercio Caldas (1973-1983) discorre sobre as trajetrias do artista Waltercio Caldas e do crtico de arte Ronaldo Brito na dcada de 1970 e incio da dcada de 1980; concentra-se na relao estreita que ambos mantiveram durante este perodo e no contexto do qual participaram. As principais questes a serem discutidas so as seguintes:

  • 47

    contraditrio, constitudo de um lado por uma produo artstica potente, que em certos momentos criara a expectativa da efetivao de uma dimenso pblica para a arte contempornea no Brasil, e de outro lado por um suporte social desconjuntado, incapaz de dar corpo a essa expectativa. Se retomamos Malasartes e A Parte do Fogo na atualidade, porque elas constituram uma nova camada de entendimento da arte brasileira; a relevncia dessas iniciativas colocada prova ao longo do tempo e est apenas em parte baseada no impacto momentneo que tiveram, impacto esse que impossvel de ser aferido com preciso. O que cumpre apontar, por fim, uma situao contraditria: se verdade que um contexto pouco favorvel ao mesmo tempo permitiu o surgimento dessas duas iniciativas e limitou desdobramentos mais vigorosos, igualmente vlida a hiptese de que a precariedade desse contexto torna ainda mais significativos os seus aparecimentos e mais interessantes as suas dinmicas internas e suas relaes com o entorno.

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  • 46

    das pulses inconscientes, dos impulsos que no domina. Por isso, o compromisso do velho-novo.77

    Se quisermos avaliar a importncia de Malasartes e A Parte do Fogo no panorama artstico brasileiro entre meados da dcada de 1970 e incio da dcada de 1980, devemos tomar alguns cuidados. pouco prudente supor que essas iniciativas tiveram um impacto decisivo em nosso meio cultural, pois isto entraria em contradio com suas prprias premissas, dentre as quais constava o diagnstico do meio cultural brasileiro como um terreno movedio, arredio a questionamentos tericos e a trabalhos que retivessem alguma reflexividade. Esse meio teria a capacidade quase inesgotvel de neutralizar quaisquer intervenes que colocassem em discusso seus mecanismos no aparentes e seus compromissos lassos, o que tornaria as intervenes de Malasartes e A Parte do Fogo um tanto paradoxais, j que se outorgavam a misso de atuar num contexto refratrio a incises minimamente categricas. Igualmente imprudente seria deixarmo-nos paralisar pelas opinies que os editores de Malasartes e A Parte do Fogo tinham acerca do meio em que trabalhavam reiterando a precariedade inelutvel deste -, o que tambm pode ser argumentado de modo lgico: as duas publicaes, assim que surgiram, modificaram em alguma medida o terreno no qual se instalaram, emprestando a ele certa densidade. O panorama da arte brasileira no o mesmo antes e depois de Malasartes, por mais tnue que tenha sido a sua influncia sobre ele, e essa constatao no equivale a nenhuma supervalorizao da mesma; o

    mesmo vale para A Parte do Fogo. Tanto isso verdade que Malasartes est a todo momento se referindo a uma tradio moderna da arte no Brasil que, por mais flcida que possa se afigurar, ainda funciona como uma referncia ou, no mnimo, uma hiptese de trabalho um caso emblemtico a reedio de Teoria do no-objeto78 no nmero 1 de Malasartes, texto de Ferreira Gullar publicado originalmente no Jornal do Brasil em 1959. Se esse texto pode ser retomado num contexto distinto do seu, porque alguma base comum os une. Malasartes, longe de operar num deserto, atua sobre um tecido desigual,

    77 Idem.

    78 GULLAR, Ferreira. Op. cit., 1975.

  • 45

    ditadura militar, anistia que s foi aprovada na medida em que se tornou irrestrita, ou seja, quando tornou-se ampla o bastante para contemplar tambm os militares que ensaiavam retirar-se do poder.

    Segundo o texto de abertura de A Parte do Fogo, essa atmosfera de conciliao que marcaria uma segura e por isso mesmo contraditria passagem do regime ditatorial ao democrtico, reverberaria no campo cultural sob os signos do consenso e da homogeneizao em torno de noes abstratas e gerais como democracia, povo e identidade cultural brasileira75. Tal consenso serviria como uma atualizao do mecanismo de censura tpico da dcada de 1970, agora travestido como processo democrtico, muito embora sua tendncia natural fosse a de favorecer certas vertentes do meio de arte brasileiro, precisamente aquelas que corroborassem a (re)construo de uma identidade nacional, que deveria ser encontrada em algum passado mtico, contaminado por quinze anos de praga maldita76.

    A Parte do Fogo entende dessa forma o cenrio cultural brasileiro do incio da dcada de 1980 e busca posicionar-se contra a homogeneizao que julga estar em curso. Se essa homogeneizao tem como objetivo soterrar as contradies e ambigidades inerentes realidade artstica do pas em nome de uma generalizao abstrata, A Parte do Fogo procurar enfatizar essas contradies, alimentar essas ambigidades seu contedo verbal e imagtico trabalha precisamente nesse sentido, e assim que devemos entender seus textos refratrios, pouco assertivos e suas imagens autnomas, inquietantes. Isso fica claro em determinada passagem do texto que abre a publicao:

    A exigncia da Comunicao no a prpria a paradoxal exigncia de empatia imediata, toda essa aflio pelo sentido, essa nsia de que tudo faa sentido, no ser uma angstia de resistncia? Digamos logo, uma angstia de resistncia acadmica, um medo que se manifesta no desejo de preservar, guardar, entesourar valores. A velha recusa, o velho pnico do Novo, ou seja, do desconhecido. Um Novo imediatamente inteligvel uma contradio nos termos. O momento ininteligvel do Novo a temporria suspenso das nossas certezas no agrada Conscincia Dominante. Esta deseja a superfcie clara e imvel do espelho para contemplar-se, reconhecer-se, duplicar-se. Rejeita, repele a inquietude

    75 A PARTE DO FOGO. Op. cit.

    76 Idem.

  • 44

    a de operar um desvelamento dos mecanismos de institucionalizao da arte, o que acaba dando o tom para os textos e imagens que esto presentes na publicao. Nos textos, h uma opo pela clareza na exposio das idias e um rigor na conceituao dos termos, o que trai certo apelo didtico; as imagens, grosso modo, no valem por si - pelo contrrio, funcionam como referncias aos textos, rivalizando em poucos momentos com estes. Fica a impresso de que Malasartes quer criar um pblico para a discusso de arte contempornea no Brasil, ou ao menos ampliar o pblico j existente, o que explicaria a opo estilstica dos textos produzidos especificamente para a publicao e as escolhas de textos brasileiros e internacionais que a so reeeditados ou traduzidos.

    Em A Parte do Fogo, conforme comentado, a motivao esclarecedora que havia caracterizado Malasartes praticamente desaparece: os textos se tornam ensimesmados, adquirindo uma materialidade prpria oriunda de uma pesquisa formal evidente com alinguagem verbal; as reprodues fotogrficas, de forte apelo visual, atraem o olhar do leitor para a polissemia de suas relaes internas. Palavra e imagem relutam em se mostrar transparentes ao invs disso retm uma expressividade inegvel que permite inmeras abordagens, nenhuma conclusiva. Exigem enfim um compromisso demorado do espectador, sem o qual permanecem em sua recusa comunicabilidade imediata. Enquanto Malasartes busca a comunicao com o leitor, A Parte do Fogo obstrui essa expectativa. A razo dessa mudana de estratgia pode estar, ao menos em parte, contida no texto introdutrio da publicao.

    Esse texto, aps uma breve carta de intenes que define as conexes entre texto, imagem e produo artstica que nortearo A Parte do Fogo, dedica a maior parte de seus esforos a questionar o modo como a produo cultural brasileira se relaciona a um novo momento poltico nacional, a que os editores do o nome de conciliao. Esse momento poltico, intensificado com a chegada ao poder do General Joo Batista Figueiredo em 1979, notabilizou-se como o cenrio no qual se desenrolaria uma abertura lenta, gradual e

    progressiva, atravs da qual se processaria a substituio do governo ditatorial militar por um regime democrtico, evitando rupturas violentas que fizessem com que esse processo escapasse ao controle do prprio governo militar. Emblemtica desse perodo foi a luta pela anistia aos perseguidos polticos da

  • 43

    americano Mark Rothko, mas isso no retira o foco central de A Parte do Fogo da relao de mo dupla entre crtico e artista.

    Qual o significado do aparecimento dessa publicao apenas quatro anos aps o fim de Malasartes e envolvendo boa parte do antigo corpo editorial desta? Porque alguns editores da primeira embarcariam numa segunda empreitada, cujas chances de viabilizao so inegavelmente menores devido ao elevado grau de experimentao, a no ser pela possibilidade de efetivar em A Parte do Fogo projetos que no teriam se materializado em Malasartes? Se retornarmos ao depoimento de Ronaldo Brito sobre Malasartes publicado em Arte em Revista, possvel encontrar ao menos um indcio.

    O carter analtico que est presente nos textos de Malasartes praticamente inexiste em A Parte do Fogo, que investe preferencialmente no embate expressivo com os trabalhos de arte analisados, do qual muitas vezes resulta uma certa afasia. como se a disposio manifesta no texto introdutrio da publicao, segundo a qual o objetivo de A Parte do Fogo seria aproximar-se dos trabalhos de arte sem enquadr-los, fizesse com que os textos corressem em paralelo aos trabalhos, como se os textos estivessem super-protegendo estes. Ser possvel sugerirmos alguma interpretao que d conta dessa mudana observada entre o temperamento dos textos de Malasartes e A Parte do Fogo? Talvez encontremos alguma pista se investigarmos o contexto que emoldurou cada uma das duas iniciativas.

    Malasartes refere-se a uma situao especfica, e pretende repercutir determinados vetores que seu corpo editorial julga determinantes nessa situao. Dentre esses vetores, destaca-se uma hiptese: a dcada de 1970 teria assistido, a partir do seu incio, a uma intensificao na circulao comercial de obras de arte no Brasil, o que no entanto no teria influido na formao de um mercado de arte no pas. Dessa maneira, a arte contempornea brasileira experimentaria, nesse perodo, uma condio paradoxal: muito embora tivesse que encarar a sua inelutvel condio de mercadoria, o trabalho de arte estaria ligado a um mercado de arte precrio, pouco estruturado, que no se configurava com densidade suficiente para estabelecer um atrito mnimo com as obras que faz circular esta ao menos o diagnstico de parte do corpo editorial da revista, especialmente de Ronaldo Brito. Num contexto como este, a estratgia adotada por Malasartes parece ser

  • 42

    distanciada, ligada a premissa de que o texto pode extrair de uma determinada obra reflexes mais amplas, que tangenciam questes sobre a natureza da arte. No surpreende que estejamos falando de uma coletnea de trechos do texto que Brito havia escrito no livro Aparelhos, de Waltercio Caldas, publicado no ano anterior, e no de um texto escrito especialmente para A Parte do Fogo. Em seu espao original, ele funcionara como uma plataforma de idias que buscava pensar o trabalho do artista carioca em relao a um contexto artstico maior; transcrito em partes para a publicao de 1980 - esquartejado - essa veia reflexiva fica atenuada, uma vez que o encadeamento das idias perdido e os argumentos do crtico adquirem o inesperado tom de aforismo, talvez contrabandeado das reprodues fotogrficas dos trabalhos de Waltercio. A materialidade do texto de Brito torna-se outra: seu poder crtico passa a negociar o espao com aspectos quase-poticos que pareciam represados em Aparelhos: ...Aparelhos mimticos com defeito, disfuncionam.74

    A Parte do Fogo representa, em certo sentido, um desdobramento de Malasartes: quatro dos nove editores desta Jos Resende, Cildo Meireles, Ronaldo Brito e Waltercio Caldas participam do nico nmero de A Parte do Fogo, junto com outros quatro crticos e um artista: Paulo Sergio Duarte, Paulo Venancio Filho, Rodrigo Naves, Joo Moura Jr. e Tunga. As publicaes guardam semelhanas, mas parecem divergir num ponto fundamental: enquanto Malasartes procura equacionar textos histricos, crticos e tericos - cujo foco grosso modo o circuito de arte contempornea e as diversas instncias que o compem - com a apresentao de trabalhos de artistas contemporneos, A Parte do Fogo faz uma opo assertiva pela aproximao efetiva aos trabalhos de arte, obedecendo a uma forma praticamente constante: cada um dos quatro crticos de arte comenta a obra de um dos quatro artistas. Alm disso, a publicao traz em seu nmero nico tradues de textos de autoria do escritor francs Maurice Blanchot e do pintor norte-

    74 BRITO, Ronaldo. A PARTE DO FOGO. Rio de Janeiro, n.1, mar. 1980.

  • 41

    Essa manobra j havia sido comentada por ocasio de seu aparecimento em Malasartes: a criao de um contexto - grfico - que sugerisse ao leitor uma conexo entre a obra de determinado artista brasileiro com o trabalho de um artista de projeo internacional; em Malasartes, isto ocorrera entre Cildo Meireles e Joseph Kosuth, cujos textos so publicados de modo quase consecutivo no nmero inicial da revista. O que deve ser apontado que em nenhum momento essa aproximao desfavorece a arte

    contempornea brasileira pelo contrrio, os trabalhos de Cildo Meireles em Malasartes, assim como a obra de Jos Resende em A Parte do Fogo, so evocados com potncia e em igualdade com os artistas estrangeiros (no caso, Kosuth e Serra, respectivamente). Esse fato nos permite inferir que a escala da discusso da arte tende a se estabelecer, na passagem para a dcada de 1980, em sua dimenso global, na medida em que os artistas referem-se a questes que esto presentes no meio internacional, mas do a elas, no entanto encaminhamentos locais.

    O pgina que abriga a parceria Cildo Meireles / Paulo Venancio Filho leva as principais caractersticas de A Parte do Fogo ao paroxismo: as sete reprodues grficas do trabalho O Sermo da Montanha Fiat Lux so visualmente generosas e investem nas possibilidades de que a fotografia dispe para dar conta de um evento temporal; o texto de Venncio, por sua vez, assume a forma paradoxal do poema descritivo, cujo ritmo tenta mimetizar a tenso que a situao criada por Cildo Meireles estabeleceria; no faz propriamente uma leitura do trabalho, mas prope uma traduo deste para outra linguagem, igualmente autnoma; no h idias a serem defendidas, relaes no so feitas. O que ocorre de fato uma parceria, imagem e texto contando histrias anlogas segundo suas gramticas especficas.

    Talvez o texto de Ronaldo Brito acerca do trabalho de Waltercio Caldas constitua um esforo um pouco distinto daqueles observados nos outros trs casos: aqui, o crtico investe na possibilidade da anlise minimamente

    73 Idem.

  • 40

    palavra. Esta identidade est antes de qualquer palavra ou imagem, ela constitui a linguagem, o embate real, A Parte do Fogo.69

    Essa condio est presente de modo enftico na parceria entre Tunga e Paulo Sergio Duarte mas pode ser encontrada tambm nos outros trs pares que aparecem na publicao: a estrutura semelhante e enfatiza a irredutibilidade da imagem ao texto e as materialidades especficas de ambos. O texto em que Rodrigo Naves aborda o trabalho de Jos Resende, mais especificamente a grande obra horizontal presente na Praa da S70, transita basicamente pelo mesmo caminho. H a dvida em relao s possibilidades do texto em face de um trabalho ensimesmado, mudo, que apenas est l. Irremediavelmente l.71 Sua visualidade, equvoca, escaparia s pretenses lingsticas do olho que a faz viso tal carter equvoco furta do trabalho o sentido e refora neste uma materialidade prpria e intraduzvel. Naves tenta imprimir esse impasse prpria forma do texto recorre, entre outros, ao paradoxo:

    Ele est l. Ele est onde no se est. Onde no se pode estar (por uma prosaica lei de Newton?).72

    Mas o trabalho de Jos Resende est em algum lugar; alis, trata-se de um lugar bem especfico: a Praa da S, no centro de So Paulo. O prprio Naves reconhece que ele o outro da paisagem, estranho ao circuito urbano. nesse ponto que o texto encontra um parmetro - a cidade em relao ao qual a obra ir trabalhar para operar sua diferenciao. Rodrigo Naves comenta o trabalho de Resende com expresses que parecem conectar este obra de Richard Serra; talvez por isso, o escultor norte-americano tenha o seu trabalho Bloco de Berlim para Charles Chaplin reproduzido na ltima pgina de A Parte do Fogo:

    O trabalho no quer entrar no fluxo do discurso da cidade, e pe toda a sua inteligncia em mobilizar condies para isso. Reinvindicar sua especificidade (...)73

    69 A PARTE DO FOGO. Op. cit.

    70 O trabalho de Jos Resende comentado por Rodrigo Naves, sem ttulo, foi a primeira obra do

    escultor a ser instalada em lugar pblico: a Praa da S, em So Paulo, em 1979. feito com concreto pigmentado de preto e ao corten, e tem as seguintes medidas: 400x1400x30cm. 71

    NAVES, Rodrigo. A PARTE DO FOGO. Rio de Janeiro, n.1, mar. 1980. 72

    Idem.

  • 39

    modo anlogo aos grafismos do desenho de Tunga: ambos ocupam a metade superior da parede sobre a qual se apoiam as Plpebras, como se estivessem de fato desenhados nessa parede. No h texto e imagem, mas um nico evento, simultneo a si mesmo. A prosa de Paulo Sergio Duarte duvida

    de sua potncia esclarecedora desde o incio:

    Mostrar, quase demonstrando, que a ignorncia nem sequer imita. A descrio nem sequer copia uma aparncia, no alcana a mmeses da tendncia, no prolonga um movimento ntimo. A ignorncia tem que desconhecer os sentidos do trabalho porque estes habitam os extremos67.

    Trata-se, obliquamente, de um texto sobre a impossibilidade do texto analtico, que, a partir dessa constatao, entrega-se surda batalha dos materiais:

    E nesse momento algo atrai: O magnetismo de suas partes, seus detalhes, seus sentidos, aranha, luzes, borracha, msica, chumbo, tempo, mosca, no so fragmentos de empiria.68

    A imagem se impe ao texto, o subjuga e dilarea qualquer inteno de cunho iluminista, que intentasse impor ordem verbal heterogeneidade de materiais e vontades que habita o trabalho de Tunga. Talvez por isso, apaream em caixa alta os nomes do artista e do crtico, como se a pgina em questo fosse efetivamente resultado de uma parceria: TUNGA/PAULO SERGIO DUARTE. Nesse contexto, natural que o texto de Paulo Sergio torne-se mais e mais construo autnoma do texto, plena de figuras de linguagem e de jogos de ritmo e sons. No final, j se trata de uma poesia no sentido literal/literrio, para a qual a imagem de Tunga serve como anteparo. provavelmente sobre isso que a introduo de A Parte do Fogo discorria em certo momento:

    Aqui a diferena dos trabalhos elimina a proximidade como ndice de identidade imediata. a aparente distncia, essa proximidade distante, que os identifica. Imagens e textos. Espcie de aliados incomuns: unidos pela diferena. Uma identidade em que cada palavra, cada imagem, faz o mesmo percurso por vias diferentes. Aqui, a palavra no descreve a imagem, uma imagem. E a imagem por si escreve sua

    67 DUARTE, Paulo Sergio. A PARTE DO FOGO. Rio de Janeiro, n.1, mar. 1980.

    68 Idem.

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    Provavelmente por isso a publicao se apresente como poster, cujo tamanho imenso cerca de 61 x 45 cm torna difcil a leitura dos textos, ou ao menos estabelece uma proximidade estranha entre autor e leitor que pe em xeque qualquer idia de distanciamento crtico. Por outro lado, essa rea de impresso pouco usual revela-se inesperadamente tributria do desejo de constituio de um espao pblico para o debate de idias, na medida em que mimetiza a beligerncia de alguns manifestos artsticos de incio e meados do sculo XX, cuja expresso grfica funcionaria como catalisadora das idias

    neles contidas. Finalmente, a forma do poster favorece as imagens, o que distingue inegavelmente A Parte do Fogo de Malasartes. Na publicao surgida em 1975, as imagens tm, grosso modo, um papel subalterno, o que fica claro pela escala e forma como se relacionam com os textos, servindo quase sempre como ilustrao da escrita65. Outro expediente comum em Malasartes a justaposio de diversas imagens fotogrficas numa mesma pgina, relativizando a autonomia destas e limitando seu efeito sobre o leitor.

    Em A Parte do Fogo ocorre justamente o contrrio: a escala monumental das reprodues fotogrficas avana sobre os textos e sobre o leitor. Seja o que for que estivermos vendo a reproduo de um trabalho j existente ou, como diz o texto introdutrio j citado, outro trabalho66 as imagens apresentam-se generosamente ao olhar do leitor, mostrando detalhes que talvez s fossem visveis num embate direto com as obras. Revelam-se de fato irredutveis aos textos, e estes parecem compreender essa condio, j que evitam uma abordagem distanciada, normatizadora, para se dissolverem na ambigidade das imagens. Tomemos como exemplo a pgina em que Paulo Sergio Duarte e Tunga formam a sua parceria: uma grande reproduo fotogrfica do trabalho Plpebras (1979) mescla-se aos grafismos de um desenho do artista do mesmo ano, pertencente srie Cenas Brasileiras. A juno desses dois trabalhos, ou melhor, de suas reprodues, cria um terceiro objeto, imanentemente grfico, cujas dimenses coincidem com as dimenses da pgina impressa. No se estabelece em nenhum momento a distncia entre a imagem e o texto que seria necessria para uma abordagem crtica desinteressada. Pelo contrrio, o texto de Paulo Sergio Duarte funciona de

    65 Captulo 3 Leitura silenciosa e a imagem em Malasartes

    66 A PARTE DO FOGO. Op. cit.

  • 37

    O fato de pegar de imediato tornou, paradoxalmente, a existncia da revista difcil logo apareceu a deciso, a inesperada deciso do que fazer com ela. Cumprido o seu papel inicial em torno do qual todos se agruparam , imps-se a necessidade de redefinir o projeto. E havia vrios deles, dois dos quais se materializaram, antagnicos. Um dos projetos gostaria de repotencializar o veculo, torn-lo um fluxo de informaes culturais amplas. O outro preferia radicaliz-lo, transform-lo em algo mais prximo a um contexto produtivo, artstico e terico. Este redator militava pelo segundo projeto. O importante, o que acabou sendo crucial, foi que os dois pareciam, ento, excludentes entre si.62

    provvel que a diviso que assolaria o corpo editorial de Malasartes,

    alegada no depoimento de Ronaldo Brito, nos ajude a entender o aparecimento de A Parte do Fogo como uma espcie de desdobramento daquela. Se verdade que havia em Malasartes dois projetos antagnicos, sendo que um dos projetos gostaria de repotencializar o veculo, torn-lo um fluxo de informaes culturais amplas enquanto o outro preferia radicaliz-lo, transform-lo em algo mais prximo a um contexto produtivo, artstico e terico63, bastante provvel que esse segundo projeto, pelo qual Brito

    militaria, constitusse o embrio de A Parte do Fogo. De fato, no h dvidas de que A Parte do Fogo busca se aproximar dos

    trabalhos de arte: a diferena principal em relao Malasartes o fato de que essa aproximao obedece a uma estrutura que, embora bastante comum no universo das artes plsticas, fora pouco explorada pela publicao anterior: o embate direto crtico-obra, expresso atravs de um texto cuja inteno analtica mede foras com o que poderamos denominar pesquisa de linguagem do texto. No tendo havido outros nmeros, no podemos saber se essa forma de aproximao produo artstica viria a constituir um programa.

    Mas se no temos continuidade, A Parte do Fogo nos oferece uma longa carta de intenes abrindo o seu nmero nico. Segundo esta:

    A Parte do Fogo um espao em que trabalhos vo agir. No se trata de transport-los simplesmente para a folha de papel impressa. Assim como o desenho de um cachimbo no um cachimbo, os trabalhos aqui presentes so outro trabalho, A Parte do Fogo.64

    62 BRITO. Op. cit., 1983, p.53.

    63 Idem, ibidem.

    64 A PARTE DO FOGO. Rio de Janeiro, n.1, mar. 1980.

  • 36

    frente, temos a reedio do texto Introduo a Volpi58, de Mario Pedrosa, escrito no mesmo ano que Teoria do no-objeto ambos, artista e crtico, ligados de modo lateral ao movimento neoconcreto. , no entanto, no terceiro nmero de Malasartes que a referncia ao movimento ganha maior destaque, com a publicao da parte inicial do texto Neoconcretismo, de Ronaldo Brito59. O cabealho do texto deixa claro a importncia do tema:

    Momento de ruptura das vanguardas construtivas brasileiras, abertura experimental para a arte dos anos 60 e 70, o Neoconcretismo um dos temas mais importantes a serem elucidados tendo em vista o processo de produo da arte contempornea no Brasil.60

    Recentemente, Ronaldo Brito reiteraria o quanto o momento dominado pelo neoconcreto e seus desdobramentos constituiu-se em base para sua ao como crtico de arte:

    claro que o meu esforo era justamente dar uma visibilidade pblica s artes plsticas, mesmo por que eu compreendia este processo como sendo de fato a vanguarda da nossa cultura, muito mais do que qualquer outra manifestao, em qualquer campo: aquela juno de Sergio Camargo, Lygia Clark, Amlcar de Castro, Weissmann, na poca o Sued j estava produzindo, Mira Schendel - e tinha um passado com Volpi, Da Costa... Enfim, aquilo tudo tinha uma riqueza inigualvel, apesar da alta qualidade da poesia brasileira, mas eram poucas figuras, espordicas. A arte tinha sido de fato o grande laboratrio moderno do Brasil. E ao mesmo tempo tambm invisvel.61

    O depoimento de Ronaldo Brito para Arte em revista sobre Malasartes nos permite inferir uma relao entre esta e A Parte do Fogo, a partir do trecho a seguir:

    58 PEDROSA, Mario. Introduo a Volpi. Malasartes. Rio de Janeiro, n.2, p. 32-33, 1975-76.

    59 BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo. Malasartes, Rio de Janeiro, n. 3, p. 9-13, abr.-jun. 1976.

    O texto integral seria publicado apenas em 1985. BRITO, Ronaldo. Neoconcretismo: vrtice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. Rio de Janeiro: Funarte, 1985. 60

    MALASARTES. Op. cit., 1976, p. 9. 61

    Entrevista concedida por Ronaldo Brito ao autor em 21 de setembro de 2005, no Rio de Janeiro.

  • 35

    ambiental - desenho no impasse54, escrito por Lina Bo Bardi em 1975 e que pode ser lido como uma atualizao e adaptao do assunto para o contexto nacional.

    O interesse que Malasartes mostra em relao movimentao artstica internacional no desvia a ateno do corpo editorial do passado recente da arte brasileira. H uma referncia que surge com persistncia em Malasartes, e confirma esse interesse: o movimento neoconcreto e suas reverberaes parecem representar, na viso da revista, o parmetro artstico nacional que o modernismo no foi capaz de constituir. O primeiro texto brasileiro de importncia histrica a ser reeditado em suas pginas Teoria do no-objeto55, escrito por Ferreira Gullar em 1959 e saudado por Malasartes como uma das mais inteligentes produes tericas da arte brasileira56. Teoria do

    no-objeto um texto-chave para a compreenso do movimento neoconcreto; oferece uma leitura dos trabalhos de final da dcada de 1950 de Lygia Clark, Amlcar de Castro, Franz Weismann, Hlio Oiticica, Alusio Carvo e Dcio Vieira (so estes os artistas citados por Gullar) - leitura essa que procura situ-los em relao a seus antecedentes modernos europeus, fazendo essa conexo segundo um ponto de vista novo, influenciado pela fenomenologia.

    Cabe lembrar que o texto havia sido originalmente publicado em 1959 num meio de comunicao de grande circulao no Rio de Janeiro, o Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (com a ousada e notria diagramao de Amilcar de Castro, tambm reproduzida em Malasartes), o que conferiu grande alcance ao mesmo.

    No nmero seguinte, a referncia ao movimento neoconcreto retorna, mas de maneira indireta: duas pginas so dedicadas ao trabalho Eat me a gula ou a luxria57, projeto para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro de autoria de Lygia Pape, das principais artistas ligadas ao neoconcretismo; mais

    54 BARDI, Lina Bo. Planejamento ambiental desenho no impasse. Malasartes, Rio de

    Janeiro, n.2, p.4-7, dez-fev, 1975-76. 55

    GULLAR, Ferreira. Teoria do no-objeto. Malasartes, Rio de Janeiro, n.1, p. 26-7, set.-nov. 1975. 56

    MALASARTES. Op. cit., 1975, p. 26. 57

    MALASARTES, Rio de Janeiro, n.2, p. 22-3, dez-fev, 1975-76.

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    que o corpo editorial de Malasartes parece ter como objetivo a apresentao de uma polaridade radical, cujos extremos delimitariam um espectro de posturas possveis a respeito da arte contempornea: de um lado, uma viso lgico-lingstica da arte, auto-referencial e tautolgica, que sustenta que a nica possibilidade da arte manter-se rigorosamente dentro de seus limites, sem veicular quaisquer informaes sobre outra coisa49; de outro, uma postura agressiva quanto ao arcabouo institucional da arte, que defende a imploso no apenas deste mas da prpria figura do artista como uma profisso e a dissoluo de suas particularidades no barulho do mundo.

    Malasartes toma partido nessa contenda? Aparentemente no; seus editores preferem transitar entre esses extremos, coloc-los na berlinda, evitando adotar as prescries assertivas de um e de outro. Poderamos dizer que h um sentido iluminista, quase-pedaggico, na publicao desses dois textos, na medida em que eles constituiriam, qual dois pontos de apoio distantes entre si, uma base firme que oferecesse uma idia do campo de batalhas que marcava a arte contempornea internacional de ento.

    A revista traz outras trs tradues em suas edies, cujos assuntos de alguma maneira repercutem no conjunto-universo de Malasartes: O problema do provincianismo50, de Terry Smith, discutindo os percursos e dilemas dos circuitos locais de arte diante da supremacia de Nova Iorque51 (apesar do texto fazer um estudo de caso australiano, est em sintonia com a preocupao da revista em investigar as contradies na relao entre arte nacional / arte internacional); A Arte e o Sistema da Arte52, texto escrito por Achille Bonito Oliva, que discute os paradoxos da relao entre produo artstica, pblico e mercado de arte, tema preferencial de Malasartes; e Arte/Design53, de autoria de Marc Le Bot, que explicita o carter ambguo que marcou as relaes entre as vanguardas artsticas do incio do sculo e o modo de produo capitalista, tendo como uma de suas conseqncias o desenvolvimento do design moderno sobre essa questo, Malasartes publicaria tambm Planejamento

    49 KOSUTH. Op. cit., p. 11.

    50 SMITH, Terry. O problema do provincianismo. Malasartes, Rio de Janeiro, n.1, p.30-32, set.-

    nov. 1975. 51

    Idem, p. 30. 52

    OLIVA, Achille Bonito. A arte e o sistema da arte. Malasartes, Rio de Janeiro, n.2, p.24-26, dez-fev, 1975-76. 53

    LE BOT, Marc. Arte/design. Malasartes, Rio de Janeiro, n. 3, p. 20-24, abr.-jun. 1976.

  • 33

    No terceiro nmero de Malasartes, aparece a traduo de A educao do a-artista46, texto de 1969 de Allan Kaprow de carter combativo, ainda imerso na atmosfera dos acontecimentos da primavera de 1968. O texto procura apontar as limitaes expressivas e comunicativas das aes consideradas artsticas num mundo dominado pelos efeitos espetaculares da tecnologia e da cultura de massa, condenando veementemente a insistncia dos artistas em permanecer no territrio da arte a despeito dessa situao, mesmo quando suas aes simulam uma excurso extra-muros.

    Em seu conjunto, o texto caracterizado por uma prosa enrgica e provocativa, que mistura apologia tecnolgica e iconoclastia. Kaprow desfia uma srie de referncias do mundo da arte (George Brecht, Bem Vautier, Joseph Kosuth, Max Neuhaus, Dennis Oppenheim, Michael Heizer etc), sempre em comparao desprivilegiada a cones das dcadas de 1960 e 1970 (Centro Espacial de Houston, Apolo 11, video-tapes, Las Vegas, supermercado, testes de msseis etc). Um dos inmeros alvos de Kaprow, talvez o preferencial, claramente o fazedor de conceitos Joseph Kosuth47 e seu conceito tautolgico da arte:

    Estando a realidade comum to brilhantemente iluminada, qualquer um que se proponha a criar algo ir sofrer uma comparao impossvel de vencer entre o que fizer e os seus equivalentes supervvidos no mundo em torno. Pretender estar fora desse grande circo impossvel. Artistas que fazem ARTE podem conseguir evitar, custa de muitas declaraes, que seu trabalho no seja comparado diretamente com a vida real; mas no conseguem evitar o confronto com os no-artistas. E desde que a no-arte deriva sua frgil inspirao de tudo exceto arte, ou seja, diretamente da vida, a comparao entre a ARTE-arte e a vida ser feita de qualquer maneira.48

    de se esperar que indaguemos qual o objetivo de Malasartes ao

    publicar tradues de textos de dois artistas cujas posies so to explicitamente opostas, ainda mais quando nos damos conta de que so os dois nicos textos escritos por artistas estrangeiros a surgir em suas pginas. Para alm da importncia de Kosuth, Kaprow e seus respectivos escritos, o

    46 KAPROW, Allan. A educao do a-artista. Malasartes, Rio de Janeiro, n. 3, p. 34-36, abr.-

    jun. 1976. 47

    Idem, p.35. 48

    Idem, ibidem.

  • 32

    exatamente com os trabalhos da srie Inseres em circuitos ideolgicos; nessa exposio, a arte brasileira experimenta a sensao incomum de ocupar um espao vis vis com a produo de arte contempornea internacional, na qual esto inseridos os trabalhos de Joseph Kosuth. Cildo e Kosuth prope encaminhamentos distintos para a arte contempornea, em face dos dilemas que ela parece enfrentar na segunda metade da dcada de 1960. Kosuth claro em Arte depois da filosofia:

    As obras de arte so proposies analticas, isto , se observadas dentro de seu contexto como arte no veiculam quaisquer informaes sobre outra coisa. (...) As proposies de arte no so factuais, mas lingsticas em carter, ou seja, no descrevem o comportamento de objetos fsicos ou mentais, mas exprimem definies de arte ou as conseqncias formais dessas definies. Como conseqncia, podemos dizer que a arte funciona em uma lgica.45

    No parece difcil observar que, denominemos ou no as Inseres em circuitos ideolgicos como arte conceitual, arte processual ou algo do gnero, o trabalho de Cildo Meireles desafia frontalmente a definio de arte preconizada por Kosuth. As Inseres em circuitos ideolgicos fazem questo de veicular informaes sobre assuntos extra-artsticos (proposies sintticas, segundo o conceito kantiano usado por Kosuth), j que utilizam-se de circuitos de objetos existentes numa sociedade de consumo para veicular mensagens de cunho explicitamente poltico, como Quem matou Herzog? ou a receita para a confeco de um coquetel Molotov.

    Ao aproximar o texto de Kosuth de Inseres em circuitos ideolgicos, Malasartes opera uma provocao, mesmo que involuntria aps traduzir e expor de maneira generosa as idias do artista norte-americano acerca da arte, a revista mostra reprodues de trabalhos que, enfrentando dilemas anlogos, sugerem respostas diametralmente opostas e revela uma inesperada auto-confiana, j que se sente vontade para contrapor, sem quaisquer mediaes, a produo artstica de um de seus editores formulao terico-prtica de um artista que representa um dos desdobramentos mais polmicos e influentes na discusso de arte contempornea internacional da poca.

    45 KOSUTH. Op. cit., p.11.

  • 31

    Quando Ronaldo Brito se refere ao contexto produtivo41 de Malasartes, obviamente no est falando apenas dos trabalhos feitos pelos editores-artistas da revistas e pelos trabalhos apresentados nas diversas sees da mesma. H toda uma srie de referncias mais ou menos importantes que aparecem nos trs nmeros da revista, seja na forma de reprodues fotogrficas, seja na

    forma de textos, seja na forma de referncias implcitas. Essas referncias, nacionais e estrangeiras, constituem um solo de fixao de Malasartes, e devem ser investigadas.

    As tradues presentes na revista evidenciam o interesse de seus editores pela discusso de arte contempornea internacional. Dois desses textos traduzidos tm como autores figuras-chave da arte norte-americana nas dcadas de 1960 e 1970: Joseph Kosuth e Allan Kaprow. Do primeiro, Malasartes publica a primeira verso em portugus de Art after Philosophy42 - principal texto do artista, que viria a balizar uma das vertentes centrais da arte conceitual, ligada a um entendimento exclusivamente lingstico das possibilidades da arte na contemporaneidade. Para alm do ineditismo do texto no contexto brasileiro, h mais um aspecto que confere importncia presena de Kosuth no nmero inicial de Malasartes: a sugesto de uma contenda artstica, que ope o artista norte-americano a um dos editores da publicao.

    O texto que sucede a traduo de Art after Philosophy o j citado Quem se desloca recebe quem pede tem preferncia43, coletnea de pequenos textos e reprodues de trabalhos do panorama artstico brasileiro, cuja seleo ficara a cargo do editor-artista Cildo Meireles. Entre os trabalhos selecionados, destaca-se a srie Inseres em circuitos ideolgicos, de autoria do prprio Cildo, nica interveno de Quem se desloca ... a ocupar uma pgina inteira. O contraste com o texto de Kosuth fica evidente: Cildo Meireles um dos artistas brasileiros a participar da exposio Information44, realizada em 1970 no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, reunindo experimentaes artsticas ligadas ento recm-surgida arte conceitual,

    41 BRITO. Op. cit., 1983, p.53.

    42 KOSUTH, Joseph. Arte depois da Filosofia. Malasartes, Rio de Janeiro, n. 1, p.10-13, set.-

    nov. 1975. 43

    MEIRELES. Op. cit., p. 15. 44

    Ver nota 16.

  • 30

    a publicao: fotos e palavras parecem se espalhar seguindo uma razo orgnica, desrespeitando a sobriedade grfica predominante em Malasartes36. O resultado uma mirade de manifestaes imagticas e verbais que favorecem a mistura e a confuso, aparentando uma luta pela liberdade no universo grfico esquadrinhado da revista.

    O nmero inicial de Malasartes, como se v, prdigo na apresentao de polaridades. A presente ambivalncia, relacionada ao contexto produtivo que baliza a revista, ope de um lado uma produo de carter lgico, cerebral, com formalizao rigorosa e parcimoniosa, e de outro trabalhos de elevado teor confessional e comportamental, marcados por altas doses de expressividade e contrastes violentos. Malasartes um e outro: seus nmeros subseqentes provam isso. No nmero 2, por exemplo, temos dois ensaios fotogrficos que encenam uma polaridade anloga: ao rigor formal com o qual so apresentadas as imagens de Miguel Rio Branco que compem o ensaio Satlites37, contrape-se a reportagem fotogrfica de Carlos Vergara, intitulada L L Cacique o bom...38, repleta de movimento, ritmo e energia. No nmero 3, o fenmeno se repete: logo aps os sbrios enigmas lingsticos de Mario Ishikawa, surge uma pgina assinada pelo poeta Chacal39, anunciando o lanamento de Artimanha, evento-performance ligado poesia marginal carioca:

    Artimanha se faz com artifcio e artimanha artefato plstico

    pernas palcos e vedetes chicletes chacretes folia artimanha comcio na cinelndia na central perigosssimo o incio do fim de tudo o nada incrementado um bolo confeitado

    enfeitiado40

    36 Captulo 3 Leitura silenciosa e a imagem em Malasartes

    37 RIO BRANCO, Miguel. Satlites. Malasartes, Rio de Janeiro, n.2, p.15-17, dez-fev, 1975-76.

    38 VERGARA, Carlos. Cacique de Ramos. Malasartes, Rio de Janeiro, n.2, p.27-31, dez-fev,

    1975-76. 39

    CHACAL. Artimanha: ardil, artifcio, astcia. Malasartes, Rio de Janeiro, n. 3, p. 32, abr.-jun. 1976. 40

    Idem.

  • 29

    certamente presentes na Leitura Silenciosa de Waltercio Caldas33, e reaparecem em alguns momentos posteriores de Malasartes, como no artigo Mario Ishikawa34, que traz reprodues da obra predominantemente grfica do artista.

    J em Quem se desloca recebe quem pede tem preferncia, o tom que predomina outro. O texto de Guilhereme Vaz, presente nessa seo, claro quanto a isso:

    Entre os anos 1969/1972... alguns artistas desenvolveram no Rio (ponto apenas central de suas aes) trabalhos em torno de uma alta intensidade. Existe uma lei natural que diz que, para haver fuso entre elementos extremamente diferentes, necessria uma temperatura ambiente altssima. possvel que isto tambm ocorra nos fenmenos da percepo. Em altas temperaturas as categorias, os elementos, so checados em sua intensidade. Um artista plstico transforma-se em msico (Cildo Meirelles: compacto Caraxia 1970) ou um msico em artista plstico (Guilherme Vaz: Objetos Quentes 1969). Nada em tudo (Tereza Simes: telas brancas 1970), crtica de arte em arte (Frederico Morais: Exposio Nova Crtica sobre Exposio Agnus Dei 1970), percursos em trabalhos (Luis Alphonsus: Tunel 1969), lixo em linguagem (Barrio 1969) (...) Hoje esta energia e a maioria dos artistas que a habitavam esto dispersados.35

    O texto, de 1975, faz o elogio de valores opostos queles presentes no texto de Carlos Zlio, que podem ser sintetizados em expresses como altas temperaturas, alta intensidade e energia. O aspecto volitivo, que segundo o texto teria desaparecido do panorama artstico carioca, parece ter deixado saudades no autor do trecho citado. De qualquer modo, Quem se desloca recebe quem pede tem preferncia pleno de trabalhos que trafegam num ambiente de alta intensidade: os fotogramas que mostram Artur Barrio beijando uma superfcie transparente; os trechos de dilogos de Vicente Pereira, cheios de referncias violncia e ao sexo; o depoimento de Tunga, no qual o artista declara que o campo de ao do meu trabalho o desejo; as fotografias de Luiz Fonseca evocando o imaginrio jaqueta de couro / culos escuros, de clara conotao homossexual. A prpria diagramao dos textos e imagens nas pginas de Malasartes desobedece ao rigor e limpeza que caracterizam

    33 CALDAS, Waltercio. Leitura Silenciosa. Malasartes, Rio de Janeiro, n. 1, p.8-9, set.-nov.

    1975. Captulo 3 Leitura silenciosa e a imagem em Malasartes 34

    MARIO ISHIKAWA. Malasartes, Rio de Janeiro, n. 3, p. 30-31, abr.-jun. 1976. 35

    VAZ, Guilherme. Pequena notcia meteorolgica. In: MEIRELES. Op. cit., p. 14.

  • 28

    Malasartes apresenta trabalhos de artes visuais em seus trs nmeros. No seria insensato tomar esses trabalhos como um indcio dos tipos de produo artstica que interessam publicao. Alguns artistas mereceram uma ateno especial, que se explicita na forma de uma seo dedicada

    individualmente a determinada produo. Em seu nmero 1, a revista traz o trabalho Leitura Silenciosa, de Waltercio Caldas, e dedica outras duas pginas para produo recente de Carlos Zilio, acompanhada de texto produzido pelo artista; alm disso, h uma seo denominada Quem se desloca recebe quem pede tem preferncia31, organizada por Cildo Meireles e com reprodues de trabalhos e textos de Raymundo Collares, Guilherme Vaz, do prprio Cildo Meireles, Tunga, Claudio Paiva, Vicente Pereira, Umberto Costa Barros, Teresa Simes, Alfredo Fontes, Artur Barrio, Luiz Alphonsus e Luiz Fonseca. Podemos encontrar j nesse primeiro nmero uma espcie de polaridade, que se desdobrar nos nmeros seguintes. Os espaos ocupados por Waltercio Caldas e Carlos Zilio so - a despeito das diferenas importantes entre ambos e aproveitando a sugesto do ttulo do primeiro silenciosos, aparentemente ligados a um temperamento

    lgico e impessoal. Podemos pens-los levando em conta o texto de Carlos Zlio que acompanham as imagens do seu trabalho:

    Alguns componentes bsicos so importantes de se destacar. H uma tentativa de romper com o fetichismo que separa o trabalho de arte do espectador. Nesse sentido foram dados elementos que lhe possibilitem uma reflexo mais direta, atravs principalmente, da explicitao do cdigo. So diversos os meios utilizados. Acreditamos que no existem suportes mais ou menos contemporneos em si. A questo no deixar que sejam manipulados pelo circuito. No existem cores, bastam o preto e o branco. As idias so representadas pelos elementos suficientes sua concretizao. Deste modo, estabelecemos uma relao direta entre o real, a reflexo e a economia de meios na representao. A realidade no comporta o suprfluo.32

    Explicitao do cdigo, ausncia de cores, nfase no aspecto reflexivo, economia de meios. Essas caractersticas, evocadas no texto de Zilio, esto

    31 MEIRELES, Cildo. Quem se desloca recebe quem pede tem preferncia. Malasartes, Rio de

    Janeiro, n.1, p. 14-19, set.-nov. 1975. 32

    ZLIO, Carlos. Carlos Zlio. Malasartes, Rio de Janeiro, n. 1, p. 28, set.-nov. 1975.

  • 27

    crena nas reais possibilidades da arte em efetivar uma ao poltica no mundo

    e lograr alguma eficincia para alm das fronteiras da arte. A origem militar da palavra vanguarda deixa claro a opo pelo enfrentamento imediato e a confiana na eficcia desse gesto.

    A comparao entre reflexes produzidas a partir de terrenos distintos como os das artes visuais e da poesia pode incorrer em certas dificuldades, oriundas do fato de que a poesia ocupou sempre no contexto brasileiro uma posio quase clandestina, mesmo quando comparada falta de estruturao do meio de artes visuais no pas. Segundo esse pensamento, seria natural a aproximao entre poesia e condio marginal no teria como ser de outra forma. A contradio parece estar menos no fato de Eudoro Augusto e Bernardo de Vilhena estarem assumindo esses valores no interior do contexto Malasartes e mais na heterodoxa aproximao entre esses escritores e os

    demais editores da revista. Retornaremos mais frente a aspectos aparentemente contraditrios em Malasartes que guardam afinidade com a questo discutida acima.

    Finalmente, chegamos ao terceiro tem que explicaria o que foi Malasartes, segundo o depoimento de Ronaldo Brito: a revista teria sido - alm de um momento cultural e uma certa associao - um contexto produtivo30. Como observamos at aqui, ser impossvel extrairmos uma homogeneidade que se refira a esse contexto produtivo: ele multifacetado, apresenta rupturas e continuidades com a dcada anterior, desenvolve-se segundo velocidades e densidades diferentes dentro da trajetria de cada artista, repercutindo em distintos timbres os acontecimentos da arte contempornea internacional. Mas h algumas motivaes que so supra-individuais, podendo ser observadas aqui e acol e que representam um peso considervel no conjunto Malasartes. Passemos a elas.

    que pregam o bem-estar, a vida em famlia, mas que s funcionam para uma pequena minoria. (...) S um mau-carter poderia ser contra um Antnio Conselheiro, um Lampio, um Cara de Cavalo, e a favor dos que os destruram. OITICICA. Op. cit., p.82. 30

    BRITO. Op. cit., 1983, p.53.

  • 26

    Introduo e Anlise do circuito. Conscincia Marginal26 o ttulo do ltimo

    texto de Malasartes nmero 1. Assinado por Eudoro Augusto e Bernardo de Vilhena, esse texto refere-se poesia nacional e traz uma breve introduo sobre a condio marginal do poeta brasileiro (ou mais especificamente carioca), seguida por uma coletnea de poesias de escritores como Chacal, Afonso Henriques Neto, Ronaldo Bastos, Ana Cristina Csar e dos prprios organizadores.

    Por trs de certo ar melanclico presente no texto que antecede a coletnea de poesias, podemos observar um quase-elogio de uma prtica literria definida como marginal, que estaria alijada das vias de trnsito tradicional (o livro assumido comercialmente pela editora, exposto e vendido em livrarias, reconhecido por colunas e suplementos)27. Esse interesse e mesmo atrao pela situao marginal, que se apresenta como uma alternativa

    ao circuito convencional, fica explcito no trecho transcrito abaixo:

    Essa situao de marginalidade da poesia dentro do repertrio cultural brasileiro provoca, de imediato, uma primeira pergunta: em que mos anda a poesia? (Onde se l cultural, leia-se mercantil, leia-se oficial; onde se l poeta, por que no ler marginal?) (...) J sabemos que a civilizao est em boas mos, que a economia est em boas mos, que o poder passa de boas em boas mos. E a poesia, est em boas mos? Esperamos que no.28

    A condio marginal segundo a qual se definiria a poesia brasileira retoma uma srie de valores que caracterizaram tanto as vanguardas

    europias de incio de sculo XX como parte da movimentao artstica brasileira da dcada de 1960. A mxima com a qual Hlio Oiticica ritualizou a morte do bandido Cara-de-Cavalo Seja marginal, seja heri d bem a medida da identidade que estabelecida entre marginalidade, herosmo, vanguarda, todos valores que seriam erigidos contra as instituio burguesas, dentre as quais est a arte29. Nesse rol de valores, encontramos tambm a

    26 AUGUSTO, Eudoro; VILHENA, Bernardo de. Conscincia Marginal. Malasartes, Rio de

    Janeiro, n.1, set.-nov. 1975. 27

    Idem, p. 34. 28

    Idem, ibidem. 29

    Como verdadeira a imagem do marginal que sonha ganhar dinheiro num determinado plano de assalto, para dar casa me ou construir a sua num campo, numa roa qualquer (modo de voltar ao anonimato), para ser feliz! Na verdade o crime a busca desesperada da felicidade autntica, em contraposio aos valores sociais falsos, estabelecidos, estagnados,

  • 25

    disboom, a atitude denominada como de vanguarda caracterizada como ingnua:

    No h dvida de que (...) as novas linguagens [a partir da Pop art] tm um dilogo pertinente e eficaz com a Histria da Arte Moderna. Mais do que isso, essas linguagens elaboram, diante da presso pelas novidades exercida pelo mercado, uma nova estratgia crtica de reao ao poder de manipulao do mercado. Num determinado sentido, essa nova estratgia at mais radical, porque menos ingnua, do que as vanguardas do incio do sculo XX com sua tematizao da Morte da Arte: o que parece estar em jogo agora o fim do artista. Ou seja, liberta da ideologia romntica do gnio, mas liberto tambm das ideologias reformistas das vanguardas construtivas com seu projeto de inserir a arte no ambiente social moderno, resta a essa espcie de produtores intervir no prprio processo de circulao social de seu trabalho, em todos os nveis que estiverem ao seu alcance.24

    No difcil supor que a recorrente meno ao termo vanguarda num sentido negativo, presente principalmente nos textos de Ronaldo Brito, funcione como uma espcie de demarcao de territrio em relao produo artstica da dcada de 1960 o uso desse termo numa acepo especfica, como seria de se esperar, no inocente. Mas a questo se complica no momento em que constatamos que Malasartes no representa um todo homogneo; pelo contrrio, revela contradies internas que so aparentemente inerentes proposta da revista, conforme consta na Introduo do primeiro nmero:

    Tradicionalmente, as revistas nas quais os artistas so maioria defendem um movimento, um ismo. Vindo de formaes diferentes, e com uma produo pessoal no menos diferente entre si, o que nos une um consenso sobre o papel que a arte desempenha em nosso ambiente cultural e o que ela poderia desempenhar.25

    Esse consenso mostra sinais de fragilidade em diversos momentos dos trs nmeros de Malasartes. No que se refere presente questo, curioso ver como a maneira pela qual a revista encerra seu nmero 1 parece divergir bastante do modo pelo qual essa edio foi aberta, com os j citados

    24 BRITO, CALDAS, RESENDE, ZILIO. Op. cit, p.25.

    25 INTRODUO. Malasartes, Rio de Janeiro, n.1, p. 4, set.-nov. 1975.

  • 24

    conversa entre os nove editores e suas vinte mil nsias e expectativas22 o autor revela uma outra disposio para com o conceito de vanguarda, relacionando esse conceito a um elemento ao qual Oiticica devotava inclemente desprezo: o mercado. Segundo Brito:

    A apropriao pelo mercado da produo contempornea no transforma significativamente o circuito. No mximo, introduz modificaes urgentes: o incentivo a suportes menos gastos, a reforma da escritura tradicional das exposies, um maior apoio terico etc. Uma atitude criticamente inteligente dos artistas (no s deles, mas de todos que se interessam por arte contempornea), em defesa de um campo de ao mais livre para os seus trabalhos, envolve a formulao de uma estratgia de ao dentro do mercado e do circuito que reconhea este fato. Convm no esquecer que, para certa faixa de consumidor, o termo mtico vanguarda oferece um apelo inexcedvel.23

    Por essa rpida comparao, fica evidente que o termo vanguarda adquire, num e noutro contexto, significaes distintas. No contexto do qual tomou parte como protagonista (como artista, articulador e terico), Hlio Oiticica pensa a vanguarda como uma possibilidade de produo de novos significados atravs da prtica crtica e combate aos valores convencionais da arte e da sociedade. Oiticica retoma assim o termo tal qual ele foi usado para se referir aos movimentos coletivos de arte moderna que eclodiram na Europa nas primeiras dcadas do sculo XX, embora no exista no artista carioca o carter programtico que caracterizou as chamadas vanguardas europias.

    Como aqueles, o artista carioca propunha a reviso radical do significado social da arte, a ligao estreita dessa s contingncias do mundo e o conseqente esvaecimento das fronteiras entre arte e mundo.

    No trecho de Malasartes que citamos acima, o termo vanguarda aparece em outra acepo: transforma-se num rtulo atribudo pelo mercado de arte a uma parcela da produo de arte contempornea devido a determinadas caractersticas formais aparentemente novas que essa produo apresentaria, com o objetivo de estimular sua circulao comercial e capitalizar sobre essa circulao. Pouco tempo depois, no mesmo texto O boom, o ps-boom e o

    22 BRITO. Op. cit., 1983, p. 53.

    23 BRITO. Op. cit., 1975, p. 6.

  • 23

    brasileira. E o que significaria vanguarda nesse contexto? Na viso de Oiticica e de parte da produo artstica brasileira de ento, a arte de vanguarda parece caracterizar-se por uma peculiar conjuno de pesquisa de linguagem com expectativa de ao direta na realidade poltico-social, conjugada com um desafio s convenes sociais e comportamentais que caracterizaria o modus vivendi da classe mdia carioca de ento.

    A posio de Helio Oiticica enfrentaria, ainda na dcada de 1960, o questionamento de Ferreira Gullar, crtico que na dcada anterior compartilhara com Oiticica posies artsticas ligadas ao neoconcretismo. Em 1969, Gullar publica Vanguarda e subdesenvolvimento, texto no qual pretende combater a tese da potencial universalidade da vanguarda:

    A questo que agora se coloca a seguinte: essas concepes de vanguarda artstica correspondem a uma necessidade efetiva das sociedades subdesenvolvidas? As necessidades que, nessas sociedades, determinam a adoo das vanguardas europias so as mesmas que, na Europa, determinaram seu surgimento? O que vanguarda num pas desenvolvido ser obrigatoriamente vanguarda num pas subdesenvolvido?19

    Segundo Ferreira Gullar, a crena no carter universal da vanguarda estaria ligada a uma viso formalista20 de arte, que renega o que o autor denomina o contedo, o discurso, a subjetividade, o folclore, a temtica nacional21. Essa crena, que estaria na base da pretenso da arte brasileira em tomar parte numa discusso de arte internacional, identificada principalmente na atitude dos poetas concretos paulistas Augusto e Haroldo de Campos e Dcio Pignatari, que teriam, em relao aos neoconcretos, o agravante de no terem utilizado a idia de obra aberta para reconciliar arte e mundo.

    Em Malasartes, possvel encontrar em alguns momentos um posicionamento que contrasta com a viso de Oiticica. Logo no texto de abertura de seu primeiro nmero, Anlise do circuito que embora assinado por Ronaldo Brito, seria menos um texto de autor do que o resultado da

    19 GULLAR, Ferreira. Vanguarda e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora Civilizao

    Brasileira, 1978, p. 35. 20

    Idem, p. 49 21

    Idem, ibidem.

  • 22

    da promulgao do AI-5, mas suas produes esto inegavelmente conectadas ao contexto dos anos 1970, e ao longo dessa dcada que suas trajetrias adquirem corpo - muito embora o trabalho de Cildo Meireles j no incio da dcada tenha despertado interesse da crtica internacional17.

    Ronaldo Brito, o crtico de arte, era das figuras com menos experincia no ambiente cultural brasileiro dentre aqueles que tomaram parte no corpo editorial da publicao. Em suas prprias palavras:

    ...para este redator, o seu nico crtico de arte, a revista significou quase a primeira interveno direta na poltica cultural do pas. A atuao no semanrio Opinio [cujos primeiros artigos publicados sobre arte contempornea datam de 1973] era muito mais reservada do ponto de vista pessoal. Com Malasartes fiz a experincia do real do circuito de arte, sobretudo me expus ao contato com artistas e demias elementos desse circuito.18

    A pluralidade de editores, a diversidade de experincias anteriores que viveram, os diferentes tempos de produo em que se encontravam esse conjunto de caractersticas tornou Malasartes um objeto ambguo. Uma das marcas dessa ambigidade pode ser observada, por exemplo, na relao que a revista em sua totalidade estabeleceu com alguns valores fundamentais para a arte brasileira dos anos 1960: entre outros, o conceito de vanguarda artstica. O conceito de vanguarda, desnecessrio dizer, tornou-se central nos desdobramentos da arte brasileira nas dcadas de 50 e 60. Hlio Oiticica, por exemplo, inicia o seu conhecido texto Esquema Geral da Nova Objetividade da seguinte maneira: Nova Objetividade seria a formulao de um estado da arte brasileira de vanguarda atual (...); s depois de caraterizar a Nova Objetividade como de vanguarda que Hlio Oiticica ir definir suas caractersticas. Em outras palavras, como se o estado de vanguarda fosse

    uma condio mnima sobre o qual deveriam se assentar manobras da arte

    17 Cildo Meireles um dos artistas brasileiros que participariam de Information, exposio

    organizada por Kynaston McShine em 1970, no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, que reuniu cerca de uma centena de artistas que trabalhavam questes que pareciam representar desdobramentos da arte conceitual ou processual. 18

    BRITO. Op. Cit. 1983, p. 53.

  • 21

    Em seu depoimento Arte em Revista, citado no incio deste texto, Ronaldo Brito sugere pensar Malasartes tambm como uma certa associao. Essa associao tinha uma existncia formal: o corpo editorial da revista, composto por sete artistas plsticos - Carlos Vergara, Carlos Zilio, Cildo Meireles, Jos Resende, Luiz Paulo Baravelli, Rubens Gerchman e Waltercio Caldas - um crtico de arte Ronaldo Brito - e um escritor Bernardo de Vilhena. fcil notar uma heterogeneidade congnita nesse corpo editorial, que se manifesta com clareza nos textos presentes em seus trs nmeros: h denominadores comuns e divergncias, vontades predominantes e muitas posies no inteiramente explicitadas. conveniente que nos aproximemos, mesmo que brevemente, de cada um dos editores de Malasartes, no momento em que a sua produo interseccionou-se com a revista, a fim de investigarmos de que modo o tempo pessoal relacionou-se com o tempo coletivo, caso a caso. Como lembra Brito:

    ...para a maioria dos seus artistas-editores, Malasartes seria j o segundo, terceiro ou quarto lance, em suas histrias pessoais, dentro do meio cultural brasileiro. Tratava-se, pois, para eles, tanto de adotar novas posies quanto de reafirmar posies anteriores.14

    Dentre os editores de Malasartes, Rubens Gerchmann sem dvida aquele que desempenhava o quarto lance15 segundo a expresso de Brito -, j que o artista desenvolveu a parte mais significativa de sua produo ainda na dcada de 1960, sendo protagonista da corrente que seria denominada por Helio Oiticica Nova Objetividade16. Carlos Vergara e Carlos Zlio tambm tomaram parte nos lances finais dessa movimentao, mas poca de Malasartes j revelavam novas preocupaes artsticas. Jos Resende e Luiz Paulo Baravelli, os dois paulistas do corpo editorial, j haviam compartilhado dois projetos coletivos coletivas - a Rex Gallery and Sons (1965-66) e a Escola Brasil (1970) e visvel que a dcada de 1970 sugere transformaes mais radicais no trabalho daquele do que deste. Cildo Meireles e Waltercio Caldas tm seus primeiros trabalhos datados do final da dcada de 1960, pouco antes

    14 BRITO. Op. Cit. 1983, p. 53.

    15 Idem.

    16 OITICICA, Hlio. Esquema geral da Nova Objetividade. In: Aspiro ao grande labirinto. Rio de

    Janeiro: Rocco, 1986, p. 84.

  • 20

    falsa e o oferecimento de uma mesma obra como garantia de emprstimo a mais de uma instituio.11

    Malasartes d especial destaque relao entre produo e mercado de arte: Anlise do circuito tem como foco principal essa relao. No pouco,

    se pensarmos que esse o primeiro texto do nmero inaugural da revista; ele comea da seguinte forma: Nos ltimos anos, circuito e mercado de arte

    pareciam uma coisa s. Ainda parecem, talvez12. A idia da presena crescente do mercado nas etapas da produo e circulao de arte, que no caso brasileiro adquiriria feies peculiares devido ao seu carter fragmentrio, tambm cerne do texto A arte e o sistema da arte, de Achille Bonito Oliva,

    cuja traduo consta de Malasartes nmero 2. De qualquer modo, o discurso mais eloqente a respeito desse assunto seria expresso no texto O boom, o ps-boom e o disboom:

    No h dvida de que o nvel e a quantidade das transaes se multiplicaram, mas deve-se perguntar se isso produziu um vnculo mais efetivo entre o mercado e a produo. Isto , se este processo determinou uma transformao qualitativa no tipo de relao entre o mercado e a produo. Pode-se dizer que o que de fato ocorreu foi um processo acelerado de compra e revenda de obras, ou seja, um mecanismo dinheiro-mercadoria-dinheiro (D-M-D), que gera apenas lucro. Ora, no se formando nenhum vnculo entre mercador e produtor, a exemplo do que sucede nos mercados centrais, no se configura a mais valia e conseqentemente no se produz nenhum nvel de tenso entre mercado e produo. Quer dizer: no ocorre o processo de acumulao que poderia determinar uma ampliao real do mercado e com isso gerar um desenvolvimento da produo local. Os agentes do circuito exageraram o tamanho do boom: ele no foi suficiente para materializar um verdadeiro mercado de arte no Brasil, uma instncia que transacione com a produo local e se interesse pela construo de uma Histria da Arte Brasileira. O boom nada mais foi do que um momento de intensificao desse comrcio especulativo de objetos institucionalizados como arte por instncias mais ou menos separadas do prprio mercado de arte local.13

    11 FIORAVANTE, Celso. O marchand, o artista e o mercado. In: Arco das Rosas O marchand

    como curador. So Paulo: Casa das Rosas, 2001. 12

    BRITO, Ronaldo. Op. cit., 1975, p.5. 13

    BRITO, CALDAS, RESENDE, ZILIO. Op. cit, p.184-5.

  • 19

    relacionadas arte contempornea, embora surjam algumas importantes excees7; a Bienal de Arte de So Paulo convive com um amplo boicote de artistas brasileiros e estrangeiros a partir de 1969, devido ditadura militar. Paralelamente a essa aparente desmobilizao, o incio da dcada de 1970 assiste a uma intensificao na circulao comercial de obras de arte no eixo Rio de Janeiro - So Paulo8, caracterizando o queria seria denominado por boom, termo usado por Malasartes no texto Anlise do Circuito9, de Ronaldo Brito, e que seria o tema central de O boom, o ps-boom e o disboom10, publicado meses aps do encerramento das atividades da revista e escrito por quatro ex-editores da mesma: Ronaldo Brito, Carlos Zilio, Jos Resende e Waltercio Caldas.

    Segundo esse texto, a suposta financeirizao do meio de arte brasileiro, que transformaria a obra de arte em investimento, no teria passado de um surto especulativo, beneficiado pela promoo recente de classes mdias urbanas em busca de legitimao social, no constituindo uma rede

    permanente e complexa de relaes que efetivariam a existncia de um mercado de arte brasileiro minimanente conectado com a produo contempornea. O maior exemplo da artificialidade que marcou em parte a intensificao da circulao comercial de obras de arte na primeira metade da dcada de 1970 foi o caso da Galeria Collectio, capitaneada pelo italiano Paolo Businco sob o nome falso de Jos Paulo Domingues da Silva, que por alguns anos entre 1969 e 1973 ajudou a construir um clima de entusiasmo comercial cuja base eram vendas fictcias, emprstimos feitos atravs de documentao

    7 Dentre estas excees, destacam-se: a Jovem Arte Contempornea, projeto institudo por

    Walter Zanini no Museu de Arte Contempornea de So Paulo, entre 1967 e 1974; a Sala Experimental do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, espao dedicado a produo contempornea, aberto em 1975. 8 Essa intensificao comercial est ligada regulamentao do mercado de capitais,

    coordenada por Delfim Netto, ento ministro da Economia. Com a vigncia de novas leis econmicas, a obra de arte transforma-se numa opo de investimento, o que no entanto estimula o desenvolvimento do mercado unicamente no que diz respeito a obras ligadas ao modernismo, como o caso das pinturas de Cndico Portinari, Tarsila do Amaral e Emiliano Di Cavalcanti. 9 Como notrio, a consolidao do mercado de arte brasileiro o chamado boom se fez

    por intermdio de artistas cujas linguagens eram, digamos, redundantes e que por isso mesmo tinham penetrao mais fcil junto ao pblico. BRITO, Ronaldo. Anlise do circuito. Malasartes. Rio de Janeiro, n.1, p.5-6, set.-nov. 1975. 10

    BRITO, Ronaldo; CALDAS, Waltercio; RESENDE, Jos; ZILIO, Carlos. O boom, o ps-boom e o disboom. In: BASBAUM, Ricardo (org.). Arte contempornea brasileira: texturas, dices, fices, estratgias. Rio de Janeiro: Rios ambiciosos, 2001.

  • 18

    nas condies de produo de arte no pas que resultado entre outros das novas condies poltico-sociais internas, das mudanas na discusso de arte internacional, no exlio de Oiticica, Clark e Dias, da aparente intensificao da circulao comercial da arte no Brasil etc. J na primeira metade da dcada de 1970, a arte brasileira mostra uma feio algo diversa: menos enftica, aparentemente sbria e impessoal. Em So Paulo e no Rio de Janeiro, o trabalho de alguns artistas manifesta de maneira especialmente interessante essa indefinvel mudana de ares; alm disso, certa concordncia em torno de condies mnimas para a circulao da arte contempornea faz com que iniciativas coletivas reapaream: o caso das revistas que so o assunto deste texto.

    A relao que Malasartes estabelece com o contexto no qual est inserida assenta-se sobre algumas bases. Dentre elas, destaca-se a condenao da forma pela qual se deu a aproximao entre produo artstica e mercado de arte no meio cultural brasileiro. Segundo podemos ler em diversos textos presentes na revista, essa aproximao seria inexorvel, principalmente no ps-Guerra - nos Estados Unidos e em pases da Europa Ocidental, o mercado teria estabelecido um tal grau de proximidade com a produo artstica que no poderamos mais pensar ambos sem considerar as suas mtuas interaes e o atrito que promovem entre si.

    No Brasil, o meio de arte na dcada de 1970 tem outras caractersticas. O mercado de arte infinitamente menos estruturado se comparado ao que pode ser observado em contextos europeus ou nos Estados Unidos. As galerias tm existncia curta e sobrevivem graas a uma estrutura quase artesanal e a relaes pessoais. Outros mecanismos de institucionalizao da produo artstica, como revistas de arte, experimentam a mesma descontinuidade; o mercado editorial, por sua vez, tmido e no cumpre sua misso de repercutir e decantar a produo de arte contempornea. Instituies formais como os Museus de Arte Moderna de So Paulo e Rio de Janeiro, o Museu de Arte de So Paulo e o Museu de Arte Contempornea da Universidade de So Paulo diminuem sensivelmente suas iniciativas

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    popcretos), e por outro a atuao irnica e descontrada da Galeria Rex, sob a liderana de Wesley Duke Lee.

    Mesmo descrevendo de maneira sumria os desdobramentos da arte brasileira na dcada de 1960, conforme fizemos acima, fica a impresso de que essa efervescncia cultural efetivou algum espao pblico de discusso da arte contempornea no pas por um certo tempo, e que tal espao adquiriu uma relevncia que teria transbordado os crculos especializados. Essa impresso reforada pela aproximao do artista instituio, co