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REVISTA EM ABERTO INEP

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  • Rosi GiordanoSticky Notehttp://emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/viewFile/3302/2015

    Rosi GiordanoSticky NoteAccepted set by Rosi Giordano

  • COMIT EDITORIAL

    Osmar Fvero (UFF) CoordenadorJacques Therrien (UFCE)

    Marlia Gouvea de Miranda (UFG)Marisa Vorraber Costa (UFRGS)

    Romualdo Portela (USP)Rosa Helena Dias da Silva (Ufam)

    Rosa Maria Bueno Fischer (UFRGS)Walter Garcia (CNPq)

    CONSELHO EDITORIAL

    Nacional:Alceu Ravanello Ferraro UFRGS

    Ana Maria Saul PUC-SP Carlos Roberto Jamil Cury PUC-MG

    Celso de Rui Beisiegel USPCipriano Luckesi UFBA

    Clarissa Baeta Neves UFRGSDelcele Mascarenhas Queiroz Uneb

    Guacira Lopes Louro UFRGSJader de Medeiros Britto UFRJJanete Lins de Azevedo UFPE

    Leda Scheibe UFSCLuiz Carlos de Freitas Unicamp

    Magda Becker Soares UFMGMaria Clara di Pierro Ao Educativa USP

    Marta Kohl de Oliveira USPMiguel Arroyo UFMG

    Nilda Alves UERJPetronilha Beatriz Gonalves Silva UFSCar

    Rosa Helena Dias da Silva UfamRosngela Tenrio Carvalho UFPE

    Internacional:Almerindo Janela Afonso Universidade do Minho, Portugal

    Carlos Prez Rasetti Universidad Nacional de la Patagonia Austral, ArgentinaDomingos Fernandes Universidade de Lisboa

    Guiselle M. Garbanzo Vargas Universidad de Costa RicaJuan Carlos Tedesco Instituto Internacional de Planeamiento de la Educacin

    IIPE/Unesco, Buenos AiresMargarita Poggi Instituto Internacional de Planeamiento de la Educacin IIPE/Unesco,

    Buenos Aires

  • 90

    Sobre as 40 horas de Angicos,

    50 anos depoisMarcos GuerraClio da Cunha

    (Organizadores)

    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 1-226, jul./dez. 2013

    ISSN 0104-1037

  • Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (Inep) permitida a reproduo total ou parcial desta publicao, desde que citada a fonte.

    Assessoria Tcnica de Editorao e Publicaes

    Programao Visual

    Editor Executivo Rosa dos Anjos Oliveira | [email protected]

    RevisoPortugus Amanda Mendes Casal | [email protected] Aline Ferreira de Souza | [email protected] Clara Etiene Lima de Souza | [email protected] Elaine de Almeida Cabral | [email protected] Luana dos Santos | [email protected] Rosa dos Anjos Oliveira | [email protected] Roshni Mariana Mateus | [email protected] Andreza Jesus Meireles | [email protected] Normalizao Bibliogrfica Elisngela Dourado Arisawa |[email protected] Rosa dos Anjos Oliveira | [email protected]

    Digitao Amanda Mendes Casal | [email protected] Lilian dos Santos Lopes | [email protected]

    Diagramao e Arte-Final Jos Miguel dos Santos | [email protected]

    Tiragem 2.600 exemplares.

    Em Aberto online

    Gerente/Tcnico Operacional: Mathias Ammann | [email protected]

    Editoria Inep/MEC Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira Diretoria de Estudos Educacionais (DIRED) Assessoria Tcnica de Editorao e Publicaes SIG Quadra 04, Lote 327, Edifcio Villa Lobos, Trreo - Braslia-DF CEP: 70610-908 Fones: (61) 2022-3070, 2022-3077 - [email protected] - http://www.emaberto.inep.gov.br

    Distribuio Inep/MEC Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira Diretoria de Estudos Educacionais (DIRED) Assessoria Tcnica de Editorao e Publicaes SIG Quadra 04, Lote 327, Edifcio Villa Lobos, Trreo - Braslia-DF CEP: 70610-908 Fones: (61) 2022-3070, 2022-3077 - [email protected] - http://www.emaberto.inep.gov.br

    EM ABERTO: uma publicao monotemtica do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (Inep), destinada veiculao de questes atuais da educao brasileira. A exatido das informaes e os conceitos e as opinies emitidos neste peridico so de exclusiva responsabilidade dos autores.

    Indexada em: BibliografiaBrasileiradeEducao(BBE)/Inep Edubase/Unicamp Latindex

    Publicado on-line em fevereiro de 2014.

    ESTA PUBLICAO NO PODE SER VENDIDA. DISTRIBUIO GRATUITA.

    Em Aberto / Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira. v. 1, n. 1, (nov. 1981- ). Braslia : O Instituto, 1981- .

    Irregular. Irregular at 1985. Bimestral 1986-1990. Suspensa de jul. 1996 a dez. 1999.Suspensa de jan. 2004 a dez. 2006Suspensa de jan. a dez. 2008Semestral desde 2010

    ndices de autores e assuntos: 1981-1987, 1981-2001.Verso eletrnica (desde 2007):

    ISSN 0104-1037 (impresso) 2176-6673 (online)

    1. Educao Brasil. I. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira.

  • Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 5-7, jul./dez. 2013

    apresentao ...................................... 15

    enfoqueQual a questo?

    Sobre as 40 horas de AngicosMarcos Guerra .............................................. 21

    pontos de vistaO que pensam outros especialistas?

    Paulo Freire: primeiros temposOsmar Fvero ............................................... 47

    Paulo Freire: o homem e o mtodo um ensaioGeniberto Paiva Campos .................................... 63

    Por que a pedagogia do oprimido de Paulo Freire incomodava?Alceu Ravanello Ferraro .................................... 75

    Das quarenta horas de Angicos aos quarenta anos da Pedagogia do oprimidoCelso de Rui Beisiegel ...................................... 95

  • 6Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 5-7, jul./dez. 2013

    De Canudos a Angicos: a ideia de um Brasil alfabetizado e conscienteClio da Cunha .................................................................105

    A experincia de AngicosLuiz Lobo .......................................................................123

    Cara Valquria, como teria sido? Quem poder dizer? Angicos 40 horas, 1962/1963Valquria Felix da Silva ........................................................131

    espao abertoManifestaes rpidas, entrevistas, propostas, experincias, tradues, etc.

    Relatrio final do Seminrio Regional de Educao de Adultos, preparatrio ao II Congresso Nacional de Educao de Adultos Pernambuco [1958] ..................................................145

    Relao dos alunos e coordenadores segundo a localizao das turmas ......157

    Sesso de encerramento do curso de alfabetizao, realizada em Angicos no dia 2 de abril de 1963 .............................................163

    Discurso do governador / Alusio AlvesDiscurso do presidente / Joo GoulartDiscurso do aluno j alfabetizado / Antnio Ferreira

    Da grande mentira s primeiras slabas da verdade Antnio Callado ...............................................................169

    Primeiro livro: revi tudoPaulo Freire .....................................................................175

    Poo da Panela: um testemunhoCarlos Augusto Nicas de Almeida ............................................179

    As 40 horas e o Mestre da Esperana: discurso proferido no recebimento do Ttulo de Cidad Honorria AngicanaValquria Felix da Silva ........................................................181

  • 7resenhas

    A experincia da esperana: um golpe na alma da intelectualidade

    brasileira ps-1964

    Dimas Brasileiro Veras

    Francisco Aristides de Oliveira Santos Filho ..................................191CORTEZ, Marcius. O golpe na alma. So Paulo: P-de-chinelo Editorial, 2008. 96 p.

    Em busca de uma educao conscientizadora

    Osmar Fvero ..................................................................201BEISIEGEL, Celso de Rui. Poltica e educao popular: a teoria e a prtica de Paulo Freire no Brasil. So Paulo: tica, 1982. 304 p. [4. ed. rev. Braslia: Liber Livro, 2008. 378 p.].

    Alfabetizao, conscientizao

    Paulo Rosas ....................................................................205FREIRE, Paulo. Educao como prtica da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. 150 p.

    bibliografia comentada

    Bibliografia comentada sobre as 40 horas de alfabetizao

    de adultos em Angicos

    Rosa dos Anjos Oliveira ........................................................211

    nmeros publicados ..............................................225

    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 5-7, jul./dez. 2013

  • Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 9-11, jul./dez. 2013

    presentation ....................................... 15

    focusWhats the point?

    The 40 hours of AngicosMarcos Guerra .............................................. 21

    points of viewWhat other experts think about it?

    Paulo Freire: first timesOsmar Fvero ............................................... 47

    Paulo Freire: the man and the method an essayGeniberto Paiva Campos .................................... 63

    Why was Paulo Freires Pedagogy of the

    Oppressed considered a threat?Alceu Ravanello Ferraro .................................... 75

    From the 40 hours of Angicos to the 40 years

    of Pedagogy of the OppressedCelso de Rui Beisiegel ...................................... 95

  • 10

    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 9-11, jul./dez. 2013

    From Canudos to Angicos: the idea of a literate conscious BrazilClio da Cunha .................................................................105

    The experience of AngicosLuiz Lobo .......................................................................123

    Dear Valquria, how would it have been? Who will be able to say? Angicos 40 hours, 1962/1963Valquria Felix da Silva ........................................................131

    open spaceComments, interviews, proposals, experiments, translations etc.

    Final Report of the Regional Seminar on Adult Education,

    preparatory to the Second National Congress of Adult Education

    Pernambuco [1958] ...........................................................145

    List of students and coordinators, according to the location of classes .......157

    Closing session of the alphabetization course, which happened

    on the 2nd of April of 1963, in Angicos .........................................163The Governors speech / Alusio Alves

    The Presidents speech / Joo GoularSpeech by the already literate student / Antnio Ferreira

    From the big lie to the syllables of truth Antnio Callado ...............................................................169

    First book: I reviewed everythingPaulo Freire .....................................................................175

    Poo da Panela: a testimonyCarlos Augusto Nicas de Almeida ............................................179

    The 40 hours and the Master of Hope: speech delivered at

    the conferral of the title of Honorary Angicano CitizenValquria Felix da Silva ........................................................181

  • 11

    reviews

    The hope experience: a soul stroke in the Brazilian intellectuality

    after 1964

    Dimas Brasileiro Veras

    Francisco Aristides de Oliveira Santos Filho ..................................191CORTEZ, Marcius. O golpe na alma. So Paulo: P-de-chinelo Editorial, 2008. 96 p.

    In search of a conscientization education

    Osmar Fvero ..................................................................201BEISIEGEL, Celso de Rui. Poltica e educao popular: a teoria e a prtica de Paulo Freire no Brasil. So Paulo: tica, 1982. 304 p. [4. ed. rev. Braslia: Liber Livro, 2008. 378 p.].

    Alphabetization, conscientization

    Paulo Rosas .....................................................................205FREIRE, Paulo. Educao como prtica da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. 150 p.

    annotated bibliography

    Commented bibliography on the 40 hours of adults

    alphabetization in Angicos

    Rosa dos Anjos Oliveira ........................................................211

    published issues ....................................................225

    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 9-11, jul./dez. 2013

  • Na primeira hora de alfabetizao, o aluno escreve a palavra belotaFonte: LYRA, Carlos. As quarentas horas de Angicos. So Paulo: Cortez, 1996.

    Reunio de coordenadores com Paulo FreireFonte: LYRA, Carlos. As quarentas horas de Angicos. So Paulo: Cortez, 1996.

  • 15

    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 15-18, jul./dez. 2013

    Este nmero da revista Em Aberto tem um objetivo diferenciado e preenche

    uma lacuna: dando nfase s prticas, ressalta questes pouco conhecidas num

    universo de literatura sobre Paulo Freire que privilegiou as teorias: Como e por que

    efetivamente ocorreram as 40 horas de Angicos? Quais os desafios, quais os

    antecedentes, qual o contexto, quais os principais resultados, por que em Angicos?

    Que aprendizagem nos trouxe? Que novos paradigmas desafiam a partir da a

    alfabetizao de jovens e adultos? Qual montagem institucional e poltica viabilizou,

    h 50 anos, tal experincia?

    Quais foras se mobilizaram para viabilizar essa experincia de alfabetizao

    de adultos e, logo em seguida, quais as que decidiram interromper sua expanso

    em todo o Brasil? E por que, desde ento, essas atividades no foram retomadas nos

    moldes preconizados por Paulo Freire: metodologias e contedos especficos, garantia

    efetiva de universalizar o direito educao, baixo custo, aprendizagem rpida?

    Como explicar que tenhamos hoje mais analfabetos do que naquela poca?

    No cinquentenrio das 40 horas de Angicos a primeira experincia utilizando

    o Mtodo Paulo Freire , incentivamos participantes daquele momento histrico e

    outros estudiosos a refletirem sobre algumas das questes postas e, assim, ampliar

    o dilogo e iluminar novos caminhos na rota do legado de Paulo Freire.

    Na seo a, um relato de Marcos Guerra, com detalhes operacionais e

    contextualizao, contendo informaes inditas e algumas revelaes que at agora

    foram pouco divulgadas. O autor coordenou as atividades desenvolvidas em Angicos,

    inclusive um dos crculos de cultura, e dirigiu, na Secretaria da Educao do Rio

  • 16

    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 15-18, jul./dez. 2013

    Grande do Norte, o setor criado especificamente para atender aos objetivos do

    programa e s exigncias de Paulo Freire. Como um dos coautores do que se

    desenvolveu em Angicos, experincia que inegavelmente enriqueceu a proposta

    inicial do Mtodo, relata a partir da vivncia. Escreve sobre o ambiente favorvel e,

    em seguida, sobre o ambiente hostil. Vincula estreitamente a represso Guerra

    Fria e revela que o governo brasileiro atuou junto Unesco, aps o golpe militar de

    31 de maro, opondo-se a uma maior influncia direta das ideias aplicadas em

    Angicos e no Brasil.

    Na seo Pontos de Vista, especialistas em educao e de outras reas

    procuram mostrar pontos relevantes da experincia de Angicos e a evoluo do

    legado. No primeiro artigo Paulo Freire: primeiros tempos , Osmar Fvero,

    profundo conhecedor do assunto e atuante na rea desde meados do sculo passado,

    desvenda o contexto dos movimentos de cultura e educao popular no incio dos

    anos de 1960 e o caldo ideolgico em que se definiu a teoria e foi sistematizada

    a prtica de alfabetizao de adultos de Paulo Freire.

    O cardiologista Geniberto Paiva Campos apresenta-nos Paulo Freire: o homem

    e o mtodo, um ensaio, com informaes sobre os debates relativos ao financiamento

    da Aliana para o Progresso, e uma viso sobre a magia das 40 horas, assim como

    sobre as razes da represso aos movimentos de educao popular. Na poca, era

    lder estudantil e trabalhava diretamente na campanha De P no Cho Tambm se

    Aprende a Ler, do municpio de Natal, com a qual Paulo Freire contribuiu diretamente.

    Participou tambm das primeiras atividades de identificao das condies de

    trabalho em Angicos, e foi coordenador de um crculo de cultura, cooperando num

    momento de necessidade.

    Alceu Ravanello Ferraro pergunta Por que a pedagogia do oprimido de Paulo

    Freire incomodava? e revela o preocupante desafio que o sculo 20 legou para o

    sculo 21, no que se refere ao analfabetismo. Permite que compartilhemos de sua

    reflexo sobre alfabetizao, movimentos sociais e as razes da represso, situando

    o confronto entre a pedagogia do Mobral e a pedagogia do oprimido de Freire.

    Celso de Rui Beisiegel, conhecedor profundo da obra de Paulo Freire, mostra,

    em um texto de referncia, a trajetria do campo terico de Paulo Freire Das quarenta

    horas de Angicos aos quarenta anos da Pedagogia do oprimido.

    Clio da Cunha apresenta uma contribuio original De Canudos a Angicos:

    sobre a ideia de um Brasil alfabetizado e consciente , em que salienta o aporte de

    alguns pensadores e educadores do Brasil na luta histrica por um pas independente

    e justo, revelando a ousadia de Paulo Freire que, em Angicos, mostrou como tornar

    isso possvel.

    Luiz Lobo nos fornece um texto tambm original sobre A experincia de

    Angicos, baseado em suas lembranas quase 50 anos depois e na sua vivncia

    naquele perodo. O consagrado jornalista autor do mais conhecido documentrio

    sobre as 40 horas de Angicos, que realizou para a Secretaria da Educao do Rio

    Grande do Norte, destinado motivao de outras comunidades no Estado.

    Valquria Felix da Silva, ento estudante de Direito, integrante da primeira

    equipe de coordenadores de crculos de cultura em Angicos, nos d duas contribuies.

  • 17

    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 15-18, jul./dez. 2013

    No artigo Cara Valquria, como teria sido? Quem poder dizer? Angicos 40 horas,

    1962/1963, em que sintetiza um dilogo mantido com outras coordenadoras dessa

    primeira equipe, relata a mobilizao dos estudantes universitrios, a formao dos

    coordenadores de crculos de cultura, a pesquisa do universo vocabular e temas

    geradores, alm da mobilizao na cidade de Angicos.

    Na seo Espao Aberto, o leitor encontrar, em ordem cronolgica, algumas

    contribuies que permitem melhor situar o trabalho realizado em Angicos, seus

    antecedentes e consequncias. A primeira o relatrio final do Seminrio Regional

    de Educao de Adultos, realizado em Pernambuco, com data de 17 de maio de 1958,

    preparatrio ao II Congresso Nacional de Educao de Adultos, realizado em julho

    desse ano. Nesse seminrio regional, Paulo Freire, relator da 3 Comisso, que

    discutiu o tema A educao de adultos e as populaes marginais: o problema dos

    mocambos, apresenta um novo modo de compreender o analfabetismo e uma nova

    forma de super-lo .

    A seguir, dois documentos da experincia: a relao de alunos e coordenadores

    dos crculos de cultura e a sua distribuio na cidade de Angicos; e os discursos da

    sesso de encerramento do curso de alfabetizao, em 2 de abril de 1963: do

    governador Alusio Alves, do presidente Joo Goulart, e do recm-alfabetizado

    Antnio Ferreira.

    A experincia de Angicos foi noticiada em muitos jornais e, como exemplo,

    reproduzimos o artigo de Antnio Callado, Da grande mentira s primeiras slabas

    da verdade, publicado no Jornal do Brasil em 15 de janeiro de 1964.

    No exlio, Paulo Freire publicou, em 1967, Educao como prtica da liberdade,

    cujos originais, antes de deixar o Brasil, ele enviara para uma amiga na Frana e,

    quando chegou ao Chile, recebeu-os de volta. No trecho de uma entrevista Primeiro

    livro: revi tudo , tirado da obra Aprendendo com a prpria histria, de 1987, ele

    conta sobre a ajuda recebida de brasileiros tambm exilados naquele pas e sobre a

    dificuldade que teve com a primeira editora francesa interessada na sua publicao.

    Carlos Augusto Nicas de Almeida o estudante de medicina a quem Paulo

    Freire se refere como parceiro da primeira experincia no Poo da Panela, em Recife.

    Nunca havia relatado essa atividade e ficou surpreso com o convite. Com sua

    generosidade e sempre disponvel, brinda-nos com seu depoimento.

    A segunda contribuio de Valquria Felix da Silva a este nmero sobre a

    experincia pioneira de Angicos o seu discurso por ocasio do recebimento do

    Ttulo de Cidad Honorria Angicana, em abril de 2013, com um relato sobre o

    trabalho dos voluntrios que atuaram como coordenadores de crculos de cultura.

    Na seo Resenhas, trs obras instigantes sobre o tema. O livro de Marcius

    Cortez, O golpe na alma, foi analisado por Dimas Veras e Francisco Aristides de

    Oliveira Santos Filho. Poltica e educao popular: a teoria e a prtica de Paulo Freire,

    de Celso de Rui Beisiegel, coube a Osmar Fvero. Educao como prtica da liberdade,

    de Paulo Freire, teve uma excelente anlise feita por Paulo Rosas, que aqui

    reproduzimos.

  • 18

    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 15-18, jul./dez. 2013

    A seo Bibliografia Comentada traz um levantamento de obras publicadas

    sobre Angicos, indicando os stios na internet onde a maioria desses documentos

    pode ser lida na ntegra.

    Desejamos que os leitores possam ler e refletir sobre os diversos textos,

    depoimentos e testemunhos de uma fase emblemtica de nossa educao, que teve

    em Angicos a ousadia de levar para a prtica ideias e concepes de uma educao

    emancipadora. Com a superao da ditadura e redemocratizao do Pas, as

    universidades, inspiradas no legado de Angicos, esto pesquisando e conduzindo

    experincias prticas para dar continuidade ao sonho libertador de Paulo Freire. As

    vozes da diversidade, antes silenciadas, podem agora indicar alternativas para a

    construo e operacionalizao de polticas de educao com sentido e rumo. Rumo

    a um pas que reconhece em suas matrizes formadoras de origem indgena, negra

    e europeia os fundamentos de sua nacionalidade.

    Esperamos tambm, com esta edio, contribuir para uma efetiva retomada

    das aes visando alfabetizao de jovens e adultos nos moldes preconizados por

    Paulo Freire, com quem aprendemos, em relao ao analfabeto, o que mais tarde

    Betinho cunhou em relao a quem tem fome: quem tem fome tem pressa.

    Os analfabetos tm pressa! Negar-lhes este primeiro direito negar-lhes um

    dos instrumentos para que possam melhor exercer sua cidadania, e que muitas vezes

    afronta sua dignidade. Alm do indivduo, perde tambm sua comunidade, sua

    famlia e o prprio Brasil. Todos condenados a uma participao diferenciada, que

    exige vencer barreiras e preconceitos, visto que lhes foi negado um dos instrumentos

    que multiplicam seu potencial.

    Marcos GuerraClio da CunhaOrganizadores

  • Qual a questo?

  • Seminrios de coordenadoresFonte: LYRA, Carlos. As quarentas horas de Angicos. So Paulo: Cortez, 1996.

    Reunio de coordenadores com Paulo FreireFonte: Acervo pessoal de Marcos Guerra.

  • 21

    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    Sobre as 40 horas de AngicosMarcos Guerra

    Resumo

    Para melhor entender o que foram as 40 horas de Angicos, apresenta uma

    breve anlise dos primeiros textos escritos sobre essa experincia. A seguir, um

    esboo do contexto poltico no Estado do Rio Grande do Norte com a eleio do

    governador Alusio Alves e seu programa para alfabetizar 100 mil pessoas. Um dos

    fatores favorveis para a realizao das 40 horas foi a mobilizao da Unio Nacional

    dos Estudantes (UNE) e da Unio Estadual dos Estudantes (UEE), que facilitou o

    recrutamento de 20 voluntrios, entretanto, devido a decises radicais dessas

    entidades quanto participao de seus dirigentes numa ao que recebia

    financiamento da Aliana para o Progresso, Marcos Guerra renuncia presidncia

    da UEE/RN e aceita o convite de Paulo Freire para coordenar os crculos de cultura

    em Angicos. Aps a assinatura de um Acordo de Cooperao entre o Brasil e os

    Estados Unidos, foi criado o Servio Cooperativo de Educao do Rio Grande do Norte

    (Secern), em 9 de dezembro de 1962, que providenciou a infraestrutura necessria.

    Em 18 janeiro de 1963 teve incio a experincia de Angicos e, em 2 de abril, na 40

    hora, realizou-se a solenidade de encerramento, com discurso do presidente Joo

    Goulart. O mtodo de alfabetizao experimentado em Angicos teve repercusso

    nacional e internacional. Em 1964, com o golpe militar, todos os coordenadores e

    alfabetizandos sofreram perseguies e muitos, o exlio.

    Palavras-chave: alfabetizao de adultos; Mtodo Paulo Freire; histria da

    educao; dcada 1960-1969.

  • 22

    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    AbstractThe 40 hours of Angicos

    In order to better understand what the 40 hours of Angicos were, this study

    presents a brief analysis of the first written texts about the experience. An outline

    of the political context in the state of Rio Grande do Norte, with Governor Alusio

    Alves election and his program to alphabetize 100,000 people, is showed. One

    favorable factor for the completion of the 40 hours was the mobilization of the Unio

    Nacional dos Estudantes UNE (in English, National Students Union NSU) as well

    as the Unio Estadual dos Estudantes UEE (in English, State Students Union

    SSU). This facilitated the recruitment of 20 volunteers; however, due to radical

    decisions of these two institutions, regarding the participation of their leaders in an

    action financed by the Aliana para o Progresso (in English, Alliance for Progress),

    Marcos Guerra gave up the presidency of UEE in Rio Grande do Norte and accepted

    Paulo Freires invitation to coordinate the culture circles in Angicos. After the signing

    of a Cooperation Agreement between Brazil and the United States, the Servio

    Cooperativo de Educao do Rio Grande do Norte SECERN (in English, Cooperative

    Educational Services of Rio Grande do Norte CESRN) was created. With the creation

    of SECERN, which was on the 9th of December of 1962, all the needed infrastructure

    for the project was provided. On the 18th of January of 1963, the experience of

    Angicos started and, on the 2nd of April of the same year, at the 40th hour, the closing

    solemnity took place, with President Joo Goularts speech. The alphabetizing method

    experienced in Angicos reverberated nationally and internationally. In 1964, with

    the military coup, all the coordinators and students of the project were persecuted

    and, many of them, exiled.

    Keywords: adult literacy; Paulo Freires method; history of education; 1960s

    decade.

    Precisvamos, ainda, de algo com que ajudssemos o analfabeto a iniciar aquela modificao de suas atitudes bsicas diante da realidade. Com que ele desse comeo reformulao de seu saber preponderantemente mgico.

    Precisvamos tambm de que esse algo fosse uma fonte de motivao para o analfabeto querer ele mesmo montar o seu sistema de sinalizaes. Motivao que viesse se somar sua apetncia educativa em relao direta, como j foi dito, com a transitivao de conscincia. (Freire, 1963, p. 14).

    Ao enunciar o que precisvamos fazer, Paulo Freire nos lanou um desafio.

    Referia-se ao mesmo tempo a objetivos finais e a novos meios a implantar numa

    experincia pioneira. Assim o entendemos, quando aceitamos o desafio para o qual

    nos convidou. Menos de vinte jovens preparados por ele e sua equipe dedicamo-nos

    ao que veio a ficar conhecido como as 40 horas de Angicos.

    Tirar do papel aquelas ideias e afirmaes inovadoras. Algo que nos permitisse

    aprender e ensinar, confrontar teoria e prtica, questionar a teoria, renov-la. Fazer

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    em Angicos a primeira experincia em massa, em tamanho real. Identificar o que

    fazer, como fazer, quais as condies para executar uma resposta possvel

    democratizao da cultura dentro do quadro geral da democratizao fundamental

    (Freire, 1967, p. 101). Aprender como fazer algo que pudesse ser ampliado para

    todo o Brasil.

    Responder ao desafio tornando operacional sua nova viso do processo de

    alfabetizao, associando a conscientizao como facilitador e no como algo

    impossvel ou encargo suplementar. Paulo Freire j afirmava que, na alfabetizao

    de adultos, [...] o que se h de fazer proporcionar-lhes que se conscientizem, para

    que se alfabetizem (p. 119).

    No desafio, era preciso enfrentar os alarmantes dficits quantitativos1 e

    qualitativos de nossa educao (p. 101), que, na poca, excluam os analfabetos do

    direito de votar, sobre os quais Weffort (1967) nos recorda em seu prefcio ao livro

    Educao como prtica da liberdade, uma odisseia sobre a qual nesta revista podemos

    ler o artigo de Alceu Ferraro.

    Os primeiros relatos

    Para melhor entender o que foram as 40 horas de Angicos e, depois, o que

    fizemos em outras cidades do Rio Grande do Norte, consolidando a experincia,

    convidamos que se retome a leitura dos primeiros textos.

    Comecemos pelo artigo de Paulo Freire (1963), em que explicita sua nova

    viso do processo de conscientizao e alfabetizao antes de detalhar o que chamou,

    ento, de fases do mtodo, que se aplicam preparao dos contedos e materiais

    educativos, a partir do universo vocabular do grupo. Tratava-se de um magistral

    detalhamento de como estimular nos analfabetos uma nova viso, na qual viessem

    a perceber-se, afinal, no mundo e com o mundo, como sujeito e no como objeto

    e com base na qual comearia a operao de mudana de suas atitudes anteriores.

    No mesmo nmero da revista Estudos Universitrios, os demais artigos de

    integrantes de sua equipe do Servio de Extenso Cultural (SEC), da Universidade

    do Recife, tm o sabor primaveril do que ouvamos, fazamos e conversvamos na

    poca. Em particular, os artigos A fundamentao terica do Sistema Paulo Freire,

    de Jarbas Maciel (1963), Conscientizao e alfabetizao: uma viso prtica do

    Sistema Paulo Freire, de Aurenice Cardoso (1963), e Educao de adultos e

    unificao da cultura, de Jomard Muniz de Britto (1963), restituem-nos na verso

    original o primeiro contedo da formao inicial dos coordenadores dos crculos de

    cultura de Angicos. Quando ns, que iramos atuar como educadores nessa nova

    viso, trabalhamos sobre conceitos e categorias bsicas, percebemos uma insistncia

    particular no dilogo socrtico, na escuta, na construo coletiva do conhecimento.

    A mesma metodologia e os mesmos contedos foram utilizados tambm na formao

    inicial dos coordenadores de crculos de cultura das Quintas (em Natal), de Mossor

    e, pelo que soubemos, dos que atuaram na Campanha de Educao Popular (Ceplar)

    1 Paulo Freire (1967) referia-se a 4 milhes de crianas em idade escolar sem escola e a 16 milhes de analfabetos entre os brasileiros com mais de 14 anos de idade.

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    da Paraba e dos que atuaram em Braslia estes j no mbito do Programa Nacional

    de Alfabetizao.

    Aps Angicos, alguns de ns continuamos a atuar como coordenadores e

    como supervisores ao ampliar-se o trabalho no bairro das Quintas, em Natal, e, logo

    depois, em Mossor. Comeamos a preparar as aes previstas para outros bairros

    de Natal e para as cidades de Caic e Macau, j se pensando na segunda fase.

    Enquanto isso, outros j se organizavam para impedir que tal iniciativa viesse a se

    alastrar, taxando-a de subversiva.

    Entre os primeiros relatos, destaca-se o livro As quarenta horas de Angicos;

    uma experincia pioneira de educao, extrado de um dirio escrito pelo colega

    Carlos Lyra (1996), um dos coordenadores dos crculos de cultura. Um relato, sem

    retoques, do dia a dia da experincia, em seus pontos e momentos mais marcantes.

    Em seguida, Educao como prtica da liberdade, livro escrito em Santiago

    do Chile, no qual Paulo Freire (1967) retoma a temtica que abordara na revista

    Estudos Universitrios. No captulo Educao e conscientizao, ele relata algumas

    das experincias realizadas no Brasil e refere-se s fases de elaborao, j

    mencionadas, acrescentando dados sobre o que chamou de execuo prtica do

    mtodo com maior detalhamento do que ocorre aps o debate suscitado pela situao

    geradora, quando se inicia o trabalho criativo de ler e escrever com base na palavra

    geradora.

    No mesmo livro, uma leitura obrigatria desvenda-nos o contexto da poca.

    Trata-se do prefcio de Francisco C. Weffort, sob o ttulo Educao e poltica:

    reflexes sociolgicas sobre uma pedagogia da liberdade, que descreve com riqueza

    o que chamou despertar do movimento popular brasileiro na poca, referindo-se

    aos vnculos do trabalho de Paulo Freire com a ascenso popular no perodo, sem

    esquecer o fantasma do comunismo, que as classes dominantes agitam contra

    qualquer governo democrtico da Amrica Latina (Weffort, 1967, p. 10). Ele lembra

    tambm algo importante para Paulo Freire: a correlao entre estagnao econmica

    e social e o analfabetismo e, ainda, o esforo das elites no poder, para acomodar as

    classes populares emergentes (...) sem que passem dos limites(p. 50).

    Sobre a experincia de Angicos existe ainda um livro com informaes de

    primeira mo, 40 horas de esperana, no qual o ento secretrio da Educao do

    Rio Grande do Norte, Calazans Fernandes (1994), em coautoria com Antnia Terra,

    revela, entre outros temas, parte das dificuldades de montagem institucional entre

    o governo do Rio Grande do Norte, a Superintendncia do Desenvolvimento do

    Nordeste (Sudene), o Ministrio da Educao (MEC) e a Aliana para o Progresso. Na

    primeira parte, Calazans, com sua experincia profissional de jornalista, contextualiza

    o que chamou de Revoluo no Serto. Na segunda, Antnia Terra aprofunda uma

    abordagem sobre a experincia em si, tendo por base relatos diversos, desde a

    formao inicial dos futuros coordenadores at uma breve sntese de cada uma das

    40 horas, citando ainda os desdobramentos para o bairro das Quintas, em Natal, e

    o de Boa Vista, em Mossor, e os preparativos, ainda em 1963, para implantar as

    aes em Macau e Caic.

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    Para informao, ressalte-se que prevamos a alfabetizao de 100 mil jovens

    e adultos no planejamento (1963-1965) das atividades do Servio Cooperativo de

    Educao do Rio Grande do Norte (Secern). Criado como autarquia, tinha como

    diretor executivo o secretrio da Educao do Estado. Entidade autnoma, que iria

    garantir a agilidade que a pesada mquina da Administrao no permitia.

    Corrida contra o tempo

    O governo Alusio Alves (1961-1966) tinha pouco tempo para executar seu

    ambicioso programa. Isso explica porque ao eleger-se procurou rapidamente obter

    ajuda financeira e tcnica na Sudene, no governo federal, na Comisso Econmica

    para a Amrica Latina e o Caribe (Cepal) com a qual inovou em matria de

    planejamento. Deparou-se com o programa da Aliana para o Progresso, recm-

    lanado pelo presidente Kennedy. Para acelerar o desenvolvimento econmico e

    social da Amrica Latina, Kennedy afirmou que dois sculos de progresso precisam

    ser comprimidos num espao de dcadas ou mesmo de anos. Em sua Mensagem

    Anual Assembleia Legislativa, em junho de 1963, o governador Alusio Alves dizia

    o mesmo para a educao: Fazer em trs anos o que no se fez em trs sculos.

    Educao era uma das prioridades, ao lado de investimentos em infraestrutura

    (estradas, energia, telecomunicaes). Segundo a referida Mensagem Anual, as

    estatsticas indicavam que 65% da populao era analfabeta e que perto de 80% da

    populao sabia apenas assinar o nome. A rede pblica acolhia apenas 20% da

    populao em idade escolar, por falta de professores e de prdios escolares.

    Em 3 de dezembro de 1962 foi assinado um convnio com a Aliana para o

    Progresso, com vigncia de trs anos, baseado no Acordo de Cooperao para a

    Promoo do Desenvolvimento Socioeconmico do Nordeste Brasileiro entre o Brasil

    e os Estados Unidos, de abril do mesmo ano.

    Logo em seguida, pelo Decreto n 3.995, de 9 de dezembro de 1962, foi criado

    o Secern, j mencionado. Entre as onze metas, todas de suma importncia para o

    Estado, a meta nmero nove interessava-nos diretamente:

    1) formar e aperfeioar professores;

    2) revisar ou elaborar os currculos do ensino elementar e normal;

    3) instalar um servio de estatstica educacional;

    4) organizar o Servio de Produo de Material Didtico;

    5) construir e equipar um centro audiovisual;

    6) assegurar o ensino primrio populao de 7 a 14 anos;

    7) intensificar pesquisas e experincias sobre as condies regionais que

    possibilitem melhor integrao do aluno e sua famlia na vida da

    comunidade;

    8) promover melhorias salariais para os professores e valorizao da carreira

    do magistrio pblico;

    9) promover a alfabetizao e educao de base para adolescentes e adultos,

    assegurando o atendimento, no perodo, de at 100.000 pessoas acima da

    idade escolar primria;

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    10) promover a extenso da escolaridade e a iniciao pr-profissional, por

    meio da instalao de pelo menos 10 oficinas de artes industriais; e

    11) promover a assistncia escolar no que se refere alimentao, servios

    mdicos e dentrios.

    Em 10 de dezembro de 1962 fui contratado pelo Secern para coordenar as

    atividades do Departamento de Alfabetizao, em uma corrida contra o tempo, diante

    das metas ousadas da superviso da Sudene prxima e exigente e do contexto

    geral brasileiro num clima de reivindicaes sociais e polticas e de mudanas. No

    curto prazo, era preciso elaborar um programa altura dos desafios do programa

    de governo, cumprindo nossa meta de 100 mil alfabetizados. Meta que, entusiasmado,

    no encerramento das 40 horas de Angicos, o governador elevou para 300 mil ao

    ouvir as metas anunciadas pelo presidente da Repblica, que visava a seis milhes

    de alfabetizados em trs anos.

    O que passamos a relatar foi possvel por causa de uma equipe de abnegados,

    com responsabilidade profissional e dedicao mpar, resultantes de seu compromisso

    social e poltico.

    Ambiente favorvel

    Tnhamos no Rio Grande do Norte um ambiente favorvel alfabetizao de

    adultos com, pelo menos, duas experincias inovadoras e significativas: o Movimento

    de Educao de Base (MEB) e a campanha municipal De P no Cho Tambm se

    Aprende a Ler.

    Em 1958, Dom Eugnio Sales criou a escola radiofnica, no conhecido

    Movimento de Natal. Por meio da Rdio Rural comeara uma experincia que foi

    mais alm do que a alfabetizao e a educao poltica, revelando-se catalisadora

    das aes comunitrias em defesa dos direitos e da cidadania. O trabalho inspirou

    a Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) a criar em 1961 o MEB, que

    deveria instalar 15 mil escolas radiofnicas e que assumiu a conscientizao como

    seu objetivo principal.

    Em 1961, o prefeito Djalma Maranho iniciou, em Natal, a campanha De P

    no Cho Tambm se Aprende a Ler, matriculando as crianas dos bairros pobres no

    que se chamava o ensino primrio, com durao de quatro anos. Como as moradias

    populares dos mesmos bairros, as escolas eram cobertas de palha e tinham cho

    batido, diferenciando-se por oferecer ensino de qualidade e valorizar a cultura popular

    em todos os seus aspectos. Disponibilizaram bibliotecas populares e ofereceram

    cursos profissionalizantes, alm de alfabetizao para jovens e adultos analfabetos.

    O ambiente favorvel era estimulado pela influncia da Unio Nacional dos

    Estudantes (UNE), que tinha grande repercusso no Rio Grande do Norte, por meio

    da Unio Estadual dos Estudantes (UEE). Finalmente, vrios grupos organizados de

    jovens, como os da Ao Catlica, e grupos juvenis estimulados por partidos polticos

    levaram a uma intensa participao dos estudantes nas diferentes aes de educao

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    e alfabetizao popular. Sem medo de errar, afirmamos que os jovens universitrios

    ramos a principal fora de trabalho nas trs atividades at agora mencionadas,

    inclusive em nvel de direo.

    A grande mobilizao social e poltica em curso gerou um ambiente geral

    favorvel ao nosso trabalho, que se traduzia pelo apoio de toda natureza, vindo da

    comunidade, de entidades locais, das Igrejas. Em Angicos, moradores chegaram a

    ceder suas salas para que nelas fossem instaladas as carteiras escolares, que ali

    ficaram de meados de janeiro at fins de maro de 1963. Na mesma cidade, o vigrio

    recebeu-nos nas instalaes da parquia. Como coincidia com as frias escolares,

    cedeu as instalaes do internato de dois colgios. Os homens foram acolhidos num

    dormitrio do colgio masculino e as mulheres, no colgio feminino, no qual, alis,

    fazamos as refeies e todas as reunies pedaggicas, que chamvamos seminrios,

    sobre os quais escreverei adiante.

    Em todo o Brasil, uma grande efervescncia permitia lutar por conquistas

    sociais e polticas, ocupando as ruas, os sindicatos, o parlamento. Lutas que

    acompanharam a campanha presidencial da qual saram vitoriosos Jnio Quadros e

    Joo Goulart. No cabe detalhar aqui, mas elas esto presentes no contexto que

    viabilizou inovaes e respostas de programas de cultura e educao popular na

    poca.

    No mundo, um ambiente igualmente favorvel a algumas mudanas.

    Acentuavam-se as lutas pela independncia de antigas colnias europeias. Basta

    verificar que, aps a independncia de trs pases entre 1957 e 1960 (Malsia, Gana

    e Nigria), outros 27 se tornaram independentes at 1964. Em 1960, pases

    exportadores de petrleo criaram a Organizao dos Pases Exportadores de Petrleo

    (Opep). Em 1961, a primeira conferncia internacional dos pases no alinhados

    reuniu 25 pases. No mesmo ano, Kennedy anunciava a Aliana para o Progresso e

    criava seu Peace Corps. Por sua vez, a ONU cria em 1963 o Programa Alimentar

    Mundial (PAM), em 1964 a Conferncia das Naes Unidas sobre Comrcio e

    Desenvolvimento (CNUCED) e, em 1966, procurando maior agilidade, cria seu

    Programa para o Desenvolvimento (Pnud). Na Igreja Catlica, o ambiente favorvel

    s mudanas fica conhecido como o aggiornamento, que se traduziu no Conclio

    Vaticano II e nas duas encclicas mais significativas no contexto: Pacem in Terris

    (1963) e Populorum Progressio (1967).

    Ambiente instvel e que se revelou hostil

    J o ambiente poltico era de grande instabilidade e logo revelou sua

    hostilidade.

    Em nvel nacional, houve a renncia de Jnio Quadros (agosto de 1961) e a

    recusa a dar posse a Joo Goulart, vice-presidente constitucional, suscitando, no

    perodo, a transio para o parlamentarismo (setembro de 1961 a janeiro de 1963),

    com trs primeiros-ministros, sucessivamente: Tancredo Neves, Brochado da Rocha

    e Hermes Lima.

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    No Estado do Rio Grande do Norte, as reaes naturais dos coronis que

    lideravam currais eleitorais, mesmo entre os aliados do governador. Um exemplo

    clssico foi o conflito inesperado quando, depois de Angicos, fomos para Mossor,

    segunda cidade do Estado, e o chefe poltico do grupo aliado ao governador recusou-

    se a nos receber e avisou explicitamente que no poderamos entrar em sua cidade

    com aquele tipo de atividade. Impasse que foi contornado e explica porque Angicos

    fora escolhida para a primeira experincia. Comeando por sua terra, o governador

    ganhou autoridade moral para poder trabalhar em qualquer outra cidade.

    Um pequeno conflito surgiu em Angicos depois que foram estudadas questes

    relacionadas ao trabalho, suscitadas nos dilogos dos crculos de cultura, quando os

    alunos puderam ler artigos da CLT e da Constituio Federal sobre direitos dos

    trabalhadores. Alguns dos alunos eram pedreiros numa obra de construo civil,

    exatamente a de uma escola pblica que tambm fazia parte do programa implantado

    com o apoio da Aliana para o Progresso, e passaram a exigir o repouso semanal

    remunerado, entre outros direitos que descobriam que no eram reconhecidos pelos

    construtores. Sem sucesso, decidiram fazer greve. O construtor telefonou para o

    secretrio da Educao dizendo que assim no poderia cumprir os prazos. Informou

    que havia chamado operrios na cidade vizinha, Fernando Pedroza, mas que o

    caminho da empresa fora impedido de entrar em Angicos, os operrios em greve

    tendo convencido os outros a retornarem para casa, explicando-lhes a situao. No

    sem humor, Calazans Fernandes convenceu o empresrio a assinar a carteira de

    trabalho e respeitar os direitos trabalhistas.

    Em nvel internacional, vivia-se uma exacerbao da Guerra Fria, com

    repercusses em nosso continente, desde a vitria de Fidel Castro em Cuba (1959).

    Entre os fatos mais significativos, esto a derrota do desembarque norte-americano

    na Baa dos Porcos (abril de 1961), a construo do muro de Berlim (agosto de 1961)

    e a crise dos msseis (outubro de 1962), tudo num clima de corrida espacial e de

    perigosa corrida armamentista nuclear. O acirramento entre as partes parecia

    caminhar inexoravelmente para uma hecatombe quando, em 25 de outubro, o Papa

    Joo XXIII dirige um telegrama pessoal aos presidentes da Rssia e dos Estados

    Unidos, cobrando responsabilidade e lembrando os efeitos nefastos de uma guerra

    atmica, publicado no dia seguinte no Pravda e em jornais da Europa e dos Estados

    Unidos.

    A instabilidade e o acirramento das diferenas poltico-partidrias faziam

    parte do contexto, gerando hostilidade a programas que poderiam significar

    conscientizao de alguns brasileiros. Adversrios, que no queriam perder o poder,

    temiam que os novos eleitores viessem desequilibrar seu eleitorado.

    Em nosso caso, uma divergncia suplementar. As alianas naturais do

    governador Alusio Alves aproximavam-no dos adversrios do presidente Joo

    Goulart, do governador pernambucano Miguel Arraes, e do prefeito de Natal, Djalma

    Maranho. Enquanto Paulo Freire e os estudantes filiados UNE naturalmente

    tenderiam a encontrar-se numa futura eleio presidencial em campos opostos ao

    governador Alusio Alves, aliado natural de Carlos Lacerda e Magalhes Pinto. J se

    falava em potenciais candidatos do Nordeste. No Estado, o prefeito poderia vir a ser

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    candidato a governador, como opositor ao candidato de Alusio Alves. Para apimentar,

    as divergncias em torno do apoio da Aliana para o Progresso. A esquerda latino-

    americana, com base no pronunciamento do representante de Cuba, Che Guevara,

    opunha-se Aliana criada por Kennedy, desde seu lanamento na Conferncia da

    Organizao dos Estados Americanos (OEA) em Punta del Este (1961). Nessa

    Conferncia, Che denunciara o que chamou de uma tentativa de enfraquecer a

    influncia cubana no continente.

    Esta ltima questo levou-nos a mltiplas reunies entre as equipes do

    governo de Pernambuco e da prefeitura de Natal, os dirigentes da UEE e os

    representantes da UNE, a equipe de Paulo Freire no SEC da Universidade do Recife

    e os estudantes convidados para participar de Angicos e do Secern. Voltaremos

    rapidamente ao assunto na parte relativa montagem institucional, por ser algo

    que no poderia ser ignorado e que exigiu delicada negociao, sob pena de impactar

    mais adiante as atividades.

    A Guerra Fria

    No temos dvidas quanto influncia da Guerra Fria na paralisao das

    atividades do Secern, em primeiro lugar as de alfabetizao. H um relacionamento

    direto pouco conhecido no Brasil e tratado com detalhes pelo historiador da

    Universidade do Texas, Andrew J. Kirkendall (2010).

    Inicialmente, prevaleceu a Aliana para o Progresso em sua verso original,

    criada pelos democratas, conforme anunciou o presidente Kennedy em maro de

    1961. Viso que influenciou as primeiras equipes que conversaram com o secretrio

    Calazans Fernandes e, entre os que visitaram as 40 horas de Angicos, os primeiros

    relatrios favorveis, como as declaraes publicadas no The New York Times pelo

    professor Phillip Schwab, diretor de educao da United States Agency for

    International Development (Usaid): pretendemos fazer com que esse povo seja

    cidado (...). Os adultos so instrudos de que o voto a arma do povo (...) a educao

    para o rico e para o pobre (...) a reforma agrria uma necessidade urgente. Ou,

    ainda, uma primeira reao escrita do ento embaixador Lincoln Gordon, na qual

    afirma ao governador Alusio Alves: estou sugerindo aos governos estaduais do

    Brasil conveniados com a Aliana que adotem o experimento de Angicos. triste

    constatar que tudo isso terminaria num presidente assassinado, e com ele, o sonho

    de alguma mudana para milhes de americanos. E na submisso aos vendedores

    de armas

    Num segundo momento, passou a predominar o pensamento dos norte-

    americanos mais chegados ao Pentgono e seus aliados locais, para quem a atividade

    surge como um projeto subversivo visando tomada do poder pelas armas e

    pretendendo transformar o Nordeste brasileiro numa nova Cuba. Veja-se a extensa

    literatura disponvel sobre as razes do golpe no Brasil, a selvagem e rpida represso

    s atividades de alfabetizao e a precria argumentao contida nos Inquritos

    Policiais Militares (IPM). Foram reprimidas no somente as do Secern, mas tambm

    as do MEB e da campanha De P no Cho Tambm se Aprende a Ler.

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    Aqui teramos outro captulo, que no cabe na presente publicao sobre as

    40 horas. Com diferentes testemunhos, de alunos e coordenadores, alm de

    inquritos existentes, esta parte resta a escrever. No tem somente interesse

    histrico, mas ensinamentos sobre modos de agir e pensar dos que se opem

    frontalmente alfabetizao de jovens e adultos e que, finalmente, so os grandes

    vitoriosos na medida em que nenhum programa retomou as atividades.

    Montagem institucional

    Dos relatos, podemos deduzir certa complexidade do que chamaria de

    montagem institucional para tornar possveis as 40 horas de Angicos e o que se

    seguiria no Rio Grande do Norte. Para viabilizar um segundo objetivo do professor

    Paulo Freire, era preciso levar ao prprio MEC uma corajosa e inovadora poltica

    visando universalizar o acesso alfabetizao para todos os jovens e adultos

    brasileiros.

    No poderamos deixar de trazer a pblico alguns dos dados que seguem. O

    sucesso ou o fracasso de programas de educao deveu-se, em alguns casos, ao fato

    de atribuir importncia ou ser pego de surpresa por questes sobre as quais vamos

    tentar trazer esclarecimentos. Esses dados foram importantes para as 40 horas de

    Angicos e faziam parte de nosso painel de navegao enquanto gestores, uma vez

    que respondemos positivamente ao convite de Paulo Freire para implantar o trabalho

    em Angicos e, a partir da, em outras regies do Estado.

    As questes macroinstitucionais foram resolvidas por Calazans Fernandes,

    secretrio da Educao que acumulava as funes de diretor executivo do Secern,

    e esto relatadas com preciso e humor por ele mesmo, na obra j citada, 40 horas

    de esperana. Foi laborioso o parto do Acordo de Cooperao finalmente assinado

    entre o governo brasileiro e a Usaid/Brasil, tornado possvel com a participao do

    MEC e da Sudene, e no o acordo direto entre uma unidade da Federao e a Usaid,

    pretenso inicial ultrapassada.

    Vale lembrar que a convite do ministro Darcy Ribeiro, Paulo Freire j

    representava o MEC junto Sudene, nos dilogos com a Usaid. Foi ouvido em muitos

    outros projetos, sempre exigindo respeito soberania brasileira em seus diferentes

    aspectos, no que foi apoiado por Celso Furtado, ministro do Planejamento que

    acumulava a superintendncia da Sudene, e por Nailton Santos, um dos diretores

    da Sudene.

    Quanto ao nosso posicionamento em relao a participar de um programa do

    governo do Estado financiado com doao da Aliana para o Progresso, tivemos

    mltiplas reunies, sem chegar a consenso. Cada um possua suas convices, a

    partir da anlise que fazia e da projeo futura sobre as consequncias da ao.

    Estavam claros os objetivos do presidente Kennedy para a Amrica Latina, os riscos

    de projetar nacionalmente o governador Alusio Alves em caso de sucesso do

    empreendimento, o que poderia benefici-lo num embate eleitoral contra candidatos

    da esquerda, sobretudo no Nordeste.

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    Na UNE e na UEE, as decises foram radicais: impossvel compactuar com a

    Aliana para o Progresso. Deveramos sair, ou no entrar, e denunciar os riscos da

    operao claramente imperialista. Esta foi a deciso clara num Conselho da UNE

    que reuniu, em Vitria do Esprito Santo, dirigentes da Unio Nacional e presidentes

    das Unies Estaduais de todo o Brasil. Eleito presidente da UEE/RN em 1962, aps

    memorvel campanha, a primeira com eleies diretas, cabia-me acatar a deciso

    ou fazer o que fiz: renunciar presidncia da entidade.

    Nos dilogos francos e respeitosos com os amigos que defendiam as posies

    anunciadas por colegas do Movimento de Cultura Popular (MCP) pernambucano e

    da campanha De P no Cho Tambm se Aprende a Ler, que trabalhavam

    respectivamente com Miguel Arraes e Djalma Maranho, chegamos perto de um

    impasse da mesma natureza. Vale salientar que, ciente dos questionamentos, o

    secretrio Calazans Fernandes aguardava a deciso, no sem manifestar impacincia,

    temendo atrasos. Tivemos mltiplas reunies em Natal e no Recife, estas no gabinete

    de Paulo Freire, no SEC da Universidade do Recife. Lembro-me de um dado

    importante, quando procuramos identificar em nmeros quantos analfabetos

    poderiam vir a beneficiar-se no mesmo perodo dos programas da prefeitura de Natal

    e do Secern. Ao compararmos, ficou evidenciada a desproporo. Agigantou-se nossa

    preocupao inicial de garantir ao maior nmero de norte-rio-grandenses o acesso

    educao, como um valor intrnseco ao nosso trabalho. Divergamos na anlise

    quanto a um comprometimento possvel e a possibilidade de manter a desejada

    autonomia pedaggica e poltica. Paulo Freire chegou a uma deciso clara e afirmou

    com convico: No tenho medo da Aliana para o Progresso. Ela que tenha medo

    de mim!. Deciso que depois identificou como proftica, em obra conjunta com

    Srgio Guimares:

    Eu tinha uma relao muito estreita com o Djalma Maranho, e quando conversei com o governador fiz questo de dizer que continuaria mantendo as minhas relaes pedaggicas e polticas com a Prefeitura de Natal. Evidentemente, havia um antagonismo de posies polticas entre Djalma Maranho, um homem de esquerda, e Alusio Alves, um conservador.

    Depois conversei seriamente com a equipe do Djalma Maranho e manifestei a minha convico e fui quase proftico , de que a Aliana para o Progresso que iria financiar, como financiou, a campanha de Angicos, certamente iria estudar o que se desenvolvesse em Angicos, e colocaria um ponto final em tudo. Caso acontecesse isso, se a Aliana recuasse, eu disse que deveramos ir praa pblica para mostrar concretamente as intenes colonialistas e imperialistas da Aliana para o Progresso. (Freire, Guimares, 2010, p. 36)

    Em parte, estas questes so suscitadas no artigo de Geniberto Campos nesta

    revista, sob o titulo Paulo Freire: o homem e o mtodo. Vale ressaltar que, entre

    todos os participantes das decises, um auxiliar direto do governador Miguel Arraes

    manifestou-se a favor de nossa posio: o economista Marcos Correia Lins.

    No caso concreto, Paulo Freire exigiu que os recursos financeiros doados pela

    Aliana para o Progresso ao governo do Rio Grande do Norte fossem repassados

    Sudene. Era a Sudene ento que nos transferia os recursos e a quem prestvamos

    contas, segundo regras brasileiras. Ainda, o convnio assinado entre o reitor da

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    Universidade do Recife e o governador do Estado no previa remunerao da equipe

    do Servio de Extenso Cultural (SEC), j remunerada pela Universidade. O Estado

    assumia os custos de deslocamento e hospedagem, e uma gratificao aos professores

    que acompanhavam o convnio, com exceo do diretor do SEC, o prprio Paulo

    Freire. Isso porque ele era professor da Universidade e recebia uma gratificao pelo

    cargo de diretor do Servio.

    Quanto s 40 horas de Angicos e s demais atividades que se seguiriam, Paulo

    Freire exigiu que o trabalho fosse entregue liderana universitria e indicou meu

    nome. Desejava garantir inteira autonomia poltica e pedaggica.

    Como vimos no incio, tratava-se de elaborar um rigoroso planejamento para

    atingir os resultados esperados. E, ao mesmo tempo, comear a operacionalizar, tirar

    do papel as aes consistentes para obter resultados na ponta, junto a cada analfabeto.

    Planejar, executar e avaliar simultaneamente. Exigncia inevitvel pela curta durao

    das 40 horas. Mobilizar, selecionar e preparar os coordenadores dos crculos de

    cultura. Viabilizar sua formao inicial e continuada. Mobilizar analfabetos, convenc-

    los a participar da atividade, ouvi-los. Estimular a pesquisa preliminar sobre universo

    vocabular e situaes de aprendizagem, selecionar palavras geradoras, organizar a

    preparao e difuso do material educativo e tudo o mais correspondendo natureza

    especfica do mtodo que utilizamos. Discutimos detalhes com Paulo Freire e sua

    equipe. Sem esquecer a preparao da segunda fase, na poca percebida como ps-

    alfabetizao, como atividade de reforo e, logo em seguida, como formao

    complementar. Essa a tarefa dos que integramos o setor de alfabetizao do Secern,

    do qual assumi a direo no dia seguinte sua criao.

    Em muitos casos, pela novidade e pelas dificuldades prprias de uma secretaria

    de Educao num Estado pobre, algumas dessas aes se tornavam mais difceis de

    executar. Em Angicos, necessitaramos de projetores de slides. No encontramos

    sequer 20 projetores venda em Natal e So Paulo. Para os bairros sem eletricidade,

    necessitvamos de projetores que operassem com bateria de automvel ou com

    querosene, como as antigas lmpadas Coleman. Para produzir os slides, o prazo do

    laboratrio do Rio de Janeiro era maior que o previsto. As carteiras escolares para

    300 alfabetizandos tiveram que ser compradas e transportadas de Natal. Dialogamos

    com a comunidade para identificar onde seriam instalados os crculos de cultura.

    Seria muito longo listar tudo o que devamos prever e preparar, inerente a esse tipo

    de atividade. O que conta que no tnhamos tempo para improvisaes e, uma vez

    comeada a atividade em Angicos, longe de Natal, no podamos recuar.

    A mobilizao da UNE e da UEE facilitou o recrutamento de cerca de 20

    candidatos voluntrios, dispostos a consagrar suas frias para atuar nas 40 horas

    de Angicos. Paulo Freire veio a Natal com a equipe do SEC para um seminrio de

    formao inicial realizado na Faculdade de Direito, na Ribeira. Ambas as atividades

    so relatadas por Valquria Felix, em seu artigo.

    Na falta de um mapa de Angicos, subimos na torre da igreja e esboamos um

    desenho que permitia atribuir aos coordenadores uma visita domiciliar. Em todas

    as casas, procuramos saber se existiam analfabetos e quantos, convidando-os ao

    mesmo tempo a participar de nossas atividades.

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    As principais questes logsticas foram equacionadas, com total apoio do

    gabinete do diretor executivo e da equipe administrativa do Secern indicada pela

    Sudene, no mbito de seu acompanhamento e controle preconizados pelo convnio

    assinado.

    As 40 horas

    Existem publicados mltiplos relatos detalhando o que se fez em cada uma

    das 40 horas, especialmente o livro de Carlos Lyra, j citado. Alguns at mesmo

    acessveis pela internet.2 Vale salientar o que chamaria de grandes blocos.

    Nas duas primeiras noites, um momento inicial, importantssimo. Toda a

    discusso sobre o que ficou chamado de aula da cultura, ou dilogos sobre o

    conceito antropolgico da cultura, a partir de uma srie de slides, fundamental para

    abrir concretamente o dilogo respeitoso, nos termos do que Paulo Freire anunciava

    no trecho que abriu o presente artigo. Aquilo que mais adiante o professor Osmar

    Fvero (2012) chamaria ovo de Colombo, e que Paulo Freire descreveu inicialmente

    em seu primeiro livro, j citado, com uma concluso que se realiza efetivamente,

    anunciada na pgina 110 da mesma obra:

    E pareceu-nos que a primeira dimenso deste novo contedo com que ajudaramos o analfabeto, antes mesmo de iniciar sua alfabetizao, na superao de sua compreenso mgica como ingnua e no desenvolvimento de crescentemente crtica, seria o conceito antropolgico de cultura. A distino entre dois mundos: o da natureza e o da cultura. O papel ativo do homem em sua e com sua realidade. O sentido de mediao que tem a natureza para as relaes e comunicao dos homens. A cultura como o acrescentamento que o homem faz ao mundo que no fez. A cultura como resultado de seu trabalho. Do seu esforo criador e recriador. O sentido transcendental de suas relaes. A dimenso humanista da cultura. A cultura como aquisio sistemtica da experincia humana. Como uma incorporao, por isto crtica e criadora, e no como uma justaposio de informes ou prescries doadas. A democratizao da cultura dimenso da democratizao fundamental. O aprendizado da escrita e da leitura como uma chave com que o analfabeto iniciaria a sua introduo no mundo da comunicao escrita. O homem, afinal, no e com o mudo. O seu papel de sujeito e no de mero e permanente objeto.

    ..................................................................................................................................

    Todo este debate altamente criticizador e motivador. O analfabeto apreende criticamente a necessidade de aprender a ler e a escrever. Prepara-se para ser o agente deste aprendizado.

    E consegue faz-lo, na medida mesma em que a alfabetizao mais do que o simples domnio psicolgico e mecnico de tcnicas de escrever e de ler. o domnio dessas tcnicas, em termos conscientes. entender o que se l e escrever o que se entende. comunicar-se graficamente. uma incorporao. (Freire, 1967, p. 108, 110).

    A partir da 3 noite, progressivamente, os dilogos provocados pelos slides

    representando cada uma das situaes selecionadas, com suas palavras geradoras,

    o estudo das slabas, das famlias de slabas. Ler e escrever, individualmente, em

    seu caderno. Ler e escrever, individual e coletivamente, no quadro negro.

    2 Ver a Seo Bibliografia Comentada.

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    Progressivamente, criar palavras e os novos patamares, como escrever frases,

    escrever bilhetes e cartas.

    A partir da 38 noite, todos, ansiosos pelo encerramento, aguardando a

    confirmao da data da vinda do presidente da Repblica. Conforme relata Valquria

    Felix, identificamos de forma apenas perceptvel que alguns alunos aparentavam

    encontrar dificuldades inesperadas. Num movimento explicvel, no queriam chegar

    ao fim das 40 horas. O assunto foi discutido em nossos seminrios, objeto de dilogo

    com os alunos, e foi superado.

    Para no cometer omisso histrica, cabe salientar que na primeirssima noite

    fizemos algo que no mais repetimos. Aplicamos um teste psicolgico de inteligncia

    no verbal,3 conforme a programao da equipe do SEC. Poucos alunos o entenderam,

    muito poucos o terminaram e a maioria se desencorajou, pensando que seria muito

    difcil a aprendizagem. Foi trabalhoso resgatar a mobilizao. Sobre o assunto,

    conversamos francamente com Paulo Freire e sua equipe e tivemos a primeira certeza

    em relao a abertura, humildade e esprito cientifico que encontraramos da parte

    deles, em nosso dilogo. Acertamos que poderamos aplicar num outro momento,

    mas nem isso foi mais solicitado. Para facilitar, no computamos essa noite, quando

    nos referimos a cada uma das 40 horas.

    Aula final, pelo presidente Joo Goulart

    Na 40 hora, a esperada fala do presidente Joo Goulart, dirigindo-se aos

    alunos e a alguns de seus familiares, perante ministros, todos os governadores do

    Nordeste, dirigentes da Sudene e o comandante da 7 Regio Militar. Aps o

    governador do Estado, Paulo Freire resumiu o que acabara de ocorrer em Angicos

    e o presidente Jango se dirigiu aos alunos, no encerramento. Sem respeitar o

    protocolo, um concluinte, o sr. Antnio Ferreira, fez um discurso direto e objetivo.

    No espervamos tal atitude, e nos surpreendeu quando pediu a palavra. Lembro-

    me de que ouvimos algum dizer-lhe: Quebrou o protocolo! Surpreso, o orador

    perguntou-se: Quebrei o qu?, mas no atribuiu maior importncia ao que teria

    quebrado. O texto de seu discurso faz parte desta publicao, por sua mensagem

    direta e pelo valor histrico. Ele agradece ao presidente a iniciativa das 40 horas,

    que veio matar a fome da cabea, e pede que seja levada a todos os brasileiros.

    Ao trmino da solenidade, um inesperado dilogo relatado por Calazans

    Fernandes. Juntamente com o chefe da Casa Militar da Presidncia da Repblica,

    esteve presente o general cearense Castelo Branco, que ento comandava a 7 Regio

    Militar, que tem sede em Recife. Segundo Calazans Fernandes (1994, p. 18), sada,

    quando o grupo j se dispersava procura dos carros para o regresso a Natal, o

    general nos chamou e disse: Meu jovem, voc est engordando cascavis nesses

    sertes. Ao que respondemos: Depende do calcanhar onde elas mordam, general.

    Sobre o mesmo assunto, a historiadora Ana Maria Arajo Freire (2006) relata

    que, no jantar realizado na mesma noite no Palcio das Princesas, no Recife, o general

    3 Teste de inteligncia no verbal (INV), de Pierre Weil.

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    quis sentar-se ao lado de Paulo Freire. Novo dilogo, no mesmo sentido, o que

    explicaria seu interesse pessoal em participar da solenidade de Angicos. Em sntese,

    o general declarou a Paulo Freire que soubera que ele era tido como subversivo, mas

    que quela hora havia adquirido a convico de que realmente se tratava de um

    subversivo. Dilogo confirmado ainda em entrevista de Paulo Freire ao Museu da

    Pessoa, em agosto de 2003, quando lembrou outra afirmao do general ao comprovar

    a subverso, porque defende uma pedagogia sem hierarquia. Paulo Freire

    respondeu que, efetivamente, lutava para subverter a ordem injusta na qual vivia,

    afirmando ainda: defendo valores, e estes estabelecem as hierarquias.

    Isso pode explicar em parte a agilidade da imediata represso, mas no explica

    nem justifica a violncia desproporcional que vitimou alguns dos dirigentes e

    coordenadores das atividades de alfabetizao e educao de jovens e adultos,

    conforme relatado em sntese mais adiante. Represso que teve como objetivo

    declarado eliminar um foco de subverso comunista que pretenderia fazer do

    Nordeste uma nova Cuba. Como anunciado desde antes do golpe, por no aceitar

    o que afirmavam ser uma subverso de valores, subverso que punha em risco seus

    privilgios.

    Resultados crescentes

    Era ntido o crescimento da aprendizagem. Efetivamente, liberado o dilogo

    e estimulada a capacidade de observao com a aula da cultura, a conversa flua,

    salvo exceo de algum mais tmido, que no ficava esquecido e logo era convidado

    a participar, com questes diretas que o estimulavam.

    Para escrever, algumas dificuldades iniciais, naturais em adultos. A mo

    pesada quebrava a ponta do lpis, que furava as folhas do caderno, e tinha dificuldades

    de escrever mesmo uma s palavra numa folha inteira. Mas exatamente por serem

    adultos, pouco a pouco prevalece o domnio e escrevem frases na mesma folha antes

    percebida como insuficiente. Utilizvamos slides 24 x 36 mm. Alguns adquiriram

    uma preciso to grande que chegaram a escrever palavras ou uma frase curta em

    um slide em papel vegetal, projetado no quadro, para que todos pudessem ler.

    A curiosidade dos vizinhos ou familiares manteve-se quase sempre inalterada.

    No havia cinema nem televiso na cidade. Assim, muitos vinham assistir atravs

    das janelas ou portas.

    Um clima permanente de motivao foi mantido na cidade de Angicos. Carlos

    Lyra manipulava com maestria um projetor de 16 mm, e tnhamos disposio uma

    unidade mvel cedida pelo United State Information Service (Usis Servio de

    Informao dos Estados Unidos). Um pequeno reboque cinza, com gerador potente,

    projetor e grande tela, caixas de som e toda a complexa fiao. Projetvamos

    documentrios e filmes educativos cedidos pelo Usis, mas confesso que, algumas

    vezes, preferimos substituir a fala do som original por nossos prprios comentrios.

    Havia tambm a curiosidade de visitantes, que no foram poucos. Inclusive

    jornalistas mobilizados por Calazans Fernandes e Luiz Lobo, observadores da Aliana

    para o Progresso e da Sudene, polticos locais e da regio. Todos respeitaram a

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    exigncia inicial, no interrompiam as atividades em sala, ficando a observar do lado

    de fora, conversando antes ou depois das aulas com alunos e coordenadores.

    Vale ainda ressaltar que, para a futura motivao dos analfabetos em outros

    municpios, encomendamos ao jornalista Luiz Lobo um filme em 16 mm, As 40 horas

    de Angicos, hoje disponvel na internet sob o titulo Alfabetizao de adultos

    Angicos.4

    A importncia dos seminrios

    As 40 horas de Angicos foram um laboratrio vivo, em tamanho real. Mas

    estvamos conscientes de que algumas caractersticas diferiam do que poderia vir

    a ser a forma de trabalho futuro, ao universalizar a proposta dos crculos de cultura

    para todos os brasileiros analfabetos.

    Uma diferena fundamental era a dedicao exclusiva e integral dos

    coordenadores, todos voluntrios, cuja origem social e diversidade de cursos

    universitrios traziam para os debates uma abordagem diversificada e multidisciplinar.

    A rotina se estabeleceu conforme o planejado. Aps a formao inicial j mencionada,

    contvamos com a assessoria de Paulo Freire e sua equipe, que vieram a Angicos

    em mdia a cada 15 dias, por uma durao mdia de trs dias, e incentivaram que

    nos reunssemos todas as manhs num seminrio interno, no qual confrontvamos

    teoria e prtica.

    noite, os debates nos crculos de cultura, dispersos pela cidade, inclusive

    em bairros de difcil acesso, alguns sem iluminao nas ruas ou energia eltrica.

    Pela manh, um seminrio que durava mais de trs horas. Preparvamos as tarefas

    para a noite, aprofundando itens referenciados no roteiro, disponibilizado

    anteriormente pela equipe do SEC durante a formao inicial. Cada um relatava os

    progressos, acertos e dificuldades enfrentados na noite anterior, gerando debates

    muitas vezes acalorados. Confrontvamos o que ocorrera na noite anterior com a

    teoria disponvel. Desse confronto poderia nascer um questionamento a discutir com

    Paulo Freire e sua equipe ou entre ns, quando ali no estavam. E tentava-se

    reelaborar a teoria, renov-la, luz do que havamos verificado na prtica.

    Aqui, testemunhamos a humildade e o esprito cientfico do professor Paulo

    Freire. Sempre curioso e disponvel para ouvir sugestes e crticas, refletirmos juntos

    e reelaborar a teoria no ato. Confrontado pela prtica, incorporava o que ouvira,

    identificando novos caminhos ou lembrando ensinamentos esquecidos, que no

    teramos aplicado. Estas qualidades foram reveladas mais tarde, at mesmo quando

    foi dirigir o Programa Nacional de Alfabetizao do MEC. Veja-se a velocidade com

    que foram modificados, quase sempre para melhor, os slides contendo as palavras

    e situaes de aprendizagem e mesmo os da aula de cultura enriquecidos mais

    tarde com a linda arte de seu amigo Francisco Brennand.

    Durante mais da metade das 40 horas, insensivelmente, nossa equipe tentava

    um ritmo similar para o conjunto dos crculos, o que foi sendo abandonado

    4 Disponvel em: 1 parte 530; 2 parte 603.

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    naturalmente. Descobrimos que nem numa mesma classe havia aprendizagem no

    mesmo ritmo, sobretudo em relao leitura e escritura. Devia prevalecer,

    entretanto, um apelo solidariedade, o que nos permitiu descobrir que um colega

    alfabetizando, muitas vezes, ajudava com mais prioridade a superar aquela

    dificuldade do que um dos coordenadores, em virtude da linguagem, das imagens

    que trazia, da motivao personalizada.

    Identificada uma dificuldade de aprendizagem com tal ou tal tema ou palavra,

    tentvamos trazer ensinamentos tericos que permitissem ultrapass-la. Na ausncia,

    deduzamos ou crivamos alguma ideia e proposta, a confirmar mais adiante.

    Identificada uma dica, uma facilidade maior encontrada em um momento

    dado, muitas vezes sugerida por um aluno, vamos a possibilidade de propor ou

    aplicar algo similar em outros crculos de cultura. Assim nasceram algumas

    sugestes, como o nome de ficha da descoberta para a ficha que apresentava o

    conjunto das famlias silbicas de uma palavra, cuja combinao estimulava a

    criatividade em sala. Na mesma ocasio, diante de palavras criadas ao juntar algumas

    slabas, tecnicamente corretas, mas que no eram do conhecimento de ningum da

    sala, alguns alunos passaram a identific-las como palavra morta ou, ainda,

    inexistente, embora os autores geralmente dissessem que a palavra existia, que era

    o nome de um animal de estimao ou o apelido de um familiar. Outra sugesto

    importante nos facilitou a aprendizagem no momento de criar palavras e frases com

    base na mesma ficha da descoberta. Uma coordenadora explicou em seu crculo

    de cultura que seria algo como construir uma parede de tijolos e algum na sala

    lembrou que, s vezes, se corta o tijolo pela metade, o que fez na hora ao construir

    sua frase.

    No seminrio quotidiano, passvamos e repassvamos os dilogos com os

    alunos. Aprofundvamos as questes que eram discutidas, o que havamos aprendido,

    o que exigia melhor esclarecimento e preparvamo-nos para os dilogos e debates

    da noite, alimentando-nos do material estudado e de nossas diferenas e

    convergncias.

    Finalmente, diante de algum aluno que faltou, resolvamos visit-lo tarde.

    Dois coordenadores iriam saber o porqu da falta e, se fosse o caso, incentiv-lo

    para que voltasse a participar das atividades. Com sucesso, quase sempre.

    Num dos seminrios decidimos quanto a um pedido especial e aqui

    acrescento um testemunho pessoal quanto ao sr. Antnio, o orador da 40 hora.

    No incio das 40 horas meu pai solicitou que lhe apresentasse um aluno que fosse

    efetivamente analfabeto. Indicou que gostaria de v-lo novamente na metade do

    curso e mais para o final. Conversei com os coordenadores, que falaram com seus

    alunos. O sr. Antnio se prontificou, o que me pareceu interessante por serem quase

    da mesma idade, ele e meu pai, advogado, jornalista e professor universitrio, ambos

    com pouco mais de 50 anos.

    Na primeira conversa entre eles, ouvi que conhecia uma letra, o O igual

    boca de uma panela. Demonstrou claramente desconhecer outras letras, no

    sabendo decifrar um livro ou a mais simples anotao. Curioso notar que o sr. Antnio

    era um comerciante conceituado, rpido em clculos mentais, fruto de sua prtica

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    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    profissional. Com cerca de 20 horas, nova visita. Animaram-se os dois, leu e escreveu

    frases, assim como um bilhete. Leu e resumiu algo simples. Com quase 40 horas,

    houve mais um encontro, na biblioteca de meu pai, que tinha na poca mais de 10

    mil livros, imediatamente apelidada pelo visitante de armazm de livros. Leu e

    escreveu no seu ritmo e sem problemas. Leu inclusive verbetes de uma enciclopdia,

    demonstrando pleno entendimento. Recebeu um livro em ingls, que folheou.

    Perguntado, respondeu que Ler, eu leio, porque sei ler. Mas no entendo. Se me

    escuto, parece o que falam os homens da fazenda da Sanbra. Efetivamente, no

    longe de Angicos havia uma grande plantao de agave e uma usina de uma firma

    inglesa, a Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro (Sanbra). Finalmente, ficou

    surpreso quando folheou um livro em alemo. Perguntou se no era uma armadilha.

    Afirmou que um livro assim no podia existir, sem vogais, com palavras ilegveis.

    Verifiquei que meu pai, Otto de Brito Guerra, um dos lderes da Igreja Catlica e

    estudioso de sua Doutrina Social, simptico ao mtodo e s ideias de Paulo Freire,

    nada mais queria para fazer sua prpria avaliao.

    A profecia e a represso

    No ltimo trimestre de 1963, diminui o ritmo do Secern. Tnhamos dificuldades

    para concretizar a abertura de trabalho em novas frentes previstas e programadas.

    Ao mesmo tempo, Paulo Freire aceitou o convite do ministro da Educao para montar

    o Programa Nacional de Alfabetizao, que deveria comear por dois projetos piloto,

    um no antigo Estado do Rio de Janeiro, cuja capital era Niteri, e outro no Estado

    de Sergipe.

    Realizava-se a profecia de Paulo Freire. A propsito disso, dois jornalistas

    norte-americanos publicaram em seu livro: Em janeiro de 1964, a insatisfao com

    a tcnica pedaggica de Freire e o desconforto em torno do contedo poltico do

    programa levaram a Aliana para o Progresso a retirar seu suporte financeiro

    (exatamente trs meses antes do golpe de Estado contra Goulart) (Levinson, Onis,

    1970 apud Freire, Guimares, 2010, p. 39).

    No fim de 1963, alguns de ns fomos convidados para levar a Sergipe nossa

    experincia adquirida no Rio Grande do Norte, sem abandonar o Secern. No cabe

    detalhar aqui o que foi Sergipe, por fugir ao tema de Angicos. Resta um tema que

    merece estudos, inclusive porque havia uma ideia inicial de somar foras com as

    atividades do MEB, em relao ao qual o Estado de Sergipe tambm esteve entre os

    pioneiros.

    No podemos ignorar que foi a partir de Angicos que se levantaram as

    oposies para o que chamavam de atividade subversiva. Fomos surpreendidos

    pelo golpe: no dia 2 de abril, nosso escritrio em Aracaju foi invadido pelo Exrcito,

    procurando literatura subversiva, dinheiro e provas de desvio dos recursos do MEC.

    Paulo Freire tinha tido a precauo de convidar para integrar nossa equipe um

    experiente gestor financeiro que antes de sair, deixava as contas em dia,

    rigorosamente. Decidimos voltar por terra para Natal, ficando em Sergipe o colega

    Paulo Pacheco, da equipe do SEC, diretor do projeto piloto. No meio do caminho, em

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    Caruaru, fui preso por tropas do Exrcito, com mais dois colegas, Pedro Neves e Jos

    Ribamar. Em um jeep, fomos levados algemados para a 2 Companhia de Guardas

    em Recife, disposio do coronel Ibiapina. Mais tarde, esse coronel prendeu, na

    mesma Companhia de Guardas, o prprio Paulo Freire, para igualmente responder

    a seu Inqurito Policial Militar (IPM). Seguiu-se, para Paulo e para mim, um longo

    perodo de privaes, entre priso e exlio, cada um por seu lado. Trata-se de outra

    histria, embora no desvinculada do que se passou em Angicos. As acusaes

    foram finalmente rejeitadas pelo Superior Tribunal Militar (STM), e recentemente

    ambos fomos anistiados pela Comisso Especial do Ministrio da Justia. Ficou o

    sofrimento pessoal, familiar, as marcas da dureza da priso e das dificuldades do

    exlio.

    Coordenadores e alfabetizandos sofreram com a represso, sem reaes mais

    significativas de solidariedade, diante da represso dominante. Alunos e seus

    familiares atemorizados diretamente por militares uniformizados chegaram a queimar

    seus cadernos, exemplares nicos e testemunha indelvel de um grande passo. Ao

    celebrarmos os 50 anos das 40 horas de Angicos, ouvimos muito sobre as dificuldades

    de uns e outros. Histria que ainda no foi contada. Houve manifestaes de

    solidariedade de familiares e amigos, em maior grau aquela dirigida diretamente

    aos que sofremos a arbitrariedade e brutalidade da priso poltica.

    Algumas lacunas

    Nas 40 horas, no reservamos nenhum momento para uma iniciao

    matemtica. Os nmeros eram manipulados ao se escrever cada dia a data, incluindo

    tambm o dia da semana. Esse assunto nunca foi discutido a fundo entre ns, mas

    constvamos que os adultos no tinham problemas para os clculos de seu dia a dia.

    Na profisso, na feira, no mercado, onde fosse. Mais adiante soube que Paulo Freire

    reuniu-se com o professor Ubiratan DAmbrosio. Um dilogo entre os dois para um

    congresso de matemticos em Sevilha permitiu levantar algumas hipteses. Ainda,

    em dilogo na Unesco com especialistas da etnomatemtica, pude descobrir mais

    tarde como existem convergncias que nos permitem respeitar na aprendizagem da

    matemtica os mesmos princpios que defendemos para a aprendizagem do ler e

    escrever.

    Na corrida contra o tempo, no soubemos dar tempo ao dilogo e interao

    com as atividades do ensino regular no municpio ou na prpria Secretaria da

    Educao do Estado. De um lado, as 40 horas aconteceram durante as frias escolares.

    De outro, apesar de o vasto programa do Secern incluir atividades inovadoras em

    matria de formao de professores e de renovao de currculo, elas apenas se

    iniciavam. Finalmente, descobrimos depois porque o secretrio da Educao

    contribuiu para nos isolar. Calazans guardava na manga uma carta, temendo que

    no dssemos conta do trabalho, como revelou em seu livro j citado. Se soubssemos,

    na poca, teramos includo essa alternativa dentro do que chamamos de ambiente

    hostil.

  • 40

    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    Prevenido quanto a eventual determinao do governador Aluzio Alves no sentido de impedir a conexo de Angicos com Miguel Arraes, o secretrio havia evoludo com antecedncia suficiente para a alternativa de colocar em cena uma equipe de professores escolhidos do Centro de Estudos de Pesquisa (CEP) da Secretaria de Educao, e entre os profissionais colocados disposio do Estado por outros governos.

    Somente sabiam destas providncias o Secretrio e a gacha Lia Campos, diretora do CEP. Como no ritmo do Brasil da poca, trabalhava-se com o impondervel. A armao pernambucana dentro do Rio Grande do Norte poderia explodir. Ela envolvia justamente o municpio de nascimento de Alusio. Se fosse o caso de substituir a equipe, isso s deveria ocorrer a partir de trs de dezembro, aps a assinatura do convenio MEC-Sudene-Usaid. (Fernandes, Terra, 1994, p. 95).

    Tambm tivemos dificuldades de conviver com a rigorosa e prudente

    burocracia do Secern, com seus instrumentos de controle e avaliao aplicados pelos

    tcnicos da Sudene, conforme acertado no convnio com a Usaid. Entre tantos, um

    pequeno exemplo: o transporte das carteiras escolares para Angicos. Havamos

    anunciado a data de incio do curso, mas as carteiras foram recebidas com algum

    atraso pelo almoxarifado do Secern e este exigia alguns dias para identificar cada

    uma com seu selo, incorporando-as ao patrimnio da entidade. Impossvel esperar.

    Contamos com alguma conivncia e, numa operao noturna, de surpresa,

    embarcamos todas as carteiras em caminhes surgidos do nada. No atrasamos a

    abertura. Lembro-me de que o secretrio se divertiu com a situao e mandou que

    o funcionrio se deslocasse at Angicos para colar as fichas em cada um dos mveis

    e equipamentos.

    Repercusso internacional e hostilidade da ditadura na Unesco

    Alm da repercusso nacional, que levou a convidar Paulo Freire para criar e

    dirigir, no MEC, o Programa Nacional de Alfabetizao (PNA), suscitando a

    multiplicao de experincias em 1963 e 1964 em outros municpios brasileiros,

    verifica-se rapidamente uma repercusso internacional, fruto das visitas de

    especialistas e de jornalistas que viram os resultados alcanados em Angicos e Natal

    e, progressivamente, em outros lugares. Graas ao que escreveram, nosso trabalho

    se tornou conhecido. A repercusso ampliou-se a partir do exlio de Paulo Freire, de

    seus livros e de sua participao em palestras, conferncias e cursos em universidades

    ou a convite de movimentos sociais.

    Ele respondia claramente a uma dupla demanda. A primeira, da academia e

    de entidades interessadas na estreita relao entre Educao, Direitos Humanos e

    Desenvolvimento, visvel nos convites que recebeu de inmeras universidades e do

    Conselho Mundial das Igrejas (CMI) assim como de organizaes no governamentais

    inseridas em lutas locais ou regionais. A segunda demanda, de pases interessados

    em adotar novas polticas de alfabetizao e educao de jovens e adultos. O trabalho

    interessou outros pases em desenvolvimento, que levaram Unesco a proposta de

    integrar essa nova viso e torn-la conhecida.

  • 41

    Em Aberto, Braslia, v. 26, n. 90, p. 21-44, jul./dez. 2013

    Sobre a repercusso na Unesco, um fato pouco conhecido, mais uma prova

    da incansvel atuao de nosso Itamaraty a servio do regime de exceo implantado

    no Brasil durante o perodo, atuao que precedeu a tristemente clebre Operao

    Condor e que se prolongou at a retomada da democracia em nosso Pas.

    O senegals Amadou Mahtar MBow era o diretor geral da Unesco, em um

    raro perodo no qual a entidade foi dirigida por algum do Terceiro Mundo (1974-

    1987). No ltimo trimestre de 1983 fui sondado para integrar a Diviso de

    Alfabetizao de Adultos e Desenvolvimento Rural (ED/LAR), que renovaria sua

    direo em 1984. Lembro-me que atuava na poca como consultor para a prpria

    Unesco e outras agncias da ONU e j havia conhecid