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  • SOCIOLOGIA DOSDESASTRES

    CONSTRUO, INTERFACES EPERSPECTIVAS NO BRASIL

    VOLUME III

  • SOCIOLOGIA DOSDESASTRES

    CONSTRUO, INTERFACES EPERSPECTIVAS NO BRASIL

    NORMA VALENCIOORGANIZADORA

    CONSELHO REGIONAL DE SERVIO SOCIAL - RJAPOIO

    EDITORA

    SO CARLOS2013

  • Direitos reservados desta edioRiMa Editora

    Arte da capaArthur Valencio

    Figura inspirada em: Centauro Quirn (1921) Escultor: Pascual SalaverriLocal: Parque Primo de Rivera, Zaragoza, Espanha

    2013 dos autores

    COMISSO EDITORIALDirlene Ribeiro MartinsPaulo de Tarso Martins

    Carlos Eduardo M. Bicudo (Instituto de Botnica - SP)Evaldo L. G. Espndola (USP - SP)Joo Batista Martins (UEL - PR)

    Jos Eduardo dos Santos (UFSCar - SP)Michle Sato (UFMT - MT)

    Rua Virglio Pozzi, 213 Santa Paula13564-040 So Carlos, SPFone/Fax: (16) 3411-1729

    www.rimaeditora.com.br

    Sociologia dos desastres construo, interfaces e perspectivas noBrasil volume III /organizado por Norma Valencio / apoioCRESS-RJ So Carlos : RiMa Editora, 2013.

    358 p. il.

    ISBN 978-85-7656-028-9

    1. Sociologia dos desastres. 2. Vulnerabilidade. 3 Defesa civil.4. Mudanas climticas. I. ttulo. II. autor

    CDD 303.4

    S681s

  • SOBRE OS AUTORES

    Aline Silveira Viana Graduada em Gerontologia pela UFSCar. Mestranda emCincias da Engenharia Ambiental da Universidade de So Paulo. Membro do Grupode Pesquisa Sade e Envelhecimento. Bolsista pela CAPES. Membro do Ncleo deEstudos e Pesquisas Sociais em Desastres. E-mail: [email protected]

    Antenora Maria da Mata Siqueira Assistente Social, especialista em ProblemasAmbientais Regionais (UFF), mestre em Cincias Sociais (UFRRJ), doutora em Pla-nejamento e Desenvolvimento Rural Sustentvel/Engenharia Agrcola (UNICAMP)e em Economia da Agricultura e dos Recursos (ENSAR/Fr). Professora da Universi-dade Federal Fluminense Departamento de Servio Social de Campos, onde coor-dena a Ps-Graduao em Meio Ambiente e Desenvolvimento e o Ncleo de Pesquisase Estudos Socioambientais-NESA. Pesquisadora na linha de pesquisa de Desastresrelacionados a guas. E-mail: [email protected]

    Arthur Valencio graduando do curso de Fsica da Universidade Estadual de Cam-pinas (UNICAMP) e pesquisador do Ncleo de Estudos e Pesquisas Sociais emDesastres (NEPED) da Universidade Federal de So Carlos (UFSCar). E-mail:[email protected]

    Boaventura Horta Vaz Santy Bacharel em Cincias Sociais, Mestre em Sociolo-gia pelo Programa de Ps-Graduao em Sociologia e pesquisador do Ncleo de Es-tudos e Pesquisas Sociais em Desastres NEPED da Universidade Federal de SoCarlos UFSCar. bolsista CAPES. E-mail: [email protected]

    Cludia Silvana da Costa Bacharel em Cincias Sociais pela Universidade Federalde So Carlos, graduao em Direito pela Faculdade de Direito de So Carlos, mestradoem Cincias Sociais pela Universidade Federal de So Carlos, Doutorado em Sociolo-gia na UFSCar. Profissionalmente atua como coordenadora do Ncleo de Prticas Ju-rdicas do Centro Universitrio UNIFAFIBE e como docente nos cursos de Direito,Administrao de Empresas e Sistemas de Informao. Parecerista da Revista UNIFAFIBEon-line. Advogada. Pesquisadora do Ncleo de Estudos Sociais em Desastres da Uni-versidade Federal de So Carlos NEPED/UFSCar. Avaliadora de Cursos de Gradua-o pelo Sistema Basis Inep/MEC. E-mail: [email protected].

    Dora Vargas Graduada em Servio Social pela UFJF. Mestre em PlanejamentoUrbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e Doutora em Sociologia pelo PPGS daUFSCar. Atualmente Assistente Social efetiva da Prefeitura de Juiz de Fora/MG,docente do Curso de Servio Social da Universidade Salgado de Oliveira Juiz deFora e pesquisadora do NEPED/UFSCar. E-mail: [email protected]

  • 6

    Jos Augusto Carvalho Arajo Mestre em Sociologia atravs do Programa dePs-Graduao da Universidade Federal da Paraba UFPB, especialista em Cin-cia Poltica atravs do PPG da Universidade Federal do Par UFPA/IUPERJ. Ba-charel em Cincias Sociais pela Universidade da Amaznia. Coordenador do Cursode Ps-graduao (latu sensu) em Movimentos Sociais na Amaznia. Doutorandodo Programa de Ps-Graduao em Sociologia. E-mail: [email protected]

    Juliana Sartori Sociloga, mestranda do Programa de Ps-Graduao em Cinci-as da Engenharia Ambiental da EESC-USP-So Carlos. Pesquisadora do Ncleo deEstudos e Pesquisas Sociais em Desastres-DS, vinculado ao Departamento de Soci-ologia da Universidade Federal de So Carlos UFSCar. Bolsista CAPES. E-mail:[email protected]

    Juliano Costa Gonalves Cientista Social, mestre em Desenvolvimento Econ-mico, Espao e Meio Ambiente e Doutor em Cincias. Professor Adjunto do Depar-tamento de Cincias Ambientais, Campus de So Carlos, da Universidade Federalde So Carlos.

    Lindomar Expedito S. Dars Psiclogo (CRP-05/20.112) do quadro do TJRJ,lotado na Vara da Infncia Juventude e Idoso (VIJI) de So Gonalo-RJ, desde maiode 1999; Mestre em Psicologia Social; Psicoterapeuta; Membro do XII e XIII Plen-rio do CRP-RJ onde atuou por quatro anos como presidente da Comisso Regionalde Psicologia e Polticas Publicas e atualmente preside, desde setembro de 2011, aComisso de Orientao e Fiscalizao (COF). E-mail: [email protected].

    Luc Hidalgo Nunes Graduada em Geografia (bacharelado e licenciatura), temmestrado em Geografia Fsica e doutorado em Engenharia de Transportes (Univer-sidade de So Paulo). docente do Departamento de Geografia da UniversidadeEstadual de Campinas bolsista produtividade do CNPq, representante da Amri-ca Latina junto a um programa do PAGES e membro da Academie Royale desSciences DAutre-Mer, Blgica. E-mail: [email protected]

    Maria Soledad Etcheverry Orchard Doutora em Sociologia pelo Programa dePs-Graduao em Sociologia e Antropologia IFCS/UFRJ, Professora do Departa-mento de Sociologia e Cincia Poltica (SPO/UFSC) e do Programa de Ps-Gradu-ao em Sociologia Poltica (PPGSP/UFSC). Seus trabalhos e interesses de pesquisaesto ligados a temas da sociologia do trabalho, sociologia econmica, polticas p-blicas e sociologia do desenvolvimento. Linhas de pesquisa: Mundos do Trabalho;Estado, Mercado, Empresariado e Sistema Financeiro. E-mail: [email protected].

    Mariana Siena sociloga, mestre e doutora em Sociologia pelo Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal de So Carlos/UFSCar. Pesqui-sadora do Ncleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres/NEPED, vinculadoao departamento de Sociologia da UFSCar. Professora de sociologia e filosofia doInstituto Atlntico de Ensino de Piracicaba/SP. E-mail: [email protected].

    Marina Sria Castellano Formada em Geografia pela Universidade Estadual deCampinas, possui Mestrado e atualmente Doutoranda do Departamento de Ge-ografia na mesma Instituio, na rea de Climatologia Geogrfica. Desde 2006

  • 7

    integrante do Leclig Laboratrio de Estudos Climticos do Instituto de Geocin-cias. E-mail: [email protected].

    Marisa Silvana Zazzetta Assistente Social. Mestre e Doutora em Servio Socialpela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Especiali-zao em Gerontologia Social pela PUC-RS. Docente do Programa de Ps-Graduao em Enfermagem da UFSCar. Docente do curso de graduao emGerontologia da UFSCar. E-mail: [email protected],

    Norma Valencio Economista, mestre em educao, doutora em Cincias Huma-nas. Coordenadora do Ncleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (NEPED)do Departamento de Sociologia da UFSCar. Docente do Programa de Ps-Gradua-o em Cincias da Engenharia Ambiental (PPGSEA), vinculado ao Centro de Re-cursos Hdricos e Ecologia Aplicada (CRHEA) da Escola de Engenharia de So Carlos(EESC) da USP, onde leciona e orienta (mestrado e doutorado) na rea de Sociologiados Desastres. Bolsista Produtividade do CNPq. E-mail: [email protected] .

    Raquel Duarte Venturato Tecnloga em Gesto Ambiental. Mestre em Agroeco-logia e Desenvolvimento Rural pela UFSCar. Doutoranda do Programa de Ps Gra-duao em Cincias da Engenharia Ambiental da Escola de Engenharia de So Carlosda Universidade de So Paulo (PPGSEA/EESC/USP). Pesquisadora do Ncleo emEstudos e Pesquisas Sociais em Desastres (NEPED/UFSCar). Foi bolsista CAPES e atualmente bolsista do CNPq.. E-mail: [email protected] Salazar Costa Graduada em Gerontologia pela UFSCar. Mestranda emEducao pela UFSCar. Membro do Grupo de Pesquisa Sade e Envelhecimento.Membro do Grupo de Pesquisa Prticas Sociais e Processos Educativos. E-mail:[email protected].

    Roberto Luiz do Carmo Socilogo, mestre em Sociologia e doutor em Demografia,com Ps-doutorado na rea de Populao, Ambiente e Distribuio Espacial daPopulao. Professor do Departamento de Demografia do Instituto de Filosofia eCincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP) epesquisador do Ncleo de Estudos de Populao (NEPO/UNICAMP), Bolsista Pro-dutividade do CNPq. E-mail: [email protected].

    Rbia dos Santos Doutora em Sociologia Poltica (UFSC), professora do Depar-tamento de Servio Social e Integrante do Ncleo de Pesquisa Interdisciplinar So-ciedade, Famlia e Polticas Sociais da UFSC. E-mail: [email protected].

    Samira Younes-Ibrahim Psicloga, psicoterapeuta de abordagem humanista transpessoal. Coordenadora da Rede de Cuidados-RJ/Psicologia das Emergncias e dosDesastres. Facilitadora de grupos, consultora na rea hospitalar, professora do curso dePs-Graduao em Enfermagem em Nefrologia da Universidade Estcio de S, membroda Escola Dinmica Energtica do Psiquismo. E-mail: [email protected].

    Sofia Cristina Iost Pavarini Enfermeira. Mestre e Doutora em Educao pelaUnicamp. Especializao em Anlise e Programao de Condies de Ensino pelaUFSCar. Docente do Programa de Ps-Graduao em Enfermagem da UFSCar.Docente e coordenadora do curso de graduao em Gerontologia da UFSCar.E-mail: [email protected]

  • SUMRIOPrefcio................................................................................................................. xiApresentao ....................................................................................................... xvNorma Valencio

    SEO IRISCOS E DESASTRES SOB UM OLHAR

    STRICTU DAS CINCIAS SOCIAIS

    Captulo I A Crise Social Denominada Desastre: subsdios para umarememorao coletiva acerca do foco principal do problema ...........................3

    Norma Valencio

    Captulo II Mudanas climticas e dinmica demogrfica:relaes e riscos ............................................................................................. 23

    Roberto Luiz do Carmo

    Captulo III A Poltica de Assistncia Social em Contexto deDesastres Relacionados s Chuvas: um estudo sobre omunicpio de Ribeiro Preto/SP .................................................................... 38

    Mariana Siena

    Captulo IV Memria e Prticas Sociais de Idosos em Tornodo Tema dos Raios: o caso de So Caetano do Sul/SP .................................. 62

    Juliana Sartori

    Captulo V Representaes Sociais dos Eventos SeverosRelacionados s Mudanas do Clima: os Bijag da Guin-Bissau ................... 83

    Boaventura Santy

    Captulo VI A Histria das Enchentes no Municpio deMarab: mitos e verdades no cotidiano da cidade ........................................ 99

    Jos Augusto Carvalho de Arajo

    Captulo VII O Corpo como Medida de uma Vida Diluda:o caso de Roraima ....................................................................................... 109

    Norma Valencio

    SEO IIRISCOS E DESASTRES EM ABORDAGENS

    ANALTICAS INTERDISCIPLINARES

    Captulo VIII Conflitos e Riscos Socioambientais da Construo e daOperao de UHEs no Municpio de Pereira Barreto/SP ............................ 129

    Juliano Costa Gonalves

  • Captulo IX Rosas, Dulces, Comandantes e Peritos: a luta pelaclassificao do mundo no contexto dito desastre ................................... 153

    Dora Vargas

    Captulo X Pedras no Caminho: o desastre e as vidaslascadas em Muqui/ES ................................................................................ 175

    Norma Valencio, Mariana Siena, Arthur Valencio

    Captulo XI Os Desafios de Proteo Dignidade da PessoaHumana: o caso dos refugiados haitianos no Brasil .................................... 194

    Cludia Silvana da Costa

    Captulo XII A Poltica de Assistncia Social no Contexto doDesastre: o caso de Blumenau/SC ............................................................... 208

    Rbia dos Santos, Maria Soledad Etcheverry Orchard

    Captulo XIII Tragdia das guas em Niteri e a Condio deAbandono dos Sobreviventes ....................................................................... 230

    Norma Valencio, Lindomar Expedito S. Dars

    SEO IIIOS DESASTRES SOB OUTRAS PERSPECTIVAS:

    PROXIMIDADES E DISTNCIAS DA VISO SOCIOLGICA

    Captulo XIV Proteo Social e Enchentes: desafios profissionaisem questo .................................................................................................. 257

    Antenora Maria da Mata Siqueira

    Captulo XV Desastres Ambientais e Envelhecimento Populacional ............. 278Aline Silveira Viana, Sofia Cristina Iost Pavarini,

    Reijane Salazar Costa, Marisa Silva Zazzetta

    Captulo XVI Dirio de Bordo: lideranas comunitriasem tempos de desastres ............................................................................... 291

    Samira Younes-Ibrahim

    Captulo XVII Povos Tradicionais e Mudanas Climticas: resilinciaou necessidade adaptativa s novas condies ambientais? ............................307

    Raquel Duarte Venturato

    Captulo XVIII O Poder Pblico Municipal de Campinas (SP)Diante das Inundaes: uma anlise dos Planos Diretores de1996 e 2006 ............................................................................................... 320

    Marina Sria Castellano, Luc Hidalgo Nunes

  • xi

    PREFCIO

    Quando o Ncleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres da Uni-versidade Federal de So Carlos (NEPED/DS/UFSCAR) procurou o Con-selho Regional de Servio Social do estado do Rio de Janeiro (CRESS-RJ)a fim de propor uma parceria para a publicao desta coletnea, imedia-tamente a direo do CRESS-RJ reconheceu que os debates aqui apre-sentados so de extrema relevncia para os assistentes sociais brasileiros.Maior certeza tivemos quando pudemos ter acesso ao contedo dos tex-tos produzidos e reproduzidos nas pginas que seguem.

    Ano a ano, episdios a episdios, assistentes sociais so chamados paraintervir em situaes de desastres e emergncias socioambientais. Mas noapenas assistentes sociais: outras categorias profissionais so, comumente,acionadas, no meio da noite, no fim de semana, para atuarem diante dascalamidades e de situaes de emergncia que destroem vidas, projetos,sonhos, histrias.

    Como profissionais que atuam nessas situaes, a cada chamada, a cadaepisdio, reconhecemos que no se trata de desastres naturais. As conse-quncias so explicitamente sociais. Mas no apenas as consequncias. Asprofundas desigualdades sociais que marcam a vida humana em seu cotidi-ano, no territrio onde vivem, onde construram e/ou adquiriram seu localde moradia, onde transitam para poder trabalhar e garantir seu sustento,so as marcas de situaes que se agravam a cada dia. Enchentes, deslizesde terra, desabamentos diversos, todos esses episdios expressam, para asvidas envolvidas, as contradies de uma sociedade dividida em classes so-ciais, fundada no princpio da propriedade privada, da obteno do lucro,nas relaes de explorao de homens e mulheres.

    Lidar com situaes como essas requer reconhecer que as desigual-dades sociais determinam os desastres sociais, bem como a forma pela qualdeterminados segmentos populacionais vivenciam suas consequncias.

    Particularmente no estado do Rio de Janeiro (o que sabemos no ser, infe-lizmente, nenhuma exclusividade), os desastres socioambientais vm se agra-vando, em quantidade e em fora destruidora. Em todo o estado, no apenasna Regio Metropolitana. At mesmo nos locais mais buclicos e interioranos,sobre os quais a grande mdia comercial pouco se importa em noticiar.

  • xii

    Entretanto, as populaes pobres, sempre merc dos grandes inte-resses econmicos e polticos, sofrem antes dos desastres, por no usufru-rem da infraestrutura necessria para a qualidade de vida qual tm direito.E sofrem mais ainda depois: sofrem com a ausncia de polticas pblicaseficazes voltadas para a preveno e o enfrentamento dessas situaes; so-frem com o descaso do Poder Pblico em garantir mnimas condies desobrevivncia; sofrem com o clientelismo e o autoritarismo a que so sub-metidos diante da misria material produzida; sofrem com a superexposiomiditica, que corrobora com prticas assistencialistas e voluntaristas queenvolvem celebridades e polticos; sofrem com a corrupo instaurada pormeio dos recursos que so destinados ao enfrentamento; sofrem com a vigi-lncia e a coero quando, mesmo com tudo fora da ordem, so obriga-dos a se enquadrarem na ordem, em nome do bem da sociedade e deuma dita reconstruo; sofrem por serem esquecidos e abandonados peloente que deveria garantir seus direitos fundamentais, o Estado, depois deperderem tudo: a casa, o trabalho, os familiares, os amigos, os pertences, adignidade, a autoestima, a cidadania.

    com esse pblico que os assistentes sociais estabelecem suas rela-es profissionais. Seja imediatamente aps a ocorrncia do episdio dedesastre, seja em todos os desdobramentos que marcaro a vida dessapopulao.

    As profisses, certamente, tm muito a contribuir em situaes comoessas. Contudo, essas contribuies sempre sero mais ou menos restritasa depender da opo das polticas governamentais em como prevenir eenfrentar esses quadros. Portanto, no apenas dever tico dos assisten-tes sociais participar de programas de socorro diante de situaes de cala-midades, conforme est previsto na alnea d do Art. 3 do Cdigo de ticaProfissional do/a Assistente Social. preciso que se tenha efetivamente oque fazer e, para isso, so necessrias polticas pblicas eficazes para tal.

    Portanto, entender o que so os desastres, suas causas, determinantes,estudar as experincias j acumuladas ao longo da histria, tarefa fun-damental da sociedade brasileira, se quisermos preveni-los e enfrent-los.Vidas humanas, em suas diversas dimenses, dependem desse movimen-to. Assim, estamos falando da defesa de direitos humanos, em todas as suasdimenses.

    Decerto, a sociedade brasileira ainda est muito despreparada paralidar devidamente com situaes de desastres socioambientais. Basta res-gatarmos as recentes experincias vividas no pas algumas delas analisa-das nesta obra. Isso inclui as profisses.

  • xiii

    O CRESS-RJ vem buscando criar espaos de debates com assisten-tes sociais para pensar na contribuio que o Servio Social pode dar paraqualificar esse processo. Em 2011, foi criada a Comisso de Direito Ci-dade que j organizou vrias atividades sobre o tema com a categoria.Em 2012, defendeu a criao de um Grupo de Trabalho Nacional sobreServio Social e Poltica Urbana, coordenado pelo Conselho Federal deServio Social (CFESS), que, aps aprovado, conta com a presena doCRESS-RJ em sua composio. Participa de outro Grupo de Trabalhosobre emergncias e desastres socioambientais, criado pelo colegiado deconselhos profissionais do estado do Rio de Janeiro iniciativa fundamentalpara pensar a contribuio das profisses em situaes de desastres.

    Assistentes sociais, assim como tantas outras categorias profissionais,podem contribuir muito mais para o enfrentamento de situaes de desas-tres do que ficarem merc do assistencialismo que impregna a culturapoltica brasileira nesses contextos. Podem contribuir com os conhecimen-tos, habilidades e competncias que desenvolvem ao longo de sua formaoe de sua regulamentao. Porm, podem ir alm: ao se debruarem teorica-mente sobre o tema, de forma crtica e aprofundada, podem interferir, comseu conhecimento tcnico-cientfico e com a articulao com movimentose outros sujeitos sociais, nos rumos das polticas pblicas para que de fatoenfrentem as mazelas produzidas pelos desastres socioambientais.

    Apostamos que este livro permitir que muitas reflexes caminhemnessa direo, voltadas para assistentes sociais e tantos outros profissio-nais absolutamente necessrios construo dessa caminhada, que remana contramo do que at hoje o Estado brasileiro foi capaz de produzirpara lidar com situaes de desastres. Acreditamos que os textos a seguirpodem, a partir de diferentes pontos de vista disciplinares, despertar umaviso crtica e apontar as possibilidades de enfrentar as desigualdadessociais que produzem e se manifestam diante dos desastres. Esperamos,ao co-organizar esta publicao, afirmar o compromisso tico e poltico dosprofissionais com a garantia dos direitos humanos e com a construo deuma sociedade sem quaisquer formas de dominao e explorao, e cons-truir as mediaes necessrias para sua materializao em aes profissi-onais concretas no cotidiano.

    Rio de Janeiro, dezembro de 2013Diretoria do Conselho Regional de Servio Social 7 Regio

    Gesto 2011-2014: Trabalho e direitos: a luta no para

  • xiv

  • xv

    APRESENTAONorma Valencio(organizadora)

    Esta coletnea visa apresentar ao pblico em geral, aos cientistas sociais,em particular, e aos socilogos, especialmente, a importncia da constru-o de um ambiente de dilogo no tema dos desastres.

    De um lado, propem-se a apresentar e difundir uma perspectiva pro-priamente sociolgica de entendimento do conceito de desastre e, ainda,faz-lo como esforo plenamente cabvel e necessrio ao contexto socioam-biental brasileiro. A nao brasileira, por ora, no dispe de uma literaturanacional densa nem de um ambiente consistente de debate naquilo quecaracterize uma vertente eminentemente crtica e ciente da complexidadedo tema dos desastres. Caminhamos coletivamente, passo a passo, para tra-zer o debate internacional para as nossas especficas circunstncias nasquais as desigualdades sociais e a dilapidao do meio miseravelmente seintegram, apresentando-se como projeto enganoso de desenvolvimentoenquanto, sem melindres, ameaa um projeto genuno de civilidade masexperimentamos a nossa forma prpria pensar os nossos problemas. pre-ciso encorajar essa experimentao.

    De outro lado, essa coletnea tem como propsito transcender os iso-lamentos interpretativos, as vaidades corporativas e as resistncias institu-cionais para que interpretaes variadas em torno do conceito de desastrepossam se espargir e incrementar a conscincia crtica e a mobilizao danao para um outro paradigma de produo e implantao de polticaspblicas. Preocupantemente, um ambiente de negcios prolifera em tornodos dramas sociais nas territorialidades devastadas e se fecha, ao invs deabrir, a possibilidade de controle social sobre os processos deliberativos emtorno das polticas e programas que visam estancar esse mal no planomacrossocial.

    Ainda quando a possibilidade de convergncia interpretativa no es-teja ao alcance do conjunto dos textos dos autores aqui congregados, h umvalor intrnseco dessa congregao de esforos e que no pode ser subesti-mado: trata-se do compromisso de cada qual em buscar uma verdade em

  • xvi

    torno desse objeto, os desastres; sab-la como verdade parcial e limitada,incapaz de aambarcar a totalidade de um fenmeno inerentemente com-plexo como este; manter-se aberto verdade do Outro, que a essncia doesprito cientfico e democrtico, sujeito a revises e convivncia com a di-ferena. Se perdermos a possibilidade de difuso das nossas ideias, as are-nas para express-las incluindo, as publicaes a disposio ao debate eao respeito ao ponto de vista divergente, perdemos o que de mais caro umasociedade precisa para amadurecer e recuperar o seu projeto civilizatrio.

    Nos volumes anteriores dessa coletnea (Volume I e Volume II), o ca-rter polissmico evidente na contribuio dos diversos pesquisadores, daUFSCar e USP, vinculados ao Ncleo de Estudos e Pesquisas Sociais emDesastres NEPED/DS/UFSCar j estava presente nas diversas reas deorigem dos autores. Ali, a Sociologia j dialogava com a Economia, o Direi-to, o Servio Social e outras reas do conhecimento.

    Nesse terceiro volume da coletnea, as contribuies continuaram aser, em parte, de pesquisadores do NEPED com vnculos na prpriaUFSCar, como tambm na USP-So Carlos, na UNIFAFIBE e na Universi-dade Salgado Oliveira/UNIVERSO mas, noutra parte, so oriundas depesquisadores externos, vinculados Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP, Universidade Federal Fluminense/UFF, Universidade GamaFilho/UGF Universidade Federal de Santa Catarina/SC, Fundao Uni-versidade Regional de Blumenau/FURB ao Tribunal de Justia do Estadode Rio de Janeiro/TJRJ. As reas de conhecimento que, em graus variados,aqui dialogam com a Sociologia so: o Servio Social, a Demografia, o Di-reito, a Psicologia, a Gerontologia, a Gesto Ambiental e a Geografia.

    O apoio do CNPq, da CAPES e da FAPESP a muitos dos resultadosde pesquisa logrados, e apresentados pelos autores nos diferentes captu-los, deve ser destacado e merece nosso agradecimento coletivo.

    Os vinte e dois pesquisadores presentes nesse Volume III, distribudosna autoria ou co-autoria dos dezoito captulos da obra, encontram-se emdiferentes estgios da trajetria profissional e cientfica de graduandos adoutores e, como reflexo individual ou coletiva, trazem quatro diferen-tes nfases em torno dos desastres, a saber: a nfase na dimenso psicosso-cial, na dimenso sociocultural, na dimenso socioambiental e na dimensosociopoltica. Os focos macro e microssocial so igualmente contempladose o contexto nacional como o regional e o local, idem, com a adio de con-textos externos, como o africano, e transescalares, como o dos refugiadosambientais. No nvel nacional, a discusso acerca do aspecto demogrficoenvolvendo os riscos e os desastres apresentada e, noutra contribuio, aparticular vulnerabilizao de um grupo social, o de idosos, toma destaque.

  • xvii

    As macrorregies Sul, Sudeste e Norte foram especialmente focalizadasdesta vez. Isso se manifestou atravs dos diferentes casos municipais (tre-ze, ao todo) inseridos em sete diferentes Unidades da Federao, a saber:Terespolis, Petrpolis, Niteri e Campos dos Goytacazes, no estado do Riode Janeiro; Ribeiro Preto, So Caetano do Sul, Pereira Barreto, Campinas,no estado de So Paulo; Marab, no Par; Boa Vista, em Roraima; Muqui,no Esprito Santo; a regio do Alto Juru, particularmente uma Unidade deConservao no Acre; por fim, Blumenau, em Santa Catarina.

    Os dezoito captulos foram agrupados em trs diferentes sees. Aprimeira, dedicada a apresentar o tema dos riscos e desastres sob um olharstrictu das Cincias Sociais, predominantemente sociolgico, desde as discus-ses mais tericas aos estudos de caso. A segunda seo apresenta captu-los no qual as abordagens analticas interdisciplinares prevalecem, tendo aproblemtica sociolgica como referncia. Na terceira e ltima seo, osautores trazem uma perspectiva diferenciada da sociolgica e, em diferen-tes gradaes, esforam-se para encontrar um elo, aproximar-se o quantopossvel, localizar um ponto em comum e favorecer o debate.

    Esperamos que o leitor tenha uma boa leitura e uma grata surpresa aoconstatar que a superao de polmicas em torno de tecnicismos no temados desastres possvel, ainda mais em uma nao que clama por justiaambiental. Tarefa para ontem, hoje e sempre!

  • 1

    SEO I

    RISCOS E DESASTRES SOB UM OLHARSTRICTU DAS CINCIAS SOCIAIS

  • 2

  • 3

    CAPTULO I

    A CRISE SOCIAL DENOMINADADESASTRE: SUBSDIOS PARA UMA

    REMEMORAO COLETIVA ACERCA DOFOCO PRINCIPAL DO PROBLEMA

    Norma Valencio

    INTRODUO

    Mergulhados estamos na conturbada era da vertigem, que aambarcadesde o ritmo da produo e disseminao da informao at a modifica-o do contedo dos territrios, no sem passar pelos costumes e formasusuais de interao social, que se alteram num piscar de olhos.

    Dos piores efeitos da acelerao do mundo, destaca-se o de nos rou-bar a possibilidade reflexiva acerca da vida cotidianamente vivida; isto , ode nos usurpar as condies que propiciam o cultivo coletivo de uma den-sidade existencial. Tal usurpao tem deletrios desdobramentos tanto naqualidade das relaes que mantemos em sociedade quanto nos requerimen-tos da paisagem na qual desenvolvemos nossa rotina cotidiana. As entra-nhas da velocidade dissolvem o valor cultural atribudo a muitas dasindagaes que, at ento, se perenizavam na trajetria humana, incluin-do a que se refere aos rumos que estamos coletivamente construindo e porquais razes.

    Tal como convm acumulao capitalista, a cidade tem se afirmadocrescentemente como um territrio totalizante, aquele tido como o exclusi-vamente vlido para parametrizar no enodoar das paisagens delirantescom as relaes sociais volteis o arcabouo de sentidos socioespaciais queassenta a ideia de rotina. Emblematicamente, nela que proliferam os lo-cais de entretenimento, no interior dos quais as atraes se orientam para a

    MCT/CNPq, processos 401466/2010-8 e 309126/2011-8 e Fapesp processo 2012/02919-9. As opinies, hipteses e concluses ou recomendaes expressas neste material so deresponsabilidade da autora e no necessariamente refletem a viso do CNPq e da Fapesp.

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    promoo da vertigem do corpo e para a exacerbao das emoes. Osfrequentadores, em nmero progressivo de pessoas, ficam sedentos por ex-perimentar no apenas fortes sensaes quando no viciados em manter-se em contnua euforia , mas tambm ansiosos para que as atraes sejamrenovadas e mais radicais, culminando em lhes propiciar um estado, fisiol-gico e psquico, de estar por um triz. Nesse ponto limite, quando a morteaparenta estar demasiado prxima, a atrao precisa cessar e tudo, ento,voltar ao normal. Do local de entretenimento dispersam-se os frequen-tadores, entre nauseados e exaustos, decididos a regressar oportunamente,mas no sem antes experimentar o alvio por terem, novamente, e ainda quepor um breve perodo, os ps bem assentados no cho.

    No por acaso, uma das drogas ilcitas que emergiram nos ltimosanos e cujo mercado esteve associado aos corriqueiros lugares de entrete-nimento da juventude urbana, as raves possibilitando, entre os usurios,as sensaes de rompimento com o tempo cronolgico e social, tornandoa diverso um continuum foi denominada como ecstasy. Ao sabor de umconjunto de msicas fracionadas, decompostas e recompostas pelos DJs,oferecido ao pblico em volume ensurdecedor e em sonoridade hipnti-ca e envolvidos num ambiente de constante euforia, os participantestem garantida a sensao de alucinao.

    Embora nem todos se animem a frequentar os ambientes da raves, usu-almente, os habitantes da cidade so expostos ao dos grandes magazines elojas de grife que vendem, dos mveis s xcaras, os objetos que apelam paraa uma memria social em torno da casinha da vov, mercantilizando-a. Osetor produtivo, associado ao comrcio e aos servios de decorao, percebeno cultivo cultura nostlgica um ambiente de negcios em ascenso. Des-de a, simula cumplicidade com as lembranas de uma trajetria de vida deum dado grupo social, isto , simula deferncia para com a sua histria, a queo grupo aspira evocar com mais frequncia atravs da recuperao de obje-tos no interior da moradia. Entretanto, o esforo de recuperao, que suprea paisagem do lar, se d atravs da aquisio de objetos recm-fabricados,porm, impressos com ares de coisa antiga. O mercado prope um falsea-mento das recordaes, a que o consumidor corresponde, adquirindo taisobjetos e assentando-os ao territrio da vida privada. Supe, ilusoriamente,que essa adeso aos negcios em torno da rplica do passado os quais alu-dem, simbolicamente, quilo mesmo que, no plano concreto, se empenhamem destruir compense o que passou a faltar em consistncia nas volteisinteraes sociais.

    O mercado administra, desse modo, a culpa coletiva pela destruio doselementos de uma sociabilidade atrelada a uma temporalidade no vertigi-nosa e os consumidores, por seu turno, fingem estar tudo novamente no lu-

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    gar, abafando, o quanto possvel, as discusses acerca do nus coletivo pe-los descartes fceis: eis uma frmula pretensamente conciliatria entre osrequerimentos de vertigem e de estar com os ps assentados no cho.

    A tendncia para seguirmos em frente nessas falsificaes e rumo alugar nenhum o que as inmeras e simultneas solicitaes cotidianas que,presencial e virtualmente, recebemos se encarregam de fomentar escasseiaa possibilidade, por assim dizer, de uma digesto mais densa da experin-cia social contempornea. E, ao seguir em frente, acentuamos as possibili-dades de sofrer maior influncia dos repertrios culturais alienantes, queganham maior peso porque coadunados com um mundo social cuja fisio-nomia muda rapidamente. Ento, mais facilmente nos desencorajamos datarefa de subverter o ritmo clere do mundo, de desafiar os repertriosvalorativos rasos, de resistir aos objetos inautnticos na sua referncia aossujeitos, aos lugares e memria social.

    Conforme analisou Ribeiro (2008), os jogos de vertigem (ilinx) suscitamuma espcie de transe bem como algumas perturbaes, que podem ser denatureza orgnica, mental ou emocional. O referido autor, reportando aoestudo de Caillois (1958), salienta que a contemporaneidade tornou-se olocus no qual essa categoria de jogo se manifesta na plenitude atravs dabusca pela alta velocidade, na perda de equilbrio e na constante necessi-dade de xtase. A linguagem tambm um jogo, do qual as palavras parti-cipam, podendo ser essas ajustadas numa gramtica particular da vertigem.Mas no s as palavras esto presentes na gramtica da vertigem: h demaissignos que provm elementos para uma simulao constante da vida soci-al, nos levando ao limite da reversibilidade. Ou, retornando a Ribeiro (2008,p. 111), na superabundncia de signos e interpretaes fornecidos pela mdia dotempo real que reside a crescente indeterminao e incerteza quanto aopresente e ao futuro. Em referncia obra de Baudrillard, continua:

    (...) nossa produo moderna, nossa superproduo e superabundn-cia de informao corresponde a um jogo de vertigem em que a deter-minao perde seu lugar para uma indeterminao generalizada, aomesmo tempo em que o que se afirma uma maior aproximao doreal, em tempo real. A representao no mais da ordem da re-apre-sentao do que o signo deveria significar, mas antes um jogo em queno h nenhuma relao entre o signo e a realidade: os signos so purasimulao, simulacra (...) Em contrapartida, apesar da perda do refe-rente na linguagem, a busca da alta definio do real faz com que osmodelos se apresentem mais reais do que o real, eles se tornam ento,na terminologia de Baudrillard, hiperreais (RIBEIRO, 2008, p.111).

    A cidade tem se encarregado de expandir o ambiente dos jogos de ver-tigem para as vrias dimenses da vida cotidiana, na qual tudo se torna

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    fugaz, dos objetos que mediam as relaes sociais s prprias relaes so-ciais escoradas por tais objetos. E, ento, a tecnologia disponibilizada smassas desdobra a paisagem em outras geografias e multiplicam-se, virtu-almente, as relaes socioespaciais orientadas para a valorizao da hiperrea-lidade. A dependncia que se passa a ter desses aparatos maquinais asconvence da consistncia desses territrios transcendentes, das personagensali encenadas e dos novos processos identitrios, que por vezes ameaam epor outras efetivamente desarrumam e invalidam as regras estabelecidas navida social tida, ainda, como um plano concreto.

    Todavia, quando no repertrio sociocultural correspondente ideia deplenitude na realizao humana se torna assaz comprometido com o con-junto de sucessivas sensaes fortes, provocadas pelo entremear (e entre-choque) desses diferentes tipos de realidade, a viso aterrorizante de estarpor um triz se torna epidmica. Essa viso, que continuamente interpelaos envolvidos, os leva beira do abismo e ali insinua ambiguamente que, aocabo do pulo s cegas, o mundo os aguarda tal como sempre foi. Isto ,insinua que, aos exageros e incertezas, da coletnea de momentos de estressee vibrao, corresponderia a concretizao de um anseio provavelmente maisenraizado, voltado para a continuidade de espaos onde se desenrolaria umasociabilidade calcada em confiana, constncia e em certezas, provendo arestaurao necessria dos exaustos e nauseados, permitindo trazer, nova-mente, os seus ps bem assentados no cho. Mas essa insinuao , no geral,falsa e a hiperrealidade volta a apelar ainda quando a extenuao visvel,provocando um sentimento de desfiliao socioespacial no plano concretopara dar margem a outros enredamentos alienantes.

    Castells (2011) destaca a importncia dos estudos que consideramo sistema de vizinhana (neighbouring) e a unidade ecolgica particular (obairro, a unidade de vizinhana), os quais explicam os processos de produ-o de um sentimento de filiao de uma coletividade e, por conseguinte,os critrios de diviso do espao em relao aos dessemelhantes. Mas o autorafirma, centralmente, que (...) o espao, como produto social, sempre especifi-cado por uma relao definida entre as diferentes instncias de uma estrutura social:a econmica, a poltica, a ideolgica e a conjuntura de relaes sociais que dela resul-ta (p. 539). Assim, o espao se torna, hodiernamente e segundo o autor,submetido precipuamente lgica do capitalismo avanado. Nela, subjaztanto um Estado servil, reduzido a funes de gesto, quanto os conflitoscontnuos, referidos s distintas capacidades de sobrevivncia e reprodu-o social. Isto , o carter classista na concentrao dos meios de produ-o e nas possibilidades de consumo permanece como o fundamento dacidade. Visto deste modo, os jogos de vertigem deflagrados desde as rela-es sociais intensificadas nesse territrio so parte constitutiva da acele-

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    rao do mundo que favorece a acumulao capitalista, posto que sejamjogos deflagradores de um contnuo desassossego no plano concreto do meiosocial. Exigem uma demarcao classista expansionista sobre todos os de-mais territrios do planeta e seus recursos naturais , avanando semd, presencial e virtualmente, sobre os sujeitos e as temporalidades soci-ais que nutrem lugares, pblicos e privados, que se reconhecem no vagar,na durabilidade e nas permanncias. A acumulao submete tais sujeitos,subtrai tais valores e perverte o seu contedo.

    No Brasil, as cidades tomam a precedncia como referncia socioes-pacial para a vida coletiva. Desde o nascimento, anseiam pela intensifica-o dos contatos e pela velocidade; mas, medida que crescem mais ntidose v como as mesmas so nutridas pelos jogos de vertigem e sucumbem sprticas econmicas expansionistas, que solapam quaisquer outros proces-sos de territorializao que no lhes seja funcional. As possibilidades do pen-samento crtico se esvanecem em meio velocidade que a tecnologia imprimeao cotidiano daqueles que produzem, ativa ou passivamente, o contedo desseterritrio hegemnico; os fragmentos da aspirao pela calma logo se perdemna correria entre o presencial e o virtual; os elos que ensejam uma repactuaoem torno da paisagem abrem-se por fora do maquinal, que exige atenoredobrada para oferecer o xtase, e as peas, descoordenadas e zonzas, arre-metem contra o nada. O sentido trgico subjacente ao jogo de vertigem, doqual o mundo urbano participa como contexto principal, est tanto no cui-dadoso cerceamento das possibilidades de realizao de devires socioespaciaisalternativos do que o alastramento do ambiente de negcios se encarregaao imprimir a sua racionalidade para todos os cantos da vida social quantonos resultados infelizes provenientes da fecundao alucinada do projetoeconmico expansionista por sobre o terreno social alienado, resultados essesdos quais se destacam os desastres.

    sobre o solo da alucinao urbana, mas alastrado para os demaisterritrios, que os desastres criam razes, se robustecem e multiplicam.Suas sementes, fortalecidas pelo incremento da indiferena social, anun-ciam catstrofes. Por ngulos diversos daqueles que as fbricas de pensa-mentos acrticos usualmente disseminam, possvel situar os desastres nojogo de vertigem contemporneo, tomando corpo em distintos pontos doprocesso socioespacial doentio em que estamos enredados.

    O CONCEITO DE DESASTRE COMO UM CAMPO DE DISPUTA CIENTFICANa disputa cientfica em torno do conceito de desastre, tem prevale-

    cido a voz dos que o tomam na conta de eventos pontuais. Nessa pers-pectiva, os desastres so tidos como um tipo de crise aguda, caracterizadacomo uma situao emergencial na qual, numa circunscrio geogrfica

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    reduzida vista como cenrio os elementos materiais e as pessoas socompreendidos como estando por um triz. O cmputo e a descrio doselementos que so representados, no cenrio, como subitamente danifi-cados e/ou destrudos delimitam a paisagem e o conjunto de afetados e, aofaz-lo, esboam os procedimentos que definem a situao como adminis-trvel pelas prticas tcnicas as quais so municiadas, principalmente, pe-las cincias duras e da sade. Os fatores de ameaa relacionados ao eventopontual se tornam, nessa abordagem, plenamente objetivados e monitorveispor uma aparelhagem tecnolgica, que gradualmente mais sofisticada. Osdanos humanos e materiais, por seu turno, passam a aparentar igual possi-bilidade de mensurao e, assim, tanto reparveis pela interveno tcnicaquanto compensveis, eventualmente, pelo mercado.

    No contexto sociopoltico que privilegia essa abordagem atravs,sobretudo, do escamoteamento de outras possibilidades interpretativas ,os desastres no se apresentam como algo inusitado, tampouco ingovernvel,mas como uma desorganizao repentina dos elementos socioambientaisque compem um espao restrito. Em ltima instncia, no mbito dessaviso, as causas principais so os gaps de planejamento dos atores locais,passando a exigir uma reorganizao territorial em outros moldes o que,muitas vezes, no obedece estrutura de sentidos do grupo afetado. Daprevalesce a ideia de gesto urbana, ambiental, de riscos e afins que,municiada por sentidos de mundo produzidos desde fora da cena, justifi-ca a ampliao do aparato tecnolgico para monitorar fatores queporventura tornem a ameaar esse territrio e escora as prticas de elimi-nao dos lugares que se tornam disfuncionais aos novos parmetros desegurana. As novas tecnicalidades geram argumentos indecifrveis aohomem comum para expuls-lo de sua territorialidade, quando esta tidacomo fora de padro, ao mesmo tempo em que reduz o conjunto dossujeitos ditos competentes tanto para instruir quanto para atuar no cam-po decisrio. Novos critrios so adotados para reorganizar o rol de gru-pos sociais, de objetos e de aes considerado como pertinente ao territrioa ser conduzido pela boa gesto.

    Ao associar o acesso e domnio de ferramentas sofisticadas de super-computadores a satlites, cuja forma e contedo mudam vertiginosamentee exige continuada concentrao de recursos financeiros para a sua atuali-zao aos meios necessrios, e vistos como suficientes, de gesto, atecnocincia atua sobre a administrao pblica como contraponto ideiade poltica. Esta ltima, em contextos democrticos, e particularmenteparticipativos, pressupe a possibilidade de ter como legtimo, na esferadecisria, a tica dos diversos sujeitos e experincias diante o territrio cole-tivamente produzido e animado pelos mesmos, alm de disposio para

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    pulverizar os recursos econmicos. Mas relevante salientar que a ideia degesto, amplificada pela tecnocincia, tambm um projeto poltico, embo-ra os seus produtores no o reconheam abertamente como tal: trata-se deuma poltica de reduo do campo decisrio sobre a vida de uma coletivi-dade.

    Quanto mais detalhada e tecnicista a definio de desastre se tornar,fechada no vocabulrio de jargo, mais afastada a mesma se faz passar docampo poltico: poucos so aqueles que, ento, se sentem confiantes paraexpressar entendimento sobre a questo. E, suplementarmente, a vertigemda vida vivida retira dos inseguros a preocupao com esse desafio interpre-tativo e, entre acabrunhados e distrados, distanciam-se do debate e entre-gam a deciso aos que se apresentaram como competentes no assunto.

    As oligarquias brasileiras so experts nos jogos com a linguagem, que aideia de gesto favorece amplamente, e o tomam como referncia para a ma-nuteno do seu controle sobre as instituies que, congregadamente, dofeio ao Estado. Do domnio em tais jogos provm o silenciamento recor-rente da crtica da sociedade a uma deliberao potencialmente controver-tida que tais elites tm tomado e, sem sinuosidade, profere: essa deciso foide carter eminentemente tcnico. Ao faz-lo, o Estado se afasta progressiva-mente de seu princpio de ao que, segundo Bobbio (1986, p. 86), e deacordo com a vertente hegeliana, deve ser procurado na sua prpria necessida-de de existir, de uma existncia que a prpria condio de existncia (no s da exis-tncia mas tambm da liberdade e do bem-estar) dos indivduos. Por um lado, talafastamento torna o Estado refm da vertigem induzida pela tecnocinciaembora, num nvel acima, esteja sob a gide das foras arcaicas. O tempomoroso dos poucos que se aferroam aos lugares de poder no atropeladopela ideia de gesto nem pelas atualizaes dos sistemas de objetos; ao con-trrio, esse movimento na pelcula das instituies que serve para disse-minar, junto opinio pblica, um ambiente de alguma confiana,fazendo-a supor que as rotinas da mquina burocrtica no esto sob odomnio do interesse particularista.

    Todavia, quando o interesse pblico some de vista, a condio de exis-tncia do Estado parece esvair-se. O aparato burocrtico age para con-trolar essa ameaa, em parte, exercendo um controle cada vez mais fortesobre aqueles que no se veem representados, o que implica numinchamento dos quadros humanos a seu servio e da estrutura maquinal;em outra, o aparato age explicitando seu estranhamento em relao par-cela da nao, o que evolui para episdios de intimidao e afrontamentoqueles que contriburam para lhe dar existncia e exigem o espelhamentode seus anseios no tecido institucional. Enfim, a representao da coisatoma o lugar da prpria coisa; cria uma realidade prpria e hiperpotente.

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    Nele, o aparato instaura, numa autonomia indevida, um ambienteassimtrico e orientado abertamente para os negcios, no h mais escr-pulos em diz-lo e pratic-lo.

    Nesse contexto, no que concerne aos desastres, a discusso sobre tra-gdias do varejo quanto aquelas que tomam a escala planetria passa a serdestrinada pelos mecanismos de mercado. Ilustrativo disso que o gigan-tismo produtivo e a financeirizao da economia esto imbricados um nooutro e ambos nas mudanas climticas globais, cujos desdobramentos cr-ticos sobre a base biofsica e o meio social so progressivamente explicitados.Mas, aos mecanismos de mercado que o meio diplomtico se rende emesmagadora maioria para pensar seus argumentos e a concertao multila-teral que leve ao afastamento de catstrofes na sociedade global. O gigan-tismo produtivo, valorizado politicamente como meio imperioso para areproduo social, demanda grandes somas de investimentos em fontes deenergia igualmente colossais as quais, direta ou indiretamente, viabilizam-se com o aporte de recursos pblicos; os artefatos que da resulta, emborasendo rapidamente dispensveis, dilapidam, exausto, os recursos natu-rais das naes, destroem irreversivelmente importantes ecossistemas na-turais e socializam os graves riscos sade ambiental e humana. Todavia,o ambiente decisrio do Estado, filtrado pela racionalidade sociotcnica, re-duz o leque de argumentos no debate pblico sobre o tema socioambiental.

    No que concerne disseminao dos desastres, fenmeno cultivadopor essa fase do modo de produo prevalente, as esferas decisrias abafamo limitado alcance das prticas de gesto expressas por planos de contin-gncia e equivalentes, sejam esses elaborados e executados pelas equipesdos megaempreendimentos ou por rgos pblicos de emergncia. As in-congruncias, os conflitos e a clere decomposio e recomposio dos ele-mentos observveis no plano concreto do territrio so encetados porinmeras foras que evocam tenses no terreno, mas o ultrapassam; taisforas, em embate, disseminam riscos, muitos dos quais, emborainominados, esto presentes. Quando se explicitam contundentemente ese concretizam como desastres denotando os limites do escopo da gesto caem na gaveta retrica da fatalidade (VALENCIO, 2010; 2012) para, emseguida, serem recapturados pelas prticas tcnicas, de onde furtivamen-te tornaro a escapar, ainda mais fortalecidos.

    Tal como ocorreu com o conceito de desenvolvimento sustentvel,disputado acirradamente at que se lograsse o esvaziamento de seu contedocrtico para faz-lo corresponder, no imaginrio social, s migalhas de pro-vidncias, pblicas e privadas, mitigadoras de danos socioambientais mui-to ostensivos, o conceito de desastre tem sido disputado por foras sociaisdiversas. Aquelas economicamente mais robustas nele depositam e incul-

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    cam definies sujeitas unicamente ao universo da gesto e da tecnocincia,tornando-o eixo orientador das medidas de reforamento do aparato pol-tico-institucional que inibe todas as demais foras sociais. Comea com alegalizao de prticas de higienismo social que visam apagar a marca dosaviltados no territrio. Mas, onde terminar?

    Se o higienismo social encontra crescente validao nas solues tcni-cas e atrela-se expanso do ambiente de negcios, no incoerente supor que aocorrncia de desastres deflagre uma perfomance pblica de cuidado que movi-menta e viabiliza a acumulao. A cada desastre ocorrido, a vocalizao daautoridade pblica em torno de liberao de recursos financeiros desagua,no mais das vezes, em benefcio direto aos grupos mais severamente afeta-dos no evento, mas se faz passar por isso. O montante de dinheiro alocadopara providncias pulveriza-se, some nos meandros burocrticos e, muitominguadamente, gera efeito positivo em torno de quem se fala, isto , dosgrupos que sofreram a decomposio dos elementos essenciais de sua roti-na. Assim, o complemento performance pblica do cuidado o insistente blo-queio de demais foras sociais no ambiente poltico incluindo as que representamos grupos severamente prejudicados nos acontecimentos. Esses grupos sodissuadidos de esperar o reconhecimento pblico de seus dramas e de exer-cer o controle social sobre a materializao de providncias voltadas para arestituio de sua dignidade. O aparato burocrtico espera que a atuaodos mesmos se restrinja a de meros receptores dos parcos suprimentosdisponibilizados no imediato instante em que o mundo ruiu e no muitoalm desse triste dia, que ser evocado insistentemente como um nico dia,para lembrar os prejudicados que aquele episdio virou passado.

    Diante a problemtica supra, e sob um olhar sociolgico, h trs as-pectos essenciais acerca dos desastres que deveriam ser mais frequentementeconsiderados, a saber: (1) o cerne do desastre o meio social, o conjuntocomplexo de sujeitos e foras sociais atuantes; (2) um desastre pode ser des-crito como um acontecimento social trgico e pontual sem que, com isso,seja preciso sonegar sua definio como um tipo de crise crnica na esferasocial, ou seja, possvel convergir analiticamente situao e processo; por fim,(3) devido s caractersticas transescalares dos sujeitos e das relaes soci-ais envolvidas, os desastres podem mesclar situaes rotineiras e no-roti-neiras. Passemos a cada um desses aspectos na tentativa de enfeix-los sobuma vertente crtica.

    DESASTRES NO GERAM EFEITOS SOCIAIS

    Por definio, desastres so fenmenos que dizem respeito, central-mente, ao complexo mundo social. extensa a literatura cientfica inter-nacional que o reporta e enfatiza, num esforo contnuo para expandir o

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    contedo das dimenses sociopolticas, socioculturais, psicossociais esocioeconmicas implicadas e, por que no dizer, tentar reparar o estragoque as interpretaes tecnicistas dominantes fazem sistematicamente naalimentao do imaginrio social, alijando as demais competncias e sa-beres do debate e da atuao poltica.

    Uma gama de estudiosos imprime nfase ao foco analtico crtico emtorno do conceito de desastre e assinalam os importantes desafios de an-lise que esto postos nessa forma de conceber o problema. Nesse esforo,se destacam autores como Quarantelli (1998; 2006), Oliver-Smith (2006),Dombrowsky (1998), Hewitt (1995), Dynes e Drabek (1994) e Kreps(1998), Lindel, Prater e Perry (2007) e outros, preocupados em assinalarque desastres, quaisquer que sejam os fatores de ameaa aos quais estejamatrelados, no envolvem marginalmente as pessoas: trata-se de daquilo queocorre centralmente com elas. Ao ter isso em considerao, a trama dasrelaes em que tais pessoas esto envolvidas, a qualidade de sua interaocom as instituies que adotam providncias frente s suas necessidades edireitos um dos enfoques a se ajustar.

    Quanto mais o aparato pblico adia a valorizao da abordagem dascincias sociais sobre o problema, mais protela a elaborao e conduode polticas pblicas plenamente protetivas ou restaurativas dos que soo centro do desastre, as pessoas e os seus lugares. Uma forma de protelao a hipervalorizao das prticas tcnicas voltadas para as obras civis. E,tambm, da cartografizao de risco na qual no aparece o sentido compar-tilhado de uma comunidade acerca de seu territrio, como um envoltriocomum das suas rotinas. O sistema perito atribui outros sentidos, recor-tes e escalas do territrio e sobre esses constroem outras decises alocativasem torno da vida da referida coletividade. Outras cartografias poderiamser contrapostas pelos que se sentem aviltados, incluindo cartografias deseu mundo interior. Louise van Swaaij e Jean Klare (2004) lanaram talcartografia, na qual, numa escala dita inimaginvel, fez-se uma metfo-ra dos territrios de ilhas, pases, cidades, com suas florestas, rios, monta-nhas, ruas e, nessas terras imaginadas num simbolismo compartilhadouniversalmente introduziu-se a paisagem dos acontecimentos da vida eda experincia emocional diante os mesmos.

    Os sujeitos bem constitudos nas arenas deliberativas no ignoramque a natureza dos desastres seja eminentemente social; ou seja, estocientes de que os desastres no geram efeitos sociais. Mas, trat-los comotal significa antagonizar o projeto de poder que lhes tm servido prospe-ramente e seria, por assim dizer, uma irracionalidade contradizer os pr-prios interesses corporativistas.

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    De um lado, o approach redutivista no core institucional funde a do-minao oligrquica ao fetiche tecnolgico hiperespecializado; de outro,inculca no imaginrio social uma preocupante cultura de segurana, fa-zendo crer que a aliana supramencionada oferea ao restante da naoa iluso de manter os ps bem assentados no cho, isto , a sensao deque os riscos que espreitam possam ser vigiados, controlados e dissipadospor rgos de monitoramento bem atentos, de tal forma que as rotinas davida coletiva poderiam seguir normalmente o seu curso. Essa barganhatcita, alm de corrosiva vida democrtica do pas, falsa, pois, confor-me dissemos, a contemporaneidade imprime uma frentica recomposiosocioespacial altamente dependente de mercadorias que desencadeiamcircunstncias coletivas de riscos mltiplos os quais, quando concretiza-dos em desastres, rebatem ainda mais penosamente na vida dos gruposque ficaram margem da fruio dos benefcios dessa hipertecnologizao.

    OS DESASTRES COMO EXPRESSO DE TRS CRISES SIMULTNEAS:DA DESUMANIZAO AO ANSEIO SOCIAL POR TER A POSSE

    Se considerarmos os desastres como sendo uma forma de crise na esfe-ra social, isto , envolvendo tanto a esfera privada quanto a esfera pblica davida de uma dada coletividade, torna-se amplo o leque de possibilidadesinterpretativas e, por conseguinte, a gama de estudos disponveis, que co-brem desde o plano da intersubjetividade ao plano poltico-institucional.O debate, em suas inmeras vertentes, revela um aspecto transescalar nes-se tipo de crise que, ento, pode ser vista, simultaneamente, como uma cri-se aguda, no mbito de uma localidade; uma crise crnica, concernente a umenfoque histrico-regional e uma crise civilizatria, no plano global.

    As representaes sociais que privilegiam a definio do desastre comoum tipo de crise aguda o que usualmente se encontra no discurso e naprtica tcnica das instituies pblicas brasileiras, civis e militares, e nasorganizaes da sociedade civil, a comear pelo voluntariado. Esse recor-te socioespacial o que corresponde melhor concepo do territrio comocenrio que aglutina a destruio de um amplo sistema de objetos, pbli-cos e privados, de uso corrente de um dado grupo social alm de, eventu-almente, envolver a perdas de membros do grupo ou ferimentos ou outrostipos de agravos. Os atores externos e as providncias que porventura ve-nham tomar no imediato ps-impacto chamando-as, no seu conjunto,de resposta intervm neste cenrio com considervel possibilidade de vi-sibilidade miditica e repercusso junto aos que se encontram ali, aflitoscom as perdas sofridas: focaliza-se a barraca no acampamento, que serve famlia como abrigo provisrio diante sua moradia destruda; o colcho

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    doado e a refeio fornecida, que suprem circunstancialmente as necessi-dades vitais; os tratores que desobstruem ruas. Tudo corrobora para osucesso da figurao pblica de compromisso com a minimizao da dorcoletiva ali manifestada. Ocorre, assim, de essa performance pblica de cui-dado ser veiculada como exitosa e exigir, ento, que o grupo atendido de-monstre gratido pelas manifestaes de empenho e solidariedade havidos.Esse acordo tcito, a que os grupos afetados nos desastres tm sido siste-maticamente submetidos solapam o empenho dos mesmos buscarem nou-tro espectro de relaes as causas profundas da crise em que se virammergulhados. Muitas vezes, trata-se de crises que, embora paream pon-tuais, se repetem na mesma circunscrio local ou noutra parte.

    Ocultadas as razes da sucesso de crises pontuais, que eclodem aquie acol, com as mesmas caractersticas, essas passam a significar no ape-nas a admissibilidade poltico-institucional a que continuem ocorrendo isto , naturaliza-se que algo de trgico possa acontecer, com certa frequn-cia, a uma parcela da sociedade , mas que os aparatos que so introdu-zidos no cenrio sejam mais do que o suficiente para remediar a situao;ou melhor, sejam a prova do empenho pblico para san-la. Da porque oesforo de crescente explicitao de certo conjunto de informaes taiscomo o nmero de horas de voo de aeronaves em misso de resgate, onmero de cestas bsicas enviadas s famlias desabrigadas, o nmero dehoras que as mquinas retiraram os escombros, a quantidade de dinheirotransferido aos cofres pblicos da localidade afetada, dentre outras sejafeito com uma tripla inteno: a primeira, a de sobrevalorizar as institui-es que, segundo os seus prprios parmetros, tiveram uma ao decisivapara recompor as rotinas do lugar, o que tem desdobramentos oramentrioseventualmente positivos para as mesmas; a segunda, a de ocultar tanto osprocessos mais abrangentes de vulnerabilizao dos grupos que sofreramo desvalimento derradeiro, quanto para invisibilizar s prticas intracomu-nitrias de apoio mtuo na mitigao dos danos e prejuzos; a terceira, ade refutar precocemente a possibilidade de que o grupo afetado se enten-da como desamparado e, ao invs disso, tenha a memria do episdio vin-culado aos seus redentores, que passam a ser enaltecidos.

    Quarantelli (1998; 2006) j apontava que o entremear das explica-es do desastre como crise aguda e como crise crnica suscita uma possibi-lidade analtica que no deve ser desconsiderada. O debruar investigativosobre variadas crises agudas pode fornecer elementos indispensveis paraconfigurar a multidimensionalidade dos danos havidos com determinadosgrupos sociais. Mas pode, tambm, mostrar o quo semelhante a natu-reza dos danos sociais, materiais e simblicos, muitos dos quais relaciona-dos inoperncia e improvisao das prticas dos rgos de emergncia e

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    s particularidades das representaes sobre o acontecimento trgico que.No exame do tempo longo, observando uma sequncia de crises pontuais,a regularidade aparece, isto , os padres observveis no processo socialque alimenta a crise crnica. Os vieses de classe e tnico-raciais subjacentesaos grupos sociais sistematicamente prejudicados so ilustraes de regu-laridades que o estudo de crises similares permite enxergar.

    A interface analtica que propicia compreender os desastres, simulta-neamente, como crise aguda e crise crnica na esfera social apresenta vanta-gens e desvantagens interpretativas. Entre as vantagens, est a de poderfazer convergir aspectos da situao em si com a do processo no qual esta situa-o produzida, ou seja, capturar as particularidades do momento mais cr-tico sem desconsider-lo como parte de uma tessitura socioespacial dinmicamais abrangente.

    Todavia, quando adentramos no tempo social que remete aos desastrescomo expresso da crise civilizatria, tudo o mais, que acima destacamos,se nos parece como fagulhas de um imenso fogaru. Em termos civilizatrios,no apenas o contexto scio-histrico de uma nao especfica o que conta,mas a sua adeso, dominante ou subordinada, ao modo de produo capita-lista, que desenha os atores e a racionalidade que usurpam e cerceiam, con-tinuamente, as possibilidades de um projeto genuno de bem-estar socialno nvel global. Reduzidos ao universo da produo e consumo de mqui-nas, equipamentos e quinquilharias, premidos pela velocidade que tais ar-tefatos impem ao ritmo da vida e pelos quais passamos a mensurar a nossacondio humana, esquecemo-nos de observar o quo grande a chamaque arde.

    Numa passagem de um dos contos de Primo Levi, a personagem dizsabiamente: (...) as mquinas so importantes, no podemos prescindir delas, osaparelhos condicionam o nosso mundo, mas nem sempre so a melhor soluo paraos nossos problemas (trecho do conto Pleno emprego) (LEVI, 2005, p. 128).Adiante, em outro conto, Levi nos brinda com uma imagem futurista quefaz aluso aos medos cultivados no cotidiano das massas pela associaodo mercado e do Estado. Apresenta a rotina de uma famlia que, como asdemais daquela sociedade, se via compelida a adotar, como vesturio, ar-maduras desconfortveis produzidas por uma empresa gigante outrorado ramo automobilstico posto que a autoridade governamental assim oexigisse como medida de proteo contra as anunciadas chuvas de micro-meteoritos, perigo tido como tangvel para os habitantes da Terra, emborararamente visto. Bombardeados continuamente pela publicidade (com-prem apenas o aperitivo Alfa, somente os sorvetes Beta (..) o lustrador Gama paratodos os metais) (p.177), pouco espao havia para questionar os casos de

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    morte pelo cu. s tantas, Marta pergunta Elena porque esta se sentiato protegida com a couraa metlica a ponto de no apreciar despir-seda engenhoca. E Elena responde:

    [me sinto protegida] contra tudo. Contra os homens, o vento, o sol,a chuva. Contra o smog e o ar contaminado e os dejetos radioativos.Contra o destino e contra todas as coisas que no se veem nem sepreveem. Contra os maus pensamentos e contra as doenas e contrao futuro e contra mim mesma. Se no tivessem feito aquela lei [im-pondo o uso da armadura], creio que ainda assim eu teria compradouma couraa (trecho do conto Proteo) (LEVI, 2005, p. 180-1).

    O projeto totalizante, da mquina produtiva indstria da comu-nicao, incide no apenas no fortalecimento dos desdobramentos extra-territoriais de nossa sociabilidade corriqueira, num ritmo por vezesincompatvel com a capacidade de pensar criticamente sobre um mundoaparentemente movedio, mas tambm sobre a reduo da complexidadedas narrativas sobre esse mundo, o que enseja a cultura do medo,subjacente aos jogos com linguagem.

    Na simplificao das narrativas, cabe apenas o consumo irrefreado demercadorias as quais associam sentidos irreais de segurana, o que inerenteao biopoder. Conforme enfatizam Hardt e Negri (2001, p.52), A linguagem, medida que comunica, produz mercadorias, mas, alm disso, cria subjetividades, pe umasem relao s outras, e ordena-as. As indstrias de comunicaes integram o imaginrioe o simblico dentro do tecido biopoltico, no simplesmente colocando-os a servio do po-der mas integrando-os, de fato, em seu prprio funcionamento. Ao refletir acercada dos benefcios que o capital, tido como o poder imperial contemporneo,congrega num tipo frequente de desastre contemporneo, as guerras, os au-tores identificam uma articulao entre a interveno moral das ONGs e ainterveno militar para fazer o territrio e os atores locais a sucumbirem aoordenamento global. Tal aliana propicia, pela destruio e pelos esforos dereconstruo em bases mais modernas, a instaurao de uma nova ordem nosespaos ainda arredios ao biopoder:

    As ONGs humanitrias so de fato (ainda que isso v de encontros intenes dos participantes) as mais poderosas armas de paz danova ordem mundial (...) movem guerras justas sem armas, semviolncia, sem fronteiras (...) esses grupos lutam para identificar ne-cessidades universais e defender direitos humanos. Por meio de sualinguagem e de sua ao, eles primeiro definem o inimigo como pri-vao (na esperana de impedir graves perdas) e depois reconhecemo inimigo como pecado (...) Dentro desse contexto lgico, no es-

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    tranho, mas muito natural, que em sua tentativa de reagir priva-o essas ONGs sejam levadas a denunciar publicamente os peca-dores (ou melhor, o Inimigo, em termos adequadamenteinquisitoriais); nem estranho que eles releguem ala secular atarefa de enfrentar, de fato, os problemas (...) [a interveno mo-ral que essa prtica expressa] serve como primeiro ato que prepa-ra o palco para a interveno militar. Em tais casos, a ao militar apresentada como ao de polcia sancionada internacionalmente(HARDT e NEGRI, 2001, p. 54-5).

    Para se contrapor referida ordem, continuam os autores, seria preci-so que a multido se orientasse para a busca de uma cidadania global, pro-pondo novas temporalidades as quais dissociassem a produo econmicado centro da vida social. Enfim, que a existncia coletiva e cooperativa fos-se desejosa de um tipo de liberdade em torno da vida representada porter a posse que suplantasse a hidribizao de humano e mquina, sereapropriando da mente e do corpo:

    Nesse contexto reapropriao significa ter livre acesso a, e controlede, conhecimento, informao, comunicao e afetos porque es-ses so alguns dos meios primrios de produo biopoltica (...) Onome que queremos usar para nos referirmos multido em suaautonomia poltica e atividade produtiva o termo latino posse poder (...) posse a mquina que costura conhecimento e ser numprocesso expansivo, constitutivo (...) Posse o que o corpo e o quea mente podem fazer (HARDT e NEGRI, 2001, p. 430-1).

    Trata-se, assim, de um projeto poltico na contramo da vertigem.

    SERIA O EVENTO NO ROTINEIRO UMA CARACTERSTICA INDISPEN-SVEL NA DEFINIO DE DESASTRE?

    Muito amide, o conceito de desastre incorpora, em sua definio, acaracterstica de evento no rotineiro. Mas isso pode ser dispensvel, em-bora que esse descarte merea ser problematizado. Afinal, acontecimentosadversos que ocorram rotineiramente num dado meio social podem serchamados de desastre?

    A escala local aquela em que muitos dos desastrlogos se detmpara enfatizar a caracterstica do evento no apenas como crise aguda,mas como algo no rotineiro e sbito na vida de uma dada comunidade.Tais atributos se tornam quase como essenciais para estabelecer o que podeser considerado como desastre ou no. Contudo, conforme j tratamos em

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    estudos recentes, h coletividades que vivenciam essas crises de maneira,por assim dizer, rotineira. Isto , embora o cotidiano esteja se desenrolandode modo a parecer ultrapassar as ameaas de contnua apario, essas, vol-ta e meia, manifestam-se e assombram. Porm, as indagaes do tipo porque isso sempre acontece nesse lugar?, no geral, no podem ser respondidas noslimites da cena objetivada.

    A constncia da m qualidade das providncias pblicas que visem reduo do sofrimento dos grupos sociais que passam inmeras vezespelos mesmos percalos algo crnico. H que enfatizar, de um lado, quea pobreza um tipo de crise na esfera social que se naturaliza em certoscontextos sociopolticos e socioespaciais. De outro, ponderar que certasameaas srias podem desfigurar elementos vitais da territorializao deum dado grupo social e, especialmente, recrudescer a penria dos empo-brecidos. Isso , h que se ter em conta a ocorrncia de crises intensasdentro de crises naturalizadas e que ambas no podem ser ultrapassadasapenas pelo clamor dos que saem prejudicados.

    Ao se evocar a noo de acontecimento rotineiro, muitas vezes o cen-tro do que est sendo observado fica obscuro, alm do que a ideia de roti-na, aplicada a um desastre, parece comportar facilmente a de que os danoshavidos so suportveis para o grupo afetado. Uma comunidade pode, even-tualmente, relatar que a lama que invade as vias de trfego e as moradiasdo seu bairro seja uma rotina na estao chuvosa; mas isso no significa queos transtornos suportados por ela sejam, de fato, suportveis: uma crescentedanificao material e emocional pode dilapidar a capacidade de enfren-tar esse evento a cada vez que o mesmo ocorre e, ademais, acontecimen-tos insuportveis so impressos na rotina dos que no dispem de recursode voz, isto , de efetiva expresso poltica. Da mesma forma, embora naestao chuvosa haja uma expectativa do meio social de que realmentechova, uma precipitao pluviomtrica sbita e volumosa num dia espe-cfico daquela temporada pode colocar a perder, inesperadamente, maisdo que o esperado com o lamaal corriqueiro. O mesmo se pode dizer emrelao rotina de comunidades empobrecidas que convivem com a faltade acesso aos servios de abastecimento hdrico, quando as secas lhes usur-pam as frgeis estratgias de armazenamento hdrico e se veem na neces-sidade de percorrer grandes distncias para acessar mananciais cujas guas,rasas, apresentam qualidade duvidosa para o consumo humano. Nos ca-sos em tela, onde, ento, comearia o desastre? E como dissociar a criseaguda da crnica?

    Nos recortes socioespaciais e temporais mais abrangentes, a sequnciade crises agudas com teor semelhante em relao ao fator de ameaa e aoperfil dos grupos sociais prejudicados torna ainda mais identificvel a

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    crise crnica, podendo permitir a identificao de padres dos quais ape-nas se suspeita no estudo de caso. nesses recortes mais amplos que seobserva a ntida semelhana entre as pessoas severamente prejudicadasno que representado como tragdia na sua vida cotidiana. As polticasde emergncia seguem esquecidas de suscitar uma transformao profun-da do tecido social e invisibilizam o desamparo, agudo e crnico, atravsde estatsticas de atendimento, como se essas tivessem a suficincia em daro panorama da superao da penria. Nas estatsticas de atendimento nocabem os rastros da dignidade humana, que se esvai, inconsolavelmente,embrenhada nos lugares desfeitos e nos corpos decompostos e ao desabrigoda conscincia pblica.

    A rotina das tragdias contemporneas denominadas desastres estnotadamente atrelada, no imaginrio social, a fatores de ameaa tidos comoexternos ao meio social. Das mudanas climticas s guerras, dilacera-seo alvorecer do sculo XXI e, de modo desalentador, Bobbio (2009) pon-derou que, embora muitos sejam os saberes que apontam a situao-limi-te que poderia nos levar a catstrofes de dimenses planetrias(referindo-se especialmente quela relacionada ao uso de armas nuclea-res), os governos que demonstram uma potncia sobre-humana no sodetidos e escarnecem das Naes Unidas.

    A propsito propsito de uma anlise antropolgica acerca de um casode um ataque contra civis, na ndia, gerando mortos e desaparecidos, efrente aos esforos espontneos dos cidados locais para organizar e su-prir os campos onde os grupos-alvo se sentiam menos vulnerveis, VeenaDas (1985) mostrou a passividade com que as foras policiais assistiam atudo, numa clara conivncia com a violncia imperante, que tinha con-tornos estamentais. A autora conta que, ao dirigir-se localidade onde seencontravam as vtimas, mais do que comida embora estivessem comofome essas queriam ser escutadas para legitimar a sua verso acerca doque havia ocorrido e quem eram os que lhes infligiam a experincia de vi-olncia. To the victims, the horror of the violence consisted in the details. Theywanted their suffering to become known as if the reality of it could only be reclaimedafter it had become part of a public discourse, lembra Das (p. 5). Se essa escu-ta fosse feita no apenas em contexto de guerra, mas tambm no de de-sastres estabelecendo melhores conexes entre evento e representao,novos elementos poderiam incrementar o repertrio interpretativo com oqual os membros do grupo prejudicado se identificariam e, desde modo,no se veriam to propcios a internalizar a culpa (de sobrevivente) pelodesaparecimento de seus entes queridos, e cessando a contnua despoli-tizao do contexto da tragdia coletiva. Tambm Oliver-Smith (1994)ponderou que, longe de se tratar apenas de uma mera reconstruo fsica,

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    os grupos afetados nas catstrofes precisam participar das solues e situ-las no mbito de sua prpria cultura, a fim de que no se sintam desmo-ralizados com a imposio de concepes e donativos que os desabilita comoatores polticos.

    Assim, no parece ser no interior da lgica maquinal, que ativa as ca-tstrofes, que encontraremos meios de evit-las; mas, quem sabe, refun-dando, o quanto antes, a concepo de sociedade, atravs de uma febril einesperada atividade criadora, subvertendo os jogos com linguagem, tendoposse sobre o pensamento e a palavra e, ento, ampliando a possibilidadede resistncia do humano.

    PARA CONCLUIR

    Sendo os desastres simultaneamente situao e processo, sua descri-o e anlise mais pertinente no diz respeito aos objetos no territrio, mass relaes sociais em si, cujo produto , apenas em certa medida, espaci-almente visvel.

    Ao focalizar estritamente os objetos danificados ou destrudos no ter-ritrio, descolando-os dos sentidos que a coletividade que os organizou lhesatribui bem como descolando-os dos anseios comunitrios relativos suarecuperao, a ideia de gesto de que se imbui o ente pblico se anunciacomo uma forma de violncia contra o meio social local.

    Embora impalpveis, as regularidades presentes no contedo dasinteraes sociais dos grupos envolvidos; a lgica regente de seus discur-sos e prticas; os conflitos, explcitos ou velados, entre os que agem na cenae para alm dela, configurando um campo poltico; o repertrio simblicoque os afetados acessam para explicar os acontecimentos; por fim, a pai-sagem interior referida ao seu estado emocional, individual ou coletivo, soalguns dos elementos indispensveis para a adoo de um approach anal-tico mais qualificado para compreender os desastres as foras sociais queo deflagram.

    O desastre de contnua repetio, embora ateste um vergonhoso fra-casso social, se incorpora plenamente lgica burocrtica dos pases ondevicejam a desigualdade social e estrutural, como o Brasil. uma expres-so social caracterstica de uma deformao na conectividade entre os querepresentam institucionalmente o povo e este em si. Afirma-se, como di-ria Foucault (1998), como jogos de poder que ora ocultam, ora explicitamas mazelas das tragdias, sem nunca solucion-las, para manifestar umaverdade sobre o caso. Mas, aproxima-se, desventuradamente, da fico,como a que nos oferece o moambicano Mia Couto, na obra O ltimo voo

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    do flamingo, onde os episdios dos explodidos se sucedem. L pelas tantas,a carta de Estvo Jonas, administrador da localidade de Tizangara,dirigida a Massimo Rizi, o enviado das Naes Unidas, d conta do quese passa:

    (...) Era o que acontecia se havia as visitas de categoria, estruturas eestrangeiros. Tnhamos orientaes superiores: no podamos mostrara Nao a mendigar, o Pas com as costelas todas de fora. Na vsperade cada visita, ns todos, administradores, recebamos a urgncia: erapreciso esconder os habitantes, varrer toda aquela pobreza.

    Porm, com os donativos da comunidade internacional, as coisas ti-nham mudado. Agora, a situao era muito contrria. Era precisomostrar a populao com a sua fome, com suas doenas conta-minosas. Lembro bem as suas palavras Excelncia: a nossa misriaest render bem. Para viver num pas de pedintes, preciso arrega-ar as feridas, colocar mostra os ossos salientes dos meninos. Fo-ram essas palavras do seu discurso, at apontei no meu cadernomanual. Essa a actual palavra de ordem: juntar os destroos, faci-litar a viso do desastre.

    Para que no caiamos em total desesperana, entre as ocultaes eexplicitaes daquilo que jamais chegar a ser a verdade dos que sofrem,convm trazer a oportuna reflexo filosfica de Vasconcellos (2008) volta-da para o tema do acaso, do risco e do perigo. Segundo o autor, o perigo ocaminho que pode ou no ser tomado ao passo que o risco o prprio caminhoque se coloca frente daquele que caminha. Discrimin-los, em sua matriz, res-pectivamente, lgica e ontolgica, assaz oportuno para que cultivemosdisposio para desvelar a obscuridade do real; mas, o que nos habilita aultrapassar tal obscuridade, para alm da vertigem alienante, no te-mer o impensvel e as incertezas, nos encorajando a seguir pelas veredasda criao: Criar lanar-se maior das vertigens (...) Criar a vertigem radi-cal, a vertigem do pensamento (VASCONCELLOS, 2008, s/p).

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  • 22

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    CAPTULO II

    MUDANAS CLIMTICAS E DINMICADEMOGRFICA: RELAES E RISCOS

    Roberto Luiz do Carmo

    INTRODUOO incio do Sculo XXI tem sido marcado pela discusso a respeito

    das mudanas climticas, suas origens e suas implicaes sobre a humani-dade e sobre o ambiente. Ainda persistem questionamentos e incertezasnessa discusso, conforme apontam De Freitas (2002), Kininmonth (2004)e Green e Armstrong (2007), dentre outros. E, tambm, surgem questio-namentos sobre o que fazer frente configurao dessa nova situao.1

    O relatrio do Painel Intergovernamental de Mudanas Climticas,IPCC (2007), que analisou as melhores bases de informao climticadisponveis em nvel global, empregando as metodologias computacionaisde modelagem, diminuiu significativamente as incertezas nos dois senti-dos. Por um lado, afirmando que as mudanas climticas realmente estose processando, com uma elevao da temperatura que pode chegar a 5Cat o final do sculo XXI. Por outro lado, o relatrio concluiu que as mu-danas climticas esto associadas s emisses de gases-estufa decorren-tes de atividades humanas.

    Nesse contexto, as mudanas climticas tero impactos significativosnas condies de vida da humanidade, principalmente para os grupossociais que no dispuserem de meios para enfrentar ou para se adaptaraos efeitos negativos das mudanas. De maneira geral, pode-se dizer queos grupos potencialmente mais suscetveis aos efeitos negativos das mu-danas climticas so aqueles que j se encontram em situao precria

    Uma verso deste trabalho foi apresentada no XVI Encontro Nacional de EstudosPopulacionais, ABEP, realizado em Caxambu, MG, Brasil, de 29 de setembro a 03 deoutubro de 2008.1. Nessa linha, Carter(2007: 61) afirma que: Attempting instead to stop climate change

    by reducing human carbon dioxide emissions is a costly exercise of utter futility.Rational climate policies must be based on adaptation to dangerous change as andwhen it occurs, and irrespective of its sign or causation.

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    em termos de acesso a servios de saneamento e de condies de habita-o. Estes grupos j esto expostos a riscos que podero ser amplificadospelas decorrncias da mudana climtica.

    Tendo em vista estes aspectos, este trabalho apresenta algumas dasprincipais conexes entre as mudanas climticas, e as decorrentes mu-danas ambientais globais, e os componentes da dinmica demogrfica.Entende-se que no caso das mudanas climticas se efetivarem, na veloci-dade que est sendo prevista, vo afetar de maneira significativa o ambi-ente do planeta e, conseqentemente, todas as suas formas de vida,desencadeando as mudanas ambientais em nvel global. Da a expressomudanas ambientais globais, que expande a perspectiva de anlise emrelao aos impactos previstos em funo das mudanas climticas.

    O objetivo do texto realizar uma abordagem sintetizada da interaoentre os componentes da dinmica demogrfica (fecundidade, mortalidadee migrao) e as mudanas ambientais globais. Salienta-se que ONeill etal. (2001) realizaram uma descrio pormenorizada dos processos queesto envolvidos nessa relao. Hogan (2001) analisou aspectos da din-mica demogrfica e suas relaes com as mudanas ambientais globais,trabalhando principalmente a redistribuio espacial da populao. Pro-cura-se neste texto destacar a relao tambm com os outros componen-tes da dinmica demogrfica.

    A seguir so discutidos cada um dos componentes da dinmica demo-grfica e suas relaes com as mudanas ambientais globais.

    CRESCIMENTO POPULACIONAL: QUEDA DAFECUNDIDADE E TRANSIO DEMOGRFICA

    De maneira muito simplificada, pode-se dizer que a variao brutado nmero de indivduos de um determinado grupo populacional, queocupa um determinado espao, ocorre a partir dos acrscimos decorren-tes dos nascimentos e da chegada de indivduos de outras reas (imigra-o), enquanto a diminuio ocorre em funo dos bitos e da emigrao.

    A imagem global do crescimento populacional expressivo em termosnumricos marcante, por isso vale tecer algumas consideraes. A popu-lao mundial passou de 1,2 billho de pessoas em 1850, para 1,6 bilhode pessoas em 1950, segundo Livi-Bacci (1990), sendo que em 2010 apopulao mundial estimada da ordem de 6,9 bilhes de pessoas.2 To-davia, quando se considera situaes especficas, como a dos pases euro-

    2. Population Division of the Department of Economic and Social Affairs of the UnitedNations Secretariat (2010).

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    peus, observa-se uma tendncia de taxas de crescimento muito prximasa zero, apontando para a possibilidade de decrscimo populacional nasprximas dcadas. O Japo j vivencia essa situao de taxas negativas decrescimento populacional, conforme apresentado por Komine eKabe(2009). Por outro lado, em alguns pases da frica e da sia as taxasde crescimento ainda so elevadas.

    Essa diferena entre o crescimento populacional de pases ricos epases pobres tem servido para reavivar a discusso malthusiana, centradana discusso da presso do volume populacional sobre a disponibilidade derecursos, conforme apresenta Szmrecsnyi (1982). A proposta malthusiana,ou neomalthusiana, destaca a necessidade de controle do crescimento dapopulao, com a finalidade de evitar os impactos sociais e ambientaisdecorrentes desse crescimento. A soluo para os problemas identificadosestaria no controle da fecundidade. Com a importncia adquirida pelasdiscusses sobre mudanas ambientais globais, ressurge com fora, tendoem vista que o volume da populao mundial possui um significado rele-vante em termos de aumento da emisso de gases estufa, considerando asnecessidades de energia e produo de alimentos, por exemplo.

    Entretanto, h que se considerar que esse impacto, apreendido a partirde uma perspectiva crtica ao neomalthusianismo, ser mediado pelasmudanas tecnolgicas e culturais, que certamente sero fundamentaisnas prximas dcadas no sentido de diminuir a emisso de poluentes, etambm no sentido de aumentar a produtividade e a racionalidade noconsumo de alimentos e de bens ambientais. Ou seja, a questo do padrode consumo mais relevante do que o volume populacional quando sediscute a mitigao, que so as medidas necessrias para diminuir a emis-so de gases estufa.

    No se pode perder de vista a importncia do volume populacional.Entretanto, a exploso demogrfica que se havia prenunciado na dca-da de 1960 no aconteceu. O que se verifica nesse incio do Sculo XXI a consolidao de uma tendncia de diminuio das taxas de crescimentopopulacional, na qual podem ser identificados diversos estgios do pro-cesso denominado transio demogrfica. A transio demogrfica umprocesso que decorre da diminuio das tendncias de mortalidade e denatalidade, que ao longo do tempo declinam e se equilibram em patama-res mais baixos. A transio demogrfica ocorre como resultado de trans-formaes sociais e econmicas tais como industrializao, urbanizao,mudanas no papel social da mulher, dentre outros aspectos que so dis-cutidos por Goldani (2001).

    No caso brasileiro, os nveis de mortalidade e natalidade caram demaneira muito significativa nos ltimos 50 anos, com a taxa bruta de

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    natalidade caindo de 45 por mil, para cerca de 20 por mil habitantes,enquanto que a taxa bruta de natalidade passou de pouco mais de 20 paramenos de 10 por mil habitantes, conforme Berqu (2001). Como o declnioda mortalidade foi mais acentuado durante as dcadas de 1960 e 1970,estes foram os perodos nos quais se verificaram as maiores taxas de cres-cimento populacional, prximas a 3% ao ano para o conjunto do pas. Coma queda acentuada da fecundidade (nmero mdio de filhos por mulherem idade reprodutiva), houve um arrefecimento do crescimento popula-cional, completando a transio demogrfica.

    O Brasil j se encontra em uma fase adiantada da transio demo-grfica. Ou seja, as taxas de natalidade e mortalidade foram reduzidas demaneira significativa, e nas prximas dcadas devero parar de crescer,atingindo um volume populacional de cerca de 206 milhes de habitan-tes no ano 2030 de Camarano e Kanso (2009), tendendo a diminuir ovolume populacional na dcada seguinte. Nesse contexto, salienta-se quena interface entre populao e mudanas ambientais globais existem ou-tros fatores, que sero to importantes quanto o crescimento populacionalem nmeros absolutos.

    Um dos aspectos decorrentes da diminuio acentuada da fecun-didade em alguns pases tem sido o envelhecimento demogrfico. Ou seja,uma proporo menor de nascimentos