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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO
MESTRADO EM TEATRO
LISA SOUZA BRITO
O TEATRO DE PETER BROOK NO CINEMA DE MARAT/SADE:
UM ESTUDO DE ASPECTOS DA VISÃO TEATRAL DE BROOK EM SUA
OBRA CINEMATOGRÁFICA MARAT/SADE
FLORIANÓPOLIS
2012
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LISA SOUZA BRITO
O TEATRO DE PETER BROOK NO CINEMA DE MARAT/SADE:
UM ESTUDO DE ASPECTOS DA VISÃO TEATRAL DE BROOK EM SUA
OBRA CINEMATOGRÁFICA MARAT/SADE
Dissertação apresentado como requisito para à
obtenção do grau de Mestrado em Teatro, Curso
de Mestrado em Teatro, Linha de Pesquisa:
Linguagens cênicas, corpo e subjetividade.
Orientador: Prof. José Ronaldo Faleiro
FLORIANÓPOLIS
2012
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Ficha catalográfica elaborada pela biblioteca Central da UDESC
B862 t Brito Lisa Souza
O teatro de Peter Brook no cinema de Marat/Sade : um estudo de aspectos da visão teatral de Brook em sua obra cinematográfica MARAT/SADE / Lisa Souza Brito. – 2012.
111 p. : il. 30 cm
Bibliografia: p. 103 - 108
Orientador: José Ronaldo Faleiro
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes,
Mestrado em Teatro, Florianópolis, 2012.
1. Teatro 2. Cinema. 3. Brook, Peter. 4. Marat, Jean-Paul. 5. Marques de Sade.
6.Espaço vazio. 7. Teatralidade no cinema. I.Faleiro, José Ronaldo (orientador). II.
Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestrado em Teatro. IV.Título.
CDD: 792.015
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LISA SOUZA BRITO
O TEATRO DE PETER BROOK NO CINEMA DE MARAT/SADE:
UM ESTUDO DE ASPECTOS DA VISÃO TEATRAL DE BROOK EM SUA
OBRA CINEMATOGRÁFICA MARAT/SADE
Esta dissertação foi julgada aprovada para a obtenção do título de mestre, na
linha de pesquisa: Linguagens Cênicas, Corpo e Subjetividade, pelo curso de
mestrado em teatro, da Universidade do Estado de Santa Catarina em 30 de
Maio de 2012.
Prof. Stenphan Arnulf Baumgärtel, Dr.
Coordenador do Mestrado
Apresentada à Comissão Examinadora, integrada pelos professores:
Prof. José Ronaldo Faleiro, Dr.
Orientador
Prof. Luciano Pires Maia, Dr.
Membro
Profa Vera Regina Martins Collaço, Dra. Membro
Profa. Sandra Meyer Nunes Dra. Suplente
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AGRADECIMENTO
Agradeço primeiramente ao meu orientador, Professor Doutor José
Ronaldo Faleiro, por ter aceitado embarcar nesta pesquisa comigo.
Agradeço aos membros da banca: Professor Doutor Luciano Maia, que
há muito tempo acompanha minha carreira e, mais uma vez, para minha
imensa felicidade, está ao meu lado; Professora Vera Collaço por quem tenho
profunda admiração e carinho; Professora Doutora Sandra Meyer, por ter
aceitado analisar o meu trabalho.
Agradeço a Morgana Martins por todo carinho, consideração e por estar
sempre ao meu lado, me apoiando e incentivando.
Agradeço aos meus pais, Maria Cristina Brito e Iremar Brito, que sempre
me apoiaram e me auxiliaram em todos os momentos da minha vida.
Agradeço à Capes, que apoiou a pesquisa e a tornou viável.
Agradeço a todos os amigos queridos que torceram por mim nesta etapa
da minha vida, em especial a Cláudia Mussi, que me ajudou na retirada das
imagens do filme de Peter Brook.
Agradeço a Sandra Maria de Lima Siggelkow e Emília Leite pela
orientação e apoio durante o processo de construção desta pesquisa.
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RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar aspectos da busca de Peter Brook no campo teatral. O espetáculo estudado para a compreensão do tema é A perseguição e o assassinato de Jean-Paul Marat, representados pelo Grupo Teatral do Hospício de Charenton, sob a direção do Senhor de Sade, cujo roteiro se inspira no texto dramatúrgico de autoria de Peter Weiss. Esta pesquisa busca ainda discutir o conceito de teatralidade presente no filme de Brook, tendo como ponto inicial a questão do olhar, a partir de autores como Josette Féral, Patrice Pavis, Matteo Bonfitto, e procurando estabelecer um diálogo com facetas das ideias teatrais do próprio Brook. O estudo da linguagem cinematográfica do diretor inglês procura assim considerar a teatralidade do filme fazendo uma analogia com questões do pensamento de Antonin Artaud, que dizem respeito ao teatro como um duplo da vida, em seu Teatro da Crueldade, e com as ideias de Bertolt Brecht em seu Teatro Épico, que considera o mundo passível de transformação.
Palavras-Chave: Peter Brook, Marat/Sade, espaço vazio, teatralidade no
cinema.
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ABSTRACT
This present work has the goal of studying Peter Brook's search in the theater field. The play analised for a better understanding of this subject is The Persecution and Assassination of Jean-Paul Marat as performed by the Inmates of the Asylum of Charenton under the direction of the Marquis de Sade, which script is based on Peter Weiss dramaturgy. This work also seeks to discuss the concept of the theatricality presented in Brook's film and has, as a starting point, the matter of viewing, from authors such as Josette Féral, Patrice Pavis, Matteo Bonfitto, meaning to stabilish a dialogue with the aspects of Brook's own theatrical ideas. The study of the english director's cinematic language tries to consider the theatricality of the film, creating an analogy with the matters of Antonin Artaud's thoughts on theater being a double of life, in Theater of Cruelty, along with Bertolt Brecht's ideas in Epic Theater, which considers the world as liable of transformations.
Keywords: Peter Brook, Marat/Sade, empty space, theatricality in cinema.
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RÉSUMÉ
Ce travail a pour but d´analyser certains aspects de la quête de Peter Brook dans le domaine de l´art théâtral. Le spectacle choisi pour essayer de comprendre le thème est La Persécution et l´assassinat de Jean-Paul Marat, presentés par la troupe de l´hospice de Charenton, sous la mise en scène du Sieur de Sade, dont le canevas s´inspire du texte dramaturgique de Peter Weiss. Cette recherche a aussi l´intention de discuter la notion de théâtralité présente dans le film de Brook, tenant compte de la question du regard, à partir d´auteurs tels que Josette Féral, Patrice Pavis, Matteo Bonfitto, tout en essayant d´établir un dialogue avec quelques facettes de la pensée théâtrale de Brook lui-même. L´étude du langage cinématographique du metteur en scène Britanique veut encore saisir la théâtralité du film par le biais d´une analogie avec quelques questions posées par la pensée d´Antonin Artaud dans son Théâtre de la cruauté, en ce qui concerne le théâtre comme un double de la vie, et avec les idées de Bertolt Brecht dans son Théâtre Épique, lesquelles considèrent le monde passible d´une transformation.
Mots-clefs: Peter Brook, Marat/Sade, espace vide, théâtralité au cinéma.
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TABELA DE IMAGENS
Nº Índice das legendas e suas fontes Página
Imagem 1 Ator Adrian Lester como Hamlet
18
Imagem 2 Antonin Artaud de Monge Massieu no filme de Carl Dreyer
30
Imagem 3 Uma Flauta mágica I 46
Imagem 4 Uma Flauta mágica II 47
Imagem 5 Marat/Sade: começo da peça 52
Imagem 6 Marat/Sade: público 53
Imagem 7 Marat/Sade: espaço da encenação 65
Imagem 8 Marat/Sade: coro de bufões 70
Imagem 9 Marat/Sade: destruição do cenário 71
Imagem 10 Marat/Sade: coro de bufões e cartaz 85
Imagem 11 Marat/Sade: assassinato de Marat 95
Imagem 12 Marat/Sade: Charlotte Corday 96
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ________________________________________________ 12
1 CAPÍTULO I - PETER BROOK EM CENA: ASPECTOS DO TEATRO PARA
PETER BROOK _______________________________________________ 17
1.1 APRESENTAÇÃO: UM APERTO DE MÃO EM PETER BROOK ____ 17
1.2 PRODUÇÃO DE IMAGENS E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO _________ 23
1.2.1 Criação de formas na encenação ___________________________ 25
1.3 JOGO E ESPAÇO VAZIO __________________________________ 26
1.4 O RELACIONAMENTO ENTRE OS ATORES __________________ 31
1.5 MISTÉRIO E MOMENTO PRESENTE: O INVISÍVEL _____________ 33
1.6 O ATOR PARA BROOK: A IMAGINAÇÃO E A BUSCA ___________ 37
1.7 ASPECTOS DOS CENÁRIOS NAS MONTAGENS DIRIGIDAS POR
PETER BROOK _______________________________________________ 40
1.8 A MÚSICA NOS ESPETÁCULOS DE PETER BROOK ____________ 43
2 CAPÍTULO II – MARAT/SADE DE PETER BROOK – UMA LEITURA DA
TEATRALIDADE NO CINEMA COM INFLUÊNCIA(S) DE BRECHT E
ARTAUD ____________________________________________________ 49
2.1 A TEATRALIDADE CINEMATOGRÁFICA EM MARAT/SADE DE PETER
BROOK ______________________________________________________ 49
2.2 PETER WEISS E O TEXTO DE MARAT/SADE: A TENSÃO
FICÇÃO/REALIDADE ___________________________________________ 60
2.2.1 Jean-Paul Marat e o Marquês de Sade: contexto histórico _______ 73
2.2.2 Jogo de Duplo no Texto de Peter Weiss ______________________ 78
2.3 PETER BROOK NO FILME MARAT/SADE: UM DIÁLOGO COM ARTAUD
E BRECHT ___________________________________________________ 79
2.3.1 Aspectos do Teatro da Crueldade de Antonin Artaud __________ 80
2.3.2 Aspectos do Teatro Épico de Brecht ________________________ 81
2.3.3 Peter Brook: Marat/Sade, o Épico e a Crueldade ______________ 86
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CONSIDERAÇÕES FINAIS______________________________________ 98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS_______________________________ 103
BIBLIOGRAFIAS CONSULTADAS _______________________________ 105
MATERIAL AUDIO-VISUAL ____________________________________ 107
ANEXO: FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO MARAT/SADE E O DVD DO ESPETÁCULO
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INTRODUÇÃO
A motivação para desenvolver este trabalho nasceu da minha prática no
universo do teatro. Nasci em contato com o mundo da arte: meus pais
trabalhavam com teatro e nossa casa era local constante de ensaios.
Morávamos em uma casa com quintal grande, e era ali que meu pai pregava
um grande tecido preto, criando um fundo em que a encenação, ou ensaio
desta, aconteceria. Tínhamos um quarto que era considerado o quarto de
brincar, mas quando meus pais estavam em processo de ensaio, este era
reservado para a confecção do cenário e adereços e era comum acordar com
eles nessa ação. Eu e meu irmão, André, adorávamos estar com eles nesse
momento e tínhamos prazer em aprender a fazer objetos de cena. Acredito que
ao vermos nossos pais construindo cenários encarávamos tudo como uma
grande brincadeira, pois antes de qualquer coisa era divertido.
Desde cedo fiz cursos e realizei estudo sobre as artes cênicas. Com o
passar do tempo comecei a buscar maior formalização dos meus estudos
relativos ao teatro. Entrei para o curso de teatro da UNIRIO, onde o contato
com teóricos e com a prática me fez conhecer distintas concepções sobre a
arte dramática, entre as quais a de Peter Brook – o que me levou a ficar
profundamente instigada por seu universo.
Além de suas peças teatrais, observava em suas obras teóricas, como
também em suas ideias e filmes, a forte presença da teatralidade. A
teatralidade que era concebida como um duplo da vida. Assim, diante desse
universo magicamente atraente, resolvi enveredar meus estudos pela
teatralidade de Peter Brook presente em seus filmes. Dada a complexidade
desse objetivo inicial, pois sua produção cinematográfica é significativa,
dediquei-me com maior rigor ao estudo da sua produção em Marat/Sade, a
meu ver, plena de teatralidade.
O poder das imagens do diretor inglês em Marat/Sade faz com que
sua obra cinematográfica tenha sido revista e analisada por diversos
estudiosos do teatro da contemporaneidade. Patrice Pavis, Matteo Bonfitto,
Olivier-René Veillon e demais pesquisadores reconhecem a existência de uma
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linguagem em Marat/Sade que destaca sua relação profunda com a arte
teatral, isto é, a sua teatralidade.
Nesse sentido, este trabalho pretende observar aspectos da natureza
desse teatro instaurado pelo cinema, investigando características da linguagem
do filme que podem ser identificadas como instauradoras da teatralidade. O
pensamento de Brook é extremamente abrangente e revela uma prática. Além
disso, por não ser exatamente um teórico, um cientista da arte do teatro, mas
um artista que pensa o teatro, Brook expõe ideias que apresentam dificuldade
para serem objetivadas, compreendidas ou até mesmo definidas
conceitualmente, como solicita o discurso acadêmico.
Assim, este trabalho não pretende esgotar essa temática, tendo em vista
que a teatralidade contém uma temática complexa e identificá-la na obra de
Brook acompanha a natureza da sua complexidade. Além disso, a teatralidade
se modifica como afirma Josette Féral, com a história do sujeito observador,
que é limitado ao seu tempo. Diante do exposto, esta pesquisa pretende
apontar questões relacionadas a presença da teatralidade no filme Marat/Sade
– tendo, porém, consciência dos limites da sua abrangência, não apenas pela
complexidade do conceito, como também pela própria complexidade da
linguagem do espetáculo/filme de Peter Brook.
A abrangência do que Brook afirma e a própria complexidade da arte
teatral remete o trabalho ao reconhecimento dos seus limites. Dessa forma,
foram eleitos alguns pontos de vista do pensamento teatral de Brook que são
ressaltados e analisados com maior atenção, ainda que com suas limitações,
para avaliar o teatro e seu diálogo com o cinema na linguagem híbrida de
Marat/Sade.
No sentido da decodificação do universo do pensamento teatral de
Brook, o trabalho pretende investigar no primeiro capítulo algumas noções que
se constituem como uma presença relevante no seu teatro, como, por exemplo,
a sua concepção de espaço vazio, de imaginação, de diálogo entre ator e
espectador. Com isso desejo fazer uma análise a respeito da relação desses
signos na linguagem do filme Marat/Sade, realizado pelo diretor na década de
60 do século XX, e buscar inicialmente uma possível leitura, ainda que limitada,
do teatro para Brook, tendo como apoio a noção de teatralidade formalizada
pelos teóricos estudados.
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Em seguida, a pesquisa analisa o texto de Marat/Sade, de Peter Weiss,
detendo-se com mais rigor na presença daqueles fatores que, na perspectiva
de Brook, traçam a contemporaneidade da obra. Em continuação o trabalho
analisa a presença de Brecht e Artaud no filme de Brook, os quais, segundo
Odette Aslan, em seu livro O ator no século XX (1994), constituem as duas
grandes tendências do teatro no século XX. Busca-se então evidenciar o
caráter épico ou de crueldade identificados no filme de Brook, no âmbito
desses dois artistas do teatro, cujo pensamento torna possível a leitura da
presença da teatralidade no cinema de Brook.
Nesse sentido, ao buscar qual seria o evento comum à teatralidade e ao
cinema, observa-se a importância do olhar do espectador seja no teatro, seja
no cinema. No filme de Brook, a câmera busca assumir as possibilidades de
olhar que o espectador possui no teatro, observando o filme do ponto de vista
racional ou crítico – como prescreve o Teatro Épico de Brecht —, enquanto é
simultaneamente levado a se inserir totalmente — na perspectiva de Artaud —,
em um universo em que a peste lentamente se estrutura e toma conta de tudo
como uma epidemia. Esse mundo que se descortina nos olhos do espectador
por meio da lente da câmera expõe contradições existentes, mergulhando-o
completamente no universo criado ou propondo uma reflexão sobre ele. O
caráter épico ou da crueldade do filme de Brook será assim analisado,
evidenciando a natureza desse caráter na sua teatralidade.
O trabalho pretende, assim, sugerir um olhar que se replica sobre o olhar
da câmera e que pode observar um pouco da origem do invisível proposto por
Brook no seu teatro. Por esse ângulo encontra a sua relevância em descobrir
ou identificar aspectos do mistério da presença do teatro na arte
cinematográfica de Marat/Sade, estruturada por Peter Brook em uma
linguagem híbrida que se origina na integração entre o teatro e o cinema.
Com a proposta de esclarecer o pensamento de Brook na imagem e no
som, e utilizando o universo conceitual discutido no primeiro capítulo, no
segundo capitulo o trabalho envereda dessa maneira por aspectos da peça
Marat/Sade (1966)1, em sua versão cinematográfica. Trata-se então de
1 Direção de Peter Brook, roteiro de Mitchell, baseado em peça teatral de Peter Weiss, origem
Inglaterra, tempo de duração de 119 minutos, música de Richard Peaslee, fotografia de David
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identificar na montagem relações entre o filme e as propostas teatrais de Brook
relacionadas à visão do espectador num universo mediado pela câmera. Os
estudos se voltam, pois, particularmente para sua concepção de vazio, de
imaginação e de diálogo verdadeiro.
Tal estudo também diz respeito ao texto dramático de Peter Weiss, a
partir do qual Brook faz com que os atores desempenhem seu trabalho na
construção do espaço da cena. Uma vez concebido como um espaço vazio, ele
está pronto para revelar as fricções entre a linguagem teatral e a
cinematográfica. Seguindo este pensamento, o segundo capítulo pretende
ainda analisar o conceito de teatralidade presente no filme, inspirado em
teóricos e estudiosos do teatro, envereda igualmente pela teatralidade épica ou
da crueldade concebida no pensamento de Bertolt Brecht e Antonin Artaud.
Partindo do pensamento de que o olhar da câmera determina o espaço
em que a encenação é realizada, o segundo capítulo busca também
estabelecer um paralelo entre esse olhar da câmera, o olhar do espectador e o
espaço vazio cunhado por Brook. Esse espaço é concebido, na perspectiva de
Brecht, como um mundo pleno de contradições e passível de modificação. E,
simultaneamente, é apresentado como um mundo devorado por uma epidemia,
cujas contradições o conduzem a um processo de destruição ou escatologia,
que, pela destruição, prenuncia, segundo Mircea Eliade, o surgimento de uma
nova era.
Assim, no espaço ficcional do manicômio, onde se desenvolve a fábula
de Peter Weiss que representa aspectos do contexto revolucionário francês,
observamos o teatro sobre o teatro, ou o teatro dentro do teatro. Peter Brook
expõe e enfatiza essa realidade construindo um espetáculo cinematográfico
que se funda na fusão do olhar da câmera com o do espectador, despertando
nele a imaginação.
Nesse universo em que a realidade se constrói a partir da proposta de
criação de um espaço vazio, que cede lugar à imaginação e ao diálogo
verdadeiro entre ator e espectador, este trabalho busca discriminar aspectos da
Watkin, direção de arte de Ted Marshall, edição de Tom Priestley, produção de Michael Birkett
e distribuidora United Artists.
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teatralidade concebida por Peter Brook na construção da linguagem híbrida do
filme Marat/Sade.
O tema é profundo e complexo e esta pesquisa tem consciência de que
o assunto não se esgota, mas sua intenção não é essa. Este trabalho pretende
apenas levantar algumas questões que podem ser pertinentes e relevantes aos
estudos do teatro – questões que partem da presença e discriminação da
teatralidade, com seus segredos e mistérios em suas possíveis manifestações
na contemporaneidade, como a que ocorre no filme Marat/Sade, de Peter
Brook.
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CAPÍTULO I: PETER BROOK EM CENA: ASPECTOS DO TEATRO PARA
PETER BROOK
1.1 APRESENTAÇÃO: UM APERTO DE MÃO EM PETER BROOK
Peter Brook nasceu no dia 21 de março de 1925 em Londres e iniciou
seus estudos em cinema na Oxford University em 1942. Desde a universidade,
quando fez o curso de cinema, despertou seu interesse pelo teatro, tendo
investigado posteriormente o pensamento de artistas e teóricos dessa arte
como Bertolt Brecht e Antonin Artaud. A presença da influência desses
encenadores está refletida em diferentes trabalhos de Brook, como na
montagem cinematográfica de A perseguição e o assassinato de Jean-Paul
Marat representados pelo Grupo Teatral do Hospício de Charenton, sob a
direção do Senhor de Sade (The persecution and assassination of Jean-Paul
Marat as performed by the inmates of the asylum at Charenton under the
direction of the Marquis of Sade), com texto dramatúrgico de Peter Weiss2, que
será estudada no próximo capítulo.
Brook viveu muito tempo em Londres, onde nasceu, começou sua
carreira, e se afirmou como diretor de teatro e ópera. Montou diferentes
obras de William Shakespeare (como Trabalhos de amor perdidos em 1946,
Romeu e Julieta em 1947, Hamlet em 1955), La Bohème de Giacomo
Puccini em 1948, criações coletivas como Teatro da crueldade, e
Marat/Sade3, de Peter Weiss, em 1964. Além dessas, também realizou
muitas outras obras que se destacam nas artes cênicas da
contemporaneidade. Em 1966, após dois anos em cartaz, Peter Brook
transpôs para o cinema a peça Marat/Sade.
Brook realizou diferentes tipos de pesquisas e explorações práticas no
campo teatral, entre as quais se destaca a busca de eliminar ao máximo a
2 Peter Weiss. Die Verfolgung und Ermordung Jean Paul Marats dargestellt durch die
Schauspielgruppe des Hospizes zu Charenton unter Anleitung des Herrn de Sade. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1964. Edição brasileira: Perseguição e Assassinato de Jean Paul Marat; Representados pelo Grupo Teatral do Hospício de Charenton, sob a direção do Senhor de Sade. Drama em dois atos. Tradução de João Marschner. São Paulo: Grijalbo, 1968. 3 A partir deste momento nesta dissertação a obra intitulada A perseguição e o assassinato de
Jean Paul Marat representados pelo Grupo Teatral do Hospício de Charenton, sob a direção do Senhor de Sade será referenciada como Marat/Sade.
18
distância entre o ator e o público, tendo em vista a existência de um verdadeiro
diálogo entre ambos. Em suas peças, de modo geral, os atores em algum
momento interagem mais claramente com a plateia, ao se dirigirem a ela e
falam abertamente. Por exemplo, na peça The Tragedy of Hamlet, que veio ao
Brasil em 2008, o personagem Hamlet, representado pelo ator Adrian Lester,
em momento de grande angústia expressa suas dúvidas existências, olha nos
olhos do público, busca efetivamente um interlocutor – silencioso, porém ativo
– com quem compartilhar sua apreensão. Esse contato pode ser visto na foto
abaixo:
Imagem 1: O ator, Adrian Lester como Hamlet 4
Larissa Elias, Doutora em teatro pela Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (UNIRIO) e professora adjunta do curso de Artes Cênicas da
Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em
sua dissertação de Mestrado O Vazio de Peter Brook: ausência e plenitude,
defendida em 2004, ressalta a busca do artista por uma maior aproximação do
espetáculo por meio do diálogo com o público. Tal pensamento se desenvolve
a partir das montagens shakesperianas realizadas ao longo de sua carreira.
Refletindo sobre o trabalho de Brook desde o tempo em que estava na Royal
Shakespeare Company até os dias de hoje, Elias afirma:
4 Foto retirada do site www.1morefilmblog.com – acesso 18 mar. de 2012.
19
São suas reflexões sobre a necessidade de um espaço aberto, desobstruído, prático, portanto, mais livre para a criação, que proporcionasse uma relação mais direta do ator com a plateia, cuja origem parece estar em suas montagens dos textos de Shakespeare (Elias, 2004: 22).
A relação com a plateia é, pois, fundamental ao teatro para Brook, já que
é por seu intermédio que o público pode viver em conjunto uma experiência
comum, a partir do surgimento de uma reação a um aspecto da realidade,
evocada pelo ator. Ele mesmo esclareceu a experiência chamando-a de
“impressão coletiva”: “O aspecto da realidade que o ator está evocando deve
despertar uma reação na mesma área em cada espectador, fazendo com que,
por um momento, o público viva uma impressão coletiva” (Brook, 1999: 70).
Ao se mudar para Paris em 1970, Brook começou uma nova fase em
sua carreira. Seus experimentos o levaram naquele momento aos carpet
shows. O processo teve a origem no espaço cedido pelo governo parisiense
para os ensaios do CICT – Centre International de Créations Théâtrales5 –, que
era um grupo de investigação teatral criado por Brook com o intuito de
pesquisar teatro com atores de diferentes culturas. O lugar cedido, em que
Brook trabalhou, foi uma das grandes salas de tapeçaria da Manufatura dos
Gobelinos, muito antiga, impregnada de história e energia, impulsionando
Brook a novas experimentações6. Ele já havia ensaiado naquele local antes,
como Elias relembra:
1968 é o ano em que se inicia claramente sua [de Brook] formulação cênica. Neste ano, Jean-Louis Barrault, que coordenava o festival Théâtre des Nations, convidou Peter Brook para dirigir A tempestade de Shakespeare. [...] depois das pesquisas iniciadas com o Teatro da crueldade, em 1964, sugeriu a formação de um grupo experimental de atores internacionais, para trabalhar durante dois meses. O lugar encontrado para os ensaios
5 Centro Internacional de Criações Teatrais.
6 O lugar pertenceu a uma família de tintureiros (Les Gobelin). Era conhecido também como Manufacture des Gobelins, ou somente por fábrica real, pois serviu à corte de Louis XIV. No século XV o primeiro dono havia descoberto uma espécie de corante carmesim e, por isso, fundou a fábrica. Atualmente tem o nome de Mobilier National. É uma espécie de depósito da mobília da Coroa e também da mobília do funcionalismo público parisiense. Um curso de formação é ministrado na instituição. Depois de formados, muitos estudantes continuam trabalhando no local, onde aprendem a conservar e a consertar peças raras. Nos dias que correm, o prédio pertence ao Ministério da Cultura francês.
20
era uma sala destinada à exposição de tapeçarias no Mobilier National [...] (Elias, 2008: 01)
No entanto, foi apenas em 1970 que Brook permaneceu no local por
mais tempo. Teve a ideia de delimitar o espaço para trabalhar e resolveu usar
um tapete para isso. Assim, a encenação ocorria em cima do tapete. Mas foi na
sua viagem à África que o processo se deu com maior clareza.
Em sua dissertação intitulada A perspectiva orgânica da ação vocal no
trabalho de Stanislavski, Grotowski e Brook, defendida na Escola de Belas
Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2011, referindo-se
aos carpet shows, Cristiano Gonçalves comenta a sua importância para o
desenvolvimento e envolvimento do trabalho dos atores com textos de
Shakespeare. Na visão de Brook, esses trabalhos apresentam uma grande
compressão de tempo e espaço, responsável por uma intensificação de
energia, que estabeleceria um estreito vínculo com o espectador:
Carpet Show: um tapete colocado sobre o chão que limitava e definia a relação: dentro do tapete é teatro e fora do tapete é público. Foi através desse tipo de experimento que Brook testou as bases técnicas do teatro shakespeariano e do trabalho do ator: quando o ator pisa no tapete o simples olhar do público exige que ele tenha uma outra relação com sua presença, e que estabeleça, de imediato, uma intenção clara e direcionada. Brook descobriu também que para estudar Shakespeare a melhor forma era improvisá-lo sobre o tapete. No teatro do dramaturgo inglês, existe uma compressão do tempo e do espaço – na fábula, os eventos que ocorreram em um intervalo de anos e em países diferentes podem ocorrer em minutos dentro do mesmo tapete. Essa compressão gera uma intensificação da energia que estabelece um vínculo com o espectador (Gonçalves, 2011: 101/102).
Após esse período, em 1974, já morando em Paris, ocupou o Théâtre
des Bouffes du Nord, situado no 37 bis, boulevard de La Chapelle, 75010.
Acompanhou a reforma do teatro e quis que ele mantivesse a aparência de
inacabado, como se estivesse em ruínas, pois acreditava que isso, de certa
forma, ajudava o trabalho que seria realizado. O espetáculo que marca a
inauguração é Timão de Atenas, de Shakespeare. A estreia aconteceu no
mesmo ano da ocupação, em 1974. Brook nunca escondeu sua profunda
21
admiração por Shakespeare. Em sua carreira como diretor de teatro, no
início dos anos 60 do século XX, se tornou um dos diretores da Royal
Shakespeare Company, e com isso foi responsável por algumas montagens
que, de certa maneira, quebravam padrões já preestabelecidos dos
espetáculos mais tradicionais da companhia. Ao longo de sua vida no teatro
montou cerca de 15 espetáculos de Shakespeare, incluindo montagens e
remontagens.
Para a montagem da peça Timão de Atenas, o fato de delimitar o espaço
destinado à encenação – que ocorreu nas experiências vividas no processo
com o carpet show – e o fato de realizar naquele período uma profunda
investigação sobre a improvisação. De fato, a peça não foi explorada de uma
forma tradicional, e sim por meio de improvisações que tinham uma relação
direta com a busca, a ocupação e a manipulação do espaço. Essa montagem,
que teve estreia no teatro de Paris, também não se enquadrou nos padrões
clássicos de concepção do texto, mas em uma perspectiva de teatro
experimental realizado por Peter Brook.
Matteo Bonfitto, professor Doutor pela Universidade Estadual de
Campinas – UNICAMP –, em seu livro A cinética do invisível, expõe sobre a
técnica de carpet show de Brook, chamando-a de “não-interpretação”, devido
ao cancelamento entre as fronteiras que separariam o ator e o personagem:
Em direta conexão com as práticas experimentadas durante as viagens do CIRT, os atores de Brook exploraram uma qualidade de “não - interpretação”. [...] O modo como exploraram as palavras e o universo de Shakespeare, o modo como as suas ações eram materializadas, transmitiram qualidades de incorporação (embodiment) através das quais fronteiras entre o ator e o personagem parecem ter sido canceladas. [...] A qualidade de presença e de relação experenciada (sic) nos carpet shows parece ter funcionado como uma componente significativa do trabalho do ator em Timão de Atenas (Bonfitto, 2009: 96-97)7.
7 Com a ida de Peter Brook e sua trupe à Paris em 1968, começou uma primeira variante do
CIRT – Centre International de Recherches Théâtrales (Centro Internacional de Pesquisas
Teatrais). Brook fundou o CICT (Centre International de Créations Théâtrales) em 1973 e se
instalou com esse grupo no Théâtre des Bouffes du Nord, em 1974. A partir daí essa
denominação está presente, por exemplo, no anúncio dos espetáculos e nos livros-programa
publicados pela companhia.
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Brook usa o recurso de improvisação no seu processo de concepção de
um espetáculo. A sua concepção de improvisação na cena teatral implica na
aquisição pelo ator de uma técnica precisa e difícil para a construção de um
diálogo íntimo com o receptor. Esse diálogo é assim instaurado a partir de uma
perspectiva de preparação do ator para que possa estar disponível a
desenvolver um verdadeiro encontro com a plateia. Sobre esse assunto este
assunto Brook afirma que:
Aprendemos que a improvisação é uma técnica excepcionalmente difícil e precisa, muito diversa da ideia generalizada de um “happening” espontâneo. Improvisar requer dos atores amplo domínio de todos os aspectos do teatro. Requer treinamento específico, grande generosidade e também senso de humor. A improvisação genuína, que leva ao verdadeiro encontro com a plateia, ocorre apenas quando os espectadores sentem que são amados e respeitados pelos atores (Brook, 1995: 156).
Estabelece uma relação profunda com a prática da improvisação feita
em diferentes contextos de pesquisa, sempre valorizando o trabalho na
relação dos atores com o todo presente no momento do espetáculo. Dessa
forma a interpretação se constitui em um meio de estruturar um
relacionamento diferente na própria vida do artista, que não conta com nada
preestabelecido, nada preparado de antemão, como reconhece em seu livro
O ponto de mudança:
O meio de aprender um relacionamento diferente é fazer uma longa série de improvisações longe de plateias habituadas ao teatro, no meio da vida, sem nada preparado de antemão, como um diálogo real que pode começar em qualquer lugar e partir em qualquer direção. Neste sentido, improvisação significa que os atores chegam diante de uma plateia preparados para estabelecer um diálogo, não para dar uma demonstração. Tecnicamente, estabelecer um diálogo teatral significa inventar temas e situações para aquela plateia específica, de modo a permitir que ela influencie o desenvolvimento da história durante o espetáculo (Brook, 1995: 153).
23
A partir dessa afirmação é possível perceber que o ator de Brook
desenvolve um estreito vínculo com o espectador, sendo este consequência da
clareza dos papéis no espaço (dentro do tapete é teatro, fora é público) e da
intensificação da energia advinda da compressão do tempo e do espaço.
1.2 PRODUÇÃO DE IMAGENS E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO
Como já foi observado anteriormente, Peter Brook é diretor de teatro e
de cinema. Concebe uma estreita relação entre as duas artes pela importância
que atribui à imagem, por possibilitar o nascimento de um mundo paralelo e
sedutor. Esclarece tal relação em um trecho de seu livro Fios do tempo:
Quando começava uma produção, eu não tinha qualquer ideia intelectual; apenas seguia um desejo instintivo de produzir imagens que se moviam. A moldura do proscênio era como uma tela de cinema estereoscópica na qual luzes, música e efeitos eram todos tão importantes quanto a interpretação, pois meu único desejo era, como em uma mágica, fazer aparecer um mundo paralelo e mais sedutor (Brook, 2000: 61).
Esse mundo paralelo e sedutor almejado por Brook é composto por
imagens, cuja força tem o poder de devorar, engolir e preencher o indivíduo,
impedindo-o de pensar, sentir ou imaginar qualquer outra coisa, além daquilo
com que elas o sensibilizam visualmente. Isso acontece no momento em que a
impressão da imagem é causada, como afirma em seu livro O ponto de
mudança:
No cinema como no teatro o espectador costuma ser mais ou menos passivo, estando situado numa posição receptora de impulsos e sugestões. No cinema, esse fato é fundamental, já que o poder da imagem é tão grande que engolfa o indivíduo. É preciso refletir sobre aquilo que se vê apenas antes ou depois da impressão ter sido causada, mas jamais simultaneamente. Enquanto a imagem aí permanece com toda a sua força, no instante preciso em que está sendo percebida, é impossível pensar, sentir ou imaginar qualquer outra coisa (Brook, 1995: 250-251).
24
Esse poder sensorial da imagem estabelecido por Brook também é
extremamente valorizado por Artaud ao comentar o que seria para ele a
verdadeira linguagem do teatro. Silvia Fernandes e Jacob Guinsburg no
prefácio do livro Linguagem e vida (Artaud, 1995: 15) reconhecem que dirigir
teatro, segundo Artaud, significa extrair de um texto as imagens que ele
sugere, e citam para justificar-lhe o pensamento o seu escrito A evolução do
cenário, publicado em Linguagem e vida:
O que perdemos do lado estritamente místico, podemos reconquistá-lo do lado intelectual. Mas cumpre, para isso, reaprender a ser místico, ao menos de uma certa maneira; e dedicando-nos a um texto, esquecendo a nós mesmos, esquecendo o teatro, esperar e fixar as imagens que nascerão em nós nuas, naturais, excessivas e ir até o extremo destas imagens (Artaud, 1995: 27).
Valorizando o poder da imagem de agir sobre o espectador, Brook
estaria também realçando aquilo que constitui para Artaud a encenação:
“Teatro é encenação, muito mais do que a peça escrita e falada” (Artaud, 1993:
31) – ou a própria linguagem do teatro, que segundo Artaud se diferencia da
linguagem verbal:
Mais urgente me parece determinar em que consiste essa linguagem física, essa linguagem material e sólida através da qual o teatro pode se distinguir da palavra. Ela consiste em tudo o que ocupa a cena, em tudo aquilo que pode se manifestar e exprimir materialmente numa cena (Artaud, 1993: 31).
Mais adiante, em sua poética da crueldade, O teatro e seu duplo, Artaud
esclarece a natureza dessa linguagem no espaço: “Não se trata de suprimir o
discurso articulado, mas de dar às palavras mais ou menos a importância que
elas têm nos sonhos” (Artaud, 1993: 90). Essa linguagem à qual Artaud se
refere se caracteriza não apenas pela presença do discurso articulado, mas
pelas suas inúmeras possibilidades de utilização de outros meios e objetivação
no espaço:
25
Além disso, os gestos simbólicos, as máscaras, as atitudes, os movimentos particulares ou de conjunto, cujas inúmeras significações constituem uma parte importante da linguagem concreta do teatro, gestos evocadores, atitudes emotivas ou arbitrárias, marcação desvairada de ritmos e sons se duplicarão, serão multiplicados por uma espécie de gestos e atitudes reflexos, constituídos pelo acúmulo de todos os gestos impulsivos, de todas as atitudes falhas, de todos os lapsos do espírito e da língua através dos quais se manifesta aquilo que se poderia chamar de impotências da palavra, e existe nisso uma prodigiosa riqueza de expressão, à qual não deixaremos de recorrer ocasionalmente (Artaud, 1993: 91).
Dessa maneira, valorizando a imagem, Brook encontrará nos meios de
ocupação do espaço proposto por Artaud os meios de construção de imagens.
Tais fatores estruturam uma linguagem comum ao cinema pela busca das
imagens, e ao teatro, na perspectiva de Artaud, a estrutura de uma linguagem
de signos no espaço.
1.2.1 Criação de formas e imagens na encenação
A encenação preconizada por Artaud é estruturada como uma
linguagem em signos, como observa em seu primeiro manifesto do Teatro da
Crueldade ao descrever a linguagem em cena:
No que diz respeito aos objetos comuns ou mesmo ao corpo humano, elevados à dignidade de signos, é evidente que se pode buscar inspiração nos caracteres hieroglíficos, não apenas para anotar esses signos de uma maneira legível e que permita sua reprodução conforme a vontade, mas também para compor em cena símbolos precisos e legíveis diretamente (Artaud, 1993: 90).
Tais signos estruturadores da encenação são construtores de imagens e
parecem ser uma presença fundamental à concepção do teatro ou do cinema
de Brook. Inspirado na potência da imagem, busca a sua construção através da
articulação de signos originados na pesquisa através de formas. Brook
investiga essa linguagem, como afirma em seu livro A porta aberta: “O
processo de dar forma é sempre um compromisso que temos que aceitar,
26
dizendo ao mesmo tempo: ‘é provisória, tem que ser renovada’ trata-se de uma
dinâmica que nunca terá fim” (Brook, 1999: 45). A imagem em Brook se
estrutura como pesquisa de formas que se relacionam no espaço. As formas
atuam como um conjunto de signos que ganham sentidos e unidade na sua
encenação.
1.3 JOGO E ESPAÇO VAZIO
Nos diversos livros que publicou, Brook expõe ideias que são
fundamentais para a compreensão e para a construção da arte teatral na sua
prática e na sua vida. Em O teatro e seu espaço, o encenador sugere que,
embora representar exija muito trabalho, quando se experimenta o trabalho
como uma brincadeira ele deixa de ter a conotação de trabalho. Brook conclui
seu pensamento afirmando que “A play is play” (Brook, 1970: 151), e com isso,
faz um jogo de palavras, relacionando o teatro ao jogo, a uma brincadeira.
Para Brook, na perspectiva do jogo, o teatro tem suas regras,
possibilidade de improvisação dentro de parâmetros estabelecidos; ocorre no
presente; é imprevisível e jamais será repetido:
[...] acho que o esporte fornece as imagens mais precisas e as melhores metáforas para a performance teatral. Sob certo aspecto, numa corrida ou num jogo de futebol, não há liberdade alguma. Existem regras, o jogo é calculado segundo rígidos parâmetros, como no teatro, onde cada ator aprende seu papel e respeita-o até a última palavra. Mas este contexto determinante não o impede de improvisar quando chega a hora. Dada a largada, o corredor vale-se de todos os meios ao seu dispor. Iniciado o espetáculo, o ator entra na estrutura da mise-en-scène: fica também completamente envolvido, improvisa dentro dos parâmetros estabelecidos e, como o corredor, cai no imprevisível. Assim, tudo permanece em aberto e para o público o evento ocorre naquele preciso instante: nem antes nem depois. Vistas das nuvens todas as partidas de futebol parecem iguais, mas nenhuma delas poderá jamais ser repetida em todos os seus detalhes (Brook, 1995: 25).
27
Brook finaliza afirmando o pensamento, de que a preparação rigorosa
para o jogo não impede o inesperado que o caracteriza. Nesse sentido, é
possível relacionar o jogo citado por Brook com a dinâmica de construção de
formas. Esta adquire sentidos na medida em que se estrutura como signos na
linguagem da cena e possui um ciclo vital, isto é, um movimento constante,
algo que traz em si uma pulsação de vida. A questão do ciclo vital das formas
será investigada posteriormente neste trabalho.
As formas criadas acontecem no espaço. Na perspectiva de Brook, a
regra fundamental para que se estruture o jogo do teatro é a presença daquilo
que ele denomina como “espaço vazio”:
Para que alguma coisa relevante ocorra, é preciso criar um espaço vazio. O espaço vazio permite que surja um fenômeno novo, porque tudo que diz respeito ao conteúdo, significado, expressão, linguagem e música só pode existir se a experiência for nova e original. Mas nenhuma experiência nova e original é possível se não houver um espaço puro, virgem, pronto para recebê-la (Brook, 1999: 04).
O espaço vazio pode ser visto na objetividade da cena ou na
subjetividade do ator ou do espectador. Um dos aspectos inerentes ao deste
termo é a ausência de cenário e a forte presença do imaginário, o que
possibilita ao espectador a liberdade de atenção e criação de processos
mentais, como comenta Larissa Elias:
[...] o espaço vazio é o preenchimento pelo livre jogo da imaginação, pois ao se deparar com um palco vazio, o espectador é tomado por um impulso que cria uma imagem. Se houver, porém, um único elemento que ilustre a realidade, como um barco de verdade; ou a tentativa de reproduzir uma ilha com árvores etc., o jogo é quebrado, e o que se vê é algo colado à realidade, e não alguma coisa que se confronte com ela (Elias, 2004: 105).
A ausência de cenário é, na concepção de Brook, um começo para a
atividade da imaginação. Esse espaço deve ser preenchido com muita
consciência e cuidado pois Brook considera o vazio como um signo
28
potencial, um espaço significante cujo significado pode e deve ser
dinamicamente preenchido.
Se o espaço vazio for comparado à abstração da lingua e de suas
imensas possibilidades de realização em fala e em discurso pode-se
perceber que este termo para Brook tem uma plenitude de sentidos, de
possibilidades e de preenchimento de lacunas. Esses fatores podem ser
aplicados tanto na ordem da objetividade como o cenário, figurino,
iluminação, adereços, como aqueles da ordem da subjetividade que dizem
respeito a pensamentos, sentimentos e emoções, todo um reservatório de
energia que estabelece a relação e a tensão entre o ator e o espectdor no
teatro. O próprio Brook afirma em entrevista, o espaço vazio é um espaço de
virtualidade de nascimento:
Quando falo de espaço, não me estou a referir ao espaço no sentido geográfico ou físico. Para mim, este conceito tem um significado muito mais lato. Espaço é tudo o que ainda não tem forma e tudo o que ainda não tem forma constinui uma potencialidade; isto é, a potencialidade do nascimento, da criação depende de um espaço que ainda não foi preenchido, não foi determinado. O espaço vazio significa a virtualidade, o que era antes do big bang com todos os seus significados (Sucher, 1999: 325).
O espaço vazio permite a elaboração de um mundo complexo, fazendo a
imaginação do espectador ser liberada com constância. Assim, ela é criada e
recriada a cada momento, relação, palavra ou gesto. O espaço vazio se torna
fundamental na encenação e no seu processo, como o próprio Brook comenta:
Um espaço vazio possibilita ao espectador invocar um mundo muito complexo, que contenha todos os elementos do mundo real e no qual coexistam e se entrelacem relações de todo tipo – sociais, políticas, metafísicas e individuais. [...] Em qualquer peça de Shakespeare torna-se fundamental, tanto para o ator como para o espectador, que a imaginação do público se encontre em um estado de liberação constante, por causa da necessidade de avançar através de um labirinto tão complexo (Brook, 1995: 252).
29
O artista ressalta a necessidade do espaço vazio para que seja
reavivado o seu valor a cada momento. A presença deste enfatiza que se
nos limitarmos “a colocar duas pessoas lado a lado num espaço vazio, a
atenção dos espectadores se estenderá aos menores detalhes” (Brook,
1999: 22), estabelecendo um diálogo íntimo com o espectador.
A figura do contador de história se torna então, para Brook, uma
maneira de alcançar o público, levando o ator a estar em constante exercício
da presença do outro. O corpo do ator se torna um meio, um instrumento. Essa
estreita relação é um dos objetivos de Brook, que deseja o estabelecimento de
um diálogo profundo e verdadeiro com o público. No entanto, manter o contato
com o seu interior e com a plateia não seria um paradoxo para o ator, porque
ao atuar como contador de histórias, o ator aumenta a potencialidade de sua
atenção. Isso faz com que se possa dividi-la consigo mesmo e com o público
aumentando o seu contato, seu diálogo com a plateia. Gonçalves comenta a
relação entre a atenção e o ato de contar histórias, referindo-se ao momento
em que Brook iniciou sua investigação sobre este tema:
Esse paradoxo foi a chave que conduziu Brook a enxergar na figura do contador de histórias, referencial para o trabalho de seus atores. Na visão Brook, o jogo dos atores na cena deve incluir o público de forma que os ouvidos, a voz e o gesto do ator estejam abertos à sensação da presença do público. Na perspectiva do trabalho do ator, os contadores de histórias ampliam a atuação do ator de forma a incluir o público como elemento imprescindível para a eficácia da cena (Gonçalves, 2011: 102).
Dessa maneira, Brook valoriza o ato de contar histórias pela noção da
presença como um dado fundamental ao trabalho do ator no seu
relacionamento com o outro e com o público, superando o paradoxo.
Ao relacionar o espaço vazio com a arte cinematográfica, que tem como
foco fundamental a imagem contextualizada, Brook percebe a dificuldade da
aplicação deste termo. Devido à natureza realista da fotografia, o ator está
sempre num contexto e nunca fora dele, isto é, nunca com uma cenografia
abstrata, num espaço vazio. Brook reconhece apenas A paixão de Joana d’Arc
de Carl Dreyer, filme que conta no elenco com a participação de Antonin
30
Artaud, como um exemplo certeiro da utilização do espaço vazio (Brook, 1999:
22).
A obra A paixão de Joana d’Arc (1927 - 1928) foi o primeiro filme
realizado na França por Carl Dreyer antes de “Vampiro” em 1932. O roteiro
escrito em conjunto com Dreyer e Joseph Delteil, se fundamenta no epsódio
do proecesso de Joana d´Arc e na visão de personagem em grandes planos
e em close up. Isso acontece não apenas com o personagem de Joana mas
também com os papéis secundários como do Monge Massieu representado
por Artaud, que revela suas lembranças da filmagem com Dreyer:
Sei que eu guardei do meu trabalho com Dreyer lembranças inesquecíveis. Encontrei um homem que me fez crer na justiça, na beleza e no interesse humano da sua concepção. E fossem quais fossem as minhas ideias sobre o cinema, sobre a poesia, sobre a vida, por uma vez percebi que já não me prendia a uma estética, a uma opinião preconcebida, mas a uma obra (Fau, 2006: 148 - Tradução minha)8.
Imagem 2: Antonin Artaud de Monge Massieu no filme de Carl Dreyer
9.
8 Je sais que j´ai gardé de mon travail avec Dreyer des souvenirs inoubliables. J´ai eu affaire à
un homme qui est parvenu à me faire croire à la justesse, à la beauté et à l´intérêt humain de sa conception. Et quelles qu´aient pu être més idées sur le cinéma, sur la poésie, sur la vie, pour une fois je me suis rendu compte que je n´avais plus affaire à une esthétique, à un parti pris, mais à une œuvre (Fau, 2006: 148). 9 (Fau, 2006:148).
31
A abstração do cenário com influência expressionista funcionava no
filme como um espaço vazio pelo seu poder sugestivo de fazer agir a
imaginação do espectador. A propósito desse assunto, Brook afirma que no
teatro pode-se imaginar um ator com roupas normais e com gorro branco de
esquiador representando o papa (Brook, 1999: 23). Em seguida, Brook
conclui a impossibilidade dessa ação no cinema:
No cinema isso seria impossivel. Precisaríamos de uma explicação plausível, como por exemplo, de que a história se passa num manicômio, onde o paciente de gorro branco tem alucinações sobre a igreja, pois do contrário a imagem não teria sentido (Brook, 1999: 23).
O filme dirigido por Brook, Marat/Sade, cuja a ação ocorre em um
manicômio, os personagens se caracterizam metonimicamente, seus figurinos
funcionam como o tal “gorro branco”. Sendo assim Brook em Marat/Sade,
aproxima o filme do teatro, buscando a teatralidade que é produzida pelo
cinema, o qual à sua maneira, leva o espectador a preencher com a
imaginação o espaço vazio. Tal espaço se refere não apenas ao cenário, mas
ao enredo, ao ambiente, às personagens enfim, a tudo que constrói a
encenação do fragmentado texto de Peter Weiss e que chega ao espectador
pelo olhar da câmera.
Embora Brook utilize a palavra “vazio”, e possa se considerar que
nenhum espaço ao ser observado por uma pessoa seja plenamente vazio de
significado, Brook se refere a um espaço vazio que seria um lugar com infinitas
possibilidades de significação: um espaço virtual, pronto para ganhar outro
nivel de significado que não está no concreto mas no imaginário do sujeito que
o observa. Novamente é possivel perceber que grande parte da pesquisa que
Brook expõe sobre o teatro é marcada pela relação entre o ator e o espectador.
1.4 O RELACIONAMENTO ENTRE OS ATORES
A busca pelo diálogo com o público por meio do imaginário se
estabelece como um jogo entre os atores que possibilita o exercício da
32
imaginação. As improvisações são um meio de exercitar o jogo. A constante
necessidade de exercitar essa técnica se relaciona como uma espécie de
musculatura que precisa ser trabalhada cotidianamente para não ser perdida.
Nesse sentido Brook tem um pensamento semelhante ao de Artaud, que
reconhece o ator como um atleta do coração, cuja “musculatura afetiva”
precisa ser exercitada:
É preciso admitir no ator uma espécie de musculatura afetiva que corresponde a localizações físicas dos sentimentos. O ator é como um verdadeiro atleta físico, mas com a ressalva surpreendente de que ao organismo do atleta corresponde um organismo afetivo análogo, e que é paralelo ao outro, que é como o duplo do outro embora não aja no mesmo plano. O ator é como um atleta do coração (Artaud,1993: 129).
Dessa forma, a imaginação, para Brook, como o afeto para Artaud,
seriam muscularmente exercitáveis pelo ator. Brook reconhece a importância
da imaginação no vazio do teatro e, paradoxalmente, observa que “quanto
menos se oferece à imaginação, mais feliz ela fica, porque é como um músculo
que gosta de se exercitar em jogos” (Brook, 1999: 23). Assim, o maior jogo da
imaginação é obter do público a cumplicidade da ação teatral, para que ele
aceite que “uma garrafa se torne a torre de pisa ou um foguete a caminho da
lua. A imaginação, feliz, jogará esta espécie de jogo, desde que o ator não
esteja em parte alguma” (Brook, 1999: 23). Nesse jogo estabelecido pela
imaginação no espaço vazio tudo pode mudar rapidamente a partir da
instauração do verdadeiro relacionamento entre os atores e a plateia. O jogo se
estabelece pelo preenchimento das lacunas oferecidas pelos signos enquanto
objeto ou espaço vazio que se estruturam como uma linguagem no espaço.
A possibilidade de atribuir aos signos outros significados só é possível
com a existência do vazio, que deve estar presente nos atores. Brook afirma
que os atores devem descobrir relações autênticas, únicas, relações
independentes e singulares entre si. Nesse sentido o encenador ressalta que é
interessante “começar o ensaio no clima mais íntimo possível para não dissipar
a energia” (Brook, 1999: 28). Refere-se, então, à necessidade de concentração
para se descobrir, criar e recriar essas relações, sem dissipá-las. Brook
33
acredita que desta maneira, o ensaio será mais proveitoso para a realização do
trabalho.
Segundo Artaud, os signos devem ser construídos no espaço, como
uma espécie de poesia. Estes têm algo de singular e dialogam entre si. No
entanto, Artaud sugere que estes signos tenham uma dupla natureza (Artaud,
1999: 39). O jogo de signos que estruturam a cena, como sugere Artaud, pode
ser relacionado ao que Brook discute sobre o nascer como assumir uma forma,
e toda a forma supõe nascimento e morte. O trabalho no teatro, segundo
Brook, é a busca da forma adequada. Essa busca consiste no investimento
lúdico de energia em busca da forma que preencherá o espaço vazio. Desse
modo a materialização de energia constante de nascimento, morte e
renascimento de forma é o processo de enformar um compromisso que implica
em aceitar o caráter provisório da forma que precisa ser renovada. O
nascimento que é assumir uma forma, na Índia tem o nome de sphota, e,
segundo Brook, sphota expressa o que está manifesto e o que não está.
Existem energias informes e em determinado momento há uma explosão que
corresponde à sphota. É a forma que corresponde à encarnação dessa
energia.
1.5 MISTÉRIO E MOMENTO PRESENTE: O INVISÍVEL
O trabalho com a arte teatral, que é ao mesmo tempo subjetiva e complexa,
existe alguma característica que o profissional usa como certa premissa, e que
deve ser considerado fundamental ao desenvolvimento do trabalho. No caso de
Brook, que é um encenador com um trabalho sólido, ao conceber uma obra,
existe algo que considera essencial para que seja possivel a realização desta.
Para ele, “a essência do teatro reside num mistério chamado momento
presente” (Brook, 1999: 68). É um momento surpreendente, que traz em um
átomo de tempo (Brook, 1999: 69) um universo inteiro contido em sua infinita
pequenez e que, ao seu ver, libera no presente o potencial coletivo de
pensamentos, imagens, sentimentos, mitos, enfim todo um potencial oculto e
denso. Tal liberação proporcionada pelo teatro faz dele próprio uma atividade
potencialmente perigosa (Brook, 1999: 69).
34
Importa o momento que o teatro é capaz de proporcionar: “O aspecto da
realidade que o ator está evocando deve despertar uma reação na mesma área
em cada espectador, fazer com que, por um momento, o público viva uma
impressão coletiva” (Brook, 1999: 70).
Com o foco na realidade do momento presente, Brook observa, por um
lado, que nele se abstrairia a noção de tempo. Por outro lado, considera que
cada momento estaria relacionado ao anterior e ao seguinte numa corrente
incessante e infinita: “Assim, em todo espetáculo teatral, deparamo-nos com
uma lei inevitável: o espetáculo é um fluxo que tem uma curva ascendente e
descendente” (Brook, 1999: 70).
Para o encenador, a aceitação do mistério é fundamental. Por isso o
homem deve manter o sentimento de assombro sem o qual a vida perde o
sentido. Afirma, porém, que o ofício do teatro não pode ser misterioso, há
sempre um degrau a mais para ser escalado, alçando um passo na direção de
seu objetivo. Os degraus da escada encontram-se, segundo ele, nos detalhes
que são percebidos com maior intensidade no espaço vazio (Brook, 1999: 64).
Brook expõe o pensamento de que o mistério que cerca o teatro é a
busca de uma significação para torná-lo significativo para os outros (1999: 49).
Então, essa busca teria como objetivo criar uma identificação, ou envolvimento,
para quem o faz e para quem o assiste, fazendo com que o mistério não seja
uma questão a ser desvendada e sim algo com um movimento constante de
significação e significados. O intuito é gerar formas e significá-las. Segundo o
encenador, tal proceder traria o invisível à tona. E, como a criação do mistério
tem relação estreita com o invisível, afirma que o invisível não precisa ser
manifestado:
O problema é que o invisível não precisa se tornar visível. Embora não tenha que se manifestar, o invisível pode surgir em qualquer lugar, em qualquer tempo, por meio de qualquer um, desde que as condições sejam propícias (Brook, 1999: 50).
Quando Brook afirma que é fundamental haver condições propícias
para que o invisível se manifeste, refere-se a todos os aspectos que
menciona anteriormente para que o teatro aconteça – como, por exemplo, a
35
instauração do espaço vazio junto à relação de cumplicidade estabelecida
entre o espectador e os atores. No entanto, destaca que o estado do ator
deve ser de receptividade, e que este teria relação direta com o sagrado e
com a sphota. Ao afirmar que seriam essas as condições propícias que
possibilitariam a presença do invisível, e ao relacioná-las com o ator,
percebe-se a necessidade de ter esse elenco preparado na perspectiva de
Brook, e em perfeita sintonia, sendo fundamental que todos possuam a
consciência do “momento presente” (Brook, 1999: 50). Esse momento está
relacionado ao fato do ator atingir um estado de consciência presente, sem
divagar, e, assim, alcançar um estado de atenção, prestes a ser preenchido
pela criação. Como o próprio Sotigui Kouyaté, ator africano que trabalhou
durante anos com Brook, comenta em entrevista a Larissa Elias: “[...] estar
presente no que acontece e isso é muito importante para as pessoas, estar
presente na cena, no espaço, não com um conceito, com a presença” (Elias,
2004: 164), considerada como o ato de conseguir vivenciar o que está
acontecendo no momento. No entanto, para os ocidentais, pelo movimento
dispersivo geral e natural da nossa cultura, deve-se exercitar esse estado,
pois por vezes estamos distantes de alcançar tal objetivo: a permanência no
“momento presente”, o exercício da presença.
Ao levar em consideração as condições para que o invisível aconteça
estas – que não seriam iguais sempre – se tornam uma variável que deve
ser de certa forma controlada pelos atores. Eles devem procurar estar em
contato com o seu estado interior, o qual segundo Brook, deve ser de
receptividade. Identificar a diferença entre o que é propício e o que não o é,
se torna uma tarefa complexa e delicada. Por isso, a intuição se mostra na
arte um fator fundamental para o desenvolvimento de qualquer trabalho
artístico, o diretor procura deixar claro em sua prática o significado e a força
do invisível almejado pela encenação, o qual pode aparecer até nos objetos
mais simples:
E através de formas totalmente inesperadas, o invisível pode se manifestar. O invisível pode aparecer nos objetos mais simples como numa garrafa de plástico que pode ser impregnada dele e se transformar magicamente em
36
qualquer outra referência de vida, como um bebê ou um gênio da lâmpada (Brook, 1999: 38).
O começo do trabalho seria o momento de se libertar de tudo que seja
resposta imediata, pois tudo que aparece neste momento não deve ser
colocado no trabalho, as criações que surgem de imediato são as mais
superficiais e óbvias. A respeito dessa afirmação o teórico alemão e crítico de
teatro e cinema C. Bernd Sucher observa: “Para nos libertarmos delas [as
criações imediatas] temos de nos esvaziar. Temos de nos libertar de tudo o
que arrastamos conosco. Temos de nos despejar como se desfaz uma mala”
(Sucher, 1999: 326). Por isso referindo-se ao espetáculo L´Homme qui10
(1993), reflete sobre a intuição, que vive no espaço vazio, como um fator
decisivo para o teatro e para a criação:
Mas não poderia dizer que o nosso ponto de partida é o teatro Bouffes du Nord, embora tenha feito muitos desenhos e esboços muito diferentes, consciente de que teria que desfazer a mala. Trabalharíamos durante três anos neste projecto e interrompêmo-lo por duas vezes. Trabalhamos com muitos, muitos atores e com o Dr. Sacks. A intuição conduz-nos, vive no espaço vazio. A intuição disse-nos: não pode ser assim (Sucher, 1999: 326/327).
Ainda expõe o significado linguístico da palavra intuição em inglês e
em francês e a explicita como algo desprovido de forma: formless. Reforça
com veemência a importância da intuição mesmo antes de começar o
trabalho, sendo radical no sentido de abandono do trabalho caso esta não
exista:
Quando falo de intuição, refiro-me àquilo que, em inglês, se chama the formless haunch. Haunch significa intuição. Em francês diz-se que se trata de um présentiment, um pressentimento. Ainda não é uma ideia, é algo desprovido de forma, formless. Este présentiment é fundamental para
10 Tradução: “O homem que”. O trabalho foi realizado em 1993 e escrito por Peter Brook, Carrière e Oliver Sacks. O último é um neuropsicólogo que tem diversos livros publicados sobre seus casos clínicos em uma linguagem simples, que mesmo o leitor não sendo da área de neurologia ou psicologia, se torna possível de realizar a leitura (Sucher, 1999: 316).
37
mim. Quando ele não surge, está-se perdido. Quando se tem que dirigir uma companhia, precisa-se deste pressentimento. Quando se começa um trabalho teatral, tem que se ter este présentiment, senão não vale a pena começar, pois este sentimento indica o sentido do trabalho, o caminho (Sucher, 1999: 329).
A intuição no teatro constitui para Brook algo tão importante que
participa de escolha ou seleção do texto. A intuição é uma percepção e
nunca uma ideia. É uma matéria viva, sem forma, uma pré-imagem, como
afirma Georges Banu, teórico francês de origem romena, professor da
Universidade da Sorbonne Nouvelle — Paris 3 —, em seu artigo Peter Brook
et la coexistence des contraires:
Assim que decide trabalhar com uma obra, Brook parte de uma percepção e jamais de uma ideia, de uma matéria viva “sem forma” cujo contornos não se podem designar. O seu texto não é mais do que uma “pré-imagem”. Portanto, o caminho a seguir irá da “intuição sem forma” à procura de “uma forma”. Adotando esse trajeto, Brook pretende seguir o mesmo itinerário do autor, que parte de uma “pré-imagem”, mas inspirado no real, para chegar à expressão concentrada que é o texto (Banu, 1985: 49 - tradução minha)11.
O resultado final do processo contém essa intuição transfigurada em
uma forma concreta, sendo o ator o responsável por excuta-la. No entanto,
essa pré-imagem está contida no espetáculo, como um embrião que cresce e
se transforma na imagem final.
1.6 O ATOR PARA BROOK: A IMAGINAÇÃO E A BUSCA
Segundo Peter Brook o ator dispõe de dois métodos para tocar o
espectador em seu próprio mundo. O primeiro deles consiste na busca da
11 “Lorsquíl opte pour une ouvre, Brook part part d’une perception et jamais d´une idée, d’une matière vivante “sans forme” dont on ne peut désigner les contours. Il n’a du texte qu’une ‘pré-image’. Le chemin à suivre sera donc de ‘l’intuition sans forme’ à la recherche ‘d´une forme’. En adoptant ce trajet, Brook veut épouser le même itinéraire que l’auteur, lui aussi parti d’une “pré-image”, mais inspiré par le réel, pour arriver à cette expression concentrée qui est le texte” (Banu, 1985: 49).
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beleza: a seu ver, grande parte do teatro oriental baseia-se nesse princípio e
mantém uma forte relação com o sagrado. Para fascinar a imaginação
procura-se extrair o máximo de beleza de cada elemento. É como se por
meio da pureza de detalhes se tentasse atingir o sagrado (Brook, 1999: 28).
O segundo método para o ator tocar o mundo interno do espectador é a
sua capacidade de criar vínculos entre a imaginação e o público, a sua
capacidade de transformar um objeto banal num objeto mágico. Não apenas o
espaço vazio se transforma com a imaginação, mas também o objeto pode ser
transformado pelo poder da imaginação do ator de criar um vínculo entre ele e
o público. Brook chama esse objeto de “objeto vazio”, do qual se torna pleno de
sentido e significados:
Uma grande atriz pode fazer-nos acreditar que uma horrenda garrafa de plástico, que ela carrega nos braços de um jeito especial, é uma linda criança. [...] Esta alquimia só é possível se o objeto for tão neutro e comum que possa refletir a imagem que o ator lhe atribui. Poderíamos chamá-lo de “objeto vazio” (Brook, 1999: 38).
O ator, para Brook, deve se manter em uma relação constante com o
todo. Para isso é necessário que também esteja vazio. E, para exemplificar o
significado de um ator vazio, Elias afirma:
Um ator verdadeiramente criativo é sempre um espaço vazio. É um ator que se arrisca a abandonar as formas encontradas e fixadas, do primeiro ao último ensaio, ou durante a temporada: que é capaz de abrir mão de um gesto, de uma marca, de uma fala, de uma conquista e recomeçar. O ator vazio é um ator aberto às novas descobertas, às novas formas, um ator capaz de ser no tempo, um ator que entende que uma repetição pode ser sempre diferente, se ele estiver disposto a se recolocar (Elias, 2004: 145).
Um dos poucos atores que acompanharam Brook em diversos
momentos de sua carreira, participando de suas montagens, foi Sotigui. Na
entrevista a Elias, o ator comenta essa necessidade do ator estar vazio no
teatro de Peter Brook:
39
Mas um ator, no vazio, o ator que entra no espaço vazio, o ator não tá vazio, não é o vento, é o ator, que não está vazio, é o ator em si, não com pensamentos, um ator que chega com a cabeça cheia de coisas, é um peso, pra mim é um peso que entra em cena, não é um ator que chega vazio, esse é o meu entendimento desse pensamento, o ator deve entrar vazio no espaço vazio para preenchê-lo, mas você não vem já pesado com vários pensamentos, com seus maneirismos... eu posso te dar uma resposta, quando eu dizia que um vazio não é jamais vazio. Naquele momento, ele quis que o ator se desembaraçasse de tudo, de todos os parasitas, ser vazio, sem pensamentos psicológicos, ter um corpo leve, vazio pra ele é isso, ele pede sempre aos atores fazer vazio. É o ator vazio, desembaraçado de tudo, num espaço vazio, sem estar decorado, isso a grosso modo (sic) (Elias, 2004: 163).
Brook acredita que o ator consegue fazer com que uma expressão
íntima cresça e preencha o espaço amplo sem perder a relação de
intimidade com o espectador. O ator deve ser ao mesmo tempo personagem
e contador de histórias. Enquanto os atores interpretam uma relação íntima
entre si, estão falando diretamente aos espectadores. O encenador estudado
parece se deter com atenção na busca do relacionamento entre os atores.
Sugere que os atores devem descobrir relações diferentes e únicas com o
todo. Assim, o ator é obrigado a lutar para manter uma tríplice relação:
consigo próprio, com outros atores e com a plateia. Esta é a dificuldade da
arte do teatro: exigir ao mesmo tempo um vínculo do ator com o seu interior,
com os parceiros de cena e com o público. A diferença entre a vida diária e o
teatro se dá por meio da intensificação de energia que ocorre em cena pela
compressão do tempo e do espaço. O que prende a atenção são as tensões
subjacentes causadas pela interação entre um ator e o todo que está em
volta dele. Exercitar essa capacidade de interação corresponde ao exercício
de instauração do vazio e do aprofundamento do diálogo do ator consigo
mesmo e com o outro, que pode ser o ator com quem ele se relaciona em
cena ou o público do espetáculo.
40
1.7 ASPECTOS DOS CENÁRIOS NAS MONTAGENS DIRIGIDAS
POR PETER BROOK
Larissa Elias, em seu artigo O tapete na poética de Peter Brook: suporte
material do conceito de espaço vazio, afirma que a ideia de espaço vazio surge
em Brook a partir de 1962 e vai repercutir diretamente na sua concepção
cenográfica até chegar à funcionalidade do tapete em 1972:
A partir da montagem de Rei Lear, em 1962, os espetáculos de Peter Brook passam a ser atravessados pela noção de espaço vazio, e, desde 1972, quando Brook faz sua primeira turnê à África, com seu grupo internacional, o tapete passa a ser a forma material mais evidente do conceito de espaço vazio – empty space, que se torna um conceito fundante do teatro brookiano. 1968 é o ano em que se inicia claramente sua formulação cênica (Elias, 2008: 01).
Os cenários dos espetáculos então dirigidos por Brook eram
desenvolvidos paulatinamente. Ele buscava um cenário totalmente livre, sem
muitos objetos, que possibilitasse grande interação e movimentação dos
atores. Os cenários deviam ajudar na construção do trabalho, evitando entrar
em discordância não somente com a montagem em si, mas também com
aquilo em que acreditava no tocante à questão do espaço e sobre a qual
discutia. Ao observar seus trabalhos de 1962 a 1972, nos quais já constava a
noção de espaço vazio – período que antecede sua viagem à África e ainda
não ocupava o Théâtre Bouffes du Nord, em Paris – seus cenários tinham
perspectivas distintas das montagens realizadas após as experiências com os
carpet shows. Contudo, havia ainda grande semelhança de pensamento
relativamente aos dois momentos.
No primeiro, mesmo já com início na pesquisa sobre o espaço vazio, os
espetáculos eram preenchidos com mais cenários, adereços e detalhes. No
entanto, no segundo, investigando a fundo a questão do espaço vazio,
exacerbou seus limites, e seus cenários passaram a ter menos objetos e
adereços do que os anteriores. Então, a partir de 1972, quando fez sua
primeira turnê na África, objetivamente na Argélia, realizou trabalhos cujo o
foco era a exploração do espaço e improvisações realizadas em cima de
41
tapetes. Esse espaço delimitava a área da encenação. Comentando a força do
tapete para as improvisações, Elias observa que “O tapete não é cenário, mas
o próprio espaço teatral, vazio, pois sobre o tapete não há nada. Esse é o
ponto de partida das improvisações” (2004: 127). É importante lembrar que a
improvisação sempre esteve presente na pesquisa de Brook com o CICT. Sua
investigação sobre o espaço vazio constituía a base de seus trabalhos, como
Elias complementa:
Brook estava convencido de que uma peça de caráter improvisacional devia ser levada aonde as pessoas vivem, pois apresentá-la em qualquer lugar era submetê-la ao vazio deste lugar, isto é, ao fator inesperado que este novo lugar poderia proporcionar (2004: 35).
Em ambos os momentos – de 1962 a 1972 e a partir de 1972 – Brook
buscou uma proximidade maior com o público para que este se concentrasse
ao máximo, pudesse perceber os detalhes e, com a imaginação, preenchesse
todos os espaços vazios. Sobre a importância do tapete do empty space Elias
assim discorre em seu artigo:
O tapete, na poética de Brook, formaliza um conceito de ruptura, empty space, que quebra com uma conceituação do teatro como arte definida pela cenografia. [...] É um elemento estrutural, de repetição já definido no teatro de Peter Brook, onde a imagem teatral se faz no desaparecimento do próprio teatro ou na sobrevivência dos seus vestígios (Elias, 2008: 03).
Brook também é estudado no âmbito da cenografia, pois seu trabalho
sobre o espaço tem ligação direta com a construção da cenografia ou com a
maneira de pensá-la. O fato de ocupar um teatro que, por opção, quis que
detivesse a aparência de uma constante reforma, ou melhor, de ruína, fez com
que suas possibilidades de manipulação e adaptação ao espaço se
ampliassem e mantivessem para cada espetáculo uma forma de
aproveitamento diferente. Sobre o tema, Nelson José Urssi, mestre pela USP
(Universidade de São Paulo), afirma em sua dissertação A linguagem
cenográfica que o cenário deixa de ser visto como construção física, passando
a ser concebido como um espaço do ator:
42
Como em seu Théâtre Bouffes du Nord, o espaço arquitetônico deixa de ser construção física tornando-se o espaço do ator, da ação. Peter Brook afirma que o cenógrafo tem papel fundamental em criar o teatro contemporâneo e define a cenografia como um diálogo completo de um espetáculo ao vivo – teatro ou performance – ou mediado com a tecnologia – película, vídeo ou o computador (Urssi, 2006: 67).
Reivindicando sua concepção de espaço vazio, Brook passa a não se
utilizar de grandes cenários. No entanto, é possível perceber a utilização de
vários objetos para a composição do espaço em suas peças. Todos os
objetos em cena são manipulados pelos atores, nada se encontra em cena
apenas por uma opção estética. Elias comenta o fato se referindo à
montagem do espetáculo Marat/Sade, chamando a atenção para o aspecto
de convenção que se estabelece a partir do jogo com o imaginário criado
pelo objeto:
Já nesta montagem está colocada a questão da eficiência do espaço vazio. Se ele não for suficiente, pode-se lançar mão de objetos, que sejam indispensáveis. Tratam-se (sic) de objetos vazios – termo que aparecerá mais tarde –, ou seja, objetos com os quais se estabelece o jogo da convenção. Esse jogo se estabelece não somente por meio desses objetos vazios, mas também através de sons, e do corpo dos atores (Elias, 2004: 102).
O estabelecimento desse jogo de convenções será fundamental para
o preenchimento do vazio pela imaginação. É de ressaltar não apenas a
disposição do cenário, ou do próprio objeto a ser utilizado, como também é
fundamental a maneira de os atores se relacionarem com essas convenções.
Assim, o ator de Brook assume a responsabilidade pelo que será feito, e
poderá ampliar ou reduzir o vínculo com o espectador, dependendo de sua
possibilidade de concentração.
43
1.8 A MÚSICA NOS ESPETÁCULOS DE PETER BROOK
A música é um elemento capital na construção de um espetáculo, em
sua opinião. O profissional que produz a música para a montagem deve estar
integrado ao grupo e compor o repertório do espetáculo à medida que o
trabalho se desenvolve. Não deve existir distância entre o trabalho sonoro e
o de cena, pois um está dentro do outro: são uma coisa só. Brook dedica
grande atenção ao som e à música e afirma que a energia da música tem
que ser a mesma do espetáculo (Brook, 1999: 26).
Em artigo publicado pela Associação Brasileira de Artes Cênicas
(ABRACE), intitulado Peter Brook e o CIRT: os anos de ruptura, Matteo Bonfitto
comenta a montagem de Orghast, realizada em 1971 pelo grupo dirigido por
Brook. Trata-se de um trabalho experimental inspirado no mito de Prometeu, o
semideus que roubou o fogo pertencente tão só aos deuses e o trouxe do
Olimpo para os homens e por isso foi punido. Escrito por Peter Brook e Ted
Hughes, o texto contém partes em uma língua inventada, que revelava o
interesse por experimentar diferentes possibilidades de som para a cena e não
somente uma busca pela música em si, mas por distintos recursos sonoros,
como aqueles advindos de uma possível língua inexistente. Bonfitto relaciona a
busca pela exploração da música e do mito de Prometeu, comparando algo
que teriam em comum, isto é, o fato de que o mito e a música teriam a
possibilidade de comunicar, antes de haver o entendimento intelectual:
Tal correlação entre música e mito funcionou durante o processo criativo de Orghast como uma metáfora pragmática; ela se tornou um objetivo que os atores deveriam buscar praticamente através de diferentes atividades. Esse objetivo foi enfatizado, por sua vez, por outra característica comum entre música e mito, percebida por ambos, Levi-Strauss e Brook: mito e música são linguagens que podem comunicar antes do entendimento intelectual. (Bonfitto, 2008: 03; 04).
A música é predominante em diferentes contextos sociais, tanto no
Oriente quanto no Ocidente, e apresenta fundamental importância nos rituais. A
respeito do valor da música relacionada aos rituais, assim se manifesta
44
Morgana Martins, Mestre e compositora de repertório sonoro para teatro, em
sua dissertação intitulada O som ouvido, visto e sentido:
A música está presente em representações sagradas, em rituais; a música é adorada, é vivida, é sentida. A música se permite transitar por entre espaços, frestas, tomar conta de todo um ambiente e, ainda assim, atravessa a quem se coloca diante dela. É o membro virtuoso do quarteto que compõe o elemento sonoro – som, silêncio, música e ruído – que permeiam e predominam no mundo sonoro baseado entre barulho e silêncio. (Martins, 2011: 29)
Sendo estas as quatro formas de se classificar o elemento sonoro (som,
silêncio, música e ruído), a montagem Orghast de Brook oferece atenção a
todas. Construída a partir de improvisações, a peça foi desenvolvida por
completo em cima do espaço da encenação, o tapete. Os atores foram
instigados a explorar o som no espaço de um modo que não remetesse à fala
propriamente dita; os sons surgiram de acordo com o avanço do trabalho. No
entanto, existiu uma espécie de direção para onde deveriam convergir a
exploração sonora. Sobre a forma como se utilizava a voz dos atores e sobre o
tipo de sons que pretendia Brook com esse recurso, expõe Gonçalves:
A utilização por Brook da língua inventada Orghast, exigia que o espectador escutasse a obra com o mesmo tipo de atenção com que se escuta música. No Irã, os exercícios criados para se aproximar desse novo universo textual seguiam a mesma linha de trabalho desenvolvida em Paris, baseados no estudo de elementos como: o silêncio, o som, a sílaba e a palavra. Os sons do idioma Orghast - sua cadência, tom e textura - emitidos ao ar livre nas montanhas iranianas, tinha um caráter viril e austero. O grupo de atores produzia uma polifonia de sons e palavras que sublinhava suas características internacionais. As palavras de Orghast possuíam sons duros como o or, gr, e tr, e o suave sh e também as cinco vogais que se misturavam e fundiam numa mesma frase para transportar o ouvinte para os mundos oriental, africano, semítico, grego e persa (Gonçalves, 2011: 97).
45
Pelo seu poder de comunicação, que antecede a compreensão fornecida
pela razão, os experimentos com música sempre estiveram presentes no
trabalho de Brook, que também realizou montagens de óperas, como Carmen,
que aconteceu em 1981. Durante o processo foram utilizados três elencos
distintos para a realização do trabalho, e a base para preparar o elenco foi
composta por improvisações e jogos de ação e reação, realizados sempre em
círculo. O diretor acreditava na importância de o grupo estar integrado. Por
isso, os músicos e o elenco de atores e cantores vivenciaram o mesmo
aquecimento e a mesma preparação durante todo o processo. No artigo
Journal de répétitions de “la Tragedie de Carmen”, encontrado em Les voies de
la création théâtrale (Os caminhos da criação teatral ), Michel Rostain, um dos
atores que participou da montagem da ópera Carmen dirigida por Brook,
descreveu alguns ensaios. Suas anotações ajudam a entender um pouco da
dinâmica realizada com o grupo para a montagem. Observou ele que o
processo se iniciava com uma necessidade de Brook romper com a maneira
como os integrantes imaginavam a atuação numa ópera. Para ele, era
fundamental uma nova perspectiva, uma nova forma de olhar para aquela obra,
sem que fosse cristalizada em um formato antigo, em uma ideia de ópera que a
seu ver já estava ultrapassada.
O relato de Rostain ajuda a compreender, e de certa forma, a vivenciar
aquele momento por meio do diário do ator que faz também o leitor entender
questões fundamentais para o processo. Seu relato parte do primeiro ensaio do
grupo, no dia primeiro de setembro de 1981. Já nesse dia Brook reuniu todos
membros da equipe que participariam da dinâmica desenvolvida. Presentes no
processo desde o primeiro encontro da montagem, os músicos também
participaram de forma prática dessa parte do processo. O trabalho de
aquecimento foi conduzido por Maurice (outro ator do grupo) e foi
implementada é feita uma dinâmica de ritmo, corpo e voz. O trabalho sempre
se iniciava com um círculo, o que de maneira geral parece permanecer em
todos os trabalhos de Brook. No interior dessa disposição circular, eram feitos
alguns jogos com o objetivo de desenvolver o grupo para o trabalho que seria
realizado no segunda parte do ensaio. Brook enfatizou no primeiro ensaio a
necessidade de se alcançar a essência do personagem, e, sempre conforme
Rostain, Brook disse que alguns diretores se pautaram na tradição, e que
46
Carmen é um símbolo de alguém que quebra com essa tradição, ao levar seu
amante para dentro do grupo cigano. O diretor reforçou a precisão de romper
com estéticas e pensamentos já enraizados sobre a ópera ao pedir que os
atores modificassem o que estava cristalizado na ópera para eles, e para
entrarem em contato com o eu rural de cada um (Rostain, 1985: 191).
A direção de óperas na vida de Brook parece permanecer até os
tempos atuais como, por exemplo, quando montou Uma flauta mágica (Une
flûte enchantée, 2010), adaptado da ópera de Mozart por ele, Franck
Krawczyk e Marie-Hélène Estienne. A ópera veio para o Brasil em 2011 e se
apresentou em algumas capitais: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte
e Porto Alegre. Tive a oportunidade de vê-la duas vezes em Porto Alegre.
O cenário da montagem era basicamente composto por varas de bambu
com a altura em torno de quatro metros aproximadamente. Essas varas
repousavam em uma base de ferro, em torno de 10cm², e isso ampliava as
possibilidades do objeto, pois tal base permitia que as varas ficassem em pé,
como podemos ver na foto abaixo que mostra um momento em que os bambus
construíam ou representavam uma floresta inteira:
Imagem 3: Uma Flauta Mágica12
12
Foto retirada do site www.satisfeitayolanda.com.br – acesso 18 mar. 2012.
47
Era possível então perceber nos atores uma habilidade para a
manipulação do objeto que, aliada à imaginação do público, fazia com que os
espectadores pudessem ver e entender o que lhes era proposto. Os
movimentos eram claros, limpos e precisos, e assim o espectador era
facilmente conduzido pelos atores. Os bambus manipulados podiam mudar de
significado de uma cena para outra. Em uma cena, por exemplo,
representavam um buraco na terra, em outra uma grande floresta, ou em outra
eram a ira da Rainha da noite. Na foto abaixo se pode ver com maior clareza
os atores manipulando os bambus e criando formas com eles, a Princesa e
Papagueno cavando um buraco e passando debaixo da terra. Os bambus
representam a terra sobre eles e em frente a eles:
Imagem 4: Uma Flauta Mágica II13
.
Nessa montagem, Brook optou por apenas um músico, ao invés de
uma orquestra. Ele se localizava na lateral direita do palco e era responsável
por todas as músicas do espetáculo. No entanto, o elenco inteiro se
alternava de uma apresentação para outra e o músico também alternava
com outro músico. Pude ver o espetáculo com dois elencos diferentes, que
se relacionavam com o público de uma forma intensa. Brook montou um
13
Foto retirada do site www.jb.com.br – acesso 18 mar. 2012.
48
espetáculo com a duração de quatro horas, mas trouxe para o Brasil uma
versão reduzida de apenas uma hora e meia. Contudo, teve que adaptar a
sua própria montagem, no entanto, era possível acompanhar toda a história,
sem que isto atrapalhasse a compreensão do enredo. Mesmo em uma
montagem de uma ópera ele rompe padrões e mantém sua coerência de
pensamento, entre o que põe em prática e o que acredita ser o teatro. Nessa
obra, é pertinente a proposta de transformar espaços e objetos vazios em
espaços e objetos repletos de significados. Por meio dessa prática se
estabelece a cumplicidade entre espaço e objeto vazio junto à imaginação
criada na relação entre os atores e o público, existente no teatro de Brook.
49
CAPÍTULO II: MARAT/SADE DE PETER BROOK – UMA LEITURA DA
TEATRALIDADE NO CINEMA COM INFLUÊNCIA(S) DE BRECHT E
ARTAUD
É necessário que tudo aconteça numa grande claridade [...] que tudo seja contrário à imagem de uma noite. Esta peça é uma celebração à criação no teatro.14
2.1 A TEATRALIDADE CINEMATOGRÁFICA EM MARAT/SADE DE
PETER BROOK
Anatol Rosenfeld, teórico de teatro, observa no seu livro Teatro moderno
(1985), quanto é teatral o texto Marat/Sade de Peter Weiss. A montagem já
traria em si uma consistente proposta de encenação, tão minuciosamente
elaborada que ele a associa a uma atitude barroca:
A música, a cenografia e a pantomima fazem parte integral da obra. Trata-se de “teatro teatral”, “teatro desenfreado” no sentido mais genuíno. Ocorre a lembrança do teatro barroco. Mas precisamente por isso a peça se filia a vigorosas tendências contemporâneas da cena brechtiana e claudeliana, principalmente ao antiilusionismo de um teatro que, na sua acentuação do elemento teatral, não visa à verossimilhança realista (Rosenfeld, 1985: 235).
Portanto, como afirma o teórico, a teatralidade está presente de maneira
vigorosa no texto de Weiss. Assim, essa característica ajuda a reforçar a
presença do elemento teatral na encenação de Marat/Sade de Peter Brook. A
esse propósito, o teórico francês Patrice Pavis ressalta em sua obra A Análise
dos espetáculos que os recursos fílmicos fortalecem a sua presença:
Todos esses procedimentos fílmicos – escala dos planos, cortes, defasagens – inscrevem o profílmico teatral (ou o que resta dele) em um discurso de forte identidade fílmica, que não dá nunca a impressão de teatro filmado.
14
Peter Brook em entrevista com Denis Bablet, junho de 1972 (Rostain, 1985).
50
[...] Nesse Marat-Sade, todos os procedimentos fílmicos estão a serviço da teatralidade (2003: 104).
É perceptível a preocupação de Brook na transposição da peça para a
linguagem do cinema. No entanto, sabemos que se trata de teatro, inclusive
quando nos deixamos conduzir pelos acontecimentos, pois eles são sempre
interrompidos, fragmentados e logo um instrumento toca, ou um grito ecoa, ou
até mesmo “o público” é mostrado, rompendo o fluxo dos acontecimentos. Por
essa linguagem fragmentada, Brook mostra quanto é teatral o seu filme.
Pavis chama a atenção para esse aspecto presente na obra fílmica:
“Disso resulta um reforço da teatralidade no filme: permanecemos sempre
conscientes que se trata de teatro, que tanto o cenário como os protagonistas
são ‘falsos’, ou seja, são objetos estéticos e não uma fotografia da realidade”
(2003: 108).
Em seu livro Dicionário de teatro, Pavis declara que a teatralidade “seria
aquilo que na representação ou no texto dramático é especificamente teatral
(ou cênico) no sentido que o entende, por exemplo, Antonin Artaud quando
constata o recalcamento da teatralidade no teatro europeu tradicional” (1999:
372). Por um lado, o autor faz referência à condenação de Artaud ao teatro
europeu por ter aberto mão daquilo que é essencialmente teatral, isto é, por ter
aberto mão de tudo que não está contido no diálogo, mas está contido no
espaço. De fato, para este, “o teatro é a encenação, muito mais do que a peça
escrita e falada” (Artaud, 1999: 40). Percebe-se aqui a valorização artaudiana
do espaço em detrimento da especificidade do texto. Ele sublinha: “Digo que a
cena é um lugar físico e concreto que pede para ser preenchido e que se faça
com que ela fale a sua linguagem concreta” (1993: 31).
Por outro lado, para Pavis a teatralidade se relaciona com o que o
dramaturgo francês Arthur Adamov15 (1908 – 1970) chama de representação,
isto é, “A projeção no mundo sensível dos estados e imagens que constituem
15
Arthur Adamov é um dos quatro autores reconhecidos por Martin Esslin como fundadores do teatro do absurdo: “Adamov, que é não apenas um notável autor dramático, mas também um notável pensador, nos proporciona um diagnóstico bem documentado das preocupações e obsessões que o levaram a escrever peças que pintam um mundo de insensatez e pesadelo, das considerações teóricas que o levaram a formular uma estética do absurdo, e, finalmente, do processo pelo qual ele, aos poucos, voltou a um teatro baseado na realidade, na representação de condições sociais, e com um objetivo social definido (Esslin, 1968: 79).
51
suas molas ocultas (...) a manifestação do conteúdo oculto, latente, que açoita
os germes do drama” (Adamov apud Pavis, 1999: 372).
Assim, tanto a linguagem concreta do espaço, reivindicada por Artaud,
quanto a projeção no mundo sensível de manifestações ocultas, afirmada por
Adamov, remetem à origem grega da palavra teatro. Com efeito, o “theatron”
revela uma propriedade fundamental ao teatro, “é o local de onde o público
olha uma ação que lhe é apresentada num outro lugar” (Pavis, 1999: 372).
Consequentemente, Pavis afirma que “O teatro é mesmo, na verdade, um
ponto de vista sobre um acontecimento: um olhar, um ângulo de visão e raios
óticos o constituem” (1999: 372). Nesse sentido, reconhece que o olhar do
espectador pode incidir sobre a ilusão total que o envolve ou sobre nenhuma
ilusão, ao lembrar a todo instante ao observador que ele se encontra no teatro.
Por fim, conclui dizendo que: “Tão-somente pelo deslocamento da relação
entre olhar e objeto olhado é que ocorre a construção onde tem lugar a
representação” (Pavis, 1999: 372).
Já para a professora e pesquisadora teatral franco-canadense Josette
Féral o conceito de teatralidade envolve não apenas o teatro, mas uma série de
outras áreas do conhecimento e da vida. Dessa forma, Féral admite que a
teatralidade pode ser encontrada em setores artísticos e não artísticos: nos
rituais, carnavais, cerimônias religiosas, celebrações cívicas, coroações,
desfiles de moda, esportes, religião, etc. Por outro lado, em consonância com a
linha do pensamento de Pavis, que valoriza a relação entre o olhar e o objeto
olhado, Féral afirma que a teatralidade é um fenômeno da recepção e diz
respeito aos olhos de quem vê:
A teatralidade remete ao fenômeno da recepção vivido por um sujeito que vê algo; nesse sentido, a teatralidade desconstrói, decodifica e constrói um objeto que o sujeito olha. Sempre há alguém a quem se dirige uma mensagem e que a recebe, a decodifica, a constrói (Féral, 2003: 16 – tradução minha)16.
A teatralidade é, portanto, aí concebida como um fenômeno de recepção
e diz respeito ao olhar do sujeito que a decodifica. Vista por esse ângulo, na
16 “La teatralidad remite al fenómeno de recepción vivido por un sujeto que ve algo, en ese sentido la teatralidad desconstruye, decodifica y construye un objeto que el sujeto mira. Siempre hay alguien a quien se dirige un mensaje y que lo recibe, lo decodifica, lo construye”.
52
filmografia de Brook a teatralidade surge a partir do olhar da câmera que se
confunde com o olhar do espectador e vai ser decodificada por ele, espectador,
como sujeito que constrói uma realidade por ele observada — como, por
exemplo, nos momentos em que é mostrado o palco por inteiro, separado da
plateia dos atores por grades.
Tal pensamento/prática está presente em Brook, que reafirma em seu
livro A porta aberta o que declarara anteriormente, em O teatro e seu espaço:
“Posso escolher qualquer espaço vazio e considerá-lo um palco nu. Um
homem atravessa este espaço vazio enquanto outro o observa, isso é
suficiente para criar uma ação cênica” (1999: 04).
Como vimos, a teatralidade repousa na relação que ocorre entre o
sujeito que observa e o sujeito que é observado. No cinema de Brook, ou mais
especificamente em Marat/Sade, a câmera conduz a ação, fazendo o papel do
observador/espectador que vê as imagens que são apresentadas. Logo no
início essas imagens advertem que o espectador está diante de uma
representação, pois ele é conduzido pelo palco do teatro onde a peça dos
internos irá acontecer. Dentro de sua ficção este espetáculo é dirigido pelo
marquês de Sade, e isso é informado aos espectadores bem no começo. No
entanto, como a câmera nos conduz a entrar ao espaço da encenação por
onde os internos entram em fila, temos a impressão de que somos mais um
dos internos, como pode ser visto na imagem abaixo:
Imagem 5: Marat/Sade: começo da peça17
.
17 Todas as imagens referentes ao filme Marat/Sade, foram produzidas por mim e pela jornalista
Cláudia Mussi, retiradas da obra por meio de um software que captura imagens diretamente do
filme rodado pelo programa do computador.
53
A relação com o teatro é anunciada pelo texto e pelas imagens que o
explicitam no sentido de reafirmar o caráter teatral do filme. Brook reafirma
essa teatralidade ao mostrar a encenação dos internos do ponto de vista do
espectador. A plateia localiza-se diante da sala de banhos do manicômio de
Charenton, em Paris, o que faz com que o espectador reconheça que o que
assiste é teatro visto pela última fileira de espectadores. A professora doutora
da UFRJ Gabriela Monteiro, em seu artigo publicado na revista O Percevejo,
vol. 02, comenta o tema:
Há um plano geral da cena que representa o olhar do espectador da última fileira do teatro. Esta tomada de câmera é repetida diversas vezes ao longo do filme, a fim de sublinhar a existência do público como uma marca de teatralidade, aproximando as linguagens cênica e cinematográfica (Monteiro, 2004: 10).
O fato pode ser visto na foto abaixo, em que há uma plateia que ilustra
o momento no qual o olhar da câmera/observador é aquele que assiste à
representação dos internos, enfatizando a teatralidade do filme. O espectador
do filme é relembrado em vários momentos que está assistindo a uma peça,
como pode ser visto na foto abaixo:
Imagem 6: Marat/Sade: público.
54
Nesse momento da obra podemos observar a presença de três grupos
de plateia que assistem a encenação. O primeiro é composto pelos
personagens, Colmier (diretor do hospício), sua mulher e sua filha, que estão
sobre o palco, dentro do Hospício de Charenton, e assistem ao espetáculo pelo
seu próprio olhar. O segundo grupo que assiste ao espetáculo está localizado
em frente ao palco, separado dos internos por uma grade. O terceiro é
composto pelo espectador que assiste ao filme por meio do olhar da câmera.
Nos três casos, todos os sujeitos observadores sabem que estão diante de
uma peça de teatro. A teatralidade de Brook evidencia que a encenação é a
representação de uma peça teatral. As imagens exprimem em sua totalidade
que tudo, ali, é teatro.
O trabalho dos atores de Brook é multiplicado pelo próprio texto, que se
serve do fenômeno teatral para articular a sua estrutura dramatúrgica. Por sua
vez, o sujeito sabe que se trata de teatro, que aquilo a que assiste é uma peça
e, desse modo, referencia com maior rigor a presença da teatralidade, pois,
como afirma Féral em palestra registrada no livro Acerca de la teatralidad:
“Podem me dizer se encontraram teatralidade no filme e quais são os
elementos da teatralidade que observaram, onde são postos e onde veem que
existem. A teatralidade é justamente ver o que seus olhos viram como
teatralidade na obra” (Féral, 2003: 18 - tradução minha)18.
Portanto, a teatralidade está nos olhos de quem vê e a imagem vista
pelo sujeito trata do teatro sobre o teatro, pois, como foi observado
anteriormente, há uma superposição do teatro no texto de Weiss, a qual
permanece e se desdobra no filme de Brook. Nessa linguagem, o texto, os
diálogos, os sons, os atores, a música, os figurinos, os adereços — em suma,
tudo que a identifica se articula numa cadeia de signos, construindo uma
encenação no espaço, cuja teatralidade é instaurada pelo olhar cúmplice da
câmera com a imaginação do espectador. Nesse sentido, a câmera de Brook
conduz com firmeza toda a ação; ela se confunde, intencionalmente, com o
olho do espectador. Dessa forma, a câmera coloca o espectador diante de uma
18
Referindo-se ao filme O Baile, de Ettore Scola, dirigido no teatro por Jean-Claude Penchenat, 1982: “Me pueden decir si encontraron teatralidad en el film y cuáles son los elementos de teatralidad que observaron, dónde los ponen o donde ven que los hay. Justamente, es ver lo que sus ojos vieron como teatralidad en la obra”.
55
encenação que é construída por ela e desconstruída por ele respectivamente,
como um jogo de signos.
Citando o encenador inglês Gordon Craig, Pavis concorda que “uma
obra de arte não pode ser criada, se não for dirigida por um pensamento único
(Craig apud Pavis, 1999: 123)”. E assegura que “a encenação proclama a
subordinação de cada arte ou simplesmente de cada signo a um todo
harmonicamente controlado por um pensamento unificador” (Pavis, 1999: 123).
Por sua vez, a encenação numa peça de teatro, segundo Artaud, é “a parte
verdadeira e especificamente teatral do espetáculo” (Artaud, 1999: 125).
Completando essa ideia, Pavis vai definir a encenação como a transposição da
escrita dramática do texto. Para esclarecer esse pensamento, Pavis recorre
também ao encenador suíço Adolphe Appia: “a arte da encenação é a arte de
projetar no espaço aquilo que o dramaturgo só pode projetar no tempo” (Appia
apud Pavis, 1999: 123). Assim, ocorre com a encenação presente no filme e
com a teatralidade reduplicada em imagens para o espectador, as quais
contam, ambas, o assassinato de Jean-Paul Marat. Elas desenvolvem-se com
densidade, o que para Brook é fundamental ao teatro.
De fato, a densidade presente em um texto é objeto de pesquisa do
grupo experimental no teatro shakespeariano Lamda (London Amateur
Dramatic Association – todos os atores também eram integrantes da Royal
Shakespeare Company) que tem por objeto a compreensão da sua origem,
como o próprio Brook esclarece, citado no artigo do estudioso de cinema
Oliver-René Veillon:
A base de nossa pesquisa como grupo experimental dentro do teatro shakespeariano era compreender diretamente o que era a densidade ou, pode-se dizer, a simultaneidade dos níveis, a qual permitia a existência, em uma peça de Shakespeare, de um mundo muito rico, e, no mesmo momento, que, por outros meios, [houvesse] um mundo muito pobre [...] Tentamos entender qual era a natureza daquele tipo de trabalho, daquela tapeçaria, como os fios racionalistas e os fios emocionais misturam-se no teatro, em um mundo em que o destino individual, a política e a metafísica não estavam separados (Brook apud Veillon, 1985: 312 – tradução minha)19.
19
“La base de notre recherche de groupe expérimental à l’intérieur du théâtre shakespearien était de comprendre directement ce qu’était la densité ou, on peut dire, la simultanéité des
56
Brook valoriza a densidade de um texto como grande questão do teatro
contemporâneo, cuja existência estabelece a diferença entre uma boa peça e
uma peça medíocre:
Qual a diferença entre uma peça medíocre e uma boa peça? Acho que existe um modo muito simples de compará-las. O espetáculo teatral é uma sequência de impressões: pequenos golpes, um após outro, fragmentos de informação ou de sensações numa progressão que estimula a percepção da plateia. Uma boa peça emite muitas dessas mensagens, geralmente várias ao mesmo tempo, aglomeradas, conflitantes, sobrepondo-se umas às outras. Tudo isso excita a inteligência, os sentimentos, a memória, a imaginação. Numa peça medíocre, as impressões são muito espaçadas, sucedem-se em fila única, e nas lacunas o coração pode tirar um cochilo, enquanto a mente vagueia entre as preocupações do dia e as perspectivas do jantar. Este é o maior problema do teatro contemporâneo: como criar peças mais densas? (Brook, 1995: 72)
E assim, em 1964, na busca pela densidade de um texto
contemporâneo, Brook se depara com Marat/Sade de Peter Weiss, um texto
em que existem sequências de impressões, informações abundantes,
possibilidades de promover diferentes sensações aglomeradas e conflitantes.
Um texto que, nesse sentido, sugere a sua densidade a partir do próprio título,
que reúne a história e a ficção, isto é, o teatro do manicômio representando o
teatro da revolução burguesa em um jogo dramatúrgico que envolve o teatro
dentro do teatro. A superposição da representação sobre a representação que
estrutura o texto e o espetáculo pode ser identificado no título, o qual
reconhece o caráter de representação que estrutura o texto: A perseguição e
assassinato de Jean-Paul Marat representados pelo grupo teatral do Hospício
de Charenton sob a direção do senhor de Sade.
niveaux qui permettait, dans une pièce de Shakespeare à un monde très riche d’exister, dans le même intervalle de temps que, par d’autre moyens, un monde très pauvre. (...) On a essayé de comprendre quelle était la nature du métier, de cette tapisserie, comment les fils rationalistes et les fils émotionnels s’entremêlaient dans le théâtre, en un monde où le destin individuel, la politique et la métaphysique n’étaient pas separés.”
57
Nessa proposta há uma duplicação revelando as contradições expostas,
ora buscando o envolvimento da plateia na ação, que conduz ao assassinato
de Marat — numa perspectiva relacionada ao pensamento de Artaud —, ora
distanciando a plateia para que pense criticamente sobre o que observa —
postura relaciona ao ideal de Brecht. Aspectos da teatralidade serão analisados
no decorrer do trabalho sob o viés do envolvimento do espectador na cerimônia
em que está inserido ou sob a ótica do distanciamento do espectador,
refletindo criticamente sobre o que lhe é apresentado.
Em todos os campos, Peter Brook não demonstra ser um teórico, mas
um homem da prática, inquieto e inovador, que encontra instintivamente na
imagem o ponto de partida para a sua produção teatral.
O diretor inglês utiliza o mesmo elenco e quase todo cenário em que a
encenação se desenvolveu. O filme foi gravado logo após a última temporada
realizada pelo grupo em Nova York, com tempo de filmagem de duas semanas
em um estúdio reproduzindo o teatro. Uma das curiosidades do trabalho foi ter
no elenco a atriz Glenda Jackson, nascida em 9 de maio de 1936. Foi seu
segundo trabalho no cinema, no papel de Charlotte Corday, a mulher que
assassinou Marat, no filme Marat/Sade. Durante sua carreira, Glenda ganhou
muitos prêmios, principalmente no campo cinematográfico — incluindo dois
prêmios Oscar de melhor atriz, dois Emmys e um Globo de Ouro. Seu trabalho
como atriz foi e é reconhecido internacionalmente. Atualmente, Glenda é
deputada de Hampstead and Kilburn, na Inglaterra. Brook declarou grande
afinidade e admiração pela atriz:
[...] sua particular qualidade era uma originalidade orgânica que tornava o que quer que ela fizesse inesperado, diferente, embora nunca evasivo – ela ultrapassava clichês para revelar uma faceta mais verdadeira e mais precisamente observada do comportamento humano. Porém a imagem que eu trago mais vividamente de todo o trabalho que fizemos juntos não é dela ao atuar – é a de Glenda observando. Durante horas a fio, desde o primeiro teatro da crueldade, eu vejo Glenda, encolhida em um canto, imóvel, em silêncio, crítica, sem perder nada (Brook, 2000: 190).
58
Na montagem pesquisada não se deve negar a existência das
características específicas do cinema que estão presentes. Brook se utiliza de
inúmeros recursos de câmera com o objetivo de aproximar o espectador das
sensações presentes na peça ou fazê-lo refletir sobre os fatos que as
determinam. Não é o objetivo deste trabalho analisar os recursos da câmera
utilizados em Marat/Sade, mas o olhar que ela produz, as imagens observadas
pelo espectador, produtoras da teatralidade: “Minha obsessão com o cinema
me ajudava a compreender que uma peça é também um carretel que se
desenrola; a sua verdade ganha existência imagem a imagem” (Brook, 2000:
59).
Desse modo, Brook constrói o cinema como um verdadeiro teatro cujas
imagens atingem o espectador com força, instaurando uma tensão entre
sentimento e pensamento, a qual estrutura o potencial cinematográfico que
consiste em criar a sua própria teatralidade:
No teatro a atenção de todo mundo varia constantemente de objeto. Às vezes alguém se concentra na ação principal, às vezes em um ator que está no fundo do palco, às vezes vê detalhadamente o palco, às vezes toma consciência da presença do público [...]. Nenhuma câmera ou microfone pode recriar tais condições diretamente, mas eles podem orientar a atenção e concentrá-la, e também servir a ação secundária. O cinema pode produzir sua própria teatralidade (Brook apud Veillon, 1985: 318 – tradução minha)20.
Brook reconhece que o elemento básico de qualquer peça teatral é o
diálogo, que evoca, pela divergência, uma tensão e, por consequência, o
conflito:
O ponto básico de qualquer peça é o diálogo que supõe tensão e presume que duas pessoas não estejam de acordo. Temos aí o conflito; se é sutil ou manifesto, não importa. Quando dois pontos de vista se chocam, o
20
“Au théâtre l’attention de chacun change constamment d’objet. Parfois vous focalisez sur
l’action principale, parfois sur un acteur à l’arrière-plan, parfois vous détaillez la scène, parfois
vous prenez conscience de la présence du public (...) Aucune caméra ni aucun micro ne peut
recréer ces conditions directement, mais ils peuvent orienter et focaliser votre attention et servir
aussi bien l’action secondaire. Le cinéma peut produire sa propre théâtralité”.
59
dramaturgo é obrigado a dar a cada um deles um peso equivalente de credibilidade, se não conseguir fazê-lo o resultado será fraco. Devo explorar duas opiniões contraditórias, com o mesmo grau de compreensão (Brook, 1995: 35).
O diálogo a que Brook se refere como o ponto central de qualquer peça
teatral pode ser relacionado de forma direta ao Marat/Sade de Peter Weiss. O
eixo central deste diálogo repousa no denso debate de ideias entre os
personagens Marquês de Sade e Jean-Paul Marat, intermediados por outros
como Roux (antigo padre socialista), Corday (assassina de Marat), Duperrer
(deputado girondino) e pelo próprio povo. Marat e Sade se digladiam em
ideias, pois Marat tem uma visão social do mundo enquanto Sade só acredita
nele mesmo, numa perspectiva absolutamente individualista, como se pode
observar em suas próprias palavras. No texto é possível ver com clareza a
posição social de Marat:
Em nossa compaixão acolhemos a toda gente do mesmo modo não somos submissos a países nem a governos somos todos unidos num povo de irmãos (Weiss, 2004: 76).
Observa-se também, como elemento que ajuda a constituir a tensão
dramática do texto, a oposição individualista de Sade:
E para determinar o que é certo e errado devemos conhecer-nos. Eu não me conheço, quando penso ter encontrado alguma coisa já duvido dela e tenho de destruí-la. O que fazemos é um sonho daquilo que queremos fazer e nunca se encontrarão outras verdades senão as mutáveis verdades da própria experiência (Weiss, 2004: 81).
Para Brook o choque entre o individual e o social construindo um
movimento de vaivém determina a aproximação do teatro da vida: “Para que
uma peça se pareça com a vida é preciso que haja um constante movimento
60
de vaivém entre o enfoque social e a visão pessoal, ou seja, entre o individual e
o geral” (Brook, 1995: 71).
A tensão produzida por pensamentos antitéticos, como os de Marat e
Sade, conduz o texto de Weiss, traduzindo, segundo o crítico teatral Sábato
Magaldi, atitudes contrárias extremadas. Uma posição idealista como a de
Marat e uma posição niilista como aquela que apresenta Sade: “Sade retrata a
exaltação do indivíduo liberto de quaisquer liames sociais, enquanto Marat
personifica a abdicação total do individualismo, em favor de nova sociedade”
(Magaldi, 1989: 469).
Dessarte, buscando a leitura de textos contemporâneos, Brook encontra
na peça de Peter Weiss a tensão e a densidade dramática pelo contraste de
perspectivas filosóficas dos personagens centrais do texto.
2.2 PETER WEISS E O TEXTO DE MARAT/SADE: A TENSÃO
FICÇÃO/REALIDADE
Peter Weiss, autor, pintor e diretor de cinema, nasceu no dia 8 de
novembro de 1916 na Alemanha, em Nowawes, uma cidade próxima a Berlim.
Filho de um fabricante de tecidos, de origem judaica, se converteu ao
luteranismo. Ganhou prêmios com seus textos teatrais e em prosa, como o
prêmio Charles Villon e o prêmio Lessing pela repercussão nacional e
internacional da peça Marat/Sade. Weiss morreu em 1982, em Estocolmo e foi
homenageado postumamente com o prêmio Georg Büchner.
Como outros dramaturgos no século XX — e entre eles destaca-se
Bertolt Brecht —, Peter Weiss se posicionou em suas obras a favor da
transformação social. Recusando a tradição realista, Weiss desenvolveu um
teatro épico, como aquele proposto por Brecht, que se relaciona com o
espectador por meio de um olhar crítico:
O ponto essencial do teatro épico é, talvez, que ele apela menos para os sentimentos do que para a razão do espectador. Em vez de participar de uma experiência, o espectador deve dominar as coisas. Ao mesmo tempo, será completamente errado tentar negar emoção a esta
61
espécie de teatro. Seria o mesmo que tentar negar emoção à ciência moderna (Brecht, 1967: 41).
Nessa perspectiva, a cena é um lugar onde ideias são debatidas em um
contexto poético e vigoroso, como o que encontramos em O interrogatório ou
em Marat/Sade, obras de Peter Weiss que são, nesse sentido, consideradas
extremamente importantes. Por exemplo, Marat/Sade percorre diferentes
níveis, nos quais mundos distintos convivem simultaneamente no espaço da
cena teatral.
Féral levanta a questão de que muitos fatores do teatro não carregam a
teatralidade em si; ressalta, no entanto, que o espaço é um fator importante
para o reconhecimento da sua existência:
[...] a presença do ator não é necessária, não é um pré-requisito da teatralidade. No entanto, nos dois exemplos mencionados o importante era o espaço como veículo da teatralidade. Quando falamos de espaço estamos dizendo que o espectador percebe certas relações nesse espaço entre os objetos e os signos, entre os objetos e o espectador. De fato, a natureza do cenário é especular e atrai a vista, chama a atenção, nos faz olhar (Féral, 2003: 40 — tradução minha)21.
O espaço sugerido por Weiss para que a encenação aconteça é apenas
um, no entanto minuciosamente detalhado por ele. A ação deve se desenrolar
toda na sala de banhos do hospício de Charenton, onde Sade realizaria toda a
representação da peça. O autor descreve o cenário da seguinte forma:
À direita e à esquerda banheiros e chuveiros. Na parede dos fundos um estrado com vários degraus, sobre os quais estão bancos e mesas de massagem. No centro da cena bancos para os atores, Irmãs e Enfermeiros. As paredes estão ladrilhadas de branco até a altura de três metros. Bem no alto das paredes laterais há janelas. A frente do estrado e as filas de banheiras nas laterais são limitadas por um varal. Ao lado, no varal do estrado
21
“[...] la presencia del actor no es necesaria, no es um pré-requisito de la teatralidad. Sin embargo, en los dos ejemplos mencionados lo importante era el espacio como vehículo de la teatralidad. Cuando hablamos del espacio estamos diciendo que el espectador percibe ciertas relaciones en ese espacio entre los objetos y los signos, entre los objetos y el espectador. De hecho la naturaleza del escenario es especular y atrae la vista, llama la atención, nos hace mirar”.
62
traseiro encontram-se cortinas que podem ser fechadas para esconder os pacientes. No meio do centro baixo está indicada uma área de representação. À direita desta encontra-se um estrado com a banheira de Marat; à esquerda um estrado com a cadeira de Sade. À esquerda na frente, ergue-se a tribuna de Coulmier e sua família. À direita, na sua frente, sobre uma tribuna estão os músicos prontos para a ação (Weiss, 1968: 13).
Na montagem cinematográfica de Brook, ao compararmos com o
cenário proposto por Weiss, percebemos uma relação entre vários elementos,
inclusive a decisão de manter a encenação na sala de banhos. No entanto,
também são claras as alterações propostas. O cenário é assinado por Sally
Jacobs, e a direção de arte é assinada por Ted Marshall. O cenário é revelado
de inúmeras formas, e para que isso aconteça Brook se utiliza de diferentes
efeitos de câmera. No começo parece que quem assiste também está
confinado atrás daquelas grades. Vemos Coulmier – representante máximo da
autoridade – entrar com a família no espaço, como se viesse de outro mundo.
Seu figurino, predominantemente de cor preta, com detalhes coloridos, remete
a um contexto aristocrata, muito diferente do que vemos naquele recinto.
Naquele momento estamos todos – internos, aristocratas e espectadores –
confinados naquele lugar branco, cinza e pálido.
Em outro momento o olhar da câmera propõe o ponto de vista de quem
se localiza na última fileira do público. Isso remete aos que assistem ao filme,
os quais, além de não estarem confinados junto aos personagens, também
estão vendo uma peça. O recurso de mostrar esse plano, revelando que o que
se vê é teatro, não é comum aparecer em espetáculos gravados. Por isso, essa
montagem de Brook se afirma como um filme, mais do que uma simples
gravação, em que todos os meios utilizados caminham ao encontro da
teatralidade. Sobre esse tópico, assim se manifesta Patrice Pavis:
“Contrariamente aos velhos hábitos do teatro filmado, esse tipo de plano não é
inserido no começo para documentar as relações espaciais, mas depois do
grupo ter sido introduzido em uma série de retratos individuais e emergido
como força coletiva” (Pavis, 2003: 103).
O cenário está totalmente ligado aos desejos de Brook e algumas
alterações foram realizadas de acordo com isso. Por exemplo, em matéria de
63
iluminação, Brook queria uma montagem clara, e ao invés de colocar as
janelas no alto, como propôs Weiss, projeta janelas imensas na altura dos
atores. No filme tem-se a impressão de uma única fonte de luz, o que acaba
remetendo a um caráter de luz natural e de alta intensidade. O cenário de
Brook é revelado aos poucos, de acordo com a ação. Em alguns momentos
conseguimos ver quase o todo do cenário, em outros vemos pequenas partes.
A câmera guia o olhar do espectador. Isso faz com que ora a sensação seja a
de um espaço amplo, ora a de um espaço pequeno.
Conforme foi escrita por Peter Weiss, a peça é dividida em dois atos. No
primeiro existem vinte e seis cenas e no segundo apenas sete. Todas elas têm
títulos que correspondem ao que irá acontecer. Assim, como o próprio título da
obra, que é longo, mas dá ao leitor um breve resumo do que se passará. Weiss
ampliou todos os elementos teatrais presentes em Marat/Sade. A própria
descrição do cenário, na qual um aparece dentro do outro, funciona como
esclarecimento de que há uma representação dentro de outra representação.
Isto é, há o cenário das representações no interior da representação.
A montagem do diretor Peter Brook teve relação fiel com alguns
aspectos do texto de Weiss, mas não com todos. A tradução do texto, do
alemão para o inglês, foi feita por Geoffrey Skelton, e a sua adaptação para a
montagem de Brook foi feita por Adrian Michell, que mantém, entre outros
elementos, a estrutura do coro, que aparece de forma cômica e contestadora.
Logo após Corday matar Marat, os internos de Charenton amotinaram-
se, revoltam-se, e tudo termina, no texto de Weiss, com o fechamento do pano.
Ao final da montagem de Brook os personagens quebram todo o cenário. E
mesmo os guardas e as freiras que inicialmente tentam espancar os internos,
instigados por Coulmier, também passam a destruir tudo a sua volta em busca
de liberdade. Não se fecha o pano, o teatro continua e o filme termina
afirmando a continuidade da revolução pelas mãos dos internos de Charenton.
A última cena da montagem de Brook remete à revolução aclamada
durante todo o texto de Weiss. Nesta, o povo, que quer a revolução, passa a
ser representado por todos os personagens da trama.
Os internos se mobilizam em um espaço que pode ser todo e qualquer
espaço, como o da própria revolução que representaram. O local da cena é
64
completamente destruído e cada vez fica mais vazio, como comenta Larissa
Elias em sua dissertação:
Tanto na montagem teatral, em 1964, quanto no filme – realizado, em 1967, de acordo com a montagem teatral -, Brook trabalha efetivamente com a ideia de um espaço vazio, aberto ao livre jogo do imaginário. Aqui, o lugar e o tempo podem ser sugestionados pela palavra, pelo gesto ou por algum símbolo: a palavra pode ser um estímulo, um gesto pode ser um cenário. Uma cena não-realista onde tudo é sugestionado. Nós espectadores, aceitamos o jogo e o imaginamos. Em Marat/Sade, o episódio da morte de Marat é contado pelos atores, ora através da narrativa, ora da própria representação do fato (Elias, 2004: 101).
O cenário de Brook é apresentado na entrada no espaço, a primeira
imagem corresponde a um corredor escuro onde os atores/personagens estão
andando em fila e entrando na sala de banhos do hospício. Uma das quatro
paredes é constituída em sua plenitude por grades e atrás delas o público
supostamente se estabelece. As laterais são cheias de bancos compridos e
contêm também alguns baldes de ferro que serão usados durante a
encenação. No centro são dispostos vários estrados de madeira rente ao chão,
compondo a imagem de um círculo. Tais estrados são retirados em diversos
momentos do espetáculo, havendo uma abertura abaixo deles, parecendo
verdadeiras banheiras. As aberturas são utilizadas para guardar objetos ou
esconder pessoas e prendê-las. Esse refúgio, usado por Brook, é um recurso
que provoca diversas sensações. Como, por exemplo, o momento em que
personagens se escondem ali, bem como o momento do qual tiram objetos que
surgem na encenação. A foto abaixo apresenta o espaço da encenação visto
de cima. Nela, alguns personagens mexem nos estrados, e outros estão
escondidos sob eles:
65
Imagem 7: Marat/Sade: espaço da encenação.
Ao relacionar a proposta de Weiss com a de Brook, Olivier-René Veillon
mostra as diferenças de intenção presentes em cada cenário. O teórico afirma
que a proposta cenográfica de Weiss cria um tribunal de caráter didático, e a
de Brook, sem estabelecer relação com o real, cria um espaço menos figurativo
e mais lúdico:
Tudo, na descrição do autor visa a instaurar uma rigorosa perspectiva: o praticável contra a parede do fundo e as janelas muito altas. Tudo contribui para fazer da cena uma espécie de tribunal, onde a peça desenrolará o processo da História. Quebrando esse espaço didático, saindo da ordem da perspectiva, Brook dialetiza a própria situação da peça. Ele dá nova chance ao jogo, criando um espaço que só adquire sentido por si mesmo, que em nenhum momento poderia figurar sozinho algo que fosse da ordem da sanção ou da verdade. Em cena, o banheiro se torna a descrição impossível de um círculo, na perspectiva do teatro italiano. Os objetos que fazem parte da cena se definem unicamente em função de critérios práticos, dimensionados unicamente pela medida do jogo. Suas possibilidades de mudanças fazem parte daquilo que chamamos jogo (Veillon, 1985: 313 – tradução minha)22.
22
“Tout, dans la description de l´auteur, vise à instaurer une rigoureuse perspective: l´estrade
contre le mur du fond, les ouvertures três hautes. Tout contribue à faire de La scène une sorte de tribunal où la pièce va faire le procès de l´Histoire. En brisant cet espace didactique, en sortant de l´ordre de la perspective, Brook diàllectise la situation même de la pièce. Il redonne
66
O texto Marat/Sade de Weiss é estruturado levando em conta, por um
lado, a loucura encontrada nos pacientes de Charenton, que formam o elenco
da peça dirigida por Sade, e, por outro, a sanidade dos personagens da
Revolução Francesa, representada por esses mesmos internos. A
representação é supervisionada pelo diretor do hospital, que a assiste e a
censura quando julga necessário. A ordem de repreensão é dada aos
supervisores dos doentes (enfermeiros e freiras) pelo próprio marquês de
Sade.
Os fatos da Revolução Francesa são explicados pelo Anunciador, o
mestre de cerimônias do espetáculo. Esse personagem faz a ligação entre os
distintos fragmentos da ação, intencionalmente disposta de maneira épica pelo
autor, como a apresentação dos personagens, por exemplo, de Marat e do
interno que o representará:
Apresentação: Anunciador (bate três vezes com o bastão no solo) Marat é este homem que reconheceis já sentado dentro da banheira (aponta-o com o bastão) Está nos seus cinqüenta anos e traz uma bandagem na cabeça (mostra-a) Sua pela é assada e amarela (mostra seu pescoço) Pois que sofre de erupção a fria água na qual se banha (mostra a banheira) Diminui a febre que o queima (Marat toma a pena e começa a escrever) Para desempenhar este papel escolhemos um dos pacientes que sofre de paranóia cuja cura pela hidroterapia atingiu até hoje os nossos melhores resultados. (Weiss, 2004: 39)
sa chance au jeu en créant un espace qui ne prend sens que par lui, qui à aucun moment ne peut figurer seul quelque chose qui serait de l´ordre de la sanction ou de la vérité. La salle de bains devient sur la scène l´impossible inscription d´un cercle dans la perspective du théâtre à l´italienne. Les objets qui la meublent se définissent uniquement en function de critères pratiques mesurés à la seule aune de jeu”.
67
O interno que representa Marat está imerso na banheira, pois realiza
uma tentativa de cura de sua paranóia por meio da hidroterapia. A paranóia é
uma doença mental na qual dificilmente o doente aceita tratamento; a maioria
dos doentes não a reconhece como doença, apenas como uma característica
pessoal. Nessa doença não é comum a existência de alucinações e sim de
delírios – alucinação é a produção e criação de imagens inexistentes; delírio é
a distorção da realidade. Então, o paciente que tem paranóia distorce a
realidade, mas, pode manter coerência e lucidez. Na maioria dos casos, sofre
de delírios de perseguição e é comum encontrar-se paranóicos que tenham
dificuldades de manter vínculos afetivos (e, como conseqüência, se tornam
pessoas frias). O personagem de Marat não se mostra alterado por um vínculo
afetivo, e sim por questões puramente racionais, que nascem de razões
lógicas. Talvez seja esse o ponto de semelhança entre o interno e seu
personagem, Marat.
Esse personagem central se refere em alguns momentos que a
revolução sofreria de traições. Marat representa a revolução. Seria ele o
traído? O paciente que o representa passa por sessões de hidroterapia, que é
a cura por meio da água quente e/ou fria. Pode ser feita apenas no mergulho e
permanência do sujeito na água ou na alternância do sujeito em duas
banheiras com temperaturas distintas. Essa terapia ataca o sistema nervoso do
paciente e ativa sua circulação, provocando uma espécie de choque térmico.
Atualmente esse tratamento não é mais utilizado para esses casos.
O período em que ocuparam o poder os jacobinos – partido político
liderado por Robespierre, Danton e Marat – foi considerado um dos períodos
mais sanguinolentos da Revolução Francesa. Uma das causas de tamanha
violência foi o medo da traição. O fato é argumentado, fundamentalmente, por
ter sido Robespierre o responsável por mandar Danton para a guilhotina. O
texto de Weiss também faz referência à traição em alguns momentos. Por
exemplo, no trecho abaixo, em que o personagem de Marat menciona os
traidores mortos pela revolução:
E o que é uma banheira de sangue perto do sangue que ainda há de correr
68
um dia pensamos que algumas centenas de mortos seriam bastante depois vimos que mesmo milhares eram insuficientes e hoje não podem mais ser contados ali e em todo lugar em todo lugar (Weiss, 2004: 56).
O ano da trama de Marat/Sade é 1808. Ao se esgotar, a Revolução
Francesa desencadeada em 1789 permite a tomada de poder por Napoleão
Bonaparte em 1799, dez anos depois da deflagração do conflito. A ação em
Marat/Sade se passa no momento que corresponde à apoteose do poder do
imperador Napoleão, envolvendo inúmeras contradições em relação aos ideais
revolucionários, observadas sob diferentes aspectos, principalmente na
perspectiva do povo.
O fantasma da censura do Império se instala na encenação da peça de
Sade na figura de Coulmier, o diretor do manicômio. Sua postura adota atitudes
aparentemente liberais, enquanto mostra valorizar o teatro como meio que
pode auxiliar em terapias; inibe, porém, manifestações de questionamento da
realidade da época napoleônica.
A morte de Marat aconteceu quinze anos antes da época da ação da
peça, isto é, em 1793, anteriormente ao término da Revolução Francesa. No
início do espetáculo o narrador (Anunciador) é quem convida a recuar a 15
anos atrás. É também ele, nesse momento, quem menciona, discute e
questiona os valores da Revolução, seus ideais e a traição desses ideais:
Após uma breve introdução já se inicia a nossa produção Vereis agora o dia quinze de julho de mil oitocentos e oito como há quinze anos iniciou-se a noite eterna para aquêle que ali está na banheira (Weiss, 2004: 18)
Assim, a Revolução é representada como um jogo do teatro dentro do
teatro, em um processo de instauração de duplos, que se manifesta nos
personagens, no espaço e no tempo. Tudo ocorre dentro do grande duplo da
representação do passado, da perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat,
interagindo com o momento presente da ação que se passa em 1808. Tal
mecanismo denuncia, dentro do processo do duplo, que as necessidades do
69
povo no passado são iguais às necessidades de 1808 e, se continuar a relação
de duplo até os tempos de hoje, é possível perceber que se trata ainda de
questões da contemporaneidade.
Quanto ao espaço e aos personagens o duplo continua também a se
manifestar. No espaço observa-se que os personagens estão em um cenário
dentro do cenário. Os internos estão no asilo e simultaneamente em outros
ambientes da época da revolução, como na própria casa de Marat, onde este
se encontra na banheira durante todo o espetáculo, com a função de atenuar
os efeitos da sua doença de pele.
No que se refere aos personagens, a relação de duplo na realidade dos
alienados é explícita, esclarecendo as distintas problemáticas mentais pelas
quais passam os enfermos. Marat, o grande líder revolucionário, é
representado, como já foi mencionado, por um paranóico; Charlote Corday,
girondina e assassina de Marat, é vivida por uma paciente vítima de depressão
e sonolência; o Padre Roux, radical revolucionário socialista, é interpretado por
um sacerdote que foi internado em Charenton, não por problemas mentais,
mas pelo seu radicalismo político; Duperrer, deputado girondino apresentado
na peça de Sade como apaixonado por Charlotte Corday, é vivido por um
paciente erotômano, que a todo momento assedia Corday, pois acredita que
ela está apaixonada por ele (característica de sua doença). Criador de todo o
espetáculo, Sade se mantém como ele mesmo, conduzindo toda a encenação,
isto é, o grande jogo de duplos que é Marat/Sade.
O texto se divide em dois atos e trinta e três cenas, que são nomeadas
conforme os assuntos de que irão tratar. Por exemplo, A primeira visita de
Corday, Conversa sobre a morte e a vida, Continuação da conversa entre
Marat e Sade. Tal procedimento faz parte da natureza fragmentada do texto e
revela o seu caráter épico ou narrativo.
A peça de Weiss parte do tema da Revolução Francesa e evidencia o
confronto entre a posição individualista de Sade e a posição social que
caracteriza o discurso de Marat. O individualismo de Sade é pleno de
ceticismo, ironia e tendência à ruptura das regras sociais, enquanto o
pensamento social de Marat o leva a desprezar o indivíduo em função do
coletivo. Nesse sentido, o que interessa para Marat é o bem comum, ainda que
70
em detrimento de liberdades individuais e da própria vida de indivíduos. Essa
tensão ideológica se desenvolve durante toda a ação da peça.
O povo, representado por diversos personagens, nesse contexto
reivindica as mudanças que a revolução lhe traria e que ainda não foram vistas
na sua realidade. Uma das formas de dar vida a suas vozes é a presença do
coro, que estabelece a ligação das cenas. Ao apresentar entreatos musicais,
Brook se aproxima da linguagem popular. Esse fator auxilia na leitura do ponto
de vista da população oprimida e sofrida daquele momento histórico, apesar de
os cantores aparentarem alegria durante toda a encenação.
O coro de alienados entoa a canção que é simultaneamente dos pobres
da época da revolução e dos internos de Charenton, incomodados com as
condições em que vivem:
Os quatro cantores e o coro: Marat o que aconteceu com a nossa revolução? Marat não queremos mais esperar até amanhã. Marat continuamos sempre gente pobre e queremos hoje as mudanças prometidas. (Weiss, 2004: 85)
Para o coro, que é proposto por Weiss como tipos de comediantes de
feira, Brook optou por transformá-los em bufões e isso interferiu diretamente no
figurino dos personagens, como podemos ver na imagem abaixo – o coro de
bufões dentro de um dos buracos do cenário, que é utilizado como um espaço
coringa:
Imagem 8: Marat/Sade: coro de bufões
71
Weiss transforma o final da peça em uma rebelião cujos atores são os
internos do manicômio, representando neste momento a sua própria peça, a
representação da representação se acaba, como também o jogo de duplos.
Tudo se torna uma representação da grande revolução dos internos que,
clamando por mudanças e liberdade, visam à destruição de tudo. Como se
pode ver na foto abaixo, retirada do momento final da peça quando os atores
quebram todo o cenário, incluindo as madeiras que compunham os estrados,
sendo considerado por Brook um dos maiores happenings que já viu23:
Imagem 9: Marat/Sade: destruição do cenário.
A rubrica final de Weiss esclarece o contexto:
(Música. Gritos e pés batendo no chão formam uma tempestade. Uma lufada forte de ar entra pelas janelas instaladas nas paredes laterais. As grandes cortinas voam bem para dentro da sala. Os enfermeiros batem nos pacientes com seus cassetetes e abatem vários deles. As irmãs rezam litanias. O grupo liderado pelos cantores e pelo carroção, é empurrado para trás, lentamente. A morte faz um vaivém circular com a segadeira. Os pacientes estão dominados pela loucura de sua marcha dançante. Vários deles pulam e giram sobre si,
23 (BROOK, 1966)
72
encantados. Corday é carregada para fora pelos fundos. Roux, em pé no banco, lança os braços atados para cima. Sade, de pé e imóvel, ri. Coulmier corre com os braços esticados de um lado para o outro da área de representação, concitando os enfermeiros à violência. O anunciador está diante da orquestra, cujo compasso marca, dando grandes pulos. desesperado, Coulmier vira-se e faz sinal para que se feche o pano. O anunciador bate a sineta. Pano.) (Weiss, 2004: 187/188).
Nesse teatro pratica-se uma nova revolução; nela os seus atores,
personagens do manicômio, reivindicam as suas demandas e soltam os seus
impulsos como se instaurassem nessa nova época um novo espírito da antiga
revolução. O resultado da quantidade de ensaios e apresentações se
transforma em impulso de destruição, de mudança, de fim de uma era. É o
teatro da revolução dos loucos mobilizado pelo teatro da Revolução Francesa
que acabaram de representar. Trata-se de um teatro de regressão ao caos pelo
desejo de uma nova ordem. Uma manifestação escatológica, pois supõe um
fim do que existe em função da criação de uma nova era, um novo mundo, uma
nova cosmogonia. Esse movimento, visto como um possuidor de uma natureza
mítica, é explicado pelo filósofo Mircea Eliade (1907 – 1986) em seu livro Mito e
realidade:
A escatologia é apenas uma prefiguração de uma cosmogonia do futuro. Mas toda escatologia insiste em um fato: que a nova criação não pode ter lugar antes que este mundo seja definitivamente abolido. Não se trata mais de regenerar o que degenerou, mas de destruir o velho mundo a fim de poder recriá-lo no todo (Eliade, 2004: 51).
E a destruição do velho mundo que os internos desejam que ocorra na
cena. Tal densidade de ação reflete mais uma vez uma relação de duplo, pois
inspirados na revolução burguesa os internos de Charenton criam a sua própria
revolução. Em seu depoimento dado ao jornal inglês The Guardian, de
Londres, em 28 de junho de 1966, e citado por Larissa Elias em seu artigo para
a ABRACE (Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes
Cênicas), Brook relata o último dia de filmagem: a revolução se estende dos
internos de Charenton até os atores que os interpretam. A revolução está
73
localizada em todas as camadas desses duplos, e representa ideias
instauradas pela Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade.
Filmamos a última cena no final das filmagens. Os atores que encenavam a peça há dois anos não agüentavam mais. E quando propus tudo demolir, tudo quebrar, tudo destruir, tivemos um dos happenings mais extraordinários a que assisti... Tivemos trinta minutos de selvageria e de destruição completamente alucinante... rodamos sem parar, com três câmeras, exatamente como em um motim. Os operadores de câmera iam pro lado para recarregar o aparelho e depois voltavam. Os atores saltavam, gritavam, punham fogo. Eles puseram fogo no cenário, depois vinham com água para apagar (BROOK, 1966: s/p) (Elias, 2008: 13).
Podemos observar também o duplo no próprio texto de Weiss. Nesse
sentido, convém analisar a relação de interação que se estabelece entre a
história e a ficção em Marat/Sade, ao partir da construção dos seus
personagens.
Para estruturar os personagens na sua obra, Weiss fez uma pesquisa
histórica sobre eles e seus respectivos contextos, identificando suas distintas
maneiras de pensar, como pode ser observado no texto sobre Sade e nos seus
apontamentos sobre a base histórica de nossa peça: “É difícil imaginarmos
Sade numa atividade destinada ao bem público. Viu-se ele forçado a um jogo
duplo: de um lado apoiava a argumentação radical de Marat, mas de outro, via
os perigos de um sistema totalitário” (Weiss, 2004: 191).
A discordância de Sade com Marat apresentada na peça é totalmente
imaginária, como afirma o próprio Weiss: “Sua discordância com Marat que
aqui apresentamos é, porém, inteiramente imaginária e só encontra justificativa
no fato de ter sido Sade quem pronunciou a oração fúnebre sobre Marat nas
pompas fúnebres deste” (Weiss, 2004: 192).
2.2.1 Jean-Paul Marat e Marquês de Sade: contexto histórico
Marat, ao lado de Georges-Jacques Danton (1759 – 1794) e Maximilien
François Marie Isidore de Robespierre (1758 – 1794), foi um dos principais
nomes da Revolução Francesa, que destronou a família real da França e
74
tornou-se um marco na história mundial. Marat era um médico reconhecido que
se colocou à disposição da revolução e, por ter passado muito tempo em
esconderijos sujos e nefastos, contraiu uma grave doença de pele. Para aliviar-
se das dores causadas por ela, Marat passava horas em sua modesta casa
dentro de banheira. Sua morte aconteceu no dia 13 de julho de 1793, e como é
descrita na peça, Marat foi assassinado por Charlotte Corday enquanto estava
na banheira.
Weiss refere-se ao passado de Marat com conhecimento sobre sua vida,
atividade profissional ligada à ciência e à pesquisa, e ainda acrescenta que é
dotado de explosivo temperamento:
Com dezesseis anos abandonou a casa paterna, estudou medicina, viveu alguns anos na Inglaterra, foi médico famoso, cientista desprezado, obteve honrarias sociais, mas, após haver já há muito, submetido a sociedade à sua crítica, colocou-se inteiramente a serviço da revolução e, por causa de seu temperamento violento e avesso às reconciliações, foi transformado num bode expiatório de crueldade (Weiss, 2004: 192).
Weiss revela a condição ideológica do personagem histórico Marat
usando para isso documentos verídicos, como ele mesmo afirma nos
apontamentos sobre a base histórica da peça: “As manifestações de Marat
durante a ação correspondem em seu conteúdo – às vezes com fidelidade
literal – aos escritos que deixou” (Weiss, 2004: 192).
Weiss tem extrema clareza no que interessa a ele como autor na
confrontação ideológica movida por ele entre Sade e Marat. Tem particular
interesse em estabelecer o confronto entre o individual e o social: “O que nos
interessa na confrontação entre Sade e Marat é o conflito entre o individualismo
levado ao extremo e o pensamento de uma revolta política e social” (Weiss,
2004: 190).
Ao pensar em Marat e na sua vida, percebemos a forte ligação com o
contexto social desde o princípio de sua fase adulta. As opções que fez, como
estudar medicina, por exemplo, direcionam o olhar para uma melhoria do
conjunto.
75
Por sua vez, Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade,
tomou um rumo praticamente oposto ao de Marat. Nasceu em 2 de junho 1740
e morreu em 2 de dezembro de 1814. Era um nobre, rico, casado e tinha duas
filhas. No entanto, sua vida mudou muito devido às sessões sexuais que
promovia em seu castelo. A violência era fator recorrente desses fatos, e por
isso foi preso diversas vezes. Em 1777 foi detido por causa de uma de suas
orgias: das quatro mulheres envolvidas, uma delas foi morta. Sade ficou
refugiado durante os cinco anos que antecederam sua prisão. Passou doze
anos na prisão e foi transferido em 1789 para o Hospício de Charenton. No ano
seguinte foi liberado. Chegou a viver na miséria com uma atriz da Comédie-
Française. Em 1801, foi novamente preso após ter escrito Justine – peça
teatral que narra a trama de uma pervertida religiosa. Depois de ter sido
transferido de uma série de presídios, em 1803, o Marquês de Sade foi
internado no Hospício de Charenton, onde representou suas peças. Tal
atividade Sade já exercia antes do seu aprisionamento, pois costumava dirigir
representações teatrais em seu palácio, La Coste.
Nos seus apontamentos sobre a base histórica da peça, Peter Weiss
esclarece a produção artística de Sade nos treze anos de prisão (1801- 1814)
até a sua morte:
Durante os treze anos de prisão – entre o seu 33º e 46º anos de vida - escreveu dezessete dramas, além de suas grandes obras em prosa. Anos mais tarde, a este número acrescentaram-se mais cerca de doze tragédias, comédias, óperas, pantomimas e atos únicos rimados... de 1801 a 1814, ano de sua morte, Sade esteve internado no hospício de Charenton, no qual, durante alguns anos, teve a oportunidade de encenar peças, nas quais aparecia também como ator (Weiss, 2004: 189).
Em Charenton, como afirma Weiss, representou inúmeras peças e
declamações, tornando o ato de vê-las um lazer requintado para a aristocracia
parisiense. Também teria sido lá que Sade representou a morte de Marat em
1808, o que serviu de inspiração para Weiss escrever o texto em questão. No
entanto, é uma ficção colocar ambos, Sade e Marat, tendo uma conversa
antecedendo ao momento de sua morte. Um fato real, como já foi dito
anteriormente, é que Sade foi quem pronunciou a oração fúnebre nos aparatos
76
fúnebres de Marat, como afirma Weiss. Mas ele não pode afirmar quais seriam
suas verdadeiras intenções com esse gesto:
E mesmo nesse discurso sua relação com Marat permanece ainda duvidosa, já que o fez para salvar sua própria cabeça, pois nesse momento já se encontrava novamente em perigo, estando seu nome numa lista de futuros guilhotinados (Weiss, 2004: 190).
Mesmo sendo um lazer requintado assistir às peças de Sade, suas
obras, por lidarem com questões perversas, amorais e violentas, somente
foram analisadas e avaliadas apenas um século e meio após a sua morte.
A peça de Weiss em questão mistura ficção e fatos reais, como a
Revolução Francesa, a morte de Marat e a estada do Marquês de Sade em
Charenton, onde realmente dirigia espetáculos teatrais. Weiss estabelece
dessa forma, em sua obra dramatúrgica, o encontro de personagens do povo,
como o Coro, o Anunciador ou os internos em geral, com aqueles pensadores
ou realizadores da revolução burguesa. Contextualizar tais personagens no
manicômio e fazê-los representar como se fossem loucos indivíduos que
seriam reais, sãos e agentes da história, como os atuantes da Revolução,
estabelece um alicerce fundamental à tensão existente entre a ficção e a
realidade criada pelo autor. Às vezes, tal encontro assume ares de confronto, o
que dá à peça o seu caráter de conflito não apenas ideológico, mas
fundamentalmente teatral. Na França de 1793, o povo estaria cobrando a
prometida transformação social pela qual estaria passando em nome da
liberdade e da igualdade prometidas pela revolução francesa:
Os quatro cantores e o coro: Marat o que aconteceu com nossa revolução Marat não queremos mais esperar até amanhã Marat continuamos sempre gente pobre, e queremos hoje as mudanças prometidas (Weiss, 2004: 111).
A obra baseada nos acontecimentos históricos, não pode ser lida como
um fato histórico, mas sim como parte da história do teatro, já que foi
repercutida e analisada em suas montagens que marcaram a arte teatral. Entre
77
estas, se destaca a encenação de Peter Brook que busca a acentuação das
contradições oferecidas pelo texto do autor alemão, naturalizado sueco. Veillon
comenta o escrito como uma forma de afastamento do caráter de mera
reprodução histórica dos fatos: “Weiss foge da história como relato, recusando
não somente tornar-se o contador da história, mas, mais radicalmente,
renunciando a chegar a ela por outro modo que não fosse a contradição”
(Veillon, 1985: 315 - Tradução minha)24.
Nesse sentido é possível considerar que a grande contradição seja
oriunda da tensão ficção/realidade estabelecida na linha de ação do texto, em
que os loucos representam grandes agentes da história em um contexto
revolucionário importante, também pleno de contradições. Dentre essas
contradições, as demandas populares que se confundem com o coro
constituído pelos internos, são acentuadas no texto principalmente por meio do
espírito crítico da música, tão ao gosto do Teatro Épico. Situando as
necessidades do povo, o texto revela a profunda contradição da revolução, pois
derrubando a aristocracia, a burguesia assumiu o seu lugar, como explicita
Magaldi em sua análise sobre do texto de Weiss:
O radicalismo de Marat, que anuncia as ideias marxistas, define as limitações da revolução francesa, na qual a burguesia tomou para si os privilégios dos aristocratas. Marat viu as contradições de um poder que, para manter-se, logo coibiu as aspirações populares (Magaldi, 1989: 470).
Magaldi afirma em seguida “este seria o motivo da grande opressão
exercida contra o povo e do grande número de assassinatos praticados em
nome da revolução”.
Weiss investiu um tempo maior que o previsto e uma dedicação grande
para concluir Marat/Sade. A obra teve sua primeira redação no período
compreendido entre fevereiro e abril de 1963, e sua continuação foi escrita
entre novembro de 1963 e março de 1964 com a ajuda do encenador alemão
Konrad Swinarski. O texto foi considerado pronto no dia 12 de março de 1964.
24
“Weiss échappe à l´histoire comme récit en refusant,non seulement de s`en faire le conteur mais, plus radicalement, en renonçant à l´atteindre autrement que par la contradiction” (Veillon, 1985: 315).
78
Sua primeira publicação também aconteceu no ano de 1964 e foi encenada
pela primeira vez no teatro Schiller de Berlim Ocidental sob a direção de
Swinarski em 29 de abril de 1964.
2.2.2 Jogo de duplo no texto de Peter Weiss
“O ator é como um verdadeiro atleta físico, mas com a ressalva surpreendente de que ao organismo do atleta corresponde um organismo afetivo análogo, e que é
paralelo ao outro, que é como o duplo do outro embora não aja no mesmo plano”. Antonin Artaud – O teatro e seu duplo
Em sua poética teatral O teatro e seu duplo (1993), Artaud desenvolve
suas ideias relacionadas ao Teatro da Crueldade. Mas é em carta a Jean
Paulhan, datada de 25 de janeiro de 1936, que ele explicita o que quer dizer,
com o mito do duplo relacionado ao teatro:
Eu creio ter achado o título conveniente para o meu livro. O teatro e seu duplo. Pois se o teatro duplica a vida, a vida duplica o verdadeiro teatro. [...] Esse título corresponderá a todos os duplos do teatro que penso ter encontrado há tantos anos, a metafísica, a peste, a crueldade, o reservatório de energias que constituem os mitos, que não são mais encarnados pelos homens, são encarnados pelo teatro. Considero esse duplo o grande agente mágico, do qual o teatro, por suas formas, é apenas a figuração, esperando se tornar a transfiguração. É no palco que se reconstitui a união do pensamento, do gesto, do ato. O duplo do teatro é o real não utilizado pelos homens de hoje (Artaud, 1995: 127).
O presente trabalho se pauta na noção de Artaud desenvolvida em
suas cartas a Jean Paulhan e que percorre toda sua obra.
O olhar da câmera captura agudamente em imagens o jogo de duplos
em que a encenação cinematográfica de Marat/Sade se estrutura. Dessa
maneira, com relação ao tempo, como já foi dito anteriormente, a ação se
passa em 1808 no manicômio de Charenton e a trama representa, em 1793,
a morte de Marat. O espaço, por sua vez, também estabelece uma relação
de duplo, pois diz respeito aos fatos que se relacionam ao assassinato do
revolucionário francês, como a banheira onde se encontra Marat e também
se referencia o contexto dos internos, pois tudo se passa na sala de banhos
79
do asilo. As ações também ocorrem como um duplo, pois elas são, ora dos
próprios pacientes do manicômio, como o sono em que mergulha a interna
que representa Corday, ora as ações são de Corday, como a própria ação de
assassinar Marat.
Os personagens, por sua vez, são pacientes do manicômio e seus
duplos, personagens da revolução francesa. Dessa forma o duplo se
entranha na cena, construindo um universo que representa o passado da
Revolução Francesa e um presente que representa os internos de
Charenton.
Esse jogo de duplos se estrutura de maneira fragmentada em ação,
espaço, tempo e personagem, sendo por isso dotado de lacunas que
precisam ser preenchidas. O filme constrói ou edifica intencionalmente um
espaço vazio no qual a imaginação do espectador é solicitada a preencher
as lacunas. Dessa maneira a imaginação preenche o espaço vazio que é
constituído por formas e, para Brook, o que preenche o vazio é teatro.
Essa forma somente existe se acontecer o jogo. O jogo que se
estrutura por meio de signos no espaço, jogo que tem como pressuposto o
relacionamento entre eles, construindo uma linguagem. Artaud reflete sobre
a linguagem dos signos, propondo a eles a necessidade de atribuição de
novos sentidos, diferentes de sentidos já estratificados pela relação que
estabelecem entre si. Nesse jogo origina-se, para Artaud, a anarquia, que é
fundamental ao teatro na sua edificação como poesia no espaço e duplo da
vida.
O jogo de duplos faz parte da peça como texto e como encenação. Para
Brook é fundamental essa característica, pois a relação de duplos explorada no
texto e no espaço vai ao encontro do desejo de revelação das contradições que
Brook pretende fazer nesta montagem. E, por outro lado, enfatiza o carater
teatral presente em Marat/Sade.
2.3 PETER BROOK NO FILME MARAT/SADE: UM DIÁLOGO COM
ARTAUD E BRECHT
Nesse momento da pesquisa me deterei com mais detalhes às
influências de Artaud e Brecht. Durante o trabalho levanto pontos que se atém
80
a aspectos gerais; acredito, porém, ser necessário maior detalhamento sobre o
pensamento e a influência desses dois pensadores no filme de Brook.
2.3.1 Aspectos do Teatro da Crueldade de Antonin Artaud
Antonin Marie Joseph Artaud (França, 1896 – 1948) viveu em uma
época em que o teatro privilegiava, tal qual prescrevia Aristóteles, a força, a
beleza e a hegemonia da palavra. O ensino do teatro tradicional francês até a
primeira metade do século XX valorizava com intensidade o estudo do texto e a
formação técnica do ator no sentido de melhor emitir o texto falado. Assim, o
bom ator era aquele que detinha o domínio da emissão perfeita do texto. Ser
ator nesta época consistia basicamente em dominar as dificuldades da língua
francesa e emitir bem, com correção, clareza e elegância os sons das palavras.
Quando Artaud surgiu reivindicando a essência do teatro, seu pensamento
discriminou a subserviência da arte teatral à dramaturgia, isto é, o
textocentrismo. Para ele o teatro não era a arte da voz, da palavra, mas a arte
da encenação:
(...) diria que na medida em que essa linguagem parte da cena, em que extrai sua eficácia na criação espontânea em cena, na medida em que se defronta diretamente com a cena sem passar pela palavra (e por que não imaginar uma peça composta diretamente em cena, realizada em cena), teatro é a montagem, encenação, muito mais do que a peça escrita e falada (Artaud, 1993: 55).
Dessa forma, o ator, cenógrafo, diretor, teórico, dramaturgo e visionário
do teatro Antonin Artaud desenvolveu, em escritos profundamente poéticos,
suas ideias sobre o renascimento do teatro. São mensagens, por vezes,
contraditórias. Então reunidas em O Teatro e seu Duplo, obra que pode ser
denominada como uma poética da crueldade. Nessa obra Artaud evidencia a
construção do teatro como uma linguagem no espaço que é construída através
de signos.
A obra de Artaud deixou marcas imensas no teatro ocidental.
Incrementou transformações estéticas como a criação coletiva, a importância
atribuída à improvisação e à linguagem gestual do espetáculo. O pensamento
81
de Artaud contribuiu para a valorização da comunicação não-verbal, da
expressão corporal e para a ruptura da separação palco – plateia (Artaud,
1999). Tais características farão parte da construção do teatro de Peter Brook,
como o que encontramos no filme Marat/Sade.
No plano das transformações culturais pelo qual passou o século XX, as
ideias de Artaud ajudaram na instauração de um pensamento mais liberal em
relação às drogas, com crítica à repressão, contribuindo também para o
pensamento da antipsiquiatria. A influência de Artaud debruça-se nas teorias
sobre a linguagem, sobre a semiologia, sobre a lingüística estrutural.
A contribuição de Artaud ao teatro é tão significativa que, como sugere a
teórica Odette Aslan em seu livro O ator no século XX, podem ser estabelecer
na atualidade duas linhas de encenação que delimitam traços significativos do
teatro do século XX: uma proposta por Artaud, com o Teatro da Crueldade, e
outra proposta por Bertolt Brecht, por meio do Teatro Épico. Essas duas linhas
de teatro reconhecidas como importantes vertentes da contemporaneidade
encontram suas respectivas especificidades no teatro com o envolvimento
radical, chegando ao transe, como propõe Artaud ou com o distanciamento
crítico, como propõe Brecht.
2.3.2 Aspectos do Teatro Épico de Brecht
Bertolt Brecht (Alemanha, l898 - l956), pensando o teatro e sua relação
com o mundo, reflete que podemos descrever o mundo na medida em que o
consideramos passível de modificação. O homem não pode ser visto como um
objeto à mercê de um ambiente desconhecido, como uma vítima indefesa,
numa época em que a ciência consegue tão fortemente atuar sobre a natureza
(Brecht, 1967). A concepção do homem como uma variável do ambiente e do
meio ambiente como uma variável do homem, ou seja, a redução do ambiente
às relações entre os homens é fruto do pensamento histórico, que estará
presente no teatro de Brecht.
Para Brecht não é possível ser artista sem se servir da ciência,
notadamente a psicologia, a sociologia, a economia e a história. Por outro lado
afirma com veemência ser fundamental transpor a ciência para o plano da
poesia, sem a qual não existe arte: “Por mais que possa haver conhecimento
82
em uma poesia, é preciso que esteja inteiramente revertido em poesia” (Brecht,
1967: 101). A utilização poética de dados da ciência é defendida por Brecht
que acredita na importância da razão para a atividade artística, em detrimento
da inspiração e do sentimento: “A nós os sentimentos impelem-nos a uma mais
extrema tensão da razão e a razão purifica-nos os sentimentos” (Brecht, 1967:
87).
Sua forma épica de representar o teatro possui cunho nitidamente
narrativo e descritivo, utilizando coros e projeções com finalidade crítica. Um
dos elementos mais característicos do Teatro Épico é o efeito do
distanciamento, cujo objetivo é efetuar a representação de tal modo que seja
impossível ao espectador “meter-se na pele dos personagens da peça” (Brecht,
1967: 89). E complementa: “A técnica de distanciamento impede o ator de
produzir o efeito da empatia” (Brecht, 1967: 130).
O distanciamento depende de uma técnica especial pela qual confere
aos acontecimentos apresentados um caráter de estranheza: os
acontecimentos passam a exigir uma explicação, deixando de ser evidentes,
naturais. O efeito do distanciamento possibilita ao espectador uma crítica
fecunda, dentro de uma perspectiva social: “Um teatro que seja novo necessita,
entre outros, do efeito do distanciamento para exercer crítica social e para
apresentar um relato histórico das reformas efetuadas” (Brecht, 1967: 107). O
efeito de distanciamento tem, assim, a importante função de estabelecer uma
reflexão crítica sobre a sociedade.
O transe e a ilusão não têm lugar na encenação épica. A possibilidade
de que o público se deixe envolver pela ilusão deve ser neutralizada por meios
artísticos. O objetivo da encenação brechtiana é possibilitar uma avaliação
crítica da ocorrência, dando um caráter histórico ao que é apresentado:
No teatro épico o efeito do distanciamento era provocado não só através dos atores, mas também da música (coros, canções) e da decoração (legendas, filmes, etc.). O principal objetivo deste efeito era conferir um caráter histórico aos acontecimentos apresentados (Brecht, 1967: 102).
O efeito do distanciamento no teatro oriental, notadamente, na arte
chinesa, foi estudado por Brecht e por outros dramaturgos alemães em peças
83
de estrutura não-aristotélica, isto é, que não se fundamentam na empatia. O
objetivo era acabar com a identificação do espectador com o personagem,
cujas ações seriam aceitas ou recusadas por esse espectador no plano da
consciência e não como era até o momento, no domínio do subconsciente: “A
aceitação ou a recusa das palavras ou das ações das personagens devia
efetuar-se no domínio do consciente do espectador e não, como até esse
momento, no domínio do seu subconsciente” (Brecht, 1967: 89).
A arte dramática chinesa lida com o efeito do distanciamento, utlizando-o
de forma sutil e empregando uma série de símbolos. Nas máscaras, por
exemplo, se definem os caracteres, como também determinados gestos têm
significados previamente estabelecidos ou definidos. Para o artista do teatro
chinês, não existe a convenção da quarta parede, que permite à cena sua
marca ilusionista: no jogo do teatro chinês o artista sabe que o espectador está
a assistir o que ele faz no momento presente da encenação. Isso evita a ilusão
de haver um espectador não esperado num acontecimento em curso. Dessa
maneira o teatro chinês se diferencia da técnica e prática europeias de teatro,
que buscavam obter do público a ilusão de um espectador impressentido dos
fatos desenvolvidos na cena. O artista chinês é espectador de si mesmo, como
os acrobatas, os atores escolhem, sob a vista de todos a posição que melhor
os expõe ao público. Essa auto-observação é um ato artificial de
distanciamento, que não permite ao espectador a empatia total, pois o próprio
artista cria uma distância dos acontecimentos. É por meio dos olhos do ator
que o público vê, pelos olhos de alguém que observa e, assim, no espectador
se desenvolve uma atitude de observação:
A auto-observação praticada pelo artista, um ato artificial de auto-distanciamento, de natureza artística, não permite ao espectador uma empatia total, isto é, uma empatia que acabe por se transformar em uma autêntica auto-renúncia: cria, muito pelo contrário, uma distância magnífica em relação aos acontecimentos. É pelos olhos do ator que o espectador vê, pelos olhos de alguém que observa: deste modo se desenvolve no público uma atitude de observação, espectante (sic) (Brecht, 1967: 93).
84
Brecht estava atento a esses aspectos que revelavam o uso técnico do
efeito do distanciamento na arte teatral chinesa, para a construção de sua
teoria do Teatro Épico. A forma épica do teatro, pelo seu cunho nitidamente
narrativo e descritivo, dificulta a identificação e a empatia, favorecendo o
pensamento crítico sobre os fatos apresentados. Cabe ao ator, portanto, jamais
abandonar a atitude de narrador, adotando um caráter de duplicidade na sua
interpretação. Ele atua como narrador e como objeto da sua narração; a
pessoa descrita e a que faz a descrição. O espectador não se vê diante de uma
terceira pessoa, resultante da fusão das duas outras. O caráter narrativo do
Teatro Épico repousa no efeito de distanciamento que existe tanto na
interpretação do ator, como na encenação propriamente dita fazendo parte
estrutural do teatro de Brecht. Assim, o efeito do distanciamento é provocado
não apenas através dos textos, dos atores, da encenação, mas também da
música (coros e canções) e do cenário (legendas, filmes, etc.).
O grande objetivo do distanciamento é colocar em evidenciar o “gesto
social” (1967), subjacente a todos os acontecimentos e, com isso, incitar o
espectador – não solicitado a qualquer identificação – a criticá-los com
profundidade. Brecht considera fundamental a expressão das emoções através
dos gestos, cabendo ao ator selecionar, entre as possibilidades gestuais,
aquela que seja mais adequada às emoções do seu personagem:
[...] todos os elementos da natureza emocional têm de ser exteriorizados, isto é, têm de ser desenvolvidos em gestos. O ator tem de descobrir uma expressão exterior, evidente, para as emoções do seu personagem ou então uma ação que revele objetivamente os acontecimentos que se desenrolam no seu íntimo (Brecht, 1967:135).
Além de expressar as emoções do personagem, o gesto para Brecht
deve ter um caráter social, revelando as relações e contradições que se
verificam entre os homens de certa época: “O objetivo do efeito de
distanciamento é distanciar o ‘gesto social’ subjacente a todos os
acontecimentos. Por ‘gesto social’ deve entender-se a expressão mímica e
conceptual de uma determinada época” (Brecht, 1967: 137). É preciso revelar
de uma só vez essas situações e para isso é preciso distanciá-las. A
literalização do teatro sob a forma de frases, cartazes, títulos e até do próprio
85
gesto tem como função privar o palco de todo estranhamento temático para
que se possa refletir com maior isenção sobre os fatos apresentados. Ela
acontece no texto, fragmentado, caracterizado pela ruptura.
As referencias acima estão presentes no espetáculo Marat/Sade de
Brook. Como se pode observar na foto abaixo os atores se utilizam de cartazes
e de narração, características já mencionadas do Teatro Épico. No momento
captado pela foto, o coro de bufões está narrando os fatos históricos que se
sucederam depois da morte de Marat, até 1808:
Imagem 10: Marat/Sade: coro de bufões e cartaz.
Podemos, pois, concluir que, embora suas diferenças, tanto o Teatro
Épico de Brecht, como o Teatro da Crueldade de Artaud reconhecem, dentro
dos seus respectivos pensamentos, a função e o poder do teatro junto ao
espectador, e o profundo diálogo que ambos podem estabelecer. Seja pela sua
ação junto ao inconsciente, como previa Artaud, seja pela sua ação junto ao
consciente e ao pensamento crítico, como prescrevia o teatro de Brecht.
De fato, enquanto Brecht buscava desenhar a encenação épica com os
traços da palavra, pela literalização da cena e pela citação de gesto, Artaud
procurava na cena a independência da palavra, querendo encontrar no teatro o
que a diferencia do texto. Apesar de serem contemporâneos e almejarem uma
transformação da sociedade, Brecht e Artaud adotavam meios distintos para
86
atingir seus ideais. O Teatro Épico de Brecht, de caráter social, queria levar ao
espectador uma consciência crítica e transformadora da problemática social
exposta em cena. Artaud, por sua vez, reivindicava um teatro de mito e magia,
um teatro metafísico, que atuasse profundamente no ser humano, como uma
terapêutica da alma. Assim, nessa perspectiva, Artaud comparava a ação do
teatro com a da peste:
O teatro, como a peste, é uma crise que se resolve pela morte ou pela cura. E a peste é um mal superior porque é uma crise completa após cuja passagem resta apenas a morte ou a purificação radical (Artaud, 1993: 45).
Em resumo, Artaud desejava ainda que o teatro revelasse ao homem
sua força oculta para que ele pudesse ser senhor do seu destino. O mesmo
supunha Brecht, que o mundo é passível de transformação e que o homem tem
o poder e a força para transformá-lo. Assim no universo das contradições se
estrutura a encenação cinematográfica Marat/Sade de Peter Brook, com
características épicas do teatro de Brecht e da crueldade do teatro de Artaud.
2.3.3 Peter Brook: Marat/Sade, o Épico e a Crueldade
Peter Brook no seu livro Pontos de Mudança menciona sua primeira
impressão da peça de Peter Weiss e, provavelmente, tal sensação influênciou
na escolha do texto para a montagem:
O mais importante não é a distância em si, mas o contínuo movimento de vaivém entre vários planos. Foi esta qualidade que mais me impressionou quando li Marat/Sade de Peter Weiss pela primeira vez e achei que era uma ótima peça. (Brook, 1995: 71)
Não foi arbitrária a escolha de Peter Brook para encenar a peça cujo de
título original A perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat representados
pelo grupo teatral do Hospício de Charenton sob a direção do senhor de Sade,
tinha uma relação profunda com ideias e pensamentos que ele possuía
naquele momento a respeito da vida e da arte. Teve contato pela primeira vez
com o texto por meio da montagem alemã do diretor Swinarski, e, a partir
87
daquele momento, decidiu montá-lo. Apesar de Brook não ser uma pessoa
profundamente política do ponto de vista militante naquele momento
reconhecia que tudo que era da direita era, segundo o próprio, infinitamente
pior do que o que era da esquerda (Sucher, 1999: 323). No entanto, Brook
deixa claro que nunca foi extremamente político, que nunca acreditou muito na
política e revela que seu intuito não era de levantar bandeiras e pensar em
construir uma peça de combate. Possuía o objetivo de buscar refletir as
contradições do mundo e percebe que esse pensamento influenciou sua
escolha do texto de Weiss:
Encenei Marat/Sade porque senti que Peter Weiss, que se considerava comunista, formulava nesta peça a sua própria contradição: tanto estava do lado de Sade como de Marat. Deste conflito trágico, violento, entre duas forças contraditórias resultou um excelente teatro. Weiss pensava que era a favor de Marat contra Sade, mas a peça era diferente. Foi assim que a encenei (Sucher, 1999: 323).
A descoberta de um texto se direcionou ao encontro das intenções de
Brook consistentes em pesquisar de pesquisar um teatro experimental, por
meio do estudo das contradições, que ele considerava acentuadamente
presentes no texto de Weiss. Esse fator ofereceu ao diretor inglês uma visão
“prismática”, como Veillon comenta: “O encontro da peça de Weiss aconteceu
nesse contexto. De repente encontrei uma peça prismática, que não era uma
peça com uma só direção, mas, ao contrário, era alguma coisa que criava
apenas contradições” (Veillon, 1985: 315 - tradução minha)25.
Assim, as contradições reveladas no texto de Weiss foram fundamentais
para a escolha de Brook:
Sempre suspeitei de qualquer credo, de qualquer convicção, de qualquer programa que ignore as contradições. O significado do caos, a necessidade da ordem; o desejo pela ação, o poder da inação; o silêncio que por si só dá sentido ao som; a necessidade da
25 “L’arrivée de la pièce de Weiss tombait dans ce contexte. Tout à coup, j’ai trouvé une pièce prismatique, qui n’était pas une pièce avec une seule direction, mais au contraire quelque chose qui ne créait que des contradictions.”
88
intervenção e a virtude da desistência; o equilíbrio entre a vida externa e a interna; o dilema do que dar e do que negar, do que tomar e do que recusar (...) (Brook, 2000: 101)
Brook desenvolvia na ocasião uma pesquisa centrada no
desenvolvimento do trabalho com atores. E, com seu grupo, o Lamda Theatre,
considerava que um bom texto, além de formar bons atores, é também
necessário para a construção de um teatro experimental.
No período em que ainda estava morando em Londres e que caracteriza
o final de uma das etapas de sua trajetória, Brook procurava, com sua
perspectiva experimental, uma proposta de teatro diferente do que era feito na
época, da qual apresentava um formato preestabelecido do fazer teatral. Para
isso, buscava inspiração em grandes artistas teatrais que trouxeram novas
propostas, pois queria romper com o formalismo do teatro. Sua busca era pelo
novo, pelo original, por algo que fizesse o público viver uma experiência ainda
não vivenciada.
Na época de sua montagem de Marat/Sade, Brook havia tido uma
experiência cênica anterior marcante, relacionada ao pensamento de Artaud.
Ele a intitulou Teatro da Crueldade. A crueldade nada tem a ver com
espetáculos de sadismo: refere-se ao rompimento dos limites abstratos da
linguagem para chegar aos seus elementos concretos. Crueldade, nesse
contexto, significa a ação sobre o outro, o rigor, a decisão, a aplicação
implacável, o apetite pela existência e o sofrimento como Artaud descreve em
carta a Jean Paulhan, de 12 de setembro de 1932, publicada no livro
Linguagem e vida:
A crueldade não é acrescentada ao meu pensamento. Ela sempre viveu nele, mas me faltava tomar consciência. Eu emprego o nome de crueldade no sentido cósmico de rigor, de necessidade implacável, no sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido dessa dor de necessidade implacável fora da qual a vida não saberia se exercitar (Artaud, 1995: 103).
Para Artaud, não há crueldade sem consciência, e na perspectiva da
valorização da razão, no que se refere à consciência crítica do sentido da
89
crueldade, pode se aproximar de Brecht e da valorização da consciência
crítica. São propostas de consciência de distintas naturezas: a de Artaud tem
um caráter metafísico e a consciência de Brecht tem um caráter social.
A consciência, para Artaud, também está conectada à clareza do
pensamento, relacionada à necessidade da encarnação de energias pelo
teatro, mencionada na carta a Jean Paulhan em 1936. Essa ideia tem natureza
semelhante à proposta de Brook com relação à criação de formas. O
pensamento de ambos permeia o que eles mesmos chamam de encarnação.
Expondo o processo de montagem da peça Rei Lear de Shakespeare, Brook
assim expressa:
Para mim essa foi a primeira indicação de que o teatro é um local de encontro entre um poder de imitação e outro de transformação chamado imaginação, que não terá qualquer efeito se permanecer apenas na mente. Ela precisa invadir o corpo. Uma palavra aparentemente abstrata, “encarnação”, subitamente ganha sentido (Brook, 2000: 52).
Sendo Artaud a inspiração do trabalho de Brook, justifica-se assim o
título da peça: Teatro da Crueldade. Brook dirigiu esse espetáculo em parceria
com o diretor americano Charles Marowitz (nascido em 1934) que, segundo
Matteo Bonfitto em seu livro A cinética do invisível, queria começar o processo
partindo do método criado por Stanislávski, até chegar ao pensamento de
Artaud. Por estar trabalhando com atores experientes, Brook sentiu a
necessidade de partir diretamente para a experimentação, mergulhando nos
escritos de Artaud sem precisar passar por um método tão diferente do teatro
que este propôs. “Brook e Marowitz haviam tentado explorar a linguagem física
artaudiana através de circunstâncias dadas de Stanislávski, e tal estratégia
limitou extremamente as possibilidades da investigação em termos práticos”
(Bonfitto, 2009: 11).
Brook trabalhou com o grupo Lamda Theatre, formado por atores da
Royal Shakespeare Company, com o qual realizou a montagem da peça Teatro
da Crueldade. Nesse grupo a tendência era trabalhar os atores por meio de
improvisações que também foram a base inicial para montagem de
Marat/Sade. A seleção do elenco para esse trabalho foi realizada com
90
exercícios de improvisação, em que o ator mais disponível – e sem resistência
a mudanças que lhe fossem propostas durante os exercícios era o mais apto
para a montagem. Os atores que estivessem mais desvinculados da técnica e
mais abertos a novas experiências seriam os atores mais aptos a encarar o
desafio da montagem de Brook:
Com efeito, o Lamda Theatre, grupo proveniente da Royal Shakespeare Company e dirigido por Brook e Charles Marowitz, se depara com a distância, difícil de preencher, entre os exercícios de improvisação, em que o melhor pode ser alcançado sem nunca poder ser reproduzido, e a repetição [o ensaio] dos textos clássicos, cujo sentido se perde numa rotina reverenciosa (Veillon, 1985: 311 - tradução minha)26.
Os atores que participaram do processo realizaram múltiplas pesquisas
para poder entender e representar os personagens do texto de Weiss.
Realizaram visitas a hospitais psiquiátricos, e conversas com psicólogos.
Percebemos aqui um trabalho de pesquisa relacionado com o método descrito
por Stanislávski:
O grupo buscava criar uma linguagem própria através de uma séria e dedicada pesquisa cênica, explorando a linguagem teatral como uma possibilidade de comunicação mais ampla e verdadeira entre público e atores (Monteiro, 2004: 03).
O processo de criação da peça com os atores foi repleto de
improvisações. O grupo Lamda foi instituído com base em improvisações e isso
se refletiu intensamente no trabalho final, tanto na peça quanto no filme:
O processo de encenação foi totalmente baseado em improvisações. O trabalho corporal e vocal dos atores é visivelmente produto de um treinamento intenso. As soluções cênicas parecem resultar, por sua vez, dessa química entre atores preparados para o improviso e a
26 “Le Lamda Theatre, group issu de la Royal Shakespeare Company et dirigé par Brook et Charles Marowitz, se heurte en effet à l´ecart difficile à combler entre les exercices d´improvisation, où le meilleur peut être atteint sans jamais pouvoir être reproduit, et la répétition des textes classiques dont le sens se perd dans une révérente routine” (Veillon, 1985: 311).
91
ausência de quaisquer elementos contextualizantes (Elias, 2004: 102).
O objetivo neste momento da pesquisa é identificar e discriminar na
prática de Brook as fortes influências das duas tendências representadas por
Artaud e Brecht, e como elas se manifestam na teatralidade cinematográfica de
Brook. No entanto, antes de discorrer sobre as influências que Brook sofreu na
montagem do texto Marat/Sade, temos que reconhecer que o próprio texto
sofreu influências do teatro da época e de pensadores como o próprio Brecht.
No seu livro Ponto de mudança, Peter Brook comenta as influências
aparentes no texto de Peter Weiss e que, de alguma forma, também o
inspiraram. Um crítico inglês rejeitou a peça pela presença dessas influências
inovadoras, e, em princípio antagônicas, o que para Brook, que admira as
contradições, se constituiu em motivo de atração e de valorização do texto:
Um crítico inglês atacou a peça, alegando que era uma sofisticada mistura dos melhores ingredientes teatrais da moda - brechtianos, didáticos, do absurdo, do teatro da crueldade. A intenção era depreciativa, mas faço a citação como um elogio Weiss captou a utilidade de cada uma dessas linguagens particulares e viu que precisava de todas. Assimilou-as completamente. Um conjunto de influências mal digeridas só pode gerar o caos. A peça de Weiss é forte, sua concepção central é surpreendentemente inovadora, seu perfil é definido e inconfundível. Pela experiência prática que tivemos, posso afirmar que a força do espetáculo está diretamente ligada à riqueza imaginativa do material. Esta, por sua vez, é conseqüência da pluralidade de níveis que operam simultaneamente; e essa simultaneidade é resultado direto da ousadia de Weiss ao combinar tantas técnicas contraditórias (Brook, 1995: 73).
Quando Brook decide montar Marat/Sade é evidente, a meu ver, que se
utilizou de diferentes princípios brechtianos, como por exemplo, a música,
exercendo uma critica ou fazendo um comentário sobre o que está
acontecendo em cena. O texto oferece o elemento de distanciamento por ter
narração, comentário, crítica, apresentação de personagem, relato de fatos,
enfim, um caráter épico que é encenado por Brook com um olhar brechtiano: o
ator olha a câmera/observador e conversa com espectador. Esse “diálogo” leva
92
o espectador a pensar sobre o que está sendo comunicado a ele e essa ação
da cena tem então uma marca caracteristicamente brechtiana. Brook utiliza o
recurso da música em cena para reforçar as questões aparentes no texto, além
das canções também influenciarem na atmosfera do espetáculo. Dentre outras
relações voltadas ao desenrolar do enredo, essas músicas sugerem criticas e
comentários reflexivos.
A observação de certos críticos da época que mencionaram ser a
montagem de Marat/Sade uma espécie de síntese de Artaud e Brecht não
agradou a Brook (Monteiro, 2004: 05). No entanto são claras as semelhanças
entre a montagem de Brook e as ideias dos pensadores de teatro citados.
Brook constrói em Marat/Sade o processo de instauração da peste, com
a consequente destruição total e a instauração da desordem. Nesse sentido a
música do final do espetáculo tem a função de mobilizar a todos num crescente
empregando um caráter marcial que adquire cada vez mais força, cadência e
volume. Assim, nessa perspectiva Artaud compara a ação do teatro com a da
peste: “parece que através da peste e coletivamente um gigantesco abscesso
tanto moral quanto social é furado, assim como a peste, o teatro existe para
furar coletivamente os abscessos” (Artaud, 1999: 44).
As palavras de Weiss referentes ao final do texto também parecem
remeter ao caráter de instauração da peste proposta por Artaud: “os pacientes
estão dominados pela loucura de sua marcha dançante”. (Weiss, 2004). O
teatro da revolução cede lugar à revolução do teatro realizada pelos internos de
Charenton. Se seguirmos a trilha do pensamento de Artaud, em seu ensaio O
teatro e a peste (Artaud, 1993: 09), perceberemos que, com a peste, a ordem
desmorona, a sociedade se desfaz, ocorrem desvios da moral, não há limpeza,
exército, polícia, enfim, acontece o que Brook constrói nos momentos finais de
Marat/Sade: o caos se instala. Brook propõe a filmagem ininterrupta da peste
tomando conta de tudo, com três câmeras, capturando a variação do olhar do
espectador diante de um espetáculo teatral que é a própria instauração do
caos. Tudo acontece como se estabelecesse com o espectador uma relação
especular, em que pode observar na imagem a si mesmo e seu poder diante
do destino, como afirma Artaud sobre a força mobilizadora do teatro:
93
Ele convida o espírito a um delírio que exalta as suas energias; e vemos para terminar que, do ponto de vista humano, a atuação do teatro, como a da peste, é benéfica, impelindo os homens a se enxergarem como são fazendo caírem as máscaras, descobrindo a mentira, a velhacaria, a baixeza, a hipocrisia; sacudindo a inércia asfixiante da matéria que toma conta até dos dados mais claros dos sentidos, revelando às coletividades seu poder sombrio, sua força oculta, convidando-as a tomarem uma atitude heróica e superior diante do destino, que de outro modo jamais assumiriam (Artaud, 1983: 64).
Como são propostas na montagem de Marat/Sade, as ações acontecem
e por vezes não temos essa sensação de fatos alinhados, mas sim de um
espetáculo que flui, que se desenvolve na direção de algum acontecimento que
modifica o pensamento de quem o assiste. Podemos relacionar essa sequência
de ações cênicas a características que permeiam o Teatro Épico, mesmo
sendo Marat/Sade uma montagem que não se definiria, em princípio como
filiada a tal teoria. A intenção do Teatro Épico não é levar o espectador a viver
experiências dramáticas por sugestão, e sim, levá-lo a uma atitude ativa diante
do mundo com o intuito de transformá-lo. E alguns recursos que Brecht propõe
como meio de atingir essas transformações percebemos que são utilizados por
Brook.
A atitude que a encenação assume, para Brecht, identifica-se com a de
um cronista de costumes e a de um historiador. O ator de um teatro assim, a
serviço de uma arte dramática não-aristotélica, deverá esforçar-se para que o
espectador reconheça nele um intermediário entre si e o acontecimento. Com o
efeito do distanciamento o ator não deve se limitar a dizer a fala como se fosse
sua, mas deve submetê-la a uma crítica, suscitando no público uma atitude
reflexiva. Como comenta Pavis sobre o tema relacionado ao filme de Brook,
“Cada ator trata sua personagem à sua própria maneira, procurando o gestus
vocal que melhor corresponde à sua doença e seu papel;” (Pavis, 2003: 102).
Brecht trabalha sobre o que chama de “gestus: unidade de
exteriorização artística e significativa de uma ideia” (Brecht, 1967: 54). Ainda
segundo Pavis, "o gestus se situa entre a ação e o caráter (oposição
aristotélica de todo teatro); enquanto ação, ele mostra a personagem engajada
numa praxis social; enquanto caráter representa o conjunto de traços próprios
94
a um indivíduo" (Pavis, 1999: 187). É o que a peça de Weiss e o filme de Brook
apresentam como foco das contradições na ação e no discurso, isto é, nas
falas dos personagens.
O espectador tende a ser conduzido pela encenação. Para combater
suas tendências e sucessivas associações de ideias, é possível dispor de
pequenos coros que lhe ensinam que atitude tomar. Esse grupo de atores
estimula a plateia a formar opiniões, a recorrer às suas experiências, a
controlar-se. Emancipam o espectador do mundo apresentado e da própria
representação. E pode-se associar o coro de bufões presente em Marat/Sade
ao coro proposto por Brecht, no sentido da promoção do distanciamento. No
texto original de Peter Weiss esse coro está presente e descrito como um coro
cômico. Essa ideia de comentar fatos ou contradições de personagens existiria
anteriormente à montagem de Brook, que reitera a intenção brechtiana de
Weiss. O texto de Weiss se estrutura sobre os elementos dialéticos, como
afirma o Olivier – René Veillon:
Weiss fundamenta sua dramaturgia sobre infinitos recursos dialéticos, que fulguram na imagem de Sade-diretor de teatro em cena, oferecendo à burguesia que triunfa, a rememoração e a ruminação por onde passou. Weiss assume o risco de fazer de tudo objeto da sua peça. Desde a marionete do seu teatro quebrar os seus fios e agir para a sua própria conta. Desse ponto de vista, cria cenas de teatro e de cinema. Brook vai mais adiante ainda, fazendo da peça escrita por Sade o meio para conhecer e atualizar as contradições da peça de Weiss. (Veillon, 1985: 314) 27.
Como é rejeitada no Teatro Épico a noção de quarta parede, tal relação
permite aos atores se voltarem diretamente para o público, o que acontece
repetidamente na montagem de Brook, pois os atores se dirigem ao espectador
ora como internos, ora como os personagens que interpretam.
27
“Weiss fonde as dramaturgie sur lês infinies ressources dialectiques qui fulgurent dans l’image de Sade-metteur em scène, offrant à la bourgeoisie triomphant la remémoration et la rumination de ce par quoi elle est passée. Weiss prend le risque de tout accorder à l’objet de sa pièce. Il laisse la marionnette de son théâtre rompre sés fils et agir son compte. Dans ses partis-pri de mise em scène du théâtre au cinema, Brook va encore plus loin em faisant de la piéce écrite par Sade le moyen de connaître et de mettre à jour les contradictions de la pièce de Weiss”.
95
O ato de mostrar a ação é uma característica predominante do Teatro
Épico, como ocorre nas três visitas de Corday, preparando a morte de Marat, o
que pode ser observar na imagem a seguir:
Imagem 11: Marat/Sade: assassinato de Marat.
Magaldi também reconhece as influências de Brecht no texto de Weiss e
ainda acrescenta o efeito de distanciamento que ocorre pelo fato de os
personagens serem representados por interno do manicômio:
A influência de Büchner e de Brecht, um precursor e um epígono do expressionismo, marca o estilo de Marat/Sade. A maneira expressionista, que tende para a abstração, faz das personagens de Peter Weiss simbolizações de conceitos, que dispensam as particularidades psicológicas. A circunstância de serem elas interpretadas por loucos, facilita a convicção das verdadeiras marionetes em que se materializam, abrindo-se também para o efeito brechtiano do distanciamento. (Magaldi, 1989: 470)
Como foi observado por Magaldi, o distanciamento é fundamental no
pensamento de Brecht e se faz um ponto visível tanto na montagem de Brook
quanto no texto de Weiss. Com a ausência da quarta parede, a encenação
épica incorpora elementos narrativos como a utilização de cartazes, presentes
na peça de Brook. A técnica de distanciamento impede o ator de produzir o
96
efeito da empatia. O objetivo do distanciamento é, finalmente, distanciar o
gesto social subjacente aos acontecimentos, gestos que evidenciam as
contradições sociais presentes no contexto da encenação. A própria escolha de
uma paciente depressiva e sonolenta para representar Corday, como faz
Weiss, coloca em evidência, pela sua fraqueza, desproteção ou insegurança,
as contradições do seu próprio gesto de matar Marat. Brook valoriza a
contradição da incerteza do gesto com o uso inseguro e sonolento do punhal
pela paciente. A câmera registra tudo com rigor e culmina com o fato de o
próprio paciente que representa Marat ser responsável pelo gesto de usar o
punhal exterminando seu personagem. É o interno paranóico que faz o gesto
de apunhalar o personagem que ele representa. Tal gesto também ocasiona
um efeito de distanciamento levando o espectador a refletir sobre o fato, isto é,
sobre o assassinato de Marat. Como pode ser observado na foto abaixo:
Imagem 12: Marat/Sade: Charlotte Corday
Nessa busca da essência do teatro que espelhe a crueldade da vida,
sofrimento ontológico a que estamos sujeitos, ou na busca de uma linguagem
que aponte as contradições da nossa sociedade, observamos que, mesmo
trilhando caminhos distintos, o Teatro da Crueldade de Artaud ou o Teatro
97
Épico de Brecht buscam um objetivo comum, a transformação do homem, no
sentido de conscientizá-lo da sua força em relação ao seu poder de condução
de seu próprio destino.
Em suma, Brook consegue alcançar em seu filme uma intenção crítica e
reflexiva com manifestações épicas características de Brecht e, ao mesmo
tempo, obtém o envolvimento na cerimônia e em toda a sua estrutura
anarquista, ritualística e empesteada, que estabelece novas relações dos
signos entre si, atribuindo-lhes novos significados e construindo um universo
que Artaud nomeia como a poesia no espaço.
98
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como se pode observar por meio das teorias e pesquisas de Patrice
Pavis, Josette Féral e Peter Brook, a teatralidade apresenta estreita relação
com o olhar, precisamente com a natureza do olhar. O olhar tem um caráter
objetivo, acontece sobre o objeto do olhar e, simultaneamente, apresenta
caráter subjetivo, pertencente àquele que está a olhar. Dessa maneira se
reconhece na teatralidade a importância do olhar como determinante de sua
existência e, consequentemente, ela diz respeito ao observador.
Peter Brook sugere que o objeto do olhar corresponde à noção do ator
em meio ao espaço vazio, deixando que a livre observação do espectador
preencha o vazio com a sua imaginação. Em Marat/Sade encontramos o vazio
instalado no cenário, nos figurinos, nos objetos e nas inúmeras possibilidades
de preenchimento do espaço. Brook propõe um acordo de cumplicidade com o
espectador que, a partir de um diálogo estabelecido com o ator, faz com que
ele preencha tal vazio com suas possibilidades de sentido, indiciados ou
sugeridos, pelo jogo com os atores.
Um exemplo dessa situação no filme Marat/Sade é a porta da casa de
Marat, à qual bate Corday. A presença da porta se marca pelos sons da batida
do cajado do Anunciador no chão e pelos gestos da interna no ar, que simulam
as batidas na porta; outro objeto vazio é o cabelo de Corday, usado como
chicote ao bater nos ombros de Sade durante sua exposição de ideias
fomentadoras e de críticas à Revolução. O próprio ambiente é
simultaneamente o palco e a sala de banhos do hospital, como também pode
ser um espaço indefinido onde ocorre a ação. Os atores internos do manicômio
são também potencialmente vazios, como a interna que representa Charlotte
Corday pode ser igualmente o personagem anônimo que chicoteia Sade com
suas ideias partidárias e contrárias à Revolução.
Dentro do espaço vazio, isto é, do espaço que constitui potencialidade e
virtualidade com todos os seus possíveis significados, Peter Brook desenvolve
Marat/Sade. O diretor busca nessa obra a teatralidade do cinema e procura
fazer com que a câmera desempenhe a função do olhar do observador. É o
foco da câmera que apresenta o universo da cena para o espectador.
Simultaneamente ela mostra o ritual de uma cerimônia, a peça representada
99
pelos internos e a discussão dos elementos que configuram esse ritual, além
de pôr na berlinda seus agentes, os fatos, as repercussões e as ideias dentro
de um cenário de contradições.
O duplo do teatro, ou por assim dizer, aquele que caminha ao seu lado,
se estrutura em Marat/Sade em tempo, espaço, ação, enredo e personagem —
signos que são construtores da experiência de subjetividade vivenciada pelo
espectador. A realidade imaginária de duplo se estabelece entre o ator e o
espectador, que é inserido no universo da cerimônia. A ação contribui ainda
mais com o preenchimento do vazio. E no espaço da virtualidade, de
potencialidade de nascimento, como já foi comentado por Sucher, o espectador
se depara com um universo de natureza primordial, no qual ainda não se tem a
forma, mas a potencialidade. Nesse espaço vazio e mítico o observador pode
constituir distintas formas por meio de seu olhar particular, de sua imaginação.
É característica da teatralidade do filme essa ambivalência de planos
que tendem a um desequilíbrio e que se revelam em uma desordem condutora
do caos em todas as instâncias. Trata-se da realidade dos internos de
Charenton e de aspectos da Revolução Francesa imersa em suas próprias
contradições. Ambas as realidades expressam uma tendência à transformação,
a mudanças, ao caos, à busca de uma nova era, de natureza paradisíaca,
como prescreviam os ideais revolucionários: liberdade, igualdade e
fraternidade.
Ocupando o espaço vazio, pleno de possibilidades significativas que
serão concretizadas pelo imaginário do espectador, Peter Brook extrai do texto
de Peter Weiss suas possibilidades. De suas imagens enfatiza o caráter épico,
narrativo e crítico, evidenciado nos comentários junto ao espectador, como
também no espírito crítico das músicas entoadas pelo coro. As significâncias
aumentam ainda com as discussões em cena e contradições apontadas pelo
texto sobre a revolução dos sãos na França ou, posteriormente, pela revolução
dos insanos, os internos de Charenton.
A fragmentação da narrativa que, lentamente, conduz ao caos, é
preenchida pelo poder sugestivo da imagem no espetáculo cinematográfico de
Brook. Dessa maneira, encontra-se no filme uma encenação que se estrutura
em signos que apresentam uma natureza simbólica: a apresentação do sangue
das pessoas assassinadas pela revolução tem suas diferenças sociais. O
100
sangue dos nobres é simbolizado por uma grossa tinta vermelha, vertido de um
balde, e o sangue do rei é representado por uma grossa tinta azul. Já o sangue
do povo, não dos nobres, dos plebeus, não é vermelho, nem azul, é uma tinta
preta junto de outra de cor branca. Lembrando apenas que as cores azul,
vermelha e branca representam as cores após a monarquia.
Tais signos com valor simbólico acontecem nos gestos, nas máscaras,
nas atitudes dos personagens, nos seus movimentos particulares ou coletivos e
adquirem no conjunto uma significação singular. Além disso, tais signos
refletem em imagens e situações o que a própria palavra não é capaz de
traduzir. A imagem em Marat/Sade preenche as lacunas da impotência da
palavra.
Brook constrói dessa forma uma encenação em que os signos se
articulam, preenchendo o vazio e instaurando novos sentidos por meio de sua
relação singular no espaço. Nesse contexto, em que o imaginário se digladia
para a edificação de novas significações, o momento presente se instaura, o
diálogo acontece verdadeiramente e o teatro toma conta de tudo. Existe um
código comum de comunicação instaurado pelo jogo de signos estabelecido na
cena que chega ao espectador possibilitando distintos sentidos para preencher
as lacunas dos signos.
O espaço vazio idealizado por Brook é encontrado em Marat/Sade na
presença objetiva dos signos no espaço diante da presença subjetiva da
imaginação do espectador. Nesse processo, o ator de Brook age como um
contador de histórias em busca de um diálogo efetivo com o público. Ele
aproveita a atenção do espectador, dividida entre a construção dupla dos
personagens e suas relações. Dessa forma, o ator de Brook supera o paradoxo
da relação simultânea que estabelece consigo mesmo e com o espectador,
construindo com mais rigor o momento presente.
Com efeito, a potencialidade da atenção despertada junto ao espectador
é fundamental para que o invisível se torne visível. No filme Marat/Sade essa
busca de significação para o vazio objetivado no espaço faz do filme um
desvendamento constante. Como se o mistério constituísse a sua essência em
um processo contínuo, que envolve a cumplicidade e a continuidade do
exercício da imaginação pelo observador. Dessa maneira, o filme gera e
provoca o nascimento de formas e suas significações, que aparecem em
101
movimentos, gestos, falas, sons, figurinos, músicas e, principalmente, na
relação que os atores estabelecem com o vazio à sua volta e com o
espectador. Peter Brook reafirma em seu filme a ideia de que o teatro é um
fenômeno que diz respeito à percepção e que ocorre no momento presente na
relação sujeito-observador.
Os signos que constituem a encenação ou as imagens no filme se
estruturam com sentido a partir da relação que estabelecem entre si. Assim,
um repolho pode ser a cabeça coroada do rei deposto pela revolução na qual
foi posta uma cenoura como nariz. O rei é decapitado e a cabeça repolho
tomba. Os internos que representam o povo destroem os legumes que
representam o rei e o devoram em um simbólico rito antropofágico. E a tinta
azul é derramada. O sangue azul da realeza escorre, se esvai.
Com esses elementos, a ação reúne as duas tendências teatrais. O
repolho ser decapitado, destruído e devorado é um Gestus social de natureza
brechtiana que revela as contradições da sociedade, expressas em distintas
demandas das diferentes classes sociais. O gesto com tinta azul também é um
Gestus social, que evidencia a diferença social existente entre o rei, de sangue
azul, e seus súditos, como se tal distinção fosse natural e fizesse parte do
próprio corpo humano nessa estrutura de sociedade.
Percebe-se na estrutura do espetáculo cinematográfico o jogo entre os
signos como o repolho, por exemplo, que vai definir novos sentidos para
aqueles que tinham sentidos estratificados. É a instauração do vazio nos
signos em busca da ressignificação. Essa relação de ressignificação para os
signos constitui para Artaud a base da anarquia. A encenação no espetáculo
cinematográfico de Marat/Sade tem um fundamento anárquico; ela destrói
sentidos já estabelecidos, instituindo novos sentidos. A definição no presente
desses novos significados para os signos em Marat/Sade constitui a Anarquia
que, para Artaud, é o fundamento da Poesia. Tal foto ocorre, por exemplo, no
final do espetáculo, quando os atores ou personagens quebram todo o cenário,
instaurando e produzindo em sintonia a Revolução e a Poesia. A peste é
promovida pela revolução, pelos internos no hospício e pela presença da
metáfora possibilitada pelo espaço vazio, que constrói o discurso da poesia no
espaço com o rigor que a crueldade possibilita.
102
Neste trabalho percebo a busca da arte pelo encontro com a Poesia. O
preenchimento do espaço destinado ao jogo de signos se torna fascinante aos
olhos de quem vê. No entanto, produzimos esse jogo na vida a todo momento:
signos que não precisam ser decodificados e reestruturados, e sim vividos e
imersos no universo do mito, em que a metafísica, a peste e a crueldade se
revelam E, como disse Artaud, “O teatro é o duplo da vida”.
A teatralidade, no filme de Brook, se constrói como Poesia e se revela
pela presença do invisível em um espaço vazio pleno de possibilidades de
sentidos. Tudo acontece através de um diálogo que o ator estabelece com o
espectador No momento presente em que o processo de preenchimento do
espaço vazio acontece, a teatralidade de Brook se revela e o invisível se torna
visível.
103
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MATERIAL AUDIOVISUAL
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The Tragedy of Hamlet, versão cinematográfica do espetáculo dirigido por Peter Brook. Distribuição Arte Vidéo, Facets Video. Duração 132 minutos, colorido. Paris, França, 2001.
Marat/Sade. Versão cinematográfica do espetáculo dirigido por Peter Brook. Distribuição United Artists Corporation. Duração 116 minutos, colorido. Nova York, EUA, 1966.
108
O Mahabharata, de Peter Brook inspirado na peça teatral de Jean-Claude Carrière. Produção Michel Propper. Duração 171 minutos, colorido. Reino Unido / França, 1989.
A paixão de Joana d´Arc, escrito e dirigido por Carl Theodor Dreyer. Distribuição indefinida. Duração 110 minutos, preto e branco. Paris, França, 1928.
Napoléon, de Abel Gance. Distribuição Gaumont (Europa); Metro-Goldwin-Mayer (EUA). Duração 200 minutos, preto e branco. França, Itália, Alemanha, Espanha, Suécia e Tchecoslováquia, 1927.
109
ANEXO I
FICHA TÉCNICA DO FILME MARAT/SADE:
Título Original: The persecution and assassination of Jean-Paul Marat as
performed by the inmates of the asylum at Charenton under the direction of the
Marquis of Sade (A perseguição e o assassinato de Jean-Paul Marat,
representados pelo Grupo Teatral do Hospício de Charenton, sob direção do
Senhor de Sade).
Autor: Peter Weiss
Direção: Peter Brook
Roteiro: Adrian Michell, Geoffrey Skelton
Duração: 116 minutos
Elenco:
Glenda Jackson (Charlotte Corday)
Ian Richardson (Jean-Paul Marat)
Patrick Magee (Marquês de Sade)
Michael Williams (Herald)
Clifford Rose (Monsieur Coulmier)
Freddie Jones (Cucurucu)
Hugh Sullivan (Kokol)
Jonathan Burn (Polpoch)
Jeanette Burn (Rossignol)
Robert Langdon Lloyd (Jacques Roux)
John Steiner (Monsieur Dupere)
John Harwood (Voltaire)
Leon Lissek (Lavoisier)
Susan Williamson (Simone Evrard)
Brenda Kempner (Madame Coulmier)
Ruth Baker (Mademoiselle Coulmier)
Stanford Trowell (Guarda)
110
Timothy Hardy (Guarda)
Ian Hogg (Military Representative)
Henry Woolf (Father)
Mary Allen (Patient)
Maroussia Frank (Patient)
Tamara Fuerst (Patient)
Sheila Grant (Patient)
Lynn Pinkney (Patient)
Carol Raymont (Patient)
Michael Farnsworth (Patient)
Guy Gordon (Patient)
Michael Percival (Patient)
Heather Canning (Nun)
Jennifer Tudor (Nun)
William Morgan Sheppard (A Mad Animal)
John Hussey (Newly Rich Lady)
Mark Jones (Mother)
James Mellor (Schoolmaster)