1
Kos ou Kosm? Uma Análise Comparativa entre Bloodborne e H.P. Lovecraft1
Gabriel Ribeiro Leite2
Profa. Dra. Alessandra Matias Querido3
Resumo: O objetivo deste artigo científico é a identificação e análise entre as relações das obras
“The Call of Cthulhu”, “The Shadow Over Innsmouth”, ''Nyarlathotep'' e “The Dunwich Building”,
do escritor estadunidense H. P. Lovecraft, com as mecânicas de jogabilidade e a narrativa presente
no jogo eletrônico Bloodborne. Para tal fim, serão definidos os conceitos do gótico, terror e horror,
terror cósmico, a mitologia criada a partir dos contos de H.P. Lovecraft, The Cthulhu Mythos e
narrativa de jogos, utilizando teorias de Birkhead (1921), Hogle (2002), Savoy (2002), Ralickas
(2009), Steins (2016) e os conceitos constantes de Narrativa em jogos eletrônicos (SALEN,
ZIMMERMAN, 2003).
Palavras-Chave: Bloodborne. Terror e horror. The Call of Cthulhu. Terror Cósmico. H.P.
Lovecraft.
Kos or Kosm? A comparative analysis between Bloodborne and H.P. Lovecraft
Abstract: The goal of this article is to identify and analyze the connections between the tales The
Call of Cthulhu, The Shadow Over Innsmouth, Nyarlathotep and The Dunwich Building, from the
American writer H.P. Lovecraft, with the in-game mechanics and the narrative present in the
electronic game Bloodborne. To meet such end, a few concepts of gothic, horror, cosmic horror,
the mythology created by Lovecraft’s tales, ''The Cthulhu Mythos'' and game narrative shall be set,
making use of theories from Birkhead (1921), Hogle (2002), Savoy (2002), Ralickas (2009), Steins
(2016) and the static concepts of Narrativa em jogos eletrônicos (Salen Zimmerman, 2003).
Keywords: Bloodborne. Horror. The Call of Cthulhu. Cosmic Horror. H.P. Lovecraft.
INTRODUÇÃO
1 Artigo apresentado ao Curso de graduação em Letras Inglês da Universidade Católica de Brasília – UCB, como
requisito parcial para obtenção do Título de Licenciado em Língua Inglesa e respectivas literaturas.
2 Graduando do Curso de Letras Inglês da Universidade Católica de Brasília – UCB 3 Professora do Curso de Letras Inglês da Universidade Católica de Brasília – UCB
2
As narrativas que envolvem o terror podem ser encontradas nas histórias mais antigas da
humanidade, uma vez que o homem desde sempre se sentiu curioso a respeito de contos que
instiguem a imaginação e explique o inexplicável. Com o passar do tempo e a evolução das
ciências trazendo uma explicação sobre os fenômenos, o que causava terror, não causa mais e por
isso há uma sofisticação do conceito do que fundamentava o medo. Apesar disto, o medo é um
sentimento intrínseco do ser humano.
Baseando-se neste conceito, este artigo fará uma análise comparativa entre duas obras que
fazem uso dessa vertente. Uma, do século XIX, explora o tema literariamente. A outra, inspirada
na primeira, utiliza a linguagem moderna dos jogos eletrônicos.
Antes de partir para a análise do jogo, haverá uma contextualização dos gêneros terror e
horror e como ambos são distintos. Quando surgiram, suas características, como o gênero foi
representado e visto na cultura americana e porque fez tanto sucesso entre as mentes da população.
Também será mostrado como o terror criou vertentes; uma delas fazendo parte da análise final (o
terror cósmico), quais são as mudanças que marcam tal gênero e como podemos ver as influências
dele nos jogos, mais especificamente, no jogo Bloodborne. Consequentemente, será abordado a
mitologia criada em cima da literatura Lovecraftiana denominada de Cthulhu Mythos, onde o
universo dos seres mitológicos criados por Lovecraft foi e ainda é expandido até hoje. Deve-se
tomar nota, primeiramente, de que apesar de ser um autor de renome atualmente, a carreira de
Lovecraft teve um início difícil devido a dificuldades que o autor tinha em se relacionar com outras
pessoas. O autor era/é considerado misantropo, xenófobo e racista. Mesmo com todas essas
peculiaridades, ele conseguiria a publicação de várias de suas obras em uma revista chamada
''Weird Tales'', que aglomerava histórias e contos de terror. Todavia, suas obras só começaram a
ganhar notoriedade após sua morte, em 1937. É interessante notar que escritores e diretores
famosos do século XX e XXI inspiram-se demasiadamente em suas obras, isso sem contar as
adaptações que foram trazidas ao universo da cinematografia, cartas, jogos de tabuleiro, músicas
e até videogames.
Serão abordados conceitos e aspectos da narrativa de jogos digitais e como essa narrativa
contribui para a criação daquele mundo digital fictício, e quais formas de narrativas existem para
cada tipo de jogo para que haja uma construção verosímil naquele cenário entre a história,
personagens, ambientação e até mesmo trilha sonora.
3
Por último, como foco de pesquisa deste artigo será o jogo eletrônico Bloodborne, que
apesar de ter uma narrativa extremamente subjetiva e complicada, traceja elementos cruciais que
foram minuciosamente trabalhados em cima da literatura de Lovecraft.
O jogo, então, será relacionado analiticamente com as obras de Lovecraft, sempre trazendo
uma ponte ligando o que ocorre em Bloodborne com os contos de Lovecraft citados no resumo,
para que haja uma análise congruente relacionando ambos.
1. GÓTICO
De acordo com Birkhead (1921, p. 1) a história dos contos de terror é tão velha quanto a
própria história do homem. A autora afirma que esses mitos tinham o propósito de explicar os
fenômenos que aconteciam, tais como a chuva, o amanhecer, o anoitecer e a própria criação da
humanidade. As histórias que eram contadas, naturalmente, tinham como intenção, além de
explicar o inexplicável, causar medo e impressionar as mentes da época. Ela cita como exemplo o
mito universal do grande Dilúvio, que foi, provavelmente, o primeiro conto de terror criado,
inspirando medo em todas as pessoas e até mesmo nos deuses Essa tendência humana de tentar
compreender o desconhecido daria início ao famoso gênero ''Gótico'', mesmo que ainda não tivesse
essa denominação na época.
A palavra ''Gótico'', passa a ser conhecida na sua acepção literária no século XVIII,
assumindo um significado negativo segundo Hogle (2002). Naquele século, sua verdadeira história
começou, passando a significar algo [...] bárbaro, medieval e sobrenatural.''4 (PUNTER apud
BOTTING 2001, p. 1). O autor diz que a palavra foi usada de maneira depreciativa em relação à
arte, arquitetura e escrita e que o seu objetivo era contrariar os padrões neoclássicos da época,
trazendo à tona a falta de razão, moralidade, fé e princípios.
De acordo com Hogle (2002), o primeiro conto considerado Gótico foi o ''The Castle of
Otranto'' de Horace Walpole, escrito na Inglaterra sob um pseudônimo, provavelmente para evitar
retaliações da sociedade da época. Algumas obras foram produzidas depois da obra de Walpole,
mas foi apenas após sua morte que o gênero recebeu o impacto que necessitava para sair da
4 [...] barbarous, medieval and sobrenatural. (tradução nossa)
4
obscuridade, precisamente em 1790. Posteriormente, inspirou diversos escritores, como Bram
Stoker, Stephen King, Ann Radcliffe, entre outros.
No século XIX, com o Gótico já tendo bastante aceitação, alguns livros foram publicados
e ajudaram na proliferação do gênero, entre eles, ''O Drácula de Bram Stoker'' (1897), ''O Retrato
de Dorian Gray'' (1890), ''O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde'' (1886), entre vários outros
igualmente importantes. Ainda de acordo com Hogle (2002), o Gótico está presente na cultura
ocidental há 250 anos e sofreu mudanças ao longo do tempo, mas suas características vitais ainda
permanecem iguais. Ele também afirma que os ambientes onde as histórias góticas acontecem,
partilham de cenários em comum, como castelos, masmorras, cemitérios, prisões, casas velhas,
fábricas, etc. E nestes lugares habitam as criaturas da noite: assombrações, lobisomens, vampiros,
entidades do submundo e até seres alienígenas.
No século XX, o Gótico já era algo famoso e cultuado, e, com a expansão da tecnologia
(cinema, televisão, internet) apenas se ampliou para outras áreas, sendo transposto para filmes,
programas televisivos, peças de teatro, jogos, musicais, dentre outros, com sucesso inegável.
De acordo com Savoy (2002), a transição do século XVIII para XIX foi a época em que a
literatura gótica americana começou a ser formada. Os Estados Unidos, como nação livre e otimista
era um paradoxo, como um alicerce perfeito para a propagação da literatura Gótica, por causa da
fascinação pelo passado e temas sombrios devido aos acontecimentos da época de sua colonização.
Muitos postularam perguntas para o porquê disso, mas Savoy (2002, p. 167) afirma que o Gótico
é uma metáfora que5 ''[...] é frequentemente ponderada, onde personifica-se e dá voz ao pesadelo
sombrio que é o sonho americano.'' O sonho americano pode ser construído a partir das ideias de
colonização e prosperação dos ingleses que foram para os Estados Unidos em busca de recomeço.
Estas afirmações podem ser levadas a sério até um certo ponto, pois evidenciam as limitações do
progresso e fé da sociedade americana. No entanto, esta comparação entre os polos sonho e
pesadelo é muito comum e simples, porque ambas têm uma relação mútua. As maiores
características do Gótico americano são a utilização de símbolos e figuras verbais, como metáforas.
5 The most common responses to these questions have recourse to conventional metaphors: the Gothic, it is
frequently reasoned, embodies and gives voice to the dark nightmare that is the underside of “the American dream.
(tradução nossa)
5
Primariamente, os escritores Góticos americanos foram influenciados, em sua maior parte,
pelo Gótico britânico. As figuras de linguagem foram de suma importância na tradição da literatura
Gótica, sendo uma delas a prosopopeia, vulgo personificação, em que ideias abstratas de
acontecimentos ganham forma. Por exemplo, é o que permite aos mortos voltarem à vida, uma voz
fantasmagórica ser materializada do nada e objetos adquirirem vida de maneira ameaçadora. Isso,
por consequência, alcança os efeitos desejados do assombrado e do assustador enquanto, ao mesmo
tempo, demonstra as profundezas da vida e mente americanas. Quando a ficção chega a esse ponto,
ocorre uma ruptura entre duas concepções, ou melhor, vertentes do Gótico: O terror e o horror.
1.1 TERROR E HORROR
O terror submete o indivíduo aos sentimentos de ansiedade, suspense e medo, pondo sua
vida e sanidade em teste. Alguns jogos fazem um excelente uso da sanidade como método de
jogabilidade6. O game de Survival-Horror ''Amnesia: The Dark Descent'', por exemplo, põe o
jogador em ambientes de iluminação extremamente escassa, onde criaturas monstruosas que foram
criadas por experimentações em um castelo, têm o objetivo de matar o protagonista, diminuindo
sua capacidade de discernir ilusão de realidade, e, consequentemente, levando o protagonista a
enxergar objetos e coisas que não deveriam estar lá.
Já no horror, o leitor é exposto a manifestações explícitas de extrema violência que causam
repulsa. Tripas, sangue demasiado, corpos mutilados podem ser vistos o tempo todo,
[...]''estilhaçando explicitamente as supostas normas (incluindo repressões) da vida cotidiana com
consequências assustadoramente chocantes e revoltantes. ''7·. (HOGLE, 2002, p. 03)
Hogle (2002) diz que a narrativa Gótica deixa em evidência, pela leitura, os sentimentos
sombrios e perversos que os humanos têm, mas que não podem deixar vir à tona. Nas obras do
Lovecraft, apesar de fazerem parte de uma vertente diferente da literatura Gótica, esta dualidade
humana também está presente. Alguns humanos de suas obras têm o desejo de possuir
conhecimento, dinheiro, etc., e isso os leva a recorrer às divindades (Great Old Ones). Ao fazer
6 Jogabilidade é um termo que vem do inglês gameplay e é utilizado para denominar a maneira específica que um
jogador interage com um jogo. No caso do jogo eletrônico, é um padrão definido durante o jogo por meio de regras,
desafios, enredo e conexão entre o jogador e o jogo. Os elementos audiovisuais são distintos da jogabilidade. (SALEN,
ZIMMERMAN, 2003.) 7 […] explicitly shattering the assumed norms (including the repressions) of everyday life with wildly shocking, and
even revolting, consequences. (tradução nossa)
6
isso, estas pessoas se vendem e tornam-se criaturas disfarçadas de humanos, que capturam ou
matam forasteiros por medo de que algo aconteça com essa comunidade que eles criaram para
venerar as divindades.
O motivo do Gótico durar tanto, de acordo com Hogle (2002), é a existência dos seus
mecanismos simbólicos, particularmente a parte assustadora, que permite criar muitas obras
diferentes, mesmo tendo contextos repetidos. Até mesmo quando as mudanças vão do clássico
para o moderno, a parte central ainda permanece a mesma, que seria o irreal, o grotesco, o antigo,
o alienígena.8
Alguns contos Góticos, como Frankenstein ou Drácula, possuem uma ressonância deste
tipo, de tal maneira, que continuamos contando as mesmas histórias repetidamente com
elementos diferentes, mas com as mesmas características. Estas recriações nos ajudam a
lidar tanto com a nova cultura ascendente e contradições psicológicas, e ainda nos fornece
um método recorrente para lapidar e ocultar os nossos medos e vontades proibidas
(HOGLE 2002, p. 6).
Com esta informação, é possível continuar e explorar o Terror Cósmico.
1.2 TERROR CÓSMICO
Quando falamos do Cosmicismo, mais conhecido como Terror Cósmico, é impossível não
mencionar H.P. Lovecraft. Fundador desta filosofia literária há mais de 70 anos, quando o terror
e o horror foram revolucionados com este novo gênero que dá ênfase à ficção científica e ao
existencialismo, Howard Phillips Lovecraft foi um escritor de terror estadunidense que tinha como
inspiração o Gótico e criou o seu próprio gênero, o Cosmicismo. Suas obras permeiam nossa
sociedade em vários âmbitos, sendo inspiração do terror em diversos meios, como a literatura,
filmes, jogos e outros, com uma legião de fãs e seguidores.
8 Some Gothic tales, such as Frankenstein or Dracula, have a lasting resonance of this kind, so much so that we keep
telling them over and over again with different elements but certain constant features. Such recastings help us both
deal with newly ascendant cultural and psychological contradictions and still provide us with a recurring method for
shaping and obscuring our fears and forbidden desires.
7
Lovecraft inspirava-se em seus sonhos e pesadelos para escrever. O mundo onírico se fazia
presente de forma real em suas obras. Os monstros, medos e inseguranças de seu inconsciente
foram trazidos à vida através dos personagens criados por ele.
Ralickas afirma que (2009) ''9O estilo do Lovecraft é geralmente caracterizado pelo uso
extravagante de adjetivos, descrições Bizantinas e vocabulário arcaico [...]''. Tirando um trecho do
seu único livro ''The Shadow Over Innsmouth'', é possível ver o que foi citado acima.
''10 A aparência deles, em especial aqueles olhos arregalados que não piscavam e que
ninguém jamais vira fechados, era demasiadamente chocante, e as suas vozes repulsivas.
Era horrível ouvi-los entoando hinos nas suas igrejas à noite e mais ainda durante suas
festividades religiosas principais que aconteciam duas vezes por ano, em 30 de Abril e 31
de Outubro.'' (LOVECRAFT 2011, p. 821).
Segundo Steins (2016) ''O Terror Cósmico se constrói através da negação de uma presença
divina, como um deus ou universo. A humanidade está ''sozinha'' e é completamente insignificante
e descartável na macro-perspectiva da existência.'' Ou seja, no Terror Cósmico, os seres efêmeros
deste plano, a Terra, não têm valor algum, sendo comparados até mesmo a insetos. A vida humana
é descartável e tudo o que é visto, sentido e presenciado não passa de uma ficção fabricada por
entidades que estão além da compreensão humana. Estes mesmos seres, no Terror Cósmico,
podem ser erroneamente comparados a deuses, porém, estas ''divindades'' extraterrestres, têm
propósitos diferentes dos deuses conhecidos, e na maior parte das vezes, são uma ameaça à
humanidade.
Entre a maioria dos fãs da obra de Lovecraft, Cthulhu é a entidade mais marcante e
conhecida do seu legado. Em algum ponto de suas vidas, pessoas provavelmente já ouviram ou
viram o Cthulhu. Conhecido por vários nomes, tais como ''O grande sonhador'', ''O adormecido de
11R’lyeh'', ''O Quiescente'', ''O grande Cthulhu'', o ser foi introduzido no conto ''The Call of
Cthulhu'', publicado em 1928 e foi uma das únicas criaturas cósmicas do Lovecraft que teve uma
aparição direta em seu conto. Cthulhu também é mencionado em outros contos do Lovecraft, mas
foi a partir da aparição desse ser mítico em obras de outros autores, tais como August Derleth,
Robert Bloch, Charles Stross, que se expandiu o já grande conceito do mito. Atualmente é possível
9 Lovecraft’s style, generally characterized by his extravagant use of adjectives, Byzantine descriptions, and archaic
vocabulary […] (tradução nossa) 10 Their appearance—especially those staring, unwinking eyes which one never saw shut—was certainly shocking
enough; and their voices were disgusting. It was awful to hear them chanting in their churches at night, and especially
during their main festivals or revivals, which fell twice a year on April 30th and October 31st. (tradução nossa) 11 Cidade situada no fundo do oceano onde o Cthulhu reside durante seu sono eterno.
8
ver como esta obra influenciou as obras contemporâneas. Uma mitologia inteira foi criada a partir
dos seres de Lovecraft, que é o Cthulhu Mythos. Apesar do nome ''Cthulhu'' estar vinculado ao
título desta mitologia, ele não é a entidade cósmica principal entre as demais, porém, como foi
visto acima, é a mais conhecida. A razão disso, de acordo com o YouTuber,
''TheExploringSeries12'', pesquisador da mitologia Lovecraftiana (Cthulhu Mythos), é a aparência
ou a falta dela em outras criaturas criadas por Lovecraft. Estas criaturas são vagamente descritas e
deixam muito para a imaginação do leitor. Já o Cthulhu tem uma aparência mais definida entre os
outros, com aspectos físicos que lembram vagamente aos de um antropoide, com cabeça de polvo,
tentáculos em seu rosto, garras, asas e, em geral, cor esverdeada. Uma parte do conto ''The Call of
Cthulhu'' pode corroborar com essa teoria do pesquisador citado.
Ao alto desses aparentes hieróglifos havia uma figura com finalidade evidentemente
decorativa, embora seu estilo impressionista prejudicasse a formação de uma ideia muito
precisa da natureza. Parecia uma espécie de monstro, ou símbolo representando um
monstro, cuja forma só poderia ter sido concebida por uma fantasia mórbida. Se digo que
minha imaginação um tanto extravagante forjou imagens simultâneas de um polvo, um
dragão e uma caricatura humana, não estarei sendo infiel ao espírito da coisa. Uma cabeça carnuda e tentaculada coroava um corpo grotesco, coberto de escamas, com asas
rudimentares, mas era o contorno geral do conjunto que o tornava mais aterrorizante.
(LOVECRAFT 1926, p. 357).
Figura 1: Aparência do Cthulhu, ilustrado com base nas descrições feitas pelo Lovecraft.13
Outras entidades do Cthulhu Mythos tendem a ser mais difíceis de serem descritas. Por
exemplo, outras entidades bem conhecidas dentro dos contos do Lovecraft como ''Yog-Sothoth'',
12 https://www.youtube.com/user/ManggMangg 13 Disponível em: http://d139lereoqc85y.cloudfront.net/wp-content/uploads/2014/07/cthulhu.jpg
9
''Shub-Niggurath'', ''Shoggoth'' e ''Azathoth'' são geralmente descritas pelo autor apenas como
massas borbulhosas com tentáculos, bocas, dentes e outros membros desconhecidos.
Figura 2: Aparência de Shoggoth, ilustrado com base nas descrições feitas pelo Lovecraft.14
O Cthulhu Mythos consiste em várias outras entidades que são divididas em grupos, tais
como os ''Elder Gods'', ''Great Old Ones'', ''Outer Gods''. Alguns entre estes grupos se comunicam
e controlam os humanos através das ''Dreamlands'', que seria um espaço onírico, fora do plano de
existência da Terra. Entre estes seres, existe uma hierarquização em que um grupo não interfere
com os planos do outro, com regras que, se quebradas, poderiam causar guerras capazes de
obliterar a existência de tudo, literalmente.
Com tal informação sobre as motivações das criaturas Lovecraftianas, há um paralelo entre
as motivações desses seres em relação aos humanos naquele meio midiático dos jogos eletrônicos
em comparação às obras de Terror Cósmico. Como já visto antes, os seres humanos no Terror
Cósmico são completamente descartáveis diante de uma perspectiva universal.
2. NARRATIVA EM JOGOS
Para que seja possível falar sobre a narrativa em jogos, é preciso, primeiramente, entender
o conceito de jogo, que é “[...] um sistema no qual jogadores engajam em um conflito artificial,
determinado por regras que resultam em um desenlace quantificável.” (SALEN, ZIMMERMAN
2003. p. 93). Esse conceito pode, tecnicamente, ser utilizado em jogos eletrônicos ou não. Um
sistema não é nada mais do que um conjunto de elementos que fazem parte de algo mais complexo,
14 Disponível em: http://img10.deviantart.net/a43c/i/2013/169/b/2/shoggoth_by_eclectixx-d4rr7r9.jpg
10
ou seja, a estrutura em que o jogo é feito. No meio desse sistema, existe a interação do jogador
com o conflito, que faz parte dos obstáculos que devem ser enfrentados durante sua jornada. Os
conflitos, obstáculos, por mais reais que pareçam, são artificiais mesmo com a participação do
jogador. E, dentro desse sistema, há regras que delimitam o que o jogador pode ou não fazer em
prol do desenlace do jogo. A autora também menciona quatro características específicas que
resumem as qualidades de um jogo eletrônico e podem ser separadas em: “Interatividade imediata,
manipulação de informação, sistemas complexos e automatizados, comunicação em rede”
(SALEN, ZIMMERMAN, 2003. p. 103).
A narrativa é definida por J. Hillis Miller da seguinte maneira:
Deve existir, primeiramente, uma situação inicial, uma sequência que leva a uma mudança
ou reversão dessa situação, e uma revelação tornada possível pela reversão da situação. Em
segundo lugar, deve existir algum uso de personificação pelo qual personagem é criado a
partir de signos - por exemplo, as palavras na página numa narrativa escrita, os sons
modulados no ar em uma narrativa oral. Por mais importante que o enredo seja, sem
personificação não pode haver contadores de histórias. Em terceiro lugar, deve haver
alguma padronização ou a repetição de elementos-chave. (MILLER apud SALEN,
ZIMMERMAN, 2003. p. 374)15
É difícil utilizar essa definição especificamente nos jogos eletrônicos, pois pode também
ser usada para literatura e filmes. De acordo com a autora, a diferença está separada em dois
conceitos de estrutura: a incorporada e a emergente. Na narrativa incorporada, a história é linear e
serve como moldura para a interação do jogador. Em jogos como Uncharted: Drake’s Fortune
(2007), Dante’s Inferno (2010), Assassin’s Creed (2007), há ótimos exemplos para esse tipo de
narrativa mais linear. Na narrativa emergente, os elementos propiciam um ambiente grande, único
e não linear. Os jogos Dark Souls (2011), Dragon’s Dogma (2012) Fable 2 (2008), Fallout: New
Vegas (2010) e The Witcher 3: Wild Hunt (2015) enfatizam e dão prioridade à liberdade do
jogador, de tal maneira que a experiência de um jogo raramente será semelhante à de outra pessoa.
O entendimento da história é subjetivo, fazendo com que o jogador crie a sua própria dentro
daquele mundo fictício. A combinação desses 2 elementos cria a narrativa de jogos eletrônicos.
15 There must be, first of all, an initial situation, a sequence leading to a change or reversal of that situation, and a
revelation made possible by the reversal of the situation. Second, there must be some use of personification whereby
character is created out of signs— for example, the words on the page in a written narrative, the modulated sounds
in the air in an oral narrative. However important plot may be, without personification there can be no story-
telling....Third, there must be some patterning or repetition of key elements. (tradução nossa)
11
Salen e Zimmerman (2003) explicam com mais detalhes outros aspectos que também são
importantes para a construção da narrativa de jogos eletrônicos, mas como são muitos, apenas os
cinco mais importantes serão listados a seguir:
1) Objetivos: dão significado ao tempo gasto naquele jogo por meio de estatísticas e
coletáveis que mostram a importância do jogador naquele contexto. Objetivos também
mostram o seu progresso, seja ele estruturado em forma de missões que levam a
localidades específicas ou coletáveis que desbloqueiam opções extras de jogo.
2) Conflito: é usado como um elemento de tensão dentro da narrativa e geralmente
acarreta momentos de dificuldade que devem ser superados.
3) Incerteza: a conclusão da narrativa está diretamente ligada à incerteza, criando uma
espécie de suspense em que o jogador imagina qual pode ser o resultado final.
4) Espaço: o lugar onde a trama se desenvolve, seja um castelo, uma fazenda, uma cidade
ou um planeta. O espaço, se usado de forma correta, consegue até contar uma história
pela própria ambientação do cenário.
5) Cutscenes16: são muito utilizadas para contar a história ou demonstrar algum tipo de
cena programada que não seria possível apenas na jogabilidade. Alguns jogos
implementam a combinação da jogabilidade com as cutscenes usando os QTE (Quick
Time Events ou Eventos de Tempo Rápido), em que um botão aparece na tela e o
jogador deve responder com rapidez. “[...] Cutscenes ajudam a preencher a moldura
narrativa mais ampla do jogo, tendo um papel crucial na criação do mundo fictício da
história de um jogo [...]” (SALEN, ZIMMERMAN, 2003. p. 401).
Diante do exposto, será discutido como H.P. Lovecraft e o Terror Cósmico influenciaram
a narrativa do jogo eletrônico Bloodborne.
3. ANÁLISE
Bloodborne (MIYAZAKI, 2015) é um jogo eletrônico produzido pela prestigiada empresa
Japonesa From Software e distribuído pela Sony Interactive Entertainment, exclusivamente para a
16 Cutscenes são geralmente pequenas cenas, como o nome sugere, utilizadas para guiar um jogador pelo espaço
narrativo de um jogo. Podem tomar diversas formas, mas são geralmente feitas com animação geradas por
computador. (SALEN, ZIMMERMAN, 2003. p. 400)
12
plataforma da Sony, o Playstation 4, em 2015 e, até então, o primeiro e único. A história do jogo
se passa na decrépita cidade de Yharnam, um lugar conhecido pelo seu avanço medicinal com
sangue, arquitetura Gótica e pesquisas científicas relacionadas a entidades celestiais. Pessoas vêm
de longas distâncias apenas para curar suas doenças na cidade. O protagonista, no entanto, vai à
cidade por causa de uma mensagem que diz ''Procure o Sangue Pálido para transcender a caçada!'',
sendo que o porquê disso é desconhecido tanto para o protagonista quanto para o jogador. É
possível ver traços do Terror Cósmico na introdução da narrativa do jogo já que o protagonista é
induzido a procurar por algo que ele não sabe o que é e provavelmente foi implantado no seu
subconsciente por uma entidade que, por enquanto, é desconhecida na trama.
Ao chegar a Yharnam, o protagonista é surpreendido pela praga endêmica que afetou a
cidade, transformando as pessoas em bestas não sencientes que atacam qualquer um a vista. Após
isso, uma cutscene é introduzida e o protagonista acorda amarrado a uma mesa em uma espécie de
centro de transfusão de sangue, onde um NPC17 nefasto (Non Playable Character) quer que o
protagonista assine um pacto de sangue que, na verdade, é apenas uma mecânica para introduzir a
tela de criação de personagem.
Figura 3: O NPC diz ''Aconteça o que acontecer… Você pode pensar que tudo não passa de um sonho ruim''.
Deliberadamente induzindo o jogador a pensar que a partir dali tudo que acontecer será apenas um sonho. Fazendo
então um nexo com as terras oníricas criadas por Lovecraft. (BLOODBORNE, 2015)
Em Bloodborne, o protagonista não tem uma aparência ou nome definido, pois o jogador
pode modificar ambos, fazendo com que o jogo seja incluído na lista dos jogos eletrônicos com
17 Um jogador não controlável é um personagem em jogos eletrônicos que é controlado pela inteligência artificial do
jogo (Disponível em: https://www.techopedia.com/definition/1920/non-player-character-npc) (tradução nossa)
13
estilo de narrativa emergente, mas isso também leva em consideração os humanos do Terror
Cósmico onde a insignificância do protagonista diante aquele mundo inóspito, misterioso e
perigoso é de que ele é apenas mais um entre vários outros. Após o jogador criar o seu personagem,
o NPC diz que uma transfusão sanguínea é necessária para o selamento do pacto. O protagonista,
amarrado à mesa, apenas aceita a falta de controle de seu destino e intensifica a sensação de
insignificância e impotência demonstrada nas obras de Terror Cósmico. A jornada então inicia-se
e o jogador tem a capacidade de explorar Yharnam e tentar entender o porquê de estar ali. O
protagonista é conhecido no Bloodborne como caçador, supramencionado acima, ele não possui
um nome. Então, com isso em mente, ''caçador'' será usado em diante para se referir ao
protagonista.
Posterior à introdução, o jogador encontra uma lanterna que serve de checkpoint18 onde o
caçador é transportado para um local chamado ''Sonho do Caçador''. Um plano de existência
onírico em que o jogador está a salvo, em teoria, de inimigos. Ele pode, no entanto, morrer nesse
local, porém isso apenas o faz retornar ao mesmo lugar. A existência deste plano já é uma relação
direta ao conto ''Polaris'' de Lovecraft em que é introduzido, como já foi dito e explicado no
Cthulhu Mythos, as Dreamlands.
Figura 4: Uma panorâmica do Sonho do Caçador, ponto de checkpoint para o caçador. (BLOODBORNE, 2015)
18 Checkpoints são locais em vídeo games onde os jogadores nascem novamente após a morte, Personagens geralmente
reaparecem no último checkpoint atingido. Estes pontos de ressurreição são usados quando o personagem morre, mas
também quando o jogador falha em seu objetivo, fazendo com que seja impossível avançar no jogo (ROGERS,
SCOTT, 2014.) (tradução nossa)
14
O Sonho do Caçador acolhe dois e apenas estes dois NPCs vitais para o desenrolar da
história do jogo. Primeiramente, a Boneca, uma personagem que inicialmente não tem uma
importância muito significativa para o jogador devido ao seu diálogo vago e subjetivo, e o outro é
o Gehrman, que também não traz muita informação útil de início. Ambos NPCs fornecem
informações sutis e sucintas para o caçador à medida que você progride no jogo, como
praticamente todos os NPCs de Bloodborne. Se o jogador espera uma história mastigada e
entregue, Bloodborne não é o jogo para isso. A maneira que a história é contada em Bloodborne
não é nem um pouco convencional, de tal forma que o próprio jogador, às vezes, precisa imaginar
ela. As descrições de itens, os cenários, os inimigos e até mesmo a trilha sonora têm uma história
subtendida por trás, que também pode ser vista na maior parte dos contos de Lovecraft. O
leitor/jogador passa a grande parte do tempo visualizando mentalmente o que pode ter acontecido
ou vai acontecer naquele lugar. Logicamente, a descrição dos itens e os diálogos com os NPCs
respondem várias perguntas, mas, geralmente, as respostas criam mais perguntas e assim por
diante, fortalecendo a sensação de inferioridade e desconhecimento que o Lovecraft traz em sua
literatura.
Antes de progredir, é preciso ressaltar que não é possível notar mais referências de
Lovecraft, excluindo as que já foram citadas, até praticamente metade do jogo. A primeira metade
parece ter saído diretamente de uma mistura de contos de terror gótico. Com elementos de
arquitetura gótica, sangue usado como meio de cura, lobisomens, bruxas, ectoplasmas, ratos,
cachorros raivosos, corvos, cobras, aranhas, cultos, masmorras e muito mais. Por essa primeira
metade, o jogador não imagina os horrores celestiais que o aguardam futuramente.
Após um bom caminho percorrido, o jogador enfrentará uma criatura chamada ''Rom, a
Aranha Inexpressiva'', que age como uma barreira celestial para os humanos, impedindo os mortais
de realmente verem o horror de Yharnam. A aranha está situada entre o mundo real e o mundo
onírico. Matando tal criatura destrói esta barreira fazendo com que a ilusão criada se desmantele
por completa. É preciso falar sobre as mecânicas de ''discernimento'' e ''frenesi'' do jogo antes de
explanar sobre a barreira que foi quebrada. Esta mecânica age de forma escondida. Caso você
tenha discernimento demais, será possível ver e escutar coisas que não seriam possíveis antes. Por
exemplo: existem várias entidades celestiais espalhadas por Yharnam, porém o jogador não
consegue vê-las por não ter discernimento suficiente, mas isso não significa que elas não estão lá.
15
Figura 5: Representação visual do que já estava presente na área, porém o discernimento do jogador não era alto
suficiente. A partir de 40 de discernimento, o jogador consegue enxergar tais criaturas que antes não eram visíveis.
(BLOODBORNE, 2015)
Excesso de discernimento faz com que o jogador fique mais suscetível à outra mecânica
denominada ''Frenesi'', que mata o caçador. Ela funciona da mesma maneira que a loucura age nos
contos do Lovecraft. Quanto mais conhecimento, vulgo discernimento, um indivíduo tem, mais
facilmente ele se ficará louco. Muitas criaturas do Bloodborne causam o aumento dessa barra de
frenesi apenas pelo simples olhar. Vários protagonistas dos contos do Lovecraft ficam insanos ou
se matam apenas por terem tido um breve contato visual com uma entidade celestial. Em um dos
primeiros contos de Lovecraft, ''The Tomb'', é possível perceber como a questão do conhecimento
afeta a visão de quem a tem em suas histórias:
Homens de intelecto mais amplo sabem que não existe nenhuma distinção precisa entre o
real e o irreal; que todas as coisas aparecem como tais apenas em virtude dos delicados
meios psíquicos e mentais de cada indivíduo, por meio dos quais nos tornamos conscientes
delas; mas o materialismo prosaico da maioria reputa como loucura os lances de visão
superior que perfuram o véu comum do empirismo óbvio. (LOVECRAFT, 2011, p. 1).
Após essa grande explicação sobre as mecânicas de frenesi e discernimento, é possível
prosseguir com a explicação sobre a mudança repentina de gênero do jogo. Bloodborne, antes da
Rom, é um jogo de ação/terror com influências góticas. Após a batalha contra Rom, o jogo muda
da água para o vinho e se transforma no melhor jogo inspirado no Lovecraft até hoje. A cor da lua
muda do branco para o vermelho sangrento, os inimigos ficam com uma aparência alienígena,
cheios de tentáculos, cabeças grandes, cores esverdeadas e se comunicam em uma língua
compreensível pelos humanos. Agora, com Rom morta, a ilusão, que uma vez existira, está
quebrada; revelando os horrores sobrenaturais e celestiais que a cidade de Yharnam acobertava.
16
Lovecraft é conhecido por criar um cenário totalmente gótico ou uma história que nem ao menos
aparenta ter elementos de terror e repentinamente apresenta seu lado verdadeiro, causando um
choque para o leitor, o que é uma característica muito marcante do terror cósmico.
Agora, repleta de horrores inexplicáveis, Yharnam se encontra em um estado de
calamidade. Após grandes rupturas em relação à narrativa, é comum haver este choque de
realidades em contos do Lovecraft. No livro, The Shadow Over Innsmouth, o protagonista é um
historiador de Nova Inglaterra que vai à decrépita cidade de Innsmouth à procura de respostas por
causa de uma joia peculiar que ele achou. Após chegar lá, o protagonista sem nome tem a
impressão que os boatos que foram criados da cidade eram mentira, porque ela aparenta ser
totalmente normal, tirando a aparência bizarra de alguns moradores. Ao decorrer da história, o
clima geral da cidade e de seus habitantes começa a mudar. Os residentes com aparência mais
humana somem e os ''Deep Ones19'' começam a surgir. Daí por diante, o protagonista deve lutar e
fugir para sobreviver as estranhas criaturas que habitam a cidade de Innsmouth. O que não fica
claro no início da história é que, mesmo sem saber, o protagonista já estava sendo influenciado
para ir à Innsmouth, porém nem ele mesmo nota. O mesmo pode ser inferido em Bloodborne. O
caçador vai para Yharnam em busca do Sangue Pálido, mas a busca disso não tem uma motivação.
A ideia simplesmente é implantada em sua cabeça e ele obedece sem pensar duas vezes. Livre
arbítrio não é algo existente no Terror Cósmico justamente porque os humanos são seres inferiores
e eles não têm controle de suas vidas. Eles estão vivos apenas para satisfação de entidades
superiores.
Depois de ter que enfrentar várias criaturas dessa nova realidade distorcida, o caçador
encontra um plano onírico novo, porém, dessa vez, seria mais um pesadelo do que sonho. ''O
Pesadelo de Mensis'' é um plano existencial totalmente diferente de Yharnam. A área existe por
causa da criatura Mensis, que é um Great One, entidade superior, variação do nome das entidades
de Lovecraft, Great Old Ones. O Mensis tem uma relação direta ao Shoggoth, visto na figura 2,
porém essa relação não vai muito além da aparência. No entanto, seus poderem têm relação com
19 Os Deep Ones são criaturas humanoides, com traços anfíbios. Em The Shadow Over Innsmouth, eles são descritos
como seres de pele esbranquiçada ou esverdeada brilhosa e barrigas brancas. Eles são corcundas e cheios de escamas. Seus dedos são unidos por uma membrana e eles têm guelras nos pescoços. Algo notável também seria o
formato de suas cabeças que são bem parecidas com a de um peixe, e olhos que são incapazes de piscar. Disponível
em: (http://lovecraft.wikia.com/wiki/Deep_One) (tradução nossa)
17
os de Yog-Sothoth, uma entidade que possibilita a transposição de realidades, portanto, a criatura
Mensis tem inspiração tanto no Shoggoth quanto no Yog-Sothoth. No conto ''The Dunwich Horror''
há uma passagem em que é possível ver essa correlação ''Yog-Sothoth conhece o portal. Yog-
Sothoth é o portal. Yog-Sothoth é a chave e o guardião do portal. Passado, presente, futuro, todos
são um Yog-Sothoth. Ele sabe onde os Old Ones entraram outrora e por onde Eles entrarão de
novo.'' (LOVECRAFT 1929, p. 645).
Ainda no Pesadelo de Mensis, encontramos outro inimigo chamado Micolash, Host of the
Nightmare. Diferentemente de Yog-Sothoth, Mensis precisa de um ''hospedeiro para criar sua
dimensão pesadelo, mas graças ao Micolash, que antes de chegar naquele lugar, era um estudioso
acerca das entidades cósmicas presentes dentro do jogo. Com a mente de Micolash, esta dimensão
é criada e seu corpo fica no mundo real, definhando e apodrecendo, enquanto seu consciente é
usado para a criação do Pesadelo de Mensis.
Já em sua reta final, a jornada do Caçador é afunilada para o Sonho do Caçador. Lá, dois
inimigos serão enfrentados, sendo um deles o Gehrman. Como foi dito antes, o Caçador entra nesta
jornada sangrenta sem saber a razão por traz disto, porém é revelado no final do jogo que ele não
passava de uma marionete. O protagonista é usado pelo Gehrman, que também está sendo
manipulado por uma entidade superior que até então não tinha aparecido. Esta entidade chama-se
Presença da Lua e sua aparência assemelha-se tremendamente ao Nyarlathotep, também conhecido
pelos vários contos de Lovecraft como o Caos Rastejante.
Figura 6 À esquerda, representação do Caos Rastejante (Nyarlathotep) e à direita, o inimigo final do Bloodborne, Presença da Lua. (BLOODBORNE, 2015)20
20 Disponível em: http://adrianriom.deviantart.com/art/Nyarlathotep-516598326
18
A Presença da Lua é a manifestação física da Lua de Sangue, que é mencionada várias
vezes durante o jogo, porém não fica claro para o jogador que a Lua, era de fato, uma criatura.
Diferentemente de muitas criaturas criadas por Lovecraft, o Nyarlathotep vive no mundo efêmero
junto com os humanos, os afetando indiretamente em suas vidas cotidianas assim como a presença
da Lua em Bloodborne afetava várias pessoas dentro da história e inclusive o protagonista. Uma
citação do conto ''The Crawling Chaos'' pode evidenciar esta abrupta, porém sorrateira intercepção
na vida humana.
Lentamente, mas inexoravelmente rastejando sobre minha consciência e aumentando
acima de qualquer outra impressão, veio um medo tonteante do desconhecido; um medo
maior pois eu não conseguia analisá-lo, e parecia vir de um mal sorrateiro; a morte não,
mas outra coisa sem nome inexpressivamente assustadora e medonha (LOVECRAFT,
1925).21
No Bloodborne, a Lua pode ser vista praticamente de todos os pontos do jogo. ''Observando
o jogador'' durante sua jornada. Tal design não foi feito apenas pelo acaso ou pela estética do
cenário, mas sim com uma história por trás já em mente. A Lua, apesar de ser só uma Lua durante
grande parte do jogo, possui esse ar de onipresença e onisciência, causando esta dúvida contínua
ao jogador, trazendo a sensação de estar sendo vigiado e manipulado o tempo todo. Esta incerteza
é um elemento fundamental para uma narrativa embasada no estilo de escrita do Lovecraft.
Porquanto, de acordo com o próprio '' O sentimento mais antigo e forte da humanidade é o medo,
e o maior e mais antigo tipo de medo é o medo do desconhecido22'' (LOVECRAFT, 1925).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a análise, é possível perceber o tanto que os criadores do jogo eletrônico Bloodborne
se inspiraram no Lovecraft e no terror cósmico e tiveram sucesso. Em meio de tantos jogos que já
tentaram seguir a fórmula Lovecraftiana em sua jogabilidade e história, o Bloodborne foi o
21 Slowly but inexorably crawling upon my consciousness and rising above every other impression, came a dizzying
fear of the unknown; a fear all the greater because I could not analyze it, and seeming to concern a stealthily
approaching menace; not death, but some nameless, unheard-of thing inexpressibly more ghastly and abhorrent.
(LOVECRAFT 1921) (tradução nossa)
22 The oldest and strongest emotion of mankind is fear, and the oldest and strongest kind of fear is fear of the unknown.
(LOVECRAFT, 1925) (tradução nossa)
19
primeiro a realmente trazer à tona o sentimento de desespero, incerteza e impotência, mesmo em
um contexto que se constitui de elementos que o caracterizam como um jogo de ação.
Em suas obras, Lovecraft gostava de usar diversos adjetivos bizarros para descrever os
lugares, pessoas e monstros. Já no Bloodborne, há uma valorização da imagem por conta de ser
um recurso visual. É possível ver tudo que há de mais grotesco no terror cósmico. Eles adaptaram,
mudaram e trouxeram à vida criaturas que por muitos anos existiam apenas na mente dos fãs do
gênero.
As entidades cósmicas do Bloodborne também possuem motivações similares as do
Lovecraft, sendo que a dominação e manipulação de criaturas inferiores, vulgo humanos, fazem
parte de um dos seus objetivos. Em Bloodborne, o protagonista e o próprio jogador são controlados
desde o início; de maneira insidiosa e ardilosa, os Great Old Ones (Lovecraft) e os Old Ones
(Bloodborne) mexem suas cordas invisíveis e etéreas de forma que eles e apenas eles sejam
beneficiados.
Portanto, pelos motivos demonstrados é inegável afirmar que não houve uma inspiração
direta com as obras de Lovecraft em Bloodborne. Os desenvolvedores tiveram o cuidado para
alcançar todas as nuances de suas obras literárias, sendo elas na aparência, ambientação,
imaginação, o medo, o sentimento de estar sendo manipulado por forças que estão além da
compreensão efêmera e acima de tudo, garantiram um dos aspectos mais importantes do terror
cósmico: no fim, nada terminará bem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIRKHEAD, Edith. The tale of terror: A Study of the Gothic Romance. Londres: Constable &
Company, 1921.
CARROBLES, Carlos, H.P. Lovecraft’s The Call Of Cthulhu: an Intermedial Analysis of its
Graphic Adaptation. Disponível em: https://www.ucm.es/data/cont/docs/119-2013-08-21-
1.1.1.CorbachoCarrobles74.pdf.
EDMONSON, Greg. (2007) Uncharted: Drake’s Fortune [DVD] EUA, California: Naughty Dog.
GRIP, T. (Diretor). (2010) Amnesia: The Dark Descent [DVD] Sweden, Helsingborg: Frictional
Games.
HOGLE, Jerrold E. (Org.) The Cambridge Companion to Gothic Fiction. Nova Iorque: Cambridge
University Press, 2002.
20
H.P. LOVECRAFT: The Complete Fiction. Editora Barnes & Noble, 2011.
MASTROCOLA, Vicente. Bloodborne e Lovecraft: Uma Relação do Cosmos. Disponível em:
http://jogazera.com.br/bloodborne-e-h-p-lovecraft-uma-relacao-do-cosmos/.
MILLER apud SALEN, Katie. ZIMMERMAN, Eric. Rules of play: Game Design Fundamentals.
Cambridge: MIT Press, 2003. p.374.
MIYAZAKI, H. (Diretor). (2015) Bloodborne [DVD] Japan, TYO: FromSoftware, Sony
Computer Entertainment.
MIYAZAKI, H. (Diretor). (2011) Dark Souls [DVD] Japan, TYO: FromSoftware.
PUNTER apud BOTTING. A Companion to the Gothic, 2001, p.1
RALICKAS, Vivian. Cosmic Horror and the Question of the Sublime in Lovecraft. Disponível
em: https://www.scribd.com/doc/19744674/Cosmic-Horror-and-the-Question-of-the-Sublime-in-
Lovecraft.
SALEN, Katie. ZIMMERMAN, Eric. Rules of play: Game Design Fundamentals.
Cambridge: MIT Press, 2003. p.93.
SAVOY, Eric. The Rise of American Gothic. In: HOGLE, Jerrold E. (Org.) The Cambridge 48
Companion to Gothic Fiction. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2002. p. 167.
SIGMAN, T. (Diretor). (2016) Darkest Dungeon [DVD]: Red Hook Studios.
STEINS. Cosmicismo (Terror Cósmico) e um pouco de Lovecraft: Disponível em:
https://entropiadigitalsite.wordpress.com/2016/03/30/cosmicismo-terror-cosmico-e-um-pouco-
de-lovecraft/