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Introdução à Teoria Crítica da Arquitetura Profa. Silke Kapp
Aula 2 - 17/03/16
Tema
Abordagens teórico-críticas
Pergunta
Como relacionar teoria e prática na arquitetura?
Textos
ADORNO, Theodor. “A Filoso ia muda o mundo ao manter-se como
teoria”. Entrevista à revista Der Spiegel, n.19, 1969. Tradução de Gabriel
Cohn. Lua Nova, n.60, 2003, p.131-138.*
MARCUSE, Herbert. A paralisia da crítica: sociedade sem oposição. In: A
ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional. Rio de Janeiro:
Zahar, 1973 [1964], p.13-20.*
DEMIROVIC, Alex. Entrevista a Isabel Loureiro. Trans/Form/Ação, São
Paulo, v.27, n.2, 2004, p.143-148.*
LESSA, Carlos. Análise econômica e economia política. Aula Magna
proferida no Departamento de Economia da Unicamp, outubro, 1972.*
KAPP, Silke. Por que teoria crítica da arquitetura? Uma explicação e uma
aporia. In: Maria Lúcia Malard (org.) Cinco textos de Arquitetura. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2005, p.115-167.**
Capítulo “Arquitetura como exercício crítico [2008]”***
* Neste documento | ** Neste documento sem diagramação | *** No compêndio
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ADORNO, Theodor. “A Filoso ia muda o mundo ao manter-se como
teoria”. Entrevista à revista Der Spiegel, n.19, 1969. Tradução de Gabriel
Cohn. Lua Nova, n.60, 2003, p.131-138.*
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Spiegel: Senhor professor, há duas semanas o mundo ainda pare-cia em ordem...
Adorno: Não para mim.Spiegel: ... O senhor dizia que sua relação com os estudantes não
foi afetada. Nas suas atividades de ensino haveria debates fecundos e obje-tivos, sem perturbações privadas. No entanto, agora o senhor suspendeu
suas aulas. Adorno: Não as suspendi por todo o semestre, só temporaria-
mente. Em algumas semanas pretendo retomá-las. É o que todos os cole-gas fazem quando há invasões de salas.
Spiegel: Houve violência contra o senhor? Adorno: Não violência física, mas fizeram tanto barulho que a
aula tornou-se impraticável. Isso claramente foi planejado.Spiegel: O senhor sente-se incomodado apenas pela forma como
agora o atacam os estudantes – que antes o apoiavam – ou também o inco-
modam os objetivos políticos? Afinal, antes havia concordância entre osenhor e os rebeldes.
Adorno: Não é nessa dimensão que estão em jogo as divergên-cias. Há dias declarei numa entrevista à televisão que, embora eu tivesseelaborado um modelo teórico, não poderia ter imaginado que as pessoasquisessem realizá-lo com bombas. Essa frase foi citada inúmeras vezes,mas necessita muito de interpretação.
“A FILOSOFIA MUDA O MUNDO
AO MANTER-SE COMO TEORIA”*
E NTREVISTA DE T. A DORNO
* “Die Philosophie ändert, indem sie Theorie bleibt. Gespräch mit Theodor W. Adorno”.Entrevista à revista Der Spiegel, n.o 19, 1969. Tradução de Gabriel Cohn. Publicado anteri-ormente no Caderno “Mais!” da Folha de S. Paulo, 31.08.2003.
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Spiegel: Como o senhor a interpretaria hoje?
Adorno: Jamais ofereci em meus escritos um modelo para quais-quer condutas ou quaisquer ações. Sou um homem teórico, que sente opensamento teórico como extraordinariamente próximo de suas intençõesartísticas. Não é agora que eu me afastei da prática, meu pensamento sem-pre esteve numa relação muito indireta com a prática. Talvez ele tenha tidoefeitos práticos em conseqüência de alguns temas terem penetrado na cons-ciência, mas nunca eu disse algo que se dirigisse diretamente a ações práti-cas. Desde que ocorreu em 1967 em Berlim um circo contra mim, deter-minados grupos de estudantes insistiram em forçar-me à solidariedade e
exigiram ações práticas da minha parte. Isso eu recusei.S piegel: Mas a teoria crítica não quer deixar as condições tal
como se encontram. Isso os estudantes esquerdistas aprenderam do senhor.Mas agora, senhor professor, dá-se a sua recusa da prática. É verdade, então,que o senhor cultiva uma “liturgia da crítica”, como afirmou Dahrendorf?
Adorno: Em Dahrendorf ressoa uma despreocupada convicção: ade que, se apenas melhorarmos as coisas aos poucos, talvez tudo venha amelhorar. Não posso reconhecer isso como premissa. Nas organizações estu-dantis de esquerda, contudo, defronto-me sempre com a exigência de entre-
gar-se, de ir junto, e a isso eu venho resistindo desde muito jovem. E nissonada se modificou em mim. Tento exprimir aquilo que reconheço e que sinto.Mas não posso acomodá-lo ao que se fará disso e ao que disso resultará.
Spiegel: Ciência como torre de marfim, portanto? Adorno: Não tenho temor algum da expressão torre de marfim.
Essa expressão já teve dias melhores, quando Baudelaire a empregou.Contudo, já que o senhor fala de torre de marfim: creio que uma teoria émuito mais capaz de ter conseqüências práticas em virtude da sua própriaobjetividade do que quando se submete de antemão à prática. O relaciona-
mento infeliz entre teoria e prática consiste hoje precisamente em que ateoria se vê submetida a uma pré-censura prática. Tenta-se, por exemplo,proibir-me de exprimir coisas simples, que mostram o caráter ilusório demuitas propostas de determinados estudantes.
Spiegel: Mas é bem claro que esses estudantes têm muitosseguidores.
Adorno: Sempre volta a ocorrer que um pequeno grupo sejacapaz de exercer obrigações de lealdade às quais a grande maioria dos estu-dantes de esquerda não conseguem se furtar. No entanto, quero repetir: elesnão podem invocar modelos de ação que eu lhes tivesse dado para depoisdistanciar-me deles. Não faz sentido falar desses modelos.
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ENTREVISTA DE ADORNO 133
S piegel: Seja como for, ocorre que os estudantes referem-se, às
vezes direta e outras vezes indiretamente, à sua crítica da sociedade. Sem assuas teorias talvez nem tivesse surgido o movimento de protesto estudantil.
Adorno: Isso eu não quero negar; apesar disso, tenho dificuldade
para captar essa relação. Estou disposto a acreditar que a crítica à manipu-
lação da opinião pública, que vejo como inteiramente legítima também na
forma de demonstrações, não teria sido possível sem o capítulo sobre
“indústria cultural” que Horkheimer e eu publicamos na Dialética do
Iluminismo. Mas acredito que muitas vezes a relação entre teoria e prática
é representada de modo demasiado sumário. Quando se ensinou e publicou
durante 20 anos como eu, com essa intensidade, isso acaba mesmo pas-sando para a consciência geral.
Spiegel: E assim também para a prática, não?
Adorno: Pode ocorrer – mas não necessariamente. Nos nossos
trabalhos o valor das chamadas ações isoladas fica extremamente limitado
pela ênfase na totalidade social.
Spiegel: Mas como o senhor quer modificar a totalidade social
sem ações isoladas?
Adorno: Essa pergunta me ultrapassa. Diante da questão “que
fazer” eu na realidade só consigo responder, na maioria dos casos, “nãosei”. Só posso tentar analisar de modo intransigente aquilo que é. Nisso me
censuram: já que você exerce a crítica, então é também sua obrigação dizer
como se deve fazer melhor as coisas. Mas é precisamente isso que eu con-
sidero um preconceito burguês. Verificou-se inúmeras vezes na história que
precisamente obras que perseguiam propósitos puramente teóricos tenham
modificado a consciência, e com isso também a realidade social.
Spiegel: Nos seus trabalhos o senhor distinguiu entre a teoria
crítica e quaisquer outras teorias. Ela não deve ater-se à mera descrição
empírica da realidade mas especificamente introduzir na reflexão a orde-
nação correta da sociedade.
Adorno: Neste ponto tratava-se da crítica ao positivismo. Preste
atenção no que eu disse: introduzir na reflexão. Veja que nessa sentença
nada me permite atrever-me a dizer como então se agirá.
Spiegel: Mas uma vez o senhor afirmou que a teoria crítica quer
“erguer a pedra sob a qual incuba o monstro”. Se agora os estudantes
jogam essa pedra – isto é tão incompreensível?
Adorno: Incompreensível certamente não é. Creio que o ativis-
mo basicamente se deve ao desespero, porque as pessoas sentem quão
pouca força têm para modificar a sociedade. Mas estou igualmente con-
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vencido de que essas ações isoladas estão condenadas ao fracasso, como se
viu na revolta de maio na França.Spiegel: Se então não há sentido nas ações isoladas, ficaremos
apenas com a “impotência crítica”, da qual a organização estudantil de
esquerda (SDS) o acusa?
Adorno: O poeta Grabbe tem uma sentença: “Pois nada senão o
desespero pode salvar-nos”. Isto é provocador, mas nada tem de tolo. Não
vejo como condenar que se seja desesperançado, pessimista, negativo no
mundo em que vivemos. Mais limitados serão aqueles que se aferram
compulsivamente ao otimismo do oba-oba da ação direta, para obter alívio
psicológico.Spiegel: Seu colega Jürgen Habermas, que também é um defen-
sor da teoria crítica, acaba de conceder, num artigo, que os estudantes
manifestaram “senso de provocação com muita fantasia”, e que con-
seguiram de fato mudar alguma coisa.
Adorno: Nisso eu concordaria com Habermas. Creio que a refor-
ma universitária, da qual ainda não sabemos no que vai dar, nem sequer
teria sido iniciada sem os estudantes. Creio que a atenção generalizada aos
processos de emburrecimento que dominam a sociedade contemporânea
jamais teria ganho forma sem o movimento estudantil. E também acredito – para citar algo bem concreto – que foi somente em conseqüência da
investigação sobre a morte do estudante Benno Ohnesorg [em 1967, na
repressão a uma manifestação contra o ditador persa, xá Reza Pahlevi] que
essa história macabra veio a atingir a consciência pública. Com isso quero
dizer que em absoluto não me fecho a conseqüências práticas, quando são
transparentes para mim.
Spiegel: E quando foram transparentes para o senhor?
Adorno: Participei de manifestações contra as leis de emergên-
cia e, no caso da reforma da legislação penal, fiz o que podia. Mas é inteira-
mente diferente se eu faço coisas desse tipo ou se participo de uma prática
realmente um tanto insana e jogo pedras contra institutos universitários.
S piegel: Como o senhor avaliaria se uma ação faz sentido ou não?
A d o r n o: Em primeiro lugar, a decisão depende em grande
medida da situação concreta. Depois, tenho as mais graves reservas con-
tra qualquer uso da violência. Eu teria que renegar toda a minha vida – a
experiência sob Hitler e o que observei no stalinismo – se não me
recusasse a participar do eterno círculo da violência contra a violência.
Só posso conceber uma prática transformadora dotada de sentido como
uma prática não violenta.
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ENTREVISTA DE ADORNO 135
Spiegel: Também sob uma ditadura fascista?
Adorno: Certamente haverá situações em que isso se apresentede outro modo. A um fascismo real só se pode reagir com violência. Nissonão sou de modo algum rígido. No entanto, nego-me a seguir aqueles que,após o assassinato de incontáveis milhões nos estados totalitários, aindapreconizem a violência. É neste limiar que se dá a separação decisiva.
Spiegel: Foi superado esse limiar quando os estudantes tentaramimpedir, mediante ações de sit-in, a distribuição de jornais da cadeia [con-servadora] Springer?
Adorno: Esse tipo de manifestação eu considero legítimo.
Spiegel: Foi superado esse limiar quando estudantes pertur-baram a sua aula com barulho e exibições sexuais?
Adorno: Justo comigo, que sempre me voltei contra toda sortede repressão erótica e contra tabus sexuais! Submeter-me ao ridículo eatiçar contra mim três mocinhas fantasiadas de hippies! Achei isso abo-minável. O efeito hilariante que se consegue com isso no fundo não passa-va da reação do burguesão, com seu riso néscio quando vê uma garota comos seios nus. Naturalmente essa imbecilidade era calculada.
Spiegel: Será que esse ato insólito pretendia confundir suas teo-
rias? Adorno: Parece-me que nessas ações contra mim importa menos
o conteúdo das minhas aulas; tudo indica que para a ala extrema é maisimportante a publicidade. Essa ala sofre do medo de cair no esquecimento.Com isso torna-se escrava da sua própria publicidade. Uma aula como aminha, que conta com uma presença de cerca de 1000 pessoas, evidente-mente é um cenário maravilhoso para a propaganda ativista.
Spiegel: Pode também esse ato ser interpretado como ação dadesesperança? Talvez esses estudantes se sentissem abandonados por uma
teoria da qual pelo menos acreditavam que pudesse converter-se em práti-ca modificadora da sociedade?
Spiegel: Os estudantes nem tentaram discutir comigo. O quetanto dificulta meu relacionamento com os estudantes hoje é a primazia datática. Meus amigos e eu temos a sensação de não passarmos de objetos emplanos bem calculados. A idéia do direito das minorias, que afinal é cons-titutivo da liberdade, não desempenha mais papel algum. As pessoasrecusam-se a enxergar a objetividade da coisa.
Spiegel: E diante desses constrangimentos o senhor abre não deuma estratégia defensiva?
Adorno: Meu interesse dirige-se cada vez mais à teoria filosófica.
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Se eu desse conselhos práticos, como em certa medida fez Herbert Marcuse,
isso seria feito à custa da minha produtividade. Pode-se dizer muito contra adivisão do trabalho, mas já Marx, que na sua juventude a atacou com a maior
veemência, reconheceu mais tarde que sem ela não seria possível.
Spiegel: Então o senhor decidiu-se pela parte teórica, para os
outros fica a parte prática; e o senhor já está empenhado nisso. Não seria
melhor que a teoria refletisse simultaneamente a prática? E com isso tam-
bém as ações presentes?
Adorno: Há situações em que eu faria isso. No momento, contu-
do, parece-me muito mais importante começar a refletir sobre a anatomia
do ativismo.Spiegel: De novo para a teoria, portanto?
Adorno: No momento eu atribuo à teoria uma posição superior.
Já toquei – sobretudo na Dialética negativa – nessas questões muito antes
de ocorrer esse conflito.
Spiegel: Na Dialética negativa encontramos a constatação re-
signada: “Afilosofia, que já parecera superada, mantém-se em vida porque
o instante da sua realização foi perdido”. Uma filosofia como essa – exter-
na a todos os conflitos – não se converte em “preciosismo”? Uma pergun-
ta que o senhor mesmo se propôs. Adorno: Continuo a pensar que é justamente sob os constrangi-
mentos práticos de um mundo funcionalmente pragmatizado que devemos
manter a teoria. E também não é pelos eventos recentes que serei levado a
desviar-me do que escrevi.
Spiegel: Até agora, como formulou seu amigo Habermas, a sua
dialética abandonou-se nos “pontos mais negros” da resignação à “esteira
destrutiva da pulsão de morte”.
Adorno: Eu preferiria dizer que é o apego compulsivo ao positi-
vo que provém da pulsão de morte.
Spiegel: Seria então a virtude da filosofia encarar de frente o
negativo, mas não invertê-lo?
Adorno:A filosofia não pode, por si só, recomendar medidas ou
mudanças imediatas. Ela muda precisamente na medida em que permanece
teoria. Penso que seria o caso de perguntar se, quando alguém pensa e
escreve as coisas como eu faço, se isso não é também uma forma de opor-
se. Não será também a teoria uma forma genuína da prática?
Spiegel: Não haverá situações, como por exemplo na Grécia
[sob ditadura militar] em que o senhor, para além da reflexão crítica,
apoiaria ações?
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Adorno: É evidente que na Grécia eu admitiria toda sorte de
ações. Lá reina uma situação totalmente diferente. Mas ficar em lugarseguro recomendando aos outros que façam revolução tem algo de tãoridículo que chega a ser constrangedor.
Spiegel: O senhor continua a ver, portanto, como a forma maissignificativa e necessária da sua atividade na República Federal Alemãfazer progredir a análise das condições da sociedade?
Adorno: Sim, e mergulhar em fenômenos singulares muitodeterminados. Não me envergonho de tornar público que estou trabalhan-do em um grande livro de estética.
ADENDO: UMAINTERVENÇÃO DE ADORNO1
Contra as leis de emergência
Um não-jurista pode dizer algo sobre a proposta de leis dee m e rgência na consciência de que a questão não é jurídica, mas realmentesocial e política. Embora outras nações tenham leis análogas, que no papel
não se apresentam em nada mais humanas, a situação alemã é de tal mododiferente que disso não se pode derivar qualquer justificativa para essaproposta.
O que ocorreu no passado depõe contra o plano (...), a começarpelo Parágrafo 48 da Constituição de Weimar. Ele permitiu que a demo-cracia fosse entregue às intenções autoritárias do senhor von Papen. Leiscomo essas abrigam, entre nós, tendências regressivas, à diferença daSuiça, por exemplo, em que a democracia penetrou na vida do povo demaneira incomparavelmente mais substancial. Ao contrário do que alguns
nos atribuem, não é preciso estar carregado de histeria política para temeraquilo que aí se anuncia. Já o governo atual e seus predecessores demons-traram há anos uma atitude perante a Constituição que permite esperar algo
1 Na entrevista, Adorno refere-se à sua participação nos protestos contra a proposta de leis deemergência na então República Federal da Alemanha. Como exemplo da sua atuação nessecaso, e também do modo como esse intelectual supostamente alheio às questões palpáveis dodia-a-dia, na realidade não se furtava a manifestar-se em público, junta-se aqui o texto de falasua em manifestação realizada em Frankfurt, em maio de 1968. (A propósito: no tocante àreferência de Adorno ao Artigo 48 da Constituição de Weimar, que permitia ao presidente darecém-fundada República suspender garantias e instaurar o estado de emergência, encontra-se boa informação em Lua Nova, n.o 24/1991). [Nota do tradutor].
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para o futuro. Por ocasião do chamado caso [da revista] Spiegel, o falecido
chanceler Adenauer falava de um caso terrível de traição nacional, que nostribunais resultou em nada. Do lado do governo houve quem tivesse ocinismo de declarar que os órgãos de proteção do Estado não poderiamandar para cima e para baixo com a Constituição debaixo do braço. Aexpressão “um pouco fora da legalidade” foi incorporada por aquele humorpopular que não se deixa fazer de criancinha.
Com uma tradição como essa, quem não desconfia de nada éporque não quer ver. As tendências restauradoras, ou como quer que aschamemos, não se tornaram mais fracas, mas, pelo contrário, fortaleceram-
se. Nossa República Federal nem mesmo fez algo sério em relação aoseqüestro de pessoas perpetrado por agentes sul-coreanos. Só um otimismoextremo poderia esperar das leis de emergência outra coisa do que a con-tinuidade dessa tendência, só porque são formuladas com tanta conside-ração de direito público. A língua inglesa conhece uma expressão que falade profecias que se cumprem a si mesmas. É o que ocorre com o estado deemergência. O apetite aumenta com o comer. Tão logo se esteja seguro dequanto se pode abranger com as leis de emergência se achará a oportu-nidade de pô-las em prática.
Esta é a verdadeira razão pela qual devemos protestar do modomais incisivo contra essa situação, em que o esvaziamento da democracia,que já se encontra em curso, ainda por cima seja legalizado. Será tardedemais quando as leis permitirem deixar sem ação aquelas forças das quaisse poderia esperar que impedissem no futuro o abuso: exatamente o que oabuso não permitirá acontecer. Deve-se fazer oposição no âmbito públicomais amplo possível às leis de emergência, em nome da suspeita de queaqueles que as propõem tenham por elas especial simpatia. A circunstânciade que a simpatia pelo estado de emergência não é casual, mas exprime
uma poderosa tendência social, não deveria diminuir a oposição à propos-ta, e sim aumentá-la.
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MARCUSE, Herbert. A paralisia da crítica: sociedade sem oposição. In: A
ideologia da sociedade industrial. O homem unidimensional. Rio de Janeiro:
Zahar, 1973 [1964], p.13-20.
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INTRODUÇÃO
A paralisia
d
crítica Sociedade sem oposição
A ameaça de uma catástrofe atômica que poderia exter-
minar a raça humana não servirá também para proteger as
próprias fôrças que perpetuam êsse perigo? Os esforços para
impedir tal catástrofe ofuscam a procura de suas causas poten-
ciais na sociedade industrial contemporânea. Essas causas ainda
não foram identificadas reveladas e consideradas pelo público
porque refluem diante da ameaça do exterior demasiado visível
- do Oriente contra o Ocidente do Ocidente contra o Oriente.
f igualmente óbvia a necessidade de se estar preparado de se
viver
à
beira do abismo de se aceitar o desafio. Nós nos sub-
metemos à produção pacífica dos meios de destruição à perfei-
ção do desperdício a ser educados para uma defesa que defor-
ma
os
defensores e aquilo que êstes defendem.
Se tentamos relacionar
as
causas do perigo com a forma
pela qual a sociedade é organizada e organiza
os
seus membros
defrontamos imediatamente com o fato de a sociedade indus-
trial desenvolvida
se
tornar mais rica maior e melhor ao perpe-
tuar o perigo. A estrutura da defesa torna a vida mais fácil
para um maior número de criaturas e expande o domínio do
homem sôbre a natureza. Em tais circunstâncias os nossos
meios de informação em massa encontram pouca dificuldade em
fazer aceitar interêsses particulares como sendo de todos os
homens sensatos. As necessidades políticas da sociedade
se
tor-
nam necessidades e aspirações individuais sua satisfação pro-
move
os
negócios e a comunidade e o conjunto parece consti-
tuir a própria personificação da Razão.
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Não obstante, essa sociedade é irracional como um todo.
Sua produtividade
é
destruidora do livre desenvolvimento das
necessidades e faculdades humanas; sua paz, mantida pela cons-
tante ameaça de guerra; seu crescimento, dependente da repres-
são das possibilidades reais
de
amenizar a luta pela existência -
individual, nacional e internacional. Essa repressão, tão dife-
rente daquela que caracterizou as etapas anteriores, menos desen-
volvidas, de nossa sociedade, não opera, hoje, de uma posição de
imaturidade natural e técnica, mas de fôrça. As aptidões (intelec-
tuais e materiais) da sociedade contemporânea são incomensurà-
velmente maiores do que nunca dantes - o que significa que o
alcance da dominação da sociedade sôbre o indivíduo é inco-
mensuràvelmente maior do que nunca dantes. A nossa socie-
dade
se
distingue por conquistar as fôrças sociais centrífugas
mais pela Tecnologia do que pelo Terror, com dúplice base
numa eficiência esmagadora e num padrão de vida crescente.
A investigação das raízes de tais fatos e o
exan ie
de suas
alternativas históricas são parte do objetivo de uma teoria crí-
tica da sociedade contemporânea, uma teoria que analisa a
sociedade à luz de suas aptidões utilizadas e não-utilizadas ou
malbaratadas para aprimorar a condição humana. Mas quais
os
padrões para tal crítica?
Sem dúvida, os julgamentos com base em valôres têm um
papel. A maneira estabelecida de organizar a sociedade é com-
parada com outras maneiras possíveis, maneiras que se consi-
deram oferecer melhores possibilidades de suavizar a luta do
homem pela existência; uma prática histórica específica é com-
parada com as suas próprias alternativas históricas. Assim,
qualquer teoria crítica da sociedade defronta, logo de início, com
o problema da objetividade histórica, um problema que surge
nos dois pontos em que a análise implica julgamentos de
valôres:
1) o julgamento de que a vida humana vale a pena ser
vivida, ou, melhor, pode ser ou deve ser tornada digna de
se
viver. 1:ste julgamento alicerça todo esfôrço intelectual; é aprio-
rístico para a teoria social, e sua rejeição (que é perfeitamente
lógica) rejeita a própria teoria;
2) o julgamento
de
q
ue,
em determinada sociedade, exis-
tem possibilidades específicas de melhorar a vida humana e
modos e meios específicos
de
realizar essas possibilidades. A
4
análise crítica tem de demonstrar a validez objetiva dêsses jul-
gamentos, tendo a demonstração de
se
processar em bases
empíricas. A sociedade estabelecida dispõe de uma quantidade
e uma qualidade determináveis de recursos intelectuais e
materiais. Como podem ser êsses recursos utilizados para o má-
ximo desenvolvimento e satisfação das necessidades e faculdades
individuais com o mínimo de labuta e miséria? Teoria social é
teoria histórica, e história é a esfera da possibilidade na esfera
da necessidade. Portanto, dentre as várias maneiras possíveis e
reais de organizar e utilizar os recursos disponíveis, quais ofere-
cem a maior possibilidade de ótimo desenvolvimento?
A tentativa de responder a essas perguntas exige uma série
de
abstrações iniciais. Para identificar e definir
as
possibilidades
de ótimo desenvolvimento, a teoria crítica deve abstrair-se da
organização e utilização práticas dos recursos da sociedade, bem
como dos resultados dessa organização e utilização. Tal abs-
tração, que
se
nega a aceitar o universo de fatos dado como o
contexto final da validação, tal análise "transcendente" aos fatos
à luz de suas possibilidades, captadas e negadas, pertence à
própria estrutura da teoria social. Ela se opõe a tôda metafísica
em virtude do caráter rigorosamente histórico da transcendência.
As "possibilidades" têm de estar ao alcance da respectiva socie-
dade; devem ser metas definíveis da prática. E, por sinal, a
abstração das instituições estabelecidas deve expressar uma ten-
dência real - isto
é,
sua transformação deve ser a necessidade
real da população básica. A teoria social se interessa pelas
alternativas históricas que assombram a sociedade estabelecida
como tendências e fôrças subversivas. Os valôres ligados às
alternativas realmente se tornam fatos quando transformados em
realidade pela prática histórica. Os conceitos teóricos terminam
com a transformação social.
Mas aí, a sociedade industrial desenvolvida confronta a
crítica com uma situação que parece privá-la de suas próprias
bases. O progresso técnico, levado a todo um sistema de domi-
nação e coordenação, cria formas de vida (e de poder) que
parece reconciliar as fôrças que
se
opõem ao sistema e rejeitar
ou refutar todo protesto em nome das perspectivas históricas de
1 Os têrmos
IItranscender
e
Utranscendência
são usados
em
todo êste livro
no sentido empírico, crítico; designam tendências
na
teoria e na prática que, numa
dada sociedade, ultrapassam o universo e.tabelecido do discurso e ação no que
concerne às suas alternativas históricas (possibilidades
reais).
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liberdade de
labuta
e de dominação. A sociedade contempo-
rânea parece capaz de conter a transformação social - transfor-
mação qualitativa que estabeleceria instituições essencialmente
diferentes, uma nova direção dos processos produtivos, novas
formas de existência humana. Essa contenção da transformação
é, talvez, a mais singular realização da sociedade industrial
desenvolvida; a aceitação geral
do
Propósito Nacional, a política
bipartidária, o declínio
do
pluralismo, o conluio dos Negócios
com o
Trabalho
no seio do Estado forte testemunham a inte-
gração dos oponentes, que é tanto o resultado como o requisito
dessa realização.
Uma
ligeira
comparação
entre a fase de formação
da
teoria
da sociedade industrial e sua situação atual poderá
ajudar
a
mostrar como as bases da crítica foram alteradas. Em suas
origens,
na
primeira metade do século
XIX,
quando
elaborou
os primeiros conceitos das alternativas, a crítica
da
sociedade
industrial alcançou concreção
numa
mediação histór:ica entre
teoria e prática, valôres e fatos, necessidades e objetivos. Essa
mediação histórica ocorreu na consciência e na ação política das
duas grandes classes que se defrontavam na sociedade: a bur-
guesia e o proletariado. No
mundo
capitalista, ainda são as
classes básicas. Contudo, o desenvolvimento capitalista alterou
a estrutura e a função dessas duas classes de tal modo que elas
não mais parece ser agentes de transformação histórica. Um
interêsse predominante na preservação e no melhoramento do
status qu institucional une os antigos antagonistas nos setores
mais avançados da sociedade contemporânea. E a própria idéia
de transformação qualitativa recua diante das noções realistas
de
uma
evolução não-explosiva proporcionalmente ao grau em
que o progresso técnico garante o crescimento e a coesão da
sociedade comunista.
Na
falta de agentes e veículos de trans-
formação social, a crítica é, assim, levada a recuar para um alto
nível de abstração.
Não
há campo algum no qual teoria e prática,
pensamento e ação se harmonizem.
Até
mesmo a análise mais
empírica das alternativas históricas parece especulação irreal,
e a adesão a ela uma questão de preferência pessoal ou
grupal).
Não obstante, cabe perguntar: essa falta refuta a teoria?
Em face de fatos aparentemente contraditórios, a análise crítica
continua insistindo em que a necessidade de transformação
qualitativa é tão premente quanto em qualquer época. Neces-
sária a quem? A resposta continua sendo a mesma: à sociedade
como um todo.
para
cada um de seus membros. A união da
6
produtividade da destruição crescente; a iminência de
aniquilamento; a rendlçao do pensamento, das e d.o
temor
às
decisões dos podêres existentes; a preservaçao da
mI-
séria em face de riqueza sem precedente, constituem a mais
imparcial acusação - ainda que não sejam a razão de ser
sociedade, mas apenas um subproduto, o seu raC lOnalIsmo
arrasador, que impele a eficiência e o crescimento,
é,
em si,
irracional.
O fato de a grande maioria da população aceitar e ser
levada a aceitar essa sociedade não a torna menos irracional e
menos repreensível. A distinção entre consciência verdadeira e
falsa entre interêsse real e imediato, ainda tem significado. Mas
a prÓpria distinção tem de ser validada. O tem .de
e passar da consciência falsa
para
a verdadeIra, do lllteresse
imediato para o interêsse real. Só poderá fazê-lo se viver com
.a
necessidade de modificar o seu estilo de vida, de negar o
POSI-
tivo, de recusar. precisamente essa necessidade que a 'Sociedade
estabelecida consegue reprimir com a intensidade com que é
capaz de entregar as mercadorias em escala cada vez .maior,
usando a conquista científica da natureza
para
conqUIstar o
homem cientificamente.
Ao
defrontar com o caráter total das conquistas da sociedade
industrial desenvolvida, a teoria crítica fica desprovida de fun-
damento lógico
para
transcender essa sociedade.
O
vácuo
esvazia a própria teoria, porque as categorias da teoria social
crítica foram criadas durante o período no qual a necessidade
de recusa e subversão estavam personificadas na ação de fôrças
sociais eficazes. Essas categorias eram essencialmente negativas,
conceitos oposicionistas, definindo as contradições reais da socie-
dade européia do século
XIX.
A própria categoria sociedade
expressava o conflito agudo entre as esferas social e política -
a sociedade antagônica ao Estado.'
Do
mesmo modo, indivíduo ,
classe , família designavam esferas e fôrças ainda não inte-
gradas nas condições estabelecidas - esferas de tensão e con-
tradição.
Com
a crescente integração da sociedade industrial,
essas categorias estão perdendo sua conotação crítica, tendendo
a tornar-se têrmos descritivos, ilusórios ou operacionais.
A tentativa de recuperar o objetivo crítico dessas categorias
e de compreender como o objetivo foi cancelado
social parece, logo de início, uma regressão da teona lIgada a
prática histórica para o pensamento abstrato e especulativo: da
crítica da Economia Política para a Filosofia. Ésse cará ter
7
-
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15/76
ideo ógico da crítica resulta do fato de a análise ser forçada a
parti r de uma posição "externa " às tendências da sociedade tanto
positivas como negativas, tanto produtivas como destr uti;a s. A
sociedade industrial moderna é a identidade penetrante dêsses
é o todo que está cm questão. Ao mesmo tempo, a
nao. ser especulativa. Deve ser
um
ponto
de hlstonco no sentido de dever basear-se nas aptidões da
socIedade em questão.
. Essa situação ambígua envolve outra ambigüidade ainda
A Sociedade Unidimensional
oscila, do prin-
CipiO ao fIm entre duas hipóteses contraditórias: 1) a de que
a sociedade industrial desenvolvida seja capaz de sustar a trans-
quaiitativa o futuro previsível; e 2) a de que
eXistem forças e tendenclas que podem romper essa contenção
e fazer explodir a sociedade. Não creio que possa ser dada
uma resposta clara. Ambas as tendências existem lado a lado -
e até mesmo uma dentro
da outra. A primeira tendência é
dominante, quaisquer condições prévias
para
reversão, possi-
velmente eXistentes, estão sendo usadas para preveni-la. Talvez
um acid
7
nte possa alterar a situação, mas, a não ser que o
reconhecimento do que está sendo feito e do que está sendo
impedido subverta a consciência e o comportamento do homem,
nem mesmo uma catástrofe ocasionará uma transformação.
A análise é focalizada na sociedade industrial desenvolvida
na qual o aparato técnico de produção e distribuição (com
crescente setor
de
automatização) não funciona como a soma
total de meros instrumentos que possam ser isolados de seus
efeitos sociais e políticos, mas, antes, como um sistema que
d:termina,
a priori
tanto o produto do aparato como as opera-
çoes sua manutenção e ampliação. Nessa sociedade, o apar ato
produtiVO tende a tornar-se totalitário no quanto determina não
apenas as oscilações, habilidades e atitudes socialmente neces-
sárias, mas também as necessidades e aspirações individuais.
Oblitera, assim, a oposição entre existência privada e pública,
individuais e sociais. A tecnologia serve
para
Instituir formas novas, mais eficazes e mais agradáveis de con-
trôle social e coesão social. A tendência totalitária dêsses con-
trôles parece afirmar-se ainda em outro sentido - disseminando-
se pelas áreas menos desenvolvidas e até mesmo pré-industriais
e criando similaridades no desenvolvimento do capitalismo e
do comunismo.
18
Em face das particularidades totalitárias dessa sociedade, a
noção tradicional de "neutralidade" da tecnologia não mais pode
ser sustentada. A tecnologia não pode, como tal, ser isolada do
uso que lhe é dado; a sociedade tecnológica é um sistema de
dominação que já opera no :; conceito; e na elaboração das
técnicas.
A maneira pela qual a sociedade organiza a vida de seus
membros compreende uma escolha inicial entre alternativas his-
tóricas que são determinadas pelo nível de cultura material e
intelectual herdado. A própria escolha resulta do jôgo dos
interêsses dominantes. Ela
antevê
maneiras específicas de utilizar
o homem e a natureza e rejeita outras maneiras.
t
um "projeto"
de realização entre outros.
2
Mas, assim que o projeto se torna
operante nas instituições e relações básicas, tende a tornar-se
exclusivo e a determinar o desenvolvimento da sociedade em seu
todo. Como um universo tecnológico, a sociedade industrial
desenvolvida é um universo político a fase mais atual da reali-
zação de um projeto histórico específico - a saber, a experiência,
a transformação e a organização da natureza como o mero
material de dominação.
Ao
se desdobrar, o projeto molda todo o universo da palavra
e da ação, a cultura intelectual e material.
No
ambiente tecno-
lógico, a cultura, a política e a economia se fundem num sistema
onipresente que engolfa ou rejeita tôdas as alternativas. O
potencial de produtividade e crescimento dêsse sistema estabiliza
a sociedade e contém o progresso técnico dentro da estrutura de
dominação. A racionalidade tecnológica ter-se-á tornado racio-
nalidade política. . .
Na
discussão das tendências comuns da sociedade industrial
desenvolvida, raramente faço referências específicas. O material
se acha reunido e descrito na ampla literatura sociológica e
psicológica sôbre tecnologia e mudança social, gerência cien-
tífica, empreendimento corporativo, transformações no caráter
da mão-de-obra industrial e da classe trabalhadora etc. Há
muitas análises não-ideológicas dos fatos - tais como The
odem Corporation
and
Private Property de BerIe e Means,
os
relatórios do Comitê Nacional Temporário de Economia do
76.
0
Congresso dos E. U. A. sôbre
Concentração de Poder
2
o
têrmo
projeto
acentua o elemento de
liberdade
e
responsabilidade na
determinação utonomi e
contingência.
Neste sentido. o têrmo é
ul"ado na obra de
Jean·Paul
Sartre. Para uma análise mais ver
lapítulo
8
adIante.
19
-
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16/76
Econômico,
as publicações da AFL-CIO sôbre
Automatização e
Principais Transformações Tecnológicas e também as análises
de News and Letters e de Correspondence, de Detroit. Desejo
frisar a importância vital do trabalho de
C
Wright Mills e de
estudos que são com freqüência menosprezados por causa da
simplificação do exagêro ou da facilidade jornalística - The
Hidden Persuaders, The Status Seekers e The Waste Makers, de
Vance Packard The Organization Man, de William H. Whyte
e
The Warfare State,
de Fred J. Cook pertencem a essa catego-
ria. Na verdade a falta de análise teórica dêsses trabalhos deixa
cobertas e protegidas as raízes das condições descritas mas
deixando-se que estas falem por si, elas o fazem suficientemente
alto. Talvez a evidência mais reveladora se possa obter simples-
mente vendo a televisão ou ouvindo o rádio durante uma hora
inteira por alguns dias sem desligar nos momentos dos anúncios
vez
por outra de estação.
A minha análise é focalizada nas tendências das sociedades
contemporâneas mais altamente desenvolvidas. Há grandes
setores dentro e fora dessas sociedades nos quais
as
tendências
descritas não prevalecem - eu antes diria que ainda não pre-
valecem. Destaco essas tendências e apresento algumas hipóteses
- nada mais.
• De
Wright MilIs encontram-se editados em portuguê
o
seguintes livros:
As Causas da Pr6xima Guerra Mundial A Verdade sóbre Cuba, A ImaginaÇão
Sociol6gica
e
Poder e Política, todos
publicados
por
Zahar Editores. Serão publi-
cados
em
futuro
próximo
Os Marxistas
e
A /1.01 a C/asse Média também por
Zahar
Edito res. Os livros de Packard foram publicados em
portuguê
pela lbrasa. sob
os títulos de
A No,'a Técnica de Comefleer A COflquista do Prestígio Pessoal
e
A Estratégia do Desperdício, O livro de Fred J, Cook foi publicado pela Civilização
Brasileira com o título de O Estado Militarist ,
20
SOCIED DE
UNIDIMENSION L
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DEMIROVIC, Alex. Entrevista a Isabel Loureiro. Trans/Form/Ação, São
Paulo, v.27, n.2, 2004, p.143-148.
-
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18/76Trans/Form/Ação, São Paulo, 27(2): 143-148, 2004 143
ENTREVISTA
1
COM ALEX DEMIROVIC
2
No que seu livro Os intelectuais não-conformistas se distingue dos
livros de Martin Jay e Rolf Wiggershaus sobre a Escola de Frankfurt?
Esses livros têm grandes méritos por apresentarem em detalhe a
história do Instituto de Pesquisa Social e das pessoas que nele trabalha-vam, assim como do desenvolvimento da Teoria Crítica. O livro de Mar-
tin Jay apóia-se em material dos arquivos de Leo Löwenthal, amigo ín-
timo de Max Horkheimer e colaborador do Instituto até quase o fim da
década de 1940. Porém, com base nesse material o livro também acaba
no fim dos anos 40. Mas Horkheimer e Adorno ainda tinham pela frente
duas décadas importantes de atuação e de desenvolvimento da teoria.
Wiggershaus quer escrever uma história completa da Escola de Frank-
furt. Ele se dedica à história do grupo de pesquisadores. No centro es-
tão Horkheimer, Pollock e Adorno. Mas também trata dos outros bem
pormenorizadamente. Meu livro, em contrapartida, trata da época pos-
terior ao retorno de Horkheimer e Adorno para a Alemanha, ou seja, a
partir de 1949. Também não é uma história da Escola de Frankfurt e sim
um estudo histórico-científico. Eu procuro ver como Horkheimer e
Adorno enquanto intelectuais críticos, marxistas, desenvolveram uma
prática concreta no campo intelectual, que papel sua teoria desempe-
nhou na sua prática intelectual e de que modo essa prática influenciou
igualmente a teoria. Pesquisei assim de que maneira Adorno sobretudo
contribuiu para o desenvolvimento da sociologia como domínio cientí-
fico na Alemanha, como era sua docência, que discussões e que liga-
ções existiam com os estudantes, como as publicações eram organiza-
1 Entrevistadora e tradutora: Isabel Loureiro
2 Alex Demirovic, doutor em filosofia, trabalhou como pesquisador do Instituto de Pesquisa Social
em Frankfurt. Atualmente é professor na Universidade de Frankfurt. Entre outras, publicou as se-
guintes obras: Der nonkonformistische Intellektuelle – Die Entwicklung der Kritische Theorie zur
Frankfurter Schule. Frankfurt: Suhrkamp, 1999; (org.). Modelle kritischer Gesellschaftstheorie –
Traditionen und Perspektiven der Kritischen Theorie. Stuttgart/Weimar: J. B. Metzler, 2003.
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19/76144 Trans/Form/Ação, São Paulo, 27(2): 143-148, 2004
das em editoras e revistas e como era a recepção pública dessesescritos. Trata-se portanto de uma questão sistemática: o que intelec-tuais marxistas, que deram ao marxismo uma nova forma histórica, fa-zem concretamente na sociedade alemã quando a forma de reprodução
capitalista e conseqüentemente também a posição do intelectual mu-dou nessa sociedade. Wiggershaus tem também um interesse específi-co em demonstrar que os velhos autores eram resignados e que a TeoriaCrítica teve uma continuação frutífera com Negt e Kluge, mas sobretudocom Habermas. Eu não estava interessado nesse tipo de demonstração.Considero essa tese fundamentalmente problemática. Se analisarmos aatividade intelectual de Adorno e Horkheimer chegamos à conclusão deque eles faziam um grande esforço para criar na Alemanha uma amplainfra-estrutura para o pensamento crítico. Eu procuro mostrar que setrata de uma importante prática intelectual, de uma prática teórico-epistemológica em sentido materialista. Com base nessa infra-estruturaeles criaram um novo modelo de teoria o qual uniu filosofia, sociologia epsicanálise numa nova Teoria Crítica da sociedade. Para mim essateoria social é não só importante como ponto de partida para reflexõesatuais, mas também é importante o tipo de prática desses autores.
Como você vê a virada lingüística?
Na forma como foi tratada por Habermas – no sentido de uma teorialingüística antropológico-universalista – não penso que seja útil. Entre-tanto considero importante estabelecer o significado da linguagemnuma teoria crítica materialista da sociedade. Neste campo há idéiasinteressantes como as de Baktin ou Volosinov, assassinados no tempode Stalin. Hoje, temos autores como Utz Maas, Jürgen Link, SiegfriedJäger na Alemanha, Fairglough na Inglaterra, Ruth Wodak na Áustria,
Michel Pêcheux na França, o qual tem idéias muito estimulantes. As re-flexões desses autores mostram claramente que o discurso provém dedeterminadas posições discursivas; o próprio discurso é sempre institu-cionalizado e dialogizado por meio do que outros exprimiram anterior-mente ou do que esperamos que eles digam no futuro. Um exemplo: Wi-ggershaus interpreta o discurso de Horkheimer como reitor daUniversidade de Frankfurt de tal modo que diz que ele era resignado eque não abordava o contexto concreto na Alemanha, ou seja, que igno-
rava a constelação histórica concreta. Diferentemente de Wiggershausli inúmeros discursos de reitores de outras universidades e cheguei as-sim a um resultado totalmente diferente, a saber, que Horkheimer pro-
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20/76Trans/Form/Ação, São Paulo, 27(2): 143-148, 2004 145
curava convencer os estudantes a serem mais autônomos e a participa-
rem democraticamente das decisões políticas. Esses discursos eram
portanto uma intervenção altamente concreta no contexto intelectual.
Muitos estudantes sentiam-se encorajados e se engajavam em grupos
socialistas, começavam a ler Marx e Lukács e intervinham de maneiraprática na discussão política.
Como você vê a discussão atual sobre a Teoria Crítica na Alemanha?
Tomemos como exemplo as comemorações do centenário do nasci-
mento de Adorno: vários livros foram publicados, inúmeras conferên-
cias foram apresentadas. Os livros são apenas biográficos, trouxeram
material novo mas não há nenhuma nova interpretação. Também nas
conferências falaram muitas pessoas que repetem há anos que Adorno
deixou de ser atual e que só pode ser usado, quando muito, como teóri-
co da estética. Nos suplementos culturais se escreve sobre Adorno de
modo em parte crítico, em parte irônico e distanciado. Enfatizam-se
seus hábitos sexuais um tanto neurótico-obsessivos, o fato de que já
idoso ainda se apaixonava por mulheres jovens, o que lhe dá um certo
ar suspeito. Vai para segundo plano o teórico crítico perspicaz, o dialé-
tico que, junto com todos os diagnósticos que hoje em parte já não são
utilizáveis, também disse coisas muito importantes a respeito dasquestões fundamentais da teoria da sociedade.
E você, como vê Adorno hoje?
Penso que Adorno desenvolveu uma teoria da sociedade para além
da tradição da prima philosophia. Ele recusava compreender a socieda-
de como um universal, como algo que sempre existiu e em que tudo é
determinado por uma causa última como fundamento metafísico. Ele étanto um crítico da metafísica do trabalho quanto da metafísica da lin-
guagem. Ele também rejeitava expressamente todas as tentativas de
dar um fundamento filosófico-moral à crítica da sociedade. Para ele tra-
tava-se de constelações concretas em que a negação determinada podia
se desenvolver. Penso que ainda hoje é muito interessante redescobrir a
crítica de Adorno à objetividade lógica positivista, ao conformismo as-
sim como suas reflexões sobre a dialética negativa. Sobretudo penso
que a dialética negativa é importante. Ou seja, é importante um concei-to de antinomias nas quais nos movemos permanentemente: participa-
ção democrática e recusa da política, liberdade e não-liberdade, carên-
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21/76146 Trans/Form/Ação, São Paulo, 27(2): 143-148, 2004
cia de igualdade e de diferença, todas essas antinomias que precisamossuportar e que Adorno nos ensina a captar como impulso e motivo parao pensamento e a ação críticos, e que não está distante de nós a possi-bilidade de superar a atual situação social. Justamente esse ponto de
vista – o de que Adorno visa a superação das formas capitalistas de so-cialização, uma associação de homens livres, que a humanidade se tor-ne finalmente humanidade e configure racional e coletivamente suascondições de vida – não desempenha nenhum papel nas discussõesatuais sobre ele.
Quão crítica é hoje a Teoria Crítica na Alemanha?
Considerando-se o que acabo de observar, eu diria que muito do
que hoje se escreve e se diz em nome da Teoria Crítica é pouco crítico.Nesses escritos não se trata de criar uma situação mundialmente livree racional. Essas reivindicações são antes consideradas superadas. Oargumento é que temos hoje uma democracia, temos um espaço públi-co que funciona, que o capitalismo se transformou num capitalismo debem-estar social com direitos humanos e civis. Em alguns aspectos nãocontesto isso, mesmo deixando de lado os ataques neoliberais ao Esta-do de bem-estar. Porém, indo mais longe, é evidente que a situação so-
cial não é determinada pelos indivíduos, mas, ao contrário, que estessão exortados continuamente a se adaptarem. A política consiste es-sencialmente num apelo populista a se resignar, pois a situação é assime não pode ser diferente. Só se tem como objetivo o crescimento e o pro-gresso técnico, mais empregos e consumo crescente. A desumanidadedo trabalho assalariado, do consumo, da destruição da natureza é em-purrada para segundo plano. A idéia é que o progresso resolverá essesproblemas a qualquer momento. Apesar disso, é evidente que a liberda-
de, que uma associação de indivíduos livres já seria possível.Hoje existem muitas tentativas de refundar a Teoria Crítica em ba-
ses filosófico-morais o que considero infrutífero. Essas discussões exis-tem há milênios e nunca foram longe. É importante aqui o passo dadopor Marx indo da filosofia à análise dos processos reais; Horkheimer eAdorno seguiram-no, ainda que com a ressalva de salvaguardar o idea-lismo para poder através dele alcançar a realidade. Sua aspiração era re-novar a teoria da sociedade pois o capitalismo havia assumido uma
nova forma. Para mim, ainda hoje, essa me parece ser a tarefa central. Ocapitalismo transformou-se, e as forças críticas adquirem assim umaposição diferente – e por isso precisam também de uma nova teoria.
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22/76Trans/Form/Ação, São Paulo, 27(2): 143-148, 2004 147
Você considera que a Teoria Crítica sofre de um déficit sociológico
e que não pode mais interpretar a situação atual?
Penso que podemos aprender metodologicamente muito com a ve-
lha Teoria Crítica. Gostaria de mencionar dois pontos: 1. a teoria tem
que captar a totalidade da situação, ou seja, a conexão interna entre re-lações de produção, Estado, cultura, padrões de subjetividade e racio-
nalidade; 2. a separação entre trabalho intelectual e trabalho manual –
ou seja, a questão a respeito do estado da cooperação social e da neces-
sidade da labuta física para manter a vida humana; a isso está ligada a
questão da dose concreta de liberdade e razão que existe na sociedade.
Para Adorno a questão central é saber se a sociedade já pratica o grau
de liberdade que seria possível em face do desenvolvimento das forças
produtivas. Como esse não é o caso precisamos perguntar a respeitodas necessidades objetivas e dos padrões de repressão, ou seja, qual é
o custo de impedir a liberdade. Nos casos individuais é preciso exami-
nar o que ainda é válido nas antigas teses sociológicas. Mas penso que
aqui igualmente ainda há muita coisa atual que precisa ser redescober-
ta e reincorporada de maneira nova, como p.ex., as reflexões sobre a in-
dústria cultural ou o consumo. No contexto da violência racista na Ale-
manha muitas reflexões de Adorno e Horkheimer sobre o antisemitismo
também são importantes e atuais. Em outras palavras, descubro na ve-lha Teoria Crítica muita coisa interessante, bem mais que em muitas te-
orias contemporâneas que pretendem contribuir criticamente para o
estudo da patologia social do capitalismo e que no entanto permane-
cem enterradas em comentários superficiais e em debates filosófico-
morais sem um conhecimento preciso do capitalismo. Mas isto não sig-
nifica que não se deva continuar a desenvolver a teoria do capitalismo.
Neste campo há muitas pesquisas sobre a forma de mudança do capi-
talismo – do fordismo para o pós-fordismo ou império ou capitalismohigh-tech. Com esse tipo de estudos podemos nos pôr de acordo.
Há trabalhos sobre isso na Alemanha?
Sim. Penso em Joachim Hirsch, Elmar Altvater e Birgit Mahnkopf,
Heinz Steinert, Regine Becker-Schmidt, Alexi Knapp, Andrea Maihofer,
Christoph Görg, Uli Brand, Gerhard Schweppenhäuser e muitos outros.
Contudo não se devem subestimar as dificuldades atualmente existen-tes. Adorno e Horkheimer tiveram êxito ao ancorarem a Teoria Crítica
na universidade. Isso foi feito através do novo papel dado ao Instituto de
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Pesquisa Social como instituto para o ensino da sociologia na universi-
dade, o que marcou toda uma geração. Essa geração deixa hoje a uni-
versidade. E já não é evidente que o saber crítico ainda se reproduza
por meio da universidade. No tocante a este ponto precisam ser desen-
volvidos novos modelos de discussão e de trabalho conjunto intelectual
que, sem desistir da universidade, sejam um tanto independentes des-
sa instituição. Em todo caso, entre os chamados intelectuais e outros
existem muitos esforços que, a partir dos estudos da economia política
internacional, da teoria da regulação, da teoria de Gramsci, da teoria fe-
minista, de gênero e homossexual e do pós-estruturalismo, visam con-
tinuar a desenvolver a Teoria Crítica da sociedade num novo nível his-
tórico. A Teoria Crítica consiste também na apropriação crítica de todos
esses debates teóricos, que expõem e sistematizam as experiências e
os movimentos de emancipação. Muita coisa será criticada. Mas penso
que é necessário, no sentido da Teoria Crítica, integrar todas essas ex-
periências e discussões num contexto teórico mais abrangente. Com
isso se cria também para a Teoria Crítica uma tarefa totalmente nova.
Não só a filosofia precisa atualmente unir-se às questões científicas
particulares, mas também as diversas teorias emancipatórias devem
conduzir a uma compreensão complexa da nova realidade capitalista
pós-fordista – compreensão complexa que é necessária pois a emanci-
pação assume várias formas.
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LESSA, Carlos. Análise econômica e economia política. Aula Magna
proferida no Departamento de Economia da Unicamp, outubro, 1972.
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ANÁLISE ECONÔMICA E ECONOMIA POLÍTICACarlos Lessa*
Introdução
Vamos abordar o problema do ensino de economia. Não tem muito sentido relacionar osvelhos problemas: falta de verbas, falta de professores, professores que não têm tempointegral, alunos que não têm dedicação exclusiva, etc. Vou tentar discutir com vocês o temasob um segundo ângulo, o problema substantivo de qual o conteúdo possível, ou qual dosconteúdos podem ser propostos à formação do economista. E parece que nossa profissãoestá marcada por pelo menos dois séculos de um debate que até hoje não se resolveu: qual éo objeto próprio de reflexão em economia.
Na verdade, existem dois objetos de possível proposição e cada um desses objetos deconhecimento apresenta implicações com respeito ao ângulo de abordagem e modo de trataros temas completamente distintas. À primeira vista, os dois objetos não são tão discrepantesassim. Um primeiro objeto com que todos os alunos do primeiro ano do curso de economiatomam contato é dizer que a meta básica de reflexão do economista é estudar todos osfenômenos relacionados com a escassez material; então, o fato econômico se caracterizaria pela presença de uma escassez relativa. Ar e água não são problemas econômicos porquenão são escassos; como tudo mais é escasso, tudo o mais pertence ao terreno da economia.Eles dizem que a escassez está diretamente relacionada com outro conceito, que é oconceito de opção. Então, o estudo do economista é de como realizar opções segundocritérios. Eu chamei isto de objeto número um, ou objeto de análise econômica.
Agora, numa outra perspectiva se propõe como objeto próprio da reflexão do economista oestudo das leis sociais que regem os processos de produção e repartição dos bens e serviços.Dito de outra maneira, todas as sociedades organizadas, desde a neolítica inferior até asociedade do século XX, de alguma maneira se organizaram para realizar os atosnecessários para a produção e repartição das coisas que são produzidas e, o modo comoestas sociedades se organizaram para resolver o problema da produção e repartição, seria oque nós vamos chamar aqui de objeto número dois de reflexão do economista, ou objeto daeconomia política.
Vou tentar trabalhar com essas duas definições com o propósito básico de mostrar que omatrimônio delas é, até certo ponto, impossível. Assim, na medida em que a formação doeconomista se orienta, ou o economista opta, pelo caminho da análise econômica, istoimplica em uma determinada visão de mundo que não é possível integrar com a da segundarota, a economia política. A evolução do pensamento econômico coloca a ênfase ora num,ora noutro objeto, e o fato de por ênfase num ou noutro objeto reflete um momento do processo social que os sistema econômicos e sociais estão atravessando.
* Economista; Aula Magna proferida no Departamento de Economia da Unicamp – Outubro, 1972.
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2
À primeira vista, pode-se dizer que não parece que haja tanta discrepância entre os objetos.Afinal de contas, é verdadeiro que todas as sociedades organizadas produzem e repartem bens, como é verdadeiro que em toda sociedade organizada há escassez deles. Então,alguém poderia dizer que se tratam de duas manifestações simultâneas, e a escolha de um
ou outro objeto de reflexão não deve gerar conclusões diametralmente opostas ou, pelomenos, não compatíveis.
Não é assim, entretanto, em primeiro lugar por características notadamente metodológicas.Reparem bem: quando nós definimos que o objeto do conhecimento é de análiseeconômica, ou seja, estudo da escassez e da opção, a um alto nível de abstração a escassezse manifesta numa sociedade de coletores primitivos, nos impérios clássicos, na economiafeudal, no início do capitalismo mercantil, acompanhou a revolução industrial, assistiu àaparição da sociedade capitalista numa etapa madura, e também está presente numasociedade socialista. Dito de outra maneira, a escassez é um dado à primeira vista a-histórico. Então, a construção teórica a partir desse conceito permitiria ou proporia à
economia o caráter de uma ciência que em sua proposição primeira seria a-histórica. Ditode outra forma, a ciência econômica poderia se pretender universal e atemporal. Baseadanum objeto de conhecimento inicial, o estudo do fenômeno da escassez, a economiaelaboraria um sistema de proposições teóricas aplicáveis em qualquer sociedade dequalquer época. Um ou outro termo dessa equação poderia se modificar a partir deaproximações do modelo analítico à situação concreta, mas os corpos teóricos seriam a-históricos.
Agora, quando se trabalha com o segundo objeto de conhecimento, a economia política, éabsolutamente evidente que toda e qualquer construção nesse nível sempre dirá respeito aum tempo histórico definido, a uma determinada formação social. As leis que regem a
produção e a repartição numa economia medieval são totalmente diferentes daquelas presentes numa economia socialista, e assim por diante. As leis da economia política temvigência definida no espaço e no tempo. Na perspectiva da economia política, a economianão poderia pretender construir teorias universais, abrangentes de todos os tempos e todosos lugares.
Análise Econômica
Uma segunda diferença vem da exigência do próprio objeto do conhecimento. Reparem bem: análise econômica. Os senhores todos têm curso de análise econômica - análise micro-econômica: análise micro e depois aplicações específicas de construções analíticas. Quequer dizer analisar? Análise química significa pegar uma substancia e fracioná-la em seuselementos constituintes. Qualquer procedimento analítico é uma operação de partição:toma-se um todo e parte-se para se obter uma coleção de partes.
Eu vou usar um exemplo para ilustrar uma operação analítica, com um objeto de análiseaparentemente muito grosseiro - uma vaca. Reparem bem, nós não vamos analisar a vaca
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3
em geral, nós vamos tomar uma determinada vaca, nascida em data e lugar específicos.
Tomem esta vaca, por exemplo, a Madalena, e vamos analisá-la. Agora vamos colocá-la na
mão de dois analistas: o primeiro analista é um açougueiro. O que é que ele vai fazer com a
vaca? Vai matá-la. Retira a carne de primeira, a carne de segunda, a carne de terceira, retira
as vísceras, o couro, etc., ou seja, desmembra aquele todo em uma coleção de partes. Agora,
se essa mesma vaca tivesse de ser partida por outro analista, o professor da escola deVeterinária, o que ele faria? Ele vai utilizar a vaca para uma demonstração de anatomia,
logo, mata a vaca da mesma maneira. Mas a partir daí, vai desmembrá-la com critérios
distintos: primeiro, o sistema neuro-vegetativo; depois, o subsistema circulatório; etc. no
final, teria uma outra coleção de partes.
Em primeiro lugar, qual é o denominador comum dos dois analistas? Ambos assassinaram
o todo. Segundo dado comum às duas situações: é impossível reconstruir Madalena a partir
das duas coleções de partes. O que aconteceu? O primeiro analista, o açougueiro, e o
segundo analista, o professor de anatomia, ao desmembrar a vaca obtiveram não elementos,
mas partes, que são os elementos sem as conexões com as demais e com o todo. Mas o que
diferencia um analista do outro é que o primeiro tem critérios de partição que são diferentesdo critério de partição do segundo. Generalizando mais, poderíamos dizer que existem
infinitas coleções de partes obtidas a partir de um todo - Madalena. Então, toda análise
econômica é uma operação de partição, só que não parte de um objeto físico, mas sim de
idéias. Quais são as idéias? Produção, equilíbrio geral, sistema econômico, e estas idéias, o
analista em economia parte e obtém uma coleção de partes. Só que, como neste caso, a
operação de análise se dá com um objeto ideal, o que obtém são conceitos. Mas os objetos
colocados sob a análise econômica admitem da mesma maneira infinitos modos de partição.
Então, primeira coisa importante: admite infinitos modos de partição. Dizer isso é dizer que
existem critérios implícitos ou explícitos por trás dos conjuntos de conceitos econômicos.
A armadilha do Critério de Partição
Dependendo dos critérios escolhidos teremos uma determinada coleção de conceitos e,
dependendo dos conceitos que tomarmos, poderemos demonstrar qualquer coisa. Através
da análise econômica, é possível simultaneamente demonstrar A e não-A, dependendo da
coleção de conceitos que nós escolhermos. Apenas para efeito de exemplificação, vamos
ilustrar a primeira grande armadilha dos procedimentos analíticos, a armadilha do critério
de partição.
Reparem bem, há uma tese bastante difundida que diz “não é possível compatibilizar o
objetivo de máximo crescimento econômico com o objetivo de melhor justiça social”. Por
que? Porque se admite que o crescimento se dá em função da taxa de investimento, esta é
função da oferta de poupança e se supõe que os grupos de mais alta renda poupam mais que
os grupos de mais baixa renda. Para não sacrificar a taxa de investimento, é necessário que
haja uma alta desigualdade na repartição da renda. Melhor repartição de renda, mais
reduzida a taxa de crescimento; mais alto o ritmo de crescimento, pior distribuição da
renda. Esta é a tese A. Agora vem não-A. Vamos supor o seguinte: os bens se classificam
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em duráveis e não-duráveis. Os primeiros são acumulados, os segundos são desfrutados.
Agora, uma geladeira é acumulada assim como um trator, mas há uma diferença
fundamental entre a geladeira e o trator. Com a geladeira, a acumulação é improdutiva,
enquanto que com o trator é produtiva. Se nós tomamos a estrutura de consumo, os grupos
de baixas rendas consomem a totalidade de suas rendas, porém o grosso do seu consumo é
formado de bens não duráveis. Na medida em que subimos na escala de repartição de renda,os grupos superiores são consumidores de bens duráveis. Dito de outra maneira, os grupos
que fazem acumulação improdutiva são os grupos de altas rendas. Quanto mais alta a renda,
mais que proporcional cresce a acumulação improdutiva por estrato de renda. Se uma
economia tem uma determinada capacidade de produção, esta capacidade de produção pode
ter ou não uso alternativo. Por exemplo, a capacidade de produzir alimentos não teria uso
alternativo, ou produz alimentos ou então não pode ser desviada para a produção de bens
duráveis. Mas uma indústria de automóveis pode produzir automóveis ou caminhões, pode
produzir bens para uma acumulação improdutiva ou produtiva. A indústria da construção
civil pode fazer mais um edifício de apartamentos (acumulação improdutiva) ou mais um
edifício industrial (acumulação produtiva). A indústria de eletrodomésticos pode produzir
geladeiras ou instalações elétricas.
Se a economia pretende crescer à maior taxa possível deve forçar a máxima acumulação;
mas que acumulação? Acumulação produtiva. Quais são os grupos que realizam
acumulação improdutiva? Os grupos de alta renda. Então, quanto mais anormal a repartição
da renda, maior será a acumulação improdutiva, menor será o crescimento. Demonstrado
não-A.
Reparem bem, na primeira peça nós demonstramos que melhor justiça era incompatível
com maior crescimento e na segunda, que maior justiça é compatível com maior
crescimento. Dependendo de que? No primeiro caso, nós trabalhamos com categorias
keynesianas - consumo e poupança. Com isso se demonstrou a tese A. Trabalhando comconceitos de acumulação produtiva e acumulação improdutiva se demonstra não-A.
Houve um grego que disse o seguinte: me dêem uma alavanca e um ponto de apoio que eu
desloco o mundo. Com a teoria econômica acontece o seguinte: dêem-me a possibilidade de
manter oculto meu critério de partição que eu demonstro qualquer coisa.
Nível de Abstração
O segundo problema que ocorre no procedimento analítico diz respeito ao chamado nível
de abstração. Vamos tentar simular que o pessoal fez vestibular e optou por economia. Vão
ter a primeira aula de economia, bem animados porque finalmente vão travar contato com a
ciência e a primeira aula é uma aula de motivação. O mestre diz que a economia dispõe de
leis e que vai começar apresentando aos alunos uma lei apenas a título de exemplo: a lei da
demanda, que diz que a quantidade demandada varia inversamente ao preço. Então escreve
uma relação proporcional no quadro, na qual a variável dependente é a quantidade
demandada e a variável independente é o preço. Traça as curvas e eis que a turma trava
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contato com a ciência. Então, esse mestre vai procurar trazer a turma ao processo de criação
intelectual. Pergunta: vocês concordam com essa relação funcional? B é uma função f
qualquer do preço, e vamos supor que ele vai querer discutir a função demanda de
bicicletas. Ele diz que a demanda de bicicletas varia inversamente ao preço da bicicleta.
Pergunta se concordam com isso. Mas aí um aluno levanta o dedo e fala: a quantidade de
bicicletas não depende também de preço de outras coisas? O mestre atento escreve umasegunda relação funcional, tendo como variável dependente a quantidade demandada e
como variável independente o preço das bicicletas e os das n-1 outras coisas. Ele continua
fazendo perguntas à turma. Outro fala que depende da renda. Escreve uma terceira relação
funcional. Aí, é um festival: surgem mais variáveis independentes. A função demanda se
torna mais sofisticada a cada uma destas novas relações. Neste momento, o mestre se
encontra num estado de exaltação porque a turma é formada de gênios, e os alunos
tremendamente gratificados por saberem não só que a economia é ciência, mas também que
estão contribuindo para fazer ciência. Aí, um espírito de porco levanta o dedo e conta um
caso que ocorreu na sua cidade: um velhinho, que é amigo da turma da praça, ganhou na
loteria esportiva e presenteou os garotos da praça com bicicletas, o que aumentou a
demanda de bicicletas. Isto é uma variável funcional; seria uma variável aleatóriaintroduzida dentro do modelo. Reparem só: entre aquela esquálida função demanda,
definida sob condições ceteris paribus, até a última, que incorporou uma variável aleatória,
o que aconteceu? O nível da abstração veio baixando a cada nova variável introduzida na
relação funcional. O mestre tentou se acercar do real, o que nunca aconteceu; caso
acontecesse, ele teria uma função demanda com infinitas variáveis.
Então, deixando de lado o problema do critério da análise, há um segundo problema: todas
as construções analíticas estão a um determinado nível de abstração, e um dado nível de
abstração não pode ser operacionalizado num nível diferente. Se operacionalizado em
níveis diferentes, conduz a desenfoques. A que nível as construções analíticas podem ser
operacionalizadas? Só num mundo ideal, com as abstrações que o economista faz. Dito deoutra maneira, as relações funcionais que nós podemos construir com a análise econômica
só são válidas em relação a um universo ideal.
Como é que nós caminhamos na análise econômica? Em primeiro lugar, fazemos abstração
da história; em segundo, fazemos abstração das relações sociais; em terceiro lugar,
abstração da estrutura de poder; depois, abstração do espaço, que incomoda um pouco.
Então, eliminados espaço e tempo, começamos a pensar. Mas eliminados por que?
Eliminados porque é um procedimento analítico e todo procedimento analítico é
necessariamente um processo de partição.
A Lógica Formal
O que está por trás de toda lógica utilizada pela análise econômica, que é fundamentalmente
a lógica formal? Reparem bem, como é que nós construímos o conhecimento em análise
econômica? Em primeiro lugar, nós admitimos conceitos, e os conceitos têm o problema
que chamei o critério de partição. Em segundo lugar, quais são as características do
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conceito? Este conceito tem uma série de propriedades. A primeira é a chamada propriedade tautológica, identidade do ser consigo mesmo. Isso foi a glória de Parmênides2.000 anos antes de Cristo, e fundamentalmente, quer dizer que o conceito é igual à suadefinição.A é igual a A. Em segundo lugar, afirma-se em relação ao conceito que ele é ou não é, não
existe uma terceira possibilidade; é o princípio do terceiro excluído. Ao fazer isso, o que éque ocorre? Nós vamos substituindo um processo social vivo, cheio de interrelações, poruma bateria de conceitos. Tendo isso, vamos teorizar. O que é teorizar numa perspectiva deanálise econômica? É estabelecer relações funcionais de comportamento pelo qualdeterminada variável tem o seu comportamento justificado por outra. Isto é, estabelecerrelações de causalidade entre variáveis econômicas. Você coloca que a variável dependentetem o seu comportamento como um efeito da variável independente. Quando você encontrauma articulação deste ripo, você diz que faz teoria.
Reparem bem, esta teoria está toda construída a partir do princípio de causalidade. Esse princípio é um dos mais tramposos enganos que existem, conduz a armadilhas tremendas. A
essa altura vocês dirão: se as construções analíticas têm tão graves limitações de carátermetodológico, por que são utilizadas? Em primeiro lugar, porque ela é a lógica da infância(sic). Em toda construção intelectual, a primeira coisa que nós fazemos é utilizarlinguagem. Toda e qualquer linguagem é construída de conceitos, ou seja, todo processo decomunicação é dependente num primeiro momento de conceitos. Nesse sentido é um primeiro passo indispensável ao problema da especulação. Mas é um passo extremamentelimitado, porque toda construção analítica está vulnerável a estas e outras mazelas, Temos pouco tempo, e na verdade discutir as limitações da análise é tema que ocupa muitas horas,mas mesmo assim vocês já devem ter visto as limitações que tem o procedimento analítico.Entretanto, é necessariamente utilizado. Agora, se o economista receber apenas análiseeconômica e toda a sua formação se repousar em transmissão e recepção de construções
analíticas, ele vai, muito provavelmente, ficar equipado com uma lógica que desconhece asdimensões mais pertinentes e mais inerentes ao próprio fenômeno que ele se propõe aenfrentar. ele vai ser detentor intelectual da maior arquitetura de lógica formal que ohomem construiu depois de São Tomás de Aquino. Mas essa imensa construção intelectualé uma construção que elimina as dimensões mais significativas que presidem os processosociais, do qual o econômico é um dos níveis sem dúvida nenhuma (sic) dominantes.
Economia Política
E na perspectiva da economia política, o que acontece? Quando a economia política se propõe a fazer um estudo das leis sociais de produção e repartição, ela de saída reconhece ahistoricidade do seu campo de reflexão. Dizendo isso, ao mesmo tempo ela está admitindoque vai tratar com o objeto que é uma totalidade, mas que mais que uma totalidade, é umatotalidade em mutação. Tem que enfrentar o fenômeno de explorar, apreender o processo detransformação das coisas. O único instrumento lógico disponível para isso até hoje é achamada dialética.
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Dito de outra forma, eleger o objeto da economia política significa imediatamente, emtermos metodológicos, ir à dialética. Mas acontece que a dialética entra em confronto diretocom as hipóteses da lógica formal, porque toda a lógica formal estabelece uma ditadura deconceitos, que são seres que têm precedência a tudo mais. O movimento, em termos delógica formal, é explicado por uma primazia de seres que são os conceitos articulados em
uma relação funcional que explica as variações. Numa perspectiva dialética, admite-seexatamente o inverso. Primeiro, o dado maior é o existente em transformações e é este“existente em transformações” que, por uma codificação técnica, você lança mão de
determinados conceitos para poder abordá-lo. Entretanto, pode-se dizer que pensar o todoem todas suas implicações é evidentemente uma proposta megalômana, não executada porninguém até hoje. Pensar a totalidade em todas suas implicações é uma propostaimpossível.
Então, qual é o procedimento possível para tentar chegar, com todas as limitações, a essenível? É fazer a operação inversa da operação de análise, que é a operação da crítica. A palavra crítica está cheia de conotações defectivas. Criticar é usado como “falar mal de”.
Mas o sentido preciso da palavra crítica é reconstruir as ligações que tem uma parte com otodo em que ela está inserida; é a tentativa de, partindo de conceitos que são entidadesmortas, tentar reconstituir as conexões que esses conceitos mantém com os demais. Ésempre possível, na formação do economista, em paralelo à necessária disciplina de análiseeconômica, realizar um esforço de abertura crítica. Agora, é evidente que é muitas vezesdifícil e muitas vezes não é feito, e na medida em que não é feito surge sempre a tenênciade nossa parte de imaginar que deve existir algum outro conjunto do conhecimento,articulado de uma outra forma, que seja o substituto ou que cubra as limitações que,intuitivamente, você sente no processo de transmissão analítica.
Comparação entre os Dois Métodos
Eu queria, antes de seguir nesse nível, tentar ilustrar com um exemplo elementar onde éque se poderia dar a diferença entre um raciocínio analítico e de abertura crítica. Vamosfalar do problema habitacional. O que é um problema habitacional? Alguém diz assim: “o
problema habitacional consiste em 100.000 famílias residentes em unidades residenciaisque não têm a mínima condição de salubridade, iluminação, conexão com serviço de água,etc.” Reparem bem, aqui o problema habitacional foi definido como um problema de um
déficit de unidades residenciais. Nós estamos dizendo que A é idêntico a A. E ainda vamos propor um esforço explicativo, ainda a nível analítico.
Qual é a explicação do fenômeno? Existe déficit habitacional porque a população tem baixarenda. então o problema habitacional passa a se o problema da baixa renda de 100.000famílias. A é idêntico a A. Foi definido um problema habitacional com uma presença de100.000 famílias que não tem nível de renda para adquirir uma unidade residencial comcondições adequadas. Mas aí você pode colocar: por que cem mil famílias têm baixa renda?Porque a capacidade produtiva do país é reduzida. Então, o problema habitacional passa aser derruindo como idêntico ao conhecido problema da insuficiente capacidade produtiva
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instalada na economia. Se quiséssemos continuar poderíamos substituir definições e provavelmente em algum momento o círculo se fecharia. Vemos então que A é a mesmacoisa que A.
Reparem bem: se, ao invés de fazer isto, colocássemos o problema da seguinte maneira:
“existe um país no qual 100.000 famílias têm baixa renda, baixo nível educacional,alimentar e a capacidade produtiva é exígua, a produtividade do trabalho é baixa”. A pergunta é a seguinte: por que esse país oferece essas características? Só há uma possívelresposta: apresenta este conjunto de características porque chegou a ser assim. Isto é, foi oseu passado que produziu esse presente. No momento em que você olha o passado paratentar explicar com a dinâmica do passado uma configuração do presente, você estáabandonando o terreno da análise econômica e está começando a fazer uma invasão noterritório da economia política, ainda que essa invasão não seja necessariamente feita pelocaminho mais rigoroso. Você está estabelecendo a sinalização da advertência críticanecessária com respeito à explicação analítica. E então, para poder entender este conjuntode características vai ser necessário interrogar sobre a lógica de evolução anterior dessa
sociedade, que explica o seu presente. É a dinâmica do seu processo de desenvolvimentoque vai explicar ou determinar a configuração atual. E quando você coloca essa pergunta naexplicação da dinâmica do desenvolvimento vai jogar elementos que em últimos termosvão dizer respeito à interpretação da história. Essa interpretação da história vai colocar emevidência a existência de grupos sociais, vai colocar em evidência a presença do país dentrode um contexto mundial, vai colocar em evidência a estrutura de poder, etc. Em últimostermos, a explicação do fenômeno do déficit de cem mil unidades residenciais vai repousarem todos os elementos que uma análise de economia política aborda. A economia deixa deter aquela assepsia que a caracteriza enquanto análise econômica. É evidente que quando secolocam as coisas sob esse enfoque as respostas passam a ser totalmente distintas, porqueas respostas do primeiro enfoque têm características muito ingênuas.
Vejam só, existe o problema habitacional definido como uma carência de cem mil unidadesresidenciais. Solução: fazer mais casas. Ou então, vamos sofisticar a resposta: estimular odesenvolvimento da capacidade produtiva de maneira a gerar incrementos de renda quetornem possível à população que não dispõe de unidades habitacionais, adquiri-las. Agora,se vocês agregarem a essa proposição uma hipótese sobre financiamento mais concreta,sobre preços relativos, a coisa ganha característica de uma proposta de política econômicafundada cientificamente. Na verdade, em últimos termos, A é A.
Se você procurar evocar o território da economia política, você vai se perguntar quais sãoos protagonistas sociais, qual a estrutura de poder e quais as relações que mantém entre si.Em últimos termos, temos de perguntar: é ou não possível superar esse déficit quantitativode cem mil unidades residenciais?
Agora, gostaria de chamar atenção sobre qual é o problema substantivo da formação doeconomista. É que a formação do economista, baseada somente em profundosconhecimentos de análise econômica, causa uma frustração. Se basicamente concebida na perspectiva de análise econômica, ela será uma formação sobre a qual se tem aguda
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consciência de que “faltou coisas”, que determinados níveis estão sendo escamoteados, queos enfoques não estão dando a necessária objetividade. Então, muitas vezes, numa reaçãoviolenta, saltam para um outro extremo e dizem o seguinte: “tudo isto não significa nada”, e pulam para o outro extremo: “vou pensar o todo”. Impossível. Qual é o problema do processo de formação? O problema do processo de formação é como conseguir casar,
dosificar dois componentes que não são compatíveis do ponto de vista metodológico, eadquirir treinamento suficiente para saber em que ponto estou pensando em termosanalíticos e a partir de que momento é necessário deixar de pensar nesses termos. Não é possível nem deixar uma coisa de lado nem deixar outra. Dirão vocês que entretanto émuito raro que os currículos contenham um esforço de abertura crítica para uma formaçãoanalítica. Por que? Por várias razões. A explicação mais elementar para esse fato é aseguinte: o indivíduo que recebe uma sólida formação em análise econômica e queincorpora a maior parte dos modelos disponíveis, tem condições para ser um operadordentro do sistema.
Eu vou forçar um pouco a barra. Os problemas de maximização e otimização são problemas
que podem ser resolvidos sem nenhuma (sic) referência aos objetivos últimos a que estãoservindo. É possível formular, por exemplo, um modelo de pesquisa operacional para sabercomo é possível eliminar da maneira mais eficiente os judeus, nos fornos crematórios deDachau. É perfeitam