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KALEVALA: LITERATURA, HISTRIAE FORMAO NACIONAL
CAROLINA ALVES MAGALDI
JUIZ DE FORA2006
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CAROLINA ALVES MAGALDI
Dissertao apresentada ao Programa dePs-Graduao em Letras da
Universidade Federal de Juiz de Fora,como requisito parcial para a obteno
do grau de Mestre. rea deconcentrao: Teoria da Literatura
Orientador: Prof. Dr. Rogrio de Souza Srgio Ferreira
Juiz de ForaDezembro de 2006
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CAROLINA ALVES MAGALDI
Dissertao apresentada ao Programade Ps-Graduao em Letras daUniversidade Federal de Juiz de
Fora, como requisito parcial para aobteno do grau de Mestre. rea de
concentrao: Teoria da Literatura
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________Prof. Dr. Rogrio Souza Srgio Ferreira orientador
__________________________________________________Prof Dr. Enilce Albergaria Rocha
UFJF
_________________________________________________Prof. PhD Georg Otte
UFMG
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minha famlia e aos meus amigospor terem dado sentido
a essa pesquisa.
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AGRADECIMENTOS
A Buda e a Sri Swami Sivananda pelo amor e pela paz.
A minha av Arlete pela amizade, as idias e a eterna jovialidade.A meus pais, Heitor e Lcia, por seu apoio, companheirismo e amor.A minha irm Juliana, por abrir caminhos e ao Anderson, pelo amor literatura.Aos meus padrinhos e madrinhas, Srgio e Cristina, Fred, Maria e Quinha, pelo amor,carinho e confiana.s minhas primas Rafaella e Isabella por completarem nossas quatro estaes.A toda minha famlia, em especial queles que nos deixaram cedo demais.
Ao Programa de Ps-Graduao em Letras da UFJF pela liberdade de escolha do tema deminha dissertao. CAPES por viabilizar esse projeto.Ao Prof. Dr. Rogrio Ferreira pela disponibilidade, dedicao, competncia e bom humorem sua orientao.Ao Prof. PhD Georg Otte pela recepo nos congressos, pelo valor que deu a este projeto epelas trocas de idias. Prof Dr. Enilce Rocha pelas aulas, as dicas e o idealismo.
s amigas Fernanda, Thas e Aziele, por tudo.s colegas Maria Luiza, Luciana, Miriam e Gislene pelo valor da amizade. Marcela por ter narrado, Tatiana por ter ouvido, ao Beto por ter entendido e Virna porter divertido.
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Se no fosse a Kalevala, a Finlndia noteria sua independncia, seu idioma, e todos
hoje estaramos falando russo ou sueco.
Marku NieminenDiretor do Instituto Kalevala - Juminkeko
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RESUMO
A dissertao aborda as inter-conexes entre literatura, histria, memria e formao
nacional a partir da anlise do pico finlands Kalevala. O estudo abrange os aspectos
romnticos do registro dos poemas orais que hoje formam a epopia, seu processo de
publicao, suas conexes com a histria factual da Finlndia, sua difuso pelo mundo na
forma de tradues, bem como sua onipresena no universo de cultura de massa de seu
pas. Abordamos, ainda, os paralelos que podem ser traados entre as obras que
influenciaram a Kalevala e aquelas que o pico influenciou, de forma a constituir uma rede
discursiva e aproximar o texto dos leitores brasileiros. Como aporte terico no tocante ao
Romantismo se fazem presentes as anlises de Victor HUGO (2004) e Jacob GUINSBERG
(2005), na reflexo entre literatura, histria e memria temos como referncia as obras de
Eric HOBSBAWM (2002), Benedict ANDERSON (1989) e Maurice HALBWACHS
(2006), alm de diversos historiadores finlandeses
Palavras-chave: Kalevala Finlndia Histria - Formao nacional
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ABSTRACT
The current dissertation discusses the inter connections between literature, history, memory
and national formation from the perspective of the Finnish national epic, the Kalevala. The
study covers the romantic aspects regarding the register of oral poems that nowadays form
such epic, its publishing process, its connections with the factual history of Finland, its
transposition to other languages, as well as its omnipresence in the national mass culture
universe. We also cover the parallels that can be drawn between the works that influenced
the Kalevala and those that the epic itself influenced. As theoric basis concerning the
Romanticism there are the analysis of Victor HUGO (2004) and Jacob GUINSBURG
(2005) and, as related to the considerations between literature, history and memory, we
have as references the works of Eric HOBSBAWN (2002), Benedict ANDERSON (1989)
and Maurice HALBWACHS (2006), apart from various Finnish historians.
Key words: Kalevala Finland History National Foundation
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SUMRIO
1) INTRODUO, p.10
2) ROMANTISMO, FOLCLORE E MITOS, p.13
2.1) ROMANTISMO, NACIONALISMO E UTOPIA, p.13
2.2) FOLCLORE, MITOS E PICOS, p.23
3) KALEVALA, p. 32
3.1) HISTRIA E CULTURA FINLANDESAS, p.38
3.2) ORALIDADE E REGISTRO ESCRITO, p.43
3.3) IDENTIDADE NACIONAL, HISTRIA E POESIA, p.52
3.4) A KALEVALA NO MUNDO: A QUESTO DA TRADUO, p.62
3.5) MEMRIA E IDENTIDADE CULTURAL, CULTURA POPULAR E
CULTURA POP, p.65
4) INTERSECES, p.71
4.1) OBRAS QUE INFLUENCIARAM A KALEVALA, p.71
4.2) OBRAS INFLUENCIADAS PELA KALEVALA, p. 78
5) PENEDO A FINLNDIA BRASILEIRA, p.85
6) CONCLUSO , p.89
7) REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS, p.92
8) ANEXOS , p.96
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1) Introduo
O estudo aqui desenvolvido visa investigar as relaes entre literatura, histria,
memria coletiva e formao nacional no mbito do pico finlands Kalevala e do
fenmeno cultural Romntico nele centrado.
No captulo 2, analisaremos as questes literrias que permeiam a concepo da
Kalevala como smbolo nacional. Sero vistas, dessa forma, as conceituaes pertinentes
do termo romntico, principalmente aquela de J. GUINSBURG (2005) que o delimita
como um fenmeno scio-cultural, suas caractersticas mais relevantes e as mais marcantes
para o paralelo com o texto estudado.
Veremos, por exemplo, como as caractersticas gticas do movimento esto ainda
hoje presentes em larga escala nas manifestaes artsticas finlandesas e como a tentativa
de ressaltar a cor local e de narrar um passado glorioso, to comuns no Romantismo
tiveram caractersticas nicas no contexto finlands.
Destaque ser dado ao papel das iniciativas folcloristas, uma vez que a Finlndia foi
palco de inmeras tentativas de resgate de canes, narrativas, provrbios e encantamentos,
como forma de se estabelecer enquanto coletividade.
Alm disso, veremos algumas caractersticas fundamentais das narrativas picas,
organizadas a partir de obras greco-romanas, e sua aplicabilidade na Kalevala.
Abordaremos, assim, as anlises feitas por tradutores da Kalevala, bem como realizaremos
um paralelo entre o estudo acerca dos mitos de Mircea ELIADE (1991), analisando sua
aplicabilidade no contexto finlands.
Aps esse panorama inicial, teremos o captulo 3, o mais longo do estudo,
exatamente por ser ele o responsvel por delimitar a Kalevala enquanto obra literria,
fenmeno histrico, embaixador cultural e fenmeno de cultura pop.
Inicialmente tem-se a narrativa, adaptada brevemente para a prosa, com o objetivo
de situar o leitor com relao s discusses apresentadas. Em seguida, iniciamos uma
discusso acerca da histria e cultura finlandesas, por causa do carter perifrico do pas.
Veremos, assim, como a Sucia dominou o territrio finlands do sculo VI ao XVIII,
deixando marcas profundas em sua estrutura poltica e social, bem como em suas
manifestaes culturais. Analisaremos, ainda, o carter blico do domnio russo, a
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independncia poltica finlandesa e a guerra civil que a sucedeu. Para tal anlise nos
embasaremos em enciclopdias acerca da Escandinvia, obras de historiadores finlandeses
e compndios acerca da Guerra da Finlndia.
Em seguida, veremos como a questo da oralidade e do registro escrito influenciou
a formao da Kalevala como smbolo nacional. Estudaremos essa questo com base nos
estudos de Walter ONG (1988) e analisaremos, assim, o processo de coleta e registro das
canes picas, e sua permanncia no mbito da oralidade por conta dos festivais e
comemoraes populares finlandesas, bem como do papel da msica na constituio da
identidade nacional finlandesa.
A partir desse momento, discutiremos as relaes entre identidade nacional, Histria
e literatura no mbito finlands. O fato de Kalevala ser uma narrativa histrica alternativa
narrao factual de sua colonizao foi a hiptese central de nosso estudo e ser aqui
analisada a partir de obras de Eric HOBSBAWN (2002), Benedict ANDERSON (1989),
Edward SAID (1995) e Stuart HALL (2000).
Nossa anlise ser centrada, portanto, nos conceitos de comunidade imaginada,
elaborado por ANDERSON (1989) e de tradio inventada, estabelecido por
HOBSBAWN (2002) com o objetivo de determinar que os fatos histricos e as
caractersticas nacionais finlandesas contriburam decisivamente para a constituio da
Kalevala em uma narrao alternativa de seu passado.
Abordaremos, ainda, o papel das tradues do pico como formas de divulgao da
cultura finlandesa, uma vez que as recriaes da obra so normalmente acompanhadas de
extensos prefcios centrados no somente na obra, como tambm na histria e cultura de
seu pas de origem.
O sub-tem final deste captulo visa delimitar a presena da Kalevala em contextos
de cultura popular e cultura pop, formando uma rede que est intimamente ligada
memria coletiva finlandesa. Novamente centraremos nossa anlise na msica, uma vez
que a cultura finlandesa amplamente marcada por manifestaes musicais. Discutiremos,
ainda, a conceituao de memria coletiva realizada por Maurice HALBWACHS (2006) e
sua pertinncia no contexto finlands.
No captulo quatro, por sua vez, visamos estabelecer uma rede dialogal entre a
Kalevala, as obras que a influenciaram e aquelas que o pico em si influenciou. No
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primeiro sub-tem veremos, assim, as obras do contexto escandinavo que influenciaram as
canes populares que vieram a ser coletadas para constituir a obra, em particular os Edda e
a Saga Volsunga. Os paralelos de semelhanas estruturais e diferenas derivadas das
particularidades da cultura finlandesa contribuem no somente para o estudo aqui realizado,
como tambm para o conhecimento dos estudiosos brasileiros acerca da riqueza das
narrativas nrdicas.
Na contraparte do captulo sobre as obras que o pico finlands influenciou veremos
The Song of Hiawatha, obra de Henry Wadsworth Lonfellow acerca da cultura indgena
americana que possui relaes profundas com a Kalevala, a obra de cultura pop mais lida
de sculo XX, O Senhor dos Anis, escrita por J.R.R. Tolkien, um professor da
Universidade de Oxford fascinado pela cultura finlandesa e, finalmente, o conto A morte e
a bssola, de Jorge Lus Borges, que contm inusitadas referncias abra.
O quinto e ltimo captulo da dissertao centra-se em uma pesquisa de campo feita
na colnia finlandesa presente em Penedo-RJ, com o objetivo de delimitar a presena da
Kalevala no ambiente e entre os descendentes brasileiros.
Dessa forma, ser analisado no somente o poema Kalevala, como tambm o
complexo fenmeno scio cultural nele centrado, levando-se em conta aspectos literrios,
histricos, antropolgicos, geogrficos, alm daqueles focados nos estudos culturais.
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2) Romantismo, folclore e mitos
No mbito do estudo aqui empreendido torna-se essencial delimitar o papel do
movimento romntico, dos estudos folcloristas e da literatura pica na constituio da
Kalevala enquanto smbolo nacional.
Ser analisado neste captulo, assim, o romantismo como movimento scio
cultural, seu papel na formao dos Estados Nacionais, sua conexo com o passado
idealizado e o futuro marcado pela utopia, o que no contexto finlands remete sua
independncia, a sua afirmao nacional e reafirmao cultural e lingstica do pas.
Alm disso, o processo centrado no resgate da cultura popular, em particular nos
movimentos folcloristas o prprio cerne do resgate das canes picas que vieram a ser
compiladas e reestruturadas na Kalevala.
Por fim, uma anlise dos elementos mticos e estruturais das narrativas picas de
suma importncia para as analises posteriores da obra estudada.
2.1) Romantismo, nacionalismo e utopia
O vocbulo romantismo tem diversas dimenses de sentido, desde as mais
corriqueiras relacionadas a amor e relacionamentos at as definidoras do termo como
corrente esttica e estilo de poca. No decorrer deste estudo, romantismo ser entendido
como um amplo movimento cultural e social que floresceu na Europa central do final do
sculo XVIII ao incio do sculo XIX.
O que o Romantismo? Uma escola, uma tendncia, uma forma, umfenmeno histrico, um estado de esprito? Provavelmente tudo isso juntoe cada item separado. (...) Mas o Romantismo designa tambm umaemergncia histrica, um evento scio-cultural. (GUINSBURG, 2005.p.13-14)
Nos pases perifricos da Europa, no entanto, houve um processo retardatrio e,
quando em 1848 o fracasso da onda de revolues europias decretava o fim das utopias do
movimento, o mesmo ainda florescia nos contextos nrdicos abordados.
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O termo romntico em sua primeira acepo literria era utilizado com o sentido
de como nos antigos romances, tendo sido Rousseau, em sua obra Devaneios de um
caminhante solitrio, que estabeleceu o conceito com suas novas caractersticas de estilo
artstico.1
Considerando as dimenses estticas da palavra, seria talvez mais apropriado nos
referirmos a romantismos, uma vez que o movimento teve inmeras correntes
concomitantes, algumas antitticas. H quem afirme, inclusive, que houve tantos
Romantismos quanto houve Romnticos2, o que seria de fato a manifestao mxima do
carter individualista e idealista do movimento.
No contexto finlands, foco deste estudo, houve primazia na busca de tradies
populares, como um esforo de afirmao cultural aps sete sculos de dominao poltica
oficial, primeiramente pela Sucia e, por fim, pela Rssia.
No perodo de mais de meio sculo em que foi dominante na Europa o vasto
movimento teve variaes segundo suas correntes, segundo o local em que se deram e o
nvel de radicalismo de suas propostas, mas interessante frisar que houve determinadas
caractersticas quase universais no movimento, a saber: o anticlassicismo, expresso
normalmente na rejeio de formas e modelos clssicos, no contexto finlands representado
pelos modelos dos colonizadores de narrativas blicas e hericas.
Alm dessa h o individualismo, expresso na viso de Elias Lnnrot, estudioso
que coletou e organizou as canes picas finlandesas que hoje formam a Kalevala, como
aquele que salvou a tradio e a lngua finlandesas, sendo que a coleta de poemas e a
elaborao de uma gramtica finlandesa foram o esforo de geraes; o rompimento com a
normatividade e com os excessos do racionalismo, no poema aqui estudado, expresso nas
atitudes pouco usuais para um heri pico, por exemplo, quando Lemmikainen invade a
festa de casamento de Ilmarinen, e na estruturao do poema com seu ritmo e aliteraes
originais, considerados mais ligados cultura popular do que tradio pica.
Victor Hugo, em seu prefcio para a obra Cromwell, de 1827, apontava
igualmente para caractersticas de mistura de gneros, de rejeio a regras, de recusa da
imitao de modelos e de liberdade na arte.3
1 SALIBA, Elias Thom. As Utopias Romnticas. So Paulo: Estao Liberdade, 20032 GUINSBURBG, J. (org) O Romantismo. So Paulo: Perspective, 2005.3 HUGO, Victor. (Trad: Clia Berrettini). Do grotesco e do sublime. So Paulo: Perspectiva, 2004. p.08.
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Alm disso, o escritor ressalta a ligao nica entre as representaes grotescas e
sublimes no contexto Romntico, fato que veio a nomear a obra, hoje lida
independentemente de Cromwell.
Seria superabundante fazermos sobressair a influncia do grotesco naterceira civilizao. Tudo demonstra, na poca dita romntica, suaaliana ntima e criadora com o belo. At as mais ingnuas lendaspopulares explicam, algumas vezes, com admirvel instinto, estemistrio da arte moderna. A Antiguidade no teria feito A Bela e a Fera.(HUGO, 2004, p.39).
No mbito da Kalevala, a relao entre sublime e grotesco se d inmeras vezes,
com destaque para o episdio em que Vinminen derrota um monstro e arranca sua
mandbula, para assim criar um instrumento musical, o kantele, usado para entoar as
canes picas finlandesas.
Vinminen, velho ministrel(...)
Toma a harpa por ele criadaEm suas mos a harpa de osso de peixe
(...)Ento o cantor de VainolaLevou a harpa para sua criao.4 (traduo nossa)
As caractersticas vistas eram um reflexo da queda da aristocracia e ascenso da
burguesia, ou, na Finlndia, de queda das dominaes coloniais e ascenso dos governos
autctones, em processo anlogo s colnias latino americanas, assim como do prprio
Brasil. Assim, a presena da exaltao da cor local e a busca por forjar um passado glorioso
representam um paralelo entre nosso romantismo e aquele manifestado no contexto
escandinavo.
Na Gr Bretanha, um dos beros do movimento, houve uma nfase na poesia, com
o lirismo dos poetas do Lago, Coleridge e Wordsworth, a crtica social de Percy Shelley e a
expresso mxima da obra de John Keats. Tais poetas sintetizam os ideais romnticos de
4 Na verso de John Martin Crawford: WAINAMOINEN, ancient minstrel, ()Takes the harp by himcreated, / In his hands the harp of fish-bone, ()Then the singer of Wainola / Took the harp of his creation.(Runa 41)
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busca da liberdade de vida e expresso, utopia na primeira fase e crtica social na segunda,
alm do fascnio pelo extico.
Nos romances, tem-se as obras de Sir Walter Scott, um dos maiores representantes
dos romances histricos do perodo e aquelas de Jane Austen, com sua percepo irnica da
sociedade britnica da poca. Sir Walter Scott, dessa forma, compilou canes populares
em uma iniciativa semelhante finlandesa, porm no organizou seu Minstrelsy of the
Scottish Border (1802) como uma narrativa nica, apesar de acompanhar a crena
Romntica de narrativa original. nfase dada em tal obra a baladas Romnticas e
histricas, em particular aquelas que narrassem incidentes histricos do sul da Esccia.
No mbito alemo houve a vanguarda do romantismo com o sturm und drang,
corrente marcada pelas emoes fortes e o goticismo que influenciou inmeras outras
correntes do movimento.
Considerando-se o contexto finlands, o goticismo de grande importncia. Na
prpria Kalevala h passagens amplamente gticas, por exemplo, a da tragdia de Kullervo,
uma histria independente na Kalevala na qual um jovem considerado o nico
sobrevivente de uma guerra entre dois cls. Ele vendido como servo, maltratado por sua
mestra, a donzela de Pohjola, foge, encontra parentes que julgava mortos, conhece, se
apaixona e seduz uma moa que mais tarde se descobre ser sua irm. Ela se suicida, ele
assassina a famlia do tio, que iniciou a guerra, e este mesmo cl mata sua famlia. Como a
irm, Kullervo acaba tirando a prpria vida.
Na msica e artes h provavelmente mais apelo para o gtico hoje em dia na
Finlndia do que em qualquer outro pas do mundo. Existe, de fato, na Finlndia, a
definio de gtico enquanto estilo musical, gnero esse do qual fazem parte os mais bem
sucedidos grupos do pas, como HIM, banda que justifica suas tendncias para o sombrio
dizendo que a melancolia um trao marcante da cultura escandinava5. Essa afirmao
relevante se considerarmos que a histria de criao do mundo ocorre devido a um apelo
melanclico da Dama do ter, Ilmatar, junto a Ukko, na esperana de curar seu sofrimento
e solido.
5 Vdeo: HIM The vdeo collection (1997-2003). Universal Records. Nova Iorque, 2004
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Vale uma ressalva, ainda, que a histria da Kalevala, assim como a narrativa da
tragdia de Kullervo, j foram adaptadas para gneros de msica popular, como
aprofundaremos no captulo 3 ao tratarmos da transposio do poema para outras mdias.
Outro centro para a compreenso do movimento foi a Frana, principalmente por
conta do furor desencadeado pela Revoluo Francesa. O romantismo por l foi marcado,
portanto, pelo desejo de transformaes profundas e pela inovao esttica.
No mbito brasileiro, como apontamos, houve uma exaltao da nao recm
formada, com nfase na exuberncia de sua natureza e seu potencial enquanto pas de
dimenses continentais ingressando em uma nova era.
Assim, na primeira gerao foi uma constante a expresso ufanista, o apelo
natureza e a viso de terra nica e promissora, tendo seu exemplo mximo na Cano do
exlio, de Gonalves Dias, de 1843.
A segunda gerao, por sua vez, foi marcada pela ironia, o goticismo e a morbidez
do mal do sculo, tendo sua representao mais recorrente nas Noites na Taverna, de
lvares de Azevedo, de 1855.
Por fim, se deu a gerao do condoreirismo, com sua preocupao com questes
sociais, em particular a abolio da escravatura e encontrando sua voz nos poemas de
Castro Alves, como em Os Escravos, de 1883.6
Outro escritor Romntico que merece ateno Jos de Alencar, por sua tentativa
de elaborar uma fundao literria para o Brasil, por exemplo, de Iracema (1865), e por seu
resgate popular, em O Novo Cancioneiro Cartas a um Amigo (1874), ambas
caractersticas marcadamente Romnticas.
O Romantismo no foi, no entanto, somente um movimento literrio, tendo tido
representantes nas mais diversas formas artsticas, em especial na pintura, na msica e no
teatro, criando um complexo sistema de representaes.
Na msica houve trs fases: uma inicial, que ocorreu de 1810 a 1828, na qual se
destacam Schubert e Weber; a fase do apogeu, ocorrida de 1828 a 1850, na qual Schumann,
Mendelssohn, Chopin e Liszt produziram suas principais obras e o ps- romantismo, com o
6 Pontos de referncia extrados do livro: CITELLI, Adilson. Romantismo. So Paulo: tica, 2002.
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realismo romntico de Wagner, Verdi, Bisset e Strauss, o classicismo Romntico de
Brahms, Bruckner e Mahler e o impressionismo de Debussy.7
Na pintura houve uma maior presena de temas e caractersticas da literatura, com
liberdade formal, fortes traos e a presena de elementos da natureza. Vale ressaltar a
constante iluso de movimento e a presena de espaos distantes. O maior pintor
Romntico talvez tenha sido Jacques-Louis David, que se apropriou dos sentimentos acerca
da Revoluo Francesa em suas obras.
No mbito teatral de suma importncia Hernani e a Comdie Franaise, com sua
tentativa de rompimento com o classicismo, apresentando atores jovens, com modos
bruscos e roupas e cabelos desgrenhados para representar uma nova era.
Anseios de liberdade e evocaes a emoes fortes eram, dessa forma, uma
constante e expressavam-se no somente com princpios estticos, mas tambm
caracterizavam um movimento de mbito social em que o indivduo quase sempre estava
em crise com a coletividade e o Estado.
Assim, apesar de o romantismo ter tido seu incio na Alemanha, durante o
florescimento do Sturm und drang, o marco inicial simblico e, por que no, romantizado
do movimento se deu com a Revoluo Francesa, a qual instaurou a possibilidade de
mudana radical da histria.
O marco da Revoluo Francesa e, em menor grau, da Revoluo Industrial, no
iniciou, portanto, o movimento, mas concedeu-lhe foco, em uma perspectiva carregada de
posies sociais utpicas.
Os romnticos perderam, na viso de Alxis de Tocqueville, dessa forma, o
interesse pelo que era, para pensar no que podia ser, e desse modo viveu-se pelo esprito
nessa cidade ideal que os escritores haviam construdo.8 Na epopia discutida esse fato
latente, pois a ao se passa no na Finlndia ou na regio da Carlia e sim nas plancies da
Kalevala, ou seja, na prpria Terra de Heris.
Foi nesse contexto que floresceram as utopias romnticas, conectadas tanto a um
passado normalmente idealizado, quanto a um futuro proposto, e que se davam tanto na
esfera social e coletiva quanto nos contextos individuais de busca de liberdade esttica.
7 GUINSBURG, Jacob. (org) O Romantismo. So Paulo: Perspectiva, 1978. p.216.8 TOCQUEVILLE, Alxis. LAncies Rgime et la Rvolution. In: SALIBA, Elias Thom. As UtopiasRomnticas. So Paulo: Estao Liberdade, 2003.
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Ainda nessa discusso, o conceito de ligao a um passado romantizado para compensar
uma quebra no presente ser aprofundado no captulo 3 a partir da teoria de Benedict
Anderson acerca das naes como comunidades imaginadas.
A busca de um passado idealizado estava tambm relacionada ao messianismo
caracterstico do movimento, no qual o poeta assume a posio de criador de mundos
possveis. Esse messianismo estava imbricado na imagem de isolamento e de introspeco
do poeta romntico.
No mbito finlands h inmeras representaes de Elias Lonnrt, que coletou a
Kalevala, como um caminhante solitrio, em busca da verdade contida na histria ancestral
de seu povo. Essa representao dialoga, assim, com a idia romntica de poeta enquanto
mensageiro de verdades superiores. (Anexo 1)
A percepo messinica permeia igualmente os novos conceitos de povo e nao,
com um tom peculiar do movimento romntico de questionar a fronteira entre o discurso
literrio e o discurso histrico.
Tal conexo se deu, primeiramente, por conta de os escritores romnticos terem
uma intensa ligao com um passado normalmente medieval e via de regra idealizado e
buscavam transp-lo para o presente, normalmente na forma de romances histricos.
Por outro lado, os prprios historiadores do perodo foram atrados pelo refgio
no passado e passam a escrever de forma tambm romantizada, criando diversos pontos de
interconexo entre literatura e histria.
O Romantismo, considerado um processo scio-cultural, instala uma conscincia
histrica sem precedentes no contexto ocidental e o discurso que se pretende no ficcional
passa por uma reformulao, ao se tornar tanto interpretativo como formativo. neste
sentido que o discurso factual passa a conviver com estratgias de mitificao, na
elaborao de um passado glorioso e mtico para a Finlndia a partir da Kalevala.
Neste ponto voltamos s anlises de Victor Hugo acerca do perodo Romntico,
tendo em vista sua conscincia da conexo entre discurso histrico e literrio, com
particular destaque s narrativas picas:
(...) A epopia tomar vrias formas, mas jamais perder seu carter. (...)Se os historiadores, contemporneos necessrios desta segunda idade domundo, se pem a recolher tradies e comeam a considerar os sculos,
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eles o fazem em vo, a cronologia no pode expulsar a poesia; a histriapermanece epopia. Herdoto Homero. (HUGO, 2004:19)
O ponto chave de tal argumentao relaciona-se hiptese central de nosso
estudo, ou seja, que a Kalevala a forma que os finlandeses encontraram para narrar sua
histria, fato que dialoga com o momento histrico cultural do Romantismo, bem como
com a histria e cultura do prprio pas, como veremos no item 3.1.
No cerne das iniciativas romnticas, se deu, assim, um dilogo entre erudito e
popular, expresso, por exemplo, na coleta de narrativas e canes populares feitas por
escritores renomados. Outra mudana concomitante aos ideais romnticos foi o
desenvolvimento de novas foras sociais e novos credos filosficos que se conjugaram no
assalto s velhas instituies que j apresentavam sinais de fissura e anacronismo
(GUINSBURG, 2005, p.24).
Alm disso, com a formao e consolidao dos Estados Nacionais houve a
necessidade de elaborao de smbolos e temas que representassem a conexo entre as
pessoas das novas comunidades, gerando a mstica de povo, ou seja, a iluso de passado
conjunto, sendo que um dos principais meios de construo de tais simbologias foi a
prpria literatura.
Outra caracterstica geral da corrente restitucionista que seus representantes
mais notveis so em sua maioria literatos. Se ela se expressa tambm na filosofia
(Novalis) e na teoria poltica (Adam Muller), por exemplo, no menos verdade que foram
principalmente artistas que tiveram afinidades com tal viso. Parece-nos que a
predominncia de artistas se explica sobretudo pela evidncia crescente do carter irrealista,
at mesmo irrealizvel da aspirao restituio de um perodo do passado perdido para
sempre. O sonho do retorno Idade Mdia (ou a uma sociedade agrria) tem, no entanto,
um grande poder de sugesto no plano da imaginao e se presta a projees visionrias.
Ele atrairia, portanto, primeiramente, as sensibilidades que se orientam para a dimenso
simblica e esttica. (LWY, M. e SAYRE, R., 1993:42)
Pode-se perceber, assim, que a relao do movimento romntico com os passados
idealizados e futuros utpicos se revela igualmente no campo esttico e literrio, fato
latente no contexto finlands, uma vez que a Kalevala criou um passado romantizado que
possibilitou a construo de um futuro prximo da utopia de independncia do pas.
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Vale ressaltar que no se trata da procura por qualquer passado idealizado, e sim,
por aquele que simbolizaria a origem da comunidade que o busca.
No terreno religioso e filosfico, mas sobretudo no campo do poltico,assistimos a um regresso no contvel do originrio, ou, melhor, em umregresso coletivo para o originrio. (...) a origem se oferece como umpretexto a partir do qual se poder outra vez valorizar, discriminar edecidir. Note-se que se apela aqui origem, no simplesmente aopassado.9 (traduo nossa)
Os temas da conexo entre literatura e histria e do papel de tal dilogo na
construo da simbologia acerca da Kalevala sero discutidos no captulo 3. Uma vez que a
proposta defendida que a narrativa em questo no somente unificou a histria potica
dos finlandeses, como tambm se converteu, ela prpria, em uma tradio nacional.
Uma outra caracterstica do romantismo estava no resgate de culturas populares
como alternativa chamada alta cultura, ligada decadente classe da aristocracia, como
ser visto a seguir.
9 SAVATER, Fernando. El Mito nacionalista. Madri: Alianza Cien, 1996. p:07.Texto original: En el terreno religioso y filosfico, pero sobre todo en el campo de lo poltico, asistimos a unregreso incontenible de lo originario o, ms bien, en un regreso colectivo hacia lo originario. (...) El origen seofrece como un asidero a partir del cual se podr otra vez con firmeza valorar, discriminar y decidir. Nteseque se apela aqu al origen, no sencillamente al pasado.
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2.2) Folclore, mitos e picos
Com a ascenso da burguesia, os valores aristocrticos deram lugar busca pelo
popular, mas no a cultura popular cotidiana e sim aquela que simbolizasse a conexo com
um passado ideal, como nas narrativas primordiais.
No caso da Kalevala h tradutores, como John Martin Crawford, que delimitam o
perodo de existncia do poema em at trs mil anos, enquanto outros, como Keith Bosley,
a analisam como tendo sido cantada por setecentos anos antes de seu registro. A maior
parte dos estudiosos, dentre os quais se destaca o especialista canadense Wade Davis, no
entanto, concorda que as narrativas datam de um perodo proto agricultor da Finlndia.10
Durante boa parte de sua histria, as narrativas que hoje compem a Kalevala
foram coletadas de forma aleatria por parte dos carlios, finlandeses do norte, bero do
poema, tendo seu registro oficial sido feito no contexto do Romantismo, escrita essa que
ser aprofundada no item 3.2, o qual tratar dos universos oral e escrito da Kalevala.
Houve, assim, nesse perodo, a conservao de canes, histrias infantis,
provrbios e, at mesmo, encantamentos populares como forma de proporcionar a essas
manifestaes perifricas de cultura o status de centralidade.
Em pases situados fora da Europa Central, teve-se igualmente um esforo de
coleta de formas verbais para a compilao de gramticas das lnguas do pas, com o
objetivo de afirmao nacional.
No caso finlands ocorreram ambos os esforos, com a coleta das canes que
formariam a Kalevala, alm de muitas outras manifestaes verbais, e com a composio
de gramticas da lngua finlandesa, relegada no momento da independncia do pas a
regies isoladas do norte. O papel desses resgates foi to marcante no contexto europeu
que, ainda hoje, a Sociedade Folclorista Finlandesa considerada a grande referncia na
exaltao de culturas populares.
A formao dos Estados Nacionais foi, de fato, o fator que mais impulsionou o
processo, pois se buscava uma identidade coletiva e ancestral para as pessoas que agora
haviam se tornado compatriotas, como veremos na teoria de Stuart Hall.
10 Vdeo: National Geographic Beyond the Movie. Playarte. So Paulo, 2002.
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O termo folclore foi cunhado pelo ingls William Thoms para designar
antiguidades populares11, ou seja, para aumentar seu valor de troca e o grande marco inicial
dos folcloristas foi a primeira publicao dos irmos Grimm em 1812, que ainda hoje
referncia na literatura infantil, apesar de ter sido diversas vezes suavizada para os leitores
contemporneos.
Outra referncia nesse perodo o dinamarqus Hans Christian Andersen, que
coletou histrias como A pequena sereia (1836) e que ainda est to presente na
cotidianidade de seu pas que h uma esttua de Ariel sentada no principal porto
dinamarqus, recebendo os visitantes.
Alm da preocupao com as questes mundanas e cotidianas, as narrativas
folclricas apresentavam fortes laos com aspectos msticos, principalmente no tocante ao
registro de encantamentos e na constante presena de bruxas e feiticeiras nos contos
infantis e com paralelos mitolgicos, como na reincorporao de caractersticas picas nas
canes populares registradas.
Alm disso, h ligaes com narrativas religiosas, por exemplo, na histria
Sapatinhos Vermelhos, publicada por Hans Christian Andersen em 1845, em que a
protagonista quer mais do que aquilo que lhe compete, acaba escravizada por seus desejos,
nesse contexto, os prprios sapatinhos, e aps o desfecho trgico da aventura se encaminha,
com os ps amputados, para a missa. A fora moral dos contos tambm est presente, como
se pode perceber em quase todas as narrativas dos irmos Grimm ou de Andersen.
Com as narrativas folclricas redigidas no perodo romntico o nacional ganha
uma nova fora representativa e tal fora normalmente se concretizou na forma de picos
folclricos. Esses picos so no apenas obras primas literrias, como tambm integram a
literatura popular, j que so originrios da cultura oral, para serem ento registrados e
organizados por um escritor. (Anexo 2 )
A Kalevala, assim como qualquer epopia, simboliza uma tentativa de adequao
ao mundo. Assim, os personagens so aquilo que representam, ou seja, tem-se os heris,
Vinminen, Ilmarinen e Lemmikainen, que sempre vencem, mesmo quando so
reduzidos a pedaos e simbolizam a liderana e necessidade de unidade do povo, h o lder
11 WIKIPEDIA. Coordenada por Wikimedia Foundation. Apresenta o verbete folklore, Disponvel emhttp://en.wikipedia.org/wiki/Folklore. Acesso em 05/04/2006.
http://en.wikipedia.org/wiki/Folklore.http://www.pdfdesk.com -
mais velho, o prprio Vinminen, que nasce j com 700 anos e o melhor cantor da
Kalevala, ou seja, personifica a tradio que todos devem respeitar, h o poder mstico, pois
todos os heris so magos, assim como a grande vil da narrativa, Louhi, dama de Pojhola,
tem-se, ainda, o papel dos deuses na criao e dinmica do mundo, no caso da narrativa
cosmognica que abre o poema. Nas palavras da estudiosa Appel, essa forma literria
narra a instvel relao do homem com as circunstncias, que podemassumir posio de sujeito. (...) A epopia se define pelos ajustamentosdo homem ao mundo em que lhe compete viver, conviver e sobreviver.As regras de convivncia, no sendo biologicamente dadas, requerem-seinventadas e incessantemente refeitas. (APPEL, 1992, p.10)
Normalmente vrias facetas da sociedade so representadas, com destaque, no
entanto, na aristocracia e nos semi deuses, normalmente pertencentes a um mesmo grupo. A
ao transcorre em um passado remoto e ideal vale ressaltar que a Kalevala se inicia com
a prpria criao do mundo e proporciona diversas conexes com a histria factual,
principalmente quando so mitificados reis ou imprios:
So, pois, as epopias da Grcia Antiga um produto histrico,transcendem, porm, a Histria, na medida que ultrapassam o tempocronolgico. (...) Desta maneira, o passado se transforma em um tempoideal, em tempo arqutipo. (APPEL, 1992, p.32)
Na Finlndia essa conexo se d de forma curiosa, uma vez que como em diversos
picos, o texto se encerra com o nascimento de um novo lder. O lder em questo, no
entanto, o Rei da Carlia, que de fato jamais existiu, uma vez que a Finlndia
independente sempre foi uma Repblica. Portanto, o modelo de narrativa tem mais fora
que a prpria histria do local:
Assim o velho Virokannas,Das selvas governante,Tocou a criana com gua sagrada,Deu ao maravilhoso beb sua bno,Deu-lhe direitos de herana real,Livre para viver e crescer um heri
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Para se tornar um poderoso governante,Rei e Mestre da Carlia12 (traduo nossa)
A Finlndia busca, desse modo, um dilogo com as narrativas dos pases
escandinavos germnicos, que narram suas glrias por meio de reis e prncipes. Esse fato
um ponto em comum com os islandeses, que tem na literatura pica seu maior bastio
cultural, os Edda, em anlise a ser desenvolvida no captulo 4.
Estruturalmente, ao narrar epopias, algumas caractersticas so latentes, como o
uso constante de adjetivos, uma vez que no se narra uma histria simplria, e sim uma
aventura fabulosa:
Agora a noiva deve ser instrudaQuem ensinar a Dama da Beleza,Quem instruir da Filha-Arco ris?Osmotar, a dama-sabedoria,Bela e adorvel virgem de Kalew.13 (traduo nossa)
So comuns, ainda, as construes no passado, para facilitar o afastamento do
leitor ou ouvinte:
Louhi, anfitri da Terra do NorteAncestral dama de SariolaEnquanto trabalhava dentro de sua moradaOuviu o chicote estalar no pntanoOuviu o rumor dos trens.14 (traduo nossa)
H, ainda, nos picos folclricos, o emprego constante de apostos, pois como as
narrativas eram orais fazia-se necessrio lembrar aos ouvintes de quem se tratava a ao:
12 Na traduo de John Martin Crawford: Thereupon old Wirokannas, / Of the wilderness the ruler, / Touchedthe child with holy water, / Crave the wonder-babe his blessing, / Gave him rights of royal heirship, / Free tolive and grow a hero, / To become a mighty ruler, / King and Master of Karyala.13 Na traduo de John Martin Crawford: Now the bride must be instructed, / Who will teach the Maid ofBeauty, / Who instruct the Rainbow-daughter? / Osmotar, the wisdom-maiden, / Kalew's fair and lovelyvirgin. (Runa XXIII)14 Na traduo de John Martin Crawford: Louhi, hostess of the Northland, / Ancient dame of Sariola,While at work within her dwelling, / Heard the whips crack on the fenlands, / Heard the rattle of the sledges;(Runa XXI)
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Longe, na lgubre terra do norteVivia o cantor, Joukahainen,Jovem e inconseqente bardo da Lapnia,Certa vez se fartando,Jantando com seus amigos e companheiros.15 (traduo nossa)
Outra caracterstica marcante o uso de refres, para que o narrador tivesse
tempo de lembrar o restante da narrativa. Em se tratando da Kalevala tais refres so
claramente visveis, como no segundo canto, com a repetio de Vainamoinen, velho e
ancestral, reforada todas as vezes em que o heri realiza uma de suas aes.
Vinminen, velho e ancestral,Fez para si um machado para cortarEnto comeou a clarear a floresta
(...)
Vinminen, velho e ancestral,Traz seus mgicos gros de cevada
(...)
Vinminen, velho e ancestral,Foi ver sua colheita de cevada16 (traduo nossa)
Ainda com relao s caractersticas picas do poema, deve-se destacar a
presena da mitologia. Como afirma Mircea Eliade, o mito uma realidade cultural
extremamente complexa que pode ser abordada e interpretada atravs de perspectivas
mltiplas e complementares17, uma histria sagrada, ocorrida no tempo primordial.
Esse parmetro se enquadra sobremaneira nas canes picas que compem a
Kalevala, uma vez que a narrativa se inicia com a criao do mundo. O prprio Mircea
15 Na traduo de John Martin Crawford: Far away in dismal Northland, / Lived the singer, Youkahainen, /Lapland's young and reckless minstrel, / Once upon a time when feasting, / Dining with his friends andfellows. (Runa III)16 Na traduo de John Martin Crawford: Wainamoinen, wise and ancient, / Made himself an axe forchopping, / Then began to clear the forest () Wainamoinen, wise and ancient, / Brings his magic grains ofbarley () Wainamoinen, wise and ancient, / Went to view his crop of barley.17 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. So Paulo: Perspectiva, 1991 (p.11).
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Eliade cita a Kalevala como exemplo de mito de origem, com relao ao momento em que
Vinminen soluciona um problema ao se lembrar da origem do ferro:
A Kalevala relata como o velho Vainamoinen se feriu gravementeenquanto construa um barco. Ele se ps ento a tecer encantamentos maneira de todos os curandeiros mgicos. Cantou o nascimento da causade seu ferimento, mas no conseguia recordar as palavras que contavamo comeo do ferro, justamente as palavras que poderiam sanar o talhoaberto pela lmina azul. Finalmente, depois de recorrer ao auxlio deoutros magos, Vainamoinen exclamou: Agora recordo a origem doferro! (...) Observemos que, nesse exemplo, o mito de origem do ferrofaz parte do mito cosmognico e, em certo sentido, o prolonga. Temosaqui uma caracterstica extremamente importante dos mitos de origem.(ELIADE, 1991 (p.19-20)
Cabe destacar no apenas a conexo da Kalevala com os mitos de origem, como
tambm a importncia dada ao poema por um dos grandes estudiosos de mitologia do
sculo XX. Outras caractersticas levantadas pelo estudioso pertinentes ao poema estudado
so o tema da caverna como ventre da me terra, na passagem da gestao e nascimento de
Vinminen:
(...) a travessia iniciatria de uma vagina dentada ou a descida perigosanuma caverna ou greta, assemelhadas boca ou ao tero da Me-Terra.Todas essas aventuras constituem de fato provas iniciatrias, aps asquais o heri vitorioso adquire um novo modo de ser. (ELIADE, 1991,p.76)
H, ainda, o tema do renascimento, na passagem em que Lemmikainen, reduzido
a pedaos e costurado por sua me, volta vida. Eliade dialoga com a pertinncia do
momento histrico da coleta dos poemas, delineando as tradies orais picas valorizadas
tardiamente, durante o Romantismo e vistas como documentos. (ELIADE, 1991:140).
O autor fecha um de seus captulos com uma afirmao irnica: Para interessar a
um homem moderno, essa tradicional herana oral deve ser apresentada na forma de um
livro...18. Na Kalevala, por ser um poema originrio de uma tradio popular oral, a
18 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. So Paulo: Perspectiva, 1991. p.140.
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relao entre a literatura pica oral e a escrita, e as conseqncias de seu registro so de
suma importncia e sero abordadas no terceiro captulo de nosso estudo.
Outra meno pertinente trata da narrativa pica e do romance como
prolongadores da narrativa mitolgica, o que se faz extremamente relevante na Finlndia,
uma vez que a Kalevala ajudou a preservar toda uma mitologia de tal pas, como veremos a
seguir.
O autor cita, ainda, a Escola Finlandesa e sua busca da forma primordial de um
conto, que tinha existncia apenas hipottica (ELIADE, 1991, P.168) o que ressalta o
carter pioneiro dos esforos Romnticos empreendidos pelos finlandeses.
Finalmente, h uma viso intrigante segundo a qual os mitos modernos
conseguiram se impor graas ao complexo de inferioridade do pblico e dos crculos
artsticos oficiais (ELIADE, 1991, P. 161) o que latente no contexto finlands em virtude
de seus sculos de dominao por parte de vizinhos poderosos. A Kalevala passa a
representar, assim, uma possibilidade de dilogo com a tradio pica germnica da
Escandinvia ariana.
A pertinncia do contexto mtico nos leva, portanto, a delimitar determinadas
caractersticas da mitologia finlandesa, tanto por conta de sua distncia com relao
greco-romana, quanto por sua distino no que tange s caractersticas da mitologia nrdica
germnica.
Segundo a mitologia finlandesa, todos os seres, divinos ou no, um dia foram
pessoas. Esses deuses possuem uma espcie de interdependncia e so representados em
pares. A mais alta deidade finlandesa Ukko, o deus-cu, que est ligado ao trovo e
normalmente representado sentado em uma nuvem suportando o firmamento nos ombros.
Ele segura um martelo, e veste uma camisa com fascas, meias azuis e sapatos vermelhos.
Ukko incentiva o esprito de independncia em seus seguidores, no temido e
no superior ao Sol, Lua ou a qualquer corpo celeste, de forma que esses no so
influenciados por ele. Sua contraparte feminina Akka, que quer dizer velha dama.
O deus-gua, por sua vez Ahto, que vive com sua cruel esposa Wellamo, no
fundo do mar, no palcio de Ahtola, onde se passam seqncias da Kalevala quando o
sampo, objeto de sorte e fortuna em torno do qual se centra a narrativa da Kalevala,
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levado ao mar. Uma das ligaes da mitologia finlandesa com a vida cotidiana de tal pas
que o termo para designar criaturas e animais que vivem na gua ahtolaiset.
Uma outra conexo situa-se no fato que Paeivae significa tanto sol quanto deus-
sol, Kun tanto lua quanto deus-lua, Taehti um deus e tambm a denominao da Estrela
Polar, assim como Ottava, a Ursa Maior. Todas essas deidades tm filhas, descritas como
donzelas eternamente jovens e belas, muitas vezes sentadas nos troncos de rvores.
interessante ressaltar que alguns nomes, como Lago Sagrado e Rio Sagrado,
citados na Kalevala, constam ainda hoje como denominaes oficiais da geografia
finlandesa, nos mapas do pas.
A natureza, inclusive, governada por deidades invisveis, chamadas haltiat, alm
de sofrerem a ao das deidades do ar, as Luonnotars, donzelas msticas. Isso reflete a
relao dos finlandeses com a natureza, alm da fora representativa do ar a da gua. A
natureza, dessa forma, um ponto de contato entre a relevncia mitolgica e as
caractersticas do Romantismo, uma vez que ela vista nesse perodo como um dos temas
mais frutferos e simblicos do movimento, como nos explica o estudioso Guinsburg:
A Natureza, que no foi para o Romantismo apenas a mais abrangente desuas tematizaes, mas o foco precpuo sob o qual a imaginao intuitivase afirmou e se exerceu, voltou a ser contemplada pelos romnticos atravsda perspectiva de coeso mgica, de envolvimento analgico entrepalavras e coisas, de compreenso pr-clssica do mundo, dominante doMedievo fase renascentista. (GUINSBURG, 2005. p.67)
Alm das divindades citadas, merece meno ainda Mana, ou Tuoiu, que governa
o Manala, o mundo dos mortos. Ele tem trs dedos com pontas de metal e usa um chapu
at os ombros. Ele casado com uma mulher horrenda e inominada, chamada na Kalevala
ironicamente de a boa anfitri.
Os dois tm trs filhas, responsveis por quase todas as tragdias e doenas
vivenciadas pelos mortais, apesar de uma delas ter avisado Vinminen dos perigos de
navegar em Manala.
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Nesse sentido h uma conexo curiosa, resultado da conexo entre o forte
paganismo finlands e a tradio luterana imposta pela colonizao sueca, pois havia
diversos cls finlandeses que realizavam rituais funerrios adaptados, mas que no
acreditavam na vida aps a morte, como afirma John Martin Crawford no prefcio da
edio americana da Kalevala.
Segundo a crena geral, no entanto, os espritos permaneciam nas tumbas at a
completa desintegrao dos corpos. Depois desse processo de purificao eram admitidos
no Manala.
Pode-se perceber, portanto, que h alguns paralelos entre a mitologia finlandesa e
a greco-romana ou a escandinava germnica, mas, em geral, se trata de uma interpretao
do mundo mais voltada para aspectos da natureza, para o no-belicismo e para a famlia,
ainda que essas representaes estejam permeadas de traos de outras culturas e
religiosidades, por conta, principalmente, dos processos de colonizao impostos por
Sucia e Rssia, os quais sero abordados nos item 3.1.
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3) Kalevala
Uma vez analisado o contexto scio cultural que levou ao registro do poema pico
Kalevala, aproveitamos para apresentar a histria aos leitores brasileiros. O presente
parntese de vital importncia para as reflexes apresentadas neste estudo, pois a histria
narrada na epopia constitui a matria prima da identidade nacional finlandesa.
A verso em prosa aqui apresentada baseia-se no parmetro de aes mais
importantes do poema, (ANEXO 3) elaborado pelo ministrio de Assuntos Exteriores da
Finlndia.19
Kalevala em prosaNa infinitude do ar, na ausncia de formas, cores e aromas, vivia Ilmatar, dama do
ter. Cansada de sua existncia singular, a dama decidiu visitar as profundezas do mundo-
gua e se lanou como um sonho para no sal fazer seu lar.
O ter, porm, no a deixou. Fustigada pelos ventos-tempestade e alada pelas
ondas rolantes, tornou-se desafortunada me-gua. Desamparada em sua existncia infeliz
teve seu clamor por auxlio atendido por Ukko. Ela prpria se tornou morada de uma bela
pata que no tinha onde pousar.
O calor de me da ave, porm, abalou a estvel dama. Dos ovos da pata,
quebrados no fundo do mar, surgiram todas as formas nossa volta, o mundo como
conhecemos.
J seu filho, Vinminen, por setecentos anos gestado, queria tambm ele habitar
outras moradas. Como sua me se lanou ao mar, deixando sua lgubre caverna. Nadando
por nove anos, finalmente comeou sua parte da criao. A tudo deu forma, cores e nomes.
Nascia a Kalevala.
Cultivar, descobriria ele, seria um desafio parte. Quando comea a tingir a terra
de verde, uma rvore, podada pelo talentoso Sampsa Pellervoinen, se ala aos cus e
esconde, at mesmo, o sol e a lua entre seus ramos. Como nem sequer o heri de nossa
narrativa consegui corta-la a soluo vem de forma inesperada: um homem minsculo
19 VIRTUAL FINLAND. Coordenao de Juha Parikka. Apresenta informaes sobre a Finlndia.http://virtual.finland.fi/netcomm/news/showarticle.asp?intNWSAID=27021. Acesso em 22/05/2006.
http://virtual.finland.fi/netcomm/news/showarticle.asp?intNWSAID=27021.http://www.pdfdesk.com -
surge do mar e com seu minsculo machado derruba o carvalho gigante. O sol e a lua ficam
livres para brilhar outra vez.
Enquanto isso, na distante Lapnia, chega aos ouvidos do jovem e impetuoso
Joukahainen que havia na Kalevala um cantor melhor do que ele, superior at a seu mestre.
Determinado a derrot-lo, Joukahainen desafia o velho mago a um duelo de canes. A
sabedoria de Vinminen reflete-se na beleza de seu canto e as proezas da Kalevala
vencem o canto de Joukahainen.
No satisfeito, Vinminen faz seu oponente afundar no pntano somente com o
uso de seu cantar. Para se salvar, Joukahainen prope um acordo: sua vida em troca da mo
de sua irm em casamento. Como o velho sbio ainda buscava uma bela dama para esposar,
Vinminen concorda, mas, com toda sua sabedoria, no pde ele prever o desespero da
dama que descobriu que se casaria antes de conhecer seu verdadeiro amor. Aino, infeliz
noiva de Vinminen, decide, assim, fazer do lago sua ltima morada.
As guas doces, porm, a acolhem e lhe do uma nova forma, com a qual pudesse
sobreviver. Porm, nem com a amada transformada em peixe Vinminen desiste de
cortej-la. Ele a pesca, mas a determinada dama escapa novamente para finalmente
encontrar sua liberdade.
Vinminen, finalmente convencido da perda de Aino, parte para cortejar a
donzela de Pohjola, filha da Fazenda do Norte. Em seu caminho, no entanto, o vingativo
Joukahainen acerta uma flecha certeira em seu cavalo e Vinminen cai na gua e flutua
inconsciente at o mar.
O velho mago resgatado por uma guia gigante que por l passava e levado para
as praias de Pohjola, onde sua soberana, Louhi, o traz de volta sade. Curado,
Vinminen prope um acordo para poder retornar Kalevala: Ilmarinen, o ferreiro
mgico, forjaria o Sampo, instrumento de sorte e prosperidade, para Pohjola. A filha de
Louhi, donzela da Fazenda do Norte, prometida a Ilmarinen em troca da jia.
No caminho de volta para casa, Vinminen encontra a donzela prometida ao
ferreiro e, desconsiderando o acordo feito com sua me, pede a jovem em casamento. Ela
exige que primeiramente o velho mago desempenhe tarefas impossveis. O mago decide,
ento, construir um barco para auxili-lo em sua misso, mas no processo se fere
gravemente com seu machado e s consegue curar-se com a ajuda de um velhinho, mago
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como ele, que o lembra da origem do ferro. Ao cantar essa origem, o encantamento surte
efeito e o sangramento estancado.
Vinminen, novamente curado, busca Ilmarinen para cumprir seu acordo com
Louhi e envia o ferreiro, contra a vontade do ltimo, para Pohjola. Ilmarinen, ferreiro
mgico, forja o Sampo e Louhi, tendo sido presenteada, aprisiona o amuleto em uma
montanha rochosa e nega cumprir sua parte do acordo, no oferecendo a mo de sua filha a
Ilmarinen.
Em uma costa da Kalevala, Lemmikainen embarca em uma viagem para cortejar
Kyllikki, dama da Ilha Saari. Mago jovem e intempestivo como ele alegra as damas da
ilha e rapta Kyllikki. Mas seu temperamento impetuoso e sua vontade, voltil.
Lemmikainen abandona Kyllikki em uma ilha quando sua intemprie se completa e parte
em busca da donzela de Pohjola. Com seu canto ele enfeitia todos a deixarem a Fazenda
do Norte. Apenas um, um pastor de gado, no cai em seu feitio, mas suficiente para
arruinar os planos de rapto e invaso do jovem mago.
Assim, ele decide apresentar-se como cavalheiro e pedir a Louhi a mo de sua
filha em casamento. A ele, a donzela pede tambm trs tarefas impossveis. Na terceira
tarefa, Lemmikainen se dirige ao Rio Tuonela, fronteira entre este mundo e o prximo. Por
l, estava o pastor que havia permanecido inclume a seu feitio. Por vingana magia
inconseqente, o pastor mata o mago e joga seu corpo no rio.
A me de Lemmikainen, recebendo um sinal da morte do filho, segue para
Tuonela, resgata o corpo, o costura com preciso e o traz de volta vida, como feiticeira e
como me.
Vinminen tambm se dirige a Tuonela, mas ele busca, de fato, feitios para
terminar sua embarcao. Os encantamentos que precisava estavam no estmago de um
velho sbio, Antero Vipunen, h muito falecido. Com suas novas ferramentas,
Vinminen termina sua obra. O barco usado para retornar a Pohjola, mas seus planos de
casamento so mais uma vez frustrados quando a donzela escolhe Ilmarinen por marido. O
ferreiro, ao contrrio dos outros dois magos, consegue desempenhar suas trs tarefas
impossveis.
Em Pohjola, tudo so preparativos para o casamento de sua donzela e so
enviados convites a todos, com exceo do impetuoso Lemmikainen. Os amigos de
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Ilmarinen vo a Pohjola e Vinminen traz beleza e encanto ao banquete com suas
canes.
Aos noivos so dados conselhos sobre a unio em que embarcam e a noiva deixa
seu povo, partindo para a Kalevala. Por l, para concluir as festividades, h um outro
banquete para o casal.
Lemmikainen, insatisfeito com sua excluso, surge no banquete de Pohjola e
exige ser servido. Mas, em vez de quitutes, a ele servido um barril cheio de vespas.
Lemmikainen duela em canes com o mestre de Pohjola e, no satisfeito, luta com
espadas, tirando a vida do soberano.
Em fuga de Pohjola, o jovem mago retorna Ilha Saari, onde vive entre as damas
do local at ter que fugir novamente, objeto do cime dos homens da ilha. Ao voltar
Kalevala, Lemmikainen encontra sua casa em cinzas, e sua me escondida em uma cabana
na floresta. Em busca de vingana, ele parte mais uma vez para Pohjola, mas jamais alcana
sua meta, pois Louhi lana um feitio que congela os navios no mar.
Em outro momento e outras paragens, uma amarga discusso se desenrola entre os
irmos Untamo e Kalervo. Os insultos terminam em guerra e os homens de Kalervo so
mortos, restando de seu cl apenas seu filho, Kullervo. Tendo habilidades distintas daquelas
de outros rapazes, Kullervo vendido a Ilmarinen como servo.
Aps o casamento de seu mestre, a esposa de Ilmarinen, por pura maldade, pe
uma pedra no nico mantimento do rapaz, um pedao de po. Kullervo quebra sua faca,
instrumento de trabalho e sua nica posse, tentando cortar o alimento.Em represlia, ele
leva o gado do casal para o pntano e traz de l animais selvagens para a fazenda. Ao seguir
a rotina de ordenhar os animais, a esposa de Ilmarinen ferida mortalmente.
Kullervo, em fuga, encontra na floresta parentes que julgava mortos na guerra. A
nica que no reencontra sua irm, h muito desaparecida. Em uma viagem, Kullervo
conhece e seduz uma jovem dama, porm toda a felicidade que o pobre rapaz havia
descoberto se esvai quando ele descobre que a dama era sua irm desaparecida. A
desafortunada mulher, como Aino antes dela, conhece seu fim nas guas doces, mas dessa
vez, em um rio que corre sem cessar.
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Kullervo se vinga de Untamo por tudo que fez a sua famlia, mas aps matar o tio
e seus parentes, o rapaz encontra sua prpria famlia morta. Como a irm, Kullervo decide
deixar a vida.
Enquanto isso, Ilmarinen, em luto por sua esposa, forja uma mulher de ouro. Ela,
porm, permanece fria e sem vida. Ouro jamais deve ser adorado, como canta
Vinminen. Desistindo da empreitada, Ilmarinen retorna a Pohjola para pedir a mo da
mais jovem filha de Louhi em casamento. Ela o rejeita e o ofende de forma to desonrosa
que o mago a transforma em uma gaivota. Ilmarinen, em seu retorno Kalevala, conta a
Vinminen a respeito da riqueza que o Sampo trouxe ao povo de Pohjola.
Decididos que tamanha prosperidade desequilibraria a harmonia de todos os
povos sua volta, Vinminen, Ilmarinen e Lemmikainen partem para Pohjola para roubar
o Sampo. O barco de Vinminen acaba, porm, subindo nos ombros de um monstro
marinho. O velho mago o mata e de sua mandbula constri o instrumento de todas as
canes, o kantele. Ningum alm de Vinminen era capaz de toc-lo e o velho sbio
enfeitia todos os ouvintes com sua msica.
Com o kantele, Vinminen adormece todo o povo do norte, de onde roubam o
Sampo. Ao despertar, Louhi enfeitia obstculos para os magos fugidios. Os trs escapam,
mas o kantele se perde no mar. Ainda em sua perseguio, Louhi se transforma em uma
gigantesca ave de rapina.
Na violenta luta que a dama causa o Sampo despedaado e cai no mar. Alguns
dos pedaos permanecem no fundo do oceano, onde todo o mundo teve incio e outros so
levados para a costa, trazendo sorte e prosperidade s terras do norte. Louhi retorna sua
terra empobrecida.
Vinminen, mais uma vez, vai ao mar buscar algo que havia perdido e
novamente no o recupera. O mago decide, ento, criar um novo kantele de madeira e volta
a encantar todas as criaturas com suas canes.
Louhi, no entanto, no se conforma com o empobrecimento de sua terra e planeja
muitas maldades contra o povo de Vinminen. Ela manda doenas para a Kalevala, mas o
velho mago cura os doentes. Ela envia um urso para matar o gado, o velho ministrel mata a
fera e organiza uma festa pra comemorar o feito.
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Em um ltimo golpe, a dama de Pohjola esconde o sol e a lua em uma montanha,
alm de roubar o fogo dos mortais. Ukko, ento, faz um novo sol e lua de fogo, mas eles
caem no mar e so engolidos por um peixe gigante. Vinminen e Ilmarinen pescam o
peixe e devolvem o fogo aos humanos.
Ilmarinen tenta solucionar a escurido forjando um sol e uma lua de ouro, mas
eles no brilham. Aps uma luta contra o povo de Pohjola, Vinminen sugere a Ilmarinen
que forje as chaves para abrir a montanha-esconderijo. Enquanto o mago ferreiro realiza
seu trabalho, Louhi reconhece sua derrota e liberta o sol e a lua.
Devolvida a harmonia ao povo de Vinminen, numa floresta da Kalevala,
Marjatta concebe uma criana em uma planta. O beb desaparece e encontrado no
pntano. Vinminen condena morte a criana sem pai, mas o menino fala em sua
prpria defesa e batizado Rei da Carlia.
Concluda sua longa aventura, Vinminen parte em um barco de cobre, mas
prev que um dia ser chamado para forjar um novo Sampo, ou simplesmente para trazer
luz e cantar novas canes.
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3.1) Histria e cultura finlandesas
A Finlndia um pas europeu com uma histria bastante peculiar, que se
contrasta sobremaneira com o esteretipo de pas seguro, de primeiro mundo, estvel e com
tecnologia de ponta ao qual hoje associado, assim como o restante da Escandinvia.
Assim, as imagens que se formam acerca da Finlndia hoje em dia se relacionam
tecnologia de celulares e internet e disputa pelo primeiro lugar no ranking de qualidade de
vida elaborado pela ONU, mas esse o panorama que passou a se desenhar aps a 2
Guerra Mundial. O perodo anterior segunda metade do sculo XX conta um passado
finlands bastante diferente.
Uma crnica escrita por Tcito no sculo II, ressalta a pobreza abjeta e atraso
civilizacional dos finlandeses20. Esse texto citado, ainda hoje, com freqncia como
referncia histrica. Um exemplo de tal importncia est na recorrncia dessa crnica em
prefcios da Kalevala, inclusive naquele escrito por John Martin Crawford, primeiro
tradutor da Kalevala para o ingls e cuja traduo embasou o presente estudo
Os finlandeses so extremamente selvagens, e vivem em pobrezaabjeta. Eles no tm armas, ou cavalos, ou moradas; eles vivem deervas, eles se vestem com peles, e dormem no cho. Seus nicosrecursos so suas flechas, que pela falta de ferro tm pontas deosso.21 (traduo nossa)
O curso de dominao colonial finlands comeou ainda no sculo VI, quando a
Sucia anexa sua costa oeste para beneficiar-se da pesca por l realizada. Esse momento
20 SACRED TEXTS. Coordenao de John B. Hare. Apresenta introduo, com a citao da crnica de Tcitoe o poema Kalevala traduzido por John Martin Crawford. Disponvel em: http://www. sacred-texts.com/neu/kveng/. Acesso em 18 fev. 2006.21 SACRED TEXTS. Coordenao de John B. Hare. Apresenta introduo, com a citao da crnica de Tcitoe o poema Kalevala traduzido por John Martin Crawford. Disponvel em: http://www. sacred-texts.com/neu/kveng/. Acesso em 18 fev. 2006: No original: The Finns are extremely wild, and live in abjectpoverty. They have no arms, no horses, no dwellings; they live on herbs, they clothe themselves in skins, andthey sleep on the ground. Their only resources are their arrows, which for the lack of iron are tipped withbone.
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de vital relevncia para nosso estudo, posto que o primeiro registro histrico feito a
respeito do territrio que viria a se tornar a Finlndia. O pas j entra na histria
passivamente, tendo sua histria contada por outrem.
A partir desse momento a Sucia passa a ocupar novos territrios, at chegar a
uma possesso maior do que o que hoje a Finlndia. Sua dominao, no entanto, no se
resume a questes territoriais, atingindo pontos variados da existncia finlandesa e
deixando marcas profundas em sua cultura.
Basta notar que muitas cidades, localidades e mesmo ruas na Finlndia possuem
dois nomes, um em finlands e um em sueco, que o nome de sua capital, Helsinque, uma
adaptao de uma palavra sueca e, principalmente que, no sculo XIX a imensa maioria dos
finlandeses que passavam por educao formal falavam sueco. Dessa forma, os centros
acadmicos e culturais eram de domnio sueco e, portanto, narravam a histria do Reino
Unido da Finlndia e Sucia segundo sua prpria tica.
A Rssia, entretanto, tambm tinha interesse no territrio finlands e realizou
diversas incurses blicas em seu territrio at que a Sucia o cedesse no incio do sculo
XVIII. Assim, a sina de ser dominado e ter sua histria contada por vizinhos mais
poderosos continuava e nessa fase, em que a Rssia difundiu a viso de que a Finlndia
seria um pas menor, andando na corda bamba das dominaes estrangeiras. Tal concepo
perdura, em larga medida, at os dias atuais, tendo sido reforada durante a 2 Guerra
Mundial, quando do massacre russo. Essas batalhas, que duraram 105 dias (de 1 de
dezembro de 1939 a 13 de maro de 1940) ficaram conhecidas, como aprofundaremos a
seguir, por Guerra do Inverno ou com a denominao As batalhas de po Molotov, j
que, quando confrontados pela comunidade internacional, os russos afirmaram que no
havia ataque algum, e que suas tropas estavam apenas jogando cestas de po aos
finlandeses.22
Como afirma o historiador finlands Max Jakobson, a Finlndia est eternamente
merc do colunista itinerante que, aps o almoo e os coquetis em Helsinque, est pronto
a se pronunciar a respeito do destino do povo finlands23. Trata-se de uma afirmao que
pode parecer radical, mas que condiz com a situao finlandesa por conta de diversos
22 CONDON, W. Richard. Guerra da Finlndia inverno de sangue. Rio de Janeiro: Renes, 1975.23 JAKOBSON, Max. Finland: Myth and reality. Helsinque: Otava, 1987. p.8.
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fatores. Primeiramente tem-se a chamada cortina lingstica, pois a lngua finlandesa no
sequer indo-europia e tem como seus parentes mais prximos o hngaro e o estnio.
Assim sendo, obras e documentos escritos em sua lngua me tm pouca reverberncia
internacional.
Em segundo lugar tem-se a prpria geografia do pas, extremamente labirntica
por conta de seus quase cento e noventa mil lagos, o que isola regies inteiras, explicando,
assim, a diversidade de dialetos presentes em um pas to pequeno e tambm o contraste
tnico entre, por exemplo, carlios e lapes.
Esse pas, ento, isolado geograficamente e lingisticamente passa por cerca de
dezesseis sculos de dominao, inmeras invases e, durante todo o processo, permanece
em posio subalterna. H enciclopdias sobre a Escandinvia que definem a Finlndia
como o pra-choque que a Sucia tinha contra a Rssia.24
A Sucia tinha, portanto, a Finlndia como uma faixa de terra entre si e um
inimigo belicamente poderoso, mas sua ocupao do territrio finlands foi, via de regra,
no belicosa. Havia governantes suecos, aplicando leis suecas e lidando com dinheiro sueco
na Finlndia, mas no houve represso direta e sim poder de seduo, explicado pelo longo
perodo de dominao poltica e pelo isolamento geogrfico e tnico, uma vez que os
finlandeses no so arianos, alm do menor poderio econmico e blico.
O processo russo foi diferente, com diversas invases e uma animosidade que
ainda persiste, at por conta do pouco tempo desde a ltima invaso, entre 1939 e 1940.
Considerando a existncia de menos cidados finlandeses do que soldados russos no
mundo, a Finlndia saiu derrotada em todos os embates j travados com a Rssia, perdendo
muitos soldados, pores de seu territrio, e ainda tendo que pagar indenizaes aos
atingidos pela guerra.
A independncia finlandesa ocorreu diante da conjuntura poltica da Revoluo
Russa, por conta da falta de interesse do novo regime no territrio e em seu povo. No
houve assim, heris ou smbolos da independncia, o que no contribuiu para a constituio
de um imaginrio nacional para a Finlndia, at porque o pas passou a dispor de partes do
seu territrio, no caso a Carlia Oriental, junto aos russos desde o momento de sua
declarao de independncia.
24 Naes do Mundo: Escandinvia. So Paulo: Time Life, 1995.
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Esse fato de extrema relevncia, no entanto, para demonstrar como a Finlndia
conta sua histria de forma distinta daqueles que a dominavam. No h monumentos em
Helsinque que os finlandeses tenham erguido por vontade prpria para homenagear seu
povo, e sim obras encomendadas de governantes suecos e russos, que no foram demolidas
com o final de seus regimes de dominao.
Enquanto a Sucia se orgulha de sua origem ancestral, a Finlndia no sabe nem
de onde vem seu nome em finlands, Suomi, at por que foi a denominao estrangeira que
permaneceu nas lnguas do mundo, como quase todo o resto a seu respeito.
importante destacar, ainda, o nmero de guerras que a Finlndia enfrentou,
somente no sculo XX. Alm das invases blicas predecessoras por parte dos russos no
sculo XVIII, houve a guerra civil, logo aps a conjuntura de independncia, entre os
vermelhos, que queriam que o novo Estado seguisse o marxismo, e os brancos, que
desejavam seguir o capitalismo. Desnecessrio dizer que os brancos venceram.
A maior guerra protagonizada pela Finlndia , como j comentado, a Guerra do
Inverno, ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial e causada pelo interesse russo no
territrio finlands como rota de fuga no caso de uma invaso nazista. Foi uma guerra
unilateral entre uma nao de 4 milhes de habitantes e uma potncia de 180 milhes de
pessoas.
Uma viso do mapa da guerra (ANEXO 4) deixa claro a brutalidade da guerra que
os finlandeses estavam travando, mas nem assim, os fino-escandinavos perdiam uma de
suas caractersticas mais marcantes, o uso da ironia: em declaraes compiladas no livro
Guerra da Finlndia Inverno de sangue, pode-se ler que
Diante dos fatos desalentadores provindos da esmagadora superioridadedo seu adversrio, os finlandeses entraram na batalha com poucasesperanas de conseguir defender a linha at a chegada de reforos.Pouca ou nenhuma ajuda material era esperada do resto do mundo, o queno de se surpreender, muito embora uma enxurrada de retrica esimpatia enchesse os sales da Liga das Naes, a imprensa mundial e amaioria dos boletins noticiosos dos Ministrios das Relaes Exteriores.(CONDON, 1975, p.35-36)
Ao final da guerra, os russos conseguiram, como j foi mencionado, dez por
cento do territrio finlands, uma parcela muito menor do que a inicialmente desejada. O
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governo finlands, no entanto, teve que no s reconstruir o pas, como tambm prover
indenizaes aos atingidos pelos combates.
As conseqncias dessas invases e dos ecos de sculos de dominao ainda se
fazem sentir entre os finlandeses, como afirma Erkki Toivonanen, correspondente da
Companhia de radiodifuso Finlandesa em Paris:
Os finlandeses esto obcecados com o que os outros sabem ou deixam desaber sobre nosso pas. Agora, o que se costumava chamar Europadivide-se em Europa, bloco sovitico e Escandinvia, estamos tentandodesesperadamente convencer os estrangeiros do carter escandinavo daFinlndia. Para nossa auto-estima, fundamental que as pessoas saibamonde vivemos, quem nos governa, e qual nosso sistema de governo.(Naes do Mundo: Escandinvia, p.37).
interessante notar que os pontos destacados pelo jornalista citado, ainda durante
a guerra fria, so exatamente os pontos que distinguem a Finlndia do restante da
Escandinvia, ou seja, sua localizao ao estremo Norte, com um tero de seu territrio
dentro do crculo polar rtico, o fato de serem uma repblica presidencialista e de serem o
primeiro pas do mundo a ter uma mulher presidente. esse, certamente, o territrio
habitado pelos finlandeses, o local entre as contradies de se enquadrarem e de manterem
suas distines inerentes.
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3.2) Oralidade e registro escrito
A distino a ser notada aqui que nessa fase j havia o intuito de resgatar e
coletar as runas anteriormente cantadas em toda a Finlndia e que no sculo XIX se viam
relegadas remota Carlia do Norte, uma das ltimas regies que falavam prioritariamente
finlands e preservavam a cultura popular do pas.
Foi Elias Lnnrot que, aps registrar centenas de canes, provrbios e
encantamentos, coletou cinqenta runas cantadas na regio norte do pas e as organizou em
ordem cronolgica, mantendo o ritmo e a estrutura tradicionais dos poemas, dando-lhe o
nome de Kalevala, ou Terra de Heris.
relevante frisar que, durante todo o projeto de pesquisa, Lnnrot afirmava
buscar no canes a serem registradas na forma de poema pico e sim fragmentos de um
pico ancestral, com o objetivo de restaurar-lhe sua forma e glria inicial. O sentimento de
busca das origens primordiais to comum no Romantismo atingia, assim, seu ponto
mximo na Finlndia.25
A partir da publicao do texto pico se deu uma revitalizao da cultura
finlandesa, a ponto de muitos creditarem ao texto a sobrevivncia da lngua e da identidade
cultural do pas.
O estudioso Walter ONG (1998) ressalta em seus estudos sobre oralidade e
cultura escrita a morte de um texto em seu registro escrito, seu afastamento do cotidiano
orgnico, o que muitas vezes garante sua sobrevivncia. O texto oral tem um componente
orgnico, ele evolui juntamente com o cotidiano daqueles que o contam e recontam,
tornando-se uma parte vital da comunidade. Quando tal texto cristalizado na escrita ele
perde sua organicidade, congelado em determinado momento de sua histria e, mesmo
que venha a ser reinterpretado, sua faceta escrita ter sempre maior nfase, por conta da
legitimao que tal tecnologia acarreta.
Um dos mais notveis paradoxos inerentes escrita sua associaontima com a morte. (...) O paradoxo est no fato de que a mortalidade do
25 MERI, Veijo. Beneath the Polar Star- Glimpses of Finnish history. Keuruu: Otava, 1999. p.41.
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texto, seu afastamento do mundo da vida cotidiana, sua rgida fixidezvisual, garante sua durabilidade e seu potencial para ser ressuscitado emcontextos vivos ilimitados por um nmero potencialmente infinito deleitores vivos. (ONG, 1988. p.96)
O texto deixa, assim, o universo popular e ingressa no mbito erudito. No caso da
Kalevala, alm da sobrevivncia do texto, houve a preservao de toda uma cultura. A
narrativa oral j se encontrava confinada a regies remotas da Carlia do Norte quando foi
registrada, e muito provavelmente se perderia enquanto conjunto no decorrer dos anos. O
registro de Lnnrot possibilitou a sobrevivncia da tradio popular finlandesa, no entanto,
a excluiu, em larga medida, de seu contexto original.
As runas tratam, como visto no resumo apresentado, das aventuras de trs heris
de origem divina e com poderes mgicos que buscam melhorar as condies de vida de seu
povo, muitas vezes solucionando problemas que eles mesmos causaram, bem como cumprir
provas para conseguir a mo de belas damas em casamento.
Dos trs heris, o mais popular entre os finlandeses e muitas vezes retratado em
ilustraes de capa das edies da Kalevala Vainamoinen, um mago que nasce j com
700 anos. Os outros dois so seu irmo Ilmarinen, um ferreiro tambm mgico e
Lemmikainem, um impetuoso mago que chega a ser reduzido a pedaos durante a narrativa.
Os grandes viles da obra so os lapes, mas no h um nico vilo, nem uma
nica histria ou aventura. Na verdade, boa parte das runas constitui episdios
independentes que muitas vezes foram traduzidos para outras lnguas isoladamente.
Tal estrutura episdica, ainda seguindo o estudo de Walter Ong, era natural no
contexto pico, uma vez que facilitaria para o narrador alinhav-la oralmente, j que ele no
tinha a possibilidade da organizao da escrita, tpica dos romances.
Dessa forma, uma histria contada ao longo de meses ou anos para uma audincia
de ouvintes deve ter pequenas histrias encadeadas, para que nem os ouvintes nem o
contador deixem de acompanhar seu desenvolvimento narrativo. Na escrita possvel
encadear uma narrativa, ainda que longa, sem tal estratgia, uma vez que a histria j est
pronta e organizada quando o leitor tem acesso a ela:
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O que fazia um bom poeta pico no era o domnio de um enredo linearprogressivo que ele desconstrua por meio de um truque sofisticadochamado mergulhar seu ouvinte in media res. Sua excelncia estava, entreoutras coisas evidentemente, em primeiro lugar, na aceitao tcita do fatode que a estrutura episdica era o nico modo e o mais natural deimaginar uma narrativa extensa e lidar com ela. (ONG, p.162).
Na Kalevala a estrutura episdica evidenciada pelo prprio resumo que fizemos
da narrativa no incio deste captulo. Assim, cada conjunto de runas evidencia um episdio
da narrativa, incluindo, de fato, histrias independentes intercaladas, como no caso da
tragdia de Kullervo.
Vale ressaltar que o poema estudado possui um momento intermedirio entre
oralidade e escrita que sucede aquele da estrutura amplamente episdica da oralidade, no
qual Lnnrot organizou os episdios de forma a agrupar historias semelhantes cantadas por
narradores distintos, aproximando a narrativa oral da organizao da escrita. devido a
esse momento que h, ainda hoje, uma grande discusso acerca da pertena da Kalevala ao
universo oral ou ao escrito. No congresso que marcou os cento e cinqenta anos do registro
do poema, a concluso a que os estudiosos chegaram foi que o poema habita ambos
universos, outro fator nico da Kalevala.
Outra faceta interessante da Kalevala sua relao com a msica, j que nos cerca
de mil anos de existncia do poema ele no foi lido ou declamado, e sim cantado. Essa
atividade era acompanhada de um instrumento tpico, o kantele. Tal instrumento, que
tocado horizontalmente e conta com desde cinco at quarenta cordas, foi inventado
mitologicamente pelo prprio Vainamoinen a partir da mandbula de um ser maligno para
acompanhar seus encantamentos.
H estudos que analisam o ritmo do poema, e alguns afirmam que esse estaria
relacionado ao ritmo das remadas nos mais de 188.000 lagos do pas. No prefcio da
traduo de Keith Bosley para o ingls h, inclusive, um trecho do poema escrito em uma
folha de partitura, juntamente com as notas, tal como uma letra de msica, para demonstrar
o ritmo constante das remadas do poema. (ANEXO 5)
Nos dias atuais ainda h contadores de runas na Finlndia, homens que sabem os
quase vinte e trs mil versos do poema de cor. A tradio, no entanto, est se transmutando,
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uma vez que essa tarefa est passando a ser adotada por estudiosos e msicos profissionais
e no mais por homens do campo que tinham tal incumbncia como uma misso de vida.
Essa tarefa abrange todos os campos associados oralidade, ou seja, questes
ligadas voz, ao corpo e performance. (ZUMTHOR, 1997). Assim, para esse autor, a
oralidade no se reduz voz ou a aspectos unicamente sonoros, ela abrange todo um
sistema de representao do mundo, que perpassa o corpo de quem se responsabiliza pela
transmisso oral e toda a ao envolvida no processo, levando-se em conta o local onde
feita, as roupas utilizadas e quaisquer recursos sensoriais envolvidos.
O destaque do processo finlands est na voz e no conhecimento musical, com o
kantele e no ritmo, uma vez que o poema no tem rima, somente refres. Os cantadores
finlandeses aprendiam as runas com os mais velhos, mas no havia uma formao
sistemtica, como no caso dos griots, cantadores africanos, e suas apresentaes sempre
foram intimistas e centradas na prpria comunidade, sem grandes funes performticas.
Dentre a coletnea de canes picas havia aquelas cantadas tradicionalmente por
homens, a respeito de aventuras, viagens e duelos, e aquelas cantadas por mulheres, acerca
de questes cotidianas, amor ou solido. Tanto homens quanto mulheres cantavam nas
celebraes da comunidade e ambos passavam aos mais novos suas composies ou
adaptaes, como pode seu visto nos primeiros versos da Kalevala.
Estas meu querido velho pai cantava para mimQuando no trabalho com faca e machadoEstas minha gentil me me ensinouQuando ela girava a roca voadoraQuando uma criana na esteiraA seus ps eu rolava e caa.26 (traduo nossa)
Muitas das vilas em que os cantadores viviam se encontram hoje desertas ou
habitadas somente por ancios, j que os mais jovens migraram para o sul, normalmente
para a grande Helsinque.
26 Na traduo de John Matin Crawford: These my dear old father sang me / When at work with knife andhatchet / These my tender mother taught me / When she twirled the flying spindle, / When a child upon thematting / By her feet I rolled and tumbled.
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O estudioso Walter Ong em seu estudo acerca da oralidade distingue a chamada
oralidade primria, presente em sociedades que no dominam a escrita e a oralidade
secundria, existente em sociedades que dominam a tecnologia da escrita e cujas
manifestaes so alimentadas pela prpria tecnologia das comunicaes, tais como rdio,
televiso e telefone. (ONG, 1988. p.19)
H, entretanto, dois momentos a serem observados: um primeiro, que perdurou at
o registro da Kalevala, no qual as manifestaes orais eram ligadas prpria expresso da
lngua e cultura finlandesas, uma vez que os textos impressos em finlands eram somente
leis ou textos religiosos, sendo as obras literrias impressas em sueco ou latim.
J em um segundo momento, aps a revalorizao da cultura finlandesa
empreendida pela prpria Kalevala, houve um tempo de oralidade secundria no sentido
estrito do termo, ou seja, de manifestaes orais impulsionadas por outras tecnologias, entre
elas a escrita, como ser visto a seguir com relao msica finlandesa. Assim, o rdio e a
televiso divulgam e propagam novas verses da Kalevala, festivais populares encenam
partes do poema, especiais de televiso contam a vida de Elias Lnnrot, entre outros
exemplos.
A msica parte vital da cultura finlandesa e, como no restante da Escandinvia
h uma importncia inegvel da msica clssica, ensinada nas escolas e grandes academias.
Foi um compositor clssico, Jean Sibelius, que lanou a Finlndia no mapa cultural europeu
no sculo XIX ao adaptar a Kalevala na forma de msica. Muitas de suas composies so
classificadas, exatamente, como poemas tonais. Seu esforo foi reconhecido ao nomearem a
academia de msica finlandesa com seu nome, ainda hoje uma referncia internacional.27
Outros estilos populares que fazem parte da revitalizao dos aspectos orais da
Kalevala so o folclrico, muitas vezes j assimilado pela cultura de massa, e estilos mais
jovens, geralmente voltados para o rock pesado e heavy metal.
No mbito das relaes entre o poema e composies musicais parece haver uma
distino geocultural, uma vez que na regio da Grande Helsinque so comuns as
produes ligadas aos estilos mais jovens e ao clssico, e nas regies mais setentrionais, em
particular a Carlia, bero da Kalevala as composies parecem se manter mais fiis aos
estilos folclricos.
27 SUIKKARI, Raimo. Finland 2000. Keeru:Otava, 1996.
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No tocante anlise das produes musicais cabe ressaltar a interpretao feita
por John Martin Crawford, autor da primeira traduo das runas para o ingls, segundo o
qual o poema conta duas histrias, uma aparente, relativa s aventuras dos personagens, e
uma implcita, relacionada s simbologias do texto.
As simbologias mais comuns seriam ligadas a gua doce ou salgada, sendo a
primeira vista como acolhedora, principalmente quando associada a lagos e a segunda vista
como perigosa e misteriosa. Assim, Ilmatar sofre no mar, como desafortunada me-gua:
Ela desceu ao oceano,Ondas sua carruagem, ondas seu travesseiro.Por l o vento-tempestade surgindoVoando do Leste com sua fora,Chicoteia o oceano em ondas,Atinge as estrelas com gotas do oceanoAt que as ondas estejam brancas de fervor.28 (traduo nossa)
H, ainda, a simbologia das figuras femininas, seja nas figuras maternas,
associadas aqui cosmogonia, como na personagem Ilmatar, seja nas diversas divindades
femininas (as boas associadas natureza e as ms s desgraas pessoais e familiares).
Assim, Ilmatar se oferece como morada para a pata que poria os ovos de cujas partes o
mundo seria formado:
Ento a Filha do ter,Agora infortunada me-gua,Elevou os ombros fora dgua,Elevou seus joelhos acima do oceano,Para que a pata pudesse construir sua morada,Fazer seu ninho com segurana.29 (traduo nossa)
28 Na traduo de John Marin Crawford : She descended to the ocean, /Waves her coach, and waves herpillow. / Thereupon the rising storm-wind / Flying from the East in fierceness, / Whips the ocean into surges,Strikes the stars with sprays of ocean / Till the waves are white with fervor.29 Na traduo de John Marin Crawford: Then the daughter of the Ether, / Now the hapless water-mother, /Raised her shoulders out of water, / Raised her knees above the ocean, / That the duck might build herdwelling, / Build her nesting-place in safety.
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Enquanto, Louhi, que chega a se transformar em ave de rapina no final da
narrativa, evoca tudo que de pior pode ser associado a desgraas pessoais ou coletivas:
Louhi, anfitri da Terra do Norte,Ouviu a palavra em Sariola,Ouviu os orvalhos com ouvidos de inveja,Que Vainola vive e prospera,Que a riqueza de Osmoinen aumenta,Atravs das runas do Sampo.Runas da tampa em cores.Assim sua ira ela atiou,Bem considerada, longamente refletida,Como ela poderia preparar destruioPara o povo de Vainola,Para as tribos da Kalevala.Com essa prece ela se volta para Ukko,Assim suplica ao deus do trovo:Ukko, vs que estais no cu,Ajude-me a matar o povo de VainolaCom vosso granizo de ferro da justia,Com vossas flechas com raios na ponta,Ou de doena deixe-os perecer,Deixe-os morrer a morte merecida;Deixe os homens morrerem na florestaE as mulheres nos obstculos!30 (traduo nossa)
Alm disso, existe a presena constante de simbolismos ligados a elementos