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Psic. Rev. So Paulo, volume 16, n.1 e n.2, 13-27, 2007
Consideraes tericas ferenczianassobre o trauma
Paula Regina Pern*
Resumo
O presente texto traz consideraes metapsicolgicas sobre o trauma, seus
impactos psquicos e possveis conseqncias no desenvolvimento afetivo de
uma criana. A autora baseou-se nas obras de Sigmund Freud, fundador da
psicanlise, e Sndor Ferenczi, importante discpulo da primeira gerao
psicanaltica. Atravs das relevantes contribuies do psicanalista hngaro
Ferenczi sobre o trauma, o tema examinado do ponto de vista terico visando
a compreenso de fenmenos vericados na clnica psicanaltica com adultos.
Os fenmenos focalizados foram a paralisia psquica e a forte submisso ao
analista, possveis efeitos de repetidas doses de indiferena e violncia familiar
que podem gerar conseqncias patolgicas sobre o desenvolvimento psquico
de uma criana. Ela ca ento inundada por grandes quantidades de excitao,
tendo seu funcionamento subjetivo desorganizado. A partir da teoria de Sndor
Ferenczi, foram examinadas diferentes dimenses do fenmeno traumtico.
Foi evidenciada tambm a teoria ferencziana relativa s defesas psquicas de
clivagem, progresso psicopatolgica e identicao com o agressor.
Palavras-chaves:Sndor Ferenczi; trauma; clnica psicanaltica.
Abstract
The present text brings metapsychological considerations on the subject of
trauma, its psychical impacts and possible consequences on the emotional
development of a child. The author was based on Sigmund Freud, the founder
of psychoanalysis, and Sndor Ferenczi, important disciple from the rst
* Mestre em Psicologia Clnica pela Unimarco/SP, Doutora em Psicologia Clnica pela PUC-SP, professora do Centro de Estudos Psicanalticos e de cursos de extenso da Cogeae/SP. Esteartigo baseado em minha tese de doutorado intitulada Contribuies para a clnica psicanalticado trauma, defendida em maio/2007 no Programa de Ps-Graduao em Psicologia Clnica,ncleo de Psicanlise da PUC/SP. E-mail: [email protected]
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psychoanalytical generation. Through the contributions of Ferenczi, born in
Hungary, the subject of trauma is examined, with the intention to understand
clinical phenomena presented in the work with adults. The focused phenomena
were psychical paralysis and strong submission to the analyst, possible conse-
quences of indifferent and violent repetitive maternal and paternal attitudesthat have pathological effects on the psychical development of a child, taken
by great amounts of excitement, disorganizing his subjective functioning and
mobilizing pathological defense mechanisms that reect a wounded narci-
sism. Based on Ferenczi, different dimensions of the traumatic phenomena
have been described. Defenses have been examined from a theoretical point
of view, such as splitting, psychopathological progression and identication
with the aggressor.
Keywords:Sndor Ferenczi; trauma; psychoanalytical practice.
CONSIDERAES TERICAS FERENCZIANASSOBRE O TRAUMA
Na clnica cotidiana, com base na histria construda e na atitude
psquica de certos pacientes, reconheo um sinal do trauma: uma espcie
de frgil paralisao depressiva, reexo do estupor diante de agresses
sbitas, ferozes e repetitivas. Essas so as condies que caracterizam
um trauma (em grego, ferida, de uma raiz que signica furar): por um
lado, a intensidade do golpe que atinge o sujeito e, por outro, a condio
de fragilidade em que ele o encontra, comenta Mezan (2006) ressaltando
a condio da vtima. Os golpes repetitivos podem introduzir subitamente
uma grande quantidade de excitao no interior do sujeito, desorganizando
seu funcionamento subjetivo e mobilizando defesas patolgicas que reetem
um narcisismo ferido. No trabalho analtico, preciso ligar essa energia
utuante, vincul-la a representaes, dar sentido s experincias traum-
ticas. A partir dessas constataes clnicas, pretendo aqui examinar alguns
aspectos da teoria de Sndor Ferenczi, psicanalista hngaro contemporneo
de Freud, sobre o trauma.
Segundo Laplanche e Pontalis (1996, p. 163), trauma e traumatismo
so termos utilizados em medicina e cirurgia h muito tempo. Trauma vem
do grego, designando uma ferida com efrao; traumatismo seria reservado
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para as conseqncias, no conjunto do organismo, de uma leso resultante
de violncia externa. Os autores armam: A psicanlise retomou estes
termos (em Freud apenas encontramos trauma), transpondo para o plano
psquico as trs signicaes que neles estavam implicadas: a de um cho-que violento, a de uma efrao e a de conseqncias sobre o conjunto da
organizao.
A reexo sobre o trauma psquico est presente desde o nascimento
da Psicanlise. Na obra de Sigmund Freud, o exame das caractersticas das
histricas e de suas fantasias sexuais infantis concedeu sexualidade o lugar
central estabelecido ao longo de toda a produo freudiana. Mesmo aps o
abandono da teoria traumtica das neuroses, em 1897, Freud no descartou
a importncia da cena da realidade. No correto dizer que o abandono da
teoria traumtica das neuroses tenha levado Freud desconsiderao do
peso da seduo real ou da realidade no adoecimento psquico. Em Con-
ferncias introdutrias Psicanlise(Freud 1916, pp. 347),na de nmero
XXII Algumas idias sobre desenvolvimento e regresso etiologia,
ele usa, pela primeira vez, o termo sries complementares para teorizarsobre as causas da neurose e apontar a importncia do fator psquico e
tambm da experincia:
Quanto sua causao, casos de doena neurtica pertencem a uma srie na
qual os dois fatores constituio sexual e experincia ou, se voc preferir,
xao da libido e frustrao so representados de tal maneira que se h
mais de uma, h menos da outra. Em uma ponta da srie esto os casos
extremos sobre os quais voc poderia dizer com convico: estas pessoas,em conseqncia de um desenvolvimento singular de sua libido, teriam ado-
ecido de qualquer forma, independentemente do que tenham experimentado
ou apesar de suas vidas terem sido protegidas cuidadosamente. No outro
extremo esto os casos que, ao contrrio, voc teria julgado que certamente
escapariam do adoecimento se suas vidas no os tivessem trazido para esta
ou aquela situao. Nos casos entre os extremos, a constituio sexual
combinada com uma quantidade menor ou maior de experincias danosas
em suas vidas. Sua constituio sexual no os teria levado neurose se elesno tivessem vivido tais experincias, e estas experincias no teriam tido um
efeito traumtico sobre eles se a libido estivesse predisposta ao contrrio.
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As pesquisas sobre os efeitos do trauma foram realizadas por outros
psicanalistas, e, conforme arma Kaufmann (1996, pp. 559), o trauma
no cessou de atrair a ateno dos autores ao longo de toda a histria da
psicanlise (desde Freud, depois Rank e Ferenczi), e a noo foi retoma-da sob ngulos diferentes. Atualmente, no campo analtico, h grande
diversidade de abordagens relativas compreenso terica e ao manejo
tcnico das psicopatologias que envolvem traumas precoces, assunto que
ocupa a mente e as publicaes de muitos psicanalistas. No presente artigo,
limitei-me a explorar consideraes tericas sobre o trauma baseando-me
em Sndor Ferenczi, cujas palavras tm grande reconhecimento e disse-
minao na atualidade, especialmente em suas vertentes de abordagem dofenmeno traumtico.
Sndor Ferenczi, psicanalista da primeira gerao, dedicou-se im-
portncia do trauma na constituio psquica da criana, ainda que no o
tenha colocado no centro da etiologia das neuroses. Ele observou que as con-
seqncias dos eventos muito precoces so evidenciadas nos combates do
conito edipiano e antes as exigncias posteriores da genitalidade, quando
ento se manifesta a fragilidade psquica daquele que foi traumatizado.Ao longo de sua produo terica, vemos recorrentemente o tema do
trauma, que consumiu sua ateno principalmente no perodo nal de sua
vida, em textos como A adaptao da famlia criana, de 1928, A criana
mal acolhida e sua pulso de morte, de 1929, e Confuso de lnguas entre
os adultos e a criana (a linguagem da ternura e da paixo), de 1932.
a partir das pesquisas psicanalticas sobre as neuroses de guerra,
devidas Primeira Guerra Mundial, que Ferenczi desenvolve uma parte im-
portante de suas elaboraes sobre o trauma e aprofunda sua compreenso
sobre os efeitos dos choques psquicos excessivos. Pesquisei seus textos que
tratam diretamente do tema das neuroses traumticas: Dois tipos de neu-
rose de guerra (histeria) (1916), As patoneuroses (1917), Conseqncias
psquicas de uma castrao na infncia (1917), Psicanlise das neuroses
de guerra (1919), Tentativas de explicao de alguns estigmas histricos
(1919), Reexes psicanalticas sobre os tiques (1921), Contribuio para
a discusso sobre os tiques (1921a) e Apresentao sumria da psican-
lise (1932). Todos eles foram desenvolvidos aps a convocao militar de
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Ferenczi para trabalhar em um hospital militar em Ppa, na Hungria, onde
testemunhou de perto as conseqncias das vivncias de guerra. Desses
textos, interessa-me destacar alguns pontos que contribuem para embasar
a noo ferencziana de trauma:O trauma pode ser considerado como um quantum de excitao intensa
demais para o escoamento psquico normal, que provoca marcas ps-
quicas peculiares.
Essa excitao intensa pode ser convertida para o corpo, importante
veculo das memrias do trauma, gerando sintomas aparentemente
semelhantes aos sintomas conversivos histricos, mas que carregam a
marca do acontecimento excessivo. Isso pode acontecer sem que haja,necessariamente, complacncia somtica. Podem ocorrer tremores,
paresias espasmdicas, rigidez nos movimentos ou evitao de certos
movimentos que estiveram presentes no momento do trauma, maneira
de uma fobia, indicando que o quantumafetivo parcialmente no liqui-
dado permaneceu ativo na vida psquica inconsciente.
Pode haver angstia intensa ou medo ante a possibilidade de repetio
traumtica, como um mecanismo defensivo do indivduo.O traumatizado tende a se expor a situaes semelhantes situao
traumtica original para domin-la, sem conscincia disso, usando o
mecanismo traumatolia inconsciente (Ferenczi, 1916, pp. 271).
O trauma provoca leses no ego e feridas no narcisismo, acarretando
um desequilbrio entre investimentos objetais e narcsicos e estase de
libido no ego. O traumatizado pode apresentar sintomas que eviden-
ciam a retirada de libido do mundo externo, hipersensibilidade do ego
e xao no narcisismo infantil. Tais sintomas podem ser auto-erotismo
exacerbado, depresso hipocondraca, pusilanimidade, incapacidade
de suportar sofrimentos ou esforos e desprazeres morais ou fsicos,
angstia e excitabilidade elevadas, com tendncia para acessos de raiva,
para a distrao e fuga de idias, e a necessidade de contrariar e opor-se
aos outros.
Efeitos traumticos podem existir em quadros de neurose, complicando
as vivncias edpicas, dado o recrudescimento do narcisismo.
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Todas essas descries sobre o trauma foram usadas por Ferenczi
para caracterizar estados psquicos de pacientes traumatizados na infncia,
quando o aparelho psquico, ainda em formao, incapaz de absorver o
impacto de um evento ou vrios incompreensvel e excessivo.
As influncias do contexto social e os traumas geradosnas relaes entre pais e filhos
H muitos textos nos quais Sndor Ferenczi faz consideraes sobre
o trauma, focalizando na inuncia do contexto social e familiar no ado-
ecimento mental, principalmente em Psicanlise e Pedagogia (1908),F, incredulidade e convico (1913), As fantasias provocadas (1924),
A adaptao da famlia criana (1927) e A criana-mal acolhida e sua
pulso de morte (1929). No entanto, focalizo aqui apenas alguns aspectos
desses textos para agregar brevemente elementos para embasar a idia de
que no somente o trauma sexual produz graves efeitos psquicos, mas as
relaes familiares na infncia podem ser fonte de vivncias traumticas
importantes.Em um de seus artigos iniciais, Transferncia e introjeo, de 1909,
Ferenczi j havia comentado a importncia dos complexos parentais no
desenvolvimento psquico da criana. Ao observar que a tendncia para
ser hipnotizada vinha do despertar dos afetos de amor ou do temor que a
criana sentia por seus pais (uma espcie de obedincia retroativa), percebe
que a obedincia espontnea da criana teria um limite varivel em cada
indivduo, e, quando esse limite transposto pelas exigncias dos pais,
quando a plula amarga da coero no est envolta na doura do amor, a
criana retira prematuramente sua libido dos pais, o que pode levar a uma
perturbao brutal do desenvolvimento psquico (pp. 101).
Em 1927, em A adaptao da famlia criana, Ferenczi pronun-
cia-se especicamente sobre o ingresso da criana na sociedade de seus
semelhantes, quando .o instinto dos pais parece com freqncia falhar,
e enumera os traumatismos que considera serem os mais importantes da
infncia: o trauma do desmame, do treinamento do asseio pessoal, da su-
presso dos maus hbitos [manifestaes de auto-erotismo] e, nalmente,
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o mais importante de todos, a passagem da criana vida adulta (pp. 5).
NoDirio clnico, ele arma sobre essas condies:
O trauma propriamente dito das crianas vivenciado em situaes em que
no h a preocupao de lhe dar remdio imediato e em que uma adaptao,
ou seja, uma mudana no prprio comportamento delas, lhes imposta
[...]. Se o trauma afeta o psiquismo ou o corpo sem preparao, ou seja,
sem contra-investimento, ento age sobre o corpo e o esprito de um modo
destrutivo. (1932, pp. 105)
Em A criana mal acolhida e sua pulso de morte, de 1929, Ferenczi
aponta outra espcie de trauma que pode acometer as crianas. Trata-se
de situaes nas quais as crianas, quando vm ao mundo, so hspedes
no bem-vindos na famlia, ou seja, no so investidas libidinalmente de
forma apropriada, o que traria as seguintes conseqncias:
Todos os indcios conrmam que essas crianas registraram bem os sinais
conscientes e inconscientes de averso ou de impacincia da me, e que sua
vontade de viver viu-se desde ento quebrada. Os menores acontecimentos,
no decorrer da vida posterior, eram bastante para suscitar nelas a vontadede morrer, mesmo que fosse compensada por uma forte tenso da vontade.
Pessimismo moral e losco, ceticismo e desconana tornaram-se os
traos de carter mais salientes desses indivduos. Podia-se falar tambm de
nostalgia, apenas velada, da ternura (passiva), inapetncia para o trabalho,
incapacidade para sustentar um esforo prolongado; portanto, um certo
grau de infantilismo emocional, naturalmente no sem algumas tentativas
de consolidao forada do carter. (pp. 48)
E a seguir completa:
Eu queria apenas indicar a probabilidade do fato de que crianas acolhidas
com rudeza e sem carinho morrem facilmente e de bom grado. Ou utilizam
um dos numerosos meios orgnicos para desaparecer rapidamente ou, se
escapam a esse destino, conservaro um certo pessimismo e averso vida. A
fora vital que resiste s diculdades da vida no , portanto, muito forte no
nascimento; segundo parece, ela s se refora aps a imunizao progressivacontra os atentados fsicos e psquicos, por meio de um tratamento e de uma
educao conduzidos com tato. (Ibid., pp. 49)
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Sem isso, as pulses de morte acabariam por predominar. Se a ten-
dncia para a autodestruio no predominar, pode haver uma clivagem da
prpria personalidade em duas metades, uma das quais desempenha um
papel maternal com a outra. Tudo isso como conseqncia do fato de que avida amorosa do recm-nascido comea no modo da passividade completa.
A retirada do amor conduz inegavelmente a sentimentos de abandono
(Ferenczi, 1932, pp. 238).
Ao citar um caso como exemplo, Ferenczi descreve outras conseq-
ncias de experimentar a falta de receptividade e empatia materna:
Neste caso, como em todos os outros, o conito edipiano constitua, na-
turalmente, uma prova de fora; ela no estava altura para enfrent-lo,assim como tampouco estava altura dos problemas de adaptao vida
conjugal que, por acaso, mostraram ser de uma diculdade pouco comum; a
paciente permaneceu frgida; do mesmo modo, os rapazes no bem-vindos
que pude observar sofriam de distrbios mais ou menos graves de potncia.
(Ferenczi, 1929, pp. 49)
Em Confuso de lnguas entre os adultos e a criana (1933), Fe-
renczi cita as medidas punitivas insuportveis e passionais, mesmo forado contexto da sexualidade, como fatores traumticos importantes. A eles
soma tambm o terrorismo do sofrimento:
As crianas so obrigadas a resolver toda espcie de conitos familiares e
carregam sobre seus frgeis ombros o fardo de todos os outros membros
da famlia. No o fazem, anal de contas, por desprendimento puro, mas
para poderem desfrutar de novo a paz desaparecida e a ternura que da de-
corre. Uma me que se queixa continuamente de seus padecimentos pode
transformar seu lho pequeno num auxiliar para cuidar dela, ou seja, fazer
dele um verdadeiro substituto materno, sem levar em conta os interesses
prprios da criana. (pp. 215)
Contudo, j a partir de 1929, em Princpio de relaxamento e neoca-
tarse, o trauma abordado especialmente em seu aspecto sexual. Da em
diante, todos os textos tratam do trauma da seduo real de uma criana
por um adulto e seus efeitos. Usarei principalmente os textos Princpio
de relaxamento e neocatarse (1929), Anlise de crianas com adultos
(1931) e Confuso de lnguas entre os adultos e a criana (A linguagem da
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ternura e da paixo) (1933), com a inteno de examinar a descrio de
tal traumatismo e, principalmente, suas conseqncias psquicas. Tambm
utilizarei alguns artigos pstumos e reexes extradas do Dirio clnico
de Sndor Ferenczi.
Os traumas derivados de sedues reais
Em 1932, apesar dos protestos de Sigmund Freud, Ferenczi apre-
senta o texto Confuso de lnguas entre os adultos e a criana, no XII
Congresso Internacional de Psicanlise em Wiesbaden. A oposio de seu
mestre estava relacionada principalmente s mudanas tcnicas propostaspor Ferenczi, sua recusa em assumir a presidncia da Associao Inter-
nacional de Psicanlise e retomada do tema da seduo, muito embora
Ferenczi no tenha recolocado o trauma no centro da etiologia neurtica,
mas salientado a importncia do traumatismo como fator patognico (Gay,
1997, pp. 520).
Em seu trabalho clnico nos ltimos anos de vida, Ferenczi encontra
pacientes em cujo passado houve uma seduo sexual de importncia pa-tognica evidente. A seduo teria ocorrido da seguinte maneira:
Um adulto e uma criana amam-se; a criana tem fantasias ldicas, como
desempenhar um papel maternal em relao ao adulto. O jogo pode assumir
uma forma ertica, mas conserva-se, porm, sempre no nvel da ternura.
No o que se passa com os adultos se tiverem tendncias psicopatolgi-
cas, sobretudo se seu equilbrio ou seu autodomnio foram perturbados por
qualquer infortnio, pelo uso de substncias txicas. Confundem as brin-
cadeiras infantis com os desejos de uma pessoa que atingiu a maturidadesexual e deixam-se arrastar para a prtica de atos sexuais sem pensar nas
conseqncias. (Ferenczi, 1929, pp. 101)
Nessa situao de abuso sexual, evidencia-se uma tendncia inces-
tuosa dos adultos, recalcada e que assume a mscara da ternura. Esse seria
o primeiro momento do trauma, no qual o adulto confunde a linguagem
de ternura da criana com sua prpria, a linguagem da paixo. A reao
da criana frgil e amedrontada submeter-se vontade do agressor,
esquecendo-se de si mesma, adivinhando seus desejos e identicando-se
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totalmente com ele, o que quer dizer que o agressor torna-se intrapsquico:
A personalidade ainda fracamente desenvolvida reage ao brusco desprazer
no pela defesa, mas pela identicao ansiosa e a introjeo daquele que
a ameaa e a agride (ibid., pp. 103). No s o agressor que introjetado,mas o sentimento de culpa deste e tambm seu dio, de maneira que a con-
ana da criana no testemunho de seus sentidos j est desfeita. A criana
acredita que ela mesma seja maldosa, responsvel pelo abuso: uma parte
de sua pessoa posta fora dela, e o lugar que assim se esvaziou ocupado
pela vontade de quem a aterrorizou (Ferenczi, 1932, p. 80). A partir da,
tudo se passa como se o psiquismo, cuja nica funo consiste em reduzir astenses emocionais e evitar as dores no momento da morte de sua prpria
pessoa, transferisse sua funo de apaziguamento do sofrimento automatica-
mente para as tenses, sofrimentos e paixes do agressor, [...], isto , passa
a identicar-se com aqueles. (Ferenczi, 1929, pp. 142)
Nesse caso, a criana sente que mais seguro aceitar o sentimento
de culpa do que abrir mo do adulto que ama e, atravs da permanncia
do objeto amado, tenta recuperar o estado de ternura anterior ao trauma.Assim, o agressor torna-se o posseiro do ego (Pinheiro, 1995, p. 83)) ou de
regies dele, gerando partes separadas. O objeto da identicao usurpa o
espao egico e toma posse deste lugar como se assumisse a fala da crian-
a (ibid.). Essa defesa, de identicao com o agressor, observo com certa
freqncia em alguns pacientes. Eles evidenciam posturas masoquistas e
muita culpa, bem como acentuada tendncia identicao comigo, com
minhas falas e supostos pensamentos, j que a defesa de identicao com
o agressor posteriormente pode se desdobrar em uma inclinao para se
identicar facilmente com outras pessoas, obliterando a prpria vida, e a
captar os sentimentos e desejos das pessoas ao redor de maneira acentuada.
Concomitantemente, nesses casos, a relao analtica ca invadida por um
sentimento de que eu poderia constantemente atuar com onipotncia, tanto
para julg-los como para fornecer solues mgicas aos seus problemas,
como um reexo de sua obedincia automatizada gerada pela identicao
com o agressor. O seu masoquismo pode atingir um grau impressionante,
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como se fossem merecedores das piores relaes, das experincias mais
humilhantes e mais intensas dores psquicas.
Ainda sobre o trauma, Ferenczi aponta que h um segundo momento,
quando o adulto agressor, ou outro adulto que poderia ajudar, comporta-secomo se nada tivesse acontecido e ignora os pedidos de ajuda da criana,
que se v ento em risco de perder as relaes das quais precisa a menos que
apague o que viveu:1O comportamento dos adultos em relao criana
que sofreu o traumatismo faz parte do modo de ao psquica do trauma
(Ferenczi, 1934, pp. 111). So duas surpresas excessivas: a violncia sexual
e a reao de desmentido do adulto. O desmentido coloca em dvida o que
aconteceu, e a criana hesita a respeito de sua prpria percepo. Ferencziacredita que esses choques graves so superados, sem amnsia nem se-
qelas neurticas, se a me estiver presente, com toda a sua compreenso,
sua ternura e, o que mais raro, uma total sinceridade (Ferenczi, 1931,
pp. 80). No entanto,
[...] na maioria dos casos de trauma infantil, os pais no tm nenhum in-
teresse em gravar os incidentes no esprito da criana, pelo contrrio [...].
Essas coisas so simplesmente recobertas por um silncio de morte, as levesaluses da criana so ignoradas ou mesmo rejeitadas como incongruentes,
e isso com o total consenso de todo o meio e de um modo to sistemtico
que, diante disso, a criana cede e deixa de poder sustentar a sua prpria
opinio a tal respeito. (Ferenczi, 1932, pp. 58)
Na clnica, vejo que, freqentemente, esse adulto que foi traumatiza-
do na fase infantil sente sua vida emocional como falsa e suspeita, no cona
em suas prprias percepes e avaliaes do mundo externo, acompanha-o
um sentimento de no autenticidade quanto ao seu prprio comportamento
e lhe faltam convices fortes sobre suas crenas.
Sobre o choque psquico no momento de um trauma sexual, Ferenczi
arma: [...] equivalente aniquilao do sentimento de si, da capacidade
1 Lucia Barbero Fuks (2000) aponta que a criana resiste a contar o que lhe aconteceuprincipalmente por temer a perda do afeto do abusador, e o silncio da menina proporcionalao grau de proximidade com o agressor. Quanto menor for a lealdade que sentir pelo agressor,maior a possibilidade da denncia: fala-se menos quando o abusador o pai natural e existeum vnculo afetivo com ele, para alm do medo.
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de resistir, agir e pensar com vistas defesa do si mesmo [soi]. Tambm
pode acontecer que os rgos que asseguram a preservao do si mesmo
abandonem ou, pelo menos, reduzam suas funes ao extremo (1934, pp.
109). Posteriormente, a reao psquica diante do choque diminui, acompa-nhada de passividade e paralisia, de maneira que a deteno da percepo
e do pensamento ca prejudicada, o que pode ter como conseqncia a
inacessibilidade do choque psquico memria.
Outras possveis conseqncias imediatas dessa comoo psquica
so: angstia incompreensvel e insuportvel, seguida de uma ruptura par-
cial com a realidade, que provoca, por um lado, uma forma de alucinao
negativa (perda de conscincia ou desmaio histrico, vertigem) (Ferenczi,1930, pp. 64) e, por outro lado, uma compensao alucinatria positiva
imediata que d a iluso de prazer. Desta ruptura com a realidade podem
se estabelecer clivagens do ego, que continuaro existindo mesmo quando
o choque traumtico se esgotar.
CONSIDERAES FINAIS
O tema do trauma e seus efeitos psquicos coloca problemas relevan-
tes para o pensamento analtico e questiona seu alcance. A partir do ponto
de vista psicanaltico, no possvel desconsiderar o campo da fantasia
infantil na considerao dos eventos ocorridos na fase de formao psquica
da criana. Ao mesmo tempo, indiscutvel que os mesmos eventos no tm
efeitos iguais sobre pessoas diferentes. Considerar o trauma como conse-
qncia do impacto da realidade externa ou como conseqncia de fatores
psquicos empobrece a compreenso da situao colocada. preciso levar
em conta tanto a importncia do fato real, e assim no desmentir o sujeito
e no incrementar sua culpa e estagnao, quanto a signicao singular
que um determinado indivduo atribui ao fato. No possvel desconsiderar
a realidade em nossas hipteses clnicas, ainda que o campo da fantasia e
da pulsionalidade tenha igual ou maior importncia. Sndor Ferenczi
um autor psicanaltico que nos d bases consistentes para sustentar essa
postura, que no privilegia exclusivamente o campo da fantasia na consi-
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Paula Regina Pern26
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