"do tirar pelo natural" e a retratística
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Dissertação de mestrado apresentada em 2010, na UNICAMP. Esta pesquisa tem como ponto de partida o texto “Do tirar pelo natural”, concluído em 1549 pelo artista e humanista português Francisco de Holanda (1517-1584). Tal texto é considerado o primeiro da história da arte dedicado integralmente ao retrato enquanto objeto artístico. Uma nova edição deste texto, além de uma revisão historiográfica sobre a figura de Francisco de Holanda foram realizadas dentro desta dissertação. Além disso, dois ensaios sobre a retratística em Portugal durante o século XVI foram escritos levando em consideração não apenas “Do tirar pelo natural”, mas também suas outras produções textuais e imagéticas.TRANSCRIPT
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FRANCISCO DE HOLANDA: “DO TIRAR PELO NATURAL” E A RETRATÍSTICA
Prof. Dr. Luciano Migliaccio (orientador)
Campinas/2010
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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP
Bibliotecária: Sandra Aparecida Pereira CRB nº 7432
Título em inglês: Francisco de Holanda: “To take from the natural” and
portraiture
Palavras chaves em inglês (keywords):
Área de Concentração: História da Arte
Titulação: Mestre em História
Banca examinadora: Jens Michael Baumgarten, Luiz César Marques Filho,
Nancy Ridel Kaplan, Claudia Valladão de Mattos
Data da defesa: 13-09-2010
Programa de Pós-Graduação: História
Portraits - Portugal
Renaissance art - Portugal
Portuguese painting - 16th century
Artists - Portugal
Fonseca, Raphael
F733t Francisco de Holanda: “Do tirar pelo natural” e a retratística /
Raphael do Sacramento Fonseca. - - Campinas, SP : [s. n.], 2010.
Orientador: Luciano Migliaccio
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
1. Holanda, Francisco de (1517-1584). 2. Retratos - Portugal. 3. Arte renascentista - Portugal. 4. Pintura portuguesa - Séc. XVI.
5. Artistas - Portugal. I. Migliaccio, Luciano. II. Universidade
Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
III.Título.
5
“Ao exaltares com sabido engenho e eloquência as proporções, a beleza e a harmonia da arte de Apeles, tu, ó Francisco, admiravelmente vences o próprio
Apeles e ofuscas a glória da Hélade. O tempo voraz consumiu, sem ninguém lhe valer, os quadros insignes e a Vênus marinha de Apeles. O teu nome, porém,
ficará gravado em registros perenes, e obra de tanto valor não sofrerá desgaste. Assim a fama do artista sobrevive com esplendente glória; o gênio dá à matéria
mais duradouro esplendor”
(Jorge Coelho)
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AGRADECIMENTOS
Obrigado a Francisco de Holanda por seus anseios, textos e imagens produzidos.
Obrigado ao CNPq pela bolsa concedida.
Obrigado especial à minha mãe e ao meu pai, por tudo e sempre.
Obrigado ao meu irmão e família, madrinha e padrinho, pela essencial ajuda, das
mais diversas formas, nesse período de estudos.
Obrigado também a todos os funcionários da UNICAMP, especialmente aos das
bibliotecas do IA, IEL e IFCH, sempre atentos, ágeis e simpáticos no atendimento.
Obrigado à equipe do Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro.
Obrigado à equipe da Secretaria de Pós-Graduação do IFCH.
Obrigado aos professores que dos mais diversos modos e momentos
aconselharam, iluminaram e orientaram esta pesquisa: Luciano Migliaccio, Maria
Berbara, Claudia Valladão, Jens Baumgarten, Luiz Marques, Roberto Conduru,
Vera Beatriz Siqueira, Sheila Hue, Cristiane Nascimento e Nancy Kaplan.
Um obrigado especial para Maria Luiza Zanatta, companheira de reflexões sobre
Francisco de Holanda e uma das intelectuais mais generosas e humanistas que já
conheci. Se não fosse por Malu esta dissertação não seria a mesma. Obrigado!
Obrigado a Mayana Redin pelo auxílio indispensável junto à Biblioteca Municipal
do Porto.
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Um obrigado mais que especial também para Rodrigo Agrellos, companheiro nos
momentos mais felizes e nos mais tristes que envolveram a concretização desta
pesquisa. Eu te amo.
Forte abraço nas novas aquisições de pessoas queridas nessa temporada em
Campinas: Denise Tedeschi, Letícia Santos, Laura Fraccaro, Marcelo Marotta,
Paula Vermeersch e Robson Orzari. Obrigado por existirem e por toda a ajuda em
Barão Geraldo!
Por fim, “aquele abraço” aos amigos que seguiram comigo e de perto esta
empreitada da pós-graduação: Beatriz Moraes, Breno Faria, Daniela Seixas,
Evelyne Azevedo, Fanny Lopes, Fernanda Marinho, Flavia Candida, Giovani
Barros, Guilherme Whitaker, Isabela Lobo, Joana Xênia, Larissa Caravalho,
Leidiane Carvalho, Luciana Sant‟Anna, Lorena Serafim, Mariana Paulse, Mariana
Thesi, Stela Politano, Tiago Elídio e Vanessa Jansen. Amo vocês!
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RESUMO: Esta pesquisa tem como ponto de partida o texto “Do tirar pelo natural”, concluído
em 1549 pelo artista e humanista português Francisco de Holanda (1517-1584).
Tal texto é considerado o primeiro da história da arte dedicado integralmente ao
retrato enquanto objeto artístico. Uma nova edição deste texto, além de uma
revisão historiográfica sobre a figura de Francisco de Holanda foram realizadas
dentro desta dissertação. Além disso, dois ensaios sobre a retratística em Portugal
durante o século XVI foram escritos levando em consideração não apenas “Do
tirar pelo natural”, mas também suas outras produções textuais e imagéticas.
Palavras-chave: Holanda, Francisco de (1517-1584), retrato, teoria do retrato,
Renascimento
ABSTRACT: This research has as first step the text “Do tirar pelo natural” (“To take from the
natural”), concluded in 1549 by the Portuguese artist and humanist Francisco de
Holanda (1517-1584). This text is considered the first in art history dedicated fully
to the portrait while artistic object. A new edition of the text, besides a
historiographic revision of Francisco de Holanda, was realized in this dissertation.
Moreover, two essays about portraiture in Portugal during the XVIth century were
written keeping in mind not only “Do tirar pelo natural” (“To take from the natural”),
but also Holanda‟s other texts and images.
Keywords: Holanda, Francisco de (1517-1584), portrait, portrait theory,
Renaissance
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ÍNDICE INTRODUÇÃO 11-18 CAPÍTULO 1 - FRANCISCO DE HOLANDA: MODOS DE CONSTRUIR 1.1. UMA REVISÃO HISTORIOGRÁFICA 19-40 1.2. CONTRIBUIÇÕES HISTORIOGRÁFICAS NO BRASIL 40-43 1.3. “DO TIRAR PELO NATURAL” E A HISTORIOGRAFIA DO RETRATO 43-45 CAPÍTULO 2 – POR UMA EDIÇÃO DE “DO TIRAR PELO NATURAL” 1. O PROCESSO DE REALIZAÇÃO 47-52 2. UMA NOVA EDIÇÃO EM PORTUGUÊS 53-75 3. O RETRATO SEGUNDO “DO TIRAR PELO NATURAL” 3.1. “FIGURA CAVATA DAL NATURALE” 76-77 3.2. RETRATISTAS E RETRATADOS 78-84 3.3. O PODER DO ROSTO 84-86 3.4. CORPOS VESTIDOS 86-89 3.5. “FINAIS AVISOS NO TIRAR AO NATURAL” 89-90 CAPÍTULO 3 – CONSIDERAÇÕES ACERCA DA FORTUNA CRÍTICA DE TIZIANO VECELLIO NA
PENÍNSULA IBÉRICA DURANTE O SÉCULO XVI 91-117 CAPÍTULO 4 – FRANCISCO DE HOLANDA E O RETRATO EM PORTUGAL 119-147 CONSIDERAÇÕES FINAIS 149-154 ANEXO - VERSÃO DIGITALIZADA DE “DO TIRAR PELO NATURAL”, TRANSCRITO POR
MONSENHOR GORDO, 1790 (ACADEMIA DE CIÊNCIAS DE LISBOA) 155-184 BIBLIOGRAFIA 185-190
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INTRODUÇÃO
A pintura não tem fim, senão começo.1
Um livro grande e páginas cobertas por rostos de desconhecidos a mim;
este foi o meu primeiro contato com o extenso universo da retratística. Estava no
início da iniciação científica e o impacto daquelas imagens me levou à decisão por
estudar Rembrandt van Rijn e seus quase cem auto-retratos realizados seja em
gravura, desenho ou pintura. Ao iniciar as leituras sobre o campo do retrato em si,
suas bases teóricas e históricas, era constante a referência de autores a um texto
intitulado “Do tirar pelo natural”, de 1549, escrito por um português chamado
Francisco de Holanda e considerado por estes como “a primeira teoria do retrato
da história da arte”.2
Estas esparsas linhas chamaram a atenção e, rapidamente, o texto até
então a mim desconhecido foi eleito novo objeto de pesquisa. Anos se passaram
e, de figurante, “Do tirar pelo natural” tornou-se protagonista em meus
questionamentos, desdobrando-se como objeto central desta pesquisa de
mestrado. Finalizado em 03 de janeiro de 1549, trata-se de um diálogo entre Brás
Pereira e Fernando (pseudônimo para o próprio Holanda) acerca da história, do
uso, da crítica e dos preceitos dos retratos, de sua realização e fruição. O
interesse do texto é extenso e sua abordagem não deve se limitar a algum tipo de
história da arte que valoriza apenas os grandes debutes, as obras inaugurais.
Além de ser bastante esclarecedor sobre o estatuto do retrato enquanto objeto
artístico dentro do dito Renascimento, suas palavras tem potência por, como
exemplo, citarem e analisarem artistas ainda ativos na época, além de
explicitarem algumas fontes para o discurso holandiano, nos dando material
suficiente a ponto de elegermos o seu estudo e sua problematização como central
1 HOLANDA, Francisco de. Da pintura antigua. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pág. 93. 2 “Somente o pintor da corte portuguesa Francisco de Holanda (1516/17-84) escreveu um tratado sobre retratística, o diálogo „Do tirar pelo natural‟, composto em 1549 e traduzido para o espanhol em 1563 por outro pintor, Manuel Denis” (Tradução livre) in: CAMPBELL, Lorne. Renaissance portraits – European portrait-painting in the 14
th, 15
th and 16
th centuries. Londres: Yale University
Press, 1990, pág. IX.
12
a uma pesquisa de pós-graduação. Após a definição do objeto, foi necessário
enfrentar a melancolia e escolher um formato para a estrutura de minha
argumentação. Qual teria e como poderia deixar claro que é possuidor de um rigor
e de uma pesquisa respeitáveis?
Se estou a construir um monumento3 a Francisco de Holanda, parece
importante, antes de comentar o seu texto, dedicar parte do meu à sua figura.
Quem foi ele e de quais formas outros historiadores da arte também ergueram
monumentos em sua memória? Mesmo não sendo portador de uma extensa
fortuna crítica, não foram poucos aqueles que dedicaram páginas à sua produção
– seja a classificando dentro do estilo “maneirista português”4, seja a relacionando
à produção artística na Itália5, seja tentando sintetizar suas reflexões estéticas6.
Devido a esses diversos recortes em seus textos e, por conseqüência, às
possíveis discrepâncias de informações no confronto de suas abordagens, a
primeira parte desta pesquisa lança luz sobre os modos pelos quais Francisco de
Holanda foi construído, a fim de ser montada uma base um pouco mais firme para
que, em seguida, nos dediquemos de forma pontual à sua obra.
A segunda e essencial coluna deste monumento foi a mais demorada
quanto à sua estrutura final. Mantém-se aqui a proposta presente desde o projeto
da pesquisa quanto à realização de uma edição em português do texto de
Holanda, ou seja, de um confronto entre as suas versões existentes atualmente,
visando sua reconstrução e possível aproximação mais verossímil com o
(infelizmente) original perdido. Para tal foi preciso ter em mãos a tradução
3 A palavra “monumento”, de origem latina (monumentum), tem o sentido de “evocar o passado,
perpetuar a recordação”. Portanto, ao definir um tema específico para uma pesquisa, de forma inevitável estarei a construir um monumento a tal. A outra aplicação da palavra, ou seja, a de “edifício imponente” será usada de forma recorrente neste texto como metáfora para si mesmo, como se a cada frase estivesse a escalonar material e erguendo um prédio. No conhecido artigo “Documento/monumento”, de Jacques Le Goff, há uma citação a Foucault esclarecedora a respeito dessa interpretação da palavra: “... a história é o que transforma os documentos em monumentos e o que, onde dantes se decifravam traços deixados pelos homens, onde dantes se tentava reconhecer em negativo o que ele tinham sido, apresenta agora uma massa de elementos que é preciso depois isolar, reagrupar, tornar pertinentes, colocar em relação, construir em conjunto” in LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora Unicamp, 2003. 4 SERRÃO, Vitor. O maneirismo e o estatuto social dos pintores portugueses. Lisboa, 1983. 5 DESWARTE-ROSA, Sylvie. Idéias e imagens em Portugal na época dos descobrimentos. Lisboa: Difel, 1992. 6 VILELA, José Stichini. Francisco de Holanda: vida, pensamento e obra. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1982.
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manuscrita para o castelhano, feita por Manuel Denis em 1563 (Academia de San
Fernando, Madri), a cópia de 1790 realizada pelas mãos de Monsenhor Gordo
(Academia de Ciências de Lisboa), sua primeira publicação no periódico “A vida
moderna”, em 1890 (Biblioteca Municipal do Porto) e sua segunda impressão,
realizada em 1984 e organizada por José da Felicidade Alves (Editora Livros
Horizonte, Lisboa). Além disso, foi essencial a existência do trabalho de John
Bury, lançado em 2008 (Ediciones Akal, Madri), de edição crítica da cópia
manuscrita em espanhol.
Através desta comparação de versões do texto, foi possível reeditá-lo
dentro desta dissertação, a fim de respeitar elementos particulares do escrever de
Francisco de Holanda, já ressaltados em artigo por Sylvie Deswarte-Rosa e não
levados à risca em nenhuma de suas publicações aqui citadas.7 O aparato crítico,
neste caso, será de relevância no sentido de demonstrar deturpações da escrita
holandiana que acabam por obscurecer ou modificar alguns conceitos originários.
Inserido neste momento do texto, nada mais justo do que valorizar as palavras de
Holanda, ou seja, apresentá-las de modo resumido e claro ao leitor. Um texto que
esclarece alguns dos principais tópicos de “Do tirar pelo natural” e estabelece
relações internas e externas à sua obra.
Dando continuidade, precisou-se também definir um formato para os
comentários acerca do texto e o leque de relações histórico-artísticas que
poderiam ser feitas. Inicialmente havia pensado em seguir um modelo bastante
conhecido dentre os pesquisadores da tradição clássica na história da arte, o dos
comentários construídos dentro das notas de rodapé, como na edição crítica da
“Vita di Michelangelo”, feita por Paola Barocchi8 ou, trazendo para um exemplo
7 A historiadora francesa, ao citar parte de “Do tirar pelo natural” – “Braz Pereira – Porque dissestes
que folgastes de não ter visto antes de escrever o vosso LIVRO DA PINTURA o que dela escreveu LEO Baptista?” -, em nota de rodapé, afirma que “Mantemos as palavras maiúsculas, características dos manuscritos de Francisco de Holanda, cuidadosamente reproduzidas na cópia manuscrita de Monsenhor Ferreira Gordo (Lisboa, Academia das Ciências, MS. Azul 650). Estas permitem ver, logo à primeira, as prioridades de Francisco de Holanda”. Ou seja: parece necessário, portanto, para esta reedição de seu texto, igualmente respeitar a forma mais próxima de sua originária, já que os manuscritos primeiros foram perdidos e, de acordo com Deswarte-Rosa, esta versão manuscrita seria a mais fidedigna à Holanda. 8 VASARI, Giorgio & BAROCCHI, Paola. La „Vita di Michelangelo‟ nelle redazioni del 1550 e del 1568, curata e commentata da P. B. Napoli-Milano: Ricciardi, 1962, vol. I-V. Em meu projeto de mestrado, inclusive, esta era citada como o modelo possível para o seu formato final.
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mais próximo ao nosso tema, as extensas e muito eruditas observações de Angel
González Garcia quanto ao “Da pintura antiga”.9 Nestes exemplos, porém, os
comentários geralmente são dados através de uma análise vertical, ou seja, os
comentadores (em especial González Garcia) realizam uma espécie de curta
arqueologia dos conceitos representados por palavras e frases contidas no texto
central à edição crítica.
Além deste modelo possível não satisfazer os meus anseios acadêmicos,
que sempre apontaram para tentativas de construir diálogos entre obras de
diferentes contextos histórico-artísticos através de ensaios baseados em recortes
temáticos, durante o processo de pesquisa me deparei com a já citada edição
crítica em espanhol do texto de Holanda e organizada pelo quase centenário John
Bury10. Mesmo que esta publicação esteja centrada na transcrição da tradução
castelhana feita por Manuel Denis em 1563, no que diz respeito ao seu aparato
crítico, aos seus comentários em notas de rodapé, trata-se de um trabalho
primoroso e que, inclusive, se dá ao trabalho de cotejar alguns termos do
espanhol em contraposição à única cópia manuscrita portuguesa que se tem
conhecimento, de 1790.
Por estas razões, portanto, esta pesquisa será trilhada de outra forma,
baseada na posição de abertura de olhar para o objeto; historicizar a arte de forma
mais ensaística, lendo as obras a partir de sua abertura já dada e contribuindo
com a permanência e alargamento de sua interpretação. Ao usar esta palavra
“abertura”, não esqueço do importante texto de Umberto Eco quando este afirma
que
... uma obra de arte, forma acabada e fechada em sua perfeição de organismo perfeitamente calibrado, é também aberta, isto é, passível de mil interpretações diferentes, sem que isto redunde em alteração de sua irreproduzível singularidade. Cada fruição é, assim, uma interpretação e uma execução, pois em cada fruição a obra revive numa perspectiva original.11
9 HOLANDA, Francisco de. Da pintura antiga / Francisco de Holanda: introdução e notas de Angel González Garcia. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. 10 HOLANDA, Franisco de. Del sacar por el natural – según la traducción de Manuel Denis (1563). Edição de John Bury. Madri: Ediciones Akal, 2008. 11 ECO, Umberto. A obra aberta. São Paulo: Editora Perspectiva, 1968, pág. 40.
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Espero que os textos seguintes, em vez de serem lidos no lugar do texto de
Francisco de Holanda, sejam considerados como esforços interpretativos que
acabam por incentivar outros leitores a dar mais atenção às palavras escritas pelo
português, dando prosseguimento à ampliação de leituras aqui sugerida. Como a
epígrafe aqui citada e escrita por Francisco de Holanda, creio que a história da
arte também pode ser construída a partir desta idéia de “começo”. Colocando de
forma mais clara, abordar uma imagem artística ou, como no caso desta pesquisa,
um texto relativo à teoria das artes visuais, pode ser uma experiência fundada em
um constante começar, sempre olhar para a obra como se fosse a primeira vez e
escapar dos esforços de interpretá-la integralmente. É essencial recorrer à
sensatez e ter consciência de que as minhas palavras nunca serão capazes de
substituir a potência do objeto em si, sempre maior e mais relevante do que os
comentários acerca do mesmo.
No lugar das notas de rodapé, optei por estabelecer alguns recortes
temáticos a partir do texto de Holanda e desenvolver ensaios críticos. Estes,
obviamente, respeitarão o conjunto de idéias artísticas presentes no seu corpus de
textos, além de estarem atentos à sua trajetória individual em Portugal e as
relações com seu ambiente cultural. Não negarei a história, mas também não
basearei minhas análises unicamente na diacronia, tentando, sempre que
possível, estabelecer relações sincrônicas a fim de iluminar a especificidade da
poética de Francisco de Holanda.
“Do tirar pelo natural”, a meu ver, seria aquilo que W. J. T. Mitchell define
como “imagemtexto”12; é sabido que no manuscrito original havia também
desenhos da mão de Holanda, a fim de ilustrar sua teoria do retrato, e mesmo no
que diz respeito à parte escrita, são recorrentes as citações a artistas ou mesmo a
imagens específicas. Portanto, nestes ensaios tentarei, sempre que possível,
construir análises não meramente textuais, chamando a atenção para a
12 “Eu irei empregar a convenção tipográfica da barra para designar „imagem/texto‟ como uma problemática brecha, rachadura ou ruptura na representação. O termo „imagemtexto‟ designa trabalhos compostos, sintéticos (ou conceitos) que combinam imagem e texto. „Imagem-texto‟, com a hífen, designa relação entre o visual e o verbal” (tradução livre) in MITCHEL, W. J. T. Picture theory: essays on verbal and visual representation. Chicago: University of Chiago Press, 1995, pág. 89.
16
discrepância ou confluência entre o que ele concretizou em língua portuguesa e o
que o próprio Holanda ou outros artistas citados realizaram no campo da
imagética. A via aqui precisa ser de mão dupla.
Quanto à abordagem geográfica de seu texto, diferentemente do percebido
na edição de John Bury, haverá um esforço em não utilizá-lo apenas como ponte
para as obras produzidas no então considerado “centro artístico da Europa”, ou
seja, a Itália. Outros ambientes, geralmente tidos como “periferias”13, tal qual o
próprio Portugal, a Espanha, a Inglaterra e os ditos “Países Baixos”, aparecerão
sempre que couber e elucidarem problemas definidos no texto de Francisco de
Holanda. É preciso, portanto, repensarmos aqui a posição geralmente periférica
ocupada por Portugal dentro da história da arte, tornando-o aqui o nosso centro,
ou mesmo deixando de lado a utilização desses termos debatidos por Carlo
Ginsburg e Enrico Castelnuovo.14
O terceiro capítulo lança luz sobre um elemento que salta aos olhos no
texto holandiano, o fato de que, mesmo sendo um ferrenho defensor e admirador
da arte de Michelangelo Buonarroti, o autor defina Tiziano Vecellio como sendo o
“mais famoso Pintor de Retratos” entre os cristãos15. Uma possível ponte para esta
frase seriam os escritos de Pietro Aretino, publicados anteriormente ao seu texto
e, quando lidos, claras fontes para seu repertório de definições quanto à
retratística. Por outro lado, será importante pensarmos aqui também se as obras
pictóricas de Tiziano (e a leitura que o autor imbui nelas) tiveram reflexo sobre os
retratos produzidos no ambiente da corte de D. João III e D. Sebastião, os reis de
Portugal presentes durante sua vida. Podemos falar em uma influência direta da
13 “Se o centro é por definição o lugar da criação artística e periferia significa simplesmente afastamento do centro, não resta senão considerar a periferia como sinônimo de atraso artístico, e o jogo está feito. Trata-se, bem vistas as coisas, de um esquema subtilmente tautológico que elimina as dificuldades em vez de tentar resolvê-las. Experimentemos antes aceitar os termos „centro‟ e „periferia‟ (e as respectivas relações) na sua complexidade: geográfica, política, econômica, religiosa – e artística. Imediatamente nos daremos conta de que isto significa pôr o nexo entre fenômenos artísticos e fenômenos extra-artísticos, subtraindo-se assim ao falso dilema entre criatividade em sentido idealista (o espírito que sopra onde quer) e socialismo primário” in GINSBURG, Carlo & CASTELNUOVO, Enrico. “Centro e periferia” in GINZBURG, Carlo & CASTELNUOVO, Enrico & PONI, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Editora Difel, 1991, págs. 6-7. 14 GINSBURG, Carlo & CASTELNUOVO, Enrico. Idem. 15 Citação extraída da edição crítica da presente dissertação de mestrado.
17
figura de Tiziano sobre a arte em Portugal, ou, então, seria melhor considerarmos
que sua imagética chega a terras portuguesas de forma indireta, pelas mãos de
outros artistas tais como Anthonis Mor (advindo dos “Países Baixos” e em Portugal
entre os anos de 1551 e 1552) e Alonso Sánchez Coello, criado na corte
portuguesa e, curiosamente, enviado para estudar com o pintor nórdico no ano da
finalização do texto holandiano?
Seguindo por esta trilha, o quarto capítulo diz respeito às relações dadas
entre Francisco de Holanda, seus textos e o que foi realizado artisticamente em
Portugal. Não estaria Francisco de Holanda em um impasse entre a tentativa de
aderir a um modelo de retrato de grande formato, pintado a óleo, protagonizado
por Tiziano e aquele que talvez seja a tradição local, representada por seu próprio
pai, Antonio de Holanda, caracterizada pelas miniaturas, árvores genealógicas e
iluminuras? Poderíamos considerar, portanto, o seu esforço teórico como uma
tentativa de “atualização” da retratística realizada em Portugal? E a sua própria
produção plástica? Seria italianizante ou estaria fundada na tradição portuguesa
das iluminuras? De quais modos ele influenciou e foi influenciado pela produção
de retratos em Portugal? Trata-se de um primeiro esforço interpretativo desta
produção de imagens em Portugal e das possibilidade de relacioná-las às
reflexões escritas por Francisco de Holanda.
Julgo que ensaios como esses tornam este trabalho em história da arte
mais rico e abrem a obra holandiana para outros futuros cruzamentos, retirando-a
duma certa marginalidade dentro das abordagens constantes à teoria do retrato
seja no dito Renascimento, seja de forma mais ampla enquanto problema
conceitual/cultural/histórico-artístico. De nenhuma forma quero dizer que estes
ensaios bastam; muito pelo contrário, creio que “Do tirar pelo natural” é
extremamente rico em problemas (não apenas) para os historiadores da arte e
pode ser trilhado de formas diversas, que são diretamente proporcionais aos
anseios daqueles que tem acesso ao mesmo. Os recortes que fiz passaram
primeiramente por um filtro, uma espécie de tesoura, e condizem com o tempo
proposto por essa primeira etapa da pós-graduação, o mestrado. Espero seguir
18
minha estrada acadêmica sem esquecer o texto holandiano e a pensar em outras
formas que minha tesoura poderá dar a ele.
Após estas considerações iniciais, cabe, como prometido, seguir com nosso
eterno começar, ou seja, erguer nossa primeira coluna deste monumento
refletindo sobre como Francisco de Holanda foi pintado de diversas formas pela
história da arte entre o século XIX e a contemporaneidade.
19
CAPÍTULO 1 FRANCISCO DE HOLANDA: MODOS DE CONSTRUIR
1.1. UMA REVISÃO HISTORIOGRÁFICA
O conde Athanasius Raczynski (1788-1874), embaixador do rei da Prússia,
Friedrich Wilhelm IV, foi enviado a Portugal no ano de 1842 e lá permaneceu
oficialmente até 1848. Amante das artes, Raczynski não possuía propriamente
uma formação em história da arte, o que não o impediu de publicar dois livros em
língua francesa, em Paris, sobre o desenvolvimento dos objetos artísticos em
Portugal.
Recém-chegado em Lisboa, Raczynski se associou à Academia de Belas-
Artes de Portugal e conheceu o Abade de Castro, futuro amigo e quem introduziu
ao estrangeiro a famosa Biblioteca de Jesus, local onde estavam guardados os
manuscritos de Francisco de Holanda, conforme argumenta Sylvie Deswarte-
Rosa.16
Devido à sua primeira publicação, dada em formato de cartas, intitulada
“Les arts en Portugal” (1846), ele foi o responsável por inaugurar a divulgação dos
escritos de Francisco de Holanda. O texto foi traduzido para o francês pelo seu
amigo pintor e integrante da Academia de Belas-Artes, Auguste Roquemont,
nascido na Suíça.
Se o conde merece todo o crédito por ter se esforçado nesta publicação e
nas demais, sendo inclusive considerado por alguns como o “fundador da história
da arte em Portugal”17
, por outro lado a sua publicação possui questões que não
podem passar despercebidas. Uma delas, a principal talvez, diz respeito ao fato
dele não ter publicado o primeiro livro18
de Holanda, o “Da pintura antiga”, obra
16 DESWARTE-ROSA, Sylvie. “Luz e sombra. Athanasius Raczynski em Portugal, 1842-1848”. Palestra proferida no IV Encontro de História da Arte da UNICAMP, no dia 08 de dezembro de 2008, no auditório do IFCH-UNICAMP. Publicação no prelo.
17 “Le comte Athanazy Raczynski est ainsi considéré à juste titre comme le fondateur de l‟histoire de
l‟art au Portugal” in Ibidem.
18 Francisco de Holanda escreve o “Da pintura antiga” em 1548 e o dividiu em duas partes. É de praxe entre os historiadores da arte chamarem a primeira, cujo formato é mais objetivo e dissertativo, dialogando com os textos de Aristóteles, de “Da pintura antiga” ou “primeiro livro”. Enquanto isso, a segunda parte, baseada no formato do diálogo, costuma ser chamada por “Diálogos em Roma” ou “segundo livro”.
20
com caráter mais doutrinário, por afirmar que este é “pouco interessante”.19
Ele
editou apenas o “Diálogos em Roma” dando-lhe o título de “Dialogue sur la
peinture dans la ville de Rome avec Michel-Ange”. Carecendo de grandes
aparatos críticos, colocando apenas uma ou outra nota de rodapé explicativas,
Raczynski faz uma pequena introdução onde diz que o texto de Francisco de
Holanda é “ingênuo, mas bizarro, e eu o acho mais divertido do que instrutivo”.20
Além disso, dentro de seu “Les arts en Portugal”, ele selecionou e publicou,
também com a ajuda de Roquemont, alguns trechos do “Da ciência do desenho”.
Raczynski sai de Lisboa em 1848 e se estabelece em Madri até 1852. Ele
se aposenta na seqüência e permanece o resto de sua vida em Berlim, a montar
sua galeria particular de pinturas. Joaquim de Vasconcellos, português, historiador
e amigo do Conde, o faz uma visita em 1871 e redige um esboço biográfico deste
publicado após a sua morte, em 1875.21
É Vasconcellos o editor das primeiras
publicações portuguesas das obras de Francisco de Holanda, especificamente o
“Da fábrica que falece à cidade de Lisboa” e o “Da ciência do desenho”, ambos em
1879.22
É ele também o responsável pelas primeiras tiragens em português de
“Diálogos em Roma”, “Da pintura antiga” e “Do tirar pelo natural” no semanário “A
vida moderna”, do Porto, entre os anos 1890 e 1892. Importantes fontes inseridas
em um jornal e sem qualquer aparato crítico, um dos problemas que podemos
constatar em sua edição (e que colocam este autor sob o viés de suas próprias
críticas dirigidas ao conde) é o fato deste não ter respeito à grafia holandiana;
inexiste uma correspondência ao modo como Francisco de Holanda se utilizava
das letras maiúsculas e minúsculas nos manuscritos e, além disso, algumas frases
foram excluídas e/ou reescritas de modo errado. Os erros de transcrição são
19 RACZYNSKI, Athanasius. Les Arts en Portugal. Lettres adressées à la Société artistique et scientifique de Berlin et accompagnées de Documents. Paris, Jules Renouard et C
ie, Libraires-
éditeurs, 1846, pág. 5.
20 Ibidem, pág. 146.
21 VASCONCELLOS, Joaquim de. Conde de Raczysnki (Athanasius) Esboço biographico. Porto, Imprensa Portugueza, 1875.
22 VASCONCELLOS, Joaquim de. Francisco de Hollanda. Da Fabrica que fallece à cidade de Lisboa. Da Sciencia do Desenho. Porto : Renascença Portugueza, IV, Imprensa Portuguesa, 1879.
21
poucos, mas existem.23
Mais tarde, em 1896, publica uma edição em separado e
com aparato crítico de “Diálogos em Roma” (Porto) e em 1899 realiza uma
tradução do mesmo para o alemão (Viena).24 Por fim, em 1910 edita e comenta o
“Da pintura antiga” (Porto).25
Em seus comentários introdutórios à edição de “Diálogos em Roma”, de
1896, a amizade entre Vasconcellos e Raczynski fica de lado e as críticas são
latentes:
O trabalho de Raczynski merece o nosso reconhecimento, foi o primeiro; comtudo elle não póde hoje satisfazer ninguem por duas razões, primeiro, porque traduzio mal, segundo, porque nos deu apenas um fragmento do texto. [...] Não é com uma traducçao libérrima que nos devemos contentar. Ora a traducçao de Roquemont é mais que libérrima, é absurda em muitos pontos. Raczynski, que não conhecia o portuguez, acceitou-a sem a discutir. [...] É inadmissível hoje a traducçao de Raczynski. São retalhos, n‟uma versão muito infiel, com mutilações de passagens importantissímas que o traductor Roquemont, pintor estrangeiro e amigo do conde, não entendeu. A parte critica é nulla. Do tratado Do tirar polo natural não diz uma
palavra (!) e do códice do Escurial teve apenas vaga noticia.26
Interessante constatar como a maior parte das críticas nesta citação gira
em torno do estrangeirismo de Raczynski e Roquemont, ou seja, foi necessário
que um português e bom historiador, dotado de uma vontade crítica, como
Vasconcellos nas entrelinhas acaba se auto-afirmando ao criticar o outro, para que
boas edições de Francisco de Holanda fossem realizadas. De qualquer modo, o
português inicia suas críticas reconhecendo a importância e valor de debute do
trabalho do já falecido amigo.
Devido às edições dos textos de Holanda em português e outras línguas27
,
os historiadores da arte especialistas em Michelangelo iniciam um debate sobre a
23 Mais detalhes sobre esta questão podem ser encontrados no capítulo 2 da presente dissertação, “Por uma edição crítica de „Do tirar pelo natural‟”.
24 VASCONCELLOS, Joaquim de. Francisco de Hollanda. Vier Gespräche über die Malerei geführ zu Rom 1538. Viena : Quellenschriften für Kunstgeschichte und Kunsttechnik des Mittelalters und der Neuzeit, IX, 1899. 25 DESWARTE-ROSA, Sylvie. “Luz e sombra. Athanasius Raczynski em Portugal, 1842-1848”. Palestra proferida no IV Encontro de História da Arte da UNICAMP, no dia 08 de dezembro de 2008, no auditório do IFCH-UNICAMP. Publicação no prelo. 26 VASCONCELLOS, Joaquim de. Francisco de Hollanda. Quatro dialogos. Da pintura antigua. Porto, 1986, pág. XXXVI apud Ibidem.
27 Maria Berbara cita as traduções de Grimm para o alemão, 1860 e de Gotti para o italiano em 1875. José da Felicidade Alves diz que “Das obras de Francisco d‟Holanda, foi esta a que mereceu
22
relação entre o “Diálogos em Roma” e a autenticidade das palavras do humanista
português. Por se tratar de um conjunto de quatro diálogos entre o autor português
e personalidades italianas famosas durante o Renascimento, com a inserção da
figura de Michelangelo Buonarroti em três diálogos, assim como também com a
presença textual de Lattanzio Tolommei e Vitoria Colonna (em dois diálogos), a
pergunta que fica é: teria Holanda efetivamente encontrado Michelangelo?
Aqueles diálogos teriam realmente ocorrido? Seriam ficção? Seriam memórias
deturpadas do então jovem português?
Como Maria Berbara aponta em artigo, Hans Tietze, por exemplo, em 1905,
irá argumentar contra qualquer relação óbvia de contato entre Holanda e
Michelangelo.28
Este formato literário, o diálogo entre homens ilustres, era algo
comum dentro do Renascimento, como no exemplo do famoso e possível
influência para o escritor português, “O cortesão”, de Baldassare Castiglione,
publicado pela primeira vez em 1528 em Veneza. Este texto inclusive foi dedicado
a um português, Dom Miguel da Silva (amigo de Francisco de Holanda) e teve seis
edições portuguesas entre os anos de 1534 e 1544.29
O texto do português,
portanto, pela mera inclusão de Michelangelo não poderia ser interpretado como
um documento de um possível encontro, podendo ser lido de outro modo, pelo
viés de um jogo retórico para que os leitores do texto dessem mais valor à arte
produzida em Portugal. Incluir Michelangelo era um artifício para que as palavras
de Holanda ganhassem mais peso e, consequentemente, as críticas ao mercado
de arte português colocadas em boca italiana fossem lidas com mais atenção a
fim de que mudanças dentro do lidar com as artes em Portugal fossem realizadas.
maior divulgação. Conhecemos oito edições do texto português e outras oito edições em traduções estrangeiras (alemão, castelhano, francês, italiano...)”. Cf. BERBARA, Maria. “Considerações sobre a participação michelangiana nos „Diálogos em Roma‟ de Francisco de Hollanda”. In: Camoniana. Volume 18. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2005. ALVES, José da Felicidade. Introdução ao estudo da obra de Francisco de Holanda. Lisboa, Livros Horizonte, 1986: pág. 31. 28 BERBARA, Maria. “Considerações sobre a participação michelangiana nos „Diálogos em Roma‟ de Francisco de Hollanda”. In: Camoniana. Volume 18. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2005. 29 DESWARTE-ROSA, Sylvie. Idéias e imagens e Portugal na época dos descobrimentos. Lisboa: Difel, 1992, pág. 146.
23
Indo por outra vertente, Robert J. Clements argumenta a favor da
autenticidade das palavras holandianas. Para tal, ele confronta as idéias
encontradas nos seus diálogos com as palavras escritas por Michelangelo e seus
biógrafos Ascanio Condivi e Giorgio Vasari. Ele irá se utilizar de uma análise
meramente textual quando, por exemplo, aproxima a palavra “entendimento”,
empregada por Holanda, com “inteletto”, escrita por Michelangelo na famosa
poesia “Non ha l‟ottimo artista alcun concetto”.30
Trata-se aqui de uma tentativa de
rastrear e conjugar o dito neoplatonismo de ambos, governados pela primazia da
idéia artística em detrimento da mimesis. O problema de sua interpretação, como
também aponta Berbara e John Bury, é que Clements deturpa as falas dos dois
artistas a fim de aproximá-los.31
Seu trabalho de leitura destas escritas fica na
superfície e ele não pensa em, por exemplo, relacionar de modo mais amplo e ter
em mente as variações de significados nas diversas escritas michelangelescas, de
diversas datações, e mesmo de levar em consideração os outros textos escritos
por Francisco de Holanda.
Tocando neste assunto, este me parece ser o primeiro parecer ao se
deparar com essas duas vertentes de abordagens de “Diálogos em Roma”: a
figura de Francisco de Holanda fica obscurecida e todo o debate enfoca a inclusão
de Michelangelo em suas argumentações. Seus outros textos não são citados e
estes historiadores apenas lançam seu olhar para a escrita portuguesa devido à
fatídica “presença” de Buonarroti; o texto vira trampolim para se interpretar a arte
do dito “Alto Renascimento”, ou seja, a arte produzida por Michelangelo e por
outros durante o século XVI e na Itália.
Enquanto isso, em território português, é possível afirmar que se firma uma
tradição que teve início com a figura de Joaquim de Vasconcellos, ou seja,
historiadores portugueses da arte começam a lançar seus olhares para a
paradigmática figura de Francisco de Holanda. Um dos primeiros a estudar sua
30 CLEMENTS, Robert. “The Authenticity of De Hollanda‟s Diálogos em Roma” in Publications of the Modern Language Association in America (PMLA), LXI, 1946, pp. 1018-1028. 31 BERBARA, Maria. “Considerações sobre a participação michelangiana nos „Diálogos em Roma‟ de Francisco de Hollanda”. In: Camoniana. Volume 18. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2005. BURY, John B. “Two notes on Francisco de Hollanda” in Warburg Institute Surveys. Londres: 1981, VII, pág 7.
24
obra é Jorge Segurado (1898-1990), arquiteto e responsável por uma edição em
fac-símile de seu “Da fábrica que falece à cidade de Lisboa” em conjunto com o
“Da ciência do desenho”.32
Este autor realiza um esforço por deixar claro que
Holanda não era um mero “pedreiro”, ou seja, um trabalhador braçal da
construção de edifícios, mas sim um pensador, um “arquitecto da Renascença”.33
Como o próprio afirma:
Para obter prova convincente, realizamos o que faltava fazer: um estudo analítico de crítica especializada das suas obras, no campo da Arquitectura. Para bem conhecer a sua qualidade de arquitecto, estudamos e revimos com cuidado os seus trabalhos de desenho, todo o seu labor de escritor humanista, lendo e relendo os seus tratados, que ocupam, na Europa de Quinhentos, um lugar de destaque,
que conseguimos fixar.34
Segurado é partidário de Vasconcellos e reafirma suas críticas quanto a
Raczynski, ao passo que enche o historiador português de elogios.35
Em sua
segunda publicação sobre o humanista português, intitulada “Sobre Francisco
D‟Ollanda”, de 1975, Segurado não poupará críticas nem a então incipiente Sylvie
Deswarte e ao historiador da arte norte-americano George Kubler36
, fonte
essencial para os estudos de arquitetura na América Latina. Posteriormente, em
1983, o autor ainda realiza uma edição do “De aetatibus mundi imagines”, o livro
das “Imagens das idades do mundo”, também de Holanda e que está na Biblioteca
Nacional da Espanha, em Madri.37
O seu trabalho é de capital importância pela
sua intimidade com a documentação consultada e pelo seu interesse em remontar
a biografia e trajetória holandianas a fim de reflexões a respeito de como as coisas
32 SEGURADO, JORGE. Francisco d‟Ollanda. Da sua vida e obras. Lisboa: Edições Excelsior, 1970. 33 Idem, pág. 40. 34 Idem, págs. 7-8. 35 “O Mestre e as suas obras, só se tornaram conhecidas no século dezanove quando Rackzinsky em 1846 e Joaquim de Vasconcelos em 1874, e 1893, publicaram, o primeiro muito deficientemente e na maior ignorância do autêntico valor do artista, trechos dos Dialogos e o segundo, durante muitos anos, com louvável persistência, todos os manuscritos, que estudou e comentou, com rigor, em especial o tratado Da Pintura Antigua e os Dialogos”. Ibidem, págs. 15-16. 36 SEGURADO, Jorge. Sobre Francisco d´Ollanda. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1975, págs. 223-226. 37 HOLANDA, Francisco de. De aetatibus Mundi Imagines. Edição facsimilada com estudo de Jorge Segurado. Lisboa : 1983.
25
vistas em Itália puderam influenciar seus textos e, consequentemente, suas
possíveis realizações em território português.
Seguindo pelo viés daqueles que editaram os textos de Francisco de
Holanda, também com grande importância deve ser lembrado o trabalho do padre
José da Felicidade Alves (1925-1998). Responsável pelas edições portuguesas
mais recentes de todos os textos de Holanda, além do “Álbum de desenhos das
antigualhas”, todas publicadas entre os anos de 1984 e 1986, também é o autor
de “Introdução ao estudo da obra de Francisco d‟Holanda”, livro com cunho
informativo e essencial para os estudiosos do humanista português.38
Mais do que uma introdução, trata-se de um trabalho feito com afinco e que
lança luz sobre a cronologia da vida de Holanda, além das fontes primárias que
contribuem com seu melhor conhecimento. Funciona como uma espécie de
incentivo e base para futuros estudos críticos e rastreia a obra de Francisco pelos
museus em Portugal e no exterior. Além disso, dá-se ao trabalho de dividir seu
texto em duas grandes áreas, ou seja, a “obra literária e artística” e a segunda
parte, os “apontamentos sobre a vida de Francisco d‟Holanda”. Na primeira parte,
divide os feitos do português por suporte: manuscritos iluminados, textos, cartas,
arquitetura, desenhos, miniatura, pintura, esculturas, gravuras e obras diversas.
Enquanto isso, na segunda parte, há uma tentativa de reconstituição da vida de
Holanda feita através de seus próprios textos e da documentação disponível.
Ao fim da obra ainda existem três apêndices. No primeiro, Felicidade Alves
relaciona a trajetória de Holanda com a história de Portugal, algo reforçado no
segundo apêndice que trata sobre a genealogia da casa real. No último apêndice,
talvez o mais interessante, ele compila textos de outros autores contemporâneos a
Holanda e que se refiram a este, ou seja, um testemunho de André de Resende,
epigramas de Pedro Sanches, Antonio Pinheiro, Jorge Coelho e Manuel da Costa.
O que foi escrito em latim é devidamente traduzido para o português.
O livro, com número considerável de páginas, serve perfeitamente como
obra de consulta essencial para aqueles que pesquisam as artes durante o
38 ALVES, José da Felicidade. Introdução ao estudo da obra de Francisco de Holanda. Lisboa, Livros Horizonte, 1986.
26
Renascimento em Portugal e precisam realizar uma rápida pesquisa no que diz
respeito à vida e obra de Francisco de Holanda. Mesmo que, infelizmente, este
não inclua imagens, ao comentá-las ele não as subjuga ao poder do texto, dando
a atenção necessária que estas merecem e vindo em uma via de mão dupla junto
às palavras escritas por Holanda.
Já José Stichini Vilela, diplomata e filósofo, dono de um trabalho cuja
pretensão é crítica e não editorial, enfoca as reflexões de seu livro “Francisco de
Holanda – vida, pensamento e obra”, de 1982, sua dissertação de licenciatura em
filosofia, em uma espécie de resumo do pensamento filosófico holandiano.39 Como
seu próprio título aponta, sem deixar de lado a “vida” e “obra” de Holanda, sendo
estas unidas e transformadas em seu primeiro capítulo, o autor parece ter mais
interesse em dissecar o pensamento artístico e estético do humanista português e
pensar nas suas relações com outros autores, seja da antiguidade, seja do
Renascimento, como que fazendo uma certa história das idéias.40
Seus objetos de
análise para tal são, majoritariamente, o “Da pintura antiga”, “Da ciência do
desenho” e “Da fábrica que falece à cidade de Lisboa”.
Após inserir Francisco de Holanda dentro dum projeto cultural de
revitalização artística em Portugal dirigido por D. João III, Stichini elenca as obras
feitas por suas mãos, porém de modo muito rápido e com a clara intenção de que
estas auxiliem sua leitura dos textos, subjugando a imagem à escrita, fazendo com
que a primeira seja um trampolim para o segunda. Seu interesse textual é tão
claro que não é incomum ter a sensação de que a argumentação é muito menos
crítica do que deveria ser, somando a isto ainda o tamanho extenso de suas
citações, soando mais como uma pequena compilação de outros textos que são
relacionáveis às reflexões de Holanda.
Stichini intitula uma seção de seu primeiro capítulo como “O estatuto social
do pintor” e nesta afirma que:
39 VILELA, José Stichini. Francisco de Holanda – vida, pensamento e obra. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1982. 40 Seu segundo e último capítulo, “O pensamento”, divide Francisco de Holanda em quatro eixos conceituais: a metafísica, a teoria do pintor, o processo pictórico e a teoria da história.
27
Um facto determina a redacção do „Da pintura antigua‟: a situação da arte em Portugal. Esta depende tanto da situação geográfica do país como da própria complexidade dum campo sobre o qual todos se julgam como direito de se
pronunciar...41
No mesmo capítulo ele disserta sobre os termos “maneirismo” e “barroco”:
Embora relativamente recente na sua forma actual, o conceito de „maneirismo‟, que tem muito remota origem na teoria vasariana das „maneiras‟, é um instrumento indispensável na história da cultura italiana do século XVI. Com efeito, entre 1520 e 1590 assiste-se a uma profunda alteração em todos os campos artísticos, a uma modificação global no sentido estético (...) Surgem então pintores como o Parmigianino, Pontormo, Lelio Orso, além do próprio Miguel Ângelo, manifestações dum espírito que passará a dominar a
cultura européia, marcando-a fortemente e preparando o advento do Barroco.42
Esse somatório de tópicos, a proximidade textual da relação entre os textos
holandianos e o estatuto social do artista em Portugal e, logo após, a relação que
Stichini faz entre os mesmos e os conceitos estilísticos de “maneirismo” e
“barroco”, fazem ecoar os escritos de outro historiador da arte português, Vitor
Serrão (1952-), professor da Universidade de Lisboa. Este é citado apenas através
de uma obra na bibliografia de Stichini, visto que o livro deste último foi publicado
em janeiro de 1982 e os livros do primeiro passam a ser publicados com
freqüência a partir do mesmo ano; creio que o livro de Stichini seja anterior.
Serrão tornou-se conhecido após a publicação de seus dois primeiros livros,
a dizer, “A pintura maneirista” e sua dissertação de mestrado, “O maneirismo e o
estatuto social dos pintores”.43
Neste segundo, fazendo uma ponte com o texto de
José Stichini Vilela, o autor disserta sobre a transição de “servil artesão até a de
artista independente, individualizado como criador e com alguma importância no
tecido social”44
dentro de Portugal. Trata-se de uma “história social da arte” cuja
idéia central é comprovar através de vasta documentação que, com o surgir do
“maneirismo”, ou seja, da segunda metade do século XVI ao final da primeira
41 Ibidem, pág. 39. 42 VILELA, José Stichini. Francisco de Holanda – vida, pensamento e obra. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1982, pág. 35-36. 43 SERRÃO, Vitor. A pintura maneirista. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação e das Universiadades, 1982. SERRÃO, VITOR. O maneirismo e o estatuto social dos pintores. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983. 44 SERRÃO, VITOR. O maneirismo e o estatuto social dos pintores. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982, pág. 9.
28
metade do século XVII, segundo o autor, os artistas em Portugal foram elevados a
um novo estatuto, como que em tentativa de emular a posição em que os artistas
italianos se encontravam desde a primeira metade do século XIV, com a célebre
figura de um Giotto, por exemplo. O historiador da arte exemplifica os diferentes
tipos de pintores existentes (de têmpera, de estofado, dourado, dentre outros) e
explicita que o mais importante deles, no sentido do reconhecimento, era o pintor
de óleo.
O autor merece atenção por ter aberto espaço para abordar um período da
arte em Portugal até então não muito comentado por outros historiadores,
valendo-se de documentação confiável, publicada e compartilhada com o meio
acadêmico. Sua opção por publicar os documentos citados na íntegra e como
apêndice de seus livros, não apenas deixando-os flutuar como citações, é
memorável. O problema dentro de sua escrita, porém, é o modo como ele
homogeneíza os mais diversos artistas através da palavra “maneirismo”. Ele
chega a afirmar que este foi o “primeiro estilo internacional depois do Gótico”45
e,
sempre que possível, o escreve com uma letra “m” maiúscula. Ele afirma que o
Renascimento foi um “fenômeno cultural e ideológico especificamente italiano”46
,
deixando a Portugal um papel menor e que apenas ganharia amplitude com o
despertar do “maneirismo”. Sempre que possível Serrão denota seu débito com
outro historiador português, Adriano de Gusmão, que diz:
Italianizámo-nos, sem dúvida, mas, em regra, sem uma subordinação perfeita aos moldes italianos, ainda que num decidido caminho de modernização. Os nossos artistas como que souberam, por instinto, incorporar, em certos constantes tradicionais, a nova expressão cultural que seduzia quase toda a Europa. Não já, bem entendido, a renascentista propriamente dita, que não recolhêramos em devido tempo, vinculada então aos flamengos, quem sabe se para guardar o nosso próprio carácter. Mas seguimos afinal, discretamente, os novos padrões do Maneirismo, não tanto na finura, elegância e voluptuosidade dos mestres de Parma ou Florença, mas sobretudo na feição mais austera e clássica dos romanistas, a
que mais quadraria, certamente, a uma sociedade que aderira à Contra-Reforma.47
45 SERRÃO, VITOR. O maneirismo e o estatuto social dos pintores. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982, pag. 28. 46 Ibidem, pág. 32. 47 GUSMÃO, Adriano de. apud SERRÃO, VITOR. Ibidem, pág. 46.
29
Há aqui uma crença em certo “caráter da arte portuguesa”, uma
“portuguesidade” na arte “maneirista”. O excesso de aspas necessárias para se
falar destes termos já denota o perigo em utilizá-los devido ao seu caráter
generalizante e por acreditarem em certa essência artística portuguesa. Temos o
problema do estilo muito claro na escrita de Vitor Serrão e, como afirma
sabiamente Hans Belting, “o „estilo‟ também é um pólo oposto do indivíduo e uma
garantia da visão pura que se encontra em todos os homens e não parece ligada a
nenhum saber cultural prévio”.48
Utilizar-se do discurso dos estilos artísticos, no caso de Vitor Serrão, é
silenciar a potência das obras de arte e construir um monumento a uma crença de
que durante a segunda metade do século XVI em Portugal, a arte foi um reflexo da
“luta de classes” entre os pintores de óleo e a nobreza, além de refletir uma “crise
espiritual” da população portuguesa, dada pelas reformas religiosas.49
Em “Estudos de pintura maneirista e barroca”, de 1989, estas questões
permanecem e são ampliadas. O termo “maneirismo” ganha um companheiro, o
“barroco”, e em dado momento o autor chega a afirmar que a arte do
Renascimento não se fez presente em Portugal devido à “tradicional construção
gótica” que “assumiu-se factor de resistência”.50
O que o autor acaba por fazer é
48 BELTING, Hans. O fim da história da arte – uma revisão dez anos depois. São Paulo : Cosac & Naify, 2006, pág. 48. 49 “Em meados de Quinhentos, Portugal evoluiu, em termos estéticos, e acompanhando um fenômeno de modernidade que (oriundo de Itália) ganhava foros de dominante por todo o espaço europeu, para um novo formulário artístico que é hoje designado por Maneirismo. Este novo „estilo‟ que refletia uma rebelião equívoca contra os valores normativos e de equilíbrio do Renascimento, ganhou forma generalizada no gosto dos pintores e clientes portugueses através de obras em que as figuras adquirem anômalo alteamento dentro dos cânones deformativos italianos, em que a cor outrora garrida dos „primitivos‟ atinge tonalidades de opulência opaca, em que os espaços das composições são deliberadamente distorcidos, para acentuarem efeitos ambíguos, e em que o anterior „naturalismo‟ classicista evoluiu para estranhos efeitos de teatralidade e de afectação. É o período denominado „maneirista‟, que em Portugal corresponde aos anos 1560-1620 grosso modo ao ideário militante da igreja tridentina (que via na pintura o adequado instrumento catequítico de propagação da fé e coberta das populações contra os „perigos‟ e „desvios‟ da Reforma, contra as imagens dissolutas e de falso dogma, etc)” in SERRÃO, Vitor. Estudos de pintura maneirista e barroca. Lisboa: Editorial Cominho, 1989, pág. 73. 50 “... delimitar às justas proporções o espólio renascentista existente no país, que é na realidade muito escasso. Compreende-se hoje o porquê desse facto: a tradicional construção gótica, que entre nós teve também um prolongamento anacrônico (através do brilhante „ciclo manuelino‟), assumiu-se factor de resistência – como de resto em outros domínios artísticos, como a pintura, a iluminura, a escultura, etc – à penetração dos eruditos modelos clássicos do Renascimento; apenas em casos esporádicos, e com um carácter experimental (que a intervenção esclarecida de
30
interligar os momentos de dito “anti-classicismo” da arte em Portugal e criar um
sentido entre eles. A presença do “estilo manuelino” fez com que a “arte
renascentista”51
não tivesse grande força em Portugal, ao contrário do
“maneirismo” que, por sua vez, irá desembocar no “barroco”.52
Temos neste
recorte de seu discurso uma má combinação do pior que podemos extrair de
Arnold Hauser e sua “História social da arte e da literatura” (1950), e de Heinrich
Wölfflin e seus “Conceitos fundamentais de história da arte” (1915).
E quem foi Francisco de Holanda, segundo Vitor Serrão?
Francisco de Holanda, sobre cujo papel de teorizador maneirista teremos oportunidade de nos debruçar noutros capítulos, esteve na Península Itálica entre 1538 e 1540, como é por demais conhecido, tendo-se insinuado nos círculos humanísticos de Vittoria Colonna e convivido intimamente com Miguel Ângelo e outras figuras gradas da cultura artística do Renascimento. Mais importantes no processo de desabrochar de uma pintura maneirista em Portugal terão sido, porém, os pintores António Campelo e Gaspar Dias, estagiários em Roma por volta do quinto e sexto decênios do século XVI, segundo o fidedigno depoimento de Félix da Costa Meesen...53
Para Serrão, Francisco de Holanda foi isto: um “puro teorizador maneirista”,
“passado à margem do nosso movimento cultural, jazendo nas gavetas à míngua
de editor, dada a excessiva modernidade revelada”.54
Como para o historiador o
“maneirismo” foi uma “corrente irracional de rebelião declarada contra o legado
classicista do Renascimento” e também uma “„situação estética e cultural‟ hoje
perfeitamente reconhecível por características próprias que dentro de um
denominador comum anticlassicista e antinaturalista soube incorporar-se tanto às
inquietações da reforma luterana como da contra-reforma tridentina” 55
, ele é
mecenas, e nobre imbuídos de espírito humanista, justifica), se desenvolveram soluções construtivas puramente renascentistas (a Igreja do Mosteiro da Mitra, perto de Évora, o Claustro da Manga, em Coimbra, a Igreja da Conceição, de Tomar), obviamente sem condições de subverter gostos e tendências enraizadas”. Ibidem, pág. 370. 51 O termo, para Serrão, quer dizer a arte do século XV e começo do século XVI, até a proliferação das “formas serpentinadas” e curvilíneas, como na Capela Sistina de Michelangelo Buonarroti e que já seriam o “maneirismo”. 52 Fazendo coro a isto, Vitor Serrão possui um livro intitulado A pintura proto-barroca em Portugal. 1617-1652 : triunfo do naturalismo e do tenebrismo. Lisboa: Edições Colibri, 2000. 53 SERRÃO, VITOR. O maneirismo e o estatuto social dos pintores. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982, pág. 38. 54 Ibidem, pág. 236. 55 SERRÃO, Vitor. Estudos de pintura maneirista e barroca. Lisboa: Editorial Cominho, 1989, pág. 368.
31
incapaz de dissecar as palavras holandianas e vê-lo para além desta gaveta em
que o inseriu.
Seria Francisco de Holanda um “maneirista”? Teria ele pouco efeito sobre o
ambiente artístico português? E por quê? Seria porque ele não foi enviado a Roma
na segunda metade do século, ou seja, não foi enviado no momento propício para
a “rebelião artística portuguesa”? Seria ele um “rebelde anti-clássico”? Aliás, ser
anti-clássico pode ser sinônimo de rebeldia? Não poderíamos interpretar o termo
como dependente do clássico, visto que a este que está fazendo oposição?
Mais de vinte anos após a sua dissertação de mestrado, Serrão publica, em
2008, o livro “A trans-memória das imagens”.56 Destoando de todo o material
anterior que tive acesso, o autor começa sua introdução explicitando sua dívida
com Aby Warburg e seu conceito de pathosformel, daí advindo sua vontade de
analisar obras e seu trans-correr no tempo, suas diversas interpretações e
recepções por diferentes contextos histórico-artísticos. Vale citar:
É precisamente esta circularidade dinâmica das imagens artísticas, esta dialéctica de relação constante entre o que foi e o que é, que atesta a sua força memorial e valoriza o seu poder de comunicação face a tempos e públicos distintos. Não faz sentido em nenhuma circunstância – para mim não o faz – ver as obras de arte como um produto acabado, que não caberia interrogar nem questionar, em nome de uma ordem afectiva absoluta... Sim, as imagens artísticas têm de ser interrogadas segundo programas estruturados de fruição e questionamento, a fim de nos mostrarem o muito que encerram das suas memórias ocultas, esquecidas
pela alteração das suas funções e objetivos primeiros.57
Ao ler este trecho temos a impressão de estarmos a lidar com outro
historiador da arte, não aquele anterior baseado em ampla documentação e
argüição sociológica e também utilizador desenfreado dos estilos artísticos. Ao
lermos sua bibliografia, os nomes de Panofsky, Gombrich, Didi-Hubermann,
Benjamin, Warburg, Schapiro e Saxl saltam aos olhos, assim como suas
referências à idéia de “Iconologia”, tão latentes nos escritos, por exemplo, de W. J.
T. Mitchell.58
Porém, ainda na página de número vinte, ao confrontar duas obras a
56 SERRÃO, Vitor. A trans-memória das imagens. Lisboa: Editora Cosmos, 2008. 57 Ibidem, pág. 19. 58 MITCHELL, W. J. T. Iconology – image, text, ideology. Chicago: University of Chicago Press, 1987.
32
fim de explicitar sua abordagem da “trans-memória”, Serrão como que revitaliza as
idéias de seus textos mais antigos:
... vejam-se por exemplo, os dois retratos de D. Sebastião (Museu Nacional de Arte Antiga e Convento das Descalzas Reales), por Cristóvão de Morais, um dos nosso artistas maiores da fase maneirista, ou a „Natureza Morta com peixe, caranguejo, laranjas e cebolas‟ (Louvre), de Baltazar Gomes Figueira, óptimo pintor do naturalismo barroco...59
Estas categorias de análise grifadas parecem destoar de todo o belo projeto
anunciado pelo autor de que “... todas as obras de arte produzidas pela
humanidade podem ser consideradas contemporâneas ou, pelo menos, dotadas
de um olhar contemporâneo”60
, justamente por serem advindas daquilo que Belting
chama por “herança indesejada da modernidade”61
, ou seja, o “estilo”.
De modo curioso, quiçá irônico, Sylvie Deswarte-Rosa publica em catálogo
organizado por Vitor Serrão, em 1995, “A pintura maneirista em Portugal. Arte no
tempo de Camões”, um texto intitulado “Francisco de Holanda. Maniera e Idea”.62
Em sua argumentação, a autora faz uma preciosa crítica ao termo “maneirismo”,
indo como que de frente ao título da própria exposição e de seu catálogo. Ela
parte de Wölfflin e da sua oposição entre “Renascença” e “Barroco”, dada através
de uma história interna das formas, em livro de mesmo título, publicado em 188863
e analisa os discursos de Alöis Riegl, Luigi Lanzi e Walter Friedländer. Sobre este
último:
Foi o que fez Walter Friedländer numa conferência proferida na universidade de Friburgo em 1914 e publicada em 1925, com o título de “Le style anti-classique”, que marca o início da verdadeira reabilitação do termo Maneirismo. Este autor sublinha o papel capital de Michelangelo, apesar de lhe contestar, de maneira pouco convincente, o mérito de ter sido o iniciador desse processo. Nessa conferência, define o Maneirismo sobre bases essencialmente morfológicas, e vê, nas obras de Pontormo, Parmigianino e Rosso uma rebelião, inspirada em grande parte, em sua opinião, por Dürer e a arte “gótica”, contra o ideal estético do Renascimento.
59 SERRÃO, Vitor. Idem, pág. 20. (grifo meu) 60 Ibidem, pág. 21. 61 BELTING, Hans. “Capítulo 4: A herança indesejada da modernidade : estilo e história” in O fim da história da arte – uma revisão dez anos depois. São Paulo : Cosac & Naify, 2006, págs. 41-50. 62 DESWARTE-ROSA, Sylvie. “Francisco de Holanda: maniera e idea” in A pintura maneirista em Portugal. Arte no tempo de Camões. Lisboa, 1995, págs. 59-88. 63 WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e barroco. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989.
33
Aos olhos de Friedländer, esses três paladinos do Maneirismo, criadores do “estilo nobre, puro, idealista e antinaturalista que vai de 1520 a 1550”, surgiam como os elementos-chave de uma daqueles antíteses históricas da dialéctica transcendente hegeliana, que já produzira, em Wölfflin, a noção de uma Kunstgeschichte ohne Namen, uma “história da arte sem nomes”, em que o indivíduo não tem qualquer importância face ao determinismo histórico.64
Lutando contra essa corrente historiográfica, Deswarte-Rosa explica a
origem da palavra “maniera” no sentido vasariano, ou seja, “maniera” como
assinatura, como estilo pessoal, como presença marcante e perceptível da mão de
dado artista em dada obra. Aproxima o “Da pintura antiga” das “divergentes
interpretações modernas do Maneirismo: liberdade criadora, transformação
estilística, idéia platônica como fundamento filosófico”65
, mas, na seqüência é
capaz de desconstruir esse conceito criado pela historiografia alemã da arte no
século XIX e, (in)diretamente, criticar os próprios escritos de Vitor Serrão.
A primeira publicação de Sylvie Deswarte-Rosa sobre Francisco de
Holanda data de 1975.66
Francesa, atualmente professora da École Normale
Supérieure de Lyon, esta foi orientada por André Chastel em sua tese de
doutorado que versava sobre o pai de Francisco de Holanda, Antonio de Holanda
e as iluminuras da “Leitura Nova”.67
É autora de extenso número de publicações
sobre Holanda, o humanismo em Portugal e as artes visuais na Península
Ibérica68
. Deswarte-Rosa expandiu de pouco a pouco o “problema Francisco de
Holanda” e escreveu textos que giram em torno dos integrantes da corte de D.
João III e, cada um de um modo, também lançam luz sobre a figura do humanista
64 DESWARTE-ROSA, Sylvie, op. cit., pág. 74. 65 DESWARTE-ROSA, Sylvie. “Francisco de Holanda: maniera e idea” in A pintura maneirista em Portugal. Arte no tempo de Camões. Lisboa, 1995, pág. 88. 66 DESWARTE, Sylvie. “Contribution à la connaissance de Francisco de Holanda” in Arquivos do Centro Cultural Português, 7, Paris, 1973, págs. 421-429. 67 DESWARTE, Sylvie. Les enluminures de la Leitura Nova. 1504-1552. Étude sur la cultura artistique au Portugal au temps de l‟Humanisme. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian / Centro Cultural Português, 1977. 68 DESWARTE, Sylvie. “Deux artistes mystiques du XVIe siècle: Francisco de Holanda et Jean Duvet” in Les rapports culturels et littéraires entre le Portugal et la France. Actes du colloque. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, págs. 123-133. DESWARTE-ROSA, Sylvie. “Antiquité et nouveaux mondes. A propos de Francisco de Holanda” in Revue de l‟art, v. 68, 1985, págs. 55-72. DESWARTE-ROSA, Sylvie. Il „Perfetto Cortegiano‟ D. Miguel da Silva. Roma: Bulzoni, 1989. DESWARTE-ROSA, Sylvie. “Le cardinal Ricci et Philippe II: cadeaux d‟ouevres d‟art et envoi d‟artiste” in Revue de l‟art, 88, Paris, 1990,págs. 52-63. A historiadora é autora de mais de trinta artigos dentre publicações internacionais em história da arte e da cultura.
34
português. Geralmente eles são publicados junto a documentos raros transcritos e
podem ser encontrados predominantemente em francês, italiano ou português.
Em 1992, a autora ampliou e revisou quatro de seus artigos e estes foram
transformados em um livro intitulado “Idéias e imagens em Portugal na época dos
descobrimentos”.69
A historiadora da arte lida precisamente com o “Da pintura
antiga”, valorizando um texto que, antes de seu trabalho, geralmente era estudado
em conjunto com o “Diálogos em Roma”, seja devido aos seus manuscritos
originários terem estado um dia compilados juntos, seja devido também ao ano de
finalização de suas escritas ser o mesmo, 1548. Deswarte-Rosa percebe na
escrita holandiana a utilização do conceito de “idéia” de modo análogo à sua
utilização pela filosofia neoplatônica durante o Renascimento através,
principalmente, das figuras de Marsilio Ficino e Giulio Camillo, além de
ressonâncias deste conceito nas escritas de outros humanistas célebres como o
próprio Michelangelo Buonarroti, Baldassare Castiglione, Federico Zuccaro e
Giovan Paolo Lomazzo.
O argumento central de seu livro é que, diferente do exposto por Erwin
Panofsky em seu “Idea: a evolução do conceito de belo”70, que argumenta que
Lomazzo e Zuccaro teriam sido os primeiros responsáveis pela articulação deste
conceito transcendental e neoplatônico dentro da teoria artística com seus textos
“Idéia do templo da pintura” (Milão, 1590) e “Idéia dos pintores, escultores e
arquitetos” (Turim, 1607), o português Francisco de Holanda, cinqüenta anos
antes, já teria feito tal articulação. Isso faria com que o humanista português fosse
visto com outros olhos contemporaneamente, ou seja, como um grande erudito e
de modo oposto à sua primeira interpretação dada por Raczynski e que, em
segunda instância, tal descoberta denunciasse uma ignorância por parte de
Panofsky em seu texto.
Para empreender tal missão historiográfica, Sylvie Deswarte-Rosa busca,
das mais diversas formas, encontrar estas ressonâncias no “Da pintura antiga”. De
certo modo ela me parece dialogar com a proposta de José Stichini Vilela, tendo
69 DESWARTE-ROSA, Sylvie. Idéias e imagens em Portugal na época dos descobrimentos. Lisboa : Editor Difel, 1992. 70 PANOFSKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito de belo. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
35
como diferencial o fato de ser uma historiadora da arte, não uma filósofa, mas
insistindo na relação entre as palavras holandianas e suas imagens com uma
certa “teoria das idéias”. Mesmo criticando a abordagem de Panofsky, parece que
é a ele a quem ela mais deve, se fossemos relacionar seu livro a alguma vertente
da tradição historiográfica.
Se por um lado é perceptível um empreendimento por não se utilizar de
Holanda apenas para se pensar a arte feita na Itália (por mais que a maior parte
de suas análises gire em torno disso), fazendo com que a autora lance também
informações que dizem respeito à arte em Portugal e também no dito “Norte da
Europa”, por outro constatamos certa avalanche textual. Em meio ao seu esforço
pela “verdade histórica”, em meio às suas certezas, não é difícil se perder ao ler
sua argumentação e suas enormes e, vez ou outra, prolixas notas de rodapé. As
imagens viram apoio para os textos, como que não tendo uma vida própria, e
apenas ali estando para comprovar que tal referência textual é possível de ser
feita. A autora pontua suas frases, sempre que possível, com os termos “sem
dúvida” e “com certeza”. Trata-se de um trabalho de grande fôlego acadêmico, de
grande erudição e que veio ao mundo para não deixar o leitor com dúvida alguma
da relação entre Francisco de Holanda e o pensamento neoplatônico.
Não estou a dizer que o trabalho de Deswarte-Rosa não é digno de elogios;
muito pelo contrário, o mesmo é inigualável. O problema, porém, se dá na forma
como a autora escreve, um tanto quanto sufocante e um tanto “fechada”, de modo
que Francisco de Holanda parece mais um elemento aprisionado por suas
análises do que um objeto que foi analisado e que continua ali e disponível para
que outros acadêmicos lancem seu diferente olhar sobre. Tenho a impressão de
que a melhor forma de se lidar com a obra de Deswarte-Rosa é ler os seus artigos
de modo individual, a fim de conseguirmos digerir com certo tempo suas análises
e, claro, buscar as fontes onde a mesma consultou para acompanhar o seu
raciocínio sem perder de vista a figura de Francisco de Holanda.
Ironicamente, porém, do mesmo modo que as supracitadas palavras desta
se enquadravam com certo aspecto da escrita de Serrão, as palavras deste em
36
seu livro mais recente parecem também se enquadrar com esta análise da
produção historiográfica da autora francesa:
Após a morte dos seus fundadores, a Iconologia perdeu-se em exercícios que visavam encontrar tão-só a fonte escrita ou gravador de determinada imagem, recorrendo-se a uma pesquisa estéril nos mais obscuros manuscritos e nas mais crípticas passagens dos tratados de teologia medieval ou da literatura clássica, a fim de se identificar e explicar o significado intrínseco „de uma determinada
imagem‟.71
No final de seu livro, a autora chega a afirmar que Francisco de Holanda é
uma espécie de precursor do Romantismo, ou seja, a sua utilização de conceitos
neoplatônicos reverbera na idéia futura de gênio artístico:
... Francisco de Holanda está na origem de uma corrente filosófica na teoria da arte ocidental que leva à Estética, expressão que emprega Alexander Baumgarten o primeiro tomo de Aesthetica em 1750, dando o nome à disciplina, e a Hegel, sem falar dos teóricos do Romantismo sobejamente devedores do neoplatonismo. Ao fim e ao cabo, é Francisco de Holanda que exprime pela primeira vez, de maneira completa e coerente, o que se tornará o conceito moderno da inspiração artística na pintura.72
Teríamos em Deswarte-Rosa uma abordagem um tanto quanto
fantasmática que recorda o problema do “maneirismo” em Vitor Serrão? Sua
insistência na relação entre Holanda e o neoplatonismo, além da argumentação de
que sua abordagem foi dotada de “originalidade” (nos sentidos de “origem”, “ser o
primeiro” e também no sentido de “ser original”, “ser o único”) seriam pontos
passíveis de revisão?
Temeroso com esta leitura feita pela francesa, o historiador inglês John
Bury escreveu à “Revue de l‟art”, em 1985, uma provocação a um artigo desta,
“Antiquité et nouveaux mondes. A propos de Francisco de Holanda”, publicado no
mesmo ano.73 Após dizer que as argumentações de Deswarte-Rosa poderiam ter
71 SERRÃO, Vitor. A trans-memória das imagens. Lisboa: Editora Cosmos, 2008, pág. 311. 72 DESWARTE-ROSA, Sylvie. Idéias e imagens em Portugal na época dos descobrimentos. Lisboa: Editor Difel, 1992, pág. 235. 73 DESWARTE-ROSA, Sylvie. “Antiquité et nouveaux mondes. A propos de Francisco de Holanda” in Revue de l‟art, v. 68, 1985, págs. 55-72.
37
sido “... mais simplesmente e obviamente explicadas...”, ele critica de modo
incisivo como ela aborda o humanista português:
I believe it is important to recognize Holanda‟s limitations because there has been a tendency to present him as an innovator in the fields of architecture, painting, art theory and even theology and philosophy, thus distorting his real gifts and real worth. I fear that (no doubt inadvertently) Dr. Deswarte‟s fascinating article may tend to assist this mythologizing process, as for example when she pays him the left-handed compliment of calling him „presque moderne‟. I hope therefore that you will be able to print this letter in order to help restore to Holanda his true identity, which he seems at present to be in some danger of losing.74
Das certezas de Sylvie Deswarte-Rosa para as hipóteses de John Bury. Da
primeira pessoa do plural para a primeira pessoa do singular. Acadêmico não
vinculado a nenhuma universidade específica, tendo trabalhado durante sua vida
com a indústria do petróleo e também como diplomata, Bury apresenta um
diferencial em relação aos outros historiadores que lidaram com a obra de
Francisco de Holanda: foi capaz de analisar individualmente cada obra do
humanista português. Ele possui um artigo sobre o debate da autenticidade das
palavras holandianas no “Diálogos em Roma”, sem deixar de tocar no “Da pintura
antiga”75, além de escrever também sobre as imagens da criação dentro do “Livro
das idades”76 e, por fim, enfocar a maior parte de seus estudos na questão da
arquitetura em Portugal, dada pelo “Da fábrica que falece à cidade de Lisboa” e
pelo “Da ciência do desenho”77. Exemplo único dentro da historiografia da arte, ele
escreveu dois textos sobre “Do tirar pelo natural”, além de editá-lo.78
Diferente de Sylvie Deswarte-Rosa, que enfocou seus estudos no “Da
pintura antiga” e sempre está a associá-lo ao neoplatonismo, com John Bury
temos a presença do recorte específico, quer dizer, o autor não chega perto de
uma crença na totalidade de sua abordagem, na capacidade de se provar algo ao
74 BURY, John B. “Correspondance” in Revue de l‟art, v. 73, 1986, pág. 69-70. 75 BURY, John B. “Two notes on Francisco de Hollanda” in Warburg Institute Surveys. Londres, VII, 1981, p. 1-25. 76 BURY, John B. “Francisco de Holanda and his illustrations of the Creation” in Portuguese studies, v. 2, 1986, págs. 15-47. 77 BURY, John B. “The loggetta in 1540” in The Burlington Magazine, CXXII, 1980, págs. 631-633. 78 HOLANDA, Franisco de & BURY, John B. “Del sacar por el natural – según la traducción de Manuel Denis (1563)”. Madri: Ediciones Akal, 2008.
38
leitor. Em suas argumentações, portanto, um aspecto de determinada obra escrita
por Francisco de Holanda será escolhido e, dentro deste, algumas trilhas serão
abertas e desenvolvidas pelo autor, mas nunca de modo que vise eliminar a
“abertura da obra”, colocando em termos expostos por Umberto Eco.79
Em seu artigo “Francisco de Holanda and his illustrations of the creation”,
por exemplo, após fazer uma revisão documental e historiográfica sobre a
trajetória do português, ele analisa suas quatro ilustrações do Gênesis e tenta
articulá-las. No lugar de pensá-las apenas pelo viés do neoplatonismo
textualizante proposto por Deswarte-Rosa, ele elenca outras imagens que
percorriam as bibliotecas portuguesas e que diziam respeito a um interesse geral
pela astrologia. Ao final do texto, após levantar uma série de imagens que podem
se relacionar com a imagética holandiana, e mesmo associá-las a um possível
neoplatonismo, ele levanta a hipótese de que teria sido o Infante D. Luís o mentor
destas imagens da criação. Porém, enquanto Deswarte-Rosa lida igualmente com
o campo da argumentação, mas o enxerga com os olhos da certeza, Bury é capaz
de dizer que “Nevertheless, however probable it may be, Dom Luiz‟s interventions
must remain a hypothesis, at least for the time being”.80 Dois grandes historiadores
da arte, abordagens essenciais para os estudos holandianos, mas bem diferentes
quanto à construção das argumentações.
Antes de seguir para a segunda parte deste capítulo, injusto seria se
terminasse por aqui sem comentar outros dois autores importantes para as
reflexões sobre Francisco de Holanda. O primeiro, o historiador português da arte
Rafael Moreira, professor da Universidade Nova de Lisboa e especialista no
estudo da arquitetura em Portugal durante o Renascimento, escreveu um artigo
deveras citado por Deswarte-Rosa e por Bury. Intitulado “Novos dados sobre
Francisco de Holanda”81, de 1982-1983, o autor elenca novos documentos que
ajudam a corrigir alguns equívocos no que diz respeito, principalmente, à biografia
do humanista português. Além disso, ele se pergunta sobre qual seria o lugar de
79 ECO, Umberto. A obra aberta. São Paulo: Editora Perspectiva, 1968. 80 BURY, John B. “Francisco de Holanda and his illustrations of the Creation” in Portuguese studies, v. 2, 1986, pág. 47. 81 MOREIRA, Rafael. “Novos dados sobre Francisco de Holanda” in Sintria, vol. I-II, 1982-1983, págs. 619-692.
39
Holanda dentro da corte de D. João III, sua atuação pública, e chega mesmo a
discorrer sobre o seu vocabulário. O que torna esse artigo ainda mais interessante
e essencial para as análises contidas nessa dissertação é o fato de Moreira ter
percebido o lugar alto na hierarquia das artes em que Francisco de Holanda
coloca a iluminação, a arte de fazer iluminuras, seu principal meio de atuação
plástica, assim como o de seu pai.82
Já Angel González García, historiador espanhol, realizou uma edição crítica
de “Da pintura antigua” no ano de 1984.83 Nesta, além de considerar os dois livros
do manuscrito e editá-los em língua portuguesa, o que merece destaque é o
eruditíssimo aparato crítico, capaz de fazer uma verdadeira arqueologia do
pensamento holandiano em relação às suas fontes literárias. O problema aqui está
na introdução feita pelo autor. Da mesma forma que ele merece elogios por ser
capaz de relacionar Holanda com autores de outros espaços, como o espanhol
Felipe de Guevara ou mesmo com a tradição dos diálogos artísticos do século XVI
(Paolo Pino e Lodovico Dolce), por outro ele elogia a análise que Hans Tietze fez
de Holanda, ou seja, apóia certa vertente da historiografia da arte que, como já
dito aqui, incrimina Holanda por inserir Michelangelo na grande ficção que seria o
“Diálogos em Roma”. Ele chega mesmo a dizer que Holanda é um “naufrágio
teórico”.84
Um grande escritor de ficções e impostor ou, como diz Bury, um repórter da
corte portuguesa inserido em geografia italiana?85 Esta parece ser a maior dúvida
do debate crítico sobre a figura de Francisco de Holanda. E a sua relação com o
neoplatonismo, teria se dado em ambiente italiano ou estaria plantada em sua
figura já em território português? Ou esta possibilidade deveria ser deixada de
lado e interpretada como uma ânsia iconológica por parte de alguns historiadores
da arte? Ao passo que, aparentemente, as dúvidas em torno da biografia de
Francisco de Holanda estão como que dissipadas, havendo uma maior clareza
82 MOREIRA, Rafael. “Novos dados sobre Francisco de Holanda” in Sintria, vol. I-II, 1982-1983, págs. 649-651. 83 HOLANDA, Francisco de. Da pintura antigua. Edição organizada por Angel González García. Lisboa : Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984. 84 Ibidem, pág. XXIII. 85 BURY, John B. “Francisco de Holanda and his illustrations of the Creation” in Portuguese studies, v. 2, 1986, pág. 33.
40
documental e pouca discordância quanto às suas realizações, datações, trajetos e
relações dentro da corte portuguesa, no que diz respeito à sua interpretação
crítica algumas trilhas foram abertas, mas muitas outras estão por serem
desbravadas.
1.2. CONTRIBUIÇÕES HISTORIOGRÁFICAS NO BRASIL
Sendo a língua portuguesa um dos principais elos que nos ligam à Portugal,
para além, lógico, de toda a história de nossa colonização e intercâmbio cultural,
nada mais justo que também fossem encontradas em território nacional
contribuições aos estudos sobre Francisco de Holanda.
As primeiras publicações sobre este são de autoria de Sylvie Deswarte-
Rosa, que em terras brasileiras esteve nos anos de 2004 e 2008. Nesta primeira
oportunidade proferiu uma palestra dentro do evento “A fábrica do antigo”, com
publicação futura86, além de também apresentar suas pesquisas para os alunos da
Escola de Comunicações e Artes da USP, sendo fruto um artigo publicado na
revista “Ars”.87 Ela retornou ao Brasil para oferecer o curso “Francisco de Holanda:
idéias, imagem e arquitetura em Portugal na época dos descobrimentos”, em
novembro de 2008, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Também
deu palestras na Escola de Belas Artes da UFRJ e durante o IV Encontro de
História da Arte na UNICAMP, onde pode falar precisamente sobre a figura do
conde Athanasius Raczynski.88
Mesmo espalhados por diversos periódicos e livros, os artigos de Sylvie
Deswarte-Rosa são textos essenciais e de relativo fácil acesso em bibliotecas e
livrarias brasileiras. Enquanto isso, de John Bury existe uma compilação de artigos
sobre a arquitetura colonial no Brasil, organizada por sua amiga Myriam Andrade
86 DESWARTE-ROSA, Sylvie. “O ramo de ouro e do saber: F. Hollandivs apoloni dicavit” in MARQUES, Luiz (org.). A fábrica do antigo. Campinas: Editora UNICAMP, 2008, págs. 269-292. 87 DESWARTE-ROSA, Sylvie. “Prisca pictura e antiquita novitas. Francisco de Holanda e a taxonomia das figuras antigas” in Ars, v.3, São Paulo: O Departamento, 2004, págs. 15-27. 88 “Luz e sombra. Athanasius Raczynski em Portugal, 1842-1848”. Palestra proferida por Sylvie Deswarte-Rosa em 02 de dezembro de 2008, no auditório do IFCH-UNICAMP.
41
Ribeiro de Oliveira e que contém uma interessante nota autobiográfica.89 Textos
de sua autoria sobre Francisco de Holanda e em português ainda inexistem.
No que diz respeito à bibliografia portuguesa sobre Francisco de Holanda,
mas em acervos nacionais, merece destaque o acervo do Real Gabinete
Português de Leitura, sediado no Centro do Rio de Janeiro e também a biblioteca
da Casa de Portugal de São Paulo, no Centro da capital paulista. Ambos os
espaços possuem acesso fácil e gratuito, inclusive com a possibilidade de busca
bibliográfica online.
E as contribuições de acadêmicos brasileiros? Com tese defendida em
2002 dentro do Departamento de Filosofia da USP, intitulada “A doutrina da
„Pintura antiga‟ de Francisco de Holanda”, Cristiane Nascimento, atualmente
professora de filosofia na UNIFESP, me parece ser a primeira pesquisadora no
Brasil com publicações relativas a Francisco de Holanda.90 Sua pesquisa levou em
consideração as relações entre o “Da pintura antiga” e os gêneros retóricos da
Antiguidade. De que formas por eles Holanda foi influenciado e de que modos ele
os recodificou em sua reflexão escrita?
Cabe ter em mente a formação anterior da pesquisadora, mestra em
história da arte pela UNICAMP, e também o fato dela então estar vinculada a um
centro de estudos filosóficos, o que a coloca em diálogo direto com os estudos
realizados por José Stichini Vilela e também com o embasamento teórico
proporcionado por Sylvie Deswarte-Rosa. Sua tese de doutorado reverberou em
diversos artigos publicados em periódicos91 e também na sua participação no
simpósio “A constituição da tradição clássica”92, organizado pela UNICAMP em
89 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. “Apresentação” in BURY, John. Arquitetura e arte no Brasil colonial. São Paulo: Nobel, 1991, págs. 9-10. 90 NASCIMENTO, Cristiane. A doutrina da „Pintura antiga‟ de Francisco de Holanda. Tese (Doutorado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. 91 NASCIMENTO, Cristiane. “A palavra pintada: a ecfrase na tratadística de pintura no século XVI” in Revista de história da arte e da arqueologia. Campinas, 2008, v. 9, págs. 7-22. NASCIMENTO, Cristiane. “O discreto liberal: o retrato do pintor no Da Pintura Antiga, de Francisco de Holanda” in Desígnio – Revista de história da arquitetura e do urbanismo. São Paulo: Annablume, 2006, v. 5, págs. 135-146. 92 NASCIMENTO, Cristiane. “Da Pintura Antiga de Francisco de Holanda: o encômio como gênero de prescrição e da arte” in MARQUES, Luiz (Org.). A constituição da tradição clássica. São Paulo : Hedra, 2004, págs. 167-188.
42
2002, além também de sua participação, já em 2008 e ao lado de Sylvie
Deswarte-Rosa, do IV Encontro de História da Arte da UNICAMP93. Nesta última
fala, sua análise foi realizada sobre o “Da fábrica que falece à cidade de Lisboa”,
sendo esta resultado de seu estágio de pós-doutorado em Roma.
Também presente neste último evento com fala sobre Francisco de
Holanda, além do II Encontro de História da Arte, realizado em 2006, Maria
Berbara, professora de história da arte da UERJ, realizou contribuições ao
conhecimento do humanista português no Brasil.94 Seus textos tem importância
pelo seu esforço em partir das falas de Holanda, não propriamente querendo
analisá-lo de modo individual.
Se em sua primeira contribuição ela versava sobre o lugar de Michelangelo
dentro da fala holandiana, seguindo e revendo uma tradição historiográfica já
explorada aqui, nas falas seguintes, como a apresentada no 16º Encontro
Nacional da ANPAP, intitulada “Para enganar a vista exterior: um aspecto das
relações artísticas entre Itália, Portugal e os Países Baixos durante o
Renascimento”95, a problemática se dá pelos pólos conceituais da figura e da
paisagem.
Esta proposta é interessante porque é feita sem deixar de lado a bagagem
cultural do humanista português e também sem fazer vista grossa ao que foi
realizado plasticamente durante o Renascimento em Portugal. Aqui, algo raro
dentro da historiografia da arte, Holanda faz parte de uma problemática maior, que
perpassa questões geográficas (como as idéias de “centro” e “periferia”) e toca
precisamente na questão da alteridade cultural e da crítica de arte durante o
93 “„Da fábrica que falece à cidade de Lisboa‟: Francisco de Holanda entre os Mirabilia e os guias topográficos de Roma”. Palestra proferida por Cristiane Nascimento em 02 de dezembro de 2008, no auditório do IFCH-UNICAMP. 94 BERBARA, Maria. “Considerações sobre a participação michelangiana nos „Diálogos em Roma‟ de Francisco de Hollanda”. In: Camoniana. Volume 18. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2005. Este mesmo texto foi proferido como palestra no II Encontro de História da Arte da UNICAMP, em 2006. Em 2008 proferiu a palestra “Considerações sobre o confronto quinhentista paisagem/figura: Francisco de Holanda e Domenicus Lampsonius”, também no dia 02 de dezembro de 2008, no auditório do IFCH-UNICAMP. 95 BERBARA, Maria. “Para enganar a vista exterior: um aspecto das relações artísticas entre Itália, Portugal e os Países Baixos durante o Renascimento” in Anais do XVI Encontro Nacional da ANPAP. Florianópolis: ANPAP, 2007, págs. 343-352.
43
Renascimento. Não é um artigo sobre Francisco de Holanda, mas sim um texto
que o coloca em diálogo e que abre a sua obra aos olhos do leitor.
Em processo de finalização de seu doutorado, há também a pesquisa de
Maria Luiza Zanatta, aluna da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.
Como já poderíamos suspeitar pela filiação acadêmica, seu objeto de estudo é o
“Da fábrica que falece à cidade de Lisboa” e seu interesse é a realização de uma
edição crítica do mesmo. A partir desta organização do texto, depois de refletir
qual o lugar da arquitetura na escrita de Holanda e como ele pode ter influenciado
construções e a urbanização de Lisboa, Maria Luiza afirmou ter interesse de, no
futuro, relacionar o pensamento deste com, quem sabe, a arquitetura e
urbanização do Brasil enquanto colônia.
Esta possibilidade, cruzar Francisco de Holanda com o que temos de modo
acessível e aqui, me parece ser uma das trilhas que os estudos holandianos
podem seguir no meio acadêmico brasileiro. Tendo já a colonização como ponte, e
inclusive tendo uma frase em que Holanda cita o território brasileiro96, as
possibilidades de estudos são as mais variadas e trata-se de uma questão de
tempo. Enquanto isso, o que pode ser feito é seguir a divulgar o pensamento
deste e, por que não, aumentarmos o número de publicações de fácil acesso
(virtuais, quem sabe) de artigos que girem em torno de sua figura.
1.3. “DO TIRAR PELO NATURAL” E A HISTORIOGRAFIA DO RETRATO
Visto o interesse da presente pesquisa no texto de Francisco de Holanda
que diz respeito à realização de retratos, a leitura de um curto artigo de John Bury
intitulado “The use of candle-light for portrait painting in sixteenth-century Italy”97 foi
esclarecedora. Neste, além de relacionar o “Do tirar pelo natural” com, por
exemplo, os textos de Leonardo da Vinci a fim de pensar a teorização da prática
96 “Mas o que é mais de maravilhar, que até o novo mundo da gente bárbara do Brasil e do Peru,
que até agora foram ignotos aos homens, ainda esses em muitos vasos de ouro que eu vi, e nas suas figuras, tinham a mesma razão e disciplina dos antigos...” in HOLANDA, Francisco de. Da pintura antigua. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pág. 41. 97 BURY, John. “The use of candle-light for portrait painting in Sixteenth-Century Italy”. In: The Burlington magazine. Volume 119. Londres: Burlington Magazine Publications, 1977, págs. 434-435.
44
de retratos durante o Renascimento, o autor dá uma indicação sobre outra
produção que realizou:
A few years ago, with a view to making Holanda‟s work better known, I completed a critical edition of Do tirar polo natural with introduction, notes and English translation: however this remains unpublished, and our earliest surviving treatise on portraiture continues substantially unrecognized if not altogether ignored.98
É notório que diversas publicações sobre o retrato no Renascimento, ou
mesmo sobre o retrato enquanto problema mais amplo dentro da história da arte,
ignoram por completo o texto de Francisco de Holanda, vide os textos de Richard
Brilliant99, Jodi Cranston100, John Pope-Hennessy101 e o livro organizado por
Nicholas Mann e Luke Syson102. Em outras publicações, como a de Joanna
Woods-Marsden103 e o artigo publicado por Joanna Woodall104 dentro do livro
organizado pela própria autora, “Do tirar pelo natural” aparece ou ainda como uma
ponte para o pensamento de Michelangelo, ou como mero reflexo da arte
produzida durante o Renascimento na Itália. Por fim, nos livros referenciais de
Lorne Campbell105 e Shearer West106 o texto de Holanda ganha uma citação na
introdução, devido ao fato de ser “... the first full consideration of the genre”.107
A exceção nos estudos sobre o retrato é o livro de Édouard Pommier, uma
das poucas pesquisas cujo objeto é justamente a teoria do retrato.108 Citado
diversas vezes no decorrer de seus tópicos sobre o assunto durante o
Renascimento, “Do tirar pelo natural” ganha atenção especial na seção relativa à
98 Ibidem, pág. 434. 99 BRILLIANT, Richard. Portraiture. Cambridge: Harvard University Press, 1991. 100 CRANSTON, Jodi. The poetics of portraiture in the Italian Renaissance. Cambridge: Cambridge
University Press, 2000. 101 POPE-HENESSY, John. The portrait in the Renaissance. Nova Iorque: Pantheon Books, 1966. 102 MANN, Nicholas e SYSON, Luke (Org.). The image of the individual – portraits in the Renaissance. Londres: British Museum Press, 1998. 103 WOODS-MARSDEN, Joanna. Renaissance self-portraiture – the visual construction of identity and the social status of the artist. Londres: Yale University Press, 1998. 104 WOODALL, Joanna (Org.). Portraiture – facing the subject. Manchester: Manchester University Press, 1997. 105 CAMPBELL, Lorne. Renaissance portraits – European portrait-painting in the 14
th, 15
th and 16
th
centuries. Londres: Yale University Press, 1990. 106 WEST, Shearer. Portraiture. Nova Iorque: Oxford University Press, 2004. 107 Ibidem, pág. 16. 108 POMMIER, Édouard. Théories du portrait – de la Renaissance aux Lumières. Paris: Gallimard, 1998.
45
“crítica do retrato”, onde Pommier faz um brevíssimo resumo de suas idéias,
ocupando cerca de duas páginas.109 Devido ao caráter da publicação, uma
espécie de coletânea comentada de textos sobre o retrato, o espaço dedicado a
Holanda também é pequeno e não é dado a este um maior espaço.
Este, que poderia se esperar de uma publicação como a de Annemarie
Jordan-Gschwend, “Retrato de corte em Portugal – O legado de António Moro”110,
também acaba por ficar de lado. Devido ao seu interesse pelas imagens
produzidas durante o reinado de D. João III e D. Catarina de Áustria, a autora cita
rapidamente o texto de Francisco de Holanda, fazendo uma breve relação com a
pintura de retratos logo em sua introdução. No restante de sua escrita, porém, as
palavras de Holanda não aparecem mais e ela enfoca suas análises no confronto
das imagens com a documentação encontrada em arquivos portugueses (cartas,
contratos e comprovantes de compra de materiais).
O único autor, portanto, que estudou com afinco o “Do tirar pelo natural” foi
John Bury. Além do artigo aqui citado, ele possui uma comunicação apresentada
no IV Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte e publicada em 1987.111 É
possível que este texto seja relativo à edição critica que ele disse ter realizado do
texto holandiano e que apenas em 2008 foi publicada.112 Não em inglês, como ele
esperava e mesmo traduziu para tal, mas sim em espanhol e dentro da exposição
“O retrato do Renascimento”, realizada pelo Museu do Prado, em Madri, entre
junho e setembro do mesmo ano.
Suas notas elucidativas, sua introdução e comentários lá estão, todos em
espanhol e geralmente voltados para uma interpretação da arte italiana através do
texto do humanista português. O texto no qual se baseou também não foi
nenhuma das versões portuguesas existentes, mas sim a tradução espanhola feita
por Manuel Denis em 1563.
109 Ibidem, pág. 131-132. 110 JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. Retrato de corte em Portugal – o legado de António Moro. Lisboa: Editora Livros Quetzal, 1994. 111 BURY, John B. “Francisco de Holanda‟s treatise on portraiture” in Portugal e Espanha entre a Europa e além mar – IV Simpósio Luso-Espanhol de História da Arte. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1987. 112 HOLANDA, Francisco de. Del sacar por el natural. Madri: Ediciones Akal, 2008.
47
CAPÍTULO 2 POR UMA EDIÇÃO DE “DO TIRAR PELO NATURAL”
1. O PROCESSO DE REALIZAÇÃO
Realizar uma edição do texto central a este estudo se inicia com um
problema que carece de esclarecimentos quanto à sua história: a cópia autógrafa
de “Do tirar pelo natural” foi perdida. Contido no mesmo volume de manuscritos de
“Da pintura antiga” e dos chamados “Diálogos em Roma”, concluídos entre os
anos de 1548 e 1549, o texto sobre retratos tem como último registro estar sob a
guarda de Diogo de Carvalho e Sampaio, encarregado de negócios de Portugal
em Madri, em torno de 1790113. Diferente dos manuscritos autógrafos e ainda
existentes de “Da fábrica que falece à cidade de Lisboa” e “Da ciência do
desenho”, ambos de 1571, que mesmo com alguma circulação entre bibliotecas
permaneceram no território português, os primeiros textos de Francisco de
Holanda foram transportados até a Espanha após a morte de D. Sebastião em
1580 e a unificação dos governos espanhol e português dada através da figura de
Felipe II.
Quanto aos manuscritos apógrafos de “Do tirar pelo natural”, ou seja,
cópias do texto original, duas são as referências encontradas. Em 1563, Manuel
Denis, português de nascimento, integrante da casa real de Isabel de Portugal e,
em segundo momento, da corte de D. Joana da Áustria, também miniaturista e
pintor de alguns retratos e pinturas históricas, concluiu uma tradução castelhana
dos textos de Francisco de Holanda114. No ano de 1775, os manuscritos estavam
sob posse de D. Filipe de Castro, escultor do rei espanhol Carlos IV e um dia
diretor da Real Academia de Belas-Artes de São Fernando, em Madri. Desde o
começo do século XIX o texto já se encontra registrado nos arquivos desta
113 ALVES, José da Felicidade. “Nota introdutória” in HOLANDA, Francisco de. Do tirar pelo natural. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pág. 7. 114 RIELLO, José Maria. “Sobre Manuel Denis, traductor de Francisco de Holanda” in HOLANDA, Francisco de. Del sacar por el natural. Madri: Ediciones Akal, 2008, págs. 95-98.
48
instituição115, estando atualmente acessível através de uma versão digitalizada e
disponível via internet.116
Já Monsenhor José Joaquim Ferreira Gordo, estudioso português, foi
enviado em torno de 1790 para Madri a mando da Academia Real das Ciências de
Lisboa com a finalidade de estudar essenciais manuscritos para a história e
cultura portuguesas. Ele foi o responsável pela única cópia manuscrita em
português dos três primeiros textos de Francisco de Holanda.117 Não disponível
ainda a grande público, este manuscrito pode ser adquirido junto à biblioteca da
atual Academia de Ciências de Lisboa (série azul de manuscritos, volume 650).
Quando se confrontam estes dois manuscritos apógrafos as diferenças
ficam bem claras. Manuel Denis parece traduzir de forma rápida as palavras de
Holanda, vide a ausência de divisão de parágrafos e o fato dele ter incorporado a
quinta parte do texto (“Das sobrancelhas”) dentro da quarta parte (“Dos olhos”),
modificando a estrutura indicada dentro da versão de Monsenhor Gordo. Outra
diferença importante ao colocar os textos lado a lado diz respeito à suposta cópia
da grafia de Francisco de Holanda. Quando lemos os manuscritos autógrafos
deste autor, no que diz respeito aos seus textos de teoria da arte, saltam aos
olhos a forma como ele frisa algumas de suas palavras pela opção de mantê-las
todas em maiúsculo.
Em “Da ciência do desenho”, por exemplo, alguns termos que remetem ao
campo semântico dos principais conceitos de sua argumentação, como “idéia”,
“ciência”, “desenho” e “imagens”, quase sempre aparecem escritos integralmente
com letras maiúsculas. Enquanto isso, em “Da fábrica que falece à cidade de
Lisboa”, algumas palavras que remetem à arquitetura, urbanismo e à sua teoria
neoplatônica, como “água livre” e, novamente, “idéia”, surgem escritas da mesma
forma. Não só essas, mas os vocábulos, em ambos os textos, que estão
relacionados ao cristianismo e à figura do rei também costumam aparecer com
115 ALVES, José da Felicidade. Ibidem, pág. 8. 116 http://portallengua.fsanmillan.org/portallengua/fcc/pdf/proyectolenguabasf/Varios/Varios.jsp (acessado no dia 02 de agosto de 2010). “Do tirar pelo natural” se encontra nas últimas quatro partes da citada página da internet, sendo do fólio 162 a 182v. 117 ALVES, José da Felicidade. Ibidem, pág. 8.
49
esta grafia, como, por exemplo, “deus”, “igreja de deus”, “cruz”, “anjos”, “senhor”,
“vossa alteza”, “rei e senhor” e “majestade”.
Esta forma peculiar de escrever, já constatada por Sylvie Deswarte-Rosa e
citada na introdução do presente trabalho, acaba por dividir as atitudes dos
poucos editores da obra de Francisco de Holanda. No que diz respeito às edições
da Livros Horizonte destes dois manuscritos autógrafos e mantidos na Biblioteca
Nacional da Ajuda, organizadas por José da Felicidade Alves, optou-se por não
transcrever a grafia holandiana em maiúsculas. O que ele faz, em alguns casos
apenas, é transformar, por exemplo, “CIÊNCIA” em “Ciência”, ou seja, deixar a
primeira letra maiúscula, modificando a grafia original. Curiosamente, a única
palavra que ele deixa integralmente em maiúsculas e apenas três vezes é
“DESENHO”, dentro de sua edição de “Da ciência do desenho”.
Voltando aos manuscritos apógrafos de “Do tirar pelo natural”, o que pude
constatar é que Manuel Denis em nenhum momento segue essa possível
orientação do manuscrito originário perdido, ao passo que Monsenhor Gordo
permeia não apenas a cópia desta teoria do retrato, como também as cópias de
“Diálogos em Roma” e “Da pintura antiga” com estas palavras integralmente
maiúsculas. Portanto, pela possível proximidade com os originais holandianos,
pelo fato desta ser a única cópia manuscrita em língua portuguesa e pela
argumentação de Sylvie Deswarte-Rosa, foi tomado como texto-base da presente
edição esta versão do estudioso português. Optei por manter a grafia maiúscula
daquelas palavras que assim aparecem na versão de Monsenhor Gordo. O
mesmo respeito foi dado à organização dos parágrafos sugerida pela sua
transcrição.
Outro problema que foi percebido também quanto à grafia da cópia
manuscrita de Gordo, diz respeito à opção por deixar algumas palavras apenas
com a primeira letra maiúscula, dando mais destaque para a mesma, mas em
menor grau do que quando optava pela totalidade deste modo de escrever. Ao
cotejar esta cópia com os originais manuscritos, pude perceber que a escrita
holandiana opta por, quase sempre, manter os substantivos com iniciais
maiúsculas. José da Felicidade Alves, ao editar os dois textos autógrafos,
50
respeitou essa grafia apenas nas palavras relativas aos campos semânticos das
artes visuais, da religião e do poder real. Como é sabido que as cópias podem
gerar erros devido à falta de atenção e mesmo a diferentes valores dados a estas
formas de escrever no decorrer da história, segui a sugestão de Felicidade Alves
e, no que diz respeito a esta transcrição baseada em Monsenhor Gordo, mantive a
inicial maiúscula dos exemplos destes mesmos campos semânticos e alterei para
a escrita corrida as palavras que me pareciam não condizer à proposta.
Após transcrever este manuscrito de “Do tirar pelo natural”, o cotejei junto a
suas duas únicas edições portuguesas. A primeira, publicada entre outubro e
dezembro de 1892 por Joaquim de Vasconcelos, dentro do semanário “A vida
moderna”, do Porto, foi adquirida junto à Biblioteca Municipal da mesma cidade.
Para minha surpresa, sabendo que o editor apenas pode ter tido como base a
cópia de Monsenhor Gordo, visto que o manuscrito original já estava perdido neste
ano, ao confrontar os dois textos constatei que algumas frases estavam ausentes
nesta primeira versão impressa. Além disso, Vasconcelos havia modificado as
estruturas dos parágrafos de Gordo. Quando cotejei esta primeira versão impressa
com a segunda edição portuguesa, ou seja, também feita por José da Felicidade
Alves, em 1984, pela Livros Horizonte, concluí que este segundo editor respeitou
integralmente as linhas do primeiro, não cotejando sua versão com o manuscrito.
Mesmo que em sua introdução este não dê referência à não conferência, quando
temos em mãos a sua edição de “Da pintura antiga”, também de 1984, logo na
introdução, ele diz:
b) O texto da presente edição:
- aceita como base a leitura feita por Joaquim de Vasconcelos (não
nos foi possível conferir com a cópia manuscrita);
- actualiza a ortografia, introduzindo também algumas alterações na
pontuação.118
118 ALVES, José da Felicidade. “Nota introdutória” in Da pintura antiga. HOLANDA, Francisco de. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pág. 10. Grifo meu.
51
Sabendo que se tratam de textos copiados em seqüência por Gordo e, além
disso, tendo em mente que o primeiro livro de Holanda editado por Felicidade
Alves foi o “Da pintura antiga”, justamente em uma tentativa de respeitar a ordem
do manuscrito original, posso concluir que o mesmo não foi feito quanto ao
conteúdo de “Do tirar pelo natural”, ou seja, os erros presentes na versão de
Vasconcelos são mantidos na versão de Alves. Isso fica claro quando cotejamos a
cópia castelhana, de 1563, com a cópia de Monsenhor Gordo; apenas neste
confronto temos um texto quase idêntico quanto ao conteúdo. O mesmo pode ser
dito do confronto deste manuscrito português com as edições espanholas
baseadas em Manuel Denis feitas por Elias Tormo e Francisco Sanchéz Cantón119
(1921) e por John Bury (2008).
Além destas, como nos informa o próprio Bury em sua edição, existe
também uma edição alemã publicada em 1868 por Th. Fournier120 e que contém
um brevíssimo aparato crítico. Em sua introdução, este autor, infelizmente, não dá
muitas explicações sobre o seu interesse por Francisco de Holanda. Apenas
aponta que “Valeria a pena salvar pelo menos este mínimo do que nos foi
conservado do escritor, antes que a destruição operada pelo tempo faça com que
ele seja esquecido...”.121 Caberia obter mais informações sobre sua formação
enquanto historiador e sobre outras publicações em seu nome, dados não
encontrados durante a realização desta pesquisa. No que diz respeito ao formato
do texto, é perceptível que a edição de Founier também não condiz coma grafia
holandiana.
Quanto a esta, as duas edições portuguesas desta teoria do retrato também
não a respeitam. Quando temos em mãos a edição em espanhol feita por John
Bury, devido a um respeito pelo manuscrito apógrafo de Manuel Denis, não se
segue uma organização de parágrafos e de grafia ao modo de Monsenhor Gordo.
O máximo que este editor faz é deixar algumas poucas palavras que remetem aos
119 HOLANDA, Francisco de. De la pintura antigua por Francisco de Holanda (1548). Version castellana de Manuel Denis (1563). Edição de Francisco Sanchéz Canton. Madri: Dirección General del Libro, 1921. Reeditado em 2003. Madri: Visor Libros, 2003. 120 FOURNIER, Th. “Die manuscripte des Françesco d‟Ollanda” in Jahrbücher für Kunstwissenschaft. Leipzig, 1868, págs. 335-358. 121 Ibidem, pág. 335.
52
campos semânticos já citados com a inicial maiúscula (“deus”, “pintura”, “rei” e
“corte”, por exemplo). Importante frisar que, por outro lado, quando lemos a edição
da Livros Horizonte do “Diálogos em Roma”, talvez por estar baseada não apenas
em Vasconcelos, mas sim em diversas edições existentes desse texto, devidas à
figuração de Michelangelo como personagem do diálogo, algumas palavras
escritas com a inicial maiúscula são respeitadas.
Devido às discrepâncias entre as transcrições publicadas até o momento e
o nosso único manuscrito português, ou seja, de Monsenhor Gordo, é possível
concluir que inexiste, até agora, uma transcrição apurada dos textos de Francisco
de Holanda. O texto aqui editado, portanto, além de tomar este como base, tenta,
sempre que possível, seguir algumas correções ortográficas sugeridas por
Vasconcelos e Felicidade Alves que podem facilitar a compreensão do leitor
contemporâneo. Optei pela utilização do “aparato negativo”, ou seja, através de
notas de rodapé explicitarei, brevemente, as partes do texto que se encontram sob
diferentes formas, em especial nas edições portuguesas, mas sem deixar de ter
em mente as traduções para o espanhol.
Quando julguei necessário, atualizei algumas palavras que sofreram
modificação dentro da história da língua portuguesa122, visto que a intenção desta
edição é conseguir respeitar a escrita de Holanda, mas de forma um pouco mais
próxima da cultura contemporânea. Trata-se de um esforço pelo meio-termo, sem
deturpar as palavras do português antigo. Devido, porém, ao grande número
destas atualizações, não me utilizei das notas de rodapé para indicá-las. Por outro
lado, visando permitir ao leitor uma comparação desta transcrição com o
manuscrito de Gordo, foi incluída uma versão digitaliza deste último ao final da
dissertação.
122 Como exemplo é possível citar as palavras “fremoso”, “fremosa” e “fremosura”, todas modificadas para “formoso”, “formosa” e “formosura”. Além dessas, claro, o próprio título do texto, “Do tirar polo natural”, foi atualizado para “Do tirar pelo natural”.
53
2. UMA NOVA EDIÇÃO EM PORTUGUÊS
DO TIRAR PELO NATURAL [fol. 184] Indo eu a SANTIAGO123 de Galícia com o valeroso e clementíssimo Príncipe, o Infante DOM LUÍS, aceitando eu a tal romaria de boa vontade, como quer que essa só me falecia das maiores de Espanha, e quase de toda a Europa, pois já fui a Guadalupe, e a Nossa Senhora Del Antigoa em Sevilha, e a Nossa Senhora de Monserrat, e a São Maximino em Provença, onde está a cabeça de Santa Maria Madalena, e a São PEDRO e a São PAULO em ROMA, e a Nossa Senhora de Loreto na Marca de Ancona e a São Marcos em Veneza, e ao nosso Santo ANTONIO em Pádua, estimei finalmente de ir ver o apóstolo de ESPANHA em Compostela.124 MAS, chegando ao PORTO, cidade estrangeira em Portugal, quis-me tomar por hóspede Bras Pereira, que foi filho de Fernão Brandão, Guardarroupa do Infante Dom [fol. 184v] Fernando, que DEUS haja. E como quer que nós ambos quase criamos na casa daquele senhor, e ele ficou dali meu amigo, nem a mim me pesou da sua pousada, nem a ele da minha companhia.125 Mas é este Bras Pereira um homem fidalgo de muito gentis partes e habilidades, e principalmente na arte da Pintura tem muito engenho e natural, e no conhecimento da Arquitetura, por onde nos não enfadávamos muitas vezes de praticar alguns primores sobre as tais disciplinas que se acham em mui poucos fidalgos portugueses.126 E gastávamos nisso parte das noites. Mas tornando eu já de SANTIAGO127, e mandando-me o infante, de que me apartei em São Gonçalo de Amarante, que fosse a Santo Tirso dizer a um gentil-homem, criado do cardeal Fernes, que entregasse ao dito Bras Pereira umas cabeças de Gesso antigas que vieram de Roma, para lhas mandar por água a Lisboa, foi-me forçado tornar eu outra vez a pousar na casa de Bras Pereira, [fol. 185] e havendo ocasião teve-me em sua casa oito dias, de vida boa. Mas achando-me com mais ócio na volta da romaria que na ida, tornamos a tratar algumas vezes dos primores da Pintura e principalmente do tirar ao natural128 e dizendo-lhe eu como tinha escrito novamente sobre a Pintura um volume em dois livros, encomendou-me que no fim dele não esquecesse de tratar o que nós ali tocávamos do Tirar ao natural e eu prometi-lhe; porém será melhor ouvir o que cada um dizia nesta prática, que perder-se mais o Tempo.
Diálogo de tirar pelo natural [fol. 185v]
123 A palavra aqui vem grafada toda em maiúsculas e a sílaba “ti” aparece em forma de uma cruz, unindo as duas letras e criando um caractere só. 124 Na edição de 1984, a frase seguinte dá início a outro parágrafo. 125 Na edição de 1892/1984, a frase seguinte dá início a outro parágrafo. 126 Idem a 3. 127 Idem a 1. 128 Na edição de 1892/1984, existe uma separação entre as duas orações.
54
BRAS PEREIRA FERNANDO129
Como poucos podem fazer perfeição130 Dizem que Alexandre o Magno Amava muito uma moça formosa daquele tempo, e por isto pediu a Apeles que ao natural a Pintasse; mas o excelente pintor como quer que da proporção da sua formosura mais entendido que aquele Imperador, muito se namorou dela; e foi tanto que chorava de a entender; mas Alexandre, que foi liberal até de seus próprios contentamentos, quis vencer-se assim mesmo e deu aquela formosa Dama a Apeles, estimando merecê-la aquele mais que a melhor entendia.131 E não foi esta menor coisa de Alexandre, que todas as que ele fez. Que vos parece a vós? Fernando – A mim, que porventura foi tanto, que algum de nós o não fizera, e não fizera mui pouco [fol. 186] em não fazê-lo. Muito privado foi Apeles de Alexandre o Magno e ele132 foi o que pôs edito que só Apeles ao natural o pintasse; e foi nisto grande homem. Bras Pereira – Em que prática mais nobre podemos gastar este pedaço da noite que na doutrina do Tirar ao NATURAL? Fernando – Basta o que já sobre isso outras vezes praticamos. Bras Pereira – Não vos pese de tornarmos a iterar o que outras vezes faláramos; e iremos descobrindo mais terra e mais, pois que esta noite se nos mostra quietíssima e digna de tal conversação. Fernando – Faça-se como o mandais, pois o tratar da Pintura é a coisa mais digníssima deste Mundo, e o Tirar ao natural aquilo que só DEUS fez por tão investigável sabedoria como ele sabe. Querê-lo um homem de terra imitar deve ser coisa mui grande e a maior que os homens podem fazer; ao menos eu (de o não saber fazer) por a maior a estimo; outros tê-lo-ão por menos. Bras Pereira – De vós sentirdes como se deve estimar, e o preço e a dificuldade do negócio, [fol. 186v] disso vos nascem essas desconfianças, teme o saber e o
129 O nome dos dois personagens a dialogar são Fernando e Bras Pereira. Monsenhor Gordo,
porém, em alguns momentos os transcreve como “Bras Fereira” (diálogo 1) e “Feramando”. Foi optado aqui por alterar esta grafia no que diz respeito à introdução das novas falas e também no desenvolver dos diálogos, visando dar unidade ao texto. 130 A estrutura das apresentações dos diálogos é, na maioria das vezes, esta: primeiramente o nome dos dois personagens e, depois, o título do diálogo. John Bury, em sua edição espanhola, porém, inverte e coloca, primeiramente, o título das falas – da mesma forma que Joaquim de Vasconcelos e José da Felicidade Alves. 131 Esta frase não se encontra na edição de 1892/1984. No seu lugar, entre colchetes, lemos “... [e conhecendo Alexandre que também Apeles dela se namorara, lhe faz dela dom]...”. 132 Na edição de 1892 há uma exclamação aqui: “... foi Apeles de Alexandre o Magno!”.
55
estima;133 mas vamos mais adiante: qual é o primeiro preceito que vós no tirar ao Natural poríeis?134 Fernando – O primeiro preceito que eu no tirar ao Natural poria, é que o Pintor excelente (se lhe quereis chamar Pintor) que pinte muito poucas pessoas, e estas muito singularmente escolhidas, pondo mais a perfeição e o cuidado no primor da pouca obra, que no número da muita. E posto que alguns forasteiros pintores parece que tiram pelo natural grande soma de pessoas, todavia estimando bem e sentindo o fundamento de suas obras, não merecem serem vistas; e o que é muito de espantar que de quanta gente vemos nesta larga redondeza do Mundo, não são mais que dois ou três os famosos homens que mereçam e saibam bem fazer o grande ofício do tirar ao natural, como se deve de fazer, por que graça é de cima concedida a mui poucos dos mortais. Bras Pereira – Assim que o primeiro preceito [fol. 187] que se no tirar ao natural há de guardar é tirar a poucos naturais para serem mais perfeitos; e os que os tais poucos naturais hão de tirar135 mandais que sejam muito claros e poucos pintores. Fernando – Torno a dizer que o grande ofício de imitar ao Sumo DEUS nas suas obras, e o mandar à Memória um Príncipe ou pessoa digna de merecimento – que estes sós são os que merecem ser ao natural transladados, e mostrados pelo Mundo – 136, se não deve de fiar senão de um eminente e singular DESENHADOR. Bras Pereira – Como? E não merecem todos os homens tiraremos137 pelo natural, senão os príncipes? Fernando – Não, certamente. Bras Pereira – Em que maneira? Fernando – Porque não somente os príncipes e Reis têm merecimento de serem ao natural pintados, mas ainda deles poucos foram os que mereceram ser ao natural Pintados, para ficarem em Memória à posteridade e TEMPO. Bras Pereira – Tardemos mais em dizer isto.
133 Na edição de 1892/1984 existe um parênteses “... (e teme o saber e o estima)...”. 134 No manuscrito de Gordo lemos: “... que eu no tirar ao Natural?”. Devido ao tom confuso desta oração, seguimos a sugestão da edição de 1892/1984. Além disso, na tradução castelhana de Manuel Denis, encontramos o mesmo texto, ou seja, “... cuál es lo primero que ponéis en el sacar al natural?”. 135 Na edição de 1892/1984 encontramos “... e os que os tais poucos naturais hão-tirar mandais...”. 136 Na edição de 1892/1984, no lugar do hífen, encontramos parênteses. Enquanto isso, na edição de Bury o trecho “... e mostrados pelo mundo” não está incluído. 137 Na edição de 1892/1984 encontramos a palavra “tirarem-os”.
56
Fernando – Digo que [fol. 187v] estimo somente os claros Príncipes e Reis ou Imperadores merecerem ser Pintados, e ficarem suas imagens e figuras e sua boa Memória aos futuros tempos e idades.138 Assim como ora o Benigníssimo e Magnânimo e Católico REI NOSSO SENHOR, que por o resplendor de suas virtudes, e singular liberalidade merece mui justamente ficar em Memória e exemplo a seus sucessores e Reino; mas porque para falar dele como ele merece e eu entendo, não é tempo, digo que só um Ciro, ou um Alexandre o Magno, ou um Cipião, ou um CÉSAR ou outro Imperador Trajano, ou a outro Antonino Pio; e dos príncipes cristãos a um novo Constantino, a um Teodósio ou Honório, a um São LUÍS Rei de França, a um Rei Dom Afonso Henriques está bem e é lícito e conveniente serem ao natural Pintados neste Mundo, e pelo conseguinte a uma ilustre e clara Princesa [fol. 188] ou Rainha, que por sua virtude e saber é digna de ser conhecida dos vindoiros.139 E também tem entre estes lugar qualquer homem famoso em armas, ou em DESENHO, ou em letras, ou em singular liberalidade ou virtude, e não algum outro qualquer homem. E assim mesmo é coisa lícita terem os filhos a memória de seu Pai, Mãe e AVÓS, tirados ao natural para sempre os terem presentes, para acrescentamento de sua virtude e para sua consolação e dos seus, imitando quanto puderem seus antecessores na bondade e com eles aumentando sua passada Genealogia.140 E se alguém souber AMAR mui fiel e castamente, digno é de ter ao natural Pintado o vulto que ama, assim para as ausências da vida, como para a lembrança de a buscar no céu depois da morte, segundo a mim parece. Bras Pereira – Certo é que poucos merecem serem ao natural tirados, e ser conhecida sua memória. [fol. 188v] Fernando – E assim o costumavam os famosos homens passados, como se ainda conhece nas ilustres Imagens e naturais das esculturas de Roma, que somente aos que muita honra e Memória mereciam por seus claros feitos e proezas, assim em as armas como em a paz a estes tiravam eles em quadros de ilustre Pintura, e em figuras de prata e de ouro, ou de Metal, ou de Mármore, por honra e lembrança deles, como a dignos e merecedores de serem conhecidos no Mundo, assim no seu Tempo, como dos vindouros. E como são poucos os que merecem ser ao natural transladados, assim hão de ser poucos os eminentes Pintores que tenham a ousadia de tirar ao natural um claro e ínclito Rei, que não nasce em muitos anos, porque em outros tantos nasce o Pintor para nobremente pintá-lo. E quando quer que nasceu entre os homens algum príncipe famoso, logo junto com ele parece que veio o escritor que [fol. 189] o celebrasse, e o eminente Pintor que o mandasse por todo o Mundo Pintado ao Natural. E quem isto bem souber, achará que é assim.
138 Na edição de 1892/1984, o editor opta por somar a frase seguinte ao final desta outra. 139 Na edição de 1892/1984, o editor opta por transformar a frase seguinte em um outro parágrafo. 140 Idem a 17.
57
Bras Pereira – Assim que concluis em toda a perfeição em todo o bom ser difícil de achar.141 Fernando – E em todo o mundo haver dele muito pouco; e ser pouco. Este é o meu parecer, para ser muito.
BRAS PEREIRA FERNANDO
Como nenhuma obra perfeita deve de ser vista, antes de ser acabada Bras Pereira – Cheguemo-nos mais a alguma doutrina, e saibamos outro aviso mui principal neste negócio. Fernando – Estimo que o valente Desenhador e único, depois de estar contente e favorecido, e tão rico que não tenha alguma necessidade de cuidar no que há mister [fol. 189v] e de distrair e derramar a fantasia, deve-se de assentar em uma cadeira defronte do Príncipe ou pessoa ilustre que ele de Pintar ao natural espera, e com sua Mesa no meio ou Tábua, e a luz da janela temperada e música, e a vista em seu lugar, com a casa despejada de gente, deve de lançar as primeiras linhas e traços da sua obra, com o estilo, ou com o carvão, sem estar ali mais que algum avisado em o canto da casa para o que ao príncipe e ao desenhador for necessário; e ainda mais louvarei o estarem a sós; que quando meu pai em Toledo tirava do natural a César o Imperador, estando a mesa um pouco baixa, e querendo-a meu Pai mais alta, disse o imperador a meu pai, por não chamarem ninguém que os inquietasse, que tivesse ele mão na Mesa, e que ele faria [e] ergueria os pés mais e as correias; e assim sua Majestade por suas mãos [fol. 190] ergueu os pés da Mesa e com a sua mesma adaga fez os furos nas correias por não chamarem ninguém que os inquietasse. Bras Pereira – Espanto-me do que me contais dum Imperador do mundo; mas perdoai-me, rogo-vo-lo, e dizei-me que vos faz a vós, nem a valente Desenhador e único, estar a casa cheia de gente, mais que estar só? Fernando – Espanto-me de o não alcançardes já. Convém-lhe de estar só para na sua obra estar todo, mais junto e pronto, e não ter o pensamento derramado nos olhos dos muitos que o estão olhando e para estar consigo mais recolhido e solitário.142 Quero-vos ainda dizer mais: que se pudera estar o mesmo Desenhador só, sem ninguém, e ter na fantasia e memória a pessoa que há de pôr em obra e pintar, crede que muito melhor seria que tê-la diante dos olhos visíveis se a visse com os invisíveis, quanto mais estar contentando a quantos indiscretos há numa corte e tê-los todos presentes, porque ao menos não lhe acontecesse querer pintar [fol. 190v] ao senhor diante dos seus criados, não os
141 Na edição de 1892/1984 esta última frase é dada em forma de interrogação. 142 Na edição de 1984, o editor optou por separar a frase seguinte desta última, criando, assim, dois parágrafos diferentes.
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pintasse a eles todos no Rosto dele, querendo pintar a ele só, que seria coisa forte. Bras Pereira – Dias há que se não disse graça tamanha! Fernando – E por isto a mim por ventura não acontecer, estando tirando El-Rei nosso Senhor ao Natural, para o levar à Princesa sua filha, que santa Glória haja, a Castela – para a qual obra a mim eram necessários muito mais Recolhidos sentidos e prontos do que eu tenho –143 e estando diante de mim o conde da Castanheira falando na obra que eu fazia com el-Rei, comecei a não poder fazer nada, e perguntando-me el-Rei por que não fazia, disse: “faça-me Vossa Alteza tanta mercê que mande ao Conde que se afaste para uma parte, porque, estando ele diante, não posso fazer o que desejo quietamente, nem o que pertence à perfeição da obra”. Naquela hora se apartou o Conde como bem avisado e se pôs a uma parte, desculpando-me a rainha ao conde, que estava [fol. 191] à parte del-Rei.144 Por onde o meu voto e o de todo homem excelente que o entende145 é que esteja muito só e quieto quem houver de fazer coisa tamanha como imitar ao próprio natural as divinas obras, e de todo apartado dos pareceres e juízos dos indiscretos. E, se possível for, antes que a obra não esteja acabada, não deve de ser vista de alguma pessoa; mas depois dela com a extrema mão ser acabada, então seja ela para a poder ver o Mundo todo.146 Bras Pereira – Pois dizem que Apeles folgava de mostrar as suas obras para emendar o que nela lhe emendavam os indiscretos. Fernando – Nunca Apeles tal coisa fez, snr. Bras Pereira. A um só sapateiro aconteceu com ele essa fábula que porque se um pouco quis desmandar e emendar no que não entendia, escassamente que o não castigou. Não há mister, quem entende mais do que sabe que todos os outros, ser recordado nem ensinado dos néscios e que [vol. 191v] não sabem, naquilo em que ele tem posto todo o seu pensamento e cuidado, porque umas vezes emendam o melhor da obra; e às vezes louvam o pior dela. Bras Pereira – Pois como dizem que vêem mais quatro olhos que dois, e que é bom o conselho e o parecer de muitos? Fernando – Muito vagar requeria agora essa prática; mas muito há casca e cortiça em essa sentença, e muito longe vai da medula e substância da coisa; porque falso é tal parecer e cheio de rusticidade e ignorância, que quando a tal obra houvesse de mostrar-se para nela tomar conselho – ao mais pelo meu –147 ela se não deve mostrar senão a um só eminente e avisado Mestre de Pintura, o qual
143 Na edição de 1892/1984, o editor optou por colocar parênteses no lugar destes hífens. 144 Na edição de 1984, o editor optou por separar esta frase da seguinte, criando outro parágrafo. 145 Na edição de 1892/1984, o editor colocou este fragmento entre parênteses. 146 Na edição de 1892/1984, esta frase tem tom exclamativo. 147 Idem a 24.
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deve além disto ser mui arrefecido de inveja e de suspeita e mui experimentado nos tais primores e mui verdadeiro. A esse tal bem se pode mostrar por amizade uma obra e dele tomar algum parecer e conselho e alguma [fol. 192] parte; e estou em afirmar que ainda os olhos daquele mesmo mestre podem impedir e atalhar muita parte da perfeição e intento que devera ter a tal obra ante ser vista; e podem muitas vezes mais danar, que dar proveito, porque ainda a imaginação inteira do que faz a obra (se é excelente homem) estando toda junta e recolhida em si mesma e aconselhada consigo mesma no intento que tem cuidado e no fim em que depara, mui facilmente se lhe desviam e apartam148, muitas vezes se desmancha e perde.
BRAS PEREIRA FERNANDO
Do escolher o posto e a Vista no tirar ao natural Bras Pereira - Tempo é de lançarmos já algumas linhas ou traços sobre a Tábua do Tirar ao Natural. E saibamos se tem alguns preceitos ou limites a que homem possa endireitar o engenho e a mão, e com que homem mais atinja a verdade e menos erre, e das maneiras do tirar; e nisto receberei [fol. 192v] uma mercê que eu muito estimo. Fernando - A mim parecia-me cedo e estava-me acinte detendo por não chegarmos a tanto; mas pois o estilo comecei a tomar na mão, digamos mais alguma coisa.149 Tira-se ao natural em DESENHO nestas maneiras: de iluminação, de Pintura de óleo, de Pintura de fresco, de pintura de150 têmpera, e de escultura em mármore ou pedra, e em relevo de prata, ou de metal e bronze, ou em fundo e doutras maneiras em que tiraram os famosos homens antigos e alguns modernos: e estas são as mais nobres das que eu saiba. Bras Pereira - Ensinai-me a tirar ao natural e a imitar uma obra divina em Desenho ou Pintura. Fernando - Isso só DEUS o pode fazer; mas dir-vos-ei como será: vós mesmo me lembrai e tornai à Memória o que sobre este negócio já outras vezes praticamos e aquilo que quereis ouvir de mim, lembrai-me vós como vo-lo disse já; e como me lembrardes, lembrar-me-á para vo-lo confirmar e tornar a dizer. Bras Pereira - Digo que sou mui contente e que vos [fol. 193] quero lembrar o que me já tendes dito para vermos se é assim. Fernando - Dizei, rogo-vo-lo.
148 Na edição de 1892/1984 este fragmento se encontra entre parênteses 149 Na edição de 1984 a frase seguinte dava origem a novo parágrafo. 150 Na edição de 1892/1984 as palavras “pintura de” foram omitidas.
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Bras Pereira - Parece-me que me dissestes já algumas vezes que, depois que tivesse o estilo na mão para Desenhar, que elegesse uma vista ou posto ao Rosto que quisesse tirar, o qual estando temperado com a luz e boa sombra seja escolhido dos outros todos. Fernando - E qual era, se vos lembra, nisso o meu aviso? Bras Pereira - Lembra-me que era o vosso aviso que eu conhecesse principalmente qual era a vista ou posto, ou movimento que fosse mais próprio e conforme àquela pessoa que tirasse, convém a saber: se a pessoa que Pintamos é mais quieta e sossegada que inquieta e desassossegada, que daquele posto ou feição a pintássemos que pareça mais quieta e conforme ao que sempre costuma ordinariamente parecer; e na tal que escolhesse que tenha os olhos meio baixos e cansados e assim quietos todos os outros seus movimentos.151 E pelo contrário, se for uma pessoa muito esperta e inquieta no parecer, que lhe escolhesse logo aquela mesma sua maneira de inquietação, não curando [fol. 193v] de lhe fazer os olhos baixos nem graves, mas que se pinte este tal com as sobrancelhas erguidas, com os olhos vivos e prontos como aquela pessoa as mais das vezes costuma a parecer. Fernando - Propriamente, e ainda que a tal pessoa pelo siso e assossego que o tirar pelo natural requer esteja algum pouco como sonolenta e quieta, vós tereis aviso e tento de a fazer despertar com alguma palavra até que fique daquela postura e maneira que ela mais continuamente costuma parecer. E isto basta neste primeiro aviso da eleição, por que por aqui se pode entender tudo o que fica por dizer. Bras Pereira - Depois dissestes que, tendo já elegido e escolhido a mais conforme maneira e postura que aquela pessoa que tiro costuma a ter152, que lhe mandasse afirmar os olhos e o olhar para uma certa parte ou para um sinal ou ponto e que dali não se mova sem licença. Fernando - E depois? Bras Pereira - Depois que imaginasse o seu rosto em um quadrado ou em um triângulo, ou num ovado.153 [fol. 194] [espaço para desenho]
151 Na edição de 1892/1984, o editor optou por separar esta frase da seguinte, dando origem a outro parágrafo. 152 Na edição de 1892/1984 lemos “... que aquela pessoa costuma ter”. 153 Nas edições de Bury e de Segurado, este espaço para o desenho e a separação desta frase e da seguinte, assim como vemos no manuscrito de Gordo, são ignorados.
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Segundo a conformidade que mais tiver com estas formas, e depois que visse se determinava de o Pintar Fronteiro ou de meio Rosto, ou Treçado. Fernando - Que coisa é tirá-lo fronteiro? Bras Pereira - Fronteiro é quando o Rosto está igualmente mostrado, com ambos os olhos direitos em nós, e o nariz, e a boca, e a barba, e a fronte, e as faces que não mostrem nem escondam mais de uma parte que da outra, mas que estejam medidamente mostradas todas as feições, tanto de uma parte, como da outra, como este mal feito desenho. [espaço para desenho] Fernando - Que coisa é tirar do natural de meio [fol. 194v] Rosto? Bras Pereira - Tirar do natural de meio Rosto, segundo outras vezes tratamos, é quando o Rosto está virado de uma ilharga e lhe não vemos mais que meio olho, e meio nariz e meia boca e inteira toda a sua154 face, e inteira toda a orelha, a qual se não vê quando o Rosto é fronteiro senão apenas; e vê-se então o perfil do rosto da pessoa que é coisa nobilíssima na pintura, como... [espaço para o desenho] Fernando - Que coisa é tirar um Rosto treçado? Bras Pereira - Tirar um Rosto treçado é um certo meio e moderação que nem fica o Rosto de todo com a pouca graça de fronteiro, nem fica de todo com o grande rigor de meio Rosto, mas [fol. 195] mostrando-se meio fronteiro e meio, meio Rosto155 faz uma proporção e igualdade que muito satisfaz e contenta; e quando se uma ilharga ou face parece quase meia e os olhos um deles fica bem em o meio da imagem, e outro na ilharga da face que parece meia e que se esconde, e o nariz, nem a boca, não ficam de ilharga de todo, nem ficam fronteiros; mas uma coisa com a outra mesclada fazem uma igual desigualdade mui conforme e escolhida, ao modo deste desenho. [espaço para o desenho] Fernando - Qual destes TRÊS modos vos disse ser o melhor? E qual deles elegereis por melhor escolhido e mais perfeito, o FRONTEIRO, ou o MEIO, ou o TREÇADO? [fol. 195v] Bras Pereira - Sabido está que o treçado, por ser o que mais dos extremos foge, e o tem onde se há de ter.
154 Na edição de 1892/1984 lemos “... e inteira toda a face...”. 155 Na edição de 1892/1984 lemos “... meio fronteiro e meio, meio-rosto...”.
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Fernando - Por quê? Bras Pereira - Porque o Rosto fronteiro é quase sem graça e chato e não mostra nada do perfil e feição do meio Rosto, nem das ilhargas do Rosto.156 O MEIO é muito austero e grave e muito saído para fora, e não mostra nada da fronte nem de diante, mas somente o rigor do perfil. O TREÇADO mostra o bom de ambos estes modos, e pouco do mau; e por isto é o melhor, porque mostra parte da fronte, e parte do perfil; e ambos, como digo, fazem uma igual desigualdade mui conforme e escolhida. Fernando - Há mais algum primor neste negócio? Bras Pereira - Muitos praticamos, e um deles é que o Rosto treçado seja antes inclinado à mão direita que à esquerda e que tenha o Lume antes por diante, que por a ilharga. Fernando - Outro primor ou lembrança lembra-vos neste [fol. 196] negócio? Porque se há de advertir que pessoas há que lhes está bem tirá-las pelo Natural FRONTEIRAS, porque aquele é seu melhor; e outras que lhes está bem tirá-las pelo natural de MEIO ROSTO, porque aquele é o seu melhor; e outras em que cabe melhor o meio do escolher o Rosto TREÇADO, que é o mais seguro e o pior de fazer, posto que muitos dizem que o fronteiro. Bras Pereira - Também me dissestes que havia outras maneiras de Pintar do natural além do fronteiro e do meio e do treçado, os quais são modos a que eles chamam Recursados; e uns são tendo o Rosto erguido como157 que olha para o céu, com os olhos altos e as feições vistas por baixo, parecendo as ventas e a boca e toda a barba, e todo o pescoço; e este é muito dificultoso e nobre. E outro é olhando o Rosto para baixo inclinado com os olhos no chão, e as feições vistas por cima, parecendo somente parte da cabeça e da testa e um pouco do nariz, e parecendo pouco da boca, e pouco da barba, e [fol. 196v] quase nada do pescoço como significa este desenho. [espaço para o desenho] E há outros postos de que se podem tirar ao natural de muito primor sobre recursado, mas o tal fazer é tão apartado e difícil, segundo me avisastes, que se não deve de exercitar sempre. Fernando - Senhor, não, mas há de se saber fazer e nunca se há de querer fazer.
156 Segundo o manuscrito, as duas frases seguintes são parágrafos individuais, contrariando a editoração da edição de 1892/1984 (que as transformou todas em um parágrafo único). 157 Na edição de 1892/1984 lê-se “... erguido e a modo que olha para o céu...”.
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Bras Pereira - Não sou de todo lembrado da proporção que púnheis em o Rosto, além dos tais terços de Vitrúvio, e dos dois espaços do olho, entre a orelha e o olho. Fernando - Antes o farei que dizê-lo por agora, porque ainda que lhe saibais mui certas as medidas, se por cima mais não voardes, facilmente [fol. 197] o perdereis, e ainda que o não conheçais, estará perdido o medido muito bem. FERNANDO BRAS PEREIRA
DOS OLHOS
Fernando - Passemos adiante e demos mais Luz a esta obra, e não deixei de referir e lembrar-me o que em as outras vezes tratamos. Bras Pereira - Oh, não quero, Fernando.158 Basta o que lembrado tenho. Procedei vós adiante e pois tocastes na luz, comecemos pelos olhos, porque deles tem começo toda luz, e eles são as janelas e portas por onde tudo tem a entrada. Fernando - Ora, ide-me vós lembrando o que quereis que falemos, e como o tiverdes feito, logo ficareis servido. Bras Pereira - Dizieis-me vós que, depois que os olhos estiverem treçadamente escolhidos e com treçado lume, que tentasse se naquele Rosto os olhos são principais [fol. 197v] ou se são os que menos valem, e os que menos se mostram; ou se têm eles tomado o melhor daquele grande castelo. Se os olhos são os que mais ocupam do Rosto, façamo-los de maneira que fiquem todas as outras feições apagadas diante deles, e que sejam eles mais proeminentes e realçados que tudo. Se, pelo contrário, são muito sumidos e pequenos, esforcemos de maneiras as outras partes e feições do Rosto, que fiquem os olhos escondidos e com o menor lugar. E se forem meãos estes olhos, conformemo-nos com o meio. Se são olhos fixos, façamo-los um pouco mais quietos; se são olhos graciosos (dizieis-me vós), se pudermos, façamo-los um pouco mais graciosos. E, finalmente, se são grandes, façamo-los um pouco mais grandes; e se forem pequenos, fiquem algum tanto mais pequenos. Fernando - Porém, melhor seria se possível fosse, fazer na Pintura os próprios vivos olhos que bulissem com as pestanas. Mas contudo, que dizia mais dos olhos?
158 Na edição de 1892/1984 lemos “Oh, não quero, Fernando!”, ao passo que na edição de Bury lemos “Oh, señor Francisco! No quiero...”.
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Bras Pereira - Afirmáveis [fol. 198] que naquela primeira linha ou arco que se faz para fazer a feição do olho acháveis tanto primor, e tanto em que deter, que era muito; e que a mão vos tremia e o ânimo, quando lançáveis a tal linha ou traço. Fernando - Bem me atrevia a achar tanto que dizer em a pintura dos olhos, que pudesse só disso encher um livro. Bras Pereira - Depois detenhamo-nos mais um pouco neles. Porém, ajudai-me, não me perca. Fernando - Depois de eleger a postura ou a vista dos olhos e de lhe deixar o espaço entre um ao outro, quamanho é um mesmo olho, far-se-ão as meninas deles com grande tento e sentido, ao próprio tamanho que ser devem; e assim se atentará com grande vigilância quamanho espaço fica no branco dos olhos, e quanto tomam os cercos dentro dos quais têm o centro as meninas; os quais cercos e as quais meninas hão de ser feitas com muito primor e cuidado, e assim mesmo as cores e [fol. 198v] lavores deles, e assim serão tocados os lacrimais mui levemente, principalmente nos formosos Rostos, e assim serão as pestanas tocadas a modo de leves raios, e da parte de baixo hão de ser mui levemente tocadas e mui poucas. Mas razão é de chegarmos a uma mui principal parte dos nossos OLHOS, e de infinito primor que são as SOBRANCELHAS, pelas quais os indiscretos homens e mulheres passam mui facilmente; e os avisados e entendidos não podem nunca passar dali.
DAS SOBRANCELHAS 159
Bras Pereira - Que excelências são, snr. Fernando, as que sentis em as sobrancelhas, que parecem tão fáceis? Feramando - Mais das que podeis cuidar, se as muito ao perto não entenderdes. Bras Pereira - Não passemos logo por elas. Fernando - As Sobrancelhas considerou o eterno e perfeito mestre [fol. 199] maravilhosamente sobre os olhos; e além de serem mui necessárias, fê-las para um mui perfeito ornamento e decoro do Rosto, e para um grande sinal, como uma grimpa das pessoas. Porque se estas são baixas, fazem um efeito e obra; e se altas aparecem, outro efeito e obra denunciam; e se são arcadas, diferente obra
159 Diferente dos outros capítulos de DTPN, na cópia manuscrita de Monsenhor Gordo não encontramos antes do anúncio do título deste capítulo os nomes dos interlocutores. Na cópia de Manuel Denis, por outro lado, a parte relativa às sobrancelhas foi incorporada ao diálogo sobre os olhos, não havendo separação entre os mesmos. Tal opção foi mantida por John Bury em sua edição.
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fazem e prometem das direitas. Nelas há muito em que falar sobre a fisionomia, e já outras vezes tenho falado largamente nos seus primores. Basta dizer e lembrar-vos que as sobrancelhas são formadas ao modo duma espinha de peixe, subindo os cabelinhos da parte de baixo como encostados pra cima, descendo e inclinando-se para baixo, e no meio se ajuntando mui docemente misclados formam as Sobrancelhas. Dos quais cabelinhos das sobrancelhas e dos que agora costumam as mulheres arrancar da sua própria testa (que é a mor graça e fermosura que têm) deviam antes de arrancar os dentes, que tirar um [fol. 199v] deles. E não sei qual é a razão porque, querendo elas parecer formosas, vão arrancar e tirar de si aquela parte em que consiste a mor parte da sua formosura e graça.160 Mas não quero começar a falar nisto, porque é prática em que sinto tanto, que virei a me não contentar com dizer pouco, e quero que seja antes seu o dano de quem se quer tanto mal, que o melhor perde de si. Isto digo das que o fazem, que a mulher ou dama que neste engano não cai, esta tal é Rainha das outras todas, e já os homens avisados e as formosas discretas vão caindo nesta conta. E quando alguma hora pelo Natural pintardes alguma pessoa, se lhe souberdes somente dar sobrancelhas, com todo vosso saber, não fareis pouco. E cuida uma simples duma Donzela de quinze anos, sem entender nada de Desenho, nem da Arte da Pintura, que mui ousadamente pode tirar e pôr as sobrancelhas assim como ela quer, e assim mesmo a COR que elas põem no Rosto, a qual [fol. 200] a mim está a mão tremendo quando cuido que num formoso Rosto, que com arte quero fazer parecer vivo, posso corar ou descorar de uma formosa cor. Bras Pereira – Oh,161 que grande obra me tendes ensinado.162 Mas parece-me, snr. Fernando, que me dissestes que entre um olho a outro não devia de pôr mais espaço que quanto é o tamanho de um mesmo olho, e eu vejo algumas pessoas que tem esse espaço muito largo, e outras que o têm muito conjunto e estreito. Fernando - Assim acontece algumas vezes, e aí convém conformar com o Natural que tiver cada Rosto, mas a Regra geral e o comum das pessoas é o que dito tenho; e todavia ainda que por fora pela superfície do Rosto pareça que uns têm os olhos largos, e outros estreitos e juntos, todavia no interior do osso e na CAVEIRA todos quase temos um mesmo tamanho e compasso; e aqui vos lembro que o tal espaço entre as sobrancelhas tem o mais do primor delas, e da testa e graça do Rosto. [fol. 200v] Bras Pereira - Muito bem está isto assim. Mas temos por ventura algum primor mais, que não seja dos olhos lembrado?
160 Na edição de 1984, o editor optou por separar esta frase da seguinte, dando origem a outro parágrafo. 161 Na edição de 1892/1984 lemos “Que grande obra me tendes ensinado”, ao passo que na edição de Bury lemos “Oh, qué grande obra me habéis enseñado!”. 162 Na edição de 1892 há tom exclamativo nesta frase.
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Fernando - O maior de todos eles, em que consiste não pouca parte de sua venustidade, mas não curemos de o dizer agora, e fique para outro Tempo. BRAS PEREIRA FERNANDO
DO Perfil do NARIZ Bras Pereira - Vamos logo adiante ou desçamos pelo Rosto abaixo. Fernando - Qual dos homens ou dos Pintores cuidará que a formosura do Nariz e o perfil e a graça dele é logo junto com os olhos, e antes que a boca, se no Rosto se não visse? Bras Pereira - Que se pode sentir ou aprender no perfil e graça do nariz de qualquer pessoa, ou formosa ou feia, ou de mulher ou de homem, ou de moça ou de um velho? Porque não o entendo.163 [fol. 201] Fernando - Não me espanto disso tanto quanto do primor que vejo que nisso deixais de ver; que é mui grande. Bras Pereira - Que Regra ou lição me dais em saber perfeitamente debuxar essa parte de proporção do Rosto? Fernando - Já, se é em figura que esteja de meio Rosto, cuidai que tendes a cuidado o governo e leme de uma nau da Índia, entre umas areias e uns penedos; e que só pelo meio deles haveis de seguir uma mui difícil e perigosa carreira, que apartando-se dos extremos passa sua aventurosa viagem. Bem assim estimo eu o perigo da difícil carreira de um perfil e traço de um formoso meio Rosto, agora toque no alto de um leve cavalo ou sentido164, agora seja grave e severo, tirado todo a um só Risco, ao modo dos formosos Rostos das Gregas e Romanas, ou de outra gentileza. E do tal Nariz o perfil é o mais difícil que tudo. Mas do Rosto treçado, ou fronteiro, [fol. 201v] ou Recursado não é assim, que a dificuldade está dentro do perfil, e é muito difícil de fazer; e nela se erra ou se acerta o Rosto e a graça dele. Bras Pereira - Que remédio para acertar e não errar o natural do tal Rosto? Fernando - Grande tento e proporção, e levidade no tocar do Nariz, e atentar se curto ou se dilatado, se colmado ou se ao contrário; e todas as diferenças dele e o que se mais há de advertir [é] quanto espaço toma ou deixa que nos detenhamos mais no nariz, porque há alguns praguentos que merecem passar-se mui depressa por eles, e todavia tem seu primor e seu desenho mui conveniente ao lugar onde estão.
163 Na edição de 1892/1984, esta frase tem tom exclamativo. 164 Na edição de 1892/1984, esta parte se encontra entre parênteses.
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Bras Pereira - Detenhamo-nos mais um pouco na doutrina deles, da feição deles. Fernando - Perdoai-me, e lembre-vos que nos Recursados e vistos por baixo [fol. 202] há muito que fazer e uns certos vislumbres que fazem a mulher formosa; e os vistos por cima também têm arte. Mas quero-vos fazer serviço de vos ensinar a conhecer um sinal por onde se conhece o nariz formoso, que sabe mui pouca gente. Bras Pereira - E qual é? Fernando - Quando quiserdes conhecer ou desenhar em pintura a perfeição e a formosura do nariz, haveis-la de achar num sentimento ou mensura que há de estar e correr direito sobre as ventas, amolgando um pouco e abaixando a ponta do nariz e quase quebrando-a em um mui doce degrau ou descanso, em que consiste todo o bom ar e graça do nariz. E quem isto não entender e achar que por estas palavras, não o entenda e perca-o.
BRAS PEREIRA FERNANDO
DA BOCA Bras Pereira - Muito poderá ouvir-se da vossa sobre a formosura da BOCA, que cuido que é principal parte no Rosto. Fernando - A terceira, que faz o perfeito número da formosa proporção, e muito se pode dizer dela. As Bocas são muito diferentes, e na pintura o são mais; e tanto primor têm as grandes como as pequenas, e podem ter ainda mais. São muito más de fazer de fantasia; e pelo natural querem-se ora tocadas levemente, ora afirmadas. Não se querem vermelhas em nenhuma maneira, mas de uma cor de rosa única. E o perfil ou linha direita delas tem grande primor e obra, as mais das vezes. A mulher formosa deve de ter o terço165 e o beiço de cima curto [fol. 203] e o debaixo muito dissimulado e mesclado com a carne, com um certo intervalo entre a carne, e o beiço um pouco proeminente e Realçado, que tem infinita graça; mas os cantos da formosa boca hão de ser que pareça que se vão esconder os beiços debaixo dos cantos da Boca. Isto é o que devem de ter as formosas bocas, mas o que ao natural as tirar, faço o mais que puder por imitar a verdade do que tira, e não deixe de trabalhar um pouco na Boca. Bras Pereira - Como não? Ou por que causa?166
165 Em Segurado lê-se “... deve de ter o beiço de cima curto...”. Em Denis lemos “... de tener lo terçero”. Em Bury temos “... de tenerlo tercero”. 166 Na edição de 1892/1984, existe um hífen que separa ambas as perguntas.
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Fernando - Porque é claro sinal de ignorante o que pinta os dentes de alguma figura, ou faz a boca de maneira que se lhe enxerguem, exceto quando se imita alguma boca que esteja rindo, que então para bem imitar o Riso, convir-lhe-á abrir um pouco da boca, e alçá-la dos cantos, e cerrar outro tanto dos olhos quanto se abre dela.167 Mas há certas Genealogias de Príncipes e Reis, como são El-Rei nosso Senhor e o Imperador Dom Carlos [fol. 203v] os quais têm um pouco o beiço de baixo descuidado e relevado para fora, o qual denota Majestade; e ainda que em alguma maneira parece abrir-se a boca, nem por isso descobre os dentes, mas ficam dissimulados.
BRAS PEREIRA FERNANDO
Do primor e lugar da ORELHA
Bras Pereira - Fica-nos agora por saber o restante do Rosto e da figura que ao Natural Desenhamos em Pintura que se mostra até os Braços e Mãos, do qual será coisa digna saber-se alguma lembrança vossa. Fernando - Grandes coisas me mandais em breve Tempo; mas o que do restante do Rosto fica, é lembrar-vos que a fronte ou Testa, faces, barba, olhos, nariz, Boca, com tudo o mais que tenho dito, sofre-se quando [fol. 204] em eles vai alguma imperfeição. MAS EM DUAS coisas se não permite em nenhum modo imperfeição, nem erro entre os graves mestres. Estas são: no lugar e direito em que estão as Orelhas e na feição elegante delas que há de ser tal, que logo na orelha se há de conhecer que tal há de ser o rosto, e de quem é; e a outra é no encaixar e na forma do pescoço ou garganta da figura, porque aqui os eminentes pintores põem todo o primor seu, mui dissimulado e secreto, e aqui os ignorantes e indoutos mostram mui descobertamente sua falta, arrancando as Orelhas muitas vezes da pessoa que contrafazem, e pondo-as mais acima, ou mais abaixo do que deviam de estar, que é coisa mui repreendida. Bras Pereira – Oh, que excelente aviso e lembrança.168 Fernando - Sim, é; e também o perfil ou talho da CABEÇA se deve de advertir e pintar com muito cuidado; e [fol. 204v] assim mesmo o perfil daquela face que menos se mostra no Rosto Treçado. Mas desçamos mais abaixo, ou subamos. Bras Pereira - Primeiro que daqui passemos me direis vós, pois sabeis quanto primor e cuidado os famosos Antigos e modernos puseram em o desenhar em Pintura169 os Rostos ou Testas do natural,170 qual é o maior primor que há nos
167 Em Felicidade Alves, a frase seguinte dá início a novo parágrafo. 168 Exclamações são encontradas nas edições de Bury e de Segurado. 169 Em Segurado lemos “... em o desenhar e pintar”. Em Denis e Bury lê-se “... en debujar en pintura...”.
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olhos (pois tornamos ao direito deles, onde se põem as orelhas confrontando, se não me engano, com o fim e direito do nariz)171 porque este primor deixastes de dizer dos olhos para outro tempo. Fernando - Sou contente. Quando vós tiverdes um Rosto ao natural acabado, e que virdes que todavia não bole, nem de todo se parece com a pessoa que tirais, posto que tem o seu compasso e as feições muito ao próprio, tocar-lhe-eis no meio das meninas dos olhos, e no meio do preto com um ponto de limpidíssimo branco, o qual se chama Realço. E este tal ponto, se é [fol. 205] dado em seu lugar, tem tanta graça e vigor, que faz logo parecer vivos os olhos e quase mover-se, se lhes já mais não falece. E se pelo contrário é posto fora de seu lugar e Tempo, muitas vezes apaga mais os olhos e os faz cegos. Bras Pereira – Oh, que excelente aviso.172 E qual é o próprio lugar deste Realço, ou deste ponto de LUZ? Fernando - Haveis de dar o tal ponto de luz ou realço branco ali onde a menina preta se quer ajuntar com o castanho, ou azul, ou verde, de maior círculo do olho; este é o seu lugar, sendo da parte do claro. Bras Pereira - Onde me mandais que toque mais, para fazer parecer vivo a um Rosto, que não bole? Fernando - Sabeis onde? Bras Pereira - Não sei onde. Fernando - É tocando-lhe um pouco nos olhos, e outro pouco na boca, e outro pouco em o nariz, e outro pouco na barba e nas faces (sabendo-o bem fazer). Torna vivo o que é morto, e parecer o que se não parece. [fol. 205v]
BRAS PEREIRA FERNANDO
DO CORPO Bras Pereira - Quanto ao Tirar ao Natural o Rosto de uma grande pessoa, já me tendes de algumas coisas avisado muito boas. Mas que devo de fazer, tirando-a até os braços e da cinta para cima? Fernando - Saberde-lo fazer, será já o primeiro. E isto só não vos bastará todavia sem saberdes mais estas lembranças: que as mãos lhe fareis despejadas e
170 Este trecho se encontra entre parênteses tanto na edição de Bury, quanto na edição de 1892/1984. 171 Este trecho se encontra fora dos parênteses na edição de Bury. 172 Nas edições de Segurado e Bury esta frase tem tom exclamativo.
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baixas, postas de boa postura e escolhida, cuidando que cada MÃO é de novo outro Rosto por toda a superfície e bom ar dos dedos até o extremo das unhas; e cuidai que não vai menos nela que em fazer vivos os olhos, os quais muito encomendo com as MÃOS. Depois fareis o ar e o despejo dos ombros, e os BRAÇOS bem metidos, e um deles Recursado, e o outro mais descoberto. E por cima deste tal pareça que volve um pouco o Rosto, com um gracioso contorno, porque dá grande vivacidade. [fol. 206] OS PEITOS e as aselhas em que se arreiga no COLO e se ajunta COM o CORPO serão com grande primor e verdade Pintados ao Natural. Mas vamos já mais adiante, pois que chegamos aqui, e do mais CORPO digamos, da Figura toda EM PÉ.173 Bras Pereira - Destes-me agora a vida, e não ousava a pedir-vo-lo, por me terdes dito tanto. E desejava eu muito de saber Tirar ao Natural uma pessoa toda inteira, e do seu próprio tamanho e medida desde o assento dos PÉS até subir à CABEÇA, porque me dizem que em ITÁLIA se costuma e que o costumam Reis Cristãos por se verem pelo MUNDO. Fernando - Louvados são em ITÁLIA os RETRATOS tirados todos em Pé ao Natural, e é por mostrar mais do homem. Mas louvam mais as Pinturas ou Retratos que eles Pintam assentados em seus assentos, escolhidos e quietos, ainda que sejam belicosos e armados os Príncipes que ao Natural são [fol. 206v] Pintados em Retrato. E vê-se isto ser verdade em a Cidade de FLORENÇA, que pode em parte ser chamada MÃE DA PINTURA, em a obra das SEPULTURAS dos MÉDICIS, que maravilhosamente esculpiu em mármore M. MICHEL ANGELO, PINTOR FAMOSO, os quais Príncipes em seus Retratos estão Assentados em seus assentos e armados, ou pacíficos. E em outros muitos exemplos da nobilíssima ANTIGUIDADE poderei provar o que digo em a Cidade de ROMA. Bras Pereira - Digamos alguma coisa dos que se pintam em pé e assentados. Fernando - Muito podia dizer-vos, mas baste lembrar-vos que o mesmo cuidado e advertência que vos mandei ter no ROSTO e no escolher das Mãos e dos Braços, que o mesmo ponhais em o assento dos PÉS, e no repartir e postura das Pernas, porque tem grave Primor os PÉS em a Arte do DESENHO. Mas a proporção vos encomendo tanto [fol. 207] como tudo, e a medida da pessoa que seja certa, e que não caia, conformando o posto que escolherdes dela com alguns preceitos das figuras antigas que eu em um Livro DA PINTURA escrevi. Bras Pereira - E onde acharei o tal LIVRO para vê-lo? Fernando - Em LISBOA deixo este livro. E lembre-vos que a Figura que ao Natural tirardes em Retrato para fazerdes de fantasia, que debaixo do vestido há de ter carne, e debaixo da carne metidos os OSSOS porque aqui cometem grandes ignorâncias os ignorantes.
173 Na edição de Felicidade Alves esta frase dá origem a um outro parágrafo.
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BRAS PEREIRA FERNANDO
DO VESTIDO
Bras Pereira - Também deve de ter seu primor o Vestido em vossa lembrança de quem ao natural Pintamos o Retrato? Fernando - Antes muito, porque assim o HOMEM como A MULHER, da cabeça até os Pés devem de parecer-se consigo, tanto no ornamento e Trajo de suas pessoas, como em o mesmo ROSTO, e como nos olhos e na boca, porque já do primeiro Traço e perfil do barrete, [fol. 207v] ou da gorra, ou toucado se há de vir parecendo tanto com seu dono, como quando tiver olhos. Bras Pereira - Isso é porventura coisa possível? Que se pareça já no vestido e perfil da pessoa, a pessoa?174 E que se conheça quem é? Fernando - Coisa muito grande é;175 mas quero-vos dizer mais, que parece ainda mais impossível. Uma coisa determino de fazer em a Arte da Pintura, a qual ainda não fez homem no Mundo: e esta é, se tirar ao Natural El-Rei Nosso Senhor ou a Rainha fazer uma coisa mui grande. Bras Pereira - Dizei-me coisa tamanha. Fernando - Desejo, querendo-o DEUS, quando começar a Desenhar os Retratos de suas Altezas, ou el-Rei ou a Rainha, que sem lhes pintar ainda os olhos, nem o nariz, nem a boca (que são os indícios por onde se conhecem as pessoas, quando estão bem pintadas), de fazer somente em a feição e perfil ou talho da cabeça e do vestido ou do corpo, que quem quer que o tal começo vir, diga sem dúvida ser aquele ou el-Rei ou a Rainha, não tendo ainda nada no Rosto, mas somente no primeiro Risco e talho que faz a feição da [fol. 208] cabeça e do corpo; isto, porque o tenho eu por muito, desejo eu de o fazer. Bras Pereira - Quando vir isso, crê-lo-ei, que agora impossível me parece. Fernando - Prometo-vos só por isso de o fazer, se DEUS me leva a Lisboa, ou à corte.176 E o que no vestido vos torno a encomendar: que sempre prometa estar debaixo dele a pessoa escondida e coberta fielmente; e assim mesmo que tenha todo o vestido muito só numa manga, só numa aba, o parecer-se com seu próprio dono, até nas luvas, na barreta, na espada, e no punhal, no saio e na capa, e em tudo, e até nas pernas, e nos pés, e calçado. Ora já, se for alguma ínclita mulher ou Princesa desde o sumo do toucado até o fim da sua Roupa pareça sempre consigo, e não com outrem.
174 Na edição de Segurado há um hífen que separa esta frase da anterior. 175 Na versão de 1984 temos aqui uma exclamação. 176 Na edição de Segurado há a criação de um parágrafo que se inicia com a frase seguinte.
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BRAS PEREIRA FERNANDO
FINAIS AVISOS NO TIRAR AO NATURAL [fol. 208v] Bras Pereira - Que finais avisos me deixais e que doutrina no Pintar ao NATURAL o Retrato de qualquer pessoa? Pois já que aqui chegamos, e é Tempo de acabar. Fernando - Tempo era de descansar, mas quero-vos deixar alguns avisos por derradeiro.177 E é um, que em tudo o que tiver descoberto a pessoa ínclita, que ao Natural Pintardes o Retrato, ou da carne, ou do vestido, se não pareça em nenhum modo com outra pessoa alguma, e antes se não pareça com ninguém, que parecer a pessoa que não é; e se for pessoa alegre, não se pareça com triste, e se for pessoa triste e recolhida, não pareça com as alegres e fáceis; se for pessoa sobre o gordo, não se pareça com magro; nem o magro com os gordos178; se for desairosa a pessoa, não pareça com grande ar e despejo. Mas tendo ela ar e graça e bom despejo ou no Rosto ou em as mãos, ou nos braços, não se lhe perca uma onça dele; e se for pessoa de pouca idade, pareça ainda de menos idade. Bras Pereira - E se for de muita idade? [fol. 209] Fernando - Pareça ainda, se quiserdes, de menos idade. Bras Pereira - E se for pessoa formosa? Fernando - Pareça ainda mais formosa. Bras Pereira - E se for feia? Fernando - Pareça que não é tão feia. Bras Pereira - Mandais que tenha a figura do Natural muita sombra, ou pouca sombra? Fernando - Se for bem feita a muita sombra, tenha muita sombra; se for bem feita a pouca sombra, tenha pouca sombra, que não vai senão em ser bem feita e igual. E eu louvo mais a muita sombra, que parece que é pouca, e digo mal da pouca, posta tão fora do seu lugar, que parece muita. E tem grande louvor, grande proeminência, grande ousadia a sombra dada perfeitamente. Bras Pereira - Que primor, além deste, me deixais em Memória desta obra, nos Retratos do natural?
177 A frase seguinte dá origem a outro parágrafo, em 1984. 178 Na edição de 1892/1984 lemos “... nem o magro com o gordo”.
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Fernando - A venustidade, que é uma maneira de resplendor inflamado, que cai dos formosos olhos pelas faces da mulher formosa. Estas vos lembro e deixo em grande primor na Pintura, e a pouca venustidade que convém às [fol. 209v] outras pessoas, porque não há coisa mais ignorante que fazer uma velha ou um velho em Desenho com a boa graça e venustidade que não é sua, nem se lhe veja de fora na superfície da pele, que já na madura idade a formosura deve de estar escondida dentro no ânimo e na alma, e não resplandecer senão na face das boas obras. Bras Pereira - Que primor me deixais, além deste, dos últimos? Fernando - E não dos últimos, mas um dos primeiros vos ajuntarei com estes, para que os vamos dizendo todos. E este seja que tenteis grandissimamente nos Retratos do natural os direitos e correspondências em que se devem de pôr todas as coisas. Bras Pereira - Que chamais os direitos e correspondências, em que se devem de pôr todas as coisas? Fernando - Que haveis de atentar, quando ao natural Pintardes, o direito em que ficam os olhos, e que não esteja um mais alto que o outro, e o direito paralelo e que [fol. 210] as mais das vezes os cantos da boca [ficam] debaixo dos lacrimais dos olhos, por linha perpendicular ou paralela, e que vejais em que través e nível fica a orelha com o nariz, e qual está mais baixa e qual menos; e assim pelo conseguinte todas as outras partes e feições das pessoas. Bras Pereira - Não me tinheis vós ainda lembrado este primor. Fernando - EU não digo logo tudo, mas digo-o pouco a pouco. E para mais conhecimento e certeza destes direitos e correspondências em que se devem de pintar e sitiar todas as coisas, é mui acertado o que eu tenho descoberto há poucos anos do juízo do ESPELHO, o qual creio que já dos antigos seria achado e mais segundo o louva LEO Baptista num livro que novamente se imprimiu da PINTURA. Mas eu, sem ter nenhuma notícia do tal livro, tinha já escrito este, qualquer que ele é; e folguei de o não ter visto, posto que no ano que se ele em ITÁLIA imprimia, nesse mesmo ano em PORTUGAL eu este que escrevo, escrevia.179 E assim mesmo já tinha [fol. 210v] achado mui desenganado conselheiro no tirar do Natural e nos direitos das coisas, o ESPELHO, o qual ajuda grandemente os Retratos, sendo vistos e examinados com ele. E certo é, como diz LEO, que a PINTURA vista no ESPELHO, se lhe acrescenta um não sei quê de mais graça e venustidade. Bras Pereira - Porque dissestes que folgastes de não ter visto antes de escrever o vosso LIVRO DA PINTURA o que dela escreveu LEON Baptista?
179 Na edição de Felicidade Alves há a criação de um parágrafo que se inicia com a frase seguinte.
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Fernando - Porque não tomasse alguma [doutrina]180 dele, a qual me danasse e fizesse no meu livro imitar; porque aquele douto homem escreveu como artífice e matemático na Pintura, e escreveu muito discretamente, mas eu escrevia por outra via diferente alguns avisos e primores que nesta ciência deles nasceram comigo sem eu ter nisso louvor deles. Pratiquei com eminentes DESENHADORES, e um deles foi M. MICHEL ANGELO em ROMA; e os mais deles aprendi na mesma cidade de ROMA da mui ínclita e nunca louvada [fol. 211] PINTURA E ESCULTURA ANTIGA, em o qual eu não darei alguma vantagem a Leon Baptista, que posto que mui entendido nesta ARTE foi, todavia tendo-lhe estas vantagens, que digo. E esta é a razão por onde folgo de não ter lido este seu livro que novamente tem por seu, sobre a arte da Pintura, porque ele quis ir por um caminho, como ele quis eleger, ao grande TEMPLO DA PINTURA, e foi a ele. E eu, como bárbaro Português, aventurei-me a subir por outros montes e degraus com o favor do meu natural, e de M. ANGELO, e da ANTIGUIDADE, os quais não me deixaram passar daqui.181 E porém eu me contento com não ver ir diante de mim algumas outras pegadas de Espanhol, Castelhano, nem Português e porventura nem doutros estrangeiros ou Latinos. E quero antes a minha própria e pouca facúndia do que na Grande Ciência da PINTURA sinto, que muito mais, sendo emprestado e alheio. Bras Pereira - Qual é o mais eminente Pintor em Pintar [fol. 211v] Retratos ao Natural, que vós saibais em EUROPA, Fernando? Fernando - O mais famoso Pintor de Retratos que eu estimo haver em cristãos, que são a flor deste Mundo, tenho eu que é TIZIANO em VENEZA, posto que a mim me disse o IMPERADOR em Barcelona perante o nosso DUQUE de Aveiro, e perante o Duque de Albuquerque, e perante o Duque de Alva, que melhor o tirara Do natural Antonio D‟OLLANDA em Toledo, de iluminação, que TIZIANO em Bolonha. Porém eu dou vantagem a TIZIANO. Bras Pereira - Fica-nos por dizer mais alguma coisa no tirar ao NATURAL? Fernando - Muito, em que ainda não tocámos uma só palavra. Bras Pereira - Oh, dou-me a DEUS:182 dizei-me sequer no que deixamos de falar para que o saiba, e com isso me contentarei. Fernando - Fica-nos por dizer como se Pinta uma pessoa do Natural, tirada de grande em pequeno, isto pela virtude da diminuição do Desenho, e em tão pequeno espaço que pode caber o Retrato de um grande homem no tamanho de um [fol. 212] ÓCULO e em menos. E pelo contrário, pela mesma razão do
180 Apagada no manuscrito de Gordo (em que lemos apenas o “d” inicial), aparece por completo na tradução de Denis. 181 Na edição de 1984 há a criação de um parágrafo que se inicia com a frase seguinte. 182 Na edição de Felicidade Alves lemos “Oh, dou-me a Deus!”, ao passo que na de Bury lemos “Oh! Válame Dios!”.
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multiplicar do Desenho pode-se crescer e formar um Rosto de um menino, ou de uma moça, e fazer que tenha a cabeça tamanha como de um Gigante, e que todavia esteja feita por tal arte e primor, que não seja julgada por de Gigante, mas por de moça ou de menino. E isto só pela grande força e virtude do DESENHO, que é eficacíssima e poderosa, pois que naquele pequeno espaço pode dar as feições e membros proporcionados de um gigante; e no grande tamanho de uma figura, que seja na vista tamanha como um Gigante, pode estar proporcionadamente recolhida a tenra idade de um menino; e é isto coisa mui grande. Bras Pereira - Grande força e virtude é essa do DESENHO na183 Pintura. Mas porque costumam os italianos Pintores servir-se nos Retratos que tiram com o lume da candeia? Fernando - Fazem-no para mais determinação das sombras184 e para mais clareza do claro, e mais força do escuro; e também o fazem para mais declaração dos sentidos, ou sentimentos; [fol. 212v] mas deixemos já esta prática, que me começa a cansar. Bras Pereira - Serei contente como me disserdes, qual é o último primor que se pode encerrar nesta Doutrina do TIRAR AO NATURAL? Fernando - Pois que vos determinais, quero-me determinar eu também. Digo que o último primor que se pode encerrar nesta doutrina, e a última e final mão ou lição, com que dareis perfeição a toda obra, é o REALÇO e a clareza ou Resplendor primeiro, que dá a luz no Rosto sobre o mais alto dele, o qual acaba a OBRA e este LIVRO.
FIM
[fol. 213] Acabei-o de escrever sem emendar, em Santarém, hoje, quinta feira, Três DIAS do Mês de Janeiro NA ERA DO NOSSO SENHOR JESUS CRISTO DE MDXXXXIX.
183 Na edição de 1892/1984 lemos “... desenho da pintura”. 184 Na edição de 1892/1984 lemos “... mais determinação da sombra...”.
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3. O RETRATO SEGUNDO “DO TIRAR PELO NATURAL” 3.1. “FIGURA CAVATA DAL NATURALE” O tema de “Do tirar pelo natural”, como seu próprio título indica, é o retrato.
Durante o Renascimento na Itália foi comum a utilização do termo ritratto al
naturale, dizendo respeito ao embate direto entre retratista e retratado, como
explica Joanna Woods-Marsden.185 A figura construída teria sido “tirada pelo
natural”, ou seja, feita durante o encontro entre o artista e aquele que será
representado. Dependendo de sua qualidade, aquela imagem criada poderia
mesmo ser confundida com a “natural”, com o indivíduo que esteve à disposição
do retratista, dando uma segunda conotação possível para o termo “tirar pelo
natural”, confundido com o exemplo então vivo daquela imagem plástica.186
Édouard Pommier discute na introdução de seu livro a distinção entre os
verbos imitare e ritrarre, encontrados nos dicionários italianos do século XVI.187 O
primeiro dizia respeito a “fazer a imagem de qualquer coisa”, ao passo que o
segundo denotava “fazer a cópia literal, traço por traço, de qualquer coisa”.
Retratar, neste momento, não significava ainda exclusivamente fazer a cópia de
um humano, situação bem diferente da encontrada no século XVII em que o
“Tesoro de la lengua castellana o espanol” (Madri, 1611) já definia o retrato como
“a imagem imitada de um personagem”188. Em 1612, com a publicação do
“Vocabolario degli Accademici della Crusca” (Veneza, 1612) a palavra “ritratto” já
185 WOODS-MARSDEN, Joanna. “„Ritratto al naturale‟: questions of realism and idealism in early Renaissance portraits” in Art Journal, Nova Iorque, 1987, v. 46, págs. 209-216. 186
Esta dualidade pode ser percebida também dentro da literatura poética portuguesa contemporânea à Francisco de Holanda. Pero de Andrade Caminha (1520-1589), ao final do poema “Dum retrato de minha irmã Dona Caterina [que se tornou freira], escreve: “Esta é de Rufo a imagem verdadeira, / e Rufo imagem é desta figura. / E Rufo onde está agora? Na cadeira. / Que faz nela? O que faz nesta pintura”. Há aqui a idéia de analogia entre imagem tirada pelo natural e a “naturalidade” do retrato pintado. 187 POMMIER, Édouard. Théories du portrait – de la Renaissance aux Lumières. Paris: Gallimard, 1998, pág. 17. 188
O texto de Francisco de Holanda e esta concepção de retrato enquanto imitação também podem ser relacionados, por exemplo, com a tratadística veneziana contemporânea. Paolo Pino, em 1548, afirma que toda pintura é imitação e, consequentemente, um dos gêneros mais valiosos desta é o retrato: “E dado que, todas as artes imitam a natureza, a pintura sobre todas as outras com maior integridade imita todas as coisas. Esta é aquela divina invenção cujo sujeito se alça à distinção dos dois mundos, que conserva a memória dos homens mostrando a sua efígie, que engrandece a fama dos virtuosos, compondo de outro modo do que com palavras, os seus atos adornados com eterna glória, excitando os posteriores a se lhes igualar em proeza” in PINO, Paolo. Diálogo sobre a pintura. São Paulo: USP, 2002, pág. 44.
77
se encontrava como “figura cavata dal naturale” (“figura tirada do natural”).
Segundo o dicionário Houaiss, a utlização da palavra em português é dada desde
o século XV, porém com origem desconhecida.189
O artigo de Woods-Marsden é interessante aqui, pois, além de exemplificar
que a utilização de termo semelhante ao título do texto de Francisco de Holanda já
era encontrada no século XV na Itália (vide o enfoque de seu texto, “early
Renaissance”, o “primeiro Renascimento”), também indica em seu título dois
tópicos que, de certo modo, perpassam todo o “Do tirar pelo natural”: realismo e
idealismo. Ambos os termos não são adequados para lidar com esta problemática
dentro do Renascimento, visto que foram criados no século XIX e se relacionam,
por um lado, com a pintura francesa representada por Courbet e Millet, ao passo
que a outra palavra ecoa os escritos de Immanuel Kant. De todo modo, tratam-se
de posturas diferentes e um tanto quanto didáticas no que diz respeito à
apreciação e concepção dos retratos.
Segundo a autora, alguns retratos eram recebidos criticamente como
“quase naturais”, devido a uma bem-sucedida capacidade do artista, ao passo que
outros eram criticados negativamente por serem “realistas” demais, como seria o
caso de parte da produção de Andrea Mantegna, causando a desaprovação dos
comanditários.190 Essas posturas diferentes serão úteis na apreciação e
apresentação do modo como Francisco de Holanda problematiza o retrato em seu
texto, entre a mimesis fiel do retratado e a idealização do mesmo. O retrato visto
como uma “imagem negociada”191, conceito sugerido por Sérgio Miceli para a
análise de parte da produção retratística de Cândido Portinari.
189 HOUAISS, Antônio & VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Hoauiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, pág. 2448. 190 A autora confronta um poema de Angelo Galli, escrito em 1442, sobre os retratos de Pisanello (“O mirabili pictor, che tanto / Ch‟a la natura tu sei quasi equale...” com o epistolário de Isabella d‟Este sobre um retrato feito por Andrea Mantegna (“... the painter has done his work so badly that it does not resemble us in the slightest way”). Cf. WOODS-MARSDEN, Joanna. “„Ritratto al naturale‟: questions of realism and idealism in early Renaissance portraits” in Art Journal, Nova Iorque, 1987, v. 46, págs. 209-210. 191 “Os retratos constituem, antes de tudo, o fruto de uma complexa negociação entre o artista e o retratado, ambos imersos nas circunstâncias em que se processou a fatura da obra, moldados pelas expectativas de cada agente quanto à sua imagem pública e institucional, quanto aos ganhos de toda ordem trazidos pelas diversas formas e registros de representação visual, enfim, quanto ao manejo dos sentidos que retratistas e retratados pretendem infundir, seja na própria obra, seja nos
78
3.2. RETRATISTAS E RETRATADOS “Do tirar pelo natural” tem início por um prólogo. Neste, Francisco de
Holanda explica que estando a caminho de Santiago junto ao Infante Dom Luís,
filho de D. Manuel I e D. Maria de Aragão, após passar por diversas cidades,
chegou ao Porto. Lá habitava Brás Pereira, grande amigo seu. É com ele que este
diálogo será transformado em texto. As mesmas perguntas que são feitas quanto
à presença de Michelangelo em “Diálogos em Roma” podem ser aplicadas neste
caso: teria Holanda efetivamente encontrado Brás Pereira no Porto e travado
estes diálogos? Ou seria este apenas um exemplo de humanista português ideal a
ser inserido no texto, assim como no caso do artista italiano, uma forma de dar
maior verossimilhança e mesmo respeito às palavras de Holanda? Seria este texto
um “retrato literário” de seu amigo e/ou de seu encontro?
A diferença aqui é que em vez de Francisco de Holanda se colocar no lugar
de aprendiz, como acontece nos “Diálogos em Roma”, em que Michelangelo está
na posição de mestre, a relação aqui é inversa; Brás Pereira seria o discípulo de
Holanda, um sábio no campo da retratística. Não devemos esquecer também do
modo como ele descreve seu amigo, ou seja, um “homem fidalgo de muito gentis
partes e habilidades” que “na arte da Pintura tem muito engenho e natural”. Estas
características, segundo o próprio, “... se acham em mui poucos fidalgos
portugueses”.192 Não se trata de um aprendiz qualquer, mas sim de alguém já
iniciado na arte de se tirar pelo natural. Brás Pereira pergunta e Fernando
(pseudônimo para Francisco de Holanda) responde. Em alguns momentos é este
último quem lança dúvidas a Pereira, como que para testar seus conhecimentos.
Quando necessário, o mestre dá conselhos precisos ao discípulo, de acordo com
a eficiência de suas respostas.
Estas falas teriam acontecido já no retorno de Holanda para Lisboa, quando
teve de voltar ao Porto a fim de entregar ao mesmo Brás Pereira algumas
“cabeças de gesso” romanas que deviam ser encaminhadas a Lisboa por via
parâmetros de sua leitura e interpretação” in MICELI, SÉRGIO. Imagens negociadas – retratos da elite brasileira (1920-40). São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pág. 18. 192 Citação extraída da edição crítica da presente dissertação de mestrado.
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marítima. É sabido, como informa John Bury em sua edição do texto holandiano193,
que Pereira era efetivamente um fidalgo e, mais que isso, um iluminador. Faleceu
em 1583 e realizou dois manuscritos iluminados que se encontram atualmente em
posse da família dos condes de Alcaçóvas. Um deles data de 1575 e, segundo
Bury, é um “Livro das armas” que contém escudos de diversas famílias nobres
portuguesas. Para a portada deste livro o iluminador teria feito um auto-retrato em
um gabinete, a trabalhar com um cachorro a seu lado, em uma configuração visual
que dialoga com as representações de São Jerônimo durante o Renascimento.194
Albrecht Dürer – “São Jerônimo em seu gabinete” – 1514 – Staatliche Kunsthalle, Karlsruhe.
Nos seus três primeiros capítulos as questões giram em torno da relação
retratista e retratado. Em “Como poucos podem fazer perfeição”, como era comum
à tratadística no Renascimento, o autor recorre a um exemplo da Antiguidade,
retirado da “História natural” de Plínio, o Velho.195 A anedota sobre a relação que
Apeles teve com bela mulher de quem Alexandre, o Grande teria solicitado um
retrato dá o tom de intimidade que fica explícito no texto quanto ao contato entre
retratista e retratado. Retratar é um ato tão nobre que Holanda o compara à
193 HOLANDA, Francisco de. Del sacar por el natural – según la traducción de Manuel Denis (1563). Edição de John Bury. Madri: Ediciones Akal, 2008, págs. 19-20. 194 “Para la portada, Blas de Pereira Brandão dibujó a tinta y pluma un autorretrato sentado ante la mesa de trabajo de su estudio, atraviado con una túnica larga forrada de piel y un sombrero alto, con su perro al lado” in Ibidem, pág. 20. 195 Ibidem, pág. 41.
80
criação divina, feita “à imagem e semelhança” (Gênesis, 1:26-27), assim como um
retrato deve ser feito.
O primeiro preceito ditado por Holanda é de que o artista faça poucos e
bem escolhidos retratos. O autor sempre tende a um caminho do comedimento;
nem muito, nem pouquíssimo, mas o número necessário de obras para que o
artista possa trabalhar com perfeição e para que o espectador possa ver esta nas
imagens. Ironicamente, porém, no último capítulo de seu texto ele irá eleger logo
Tiziano Vecellio, responsável por mais de duzentos retratos, como o maior
retratista vivo; aqui a crítica ao grande número de obras fica de lado.
Como Bury nota, há aqui uma crítica aos “pintores forasteiros”, que tirariam
pelo natural “grande soma de pessoas”.196 Por “forasteiro”, Holanda quer dizer os
artistas do “Norte da Europa”, como fica claro no último capítulo deste texto, onde
ele diferencia regiões geográficas: “... eu me contento com não ver ir diante de
mim algumas outras pegadas de Espanhol, Castelhano, nem Português e
porventura nem doutros estrangeiros ou Latinos”.197 Também de modo irônico é
justamente um “estrangeiro”, um pintor “nórdico” e de grande número de retratos,
que irá ser convidado a integrar a corte de D. João III, Anthonis Mor, em 1551.
O outro preceito desta primeira parte do texto de Holanda diz respeito
àqueles que serão retratados. Não é qualquer um que merece ter sua efígie
materializada, mas apenas aqueles que servem como exemplos virtuosos “para
ficarem em Memória à posteridade e TEMPO”.198 Príncipes, reis, imperadores,
integrantes do clero, grandes militares, artistas visuais ou literários podem e
devem ter suas imagens perpetuadas. Qualquer pessoa também poderia ter a
imagem de alguém de sua família para tê-la como modelo de comportamento,
respeito e virtuosidade para seus futuros atos199, algo que Plínio, o velho também
196 Citação extraída da edição crítica da presente dissertação de mestrado. 197 Idem. Grifo meu. 198
Idem. Esta idéia de Francisco de Holanda ecoa “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, de 1556. No seu oitavo canto, estrofes 1 a 42, o autor descreve uma série de retratos de ilustres portugueses estampados nas bandeiras de seda dos navios de Portugal presentes no porto indiano. Trata-se de uma espécie de galeria literária de retratos de exemplos militares; algo análogo ao proposto por Holanda em seu texto. 199
Os retratos, segundo Holanda, tamb ém poderiam funcionar como um modo para pessoas vivas terem acesso à memória visual de entes falecidos. O poeta Pero de Andrade Caminha, em poesia dedicado a um retrato de sua irmã Dona Caterina, perpassa esse tópico. Este diz: “Quando me
81
cita em sua “História natural” como um modo de utilização dos retratos na
Antiguidade.200
Já em seu segundo capítulo, “Como nenhuma obra perfeita deve ser vista,
antes de ser acabada”, o autor dita o modo como o ato do “tirar pelo natural” deve
se dar. Primeiramente, o pintor (que é o exemplo que Holanda oferece) deve se
colocar perante o retratado, ambos sentados e com uma mesa os separando.
Sobre esta o artista deve iniciar suas primeiras linhas do futuro retrato. Essenciais
e bem frisados pelo português são o silêncio e a solidão. Retratista e retratado
devem estar sozinhos e nada deve atrapalhá-los neste momento inicial da
mimese.
Tamanho deve ser o respeito pela concentração do artista que, na
sequência, Holanda irá dizer que “... se pudera estar o mesmo Desenhador só,
sem ninguém, e ter na fantasia e memória a pessoa que há de pôr em obra e
pintar, crede que muito melhor seria que tê-la diante dos olhos visíveis se a visse
com os invisíveis”.201 Aqui temos a tensão indicada anteriormente entre o realismo
e o idealismo. Se por um lado o autor declara que o artista deve sentar perante o
retratado, logo após ele irá aconselhar que o mesmo tenha na mente a imagem
deste. A relação com um entendimento do fenômeno artístico enquanto disegno,
no seu melhor sentido michelangelesco (e neoplatônico), pode ser interpretada
aqui. Mais do que imitação do natural, a arte é uma tentativa de transposição
plástica de seu desenho interno, de sua imagem mental, de sua “fantasia”, como
Holanda algumas vezes utiliza a palavra. Lógico que a esta leitura do trecho acima
também podemos somar a quietude do ambiente daquele retratista que se
lembra quanto acrescentaste / fermosa Caterina a fermosura / com dar a vida à vida que tomaste, / com dar o amor divino ess‟Alma pura / e vejo este penhor que me deixaste / para poder-te ver nesta pintura: / me alegro de te ver nessa verdade, / choro de ver-me nesta saudade”. 200 “... o primeiro que, a título privado, dedicou medalhões em local religioso ou público, foi, de acordo com minhas indagações, Ápio Cláudio, cônsul com Públio Servílio no ano 259 da Cidade. Na verdade, ele colocou seus antepassados no templo de Belona e decidiu expô-los em lugar alto e visível para leitura de seus títulos honoríficos; belo espetáculo, sobretudo se uma multidão de crianças, reproduzidos em miniatura, desse ao mesmo tempo a impressão de uma ninhada de descendentes. Tais medalhões ninguém os contempla sem prazer e aprovação” in PLÍNIO, o Velho. Editado por Antonio da Silveira Mendonça. “Seleção e tradução da Naturalis Historia de Plínio, o Velho” in Revista de história da arte e da arqueologia, v. 2. Campinas: 1995/1996, pág. 319. 201 Citação extraída da edição crítica da presente dissertação de mestrado.
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encontra sozinho em seu gabinete de estudos, da mesma forma como Brás
Pereira se auto-retrata na portada de seu livro iluminado.
No final deste segundo capítulo o autor aconselha que o artista não mostre
a sua obra a nenhuma pessoa antes dela estar pronta. Em contra-partida, ao
terminá-la, esta deve ser mostrada aos quatro cantos do mundo, assim como
diversas gravuras foram baseadas em retratos pintados e alastrados pela Europa
durante o Renascimento. A única exceção aberta é o caso do artista querer
mostrar sua obra a “um só eminente e avisado Mestre de Pintura”.202
Os diversos suportes para o retrato são listados por Francisco de Holanda
em seu terceiro capítulo, “Do escolher o posto e a Vista no tirar ao natural”.
Fazendo coro à observação de Rafael Moreira203 sobre a predominância da
iluminura na relação que o autor faz em “Da pintura antiga” de grandes artistas do
Renascimento, a primeira mídia na lista é a própria iluminação. Após esta
seguem: “... Pintura de óleo, de Pintura de fresco, de pintura de têmpera, e de
escultura em mármore ou pedra, e em relevo de prata, ou de metal e bronze, ou
em fundo e doutras maneiras em que tiraram os famosos homens antigos e alguns
modernos...”.204
Dentro desses suportes os indivíduos devem ser retratados do modo mais
verossímil possível. Para tal, faz-se necessário que se escolha o “posto” e a “vista”
que melhor comporão o rosto daquela pessoa. Grosso modo, parece-me que com
estas duas palavras Holanda está a refletir sobre o enquadramento de alguém
dentro de um retrato. Como ele próprio escreve, “... se a pessoa que Pintamos é
mais quieta e sossegada que inquieta e desassossegada, que daquele posto ou
feição a pintássemos que pareça mais quieta e conforme ao que sempre
costuma ordinariamente parecer”.205 O temperamento do retratado deve
transparecer pelo modo como seu corpo e, principalmente, seu rosto serão
conjugados naquela imagem. Tudo deve contribuir para que a figura seja tomada
como a natural.
202 Citação extraída da edição crítica da presente dissertação de mestrado. 203 MOREIRA, Rafael. “Novos dados sobre Francisco de Holanda” in Sintria, vol. I-II, 1982-1983, págs. 649-651. 204 Idem a 15. 205 Idem. Grifo meu.
83
E quais são os formatos do retrato? Holanda diz que três são os principais:
fronteiro (o retrato frontal), meio rosto (retrato em perfil) e treçado (o vulgo “três
quartos”). Junto ao breve comentário que ele faz de cada um deles existiam
desenhos em seu manuscrito original. Outro modo de configurar um rosto seria de
modo recursado (escorçado), dando a impressão de que a pessoa foi retratada
vista por cima ou por baixo; plongée e contra-plongée, segundo a linguagem
cinematográfica. O melhor destes modos seria o recursado, inclinado à direita,
porque “... mostra parte da fronte, e parte do perfil; e ambos, como digo, fazem
uma igual desigualdade mui conforme e escolhida”.206
Após estabelecer as formas, elementos e regras para que o retratista
consiga realizar uma boa obra, o autor irá comentar entre os capítulos quatro e
oito acerca do poder e da importância do rosto para um retrato.
Pisanello – Retrato de Leonardo d’Este – 1441 – Accademia Carrara, Bergamo. Albrecht Dürer – Auto-retrato – 1500 – Alte Pinakothek, Munique.
206 Citação extraída da edição crítica da presente dissertação de mestrado.
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Antonello da Messina – Retrato de um homem – 1475 – National Gallery, Londres. Giovani Savoldo – Retrato de um homem de armadura (“Gaston de Foix”) – 1529 – Museu do Louvre, Paris.
3.3. O PODER DO ROSTO
“Torna vivo o que é morto, e parecer o que se não parece”.207
Esta frase, a última do oitavo capítulo de “Do tirar pelo natural”, intitulado
“Do primor e lugar da ORELHA”, sintetiza os conselhos dados por Francisco de
Holanda no que diz respeito à criação visual do rosto do retratado. Mais do que
isso, ela também define de modo preciso o que todo retrato (pelo menos antes do
surgimento da fotografia) acaba por ser: uma ilusão, tela e tinta, pinceladas, uma
abstração geométrica, algo “morto” que é tornado vivo devido à destreza do artista
e, mais do que isso, devido à identificação daquela cópia com o seu original; a
capacidade de fazer aquele objeto se parecer com alguém.
Os olhos são o tema de seu quarto capítulo, um dos três elementos
essenciais do rosto, sendo seguidos pelo nariz e pela boca. Holanda indica que o
artista copie e corrija, faça a mimese e depois seja capaz de melhorar aquela
imagem criada, não sendo alvo de futuras críticas devido a um excesso de
realismo. “... se são grandes, façamo-los um pouco mais grandes; e se forem
pequenos, fiquem algum tanto mais pequenos”208, é um dos conselhos para a
feitura dos olhos. Além disso, melhor seria, claro, se fosse possível imitar o ato de
207 Citação extraída da edição crítica da presente dissertação de mestrado. 208 Idem.
85
Deus, ou seja, “... fazer na Pintura os próprios vivos olhos...”209, substituir a
imagem pelo natural ou fazê-la de modo tão bem feito que esta pudesse ser
confundida com a natureza e, quem sabe, mesmo superior à própria.
Esta vontade imitativa por parte de Holanda aparece novamente no capítulo
quinto, “DAS SOBRANCELHAS”, elemento essencial da composição de um rosto,
especialmente dos femininos. Após criticar as donzelas que tiram suas
sobrancelhas, o autor comenta sobre a presença da maquiagem no rosto feminino
e diz que “... a mim a mão está tremendo quando cuido que num formoso Rosto,
que com arte quero fazer parecer vivo, posso corar ou descorar de uma cor”.210
Mais uma vez a vivacidade desejada da imagem retratada se faz presente.
Por outro lado, Holanda também frisa a presença da geometria na
composição de um bom retrato. Sempre que possível, também nos três capítulos
seguintes e relativos ao perfil do nariz211, à boca e à orelha, ele dá indicações
precisas sobre as medidas que estes devem ter na composição do rosto. Como
John Bury comenta em sua edição crítica do texto, nas suas palavras ressoam as
leituras de Pomponius Gauricus, Albrecht Dürer e Leon Battista Alberti.212
Ao fim do oitavo capítulo ele irá indicar a seu amigo Brás Pereira que nunca
se esqueça do “maior primor que há nos olhos”, o toque de tinta branca no meio
das meninas negras dos olhos do retrato. Não apenas lá esse toque deve ser
dado, mas também na boca, nariz, barba e faces. Este falso reflexo de luz na
pupila dos olhos e em outras partes da face é o elemento que dá a impressão de
aquele rosto está vivo, “natural”.
Enquanto o rosto, um décimo da estatura do corpo, segundo Vitrúvio,
recebe cinco capítulos das mãos de Francisco de Holanda, podendo ser
considerado a questão mais latente de seu tratado, o corpo, por sua vez, recebe
209 Idem. 210 Citação extraída da edição crítica da presente dissertação de mestrado. 211 Curiosamente, Francisco de Holanda dá a entender que os maiores problemas no representar o
nariz surgem apenas quando se opta por fazer um retrato em perfil – daí o título deste seu capítulo, “Do perfil do nariz”: “E do tal Nariz o perfil é o mais difícil que tudo. Mas do Rosto treçado, ou fronteiro, ou Recursado não é assim, que a dificuldade está dentro do perfil, e é muito difícil de fazer; e nela se erra ou se acerta o Rosto e a graça dele”. 212 212 HOLANDA, Francisco de. Del sacar por el natural – según la traducción de Manuel Denis (1563). Edição de John Bury. Madri: Ediciones Akal, 2008, págs. 64-65.
86
apenas dois. Dentro de “Do tirar pelo natural” o rosto é quase triplamente maior
que o corpo.
Holanda possivelmente leu o “Da escultura”, de Pomponio Gaurico, de
1504. Nesta tratado, dentro do capítulo sobre a fisiognomia, o autor indica que o
artista inicie também o seu trabalho pelos olhos, pálpebras e sobrancelhas,
seguindo depois para o nariz, a testa, bochecha, mandíbula, boca, formato da
cabeça, cabelo, orelhas, o rosto e a expressão.213 Apenas após percorrer esse
caminho fisionômico, o artista deve se concentrar no corpo da figura a ser
representada. Se por um lado Francisco de Holanda segue esta indicação de
Gaurico, por outro ele altera a ordem de composição do rosto, mas mantendo
quase os mesmos elementos. Além disso, ao aconselhar o caminho do meio entre
representá-los pequenos ou grandes, Holanda também ecoa o texto de Gaurico.
3.4. CORPOS VESTIDOS
“...cada MÃO é de novo outro Rosto por toda a superfície e bom ar dos
dedos até o extremo das unhas; e cuidai que não vai menos nela que em fazer
vivos os olhos, os quais muito encomendo com as MÃOS”.214
Não seria esta a parte do corpo de maior importância em qualquer retrato
que deseja ser fruído para além do rosto? Não à toa, dentro do próprio século XVI,
existe uma tradição de retratar pessoas com o corpo integral ou paricalmente à
mostra, vestindo roupas pretas e deixando para a apreciação do espectador o
rosto, ali acima, como na organização geométrica de um pódio, em primeiro lugar,
e ao seu redor, mais abaixo, as duas mãos, medalhas de prata e bronze,
geralmente em desnível linear.
213
GAURICO, Pomponio. Sobre la escultura. Madri: Ediciones Akal, 1989, págs. 159-188. 214 Idem a 23.
87
Alonso Sánchez Coello – Retrato de Filipe II com um rosário – 1573 – Madri, Museu do Prado.
No nono capítulo, “DO CORPO”, após dissertar sobre as mãos, os ombros,
peitos e aselhas, Holanda fala sobre a possibilidade de se retratar o corpo humano
na íntegra, da cabeça aos pés. Ele atribui essa configuração formal aos retratos
feitos na Itália, como será visto no capítulo seguinte desta pesquisa. Logo após ele
compara brevemente os retratos de homens em pé com os de homens sentados e
diz preferir este segundo modelo que pode ser encontrado na Capela dos Médici,
em Florença, nas efígies de Giuliano e Lorenzo de Médici, esculpidas por
Michelangelo.
Podemos interpretar aqui um confronto entre um modelo romano, pagão, da
Antiguidade e que diz respeito aos retratos públicos de imperadores e um modelo
que parece advir da iconografia de Cristo entronizado, o Cristo Pantocrator (Cristo
todo-poderoso) a reger o mundo e o homem. Ao passo que o primeiro modelo foi
deveras reapropriado por imperadores e líderes estatais do Renascimento, como
no caso de Carlos V, o outro foi modelar para a iconografia dos líderes religiosos,
como os papas.
88
Raffaello Sanzio – Retrato de Júlio II – 1511/12 – Londres, National Gallery.
Em “DO VESTIDO”, penúltimo capítulo de seu texto, Holanda transparece o
conceito de “retrato de Estado”, ou seja, uma imagem feita com a intenção de
retratar um governante e deixar clara a sua hierarquia pela composição do corpo.
Trata-se de um tipo de imagem em que não pode haver dúvidas no momento da
apreciação do espectador. Daí ele dedicar um capítulo exclusivamente à
vestimenta, elemento que costuma saltar aos olhos quando contemplamos um
retrato estatal.
O autor anseia por um dia ser capaz de “... fazer somente em a feição e
perfil ou talho da cabeça e do vestido ou do corpo, que quem quer que o tal
começo vir, diga sem dúvida ser aquele ou el-Rei ou a Rainha, não tendo ainda
nada no Rosto...”.215 Através de alguns traços poderíamos reconhecer aquele
imperador retratado. Isto se deveria à relação entre forma e status, quer dizer, tal
forma de traduzir plasticamente aquele rosto denotaria magnanimidade. Este
pensamento quanto ao retrato pode ser relacionado aos estudos de fisiogonomia
que Holanda fez junto à leitura de “Da escultura” (1542), de Pomponius Gauricus.
215 Citação extraída da edição crítica da presente dissertação de mestrado.
89
Em “Da pintura antiga” ele dedica um capítulo exclusivo ao tema, o de número 19,
intitulado “Da fisiognomonica”.
No que diz respeito ao retrato finalizado, Francisco de Holanda frisa que é
importante que “... sua Roupa pareça sempre consigo, e não com outrem”.216 As
vestes pintadas naquele retrato devem ser exatamente as mesmas que aquele
governante tem o costume de se apresentar em público. Levar isso à risca
somaria com, em primeiro lugar, a semelhança da imagem feita com a imagem
natural e, consequentemente, o espectador teria uma postura de maior respeito
com as imagens de seu soberano. Sejam estas pintadas ou, posteriormente,
gravadas e disseminadas aos mais diversos povos, como o autor coloca em
capítulo anterior.
3.5. “FINAIS AVISOS NO TIRAR AO NATURAL”
Da etiqueta do ato de retratar para a composição do rosto. Do rosto para a
criação de um corpo. Pronto. Temos o processo do retrato narrado indiretamente
por Francisco de Holanda em seu diálogo com Brás Pereira. Chegamos ao seu
capítulo final, que tem em si uma estrutura que se assemelha ao modo como o
autor estrutura o próprio “Do tirar pelo natural”.
Dentre os primeiros conselhos finais, novamente a tensão entre realismo e
idealismo aparece. O retrato não deve se parecer “em nenhum modo com outra
pessoa alguma”, sua individualidade e identidade devem estar visíveis na imagem.
Ao mesmo tempo, porém, ao final do mesmo parágrafo, Holanda diz que “... se for
pessoa de pouca idade, pareça ainda de menos idade”. E depois segue,
respondendo a Brás Pereira, dizendo que se for de muita idade, pareça de menos;
se for formosa, pareça ainda mais; se for feia, que não pareça tanto.217 Sempre
que possível é indicado ao retratista que corrija a imagem de seu retrato para um
maior convencimento daquele que o estará visualizando no futuro.
Diversos conselhos sobre a proporção das partes do rosto também são
dados a Pereira. Curiosamente, após dá-los ao seu discípulo, Holanda faz um
216 Citação extraída da edição crítica da presente dissertação de mestrado. 217 Idem.
90
esforço por se diferenciar de Leon Battista Alberti. aquele que “... escreveu como
artífice e matemático na pintura, e escreveu muito discretamente”.218 O autor se
descreve como alguém que “... escrevia por outra via diferente alguns avisos e
primores que nesta ciência deles nasceram comigo sem eu ter nisso louvor
deles”.219 Mesmo não se enxergando como teórico cujo enfoque é a relação entre
matemática e artes visuais (modo como o português interpreta Alberti), articulação
comum à tratadística artística dos séculos XIV e XV, Holanda não pode deixar de
lado dentre seus conselhos a teoria das proporções, algo essencial para a
realização de um retrato. No lugar de assumir essa dívida para com o teórico
italiano ele prefere reafirmar a sua peculiaridade, daí se intitula como “bárbaro
português”, seguidor de Michelangelo e da antiguidade: “E quero antes a minha
própria e pouca facúndia do que na Grande Ciência da PINTURA sinto, que muito
mais, sendo emprestado e alheio”220.
Ao final de sua escrita, ele elege Tiziano Vecellio como o maior retratista
vivo da Europa, assunto a ser dissecado nesta dissertação. A última pergunta feita
por Brás Pereira faz com que voltemos ao tópico dos olhos. Ele pergunta qual o
último primor da arte de tirar pelo natural e Holanda não titubeia e diz que este é o
realço, o último ato do pintor de retratos e o elemento que dá perfeição à obra,
aquela pequena pincelada de tinta branca sobre a menina dos olhos.
218 Citação extraída da edição crítica da presente dissertação de mestrado. 219 Idem. 220 Idem.
91
CAPÍTULO 3 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA FORTUNA CRÍTICA DE TIZIANO VECELLIO NA
PENÍNSULA IBÉRICA DURANTE O SÉCULO XVI
Bras Pereira - Qual é o mais eminente Pintor em Pintar Retratos ao Natural, que vós saibais em EUROPA, Fernando? Fernando - O mais famoso Pintor de Retratos que eu estimo haver em cristãos, que são a flor deste Mundo, tenho eu que é TIZIANO em VENEZA, posto que a mim me disse o IMPERADOR em Barcelona perante o nosso DUQUE de Aveiro, e perante o Duque de Albuquerque, e perante o Duque de Alva, que melhor o tirara Do natural Antonio D‟OLLANDA em Toledo, de iluminação, que TIZIANO em Bolonha. Porém eu dou vantagem a TIZIANO.221
Esta citação foi extraída do capítulo final de “Do tirar pelo natural”, ou seja,
“Finais avisos no tirar ao natural” e consiste numa tentativa de colocar alguns
pontos finais em questões desenvolvidas nos dez capítulos anteriores do texto.
Fica clara nessa parte a sua constante monumentalização da arte realizada na
Itália, já que ele afirma que por mais que o grande Carlos V (“... o IMPERADOR
em Barcelona...”) tenha preferido a imagem criada por seu próprio pai, “Antonio
D‟OLLANDA”, este ainda opta pelo resultado dos pincéis italianos.
Este possível encontro com o imperador, segundo Sylvie Deswarte-Rosa,
deu-se no caminho do português para Roma, entre fevereiro e abril de 1538, em
Barcelona222. Tal reunião teve como objetivo primeiro a realização de um retrato
encomendado pela até então esposa do imperador e sua compatriota, D. Isabel de
Portugal, em Valladolid, cerca de um mês antes. A viagem do português para
Roma foi incentivada por D. João III e pode ser interpretada num contexto maior,
em que alguns outros artistas também foram enviados a terras italianas, seja para
o estudo das “antigualhas”, seja para a apreciação e aprendizado com mestres
italianos, seja para, especialmente no caso de Francisco de Holanda, o estudo das
fortificações militares lá realizadas. De qualquer forma, a encomenda de D. Isabel
221
Citação extraída da edição crítica da presente dissertação de mestrado. É interessante lembrar também que dentro de suas “Tábuas dos maiores artistas da Renascença”, dentro da “Tábua dos famosos pintores modernos, a que eles chamam „águias‟”, o quarto artista citado, logo após Michelangelo, Leonardo da Vinci e Rafael, é Tiziano. Holanda diz: “Ticiano em Veneza de tirar-ao-natural” in HOLANDA, Francisco de. Diálogos em Roma. Lisboa: Livros Horizonte, pág. 89. Em nenhum dos três primeiros artistas a potência retratística é elogiada assim como em Tiziano. 222 DESWARTE-ROSA, Sylvie. Verbete “Francisco de Holanda” in SERRÃO, Vitor. A pintura maneirista em Portugal. A arte no tempo de Camões. Catálogo da exposição. Lisboa: Comissão nacional para comemorações dos descobrimentos portugueses, 1995, págs. 480-486.
92
nunca foi realizada, como o próprio português irá relatar em seu último texto, que
podemos interpretar como um certo livro de memórias, “Da ciência do desenho”,
de 1571.223
Ao escrever que prefere o retrato de Carlos V realizado por mãos italianas,
além de assumir uma postura crítica para com a retratística quinhentista,
Francisco de Holanda lança um problema. Devido à imprecisão de informações
presentes nessas suas frases, perguntamo-nos: a qual dos retratos realizados em
Bolonha ele está se referindo? Esta referência geográfica, ao menos, exclui a
possibilidade deste texto estar se dirigindo aos retratos produzidos após a Batalha
de Mühlberg, já que estes foram realizados em Augsburgo em 1548. Tendo
Bolonha como referência, Francisco de Holanda está citando um dos dois retratos
pintados por Tiziano entre 1530 e 1533.
Tiziano Vecellio – Retrato de Carlos V sentado – 1548 – Alte Pinakothek, Munique. Tiziano Vecellio – Retrato de Carlos na Batalha de Mühlberg – 1548 – Museu do Prado, Madri.
223 “Cheguei a Sua Majestade e beijei-lhe a mão, e disse-lhe, como ia a Itália, e que a Imperatriz e meu pai me tinham mandado não passar a ela de Barcelona sem ver Sua Majestade e sem lhe mandar como furtado o seu retrato. Riu-se o Imperador e fez-me o gasalhado e cumprimento que pudera fazer a um embaixador. Porque sabia ele estimar os engenhos que o mereciam no desenho, ainda que eu o não merecia. E assim quase me não dando a mão que lhe por força beijei, me encomendou muito que visse as pinturas de S. Miguel de Bolonha em Itália, onde fora coroado; dizendo que ninguém o retratara melhor que meu pai em Toledo, nem Ticiano que o também tinha retratado. E assentando-se na pequena mesa, já com as duas velas, e fazendo assentar o Duque d‟Aveiro, e deixando ficar em pé os outros dois Duques à porta, se me tornou a desculpar, dizendo que já era velho para me consentir que o retratasse como a Imperatriz pedia” in HOLANDA, Francisco de. Da ciência do desenho. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, págs. 42-43.
93
Tiziano Vecellio – Retrato de Federico Gonzaga, duque de Mântua – 1529 – Museu do Prado, Madri.
O contato entre o imperador e o pintor parece ter se dado através de
Federico Gonzaga, como aponta Luba Freedman.224 Este último, duque de
Mântua, já havia sido retratado por Tiziano em 1529 (Museu do Prado, Madri) e
inclusive escrito para o artista em novembro de 1532, solicitando sua presença em
Bolonha para realizar retratos do imperador. Dois retratos foram concluídos, sendo
que apenas um deles sobreviveu aos nossos tempos (Museu do Prado, Madri), ao
passo que o outro é acessível através de uma xilogravura de Giovanni Brito
(Graphische Sammlung Albertina, Viena) e de uma cópia pintada por Pieter Paul
Rubens (Coleção Lord Mountgarret, Yorkshire).
Tendo em mente as duas imagens e o texto escrito por Francisco de
Holanda, parece possível concluir que, no caso do português estar apontando com
sua frase apenas uma das obras, esta deveria ser o retrato de corpo inteiro, visto
a coerência entre os pressupostos formais do “bom retrato” encontrados no texto e
a obra: o rosto “treçado” (inclinado, em três quartos) e à direita, o decoro, a
idealização, a adequação do vestuário ao corpo, a iluminação destacada da face,
224 FREEDMAN, Luba. Titian´s portraits through Aretino´s lens. Pennsylvannia University Press, 1995, págs. 117-118.
94
e também a coerência entre a construção monumental da imagem e a posição
social de imperador exercida por Carlos V225.
Giovanni Brito – Retrato de Carlos V – 1533 - Graphische Sammlung Albertina, Viena. Tiziano Vecellio – Retrato de Carlos V – 1533 – Museu do Prado, Madri.
Ao lidar com esse tópico, a necessidade de coerência entre o retrato e a
posição social à qual o retratado está inserido, cabe recordar dos importantes e
influentes escritos de Pietro Aretino, grande amigo e impulsionador da fama de
Tiziano como retratista. Nascido em Arezzo, em 1492, o escritor irá mudar-se para
Veneza apenas em 1527, irrompendo uma amizade quase imediata com o pintor
veneziano, além também do escultor Jacopo Sansovino, formando um círculo de
225 “Digo que somente os claros príncipes e reis ou imperadores merecerem ser pintados, e ficarem suas imagens e figuras e sua boa memória aos futuros tempos e idades” in HOLANDA, Francisco de. Idem, pág. 14.
95
contatos inicialmente local, mas que rapidamente se expande também para
Florença e Roma. Das suas três mil cartas, cerca de 225 possuem referências a
Tiziano. Dos 203 retratos atribuíveis a este, 115 foram realizados entre os anos de
1537 e 1553, justamente um intervalo de tempo pontuado por quatro das seis
edições compostas pelas cartas de Pietro Aretino.226
Cruzando estas informações com o comentado anteriormente sobre
Francisco de Holanda, é importante ter em mente, como afirma Deswarte-Rosa,
que o português, dentre várias outras fontes textuais, teria levado de volta para
Portugal um exemplar destas edições. Por coerência cronológica, esta deveria de
ser a edição de 1537, visto que seu retorno deu-se em 1540 e que a segunda
edição apenas foi realizada em 1542. Se alguma outra edição chegou às mãos de
Holanda não há certeza, mas no caso afirmativo, esta possivelmente pode ter se
dado no fluxo de artistas, religiosos ou mesmo numa troca comercial entre
Portugal e Itália.
Dentre as correspondências contidas na primeira edição, uma das mais
famosas e possível fonte de informações para o pensamento de Francisco de
Holanda sobre retratos é o elogio feito por Aretino para Verônica Gambara sobre
os retratos dos duques de Urbino, Francesco Maria della Rovere e Eleonora
Gonzaga della Rovere, em 1537 (Galleria degli Uffizi, Florença). No texto redigido
antes dos poemas encontramos já um ponto constante no tratamento que Aretino
dá nas suas apreciações de retratos. Ele diz:
Io nel vederlo chiamai in testimonio essa natura, facendole confessare che l´arte s´era conversa in lei propria. E di ciò fa credenza ogni su ruga, ogni suo pelo, ogni suo segno. E i colori che l´han dipinto non pur dimonstrano l´ardir de la carne, mas soprano la virilità de l´animo.227
226 FREEDMAN, Luba. Titian´s portraits through Aretino´s lens. Pennsylvannia University Press, 1995, pág. 13. 227 “Eu o veria [Francesco della Rovere] chamar em testemunho a natureza, fazendo-a confessar que a arte se converteu nela própria. E isto faz acreditar em cada ruga sua, cada pêlo seu, cada sinal seu. E as cores que foram pintadas não apenas demonstram a ousadia da carne, mas, sobretudo a virilidade de seu ânimo” in ARETINO, Pietro. Carta de 7 de novembro de 1537 in LARIVAILLE, Paul (Org.). L´Aretin. Sur la poétique, l´art et les artistes (Michel-Ange et Titien). Paris : Les Belles Lettres, 2003, pág. 23. Tradução livre.
96
Tiziano Vecellio – Retrato de Francesco Maria della Rovere, duque de Urbino – 1536-38 – Galleria degli Uffizi, Florença. Tiziano Vecellio – Retrato de Eleonora Gonzaga – 1538 – Galleria degli Uffizi, Florença.
Para este autor, um bom retrato chega a tal ponto de verossimilhança que
se “converte em natureza”. De “tirado pelo natural”, ele é elevado ao nível do
próprio “natural”, ao nível de um ser humano vivo mesmo. Além disso, outro ponto
importante é o costume de associar aspectos plásticos das obras, a cor, por
exemplo, com características daqueles indivíduos retratados. Nesse caso, ele
associa a cor aplicada por Tiziano à “virilidade do ânimo” do duque de Urbino.
Necessário constatar também, como aponta Norman E. Land228, que o escritor não
lida com os retratos da mesma forma como Petrarca e Pietro Bembo, por exemplo,
que criaram sonetos visando reverenciar belas damas retratadas, deixando em
segunda instância os elogios ao artista e à sua grande capacidade mimética.
Aretino, pelo contrário, no poema dedicado ao retrato do duque, irá primeiramente
vangloriar Tiziano, dizendo mesmo que este era superior ao grande Apeles, o
retratista oficial de Alexandre, o Grande, elogiado por Plínio, o Velho.
Se ´l chiaro Apelle con la man de l´arte Rassemplò d´Alessandro il volto e ´l petto, Non finse già di pellegrin subietto
228 LAND, Norman E. “Ekphrasis and imagination: some observations on Pietro Aretino´s art criticism” in The Art Bulletin, volume 68, número 2, 1986, págs. 212-214.
97
L´alto vigor che l´anima comparte. Ma Tizian, che dal cielo ha maggior parte, Fuor mostra ogni invisibile concetto; Però ´l gran Duca nel dipinto aspetto Scopre le palme entro al suo core sparte. Egli ha il terror fra l´uno e l´altro ciglio, L´animo in gli occhi, e l´alterezza in fronte, Nel cui spazio l´onor siede, e ´l consiglio. Nel busto armato, e ne le braccia pronte, Arde il valor, che guarda dal periglio Italia, sacra a sue virtuti conte.229
Se não encontramos uma correspondência direta entre os textos, ou seja,
se Francisco de Holanda não cita de forma literal os textos de Pietro Aretino, por
outro lado, ao notarmos a importância que o português dá à composição dos
rostos nos retratos, tão grande a ponto de dedicar cinco capítulos ao tema230, nos
deparamos com a possibilidade de relações não explícitas ao pensamento do
escritor italiano. Além disso, os exemplos retóricos extraídos de Plínio, o Velho,
como a comum comparação entre o retratista no Renascimento e as anedotas
relativas à Apeles e Alexandre, o Grande, fazem presença em ambas as fontes
textuais. A própria necessidade de escolha das grandes figuras dignas de serem
retratadas, frisadas por Holanda logo no primeiro capítulo de seu texto, remete aos
elogios de Aretino, relativos ao grosso da produção de Tiziano, ou seja, aos
229 Se o ilustre Apeles com a mão da arte Pintou de Alexandre o rosto e o peito, Já não traduziu de seu raro modelo O elevado vigor que a sua alma compartilha. Mas Tiziano, que do céu herdou maior parte, Mostra exteriormente cada conceito invisível; Mas o grande duque em seu aspecto pintado Desvela as vitórias entre seu coração partido. Ele tem o terror entre um e outro cílio, O ânimo nos olhos, e a altivez em sua testa, No espaço onde a honra está sediada, e o conselho. No busto armado, e nos braços prontos, Arde a virtude, que protege do perigo Itália, confiada a suas virtudes insignes. In ARETINO, Pietro. Idem, págs. 24-25. Tradução livre. 230 Relativos à construção plástica dos olhos, sobrancelhas, nariz, boca e orelha.
98
retratos dedicados a até então alta sociedade européia: integrantes da corte de
Carlos V ou dos ducados das significativas cidades italianas do momento.
O escritor não dedica maiores comentários aos retratos de Carlos V
realizados em Bolonha, anteriores ao início da disseminação de suas observações
críticas quanto à produção do amigo pintor, diferentemente de sua recepção para
com os retratos realizados após 1548, merecedores de comentários igualmente
publicados. De qualquer forma, é possível que Francisco de Holanda tenha
apreciado pessoalmente o retrato mais provável de elogios, o corpo inteiro de
Carlos V, de 1533, em uma de suas viagens rumo a ou partindo de Roma. Mesmo
assim, ao optar por dizer que Tiziano Vecellio era o maior retratista vivo de sua
época, é inevitável cair na tentação de pensar que Holanda tinha consciência da
relação entre o seu pensamento e a fortuna crítica que vinha sendo construída
com fôlego por Pietro Aretino.
Giovanni Bellini – Retrato de Leonardo Loredan – 1501 – National Gallery, Londres. Giorgione – Retrato de um jovem – 1504 – Staatliche Museen, Berlim.
99
Mas o que Tiziano realmente apresenta de diferencial em seus retratos de
pessoas socialmente notáveis? Talvez seja interessante pensar a partir da
tradição local à qual o pintor está inserido, a produção de retratos em Veneza e
suas relações com outros importantes artistas como Giovanni Bellini e Giorgione,
ambos mestres seus. Colocando lado a lado, por exemplo, um famoso retrato de
doge feito por Bellini, o de Leonardo Loredan (1501, National Gallery, Londres) e
um retrato de jovem (1504, Staatliche Museen, Berlim) feito pelo artista da
geração seguinte, Giorgione, e tendo em mente mais uma vez a obra ressaltada
por Francisco de Holanda, claras são as nuances de propostas estéticas.
Ao passo que em Bellini temos um cuidado grande com a construção do
rosto do doge, o que leva a ficar em segundo plano a delicadeza de seu corpo,
que pode ser interpretado como uma releitura da tradição clássica dos bustos
romanos, em Giorgione temos uma preocupação mais clara quanto à plasticidade
do corpo desse jovem, além de um cuidado maior com detalhes, como seus
cabelos e seu olhar que encontra o olhar daqueles que o estão apreciando. O
doge Loredan parece existir em um universo que independe da existência de um
elemento externo a ele, tamanho é o ar de superioridade e auto-confiança que
apresenta. Por outro lado, o retrato pintado por Giorgione depende, e bastante, da
presença de um espectador; ele está ali à espera de um encontro, o que é
reforçado para além de seu olhar retórico pela presença de sua mão, encostada
numa bancada que antecipa a presença física deste homem. A mão como que
atravessa o ambiente meramente ilusório da pintura, sendo um ponto de contato e
um trompe l‟oeil criado pela grande capacidade técnica do artista.
E Tiziano? Primeiramente, ele propõe um outro formato de retrato.
Enquanto os exemplos anteriores possuem no máximo cerca de 70 centímetros de
largura, os “retratos de estado” criados por ele ultrapassam as medidas de um
metro. Com isso, temos obras que parecem engolir o espectador; uma sensação
tida, por um exemplo, quando adentramos algum espaço expositivo do Museu de
Arte de São Paulo (MASP) e fruímos a seqüência de artistas que beberam de
fontes tizianescas em sua retratística, como Rubens, Velásquez e Goya. Os
quadros como que caem sobre nosso corpo, tamanha a monumentalidade dada
100
pela forte verticalidade dessas figuras pintadas. Por outro lado, fica claro que
Tiziano de forma alguma nega sua tradição local. Percebemos nos tons dourados
que permeiam o seu Carlos V, por exemplo, uma pesquisa cromática que já era
visível nos exemplos de seus dois mestres. Mesmo o tom de superioridade que o
imperador apresenta, com um olhar para algo que está além dos limites da tela, é
relacionável ao retrato criado por Bellini.
Francisco de Goya – Retrato de Don Juan Antonio Llorente – 1809-1813 – MASP, São Paulo. Diego Velázquez – Retrato do conde-duque de Olivares – 1624 – MASP, São Paulo.
Peter Paul Rubens – Retrato do arquiduque Alberto VII da Áustria – 1615-1623 – MASP, São Paulo.
Porém, o que parece mais evidente nesse retrato de Tiziano e em diversos
outros realizados por ele, é a decisão de ter incluído o corpo inteiro da
personalidade retratada. Francisco de Holanda, em seu “Do tirar pelo natural”,
tece um comentário sobre esta questão:
Brás Pereira - Destes-me agora a vida, e não ousava a pedir-vo-lo, por me terdes dito tanto. E desejava eu muito de saber Tirar ao Natural uma pessoa toda inteira, e do seu próprio tamanho e medida desde o assento dos PÉS até subir à CABEÇA, porque me dizem que em ITÁLIA se costuma e que o costumam Reis Cristãos por se verem pelo MUNDO. Fernando - Louvados são em ITÁLIA os RETRATOS tirados todos em Pé ao Natural, e é por mostrar mais do homem. Mas louvam mais as Pinturas ou Retratos que eles Pintam assentados em seus assentos, escolhidos e quietos, ainda que
101
sejam belicosos e armados os Príncipes que ao Natural são Pintados em Retrato. E vê-se isto ser verdade em a Cidade de FLORENÇA, que pode em parte ser chamada MÃE DA PINTURA, em a obra das SEPULTURAS dos MÉDICIS, que maravilhosamente esculpiu em mármore M. MICHEL ANGELO, PINTOR FAMOSO, os quais Príncipes em seus Retratos estão Assentados em seus assentos e armados, ou pacíficos. E em outros muitos exemplos da nobilíssima ANTIGUIDADE poderei provar o que digo em a Cidade de ROMA.231
Neste trecho, Holanda parece estar remetendo novamente ao retrato de
Carlos V ou, se não, pelo menos ao modelo do qual ele bebe, as estátuas de
imperadores romanos. Estabelecendo uma comparação com essa tradição, ele
cita a possibilidade de retratar as figuras sentadas, como o próprio Tiziano irá
fazer com o imperador em 1548. Ainda podemos ler esse trecho como uma
tentativa discreta de comparar o proposto em Veneza por Tiziano e o realizado por
Michelangelo, o tão bem construído textualmente mestre de Francisco de
Holanda, em Florença; o primeiro pela pintura, o segundo pela escultura.
Michelangelo Buonarroti – Túmulo de Giuliano de’ Médici - 1526-33 – Sagrestia Nuova, San Lorenzo, Florença.
Erwin Panofsky, em seu clássico “Problemas em Tiziano: majoritariamente
iconográficos”, de 1964, irá lembrar que o citado retrato de Carlos V possivelmente
231 Citação extraída da edição da presente dissertação de mestrado.
102
é cópia de outro realizado pelo artista nórdico Jakob Seisenegger em fins de
1532232 (Kunsthistorisches Museum, Viena). Em sua argumentação, após citar o
artigo de G. Glück233, responsável por esta primeira leitura, ele diz que não
devemos nos deixar levar pela qualidade das obras. O próprio Panofsky assume
explicitamente preferir o retrato de Tiziano, porém esta predileção não pode fazer
com que cheguemos à conclusão de que o obscuro artista nórdico teria
meramente copiado o mestre veneziano. Citando a documentação acessível, o
autor alemão afirma que o retrato feito por Seisenegger já estava pronto em 1532,
ao passo que neste mesmo ano, precisamente no dia 8 de novembro, Tiziano
ainda se encontrava em Veneza, tendo se locomovido a Bolonha apenas no ano
seguinte.
Hans Burgkmair – “O apreço do imperador Maximiliano pelas artes” (de “Der Weisskunig”) – 1493-1519 Jakob Seisenegger – Retrato de Carlos V – 1532 - Kunsthistorisches Museum, Viena.
232 PANOFSKY, Erwin. “Excursus 4: Tiziano y Seisenegger” in Tiziano: problemas de iconografia. Madri: Ediciones Akal, 2003, págs. 179-180. 233 GLÜCK, G. “Original und kopie” in Festchrift für Julius Schlosser. Zurique, Leipzig e Viena, 1927.
103
Segundo A. Cloulas234, também citada por Panofsky, o número 1532 que
figura ao lado de Carlos V no retrato de Seisenegger seria uma citação à entrada
do imperador em Bolonha em 13 de novembro deste ano. O historiador alemão,
por outro lado, discorda dessa leitura e afirma que, caso este fato fosse verídico,
trataria de um caso único da história da retratística. Ele prefere crer que o retrato
de Tiziano é baseado no retrato de Seisenegger e cita como documentação visual
uma gravura feita por Hans Burgkmair, apenas publicada em 1755 e parte de uma
série extensa de imagens dedicadas ao imperador Maximiliano I, avô de Carlos V,
intitulada “Weiss-Kunig”. Nesta há a inclusão de um auto-retrato do artista tendo
ao seu lado a figura real como que a observar o seu trabalho. Aos seus pés está
um cachorro deveras semelhante ao cachorro encontrado nos dois retratos
posteriores e de corpo inteiro de Carlos V. Sabendo de sua improvável circulação
pelo ambiente italiano, somados aos comentários encontrados no ambiente
artístico nórdico sobre esta série de imagens, Panofsky conclui que, portanto, a
relação entre os retratos se deu através da observação que Tiziano fez da pintura
de Jakob Seisenegger.
Somando à argumentação de Panofsky, o historiador espanhol da arte
Miguel Falomir, em texto recente sobre a possível polêmica entre estes retratos de
Carlos V, informa ao leitor que, antes da obra aqui citada, Seisenegger já havia
pintado quatro vezes o imperador e todas de corpo inteiro.235 O primeiro retrato foi
feito em 1530 (Palácio da Almudaina, Mallorca), outros dois em Praga, em 1531, e
o anterior ao de Bolonha foi pintado também em 1532 (Coleção Lord
Northhampton, Castelo Ashby), mas em Rastibona.
Como Luba Freedman aponta, fazendo coro às anteriores palavras de
Erwin Panofsky, na Itália como que inexistia uma tradição quanto à representação
do corpo inteiro em pintura. Apenas dois seriam os exemplos facilmente
localizáveis e anteriores ao retrato pintado por Tiziano: o retrato de um cavaleiro,
234 CLOULAS, A. “Charles Quint et le Titien” in L‟information de l‟histoire de l‟art, IX, 1964. 235 FALOMIR, Miguel. “111. Jacob Seisenegger. „Carlos V con un perro‟” & “112. Tiziano. „Carlos V con un perro‟” in FALOMIR, Miguel. El retrato del Renacimiento. Madri: Museo Nacional del Prado, págs. 378-380.
104
de 1510, de Carpaccio (Museu Thyssen-Bornemisza, Madri) e o retrato de um
homem, de 1526 de Moretto da Brescia (National Gallery, Londres).
O primeiro insere seu retratado em um ambiente em que a tradição clássica
se faz presente pela inclusão de parte de uma coluna e de um arco, ícones da
plástica da antiguidade greco-romana. Enquanto isso, no segundo exemplo,
encontramos um cavalheiro inserido na paisagem, fazendo um interessante
contraponto com a paisagem inserida em janela no retrato de Moretto da Brescia.
Esta opção chama atenção pela insistência de Carpaccio em reproduzir as mais
diversas plantas e animais, em um claro diálogo com a pintura realizada ao norte
dos Alpes, além de indícios de uma cidade ao fundo.
No que diz respeito à retratística nórdica, temos como famoso exemplo do
retrato de corpo inteiro, por exemplo, os realizados por Lucas Cranach em 1514,
do duque da Saxônia, Henrique, o Piedoso e de sua esposa, Katharina Von
Mecklenburg (Gëmaldegalerie, Dresden). Assim como nos retratos de Carlos V,
Cranach opta por incluir na imagem do casal seus dois cachorros. No lado
esquerdo, na figura masculina, um cão de caça, assim como o dos retratos de
Tiziano e Seisenegger, denotando virilidade e poder. Enquanto isso, à direita, um
cão que remete ao caráter doméstico da mulher; frágil e pequeno. A atenção
também é dada ao vestuário dos duques, que ostentam o poder pela estamparia e
seu decorativismo, em vez dos retratos italianos em que, geralmente, este é dado
pela sobriedade das cores.
Já outro exemplo, lembrado por Miguel Falomir, é Christoph Amberger,
autor de dois retratos de corpo inteiro, de 1525, de um homem e outro de uma
mulher, como que inseridos dentro de uma arquitetura classicizante e com
inscrições em latim ao fundo (Gemäldegalerie, Berlim). Mais uma vez a
acentuação da vestimenta é perceptível. Enquanto isso, em outro pintor levantado
por Falomir, Bernhard Strigel, temos o formato do retrato de família, que muito
bem pode ser interpretado como partes de um tríptico em que ao centro poderia
existir uma representação religiosa. Este “Retrato de Conrad Rehlinger com sua
família”, de 1517 (Alte Pinakotheke, Munique), seria uma imagem do comanditário
de alguma obra religiosa? Mesmo sem essa certeza, exposto desta forma, em
105
especial no que diz respeito à figura paterna, o diálogo com os retratos de Carlos
V é bem claro.
Quando Francisco de Holanda aponta a inclusão do corpo todo nos retratos
como algo tradicionalmente italiano, se Panofsky e outros autores estiverem
corretos, acaba por também tecer um elogio indireto à tradição nórdica dos
retratos, por mais que em seu outro texto, “Da pintura antigua”, de 1548, ele seja
rigoroso com os objetos artísticos criados ao norte dos Alpes.
O próprio celebrado retrato de Francesco Maria della Rovere foi pensado
como um retrato de corpo inteiro. Basta vermos um dos poucos desenhos
preparatórios de Tiziano que permanecem conservados (Gabinete de desenhos
da Galleria degli Uffizi, Florença). Os princípios aí estão: o duque fita o espectador
e tem os braços apoiados em um bastão, do lado direito, e no segurar uma
espada do outro lado. A posição de suas pernas recorda, de forma leve, o modo
como Tiziano e Seisenegger organizaram as pernas de Carlos V; um pé encontra-
se mais verticalizado, em um ângulo de noventa graus, ao passo que o outro está
levemente inclinado, impossibilitando uma idéia de frontalidade na composição.
Moretto da Brescia – Retrato de um homem – 1526 – National Gallery, Londres. Jakob Seisenegger e ateliê – Retrato de Carlos V – 1532 - Coleção Lord Northhampton, Castelo Ashby
Carpaccio – Retrato de um cavaleiro – 1510 – Museu Thyssen-Bornemisza, Madri.
106
Lucas Cranach, o Velho – Retrato de Henrique, o Piedoso e de Katharina Von Mecklenburg – 1514 – Gëmaldegalerie, Dresden. Bernard Strigel – Retrato de Conrad Rehlinger com sua família – 1517 – Alte Pinakotheke, Munique.
Christoph Amberger – Retrato de homem e de mulher – 1525 – Gëmaldegalerie, Berlim.
Até mesmo Giorgio Vasari, cujo célebre texto “As vidas dos mais ilustres
pintores, escultores e arquitetos italianos” tem uma clara orientação encomiástica
ao que diz respeito aos modelos artísticos pensados e realizados em Florença, na
107
edição de 1568 vê-se obrigado a incluir um capítulo breve e relativo ao comentário
das obras até então produzidas pelo ainda ativo Tiziano Vecellio. Ao comentar
sobre a opção pela inclusão do corpo inteiro em seus retratos, Vasari nos dá uma
outra interpretação:
L‟anno 1541 fece il ritratto di don Diego di Mendozza, allora ambasciadore di Carlo Quinto a Vinezia, tutto intero e in piedi, che fu bellissima figura: e da questa cominciò Tiziano quello che è poi venuto in uso, cioè fare alcuni ritratti interi. Nel medesimo modo fece quello del cardinale di Trento, allora giovane; ed a Francesco Marcolini ritrasse M. Pietro Aretino…236
Enquanto Francisco de Holanda, Pietro Aretino e mesmo historiadores
como Panofsky, Falomir e Lorne Campbell tendem a pensar sobre esta forma de
retratar a partir das obras de Tiziano realizadas na década de 30, Vasari opta por
ler essa tendência quase dez anos após o primeiro exemplo encontrado.
Diferentemente do retrato de Carlos V, cuja ambiência não é muito construída,
justamente para dar um destaque maior à figura imponente do imperador, no
citado retrato de Don Diego di Mendoza (Galleria Palatina di Palazzo Pitti,
Florença) estamos a lidar com uma possível outra vertente deste retrato de corpo
inteiro. Nela existe uma preocupação grande com a ambientação em torno de
nosso personagem retratado, o que pode ser percebido pelo cuidado com que
Tiziano constrói a coluna ao fundo, além da presença de um relevo all‟antica do
outro lado do embaixador. Esta forma de retratar, conforme aponta Vasari, parece
ter sido rapidamente digerida por outros artistas, visto os exemplos já com
variáveis apresentados por Veronese (Paul Getty Museum, Malibu) e Giovan
Battista Moroni (Coleção do conde Moroni, Bérgamo).
236 “No ano de 1541 [Tiziano] fez o retrato de Dom Diego de Mendozza, naquele momento embaixador de Carlos V em Veneza, todo inteiro e em pé, que era uma belíssima figura: e a partir desta começou Tiziano aquilo que depois viu em uso, isto é, fazer alguns retratos inteiros. No mesmo modo fez aquele do cardeal de Trento, na época jovem; e para Francesco Marcolini retratou o senhor Pietro Aretino...” in VASARI, Giorgio. Opere di Giorgio Vasari. Florença: S. Audin, 1822-23, volume V, pág. 204. Tradução livre.
108
Tiziano Vecellio – Desenho de Francesco Maria della Rovere – Gabinete de desenhos da Galleria degli Uffizi, Florença. Tiziano Vecellio – Retrato de Don Diego de Mendoza – 1541 – Galleria Palatina do Palazzo Pitti, Florença.
Paolo Veronese – Retrato de um homem – 1576-78 – Paul Getty Museum, Malibu. Giovan Battista Moroni – Retrato de um cavalheiro – 1550 – National Gallery, Londres.
109
Mesmo que suas críticas negativas sejam mais conhecidas, ou seja, a
famosa frase em que ele afirma que Michelangelo gostaria que existisse um
Tiziano com maior domínio do desenho, em detrimento de sua relação com a
cor237, não há titubeio para que Vasari elogie, sempre que possível, algum retrato
realizado por Tiziano. São tantos os retratos, que em dado momento o escritor
chega a afirmar:
E perchè sono infinite l‟opere di Tiziano, e massimamente i ritratti, è quase impossibile fare di tutti memória. Onde dirò solamente de‟ più segnalati, ma senz‟ordine di tempi, non importando molto sapere qual fusse prima e qual fatto poi.238
Em uma última leitura possível, gostaria de retornar à Portugal e ao
ambiente que circundava Francisco de Holanda. Costuma ser lembrada, pelos
poucos historiadores que se detiveram em uma análise da produção de retratos
portugueses no século XVI, a ida de Anthonis Mor, pintor dos Países Baixos, a
terras de Portugal. Annemarie Jordan-Gschwend, por exemplo, dedica todo um
livro ao assunto, cujo título deixa clara essa relação: “Retrato de corte em Portugal
– o legado de António Moro”.239
Mor chega a Portugal em 1551, ficando nove meses na corte de D. João III,
onde realiza retratos de diversas pessoas da família. Jordan-Gschwend elenca
alguns documentos que apontam para que, em verdade, essa viagem do artista
tenha sido incentivada pela irmã de D. Catarina de Áustria, Maria da Hungria, que
possuía uma célebre galeria de retratos reais. O retratista nórdico a Portugal teria
ido para realizar imagens desse tronco da família real da irmã de Carlos V.
Porém, parece inevitável também tentar relacionar esta sua vinda com
algum impacto proporcionado pelo texto de Francisco de Holanda, aqui já
237 “... se quest‟uomo fusse punto aiutato dall‟arte e dal disegno, come è dalla natura, e massimamente nel contraffare Il vivo, non si potrebbe far piu nè meglio, avendo egli bellisimo spirito ed una molto vaga e vivace maniera”. In: Ibidem, pag. 206. (Tradução livre: “... se Tiziano tivesse sido assistido pela arte e pelo desenho assim como o foi pela natureza, especialmente quanto à reprodução de objetos vivos, nenhum outro poderia realizar obras melhores, pois ele teria um belíssimo espírito e uma muito vaga e vivaz maneira”). 238 “E porque são infinitas as obras de Tiziano, e especialmente os retratos, é quase impossível sabê-las todas de memória; onde direi apenas das mais evidentes, mas sem ordem de tempo, não importando muito saber qual foi a primeira e qual feita depois”. In: Ibidem, pág. 204. Tradução livre. 239 JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. O retrato de corte em Portugal – o legado de Antonio Moro (1552-1572). Lisboa: Quetzal Editores, 1994
110
comentado, concluído em 1549. Se ainda não foi encontrada nenhuma
documentação que comprove de forma direta esta relação, por outro lado, existe
um fato que contribui para que continuemos a acreditar na possibilidade de
conseqüências artísticas proporcionadas pela escrita holandiana. Também no ano
de 1549, como Jordan-Gschwend mesma aponta, D. João III financiou a ida de um
artista nascido na Espanha, porém criado na corte portuguesa, Alonso Sánchez
Coello, para a Flandres. Com quem este artista entrou em contato? Com Anthonis
Mor que, naquele momento, estava a vias de passar a servir Maria da Hungria,
regente dos Países-Baixos.240 Importante ter em mente que Mor já possuía uma
fortuna crítica positiva no que diz respeito ao campo do retrato, tendo servido ao
Cardeal Granvelle, que em correspondência de 1583, afirmava que “... Sánchez
Coello se crió alguns años en mi casa con el pintor Antonii Mor”.241
Coincidência ou não, Coello foi enviado a terras nórdicas justamente no ano
em que Holanda terminou seu texto sobre a retratística. Além disso, no ano
seguinte, é bem provável que ele tenha viajado à Itália junto a seu então mestre
Anthonis Mor, que por sua vez deve ter estudado de forma bem próxima os
retratos pintados por Tiziano Vecellio. Para além dessa viagem, é preciso ter em
mente que, por ter sido elevado ao status de artista da corte de Maria da Hungria,
uma Habsburgo, é bem provável que ele já tivesse entrado em contato com os
retratos feitos por Tiziano que circulavam por Bruxelas e Flandres.
Deste modo detectamos uma cadeia de relações artísticas possíveis que
envolve a Itália, vista pelos próprios contemporâneos, como o centro da produção
artística, os ditos “Países Baixos” ou “norte da Europa”, representado por Anthonis
Mor, já famoso retratista, mas ainda mais celebrado após sua viagem à Itália, e,
por fim, Alonso Sánchez Coello, aquele que pode ser visto como o representante
da Península Ibérica e que conseguia beber tanto de fontes italianas, quanto de
fontes nórdicas, realizando peças que muito agradavam tanto à corte portuguesa,
quanto à espanhola.
240 JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. Verbete “Alonso Sánchez Coello” in SERRÃO, Vitor. Ibidem. pág. 458. 241 “... Sánchez Coello criou-se alguns anos em minha casa com o pintor Anthonis Mor”. Ibidem.
111
Detendo-nos sobre algum exemplo de retrato criado por Anthonis Mor,
entendemos de forma mais clara a ponte entre a sua retratística e a realizada por
Tiziano Vecellio. No retrato de D. Catarina da Áustria (1552, Museu do Prado,
Madri) percebe-se a importância de dar destaque à figura humana através da
verticalidade já apreciada nos “retratos de estado” tizianescos, além da ausência
de construção de uma ambiência externa a esta figura política. Em vez de
rascunhar uma paisagem segundo a tradição flamenga (penso em Dirck Bouts ou
Hans Memling), ele preferirá chapar o fundo da composição, o que realça a
grandiosidade da figura política construída. Por mais que nos retratos desta sua
estadia em Portugal não encontremos a inclusão do corpo inteiro das figuras
pintadas, seja por opção artística sua, seja pela possibilidade das telas terem sido
cortadas a posteriori, a influência e recodificação das formas de Tiziano é clara.
Anthonis Mor – Retrato de D. Catarina de Áustria – 1552 – Museu do Prado, Madri. Alonso Sánchez Coello – Retrato de D. João de Áustria – 1565 – Convento das Descalzas Reales, Madri.
Por outro lado, como Campbell comenta de forma breve, em vez de utilizar-
se de pinceladas rápidas e, de certa forma, soltas, como o pintor italiano faz em
112
alguns de seus retratos e, inclusive, recebe críticas negativas de Filipe II242,
Anthonis Mor como que segue a tradição nórdica da pintura, tão conhecida por
sua vontade de apreender os mínimos detalhes das figuras pintadas – seja a
construção da teia de cabelos de um retratado, seja a precisão com que os
detalhes dourados de uma roupa são traduzidos plasticamente. Diferenças essas
que já podiam ser percebidas nos sutis contrastes de formas como Tiziano e
Jakob Seisenegger ergueram monumentos a Carlos V.
No ano de 1552, Mor é enviado à Espanha e, posteriormente, à Inglaterra.
Deste ano até o fim de sua vida, em 1576/78, o pintor ficou famoso por ter
realizado diversos retratos das cortes espanhola, inglesa e dos Países Baixos.
Enquanto isso, Alonso Sánchez Coello foi nomeado pintor oficial da corte de
Joana de Áustria, irmã de Filipe II, e do Príncipe João, filho de D. João III e
Catarina da Áustria. Sua permanência, provavelmente, em território português
prolongou-se até 1557, quando finalmente estabeleceu-se na corte de Filipe II.
Se a produção de Coello, dentro do território português, é de difícil
atribuição e fica, de certa forma, ofuscada pela presença de Anthonis Mor, como
também aponta Jordan-Gschwend (seja pelo viés das cópias do pintor nórdico,
seja pelas obras possivelmente pintadas em conjunto), o mesmo não pode ser dito
de suas obras produzidas em território espanhol. Apreciar o retrato de D. João de
Áustria (1565, Convento das Descalzas Reales, Madri) é não deixar de ter em
mente o retrato de Francesco Maria della Rovere, já que estamos a lidar com
parâmetros visuais muito bem definidos; mesmo com quase trinta anos de
diferença, ainda encontramos a mão direita que segura o bastão, além da
esquerda que está prestes a sacar uma espada. Até mesmo o desenho da
armadura que envolve este filho de Carlos V é semelhante ao que envolve o
duque de Urbino.
242 CAMPBELL, Lorne. Renaissance portraits. European portrait-painting in the 14th, 15th and 16th centuries. Yale University Press, 1990, pág. 236.
113
Alonson Sánchez Coello – Retrato do Infante D. Carlos – 1565 – Convento das Descalzas Reales, Madri.
Essa recodificação plástica da tradição de retratos implantada por Tiziano
Vecellio também pode ser percebida no retrato do Infante D. Carlos (1565,
Convento das Descalzas Reales), filho de Filipe II com D. Maria de Portugal, seja
pelo recorte do corpo, que em termos cinematográficos seria um plano americano
(por enquadrar um pouco acima dos joelhos), seja também pela presença de um
capacete ao lado direito de nossa figura central. Se em Tiziano temos os símbolos
do poder, ao fundo e acima do duque de Urbino, em Coello um deles se encontra
em uma mesa, ao nível da mão de D. Carlos, o que ameniza o impacto visual
dado na obra do italiano. É nas passagens do claro para o escuro que
percebemos possíveis marcas do aprendizado com Anthonis Mor. Enquanto em
Tiziano temos contrastes de luz menos violentos, que se dão através de meios
tons (plasticidade essa futuramente trabalhada por um Rembrandt), em Coello há
uma necessidade da representação dos detalhes, além de tons pálidos de pele
encontrados também na retratística dada por Mor.
Se o impacto visual deste artista ibérico, espanhol de nascimento, mas
criado em corte portuguesa e, inclusive, documentado como “pintor português”
114
dentro de território espanhol243, não é o mesmo que o percebido no citado retrato
de Tiziano, por outro lado, as palavras de Aretino poderiam se aplicar à sua obra,
devido a suas claras tentativas de aplicar em suas figuras retratadas o seu
“invisível conceito”, ou seja, a adequação entre a imagem e a posição política das
mesmas.
A presença simultânea de Anthonis Mor e Alonso Sánchez Coello em corte
portuguesa, talvez somadas ao aparato teórico criado e incentivado por Francisco
de Holanda, foi responsável por um boom da retratística em Portugal. Enquanto
anteriormente aos anos de 1550 os exemplos portugueses de retratos são um
tanto quanto esparsos, com algumas boas raras exceções, como o grande painel
pintado por Nuno Gonçalves e, inclusive, citado por Francisco de Holanda em “Da
pintura antiga”, o mesmo não pode ser dito do recorte temporal sugerido por
Jordan-Gschwend, entre 1552 e 1572. Na primeira data temos o estabelecimento
de Mor em Portugal; na segunda, seis anos antes do falecimento de D. Catarina
da Áustria, ano em que encontramos dois dos últimos exemplos, encomendados
pela rainha, de uma clara recodificação da tradição tizianesca do retrato.
Neste período temos a presença, por exemplo, de Cristóvão de Morais,
pintor português, integrante da corte de D. João III e autor de um belo retrato de D.
Joana de Áustria, acompanhada por um pagem negro (Musée Royaux des Beuax-
Arts de Belgique, Bruxelas). Enquanto o duque de Urbino apoiava-se em símbolos
militares, a filha de Carlos V sustenta-se sobre uma outra pessoa, além de fitar o
espectador enquanto segura um leque, possível símbolo de feminilidade somada à
nobreza de sua posição. Dialogando com este retrato, há um exemplo espanhol
de Alonso Sánchez Coello, o retrato de D. Isabella Clara Eugênia, acompanhada
pela anã Magdalena Ruiz (1585-1588, Museu do Prado, Madri). No lugar do leque,
esta mulher ostenta a pequena efígie de um homem – o que não deixa de frisar a
diferença de gênero entre ela e o outro, sua possível submissão enquanto mulher
ou esposa.
243 JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. Ibidem.
115
Alonso Sánchez Coello – Retrato de D. Isabella Clara Eugênia com Magdalena Ruiz – 1585-88 – Museu do Prado, Madri. Cristóvão de Morais – Retrato de D. Joana de Áustria com um pajem negro – 1553 – Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique, Bruxelas.
Jooris van der Straeten – Retrato de Isabel de Áustria – 1573 – Convento das Descalzas Reales, Madri.
Outro belo exemplo de retrato de mulher é o realizado por Jooris van der
Straeten, pintor nórdico, possivelmente também integrante da comitiva de
Anthonis Mor em Lisboa, e que possui obras atribuíveis a datas entre 1556 e
1560.244 Presente na corte espanhola entre 1560 e 1568, logo após Straeten
muda-se para a França, onde realiza um retrato de Isabel da Áustria, rainha
francesa. Nessa obra, assim como no exemplo anterior de Coello, o artista opta
pela inclusão do corpo inteiro, ou melhor dizendo, do vestido inteiro, já que sua
capacidade de detalhamento do tecido que a rainha porta é louvável.
Coroando essa análise da fortuna crítica tizianesca na Península Ibérica
quinhentista, temos um dos dois retratos vistos como ponto final do “legado de
Anthonis Mor” por Jordan-Gschwend. Realizada em 1571 (Museu Nacional de Arte
Antiga, Lisboa), também por Cristóvão de Morais, esta pintura pode ser vista como
um vórtice dos fluxos artísticos durante o dito Renascimento. Mesmo havendo
quase quarenta anos de distância entre este retrato e os de Carlos V realizados
por Jakob Seisenegger e Tiziano entre 1532 e 1533, é claro o diálogo entre ambas
as obras. A presença do cão de caça que acompanha a figura-mor da hierarquia
244 JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. Verbete “Jooris van der Straeten”. In SERRÃO, Vitor. Ibidem, pág. 491.
116
política e que o fita, é o ponto mais gritante de contato. Por outro lado, nas obras
relativas a Carlos V o corpo do animal está presente, ao passo que na obra de
Morais ele aparece como uma mera citação. Nem mesmo a necessidade de
rascunhar uma paisagem ou cenografia ao fundo faz-se necessária; importa
apenas a potência corpórea do rei de Portugal. Bebendo de uma fonte “nórdica”,
de Anthonis Mor talvez, esta figura fita o espectador, reforçando o seu eterno
superior lugar perante a nossa presença. Outro caminho de leitura possível para
esse fitar seria, mais uma vez, o retrato de Francesco Maria della Rovere. Tal
possibilidade de diálogo é ainda reforçada pela forma como o artista conjuga o
encaixe da armadura no corpo da figura, além do posicionamento de sua mão
sobre espada e, por fim, a forma como ele enquadra o seu corpo.
O pintor português inverte o posicionamento do corpo e das mãos de D.
Sebastião, neto de Carlos V e D. João III e rei de Portugal entre 1568 e 1578.
Pintar o rei de Portugal de forma semelhante ao, um dia, imperador do Sacro
Império Romano-Germânico, seu avô, é tentar, através da imagem, criar uma
continuidade da iconografia da família. O que torna este exemplo ainda mais
interessante, é que esta tentativa bem-sucedida também acaba por perpetuar uma
tradição artística, impulsionada pelos personagens aqui já frisados, tais como
Tiziano Vecellio, Pietro Aretino, Francisco de Holanda e Anthonis Mor.
Cristóvão de Morais – Retrato de D. Sebastião de Portugal – 1571 – Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
117
Através destas breves considerações, espera-se ter deixado claro que, falar
sobre retrato no Renascimento, em especial no que diz respeito ao século XVI, o
assim chamado “Alto Renascimento”, é tocar, inevitavelmente, no corpus de obras
de Tiziano. Colocando em melhores palavras, o comentar as relações entre arte e
retratística, e isso inclui boa parte da criação de retratos posterior ao século XVI, é
tangenciar diversas questões tanto visuais, quanto do campo da teoria da arte,
que vão de encontro à produção deste artista italiano. Além disso, cabe ter em
mente também os fluxos artísticos e geográficos entre pensadores e artistas,
capazes de levar um Francisco de Holanda a eleger Tiziano como o melhor
retratista vivo de seu tempo, além de ser uma referência clara para as obras de
pintores tanto portugueses, quanto espanhóis e nórdicos. As relações entre Carlos
V e a corte portuguesa (Catarina de Áustria) iniciam-se no sangue e,
inevitavelmente, difundem-se pelas artes visuais.
119
CAPÍTULO 4 FRANCISCO DE HOLANDA E O RETRATO EM PORTUGAL
Em “Da pintura antiga”, de 1548, após ditar os preceitos da boa arte da
antiguidade e de descrever seus quatro possíveis “Diálogos em Roma”, Francisco
de Holanda escreve suas “Tábuas dos maiores artistas da Renascença”. Divididas
em seis partes, estas listam grandes artistas ativos entre os séculos XIII e XVI, tal
qual a abordagem cronológica de Giorgio Vasari em suas “Vidas”. Os segmentos
estão divididos por técnica artesanal: pintura, iluminura, escultura em mármore,
arquitetura, gravura em cobre e gravura feita com cornalina.
O último artista (número vinte e um) citado dentro da primeira tábua, que é
relativa aos “famosos pintores modernos, a que eles chamam „águias”, é também
o único português desta parte de seu texto. Holanda diz: “O pintor português,
ponho entre os famosos, que pintou o altar de S. Vicente de Lisboa”.245 No
capítulo onze de seu “Da pintura antiga”, intitulado “A diferença da Antiguidade”,
novamente irá citar seu conterrâneo pintor:
E neste capítulo quero fazer menção de um pintor português que sinto que merece memória, pois em tempo mui bárbaro quis imitar nalguma maneira o cuidado e a discrição dos antigos e italianos pintores. E este foi Nuno Gonçalves, pintor de el-Rei dom Afonso, que pintou na Sé de Lisboa o Altar de S. Vicente; e creio que também é da sua mão um Senhor atado à coluna, que dois homens estão açoitando, em uma capela do mosteiro da Trindade.
246
Ao cruzar estas duas referências textuais temos a possível identidade do
pintor português celebrado por Holanda em suas “Tábuas”; trata-se de Nuno
Gonçalves, artista ativo durante o reinado de Afonso V em Portugal (1438-1481).
Nomeado pintor oficial do rei em 1450, não existem informações sobre o seu ano
de nascimento e um dos únicos dados oficiais é de que em 1492 já havia
falecido.247 Sua formação artística e sua influência em Portugal durante o século
XV são igualmente obscuros. As duas citações de Francisco de Holanda acima
são as únicas temporalmente próximas à realização do chamado “Políptico de São
245
HOLANDA, Francisco de. Diálogos em Roma. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pág. 90. 246
HOLANDA, Francisco de. Da pintura antiga. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, págs. 37-38. 247
GUSMÃO, Adriano de. “Letters – Nuno Gonçalves” in The Burlington Magazine, vol. 98, nº 638. Londres: The Burlington Magazine Publications, 1956, págs. 166-167.
120
Vicente” (1460-80, Museu Nacional de Arte Antiga) que apontam Nuno Gonçalves
enquanto autor. Baseado nestas linhas, diversos historiadores da arte tentaram
confirmar esta autoria, mas nenhum até o momento encontrou documentação
capaz de tal precisão.248
Nuno Gonçalves (atribuída a) – “Políptico de São Vicente” – 1460-80 – Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
O lugar originário de exposição da pintura, assim como comentado por
Francisco de Holanda, era a Sé de Lisboa. Até 1742 os painéis ficaram expostos
lado a lado dentro da igreja, porém perdendo a grandiosidade de estarem perante
o altar-mor, sendo substituídos por uma pintura encomendada no início do século
XVIII. Neste ano, por ordem do cardeal Dom Tomaz de Almeida, o “Políptico de
São Vicente” foi transferido para o Palácio de Mitra, também em Lisboa. Se não
fosse por esta transferência, possivelmente o fim desta pintura teria chegado junto
248
COOK, Herbert. “Some early Portuguese paintings” in The Burtlington Magazine, vol. 15, nº 76. Londres: The Burlington Magazine Publications, 1909, págs. 232-237. DONY, Paul. “L‟„Infante en Gris‟ de Nuno Gonçalves” in Luso-Brazilian Review, vol. 4, nº 2. Madison: The University of Winscosin Press, págs. 3-16. GUSMÃO, Adriano de. “Letters – Nuno Gonçalves” in The Burlington Magazine, vol. 98, nº 638. Londres: The Burlington Magazine Publications, 1956, págs. 166-167. PRESTAGE, Edgar. “Early Portuguese paintings” in The Burlington Magazine, vol. 17, nº 90. Londres: The Burlington Magazine Publications, 1910, págs. 340-348. SARTON, George. “Preface to volume XXIV: Nuno Gonçalves” in Isis, vol. 24, nº 1. Chicago: The University of Chicago Press, 1935, págs. 7-14. STEEGMANN, John. “Exhibition of Portuguese primitives, Lisbon” in The Burlington Magazine, vol. 77, nº 450. Londres: The Burlington Magazine Publications, págs. 94-99.
121
ao famoso terremoto de 1755, que destruiu grande parte do acervo da Sé de
Lisboa, inclusive a pintura que tomou seu lugar no altar-mor da igreja.249
No ano de 1882, segundo Edgar Prestage, a possível obra de Nuno
Gonçalves já se encontrava em outro lugar, dentro da Igreja de São Vicente de
Fora. Ela teria sido “resgatada” por vontade do então famoso pintor Columbano
Pinheiro.250 Devido a este, portanto, o quadro foi restaurado, novamente apreciado
e ganhou a atenção de historiadores da arte portugueses. Em 1911, após a
instauração de um decreto que responsabiliza alguns museus portugueses pela
patrimonialização de parte do acervo artístico conservado em instituições
religiosas, o já restaurado “Políptico de São Vicente” é transferido para o Museu
Nacional de Arte Antiga, responsável por um acervo de obras realizadas entre a
Antiguidade e o século XVIII.
Deste momento em diante, os historiadores da arte portuguesa apontam o
quadro como símbolo da dita “escola primitiva portuguesa”, colocando-o acima de
outros expoentes do período como Mestre da Lourinhã, Grão Vasco e Frei
Carlos.251 Trata-se de uma tentativa de organizar sob um mesmo rótulo obras
portuguesas de pintura realizadas durante o século XV e que dialogavam
diretamente com os chamados “primitivos flamengos”, representados pelas mãos
de Jan van Eyck e Hugo van der Goes. Importante ter em mente que em 1428 o
próprio Jan van Eyck esteve em terras portuguesas com a finalidade de retratar
Isabel de Portugal. Mesmo não se comprovando documentalmente a ligação entre
Gonçalves e van Eyck, alguns historiadores tentam relacionar suas obras e,
consequentemente, as duas escolas nacionais de pintura.252
Ao observamos pinturas das duas autorias, é visível a diferença de
composição cênica. O “Altar Ghent: a adoração do cordeiro místico” (1432,
Catedral de São Bavo, Ghent), foi realizado por Jan van Eyck e seu irmão Hubert
249
PRESTAGE, Edgar. “Early Portuguese paintings” in The Burlington Magazine, vol. 17, nº 90. Londres: The Burlington Magazine Publications, 1910, págs. 340-348. 250
Ibidem. 251
Como exemplo recente, é possível destacar uma exposição que será realizada no próprio Museu Nacional de Arte Antiga, entre os dias 28 de outubro de 2010 e 06 de fevereiro de 2011, que se intitula “Primitivos portugueses (1450-1550) – o século de Nuno Gonçalves”. 252
DONY, Paul. “L‟„Infante en Gris‟ de Nuno Gonçalves” in Luso-Brazilian Review, vol. 4, nº 2. Madison: The University of Winscosin Press, págs. 3-16.
122
van Eyck a partir de uma encomenda de Jodocus Vijd, burgomestre de Ghent.
Devido à sua importância singular dentro da obra dos irmãos e devido também à
sua proximidade temporal com a estadia de Jan van Eyck em Portugal, pode-se
relacioná-lo à obra atribuída a Nuno Gonçalves.
No “Altar Ghent”, as figuras humanas se encontram organizadas a admirar
o Cordeiro de Deus no centro da tela, estando todas situadas dentro de uma
paisagem extensa. Já no “Políptico de São Vicente” inexiste a construção de uma
ambiência externa às figuras humanas. O destaque na obra atribuída a Nuno
Gonçalves é justamente a representação dos seis grupos de pessoas que
constituem o painel. No que diz respeito ao detalhamento das vestimentas e dos
rostos, além das cores e do brilho utilizados por ambos os artistas, há uma
proximidade visível entre os dois polípticos. Quando destacamos um grupo de
figuras do “Altar Ghent” é claro o diálogo visual que pode ser estabelecido com a
obra portuguesa. As figuras são conjugadas lado a lado, mas não
necessariamente se encontram absortas em uma ação. Em alguns trechos das
pinturas elas parecem mais uma reunião de pessoas que estavam a posar para o
pintor; co-habitam no espaço da pintura, mas não necessariamente se relacionam
através do olhar e do corpo, ou mesmo junto a algum objeto representado.
As mesmas características se aplicam à obra atribuída a Nuno Gonçalves,
onde a maior parte das figuras humanas ou encara o observador ou assume uma
postura semelhante ao modelo que posa para o pintor. Os momentos de
integração à representação religiosa se dão de modo mais claro nos painéis
centrais, onde a imagem de São Vicente interage com algumas figuras
organizadas ao seu redor. Enquanto isso, em cada um dos painéis laterais, ao
menos uma figura se coloca de joelhos e se põe a orar perante a iluminação da
figura santa. De todo modo, porém, tanto no campo da construção plástica dos
corpos, tanto no que diz respeito à sua organização espacial, esta obra atribuída a
Nuno Gonçalves dialoga de modo próximo com a produção de Jan van Eyck.
123
Jan van Eyck –“Altar Ghent: a adoração do cordeiro místico” (detalhes) – 1432 – Catedral de São Bavo, Ghent.
Na obra de van Eyck, é sabido que estas figuras citadas não são retratos,
mas sim representações de grupos religiosos sagrados (anjos ao centro) e laicos
(representantes do poder da igreja).253 Enquanto isso, no “Políptico de São
Vicente”, uma pergunta é feita: seriam estas imagens retratos de integrantes da
corte de D. Afonso V? Algumas figuras são identificáveis e baseadas em outros
retratos do século XV, como por exemplo a figura do Infante D. Henrique, no
terceiro painel da esquerda para a direita, o chamado “Painel do Infante”, com um
turbante na cabeça. Neste mesmo painel, outras figuras da corte portuguesa,
como o Príncipe D. João (a criança ao lado de D. Henrique e o futuro rei D. João
II), o rei D. Afonso V (ajoelhado, à frente) e sua esposa, Isabel de Portugal (na
direção de Afonso V, também ajoelhada, do outro lado da tela) já foram
identificadas.254
Por outro lado, a identidade da maior parte das figuras inseridas nos outros
painéis do políptico, como por exemplo nos dois à esquerda e conhecidos por
“Painel dos frades” e “Painel dos pescadores”, foram perdidas e podem mesmo
ser questionadas. Tratam-se de retratos, ou seja, representações de pessoas
253
Por outro lado, ao se fechar o políptico, não resta dúvidas que vemos nas asas laterais, à extrema direita e esquerda, os retratos dos comanditários da obra, ou seja, Jodocus Vijd e sua esposa, Lysbette Borlutt. 254
DONY, Paul. “L‟„Infante en Gris‟ de Nuno Gonçalves” in Luso-Brazilian Review, vol. 4, nº 2. Madison: The University of Winscosin Press, págs. 3-16.
124
específicas da sociedade portuguesa da época ou seriam figuras humanas
portadoras de uma grande individualidade e detalhamento do rosto, mas não
retratos? Seriam frades e pescadores específicos, retratados ou seriam apenas
meios de representação de um grupo?
De todo modo, sendo ou não integralmente retratos, o fato de Francisco de
Holanda apenas incluir um pintor português dentro de sua “Tábua dos maiores
artistas da Renascença”, e o fato da obra mais importante deste, um “retrato de
grupo”, ser inclusive citada por Holanda, nos leva a cogitar a hipótese de que este
pintor português seria uma espécie de paradigma dentro da retratística para o
autor de “Do tirar pelo natural”.
Nuno Gonçalves (atribuída a) – “Políptico de São Vicente” (detalhe do Painel dos Frades, Painel dos Pescadores e Painel do Infante) – 1460-80 – Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
Um dado interessante que soma à apreciação positiva feita por Holanda de
Nuno Gonçalves é o fato dele afirmar que este “... em tempo mui bárbaro quis
125
imitar nalguma maneira o cuidado e a discrição dos antigos e italianos pintores”.255
Holanda aponta, em primeiro lugar, que o período histórico de Gonçalves era “mui
bárbaro”; não se tratava ainda do século XVI da tríade vasariana. Em segunda
instância, novamente o autor prefere associar a arte realizada em Portugal com a
arte italiana, em detrimento da “tradição nórdica”.
Ao fazer tal associação ele intenciona atribuir um caráter mais nobre ao
“Políptico de São Vicente”, colocando a provável autoria de Nuno Gonçalves em
uma posição destacada dentro daquilo que futuramente viria ser chamado de
“pintura primitiva portuguesa”. Estes seis painéis deveriam mais a uma tradição do
retrato em grupo que advém do “Norte da Europa” ou poderíamos relacioná-los
também ao retrato dentro do dito “Renascimento italiano”?
Tais argumentações rememoram o texto escrito por Alöis Riegl, “Das
holländische Gruppenporträt” (“O retrato em grupo holandês”), em 1902. O autor
irá trabalhar nesta obra com os pólos da narração e da descrição, ou melhor, da
coordenação e subordinação nas figuras pintadas em retratos. Para Riegl, o que
seria específico da arte italiana é a necessidade de sempre haver um contexto
narrativo para que as figuras existam, ou seja, a figura humana sempre estará
subordinada à ação, mesmo dentro dos retratos em grupo, onde representariam
vontades ou emoções. Devido a essa vontade narrativa da arte italiana, o retrato
em grupo autônomo seria uma tipologia formal um tanto quanto rara dentro deste
recorte geográfico.256
Ao analisar, por exemplo, os retratos em grupo dentro da produção pictórica
de Domenico Ghirlandaio, é perceptível como as figuras humanas encontram-se
inseridas dentro da narrativa religiosa. Encomendada pelo Papa Sisto IV, o
afresco da “Chamada dos apóstolos” (1481, Capela Sistina, Roma) trata-se de
uma obra, grosso modo, contemporânea à pintura atribuída a Nuno Gonçalves.
Mesmo que se encontrem agrupados à direita e de certo modo destacados das
figuras de Jesus Cristo e dos apóstolos, o grupo de retratos está subjugado à
narração e inclusive parece admirar a cena sacra que se sucede ao seu lado.
255
HOLANDA, Francisco de. Da pintura antiga. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pág. 37. 256
RIEGL, Alois. The group portraiture of Holland. Los Angeles: The Getty Research Institute for the History of Art and Humanities, 1999, págs. 61-65.
126
Integrantes das famílias Soderini, Tornabuoni e Vespucci foram retratados. Estas
pessoas funcionam como uma espécie de coro para a narrativa cristã. Algumas
delas, no lugar de olhar para o espaço interno da pintura, lançam seu olhar para o
espectador. A relação com a paisagem aqui se dá de modo diferente do que em
Jan van Eyck: no lugar da inserção dentro da paisagem, Ghirlandaio transforma a
natureza em cenário, pano de fundo para ação. Interessante constatar que nas
raras vezes em que o retrato em grupo aparece na arte italiana do século XV, ele
se encontra inserido ao lado de uma construção narrativa.
Domenico Ghirlandaio – “Chamada dos apóstolos” – 1481 – Capela Sistina, Roma.
Enquanto isso, na Holanda e, por extensão, no “Norte da Europa”, as
figuras parecem estar coordenadas para o espectador. Mesmo reunidas em grupo,
suas existências parecem individuais e a impressão tida é de que aqueles corpos
estão ali apenas para serem observados, sem necessidade de haver uma unidade
junto à narrativa. Se em um pintor como Frans Hals, o melhor retratista em grupo
segundo Riegl257, estes pólos serão equilibrados, estando seus retratos entre a
coordenação e a subordinação em relação ao espectador, dentro da “pintura
holandesa” do século XV o campo da coordenação seria mais claro. O retrato em
grupo, para Riegl, seria um gênero artístico nórdico por excelência.
257
RIEGL, Alois. The group portraiture of Holland. Los Angeles: The Getty Research Institute for the History of Art and Humanities, 1999, págs. 321-351.
127
Geertgen tot Sint Jans – “Os ossos de São Francisco” – 1485 – Kunsthistorisches Museum, Viena.
Podemos observar isso na obra que Riegl analisa no primeiro capítulo de
seu livro, de Geertgen tot Sint Jans, intitulada “Os ossos de São Francisco” (1485,
Kuntshistorischesmuseum, Viena).258 Permeando a composição, em uma
diagonal, temos três grupos de retratos dos comanditários da obra. Como Riegl
coloca em seu texto, o pintor aqui não narra um encontro entre esses homens,
mas meramente descreve sua existência em conjunto. Mesmo agrupados, os
homens não estão articulados nem pelo jogo de olhares, nem pela sua
gestualidade. São existências individuais, mas agrupadas visualmente. Diferente
da pintura de Domenico Ghirlandaio, aqui eles estão divididos em três pequenos
grupos e, além disso, não apresentam nenhuma conexão direta com as cenas
religiosas que se sucedem no primeiro plano e ao fundo. Devido a essa
“autonomia” do retrato em grupo holandês durante o século XV, segundo Riegl, o
258
Ibidem, págs. 68-84.
128
mesmo se tornaria um gênero específico dentro da pintura nórdica nos séculos
XVI e XVII, não precisando sequer de uma justificativa narrativa para sua
existência. Geertgen tot Sint Jans seria a semente de uma tradição pictórica que
desembocaria, por exemplo, na “Ronda noturna” (1642, Rijksmuseum, Amsterdã),
de Rembrandt van Rijn.
Ao enquadrar Nuno Gonçalves à “... discrição dos antigos e italianos
pintores”, Francisco de Holanda nos remete também a escritos de historiadores da
arte como Enrico Castelnuovo259 e, principalmente, John Pope-Hennessy.260 Estes
apontam que a origem do retrato individual na Itália se dá, justamente, a partir da
inserção de figuras cívicas em pinturas religiosas, tal qual na obra de Ghirlandaio
citada acima, além de outros afrescos famosos do pintor, como os da Capela
Sassetti e da igreja Santa Maria Novella. Este seria o princípio do chamado “culto
à personalidade”, título do capítulo primeiro de “The portrait in the Renaissance”,
de Pope-Hennessy: retratos celebrativos não apenas da família dos comanditários
da obra, mas também de outras famílias importantes e influentes politicamente.
Ao partirmos do princípio de que a pintura atribuída a Gonçalves tem
também uma dimensão religiosa, vide a inserção da imagem de São Vicente,
além, claro, de retratar a família de D. Afonso V e representar diversas camadas
sociais portuguesas, não poderíamos filiá-la também a esta produção de afrescos
florentinos durante o século XV? Parece que não só a arte em Portugal, mas
também os escritos de Francisco de Holanda, estão em uma espécie de espaço
limiar. Plasticamente, o “Políptico de São Vicente” estabelece um diálogo com Jan
van Eyck, ao passo que quanto à organização das figuras enquanto retrato de
grupo haveria uma proximidade maior com a tradição da retratística celebrada por
Riegl. Por outro lado, especialmente após reler as palavras escritas por Holanda
quanto à obra, poderíamos vinculá-lo também ao retrato inserido na narrativa
religiosa. Estas diversas possibilidades de abordagem à obra atribuída a Nuno
259
CASTELNUOVO, Enrico. Retrato e sociedade na arte italiana. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, págs. 43-47. 260
POPE-HENNESSY, John. The portrait in the Renaissance. Nova Iorque, Pantheon Books: 1963, págs. 3-63.
129
Gonçalves reforçam o cuidado que deve ser tomado ao se filiar uma unidade
geográfica a uma forma ou modelo artísticos.261
Francisco de Holanda – “Anunciação de Nossa Senhora de Belém” – 1552-54 – Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
Retornando à figura de Francisco de Holanda e à sua apreciação do
possível “retrato em grupo” feito por Nuno Gonçalves, cabe analisarmos o único
retrato em grupo de sua autoria que nos foi legado. Datada entre os anos de 1552
e 1554, ou seja, concluída poucos anos após o término da escrita de “Do tirar pelo
natural”, temos aqui uma representação da “Anunciação da Nossa Senhora de
Belém” (1552-54, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa), possivelmente
encomendada por D. João III e D. Catarina de Áustria para o Mosteiro dos
Jerônimos.262
Francisco de Holanda insere na pintura uma narrativa religiosa, tal qual o
nosso exemplo de Ghirlandaio, e pinta a família de D. João III à esquerda, dentro
261
Como diz Luiz Marques, “Al admitirse que el concepto de modelo en la historia del arte del Renacimiento permanece como una herramiente mental imprescindible, será entonces el caso de repensar sus determinaciones, evitando si posible la lógica de la circularidad legada por Burckhardt” in MARQUES, Luiz. “Una paradoja sobre las relaciones entre Italia y España en el Renacimiento y la hipótesis de un modelo español” in El modelo italiano en las artes plásticas de la Península Ibérica durante el Renacimiento. Valladolid: Universidade de Valladolid, 2004, pág. 81. 262
ALVES, José da Felicidade. Introdução ao estudo da obra de Francisco de Holanda. Lisboa: Livros Horizonte, 1986, págs. 96-98.
130
do modelo do retrato de comanditário ou retrato de doador. Do outro lado da tela,
um grupo de religiosos louva de modo expansivo a figura de Virgem Maria.
Enquanto isso, as pessoas que encomendaram a obra encontram-se em
oração/admiração discreta da figura religiosa ao centro. Seus corpos, tomando os
pólos analíticos propostos por Alöis Riegl, parecem estar entre a coordenação
para o espectador e a subordinação à ação interna. A figura do Papa Júlio III, à
direita e quase integralmente de costas para nossos olhos, é o que mais
movimenta seu corpo, chegando mesmo a se colocar de joelhos e a unir suas
mãos no gesto da oração. O cardeal D. Henrique, trajando vermelho e ao fundo
deste grupo, também coloca suas mãos à frente, assim como o infante D. Luís, ao
seu lado. Já D. João III, à esquerda do Papa, apenas volta seu olhar para a
presença santa, abraçado ao príncipe D. João, que apenas ensaia um erguer de
mãos.
Que relações podem ser feitas entre esta obra de Francisco de Holanda e a
obra atribuída a Nuno Gonçalves? Em ambas as obras há um esforço pelo retrato
em grupo. O modo como Holanda tenta dar ritmo ao seu retrato através do jogo de
diferentes ângulos dos rostos retratados lembra o modo como o “Políptico de São
Vicente” é pintado. Uma das maiores diferenças aqui, porém, é técnica: a obra
atribuída a Nuno Gonçalves é uma pintura em escala monumental, medindo no
total cerca de 207 x 504cm e pintada a óleo e a têmpera. A “Anunciação” de
Holanda é uma pequena obra de cerca de 32 x 45cm, realizada também a óleo
sobre madeira. A harmonia em grande escala vista na pintura do século XV é
substituída por um grupo de retratos que é deveras inverossímil, seja pela falta de
“realço” nos olhos destes homens e mulheres, seja pelo seu escalonamento de
cabeças que parecem flutuar. As figuras pintadas por Holanda não parecem
“respirar” como as figuras representadas em Nuno Gonçalves. Além disso, a
utilização de palavras douradas que indicam as identidades dos retratados, se por
um lado não deixam a margem de dúvida que as fisionomias do “Políptico de São
Vicente” nos legaram, por outro podem denotar um artifício arcaizante,
relacionável, por exemplo, com a pintura religiosa produzida durante os séculos
XIV e meados do XV.
131
Se Francisco de Holanda elogia o “retrato em grupo” de Nuno Gonçalves,
mas enquanto retratista não segue propriamente as trilhas de sua “águia”, com
quais outras tradições de imagens ele estava a dialogar ao realizar este seu
retrato da família de D. João III? Uma resposta plausível parece advir da própria
escala desta pintura: se recortarmos o retrato pintado por Holanda, teremos uma
imagem de cerca de 18 x 14,5 cm, ou seja, uma imagem menor do que o tamanho
de uma folha de papel A4. Parece, portanto, que se Holanda dialoga com alguma
tradição imagética latente em Portugal, esta é a tradição da miniatura.
Uma série de miniaturas a óleo (16 x 13cm) da coleção da Galleria
Nazionale di Parma foi atribuída a Francisco de Holanda pelos historiadores
Giuseppe Bertini e Annemaerie Jordan-Gschwend, que as dataram como sendo
de meados do século XVI.263 Trata-se de vinte e quatro retratos que representam
tanto a família Farnese, quanto a família de D. João III. Bertini264 localiza os
modelos nos quais estão baseados as efígies dos Farnese (Tiziano Vecellio), ao
passo que Jordan-Gschwend estabelece alguns cruzamentos entre as miniaturas
da família real portuguesa e a retratística aqui já comentada de Anthonis Mor. A
historiadora diz que é “... legítimo supor que as miniaturas Farnese tenham sido
encomendadas em 1565 pela rainha de Portugal, como presente de casamento
para a sua sobrinha D. Maria de Portugal, futura princesa de Parma”.265
263
JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. O retrato de corte em Portugal – o legado de Antonio Moro (1552-1572). Lisboa: Quetzal Editores, 1994, pág. 43. 264
BERTINI, Giuseppe. “Le miniature farnesiane” in FMR, nº 74. Milão: Franco Maria Ricci Editore, 1989, págs. 83-91. 265
Idem a nota 147.
132
Francisco de Holanda – Retrato de D. Joana de Áustria – 1550-1570 – Galleria Nazionale di Parma. Cristóvão de Morais – Retrato de D. Joana de Áustria – 1533 – Musée Royaux des Beaux-Arts de Belgique, Bruxelas.
Oito são os retratos da família de D. João III, incluindo a efígie de D. Joana
de Áustria, filha de Carlos V e esposa do Príncipe D. João de Portugal (1550-70,
Galleria Nazionale de Parma). Pensando nas relações desta pintura com outras
produzidas durante o século XVI em Portugal, é inevitável vir à mente outro retrato
de D. Joana de Áustria, pintado pelo português Cristóvão de Morais (1533, Musée
Royaux des Beaux-Arts de Belgique, Bruxelas). Ao observarmos também os
retratos que Holanda fez em miniatura de D. João III e D. Catarina de Áustria,
ficam claras as cópias feitas a partir de obras de Anthonis Mor.
Quanto a outras duas miniaturas, as de D. Maria de Portugal e D. Isabel de
Bragança, pergunta-mo-nos se Holanda efetivamente teria copiado algum pintor
ou se ele mesmo teria realizado retratos “tirados pelo natural” das duas
integrantes da corte. As obras de Mor que podem ter servido como modelo não
foram encontradas e a ausência dessas imagens nos leva a refletir sobre até que
ponto uma interpretação que quase sempre vê a produção de Francisco de
133
Holanda enquanto cópia (tal qual Jordan-Gschwend faz em seu livro) é válida para
sua produção de imagens.
Anthonis Mor – Retrato de D. João III – 1552 – Fundación Lazaro Galdiano, Madri. Anthonis Mor – Retrato de D. Catarina de Áustria – 1552 – Museu do Prado, Madri.
Todos estes integrantes miniaturizados da corte de D. João III também
foram incluídos dentro do retrato de família feito por Holanda em sua
“Anunciação”. D. Catarina é pintada com outra veste, mas com a mesma posição
da cabeça e com um leve abrir de lábios que dá a ligeira impressão de movimento
na composição. Enquanto isso, D. Maria de Portugal é representada de modo
invertido, porém com a mesma expressão sonolenta nos olhos e as mesmas jóias
em seu cabelo. Ao fundo do retrato em grupo, enxergamos D. Isabel de Bragança
com o mesmo traje religioso. As letras douradas que apontam nas miniaturas as
identidades dos retratos também estão na pequena pintura de Holanda, como já
aqui comentado. Deste modo, podemos dar uma nova interpretação à inclusão
destas palavras, para além de uma tradição arcaizante, inserindo o campo da
miniatura e da iluminura em nossa interpretação.
134
Francisco de Holanda – Retratos de D. João III, D. Catarina de Áustria, D. Maria de Portugal e D. Isabel de Bragança – 1550-1570 – Galleria Nazionale di Parma.
Com isso, ao apreciar novamente a “Anunciação” de Francisco de Holanda,
é possível ler esse grupo de pessoas como um grupo de miniaturas, visto também
a fileira de rostos em que esse retrato se transforma a partir do segundo plano de
135
figuras, logo atrás de D. João III e do Papa Júlio III. A pequena escala deste
retrato, quando colocada ao lado das miniaturas de Parma, contribui para esta
interpretação.
Os retratos iluminados por Francisco de Holanda para seu “Álbum de
desenhos das antigualhas” (1538-40, Biblioteca do Mosteiro do Escorial) merecem
destaque. Logo após a portada desta série de desenhos, como imagens
introdutórias à obra, temos um retrato de Michelangelo Buonarroti e outro do então
Papa Paulo III. Ao observar esta segunda imagem, imediatamente a figura pintada
por Holanda do Papa Júlio III vem à mente. É como se Francisco de Holanda
tivesse rotacionado a figura papal iluminada e a colocasse perante Virgem Maria.
Não apenas a estrutura do corpo é semelhante, como as mãos erguidas à frente
(em oração na pintura e denotando a fala ou a benção na iluminura) com seus
dedos longos e finos aparecem em ambas as composições. As outras figuras que
estendem suas mãos também lembram o modo como Holanda dá forma às mãos
do Papa Paulo III. Os tons dourados da vestimenta papal se repetem nessa
iluminura e as palavras que informam quanto à identidade do retratado aqui
aparecem em formato de circunferência, assim como o retrato em si.
Francisco de Holanda – Retrato do Papa Paulo III – 1538-40 – “Álbum de desenhos das antigualhas” – Biblioteca do Mosteiro do Escorial.
136
Francisco de Holanda – Retrato de Michelangelo Buonarroti e Retrato de Pietro Lando – 1538-40 – “Álbum de desenhos das antigualhas” – Biblioteca do Mosteiro do Escorial.
Ao olhar os dois outros retratos inseridos no “Álbum de desenhos das
antigualhas”, ou seja, os de Michelanguelo Buonarroti e do doge Pietro Lando, o
formato circular também encontrado no retrato do Papa Paulo III chama a atenção.
Quando em dois dos três retratos percebemos que os homens são representados
em perfil, o primeiro modelo que nos vêm à mente são as moedas romanas
antigas que estampavam as efígies dos imperadores, generais e integrantes do
governo da República e do Império Romano do Ocidente. Tais imagens podem ter
sido apreciadas por Francisco de Holanda durante sua estadia em Roma entre os
anos de 1538 e 1540 ou mesmo poderiam existir dentro da corte de D. João III em
coleções.
Ao comparar estes retratos com, por exemplo, uma moeda celebrativa do
imperador Tibério Cláudio (42 a.C – 37 d.C), o rosto em perfil é o primeiro
elemento que merece destaque. Seguinte a isto, a opção por circundar o retrato
com a identificação em latim do retratado também está presente não apenas nos
retratos em perfil feitos por Holanda, mas também no retrato do Papa Paulo III.
Por outro lado, se nas moedas romanas geralmente os imperadores se encontram
137
retratados virados para o nosso lado direito, nos retratos holandianos os perfis
voltam-se para a esquerda. Enquanto nestas moedas apenas um lado do rosto e
do pescoço são representados, nas iluminuras de Holanda um terço do corpo está
à mostra e com a inclusão significativa dos braços, como no caso do retrato de
Michelangelo.
Retrato deTibério Cláudio – 36-37 d.C. – Musée de la Civilisation Gallo-Romaine, Lyon. Retrato de Pompeu, o Grande – 40 a.C. - Musée de la Civilisation Gallo-Romaine, Lyon.
Os louros que se encontram sobre cabeça de Tibério são levados para o
fundo da composição e são recodificados como um atributo de Michelangelo
Buonarroti. O mesmo pode ser dito da coroa de rosas ao seu lado esquerdo e
também das chaves da igreja logo acima de Paulo III. Tal organização de atributos
dos retratos, sem a necessidade de colocá-los sobre uma mesa ou mesmo
portados pelas figuras humanas, também ocorre dentro da retratística romana
antiga. Isso pode ser visto, por exemplo, em um retrato póstumo de Pompeu, o
Grande (106 a.C. – 48 a.C.), em que este é associado à Netuno devido às suas
célebres campanhas marítimas. Sendo a tradição romana a de retratar apenas o
rosto dos imperadores, é justo que seus atributos apenas possam repousar ao
lado da efígie ou então no verso da moeda. As imagens de Francisco de Holanda
parecem, portanto, uma releitura da antiguidade romana pelo viés da iluminura.
Imagens que celebram o poder político (Pietro Lando), artístico (Michelangelo
Buonarroti) e religioso (Paulo III) e que condizem com o projeto do “Álbum de
138
desenhos das antigualhas” de sintetizarem obras, costumes e pessoas com quem
Francisco de Holanda teve contato durante sua viagem a Itália.
Antônio de Holanda –“Genealogia de Manuel Pereira” – 1534 – Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa.
Não devemos nos esquecer de que o pai de Francisco de Holanda, Antônio
de Holanda, era iluminador e pertecente à corte de D. Manuel. Não por acaso,
voltando às suas “Tábuas dos maiores artistas da Renascença”, logo após a
listagem das “águias” da “pintura moderna”, Francisco irá listar “os famosos
iluminadores da Europa”. Seu pai figura em primeiro lugar: “A Antonio D‟Ollanda,
meu pai, podemos dar a palma e juízo, por ser o primeiro que fez e achou em
Portugal o fazer suave de preto e branco, muito melhor que em outra parte do
mundo”.266
Parte da produção de iluminuras de Antônio de Holanda diz respeito a
árvores genealógicas. Quando são comparados os retratos inseridos dentro da
“Genealogia de Manuel Pereira” (1534, Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
Lisboa) com os retratos de seu filho no “Álbum de desenhos das antigualhas”, a
ponte anterior feita com as moedas romanas pode ser ampliada. Trata-se de uma
árvore genealógica cujos retratos estão dentro de circunferências. Se destacarmos
266
HOLANDA, Francisco de. Diálogos em Roma. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pág. 90.
139
o retrato de D. Manuel no topo de uma página da obra, temos inclusive o mesmo
desenho de círculo encontrado na obra de Holanda. Não apenas isso, mas o
posicionamento de seu corpo é semelhante ao do Papa Paulo III, além da
inserção de uma sombra à sua direita, como no retrato de Pietro Lando. A mão de
D. Manuel, que segura uma espada que em sua ponta tem uma esfera armilar, é
tão flutuante e pouco verossímil quanto as mãos de Michelangelo que surgem da
veste preta iluminada por Francisco de Holanda.
Antônio de Holanda –“Genealogia de Manuel Pereira” (detalhe) – 1534 – Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa.
Antônio de Holanda e Simon Bening –“Genealogia do Infante D. Fernando” – 1530-34 – British Museum, Londres.
140
A “Genealogia do Infante D. Fernando” (1530-34, British Museum, Londres),
possuidora de um projeto genealógico que se inicia com o Tronco de Magog,
perpassa os Troncos de Leão, Castela e Hungria, até chegar aos Troncos da
família real portuguesa, também foi realizada por Antônio de Holanda e em
parceria com Simon Bening.267 Neste exemplo acima, o quinto fólio, relativo aos
reis de Aragão, além dos retratos aparecerem circunscritos em uma espécie de
janela, outros podem ser os pontos de contato com a produção de Francisco de
Holanda. Encontramos as mesmas cores utilizadas na paleta de seu caderno de
desenhos. Além disso, se ali as identidades dos retratos apareciam em círculo e
se na “Anunciação” elas eram dadas através do dourado, aqui elas são inscritas
dentro dos limites de seus enquadraentos, acima dos retratados. Aqui
enquadrados em meio corpo, os modos como estas figuras são pintadas irão
relembrar a forma como a família de D. João III é representada também na
“Anunciação” de Francisco de Holanda. Se sobrepuséssemos alguns destes
retratos teríamos mesmo uma espécie de inventário de poses que pode ser
pensado como um ponto de partida para o retrato feito pelo filho de Antônio de
Holanda.
Simon Bening inclusive é listado por Holanda entre os grandes iluminadores
europeus: “Mestre Simão entre os flamengos foi o mais gracioso coloridor e que
melhor lavrou as árvores e os longes”.268 Antônio de Holanda foi o responsável
pelo projeto em desenho da “Genealogia do Infante D. Fernando” e Bening o
colorista. Os pólos “desenho e cor” surgem nas entrelinhas desta frase de
Francisco de Holanda. Associar um “flamengo” com a cor é, mais uma vez,
colocar em detrimento a produção artística do “Norte da Europa”, visando celebrar
o bom “desenho” realizado por seu próprio pai, um português.
O historiador da arte Rafael Moreira chama a atenção para os dois últimos
capítulos de “Da pintura antiga”, intitulados “De todos os gêneros e modos do
pintar”.269 Nestes textos Holanda irá fazer uma espécie de resumo em torno dos
267
AGUIAR, Antônio de. A genealogia iluminada do infante Dom Fernando por Antônio de Holanda e Simão Bening. Lisboa, 1962. 268
HOLANDA, Francisco de. Diálogos em Roma. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pág. 90. 269
Idem.
141
tipos de pintura existentes, ou seja, das técnicas de pintura que ele conhece e
admira. Em primeiro lugar ele comenta a importância do desenho: “O esquisso
produz o desenho que é a proporção e ordem da pintura, e a invenção e decoro
dela”.270 Na sequência ele inicia seus comentários sobre os “modos de pintar”
justamente com a iluminação:
... aqui ponho eu a iluminação em que me eu criei, pela obra que com pincel se faz mais delicadamente e mais suave e divina; e que é grande parte e mui necessária o começar por ela, para a perfeição e paciência e para as misclas de todas as cores da pintura. (...) A iluminação de branco e preto sobre pergaminho virgem e toques de ouro moído: esta é minha própria arte, e esta é a própria celestial maneira de pintura em este mundo. E meu pai foi o primeiro que a fez em Portugal em perfeição e fora da rusticidade, e com muita suavidade...
271
Só depois de comentar as técnicas e grandes iluminadores que Francisco
de Holanda irá voltar suas reflexões para a pintura a óleo, a pintura em afresco, a
têmpera, a grotesca, o estuque, os mosaicos e vitrais, exatamente nesta ordem.
Rafael Moreira chama a atenção, portanto, para o lugar privilegiado da iluminura
dentro de um estatuto dos “modos de pintar” na teoria holandiana.
O carácter perfeitamente subjectivo e original desta hierarquia das artes ressalta quando a confrontamos com a introdução às famosas Vidas dos Pintores de Jorge Vasari, de 1550. Vasari confere posição cimeira ao fresco, à têmpera e ao óleo (por esta ordem), e trata em seguida de uma dezena de outras técnicas menores, do esgrafito ao vitral e ao mosaico – porém sem dedicar uma linha sequer à iluminura!
272
O próprio artista explicita sua filiação com a iluminura devido à sua
educação artística dentro desta técnica e, como possível causa disto, à
experiência de seu pai. Não apenas o texto “Da pintura antiga” aponta para esta
sua relação com a pequena escala, mas quando o autor se coloca em diálogo
junto a Brás Pereira em “Do tirar pelo natural”, esse tópico novamente vem à tona.
Sabendo que este seu amigo nascido no Porto também era artista e conhecido
precisamente por seu talento junto à iluminura, novamente a formação de
270
HOLANDA, Francisco de. Da pintura antigua. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, págs. 87-92. 271
HOLANDA, Francisco de. Da pintura antigua. Lisboa: Livros Horizonte, 1984, págs. 88. 272
MOREIRA, Rafael. “Novos dados sobre Francisco de Holanda” in Sintria, vol. I-II, 1982-1983, pág. 649.
142
Francisco de Holanda pode ser rememorada. Mais do que isso, segundo John
Bury, a portada de um “Livro de armas” seu, datado de 1575, seria justamente um
auto-retrato do artista dentro de seu gabinete.273 A iluminura aqui seria tanto a
técnica de realização desta imagem, quanto o tema da mesma, vide a
representação do artista dentro de seu ambiente de trabalho.
Segundo Sylvie Deswarte-Rosa274 e Francisco de Macedo275, a iluminura
durante o século XVI possuía um estatuto diferenciado em comparação com o
restante da Europa. Em outros ambientes artísticos a invenção da imprensa e a
gravura substituem a iluminura. As galerias de retratos na Itália, tal qual a que
Giorgio Vasari acaba por criar em suas “Vidas” através de gravuras, ou que Paolo
Giovio cria em Como, a fim de organizar efígies de homens célebres, em Portugal
eram representadas através de iluminuras e de árvores genealógicas.
A produção de imagens iluminadas em Portugal, especialmente durante e
após o reinado de D. Manuel, apaixonado pelos livros iluminados, é muito
valorizada. Isso justifica-se, segundo Deswarte-Rosa e Macedo, devido às trocas
comerciais e artísticas entre Portugal, Flandres e França, territórios onde a
produção de iluminuras ainda era eminente.276 Estes livros estariam entre “o
tesouro e o monumento”, sendo um dos mais famosos a série de sessenta livros
intitulada “Leitura Nova”. Esta, inclusive, conta também com a autoria de Antônio
de Holanda.
Se por um lado algumas frases de Francisco de Holanda fazem coro ao
nosso esforço por interpretar seus retratos junto à produção de iluminuras e
273
HOLANDA, Francisco de. Del sacar por el natural – según la traducción de Manuel Denis (1563). Edição de John Bury. Madri: Ediciones Akal, 2008, pág. 20. 274
DESWARTE, Sylvie. Les enluminures de la Leitura Nova (1504-1552): étude sur la culture artistique au Portugal au temps de l‟Humanisme. Paris: Fundação Calouste Gulbenkian; Centro Cultura Português, 1977. 275
MACEDO, Francisco de. “Breves considerações sobre a iluminura no período dos Descobrimentos” in A iluminura nos Descobrimentos. Lisboa: Editora Figueirinhas, 1990. 276
“Entrado o século XVI, a Europa começou a preferir livros impressos e ilustrados com gravuras; inversamente em Portugal continuou a preferência pelos manuscritos decorados, considerados mais consentâneos com a grandeza de um império. Deste modo, enquanto a iluminura ia agonizando nos centros tradicionalmente produtores, floresceu entre nós de modo pujante e com a grande novidade de se ter alargado aos livros áulicos e laicos. Estes, ao rivalizarem e competirem em esplendor com os livros religiosos, seguem, num primeiro momento, o figurino daqueles. É a extensão da iluminura à cultura laica que constitui um dos vetores fundamentais do seu florescimento no reinado de D. Manuel” in MACEDO, Francisco de. Ibidem, págs. 16-17.
143
miniaturas em Portugal, outras delas parecem advir de uma apreciação direta da
pintura de retratos italiana. Ao analisar a sua própria produção de retratos, muito
do que é afirmado enquanto preceito em “Do tirar pelo natural” não condiz com o
que foi produzido por suas mãos.
No retrato de Michelangelo Buonarroti em seu “Álbum de desenhos das
antigualhas” já temos como principal dissonância a opção pelo retrato em perfil.
Segundo Holanda, a melhor forma de se retratar um indivíduo é de modo
“treçado”, ou seja, com o rosto em três quartos.277 Ao optar por outra solução
formal, o tão necessário “realço nos olhos”278 que Holanda defenderá ao final de
sua escrita não é perceptível. Nem o traje colocado em Michelangelo tem a
fidedignidade que ele prega no capítulo “Do vestido”: “... que sempre prometa
estar debaixo dele a pessoa escondida e coberta fielmente...”279. No retrato de
Pietro Lando encontramos os mesmos problemas de defasagem entre imagem e
texto presentes no “Retrato de Michelangelo”.
O único destes seus retratos que faz correspondência com seus
pressupostos escritos é o do Papa Paulo III. Além de estar composto sobre a
forma “treçada”, possui uma certa movimentação de linhas, dadas por seu traje
detalhado. Uma maior gama de cores é utilizada e, como Holanda constrói no
decorrer de seu texto, a veste representada parece com seu portador; detendo-
nos apenas sobre suas vestimentas conseguimos perceber que se trata de uma
figura de alto escalão na hierarquia religiosa. Logo, Holanda consegue algo
essencial para sua teoria: dar a posição social do retratado no primeiro olhar,
deixando sua verossimilhança facial em segunda. Mesmo assim, o rosto treçado
da figura não se encontra inclinado a seu lado direito, mesmo que sua mão direita
encontre-se erguida.
277
“Fernando - Qual destes TRÊS modos vos disse ser o melhor? E qual deles elegereis por melhor escolhido e mais perfeito, o FRONTEIRO, ou o MEIO, ou o TREÇADO? Bras Pereira - Sabido está que o treçado, por ser o que mais dos extremos foge, e o tem onde se há de ter.” Citação extraída da edição da presente dissertação de mestrado. 278
“Digo que o último primor que se pode encerrar nesta doutrina, e a última e final mão ou lição, com que dareis perfeição a toda obra, é o REALÇO e a clareza ou Resplendor primeiro, que dá a luz no Rosto sobre o mais alto dele, o qual acaba a OBRA e este LIVRO”. Citação extraída da edição da presente dissertação de mestrado. 279
Citação extraída da edição da presente dissertação de mestrado.
144
Quanto aos retratos inseridos em sua “Anunciação”, duas figuras saltam
aos olhos: a de D. Catarina de Áustria e a de uma criança, D. Antônio, filho do
infante D. Luís, que se encontra ao lado de D. Maria de Portugal. Seus rostos
estão virados para o lado direito, fazendo jus às palavras de Holanda e se
destacando facilmente da composição, como se fizessem parte de uma outra
ordem compositiva, ausentes da tentativa de agrupamento de pessoas em louvor
a Virgem Maria. Deste agrupamento de retratos em miniatura, aquele que
corresponde quase objetivamente com o texto holandiano, além de ser
semelhante à forma de retratar presente nas miniaturas de Parma, é o de D.
Catarina.
É nesta série de retratos que as palavras de Holanda ecoam visualmente
de modo mais preciso. Todas as figuras estão retratadas voltadas à sua direita.
Por serem retratos em pequena escala, o tão importante destaque e cuidado com
a representação do rosto, elemento primordial da composição que Holanda prega
em “Do tirar pelo natural”, se faz presente. Mais do que isso, à imponência de
suas expressões faciais vem somar os seus vestuários que denotam nobreza. A
sobriedade de seus trajes contribui com o destaque de suas faces, frisando algo
dito por Holanda acerca da importância da pintura dos olhos, pois “... deles tem
começo toda a luz, e eles são as janelas e portas por onde tudo tem a entrada”.280
O que não pode ser esquecido é que algumas dessas imagens são
efetivamente cópias de obras de Anthonis Mor. Por consequência, estas últimas
são imagens que também se encontram baseadas enquanto modelo das pinturas
realizados por Tiziano Vecellio, assumido paradigma do retrato para Francisco de
Holanda dentro de seu “Do tirar pelo natural”. A proximidade com a teoria
holandiana aqui é compreensível e justificável.
280
Citação extraída da edição da presente dissertação de mestrado.
145
Francisco de Holanda – Retratos do príncipe D. João de Portugal, imperatriz D. Isabel de Portugal e infante D. Duarte de Portugal – 1550-1570 – Galleria Nazionale di Parma.
Uma interpretação para esta discrepância entre imagem e texto no que toca
aos retratos em Francisco de Holanda seria a posição social do pintor em Portugal
146
em meados do século XVI. Como afirma Vitor Serrão, o pintor a óleo se
encontrava no alto de uma hierarquia das técnicas de pintura, porém sem ter o
mesmo prestígio, respeito e visibilidade de um mesmo pintor a óleo ativo na Itália,
por exemplo.281 Devido a isso, podemos concluir que além de ser uma possível
preferência artística de Francisco de Holanda, frisar sempre que necessário o
nome de um artista tão famoso como Tiziano Vecellio pode ser interpretado como
um modo de incentivar uma maior valorização da arte em Portugal.
Francisco de Holanda elogia a retratística seja a partir da apreciação dos
“retratos de Estado” na obra de Tiziano (como apontado no capítulo 3), seja junto
à apreciação da pintura em Portugal representada por Nuno Gonçalves (em “Da
pintura antiga”). Enquanto retratista, porém, não é dentro destas tradições que
realiza suas obras.
Mesmo bebendo de fontes imagéticas da tradição da pintura a óleo em
grandes proporções propagada em Portugal após a estadia de Anthonis Mor,
Francisco de Holanda produz retratos que ao mesmo tempo em que dialogam
formalmente com as obras de Tiziano, se distanciam destas tanto pela escala,
quanto pelos suportes escolhidos, quanto mesmo pelas intenções artísticas. A
memória propagada por estes retratos de Holanda é a da pequena efígie, da
delicadeza e talvez dialogue mais com uma figura como Nicholas Hilliard,
miniaturista de Elizabeth I da Inglaterra, do que com os retratos de Estado de
Carlos V. Após estas aproximações entre imagens, parece claro o peso que a
técnica da iluminura tem sobre a sua produção visual. Holanda parece se
encontrar em uma espécie de impasse entre a admiração de modelos italianos e o
respeito pela tradição dos pequenos retratos em Portugal.
Enquanto em alguns exemplos existe um claro esforço em emular grandes
retratistas contemporâneos a ele, em outros momentos há uma proximidade maior
com os retratos produzidos por Antônio de Holanda. Francisco de Holanda parece
em uma espécie de movimento pendular entre a reflexão, a produção e o
reconhecimento, nos legando uma tratadística e corpus artístico que nos impede
281
SERRÃO, Vitor. O maneirismo e o estatuto social dos pintores portugueses. Lisboa, 1983.
147
de meramente rotulá-lo e ao mesmo tempo incita no historiador da arte o esforço
por conjugar imagens e textos lado a lado.
149
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Francisco de Holanda – “Francisco de Holanda dando De Aetatibus Mundi Imagines à malícia do tempo, sob a
presidência das três virtudes teologais” – 1545-1573 – “De Aetatibus Mundi Imagines”, Biblioteca Nacional, Madri.
No último desenho realizado por Francisco de Holanda para o seu “De
aetatibus mundi imagines” (“Imagens das idades do mundo”, 1545-1573,
Biblioteca Nacional, Madri) temos uma representação do próprio autor que,
segundo Sylvie Deswarte-Rosa, oferece seu livro às três virtudes teologais (fé,
esperança e caridade), numa tentativa de evitar que o mesmo seja consumido
150
pelo tempo (representado por um cão).282 Esta espécie de auto-retrato
melancólico endossa o esforço da presente dissertação de mestrado; sem o
discurso religioso por trás da imagem holandiana, tentei aqui “monumentalizar”
(“fazer lembrar”) a produção escrita e imagética acerca da retratística feita por
Francisco de Holanda.
Se é sabido que o português nunca conseguiu publicar em vida alguma de
suas obras escritas, por outro lado também é reconhecível o fato de que a
historiografia da arte atualmente atribui mais valor ao seu texto de 1548, “Da
pintura antiga”, em detrimento de sua teoria do retrato de 1549, “Do tirar pelo
natural”. Além disso, poucas são as publicações sobre o retrato em Portugal
durante o século XVI. Estas, por sua vez, tendem a separar seu texto sobre
retratos de sua produção plástica e da produção de retratos de outros artistas em
Portugal. Nas poucas vezes em que se tentou organizar e compreender o
fenômeno do retrato em Portugal durante o século XVI, as vias de acesso foram
Anthonis Mor e Tiziano Vecellio, paradigmáticos dentro deste recorte histórico,
porém articulados de modo unilateral, como se a arte realizada por artistas
portugueses meramente copiasse suas imagens. A via de mão dupla
pouquíssimas vezes foi estabelecida e os conceitos de “transferência” ou
“recepção artística” foram diversas vezes substituídos por termos como
“influência” ou “legado”, em que uma relação mais causal parece ocupar o lugar
de uma interpretação mais fenomenológica das manifestações artísticas.
Visando contribuir de outro modo para a compreensão do lugar do retrato
dentro das produções de Francisco de Holanda, optou-se nos ensaios da presente
dissertação por articular o maior número possível de imagens e recortes
geográficos. Se no capítulo 3 refletiu-se sobre o modo como a arte em Portugal
recodificou e reintrepretou os retratos feitos por Tiziano e Mor, no capítulo
seguinte, a partir da tratadística holandiana, foram estabelecidos vínculos para
além do ambiente italiano, inserindo tradições imagéticas mais próximas do
humanista, como a pintura portuguesa do século XV e a iluminura durante o
282
DESWARTE, Sylvie. As imagens das idades do mundo de Francisco de Holanda. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987.
151
século XVI. “Do tirar pelo natural” e Francisco de Holanda são, portanto,
elementos de capital importância tanto para uma compreensão do lugar
privilegiado do retrato dentro da produção de arte durante o século XVI, como
também uma forma de estudar aspectos da criação de imagens em Portugal e na
Europa.
Houve aqui um esforço por não polarizar a arte na Itália e em Portugal
durante o dito Renascimento através de uma relação dada meramente pelos
conceitos de “centro e periferia”. Além do mais, é possível afirmar que os retratos
em Portugal no século XVI também podem contribuir com a reflexão em torno de
outros conceitos igualmente complexos e em voga na história da arte
contemporaneamente. Refiro-me aqui, por exemplo, sobre as discussões acerca
da possibilidade de afirmarmos que a história da arte pode ser “global”283; de que
modos poderíamos inserir objetos artísticos de culturas “não ocidentais” dentro de
uma disciplina que foi construída a partir do embate com a “arte ocidental”?
D. João de Castro, governador da Índia portuguesa entre 1545 e 1548,
encomendou em 1547 doze retratos dos anteriores representantes do império
português em terras indianas. Esta encomenda foi feita a Gaspar Correia,
humanista e autor de “Lendas da Índia”, texto épico em que narra a dominação
cristã portuguesa sobre o exótico ambiente cultural indiano. O conceito por trás
dessa encomenda era de criar uma galeria de retratos portugueses em ambiente
outro a fim de reafirmar o domínio “ocidental” sobre o “Oriente” através de retratos
de Estado. Como Correia escreveu, D. João de Castro “... me encomendou que
trabalhasse por lhe debuxar per natural todos os Governadores per natural”.284
Como o autor havia efetivamente conhecido todos os governadores portugueses,
tal missão seria mais do que justa a ele, visto suas memórias das efígies de todos.
283
“... at a time in which the concept of „globalization‟ is much debated, the dimension of space also demands attention. It is discussed in many disciplines, although the practice of thinking in terms of space is especially important in the social sciences and humanities. Space may be conceived as something closed, structured, and bounded, and in this way it pertains most obviously to geography” in KAUFMANN, Thomas DaCosta. Toward a geography of art. Chicago: University of Chicago Press, 2004, pág. 1. 284
JORDAN-GSCHWEND, Annemarie. “Uomini ilustri. A série de retratos dos vice-reis portugueses em Goa” in Tapeçarias de D. João de Castro (catálogo). Lisboa: IPM, pág. 74.
152
Gaspar Correia e outros – Retratos de Afonso de Albuquerque e D. Francisco de Almeida –1547-1560 – Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
Segundo Annemarie Jordan-Gschwend, durante os séculos posteriores esta
galeria de retratos foi ampliada e hoje existem mais de duzentos retratos destes
representantes portugueses, estando quase todos no Museu Arqueológico de
Goa, na Índia. Os exemplos que estão guardados no Museu Nacional de Arte
Antiga, em Lisboa, formalmente apontam para o mesmo modelo de retrato
elogiado por Francisco de Holanda em seu texto. Figuras de corpo inteiro e eretas,
portadoras de objetos que lhes atribuem poder e que imprimem imediatamente no
espectador respeito ao fato de serem governantes. Somando a isto, pelo viés da
escrita, em todos os retratos existe um texto que identifica as identidades dessas
figuras, sem nos esquecermos do brasão das famílias logo ao lado de seus rostos.
Quem são os autores destas imagens? Trata-se de um somatório das mãos
de D. Gaspar Correia e de “artistas indo-portugueses”. Em obras como estas e
mesmo nas palavras do humanista, ao frisar o termo “per natural” duas vezes em
suas “Lendas da Índia”, faz-se possível expandir os recortes geográficos
153
propostos nos ensaios desta dissertação e pensarmos o fluxo artístico entre
Portugal e Índia, ou seja, entre “Ocidente” e “Oriente”. É inegável ao olharmos
estes dois retratos “indo-portugueses” (ou “luso-indianos”) que as imagens de
Tiziano Vecellio, Anthonis Mor, Cristóvão de Morais e mesmo de Francisco e
Antônio de Holanda nos venham à mente. Trata-se, novamente, de uma
imbricação geográfica que contribui com as reflexões em torno de uma “história da
arte global”.
Para além das fronteiras geográficas, “Do tirar pelo natural” também pode
vir a contribuir com uma história da arte que se baseia em problemas
conceituais/temáticos e articula diferentes recortes temporais. Um estudo
comparativo, por exemplo, desta primeira teoria do retrato com outras, tanto
contemporâneas, quanto posteriores, seria deveras rico. Refiro-me, por exemplo,
a um texto relativamente próximo ao seu, como “The art of limning” (c. 1598-99),
escrito pelo inglês Nicholas Hilliard.285 Versando também sobre a retratística, mas
explicitamente sobre a miniatura, não são poucas as associações críveis que
podem ser feitas ao confrontá-los. Ao contrário de Holanda, em que parece haver
um certo hiato entre sua produção plástica e reflexão escrita, quando lemos o
texto de Hilliard a correspondência entre suas linhas e suas miniaturas é
surpreendente.
Quando colocamos lado a lado o texto de Francisco de Holanda e o de
André Disdéri, a primeira teoria do retrato fotográfico publicada, chamada “L‟art de
la photographie”, de 1862, ainda são encontrados pontos de contato. Mesmo com
todas as diferenças midiáticas, culturais e históricas em mente, os tópicos
partilhados dizem respeito, especialmente, aos conselhos que ambos dão àquele
que estará a pintar/fotografar e às formas possíveis de engrandecer o
pintado/fotografado.286 Não só com a fotografia, mas ao confrontar também o texto
de Holanda com uma das escritas que cunhou o termo “documentário” dentro da
gramática da imagem em movimento, em 1930, de John Grierson287,
285
HILLIARD, Nicholas. The art of limning: a more compendious discourse concercing the art of limning. Manchester: Carcanet Press, 1992 286
DISDÉRI, André. Essai sur l‟art de la photographie. Paris: Seguier, 2003. 287
GRIERSON, John. Grierson on the movies. Londres: Faber & Faber, 1981.
154
conseguiríamos retirar Francisco de Holanda de sua tradicional gaveta da “arte
portuguesa renascentista”, colocando-o frente a outras manifestações artísticas
cuja relação foge do campo do óbvio.
Terminada esta dissertação e fechadas (temporariamente) as trilhas por
aqui percorridas, muitas parecem ser as outras vias de acesso ao pensamento de
Francisco de Holanda, às linhas de “Do tirar pelo natural” e às imagens da
retratística. Espero que a realização da revisão historiográfica acerca do autor,
assim como a edição de seu texto, sejam úteis para futuras pesquisas e tentativas
de não permitir que a “malícia do tempo” corroa a sua obra e possibilite que
sigamos a compreender e ampliar as relações dadas na presente pesquisa.
155
ANEXO – VERSÃO DIGITALIZADA DE “DO TIRAR PELO NATURAL”, TRANSCRITO POR MONSENHOR GORDO EM 1790 (ACADEMIA DE CIÊNCIA DE
LISBOA, MS. AZUL 650)
[fol. 184]
185
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