devaneios do senhor bentley

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DEVANEIOS DO SENHOR BENTLEY (contos) Published by Ágata Ramos Simões at Smashwords Copyright 2013 Ágata Ramos Simões Blog Página do Smashwords Part e censurada do Sr. Bent ley I Smashwords Edition, License Notes Thank you for downloading this free ebook. You are welcome to share it with your friends. This book may be reproduced, copied a nd distributed for non-commercial purposes,  provided the book rem ains in its complete original form. If y ou enjoyed this book, please return to Smashwords.com to discover other works by this author. Thank you for your support. INDEX 1.DUPLO ESPAÇO 2.O SENHOR BENTLEY CANDIDA TA-SE 3.O FUNERAL 4.CAMPANHA DE VERÃO/PRIMAVERA/OUTONO/INVERNO 5.DEVANEIOS BENTLIANOS 6.BENTLEY, O PILINHA-ESG UIA 7.O SENHOR BENTLEY DAS BANDEIROLAS 8.BENTLEY BALNEAR  9.AVENTURA S DO BENTLEY 10.O CANDELABRO 11.O SR. BENTLEY EMPREGA-SE 12.BENTLEY REVISITED 13.PULGA 14.A MANDALA 15.HERÓIS 16.SENHOR BENTLEY NO MARQUÊS DE POMBAL 17.SR. BENTLEY, O ARREBITA-A-NA BIÇA (Cap. 1) 18.SR. BENTLEY E OS PASSARÕES (Cap. 1) 19.SOBRE A AUTORA 1.DUPLO ESPAÇO O Sr. Bentley acredita que cada espaço contém em si outro espaço no qual o seu duplo habita, actua. Crê que os dois espaços se interceptam e contaminam. O Sr. Bentley tem um gato,  porém cuida ser possível o dup lo ter um cão – com idêntico nome. Se o S r. Bentley urrasse: “Sam? Sam! Sacana, onde te meteste?!” e lhe aparecesse, cabisbaixo, de rabo entre pernas (jamais o orgulhoso felino se c omportaria tão miseravelmente), o cão reconhecendo-o como dono, ele julgaria normal, comum. Estranharia, quiçá, que a tal realidade invisível (alternativa...) não tivesse tocado a sua antes. Para ele a troca é (seria) prova incontestável da ordem do Universo. Só um Universo trocado estaria composto. O Sr. Bentley põe o totoloto todas as semanas. Tem uma chave que nunca modifica. Ele acredita na natureza sagrada dos números porque, de acordo com o colega de trabalho, há muito deixou de ter fé na natureza sagrada dos homens. Quando matou a mulher por ela se ter

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  • DEVANEIOS DO SENHOR BENTLEY(contos)

    Published by gata Ramos Simes at SmashwordsCopyright 2013 gata Ramos Simes

    BlogPgina do Smashwords

    Parte censurada do Sr. Bentley I

    Smashwords Edition, License NotesThank you for downloading this free ebook. You are welcome to share it with your

    friends. This book may be reproduced, copied and distributed for non-commercial purposes, provided the book remains in its complete original form. If you enjoyed this book, please return

    to Smashwords.com to discover other works by this author. Thank you for your support.

    INDEX

    1.DUPLO ESPAO2.O SENHOR BENTLEY CANDIDATA-SE3.O FUNERAL 4.CAMPANHA DE VERO/PRIMAVERA/OUTONO/INVERNO5.DEVANEIOS BENTLIANOS6.BENTLEY, O PILINHA-ESGUIA7.O SENHOR BENTLEY DAS BANDEIROLAS8.BENTLEY BALNEAR 9.AVENTURAS DO BENTLEY 10.O CANDELABRO 11.O SR. BENTLEY EMPREGA-SE12.BENTLEY REVISITED13.PULGA14.A MANDALA15.HERIS16.SENHOR BENTLEY NO MARQUS DE POMBAL17.SR. BENTLEY, O ARREBITA-A-NABIA (Cap. 1)18.SR. BENTLEY E OS PASSARES (Cap. 1)19.SOBRE A AUTORA

    1.DUPLO ESPAO

    O Sr. Bentley acredita que cada espao contm em si outro espao no qual o seu duplo habita, actua. Cr que os dois espaos se interceptam e contaminam. O Sr. Bentley tem um gato, porm cuida ser possvel o duplo ter um co com idntico nome. Se o Sr. Bentley urrasse: Sam? Sam! Sacana, onde te meteste?! e lhe aparecesse, cabisbaixo, de rabo entre pernas (jamais o orgulhoso felino se comportaria to miseravelmente), o co reconhecendo-o como dono, ele julgaria normal, comum. Estranharia, qui, que a tal realidade invisvel (alternativa...) no tivesse tocado a sua antes. Para ele a troca (seria) prova incontestvel da ordem do Universo. S um Universo trocado estaria composto.

    O Sr. Bentley pe o totoloto todas as semanas. Tem uma chave que nunca modifica. Ele acredita na natureza sagrada dos nmeros porque, de acordo com o colega de trabalho, h muito deixou de ter f na natureza sagrada dos homens. Quando matou a mulher por ela se ter

  • esquecido de pr o totoloto na semana em que o primeiro prmio saiu chave do Sr. Bentley, a descrena nos homens que o colega adivinhara apenas se confirmou. Melhor: materializou.

    E contudo o Sr. Bentley supunha ser o duplo o verdadeiro assassino (no obstante a cristalizada lembrana das suas mos fixas no pescoo da esposa). Devido esdrxula teoria de espaos no interior de espaos, no se surpreende ao ser preso e acusado do crime que, para si, foi de facto cometido pelo duplo invisvel.

    S o colega fez a acertada ilao: a Sra. Bentley tinha posto o totoloto atempadamente. E guardara o recibo. A Sra. Bentley planeava safar-se com o dinheiro e o amante.

    - E a massa...? - Algum levantou o cheque. - Mas quem? O colega ergueu os ombros e fez uma festa a Sam.

    2.O SENHOR BENTLEY CANDIDATA-SE

    Carssimos Gajos dos Recursos Humanos da Pizza Juno;

    To bons, pazinhos? Ento esses ossos, essa espinha! Vejam l a escoliose, com a sade no se brinca, v para fora c dentro, comigo o puto vai atrs, o algodo no engana, aqui movimento das foras armadas, fia-te na virgem e no corras.

    Serve a presente a inteno de me candidatar no vosso execrvel estabelecimento ao execrvel cargo de Entregador de Pizzas. Antes de sacar das pinas e cuidadosamente lanar fogo carta, caro seleccionador, deixe-me dizer-lhe que empregar-me tem as suas vantagens. Eu no preciso de mota, nem de um par de patins (apesar do que minha devota manicura Vanusa mulata dos verdes olhos - possa dizer). Sou o feliz proprietrio de um guarda-chuva voador. Correcto: um guarda-chuva volante. Com ele fao as minhas deslocaes e at poupo na senha do passe. Na mo livre empilho as pizzas e, se se der o caso de alguma cair possibilidade a no excluir pois sou um cavalheiro idoso e por vezes acometido de tremores decerto no cairo todas. Duas ou trs pizzas perdidas ficaro certamente mais em conta que um depsito cheio de gasolina, sobretudo nestes conturbados tempos.

    A seguir enumero os pontos altos do meu vasto currculo. - Trabalhei trs dias no Mcdonalds da Moita onde fui o feliz responsvel pelo foco da

    epidemia bola que se espalhou misericordiosamente num raio de dez quilmetros. A notcia foi abafada pelo Ministrio do Turismo.

    - Introduzi com sucesso duas catstrofes simultneas no Banco de Portugal onde estive a servio por dois dias como empregado de limpeza: fogo e inundao. E apenas devido inundao os explosivos no detonaram no interior do cofre.

    - Fui gerente de uma loja de chapus-de-chuva, mas malevolamente despediram-me por os ter liberto. Os chapus-de-chuva querem-se livres como os passarinhos. Piu-piu.

    - Ensinei matemtica num orfanato estatal durante uma semana. Os cabres demitiram-me por, nas aulas, ensinar os putos a fazer bolinhas de sabo e a injuriar, tal qual camionistas, os profissionais da poltica.

    - Fui empregado de balco o tempo estimado de duas horas. No caf colocava, como cheirinho, pitadas de expectorao verde e espessa, que boiava superfcie, linda, como a nata.

    - Tive ainda tempo para ser funcionrio pblico durante setenta e dois anos, desde a tenra e inocente idade dos oito anos. Nunca tive problemas. Nunca l pus os ps. Recebo a reforma por inteiro e tive bonificaes por acrscimo do tempo cumprido.

    Sei que reno as condies para ser um trabalhador exemplar na Pizza Juno. As referncias dos meus antigos empregadores seguem em anexo.

    Os melhores cumprimentos do vosso criado, etc., etc.

  • Ass.: V. Bentley

    3.O FUNERAL

    Convidaram o senhor Bentley para o funeral do vizinho Roberto, velho como as traas (sem desprestgio para as traas), que tencionavam realizar ali para os lados do Lumiar, perto do antigo palacete dos Holstein.

    A inteno dos anfitries (porque funeral sem anfitrio como um jardim sem rosas. Ou gladolos) era a de passar a mensagem subtil que, efectivamente, o seu tempo na terra esgotara-se h muito e essa teimosa insistncia em conservar-se vivo comeava a ser maadora.

    No funeral (no se apresentou ao velrio. Deplora-os) o senhor Bentley comportou-se impecavelmente. O motivo era simples: tinha sido drogado pelo empregado do caf, o Teixeira, que de modo sub-reptcio despejara no chazinho de limo o vicodin previamente esmagado em finssimo p.

    O senhor Bentley navegava por entre as pessoas como se navegasse num mar de algas que lhe embaraavam os membros e a voz. Mas conseguiu manter os olhos abertos.

    Viu Carlos Silva, sargento reformado da GNR, gajo dos seus noventa anitos, com a pele da cara escura plantada de rugas, e uns arremessos de plo no topo do crnio, a estender os braos para os lados e a gabar a vida honrada e de amplas virtudes que Roberto levara. Quem o ouvisse julgaria que, de to puro, o defunto no tinha nunca partido uma unha.

    A bajulao ao morto seguiu os trmites do costume, mas sem choradeiras. O senhor Bentley teve a peculiar intuio que ali todos aqueles aviltantes velhinhos e velhinhas se tinham reconciliado pacificamente com o horizonte da morte e andavam h muito a preparar-se para ela, sendo a comparncia no funeral apenas outro ensaio. Ou preldio. Porque, a no ser por isso, no se justificaria que sassem de casa, tendo em conta a sua encolhida sade. Mas vieram. De andarilho, bengala, muletas, cadeira de rodas, ou apoiados em familiares mais jovens que os amparavam de cada lado, arrastando-se o melhor que podiam para a campa, baixando-se aos tremeliques para pegar num pedao pequenssimo de terra e lanarem-no desajeitada mas decididamente tampa do caixo, j a emprenhar a cova.

    O senhor Bentley pensou que se calhar eles estavam mais perto de Deus do que ele e pela primeira vez duvidou da sua Iluminao.

    Mas teve pena de no ter conseguido dizer mal da esposa do finado, a Emlia, pois certamente seriam palavras memorveis.

    4.CAMPANHA DE VERO/PRIMAVERA/OUTONO/INVERNO

    A prova cabal de que o Sr. Bentley um livro de Gajos: a capa COR-DE-ROSA (bom, a do livro fsico). S Gajos mesmo Gajos podem usar cor-de-rosa.

    - Repara naquele parvo na outra linha com um livro cor-de-rosa!- p, no te metas com ele, que um Gajo.- Um Gajo?- Parte-te os dentinhos todos. V? Impe Respeitinho. Gajo que Gajo s compra Livros com capa Cor-De-Rosa. - E sapatinhos de salto alto diz o senhor Bentley. (Bom, err, pessoalmente nunca vi um Gajo com um livro cor-de-rosa a calar sapatos de

    salto alto da mesma cor.)- Eu j! Na linha amarela! diz o sacana do senhor Bentley. (A autora fica assim um bocado parva, sem saber que responder. Este gajo t-me a lixar

    a publicidade.)

  • Continue a participar na Campanha de Vero (Primavera, Outono e Inverno!): Oferea Um Livro a Um Gajo!

    Oferea o Sr. Bentley, o Enraba-Passarinhos! Oferea o livro electrnico Sr. Bentley, o Arrebita-a-Nabia! Campanha humanitria escala mundial.

    Gajo? Conhece um Gajo? Ento participe na Campanha de Vero (PrimaveraOutonoInverno): Faa Feliz um Gajo da sua Vida! Oferea-lhe o Sr. Bentley.

    amigo de um Gajo a quem a legtima lhe ps os cornos? O deixou? O ps a fazer as tarefas domsticas durante um ms por ter chegado bbado a casa depois de uma festa com amigos?

    Oferea-lhe o Sr. Bentley!Com certeza far o Gajo feliz!O Sr. Bentley como o algodo: no engana.J comprou o livro para si?Ento saia (ou fique!) e compre outro exemplar para oferecer! Guarde o seu, o seu

    sacrossanto, voc Gajo, tambm merece ser Feliz!Tem dois amigos carrancudos? Sem namorada? Ou com namoradas a mais que no lhes

    largam as canelas com a treta do compromisso mais srio? Gajos com sogras do demnio? Gajos com tios, primos, sobrinhos da legtima a viverem consigo no T1 da Reboleira?

    Oferea-lhe o Sr. Bentley!Desgraado, nem que more sozinho, quem mora na Reboleira Precisa de humor na vida!Participe na campanha humanitria escala mundial: salve um Gajo da sua Vida!

    Oferea-lhe o Sr. Bentley.Pode estar a salvar vidas. Vida de Gajo difcil. Lembra-se da sua Antes de ler o Sr.

    Bentley, o Enraba-Passarinhos? Era triste, lgubre, vazia. E agora?Agora est alegre! At parece mais alto e musculado! Perdeu peso! Recebeu a promoo

    no emprego e at mudou para um Topo de Gama! As midas no o largam!Participe na Campanha de Vero (Primavera e...): Faa um Gajo Feliz oferea-lhe o Sr.

    Bentley!- do caralho, p, um livro do caralho, p! L, p, l.- Livro extraordinrio. Poupa nos eufemismos. Depois de o ler estive a pontos de alcanar

    o Nirvana. - bacano, man. Ts a ver, man? Do baril. Altamente, a cena. Ler fixe!- No sabia se assistia Liga dos Campees se lia o Sr. Bentley. Li. O Sr. Bentley mudou

    a minha vida. A psorase desapareceu e j no sou um coninhas. Foi um milagre autntico. E j tinha ido a Ftima sem resolver o problema!

    - Fodido, man! Ep, fodido! Altamente! Altamente, man!Est a ver? Tanto Gajo No Pode Estar Enganado! Mude hoje a sua e a vida de um Gajo

    amigo: v livraria adquirir o Sr. Bentley!Participe na Campanha de Vero!

    5.DEVANEIOS BENTLIANOS

    Conhecemos um certo e determinado papa que em certas e determinadas situaes, nomeadamente quando no tem dinheiro para pagar guarda real sua, aqueles fatos de palhao vo por um balrdio, vende as ndegas a certas e determinadas personalidades polticas ali para os lados do Parque Eduardo Stimo, altas horas da noite, quando as corujas debicam os ratos caados, s volvos a passar, s volvos a passar.

    (Diz o senhor Bentley. Catarreia.) Conhecemos tambm essas certas e determinadas ndegas, branqussimas, cadas,

    teutnicas e papistas e achamos que o preo que o gajo pede, francamente, v roubar para o Metro, nunca mais me enganas.

  • E os sapatinhos, Jesus, cada taco, nem a Naomi Campbell ( que s to boa que s to bela) se aguenta neles. Mas este papa j anda na vida h mais anos que a bela, dulcssima Naomi pisa a passerelle. Tem clientela fixa, arrumada, trazem-lhe outros, ele polticos, ele juzes, ele diplomticos diplomatas diplomados, ele oficiais superiores da Marinha Mercante e de Guerra, ele chefes de clubes de futebol, s gente porreira. Freguesia da boa. No admira no haver crise no Lugar Santo. No conhece recesses vai para dcadas (bom local para investir, a propsito).

    (O senhor Bentley ala os olhos para o cu, cruza os braos atrs das costas e balana-se para trs e para diante com a vista firme nas nuvens negras e espessas como cobertores sujos.)

    Queramos apenas dizer (continua o senhor Bentley abrigando-se dentro da paragem do autocarro) que este certo e determinado indivduo careiro e que ficariam melhor servidos se fossem mais abaixo ter com os putos. Levam menos e so tenrinhos. Tenrinhos como pur de batata com molho. Slurp.

    (Teve pena de no ter telemvel. Podia avisar que ia jantar a casa. Eis que chega o autocarro.)

    6.BENTLEY, O PILINHA-ESGUIA

    O senhor Bentley, tambm conhecido por Pilinha-Esguia, costuma visitar lares com a seguinte desculpa:

    - Cof, cof, 'tou velhinho - longa pausa absorta no vazio. - Velhinho... a famlia, os filhos, disseram: escolha um lar.

    Mentiroso. Visita-os aos magotes, o canalha e, apanhando a ocasio, mal as enfermeiras e auxiliares

    de enfermagem e mdicos viram costas, aproveita a oportunidade para chagar os cornos a algum solitrio.

    - , a morte! - diz, endireitando-se e recuperando por milagre a voz normal e saudvel, tem menos vinte anos no lombo.

    - Os bichinhos a comerem, a comerem, morf-morf. Os bichos a mastigarem! - e ri, ri, os olhinhos relampejantes.

    A idosa escolhida por alvo, de cabelo ralo branco, arranjado de manh numa temporria permanente, encolhe-se dentro do roupo e das chinelas e tenta afastar-se no andarilho. O senhor Bentley volteja ao redor da pobre, como um orangotango.

    - --!Oh! Oh! Oh! Ah-ah-ah!Parece uma borboleta que sofreu pavorosas mutaes genticas, pelo modo como adeja

    os braos em movimentos ondulados, mas o dobrar de joelhos revela o macaquear smio.- Deixe-me...! - sussurra de olhos esgazeados, assustada, caminhando passito a passito. - Vo-te comer os olhitos, os vermes! Nham-nham! Os bichos! Os vermes! As pulgas!

    Para que insistes em viver se j podes estar morta?! No compreendo - ele, o Iluminado - o porqu da obstinao quando tens a MORTE TODA TUA FRENTE! Sim, pois no queres ser cadver?! Olha a velhaca... quer ficar para semente - sibila, baixinho, o asno - ... para semente, a velhaca... No Sabes O Que Perdes! Festarola da boa! e cicia maquiavlico As bactrias primeiro comem-te os intestinos, hi, hi, e os rgos internos. Comem-te toda por dentro! Ficas feita numa papa...! diz, esgazeado, com o queixo perto do nariz da velha As moscas, bzz-bzz, deixam os ovos na tua carne. Os vermes nascem e comeam a morfar, a morfar, a morfar. Crunch-crunch-crunch. Os escaravelhos juntam-se pardia... e as vespas! E as pulgas... hop, hop. Comem-te toda at ficares sequinha, s pele seca e osso! Festa rija, sim senhora, sim senhora...

    Vendo a enfermeira-chefe ao fundo do corredor, hop!, logo salta com o chapu-de-chuva para cima, cola-se ao tecto como uma salamandra nojenta e esponjosa.

    - Um... um homem mau... - debita, dbil, a velhota.- Sim, sim, v dar uma voltinha. Faz-lhe bem - diz a enfermeira sem parar,

    condescendente, batendo a mo ao de leve no ombro da vel, perdo, idosa.

  • - Ali, ali... - aponta com o dedo curvado, debilmente, para cima.- V l dar a sua voltinha e depois venha lanchar, no se esquea! - diz, risonha, j no fim

    do corredor. O Pilinha-Esguia apanha-os sempre desprevenidos e sozinhos, por vezes nos dias em que

    as famlias os visitam. No momento em que esto ss, o genro foi mquina buscar caf, a filha est no jardim a apanhar ar ou a ver as instalaes, a tia velha est no convers, de costas, com o auxiliar de enfermagem, e l desce o senhor Bentley, de guarda-chuva (mas donde diabo que ele veio?!), sorrisinho matreiro e - com vermes nas mos. Sim, vermes.

    - Este vai comer-te a pele. As bactrias liquidificam-te por dentro. Tens quanto, trs, quatro meses de vida? Prepara-te. Vai ser um baile, a tua cova! As moscas correm a depositar ovos na tua carne e as crias alimentam-se dela.

    - ,,! - grita o pobre de olhos esbugalhados, muito alto, sem foras para se levantar do sof e fugir. - ! !

    - Mas o que isto?! - exclama o auxiliar de enfermagem, confuso. - O que que lhe deu? Sente-se mal?

    Bentley, o Enraba-Passarinhos (alcunha que ganhou do tio por ter uma pilinha muito pequena), est ali mesmo ao lado, mas sem sobretudo. Ningum o reconhece. (Ai se o reconhecessem era porrada na certa. E merecida. Comeu poucas. Mereceu todas. E mais ainda.) Veste um pijama e escondeu o chapu de coco num saco de plstico do Continente. Amarelecido, enrugadssimo, arroja as pantufas no cho e sai, devagarinho, porta fora.

    - Hi, hi, hi - ri-se, mansamente.Ala para o cu, allez-hop!, sem ningum dar pela marosca. Outro lar de idosos o aguarda! Um gajo tem de arranjar actividades na reforma, no ?

    7.O SENHOR BENTLEY DAS BANDEIROLAS

    O senhor Bentley (que um asno) viu a criancinha. Um menino gordo, irrequieto, de oito anos com a camisola da Seleco Portuguesa, a dar invisveis toques na invisvel bola.

    - Pra l sossegado - diz a me.- Portugal! Portugal! - diz o mido sem parar, ps para um lado, sou o Ronaldo! O

    Ronaldo!- , uma criaturinha! - o senhor Bentley avistou-o a partir de cima com o seu olho de

    guia esfomeada.Joga-se em voo picado na direco da criana feliz a jogar bola com o invisvel Ronaldo

    e o Beckham.A dois metros estaca, como uma seta oblqua, a cabea virada para baixo, a mo

    segurando o guarda-chuva, parece um mssil, o raio do homem, e - escarra. - me! me!- Seu sacana! Seu estupor! - a progenitura agita o punho. - He, he, he - sorri o senhor Bentley, enquanto retoma devagar a posio vertical e plana

    para cima. A mezinha limpa o material biolgico da camisola do filho, debulhado em lgrimas. - Cabro! Cabro - grita o puto, olhando o cu.- Ah, Portugal, Portugal... VamosGanhar! O Sentido Patritico inflama-o.- Onde esto as bandeirolas! Quero prestar saudaes s bandeirolas! Ena tanta

    bandeirola a adornar janelas e varandas, varandins e montras de pas-te-la-ri-as. Portugal Patritico, sim senhor... sim senhor...

    E depois a razia. Arrebanha uma que marinhava calmamente ao p do edredo que a dona ps c fora a

    arejar, e acessorizou a gabardina. Bandeirola cintura atada como um cinto.- Hoje cinto-me... very Vivian Wastewood

  • Esteve vai-no-vai para fazer uma bandelete de outra, menor, esgaada nas pontas, a coitada devia ter servido para pano do p, mas o chapu de coco, todo fornicoques, cheio de nove-horas, no-me-toques-que-eu-hoje-tomei-banho, arrepiou-se (os pelinhos subatmicos levantaram-se como se saudassem a realeza) e o senhor Bentley teve um ataque de comiserao.

    - Realmente est sujita... - disse de ar compadecido. - O que que este quer, o que que este quer!A dona da bandeira, dama gorda de braos flcidos e de permanente recente, esbraceja.

    Sai por momentos do p da janela e regressa com a vassoura.- Vai-te embora, cabro! Foge daqui!- Hi, hi, hi - ri ele. Bandeirolas em riste, o nosso corao est em Deus, men! Carneirinhos, m, m!

    Carneirinhos, a carne tenra (pensa o biltre) a-nes-te-si-a-da por um ms. Portugal e Cascos-de-Rolha de Cima! Portugal e A-Dos-Cunhados! Portugal e o Senhor Roubado! Alto dos Moinhos! Ameixoeira! Catujal! Avenida dos Estados Unidos da Amrica! Quem vai ganhar? Mistrio.

    - Tanta bandarilha - choraminga o Enraba-Passarinhos - e tanta criancinha nojenta em frica sem roupa para vestir (ou tourear, hi, hi, hi). Se h direito. Os pretinhos, por Deus, os pretinhos sem nada para cobrir as partes PUDIBUNDAS.

    E suspira. Teatral. Porque bonito suspirar pelos pretinhos e suas partes PUDIBUNDAS.Voa pelos cus de guarda-chuva aberto, gabardina desabotoada (est calor), deixando ver

    o colete. Voa a danar como o Gene Kelly, mas sem msculo. O Enraba-Passarinhos no tem o poder msculo que Gene Kelly exsuda (ento em collants nem se fala).

    Nem as coxas.As coxas do senhor Bentley so minguadas, branquelas, e no entanto dana como um

    atleta romeno, o gajo.Vai arrebanhando em fria, os dentes cerrados e lbios a descobri-los, parecem muralhas

    incas, os dentes do senhor Bentley, perfeitamente postos uns sobre os outros, bandeiras, bandeirolas, bandolins, bandeiretes, bandarilhas e bandeletes! Enfim, a nossa bandeira das quinas, verde e vermelha, com a esfera armilar ao meio.

    Assoa-se a uma (saem macacos, nojo) e escarra na esfera (ao meio). Agora o centro um escarro verde rodeado por burris. Uma ilha! O senhor Bentley acha que, ah, assim sim. Assim fica mais bonita! E pendura-a num poste em frente a um hipermercado para toda a gente A-Pre-Ci-Ar a sua obra-prima.

    Ele reinventou a bandeira das quinas. Talvez assim se reinvente a alma portuguesa...Dirigiu-se a um vagabundo (perdo: sem-abrigo, sem-abrigo, sem-abrigo), a um

    vagabundo de merda, no quer trabalhar, s no bem-bom, deve receber o rendimento mnimo e se calhar vai para o Metro pedir. Deve ter prdios a render em Odivelas!

    - Olha-me este porcalho, com prdios a render em Odivelas e a cagar no meio da rua!O senhor Bentley teve uma quase pena, um gnero de pena homeoptica (vende-se em

    ervanrias) e deu ao homem barbudo, velho e malcheiroso outra das bandeirolas para limpar o rabo. O vagabundo encolheu-se. Pensou que lhe ia bater.

    - para limpares o cu! - grita o senhor Bentley a afastar-se, para o cimo, com um molho de bandeiras alojadas no sovaco.

    Eram tantas que se ps a troc-las pela bandeira azul das praias.- Ah, melhorou. Temos de ser patriticos, canudo! Daqui deste mar samos para encontrar

    outros mundos! - disse ele a fingir exaltao. Os veraneantes viam aquilo e diziam-se:- Mas... meia vermelha e meia verde? Posso ir ao banho ou no, foda-se?!, que bela ideia!, saltou o senhor Bentley, o gajo era de ideias brilhantes. Ou pelo menos

    ele pensava que sim. Eu c no sei.

    8.BENTLEY BALNEAR

  • Aparentemente hoje um grande dia!, exclama o Sr. Bentley. Os pretinhos vo danar com os lusinhos, hop-hop, lari-lariii, hop-di-dup-hop!!

    Eu gosto de pretinhos, diz o senhor Bentley com a voz cavernosa que se aloja no crebro, voz radialista, gtica.

    E de proto-pretinhos, continua a voz. gajo racista, j se v, mas ele pensa que no. Est segurssimo que no.- Um preto um preto um preto - assegura. - Deixar de ser preto por lhe chamarmos...

    Africano? Europeu? Lisboeta? NEGRO?!Ele acha que no.Estabelecemos que o PNR j quis o Sr. Bentley para porta-voz, mas no deu em nada. O

    Enraba-Passarinhos roubou pedras da calada e fez pontaria s carecas luzentes dos wannabe luso-nazis e foi giro. Foi bonito de ver. Muita cabea partida, o vermelho sanguneo a colorir o passeio, a roupa, as cabeas de bolas de bilhar.

    - Quiiiinhentas e seteceeenntas e nove! - diz, do alto, ao escarrar na criancinha que faz uma fita nos braos da me: queria levar o escorrega para casa e recusava descolar a garra infantil da borda.

    - ! - disse a mam e fugiu a toda a brida para o carro (a gasolina, reparou ele. Negro, pequenote, com uma cadeirinha no espao traseiro exguo).

    A quantidade de escarros que ele desperdiou em criancinhas. Anda com vontade de gast-los nas cabeas luzentes luso-nazis, colori-las de verde e amarelo, material biolgico txico. Fazia uma instalao, um happening artstico - luso-nazis escarrados, braos ao alto, alinhados, autor: Sr. Bentley, o Sodomizador-Mor de Pssaros. Ah, e as mams, as putinhas das mes dos nazis, tambm elas! Sim. As... vertically challenged mummies. A chorar. Ou no.

    Mas cada vez que v a puta de uma criancinha l vem o arranco do fundo da garganta, impossvel cont-lo e PAF - aterra na bochecha do criano. Ou nariz. Ou olhinhos. s vezes orelhas. Uma vez errou e foi na garganta.

    O Sr. Bentley envergonhou-se com a falta de pontaria. Regressou cabisbaixo a casa. A ratazana vizinha perguntou:

    - Ento, orelha murcha?- Preciso de cirurgia laser - choramingou Bentley. - A vista no o que era antigamente.Mas hoje, dia fabuloso!Vai praia.E, bandeirolas em riste, (s lhe falta o touro, uma boa cornada no lhe fazia mal nenhum),

    v um GNR ao fundo. Sozinhito.- Hihihi.Rapta o desgraado do GNR.Transporta-o nos ares, cabo do chapu acoplado gola do sobretudo, e os dois braos a

    segurar o GNR gorducho pelos sovacos.- Dieta no te fazia mal, p.- AAAAHHH! LARGA-MEEEEE!- Continua a barafustar que o que eu fao.Na praia larga-o aos trambolhes e em seguida pe-se a arrastar malta para a gua.- Agora MULTA! - exige Bentley ao gorducho, segurando-o pela cintura das calas.- V l, meu cabro: MULTA. Multamultamultamultamulta.E ele multa. Mas h um senhor doutor poltico deputado fiscal-de-linha engenheiro que

    mostra a declarao passada pela Junta de Freguesia e assinada pelo mdico de famlia do Centro de Sade que o isenta de multas balneares.

    Tem de ir ao banho a qualquer hora, com ou sem bandeira hasteada, por razes de sade. Quais, no especifica o dito atestado.

    - Eh l, eh l! - gritam os colegas do GNR gorducho que acorrem em auxlio.O Sr. Bentley plana para cima e assiste razia de multas passadas pelos colegas (o

    gorducho entretanto sentou-se no areal e chorou, olhando as calas molhadas e os ombros encolhem-se cada vez que se atreve a mirar o cu).

    - Eu tenho um atestado, um atestado - diz o estrelicadinho senhor doutor deputado. Deixam-no em paz. A este nem exigem documentos: BI, carta de conduo, nmero de

  • contribuinte. Seguro do carro. Atestado de virgindade da avozinha. Impresso digital do nariz, orelha e queixo. Aos outros banhistas, Que-No-Eram-Deputados, obrigam a apresentao de documentos, alguns tm de caminhar at ao carro.

    - Ah... - diz o senhor Bentley inspirando a maresia. As ondas ribombam anmicas, desfazendo a escassa espuma branca no areal.

    - Caralhinho... - diz porque h muito no profere palavres e a malta esquece-se, p.A malta esquece-se.

    9.AVENTURAS DO BENTLEY

    O senhor Bentley oferece-se para liderar um movimento de resistncia civil.- Contra as multas. Os filhos da puta dos polticos. E as putas das mezinhas. Vamos

    incendiar Portugal, meus lindos!, com o nosso rigor e honra, com a nossa Exigncia tica!O senhor Bentley est no gora, modestamente povoado. A maioria resta em casa a fritar

    os miolos assistindo ao Mundial.- s vezes tem-se neurnios a mais admite ele, srio.Os presentes miram sub-repticiamente, emitem sons de desprezo pelos lbios, agitam as

    mos em movimentos moderados e continuam a dialogar em voz baixa com o camarada do lado.

    , o Monsieur Bentley - ignorado!Isso no se faz a um pobre velhinho!Ele no se incomoda.- Proponho - (continua) - uniforme! Para sermos de imediato reconhecidos!(E mais rapidamente recolhidos como ganadaria para ser marcada a ferro quente, mas isso

    ele no diz.)- Protestemos juntos, meus lindos, uniformizados! Ah, c est ele - observa uma trouxa

    ao canto da parede.Bentley muda-se frente de toda a gente (no tem mesmo vergonha nenhuma, a bisca,

    mas isto, os velhos, so uns desavergonhados. O senhor Bentley considera ter o direito de agir como se a velhice o isentasse do pudor).

    - Sou velhinho. A vergonha para os novos.Canalha.- C est ela, a farda do nosso Movimento de Resistncia Civil.Mini-saia de aspecto plstico, cor-de-rosa choque, sapatos femininos da mesma cor de

    salto agulha. O brilho fere os olhos.O suave ronronar de barulho de fundo no gora.Cessa.- Vamos, companheiros! Allons-y, camaradas! En route!Abre os braos como um Cristo obsceno. As pernas so estacas de bambu, finssimas,

    brancas como as de um albino. E sem pelinhos. Ele nem tem pelinhos nos colhes, reparem. Antigamente era uma grande tristeza (not), mas hoje, Homem Iluminado, Buda Vivo, Funcionrio da Emel em Part-Time - superou o trauma.

    Correram-no, no pedrada (como costume), mas galhofa.- Olh Periquito Pomposo!- Vais p naite, mne?!- Vai mas p Intendente sacar a jorna aos emigrantes do Leste!- O cornudo gosta dos outros, das PALOPs.- E de putos.- EU ABOMINO CRIANCINHAS!Abespinha-se e com razo. Ala no ar com a ajuda do guarda-chuva aberto, a perna

    aberta, a formar um pavoroso V invertido, raqutico de hastes. (Falta de vitaminas.)- Hereges - choraminga. - Vou-me. Noutro stio encontrarei seguidores altura.- Vai l, vai. No te esqueas da camisinha! Ah, ah, ah!

  • - Da camisinha de algodo porque est frio, ainda te constipas e apanhas a puta de uma pneumonia e depois Morres!

    O ribombar de risos s o deixa entrada do Metro.Arranja lugar sentado. Um adolescente com pena cede-lho. Coitado. A Alzheimer

    fodida.O senhor Bentley senta-se, compenetrado e absorto, de rosto limpo e s no d um tabefe

    ao rapaz por desconhecer o teor do juzo.Hoje quarta-feira e ele, ComoTodaAGenteSabe, tem de purificar a alma, deter-se na

    contemplao da Impermanncia da Vida e da Morte.

    No Cemitrio

    - Ah-Ah-Ah! O cemitrio! - exclama em exuberante alegria. A noite escura revela os contornos baos das sepulturas. Um grilo canta. Resflegos e murmrios entrecortados enchem a espao a noite.

    - Ol... - murmura Bentley.Agacha-se. Fecha o chapu. Desliza, qual felino, at fonte dos sons estrangulados. E

    antes de ver a origem j ele sabe o que ocorre.Um rapazote, magro, dos seus vinte anos, com um rabo luminoso e redondo, trabalha

    furiosamente a mulher cadver que desenterrou. Est fresquinha, a gaja. No deve ter estado mais de cinco dias enterrada.

    O senhor Bentley tem pena de no ter trazido holofote.Para eventos destes so necessrios holofotes. E honras de Estado, caralho.Pop.Desaparece num estrondo mnimo. Reaparece na Residncia Oficial do Esticadinho.

    Arranca o esqueleto mirrado da cama.- Marucha! Marucha! - implora de mos estendidas enquanto Bentley o arrasta de pijama

    e barrete para outro.Pop.Ora eu no sei como o diacho do homem fez, mas aps algumas dezenas de pops no

    que h uma ala formada frente ao jovem fornicador de cadveres, todos perfeitamente alinhados, alguns no acto da continncia? S o rosto em pnico silente testemunha de que a postura erecta ou a saudao militar no so actos naturais. O vesturio tambm no ajuda: envergam pijama inteiro, ou s as calas, camisa de noite florida (o Paulinho), ou esto nus, e estremunhados, cheios de ramela, o penteado desfeito ou com rolos no cabelo.

    Bem tentam as biscas descolar-se da posio de sentido forado ou descerrar lbios, s a respirao aos arrancos, forte, prova dos esforos, mas nada feito. Pregados ao cho como lindas figurinhas de Estado, ai, catitas! At l est o Narigo do Primeiro! (O Primeiro no pde vir, o senhor Bentley compreendeu. Trouxe a penca que cumpre s mil maravilhas a funo, alis, como tem cumprido as outras. O Sardas tambm foi dispensado. Estava na Channel cata de cachecis chiques.)

    - Sem cachecol elegante no se grita a plenos pulmes! - disse o senhor Bentley.s sardas.Teve vai-no-vai para levar as sardas junto, mas mudou de ideias.- Um ruivo sem sardas no natural.Ora o jovem fornicador (com um lindo rabinho branco, duas meias luas simtricas e

    gordas, rabiosque quase de gaja, o senhor Bentley sentiu uma atraco sfica por ele - sfica pois que o seu lado feminino desejou as meias luas femininas do fornicador de cadveres, porm passou-lhe, graas a Deus, h coisas que nem eu seria capaz de descrever), o jovem fornicador, dizia, ora entra e sai da coninha apertadinha - morta, ptrida e ftida - da defunta sem conseguir parar, preso num movimento perptuo.

    (!, ser a Mquina do Movimento Perptuo?!, demanda-se o Enraba-Passarinhos. Chamem os engenheiros da Nasa! Alertem as companhias petrolferas! Temos a crise energtica resolvida! Foder cadveres!)

    Mas no a mtica Mquina do Movimento Perptuo, peno informar.

  • ..., desconsola-se.Holofotes iluminam os glbulos alvos e as figuras de Estado.Ficam ali a noite toda. No dia seguinte fazem manchete nos grandes jornais nacionais. A

    TVI manda uma equipa televisiva. a nica com colhes para mostrar a imagem.Bem tentam despreg-los, quebrar a paralisia. Nada feito. Parecem feitos de pedra. Um

    ou outro mija-se e emporcalha a roupa. O Fornicador do Movimento Perptuo, bom, a ele, cortam-lhe o instrumento e resolve-se o assunto (afinal um gajo qualquer, no uma Figura de Estado. Ao Narigo Primeiral mostram maior respeito). Remetem-no s urgncias do So Jos e depois priso.

    O senhor Bentley safa-se (pulha). Vai em peregrinao a Ftima para lhe perdoarem os pecados (os por fazer, no os antigos).

    Antes, porm, a noite caa e lentamente a rigidez abandonava o corpo das figuras, passa pelo cemitrio, agarra no cadver fodido (tinham posto um oleado por cima) e obriga a que todos lhe beijem a boca apodrecida.

    - Foi bonito.Ele s quer que os tipos compreendam o que ele compreendeu h muito: a morte toca a

    todos. Tambm os senhores tero a boca ptrida e, quem sabe, com sorte, o seu cadver ser desenterrado para lhes irem ao cu.

    10.O CANDELABRO

    Quando rfos na ndia, pauprrimos meninos de rua brasileiros ou tailandeses o abordam de mo ossuda estendida, encardidos, pestilentos, os trapos rotos a cobrir o corpo magro, esqueltico e doente, expondo mazelas nos joelhos e braos e pulgas que se passeiam, desenxabidas, no couro cabeludo, de feridas velhas e frescas a enxamearem o rosto, o senhor Bentley comunica-lhes, numa mansa secura:

    - Olhem l, j no pode um homem, olhem l. Eu no tenho filhos, porque raio hei-de aturar os filhos dos outros? Eu no vos pari. V l, andor, andor. No pode um homem passear descansado e afasta-se vagarosamente sem pingo de vergonha ou piedade humana. Cr ser essa ausncia a prova confirmada da sua Iluminao.

    Certos midos, ressabiados, arremessam calhaus ao chapu de coco que, coitadito, no tem culpa nenhuma. Foi este um dos motivos que o fez comear a cuspir s criancinhas. O senhor Bentley no percebe como que as mams, ao primeiro berro do monte de carne que lhes parasitou as entranhas por nove meses, no se transmutam em infanticidas.

    - Que defeito ancestral, petrificado nos genes passados de gerao em gerao, as obriga a cuidar de tais horrveis criaturinhas? pergunta-se amide. Quer instituir no futuro uma bolsa para patrocinar estudo cientfico que responda questo.

    O Enraba-Passarinhos defensor enrgico da sodomia infantil, embora no a pratique por nojo.

    - A sociedade enrijava, trabalhava-se mais cedo, os midos saam da primria e iam para as obras! A crise da Segurana Social era coisa do passado. Limpinho. Estar a gastar capital para qu, sem preciso nenhuma. Traumatizem-se as criaturinhas! De bero! Ponham-nas c fora, A Trabalhar! Tm bom coiro para isso vocifera, zombeteiro, perto de reformados, o sorriso vai de lado a lado como os dentes pontiagudos de uma serra.

    Defende tambm o carcter compulsrio da sodomia (em todos os actos protocolares) para qualquer pessoa que entre na vida poltica activa. Enrijece. D msculo. tipo duche escocs (embora o prprio seja adepto do duche dourado).

    [O senhor Bentley uma besta, relembremos.]Venceu, honestamente, ainda por cima, os maiores samurais do Japo. E gabou-se sem

    humildade nenhuma. No se sentiria altura do Nirvana se no se gabasse. Homens iluminados esto para alm das hipcritas regras corteses. Em consequncia deportaram-no e foi considerado persona non grata. Na verdade conseguiu ser expulso de todos os pases do mundo.

  • No teve remdio seno regressar a Portugal donde se evadira na adolescncia no ano de 1917 depois de abusar de Ftinha, uma das pastorinhas (os trs pastorinhos que eram quatro, originalmente). Hoje a Pastorinha Desconhecida ou a Primeira Vidente Madame num ilustre bordel alemo. Logo ao primeiro encontro ele demonstrou-lhe o Candelabro Italiano, o Arco do Triunfo e o Pndulo; ensinou-a a injuriar Nosso Senhor Jesus Cristo Que Morreu Na Cruz Pelos Nosso Pecados (todos: coitadiiiiiinho) e a Virgem Maria durante a cpula. A rapariga teve orgasmos tenebrosos e abandonou as beatices saloias. Hoje a franzina catraia de dezasseis anos chefe de um dos mais influentes Sindicatos de Putas teutnico, mamalhuda, avessa a cirurgias, tem varicoses e anda carregadinha de celulite. As suas especialidades so a Bailarina, o Arco-ris e a Hipotenusa que reserva a clientela escolhida por causa da artrite. Est grata a Bentley por a ter perfeitamente industriado na arte do amor fsico. A cada visita ao bordel regala-o com belas ninfetas de pernas brancas e compridas e seios como mas verdes, que lhe cocegam os sovacos depilados e fazem festinhas circulares na barriga.

    Mas agora, em Portugal, pas de grunhos, onde que existem lupanares decentes? Com ninfetas, rapazinhos cruis, velhas gordas devassas e meretrizes normalssimas, burguesas que fazem uns bicos noite para pagar crditos malparados e trabalham nas Reparties durante o dia?

    O senhor Bentley suspira, inconsolvel.Espera que inventem um pas novo, donde ainda no tenha sido expulso. Visit-lo- com

    o senhor Robert, fantoche de origem gaulesa, o que no vem ao caso.

    11.O SR. BENTLEY EMPREGA-SE

    O sacana do Bentley, comummente conhecido por Enraba-Passarinhos ComoTodaAGenteSabe, achou que devia ganhar uns trocos. Eh, uns trocos, diz a encolher os ombros assim muito velho, Gajo Idoso que andou a combater no Ultramar (not), a matar pretos e agora o Estado no lhe reconhece valor.

    - As rendas, as rendas. No posso mandar os filhos da puta dos inquilinos para a rua quando no pagam! E eu aqui a passar fome!

    (Not.) Mentiroso. Que grande mentideiro. Outros tm esse problema, vero, mas nunca o senhor Bentley. Inquilino que no lhe pague a renda alvo de fartote! , o que ele brinca com os canalhas que se alapam no que no deles.

    - , uma preeeeetaaa! - grita enquanto segue a desgraada da Senhora Inquilina que no paga h trs meses porque o marido perdeu o emprego.

    "No tenho culpa que o gajo partisse uma perna e no lhe dessem baixa. Se no pode trabalhar nas obras v pedir para o Metro!", pensa o canalha.

    - V pedir para o Metro! - sugere aos berros do alto para a senhora de cor que entra, aflita, no autocarro que a leva para o trabalho nas limpezas.

    - Quando que o teu marido vai pedir para o Metro! - grita ele janela, seguindo velozmente o autocarro que, por acaso, ia esgalhado naquele dia.

    - Esta besta... - murmura o condutor (de bigode).O senhor Bentley sabe que ningum d esmolas no Metro. Olham o ceguinho, a

    adolescente romena, a ceguinha a cantar e reparam na roupa: to bem vestido... to gorda... no deves passar fome... vai mas pedir para a tua terra... s vm c para roubar e ainda traz o pobre do mido ao colo...

    Um gajo preto, grande, srio, de perna partida e muletas no ganhava nem trs tostes. O senhor Bentley ri-se. Porque tudo divertido.

    Odespois foi a do segundo esquerdo.O marido deixou-a.Grvida. E ela a ganhar cento e vinte contos por ms com renda de sessenta contos. A

    gua a subir. A luz. O passe. O seguro do carro. Vendeu o carro. O beb a caminho. Pagar a ama. Para ir trabalhar. Para pagar as despesas. Poupar na comida. Fazer sopa, sopa, sopa. Os

  • pais, pobres, l na terra, que no a podiam ajudar. Os sogros que a detestavam (ai o nosso menino, o meu menino, quem foi arranjar! Se no arranjava melhor! Ao menos uma advogada...!). O marido que arranjou outra. O xanax, o prozac, o trabalho mal feito, a licena de parto durante quatro meses (cinco no podia ser porque os oitenta por cento do ordenado no chegavam para cobrir as despesas), o patro que se ressentia. A depresso. A depresso.

    - E a renda j vai num ms! - exclamava Bentley, seguindo-a pela Baixa, ela a esconder-se, a tentar fugir com a enorme barriga, os olhos baixos, as lgrimas furtivas que escapam ao controlo. Medicamentoso.

    O senhor Bentley ria, sorria, gargalhava como um grgula medieval. , se tivesse asinhas na gabardina! Asinhas pequenitas, de morcego. Branco-sujo. Bonita cor.

    - Um ms! Filmes porno! Olha que pagam cinquenta contos por um dia de trabalho! Tenho aqui o anncio!

    E postou-se frente da mulher em destroos, que contorcia a cara em choro, enquanto lia o anncio em voz alta para os transeuntes em redor ouvirem. Ela conseguiu fugir para dentro de um caf onde o senhor Bentley viu a entrada barrada pelo empregado cinquento (curiosamente tambm de bigode), gajo que praticava culturismo desde os dezasseis anos.

    - Eh l, franganote - motejou o Pilinha-Esguia (a alcunha auto-explicativa, penso) e alou, guarda-chuva aberto, para o alto. Up-up and away.

    De modos que cento e dez contos de rendimento mensal tinham ido viola. Cantar as fnebras no cemitrio (e hoje que nem era quarta-feira!).

    No call-center Bentley aproveita um momento em que os supervisores (ou team-leaders ou l o raio do nome dos tipos) no esto a escutar as chamadas dos operadores para se divertir um bocadinho.

    - Ah no quer? Olha este no quer! s um inqurito, filho da puta. Cof-cof, sou velhinho, tenho para mais de noventa anos (not), e estou aqui para pagar as despesas da operao vescula! Na merda de um call-center! Para mais de noventa anos! No tens vergonha, caralho? Um velhinho... tratar assim um velhinho... sabes quanto que os gajos me levam de operao, internamento e custo de apalpano de enfermeiras mafarronas, sabes?! Para mais de cinco euros dirios! Mais iva. Mais inflao corrigida. MaisIstoMaisAquilo. Responde ao caralho do inqurito. Ganho dez cntimos. Ajuda, dez cntimos. Uma esmolinha, uma esmolinha - sibila o senhor Bentley e a seguir grita. - Anormal! Que tenhas muitos meninos pela barriga das pernas! Estou, estou sim? Est l? Chatice, a chamada caiu. Muito boa noite, o meu nome Bentley, Senhor Doutor Engenheiro Doutorado Bentley (e s estou a fazer isto como trabalho de campo para concluir a Tese) e ns estamos a fazer um inqurito para determinar o motivo que o levou a anular a aplice do automvel.

    - Mas eu no desisti de seguro nenhum! No me diga isso que eu preciso do carro para trabalhar! No me diga isso! Se acontecer alguma coisa no tenho seguro.

    - Ah, pois no, no tens. Olha, amor, azar. Azar fodido. a vida! a puta da vida. Esto a lixar-te, tot.

    Click.- Hi, hi, hi - ria com riso de sardanisca.- mentira. No para inquritos. do SIS e andam-te a SEGUIR - diz quando apanha

    um cliente mais paranico. - Andas a fazer downloads de pornografia infantil, no , lindo? Mas se fores Deputado Parlamentar no h problema! Se no fores, concorre nas prximas eleies e oferece electrodomsticos. Preciso de um moinho de caf. Al, al? Mal-educado. Desligou-me nas fuas. Fuas no, que eu no tenho fuas: tenho fronha.

    Durou uma hora no emprego. Despediram-no mal o sistema de escuta voltou a funcionar. Juntamente com a hora de formao (paga a cinquenta cntimos), ganhou trs euros no dia.

    - Fortuna. Vou ser empregada a dias. Ganho seis euros e meio hora - pensou, de modo brilhante.

    E foi logo comprar o aventalinho e o espanador.Depois foi ter com os Velhos para lhe darem o lugar da criadita francesa, mas estes

    recusaram. Detestavam a bisca.- Preconceituosos...

  • *Slogan: No uma questo partidria, s de indumentria!

    (Se o senhor Bentley fosse poltico e ConcorresseAEleies seria este o seu slogan. Favor no roubar. Ele j o registou na Sociedade Portuguesa de Autores.)

    *

    12.BENTLEY REVISITED

    Era uma vez o senhor Bentley, muito chatinho, porque eu no lhe ligo nenhuma.- Tu no me ligas nenhuma diz ele com as fauces vermelhas de idoso com birra.E verdade. H quantos anos tenho o Bentley II parado? (Demasiados!, diz ele.) Pois.

    Temos pena, como si dizer-se ainda no outro lado onde eu costumava trabalhar. Temos pena. a vida. Lamentamos. Com a maior brevidade possvel. So os procedimentos.

    Agora tenho uma horita para tornar defunta. Ah, ah, ah. Depois vou comer. No vais!, grita ele. Pois. Temos pena: vou. No vais! Ofereceu-me h pouco uma barata para eu comer. Que ando magra e baratas tm Protena. mentira. Duas mentiras. Desconfio que as baratas engordam seno no me ofereceria. Anda desconsolado (desacoroado), o senhor Bentley. A sobrinha-neta no o respeita (e devia? Devia! Raio da pirralha. Se fosse no meu tempo muita porrada levava. , senhor, cale-se, no sabe nada. No seu tempo... No meu tempo! Sim!). A quantas mestras de escola fodeu ele o juzo e levou quase esquizofrenia clnica, I wonder? A muitas. Poucas!

    No te quero ligar nenhuma, meu velho Bentley. Senil Bentley (escarrou-me, o cabro, mas eu desviei-me e a massa verde esponjosa caiu no colo de um senhor de cadeira de rodas).

    No me apetece tocar-te mais, para dizer a verdade., o meu belo corpo...!Enrugado e encardido.He, he, he, ri-se, sardnico, o sacana do velho.- Onde meteste o chapu, velho fuinha? Fugiu-te outra vez?Foi para as Meninas, diz ele, enunciando muito detalhadamente cada palavra com

    solenidade. Para as Meninas, repete de ombros cados, quase pesaroso.- Se te apanham, apeado no cho, 'ts bem fodido. Lixam-te os cornos, filho-da-puta

    digo-lhe a rir. que mesmo ningum gosta dele.Ele ri-se muito alto, dramaticamente (como se estivesse no teatro de modo a que na

    ltima fila o escutassem) e ala-se no ar. O cabro do velho. Como raio que?Olhei para cima com ateno onde permanecia esttico com a mo em pala sobre a testa a

    observar o horizonte e a outra apoiada na cintura, por cima do pesado sobretudo cinzento de l. Nos sapatos saam de cada lado um par de asinhas, cuja dimenso era a metade das de um pombo, e elas mantinham-no no ar. Depois, com um ar trocista, puxou as calas para baixo, deixando vista um rabo enjoativamente branco e flcido (foda-se, vai para o Meco, a ver se apanhas alguma cor...).

    Uma criana! Uma criancinha com uma saudvel birra! Ol! Ol, Tooooourooooo!E a segurar as calas voou at paragem do autocarro, agachou-se bem (no ar) e

    projectou um saudvel e consistente rolo de massa castanha-escura, que foi aterrar no bero do mido de trs anos. Todavia a me retirara o fedelho a tempo. O bero foi direitinho para o lixo. O senhor Bentley gritou l do alto depois de limpar o rabo s folhas das rvores:

    Parece que nem do valor s coisas! Dem o bero caridade! Caridade!Eu pirei-me. Que vergonha. Este gajo s me d vergonhas. E baratas. Piolhos no d

    porque eu nunca me chego muito perto (IstoNuncaSeSabe).(Ui. 'T quase na hora do jantarinho.)

    13.PULGA

  • O senhor B (b-a-b) apanhou uma pulga do cho e disse:- Oh, os bebezinhos so cremosos, cremosos os bebezinhos. Passados pelo passevite ou

    pela mquina de sumos, hummm, delicioso. Derrama-se o resultado por cima de saladas ou bitoque. Ah - vale a pena estar vivo. Assim, sim.

    O senhor B (de b-a-b, repito) roubou a cadeira motorizada de um tetraplgico, depositando-o esparramado no passeio numa posio esdrxula (parecia danar hip-hop. Hop-Hop!), colocou um cartaz com os dizeres: Arte. Favor No Incomodar. (O gajo anda sempre preparado, nem lhe falta o dedal e as agulhas, vejam l.) E arrancou. Teve o cuidado de deixar um fio de baba escorrer pelo canto dos lbios, jogar a pupila dos olhos para cima e balanar-se em gestos descoordenados para no destoar do assento.

    Basicamente, um pulha. Depois foi o fartote: lanou-se contra todos os agentes da autoridade que viu, mesmo

    direitinho s canelas. Nenhum lhe passou multa nem lhe deu voz de priso.- Coitado - diziam, coxeando, alguns com as pernas rachadas iam ao p coxinho para as

    urgncias do Curry Cabral, - isto so vidas, so vidas.A brincadeira acabou quando um bando de midos lhe gamou a cadeira.- Caaaabres! Filhos da puuuuuta! Ai, falta-me o ar. Gritar cansa. Nestas idades, nestas

    idades h que ter cuidado. Malaaaaaandros! Isto j no h o respeito que havia antigamente, nem pelos mais velhos. Francamente. uma bandalheira. Sinceramente.

    14.MANDALA

    O senhor Bentley anda h dias no cemitrio do Alto de So Joo a desenhar uma mandala em cima da laje funerria que cobre o esqueleto de certa senhora carunchosa.

    Observadores pensam-na sua parente, qui av ou bisav. Ou tetrav. O senhor Bentley doma o aspecto da honrada velhice, curva-se para o cho, usa o guarda-chuva como bengala por vergonha pensam os menos sagazes e falhos de intuio, os facilmente burlados pela imagem. As rugas so fundas, o lbio inferior tremelicante, os olhos vogam sem destino. Coitado, est quase cego. Pobre homem. Gabam-lhe o talento, a mo firme que guia o tubo de cobre fino e longo por onde sopra a areia colorida que desenha a mandala. Desculpam-lhe a heresia budista no catolicssimo cemitrio de Lisboa porque glorificam a postura digna e respeitosa. Ele expressa uma espiritualidade elevada, algo para alm do que os observadores se julgam capazes. O senhor Bentley um ser superior. Querem ser velhinhos para poderem aderir a esse escondido nvel mstico. , querem ser bonzinhos.

    Os dias passam, os interessados multiplicam-se. Comentam o facto miraculoso da mandala no ser destruda pelos elementos naturais. , um santo, o senhor Bentley. Alguns comeam a ajoelhar-se, a rezar com o tero em redor das mos unidas, as mulheres cobrem a cabea com um leno negro rendilhado (por respeito). Os homens sbrios oram de p, o rosto descido, os olhos fechados, os lbios a emitir a prece silenciosa.

    Chega o dia em que a mandala terminada pelos gestos oscilantes do pobre, desgraado do senhor Bentley, vem sempre sozinho, ter famlia? A alguns passa pela cabecinha adopt-lo. Adoptar o avozinho. Se for incontinente, maior o altrusmo. Quanto tempo at que cegue por completo? Lerei para ele.

    A srio? Mas tem de ser a Margarida Rebelo Pinto porque ele gosta muito. O mesmo livro, sei l. Vezes sem conta. No vale a pena iniciar outro porque ele, s para chatear, exigiria que o mesmo fosse lido e relido e relido at o benvolo leitor deitar a Margarida Rebelo Pinto pelos olhos. Mas o leitor altrusta. Sacrifica-se. At ele prprio perder a viso. S assim o senhor Bentley ficaria satisfeito. Por enquanto nenhum dos observadores sabe disto. V a imagem. Venera a imagem. Beatifica-a. Um maltrapilho santo, bbado, feio e bruto, malcheiroso, desprovido da imagem que um santo deve ter seria corrido paulada. Bentley ama brincar s imagens. nisso e no cavalinho.

  • Por norma a mandala deve ser desfeita por um gesto largo passando sobre ela, como um vento aniquilador, e em seguida a areia deve ser jogada ao rio.

    Ele prefere outro mtodo. No gosta nada de observar regras, roteiros. Espirra, sonoramente, para cima da areia vermelha, amarela e azul, espalhando-a

    cemitrio adentro, apanhando de rajada os olhos dos crentes. Deixaram de ver, coitados.O senhor Bentley endireita-se e ganha vinte centmetros na estatura. Tira o leno branco

    do bolso. Assoa-se. Espalha o ranho verde no que sobra da mandala e deixa-o ali na tumba, laia de oferenda. Depois salta para cima da sepultura da anci vetusta e corroda e.

    Dana uma Sevilhana. - Ai as sevilhanas, que belo cu, que belas mamas! desata a cantarolar uma sevilhana

    bblica obscena (que no reproduzimos por inteiro por sermos tementes a Deus e recearmos a quentura infernal).

    - Ai que belo cu e excelentes mamas tm as damas sevilhanas! repete, amide, o bode lascivo, o corpo ganhara a leveza e flexibilidade olmpica de um ginasta russo medalhado.

    A assistncia est estupidificada. Taralhoca. Perdida. Mas... um louco! Tommos por santo um louco!

    Petrificados, fitam de boca aberta e um olhito vermelho meio aberto meio fechado a figura do senhor Bentley, voando pelo ar depois de ter aberto o guarda-chuva. Estica-lhes o dedo do meio. Aterra ali perto, no crematrio.

    Ai que alegria to grande, o Crematrio! Do p vieste ao p voltars, ashes to ashes, o omo lava mais branco, se eu soubesse o que sei hoje, uma cobra a deitar gua e outra a regar o jardim.

    - Se tu visses o que eu vi porta do tribunal canta garridamente quando penetra no crematrio e interrompe o luto da famlia.

    - Se tu visses o que eu vi porta do tribunal, uma cobra a deitar gua e outra a regar o jardim! DO-MI-N!

    Cala-se e ningum diz nada. Esto parvos. Mas quem este tipo?! Doido, porventura.- Ah, meu cabro, que belas cores! observa para o morto no atade, l ao fundo.

    Achega-se e acrescenta com ar de suave advertncia Andas a abusar nos broches, tens os lbios todos cortados.

    Cala-se por instantes, os outros no se mexem com medo. O senhor Bentley balana-se, empoleira-se, vez, nos saltos e na biqueira dos sapatos (como uma bailarina, em pontas), tem as mos atrs das costas a segurar o chapu-de-chuva aberto. D um estalinho com a boca. como se estivesse numa festa espera que algum meta conversa com ele. tmido. Ningum diz porra nenhuma e ele farta-se.

    - Mas que mal-educado! Nem um ol, como andas, cada vez ests mais novo, ficas para a deitado, rgido, sem uma palavra!

    - El... ele... es... est morto... sussurra uma delgada voz feminina.- Morto?! repete com descrdito, mas sbito uma falsa comoo lacrimejante inunda-o

    e ele uiva, destroado Ele no est morto, est vivo! Vivo!Conecta o cabo do guarda-chuva gola do sobretudo para ter as mo livres e agarra o

    defunto pelo colarinho, arranca-o da caixa branca que comeou a dirigir-se s chamas, a caminho de se transformar, juntamente com o contedo, em cinzas. Tenta despert-lo para a vida.

    Para acord-lo o melhor ser evocar o passado.- Lembro-me da altura em que visitmos o bordel. Tu ficaste com os rapazinhos diz,

    erguendo o teso cadver nos ares, a malta l em baixo aos pulos a ver se o apanha.O morto l em cima espalha o nauseabundo cheiro e fluidos cadavricos. Bentley dana

    macabramente o simulacro de um tango com ele, chega ao desplante de roubar um cravo para pr entre os dentes amarelos de vbora j que no havia rosas vermelhas. Ah, o que ele ama a decomposio, as larvas, as bactrias dissecando a carne. O odor da morte vivifica-o. um odor mstico.

    Desce de quando em vez com o defunto, faz ccegas no nariz da chorosa viva e festinhas gentis nos filhos, genros e amigos.

  • - Estes sacanas querem-te queimar sem estares morto! S para te apanharem a herana! Infames! exclama, raivoso, sem deixar de danar o tango ou perder o cravo. Numa das descidas o neto mais velho do morto vilipendiado apresa-lhe o tornozelo. De imediato os presentes lanam-se a Bentley como uma matilha de lobos e expulsam-no do crematrio e do cemitrio por entre uma saraivada ininterrupta de socos, pontaps, estaladas, insultos e cuspidelas.

    Regressara a Portugal, aps longa ausncia, h apenas trs semanas.O homem tem talento, admitamo-lo.

    15.HERIS

    Sanhudo, honrado deputado condecorado, gajo alto e bem nutrido, cujo lbio inferior grosso pende em perodos de nervosismo, culos a adornarem o rosto oval com ligeiro ar mongolide, um heri da nao. Nunca sai de casa sem escovar o fato Armani, ajeitar a gravata Herms, dar um pontap valente na porcaria do co e desflorar um menino. Trazem-no, de propsito, do Colgio para que o desflore. Ele telefona a encomendar. escolha do cliente (A lista um primor!) e o Sanhudo um excelente, generosssimo fregus.

    - Hoje vai... e palita o dente cariado, distrado ora avie-me um rapazola dos seus onze, doze anos, no mais, enjoa, faz-me mal vescula, cabelo curto loiro, franja a esconder os olhos. Confiante. Branquinho, branquinho como os borreguinhos. Lubrifiquem bem a zona anal que eu hoje estou com pressa, h uma votao parlamentar e desliga com um sonoro arroto.

    Palavras para qu: um heri nacional.H uma srie de heris que o senhor Bentley anda a seguir l do alto, cu adentro, voando

    no seu guarda-chuva fiel. Hoje est no exterior, espreita pela persiana.- Ai que nojo diz o senhor Bentley de rosto distorcido e ombros subidos, enrabar

    meninos. Puah e cospe como se tivesse engolido um fruto azedo.Mas respeita-o porque, para ele, as crianas so nojentas, ranhosas e ftidas.- Sabe-se l por onde que andou...O Sanhudo empertiga-se, parece um melro apanhado em falso. Adivinha a fonte dos

    sussurros. Desliza a carne em passinhos midos de rinoceronte e, j a suar, confirma a suspeita. O senhor Bentley manda-lhe beijinhos nos dedos, ele esconde-se, a tremer.

    Quando o garoto chega rapidamente despachado de volta para o Colgio. Bentley abre a persiana de rompante e, sorrindo, acena-lhe um ol. Sanhudo sai a correr de casa, espavorido.

    O Enraba-Passarinhos segue-o, guarda-chuva numa mo e megafone na outra.- um gajo, um gajo! No fica doente nem nada! Pe a piroca em meninos, criaturinhas

    que andam sempre doentes, ele tosse convulsa, poliomielite, sarampo, hepatites, sfilis, e o gajo Nem Uma Doena Apanha! Sade de ferro! Abram alas para o Farruscas! Batam Palmas ao Farruscas! SANHUDO: O HERI NACIONAL!

    E no que o senhor Bentley no creia nestas palavras aparentemente venenosas ele cr. Para o senhor Bentley o essencial seguir a nossa natureza, seja ela qual for, e aceitar o destino final a que nos encaminhe.

    O heri da nao juntou-se, no restaurante, ao Trinca-Meninos e ao Marechal, que o esperavam risonhos. Mal vislumbram Bentley a cumpriment-los efusivamente atravs da janela, tornam-se plidos e perdem o controlo muscular das pernas e joelhos. Caem nas cadeiras almofadadas com o peso de uma pedra tumular.

    Dali o senhor Bentley segue-os para o Monte Alentejano de um deles, onde lhes estraga o dia de caa e se diverte a fugir como um garoto traquinas das balas tresmalhadas (cerca de noventa e nove por cento, mas isso agora no vem ao caso). S ao fim do dia que se chateia com a diverso, exactamente na altura em que os perseguidos (tadinhos) chamam a polcia. O senhor Bentley desce obedientemente dos cus e deixa-se arrastar pelos ombros pelos agentes da Pjota, os taces a rojarem na terra, enquanto grita a plenos pulmes, de megafone em punho:

  • - Uns senhores! Uns Senhores! Sem uma doena! Nem uma unha partida! Nadica! Uma pessoa a julgar que quem se mete com crianas, grados e pequenos, fica carregadinho de maleitas! E afinal! Afinal NO LHES ACONTECE NADA. UNS SENHORES, LORDES MODA ANTIGA, CHEIOS DE FORA, DE RAA! SIM SENHOR, ESTOU RENDIDO!

    Por esta altura j os agentes da Judite o haviam largado porque, francamente, no tm ouvidos de ferro.

    Bentley prende o cabo do chapu gola do sobretudo, encaixa cada um dos braos no dos agentes e leva-os, a estrebuchar, cu acima. Como pombinhos, piu-piu. Danam os trs. Cantam-se aleluias. Ouvem-se hossanas (l nas alturas).

    Os gajos de baixo emitem um colectivo suspiro de alvio ao verem o Enraba-Passarinhos voar para longe, muito longe...

    16.SENHOR BENTLEY NO MARQUS DE POMBAL

    O Senhor Bentley s vezes tem ideias do catano. O magano decidiu juntar-se manifestao no Terreiro do Pao. Calou as pantufinhas, ps um gorro de dormir todo catita, vestiu o pijama com flores rosas e amarelas, pegou de supeto no guarda-chuva (estremunhado, o coitado dormia) e allez-hop l foi ele para o Terreiro do Pao.

    - Vou-me Manifestar! - dizia, ao pombo que o quisesse ouvir. - Vou-me Manifestar! - exclamava com grande empenho.

    Mas a meio do trajecto areo (e para quem no conhece o Sr. Bentley informamos que ele voa pelos cus de Lisboa com a ajuda do seu grande amigo, o guarda-chuva voador). A meio do trajecto, dizamos, deitou um olhinho Lisboa l de baixo e decidiu parar.

    Aterrou na cabeleira marmrea do Marqus de Pombal.Eu no sei como raio que o homem fez aquilo passes de mgica ou o camandro mas

    tirou um megafone sabe-se l de que recanto, e ps-se a discursar. - Compatriotas! - comeou, do alto da cabeleira. - Compatriotas, meu dever estar hoje

    aqui, exactamente Aqui e aponta furiosamente para baixo com o indicador neste mesmo stio, AquiAquiAqui faz uma pausa, suspira, e de olhos esbugalhados a fazer mossa num rosto quase todo ele plcido, prossegue para vos falar sobre os sacrifcios e palavra sacrifcios soava como se lhe apertassem os testculos num torno sobre os Sacrifcios que o povo deve ao conforto dos polticos.

    Parou. - Enganei-me. Perdo, perdo pigarreou, tornou a agarrar no megafone e prosseguiu

    que o Povo deve ao seu Pas. O seu Pas amado. Pois no ele amado? Sim, sim!-Tudo se deve ao nosso amado Pas gritava, com alma, o senhor Bentley pelo

    megafone. - H que dar tudo, TUDO!, Ptria Querida! Portanto eu proponho avanou o senhor Bentley, j mais calmo e com um tom de voz que parecia tremendamente sensato um rim.

    Calou-se por instantes.L em baixo, aos ps da esttua, j havia malta dispersas, mais ou menos atenta s

    palavras daquele gajo ali no topo, deve ser doido, o homem maluco. Vou ficar a ouvi-lo. Alguns ergueram o sobrolho, confusos.

    Um rim...?- Um rim continuou o senhor Bentley, aquela suprema besta. - sabido que os rins, no

    mercado negro, valem um balrdio, um balrdio! - dizia, empinando-se em bicos de ps e a gesticular com a mo livre de modo enftico, para marcar o discurso. O chapu-de-chuva pairava por cima dele. - Ora se cada Portugus vendesse, no mercado negro, um rim (pelo amor de Deus, quem que precisa de dois!) e o dinheiro da venda fosse entregue a 120%, em sede de IRS ao Nosso Governo Salvador a cada palavra em punha-se em pontas, falando com grande teatralidade a dvida semanas. Semanas, meus senhores. Que digo eu, dias, dias!

    Houve um idiota ou outro que achou que aquilo fazia sentido.

  • Findo o discurso, calou-se o senhor Bentley e l voou para o Terreiro do Pao, onde se divertiu o resto do dia a pegar nos pombos e a jog-los aos discursantes.

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    17.SR. BENTLEY, O ARREBITA-A-NABIA (Cap. 1)

    Senhor Bentley, o Passarinheiro, o Passaro, o Enraba-Passarinhos. O Lambe-Lambe, o paneleiro corno-de-merda, peneirento, o caga-lume, o apaga-lume, o arrebita-a-nabia, ai arrebita-arrebita!; senhor Bentley, o Visitador de Cemitrios. .

    No raramente o senhor Bentley veste-se Ren Magritte e finge-se belga. De chapu de coco na tola e chapu-de-chuva dependurado no brao direito (evita que desate em saudaes nazistas cada vez que passa por ciganos, pretos, maricas, polcias-sinaleiros e cezinhos de trs patas) passeia na rua com metade de um coco preso face com um elstico, a gritar: No tenho cara! No tenho cara! ! A minha cara! Onde est a minha cara?! EU QUERO A MINHA CARA DE VOLTA! SEUS CARALHOS DE MERDA ABAUNILHADA, DEVOLVAM-ME A CARA!

    Depois encolhe os ombros, resignado, e dirige-se calmamente para o banco de jardim, senta-se, retira a casca de coco do rosto, deposita-a aos ps, abre a gabardina, decompe o vesturio, amachuca-o, distorce as linhas plcidas do rosto, d s mos um ar sinistro e deformado e cacareja timidamente:

    - Uma moedinha (cof) p ceguinho (cof-cof).Passando mulheres, de qualquer idade ou raa, invariavelmente escolhe a mais decrpita,

    a mais acabada, a mais enrugada e, lascivo, diz-lhe:- s mesmo boa. Fodia-te toda. s mesmo boa. Fodia-te toda. A moedinha (cof) p

    ceguinho (cof-cof). Boa. Fodia-te. Moedinha. Cof. De vez em quando d vigoroso salto no banco de jardim, espeta uma estalada na testa e

    exclama:- segunda-feira!E l vai ele a correr como uma florzinha, liriozinho do campo, ecoando na rua em

    lampejos exclamativos absurdos o dito:- segunda-feira! segunda-feira!O senhor Bentley homem de hbitos. Necessita de hbitos para contrabalanar, dar

    equilbrio ao seu carcter impulsivo, feito de actos momentneos e explosivos. O prprio senhor Bentley no sabe do que capaz, o que aprontar no minuto seguinte. Os hbitos do-lhe base segura, so o eixo da sua vida. s segundas, quartas e sextas visita cemitrios.

    Senhor Bentley (o paspalho, paspalho, dez reis de mel coado, o-anda-por-a-aos-tombos, o forreta, somtico, judeu, o nababo das rolhas) mal entra no cemitrio (escolhido ao calhas, os dias da visita jamais se alteram, contudo o cemitrio a visitar ditado pela sorte) faz razia s campas: rouba todas as flores que consegue carregar. Pe grinaldas volta do chapu de coco, empilha-as pescoo abaixo, coloca colares de flores volta dos braos como se fosse acrobata circense, usa o chapu-de-chuva para levar outros tantos. L vai ele, o senhor Bentley engrinaldado, a deambular cemitrio afora aproveita e treina o choro, altera a configurao do rosto, as linhas cavam fundo na pele. A est o senhor Bentley, perfeita fotocpia do perfeito sentimento de luto.

    - Estou em perodo de nojo...! choraminga para os mortos ao redor porque os vivos vivem muito l por fora, nos trabalhos l por fora, com a puta da famlia, das criancinhas e dos patres. Ao menos o cabro do senhor Bentley no se sujeita a chefes de um corno porque dono de casas arrendadas.

    O olhito meio-fechado, meio-aberto, intercepta ao fundo o canto de campa miservel em abandono evidente h dcadas. O senhor Bentley d um salto (a imitar o lrio do campo, faz de conta estar no ballet), emite um gritinho panasca e, semeando ptalas e nctar podre no cho, corre aos saltinhos at ao alvo.

    - Ah! Branca e pura no! Suja, encardida, abandonada como me apraz!

  • De sbito perfila o corpo em pose militar e cumpre o ritual. O senhor Bentley precisa de rituais e hbitos seno o seu centro desmorona-se.

    Cuidadoso retira de si cada grinalda e colar de flores, depositando-os leve e lentamente no cho, sem que nenhum toque na pedra tumular.

    Compenetra-se da santidade do solo sagrado e dedica-se nos momentos iniciais a um exerccio budista: varre com os olhos o espao do cemitrio, fixa-os, plano a plano, na terra que suporta as centenas de campas e imagina milhares de corpos, debaixo do cho, a apodrecer, a apodrecer, a apodrecer... v os ossos movimentados centmetro a centmetro pelos vermes cuja sagrada e interminvel tarefa a de digerir toda a carne humana morta. Cerra os olhos e v os bichinhos a nutrirem-se, plcidos. Impunes. Impvidos. Ouve-os a mastigar sem dentes: morf-morf-morf. Distingue os sucos dos corpos, enxerga os amorosos bichinhos surfarem devagar de centmetro de carne apodrecida para centmetro de carne apodrecida, embrulhada em roupa que j foi de moda e custou um balrdio, os olhos da cara. Imagina os parentes a zaragatearem: ts parvo?! Dar essa porrada de dinheiro por um fato que vai ser comido pela terra?! Mais vale deitar o dinheiro ao lixo! Imagina o invisvel, desconhecido primo/tio/ o raio que o parta, a repontar, rilhando os dentes: parece mal! Parece mal enterr-lo como um maltrapilho, um vagabundo sem eira nem beira! Parece mal!

    O senhor Bentley tem as mos cruzadas frente, por cima do bem-bom. Inclina-se para trs, faz uma curva propositadamente acentuada, abre a boca e alarga os lbios num sorriso cnico: um sorriso entendido. Ele entende a impermanncia da vida e da morte. Tal como tem o entendimento do mundo. Retoma a verticalidade do esqueleto, fecha os olhos e enche os pulmes de ar. Sente os mnimos odores do sepulcrrio, comeando no cheiro da morte e decomposio o cheiro mais doce para ele, o nico que lhe d vontade de permanecer e divertir-se no mundo. A seguir vem o cheiro agridoce dos vermezinhos, nham, um guisado de vermes calhava bem. Depois acode o cheiro bolorento dos caixes a desfazerem-se em p; o aroma marmreo das campas; a essncia hmida da terra e do hmus; o perfume das rvores e das flores e das plantinhas. O cheiro dos ratos. Das baratas. Dos gatos. E dos homens. Vivos. Na pele dos coveiros a sntese aromtica realizava-se. (Ai que vontade de os espremer, espremer, como roupa molhada.)

    Tinha de faz-lo para bem da sua estrutura mental, s segundas, quartas e sextas: contemplar a impermanncia visitando necrpoles ao acaso.

    O momento sagrado eclipsou-se e ele ps mos obra! Ah sim, now comes the fun part!, diz-se em francs, alemo e italiano. (Cabro: s porque sabe bem que eu no me entendo com nenhum dos idiomas.)

    O senhor Bentley pega nas grinaldas uma a uma e enquanto chora baba e ranho deposita-as no tmulo, velando o morto tal como vira ciganos a fazer.

    - Ai to bom que ele era! grita. To bom homem! (Pra por instantes e d uma olhadela rpida aos dizeres baos na pedra.)- Ai to boa que ela era! A me dos meus filhos! Finouuuuuu-se! Morreu! Ai

    coitadiiiiiinha! Ai, a puta morreu-me! Como que eu vou ganhar a vida agora! A puta da mulher dos meus cinco filhos bastardos morreu-me nos braos! No pude acabar de fazer o sexto! Nem o sexto me deixou acabar de fazer, a desgraada da mulher! Custava-lhe muito, merda?! Custava?! Fez de propsito, a velhaca! De propsito!

    (Calou-se e respirou.)- Ai tadiiiinha deeeela! TADINHA... deeeeeeeela...!Arrancou rosas amarelas, gladolos e gerberas s macheias, lanou-os sem respeito

    nenhum para a enegrecida campa, impeliu-se para cima da pedra tumular e desatou aos saltos enraivecidos, os ps esmagando as flores a cada impacto, trucidando-as nas solas dos sapatos. Um homem, do outro lado do cemitrio, aproximou-se do espectculo de queixo cado e ar estupefacto. Tinha entradas no crnio e o cabelo era todo negro. Usava culos de vidro fino e aros de metal. Vestia fato escuro e devia ter quarenta anos. Aproximou-se a princpio a passo vigoroso, mas diminuiu a velocidade medida que alcanava o senhor Bentley, homem demente. preciso ter cuidado com estes doidos solta por a... O senhor Bentley bem o via. Saltava cada vez mais alto, as costas curvadas com o exerccio, no rosto um esgar de dar medo.

  • Todavia o chapu de coco permanecia firme na cabea e s o chapu-de-chuva balanava no seu brao direito.

    - Eh... psst... eh eh l?Atreveu-se o espectador. O senhor Bentley deteve-se num pice. Retesou o corpo, aplainou as rugas da face e

    observou o infinito. De seguida desceu da campa, deu dois passos e rojou-se at ao homem atnito.

    - Ai a minha vida! gritou em desespero, a agarrar-lhe os fundilhos do casaco escuro e a bab-lo de ranho e choro. A minha querida mulher! Perdi-a! Perdi-a!

    Parecia sincero. O homem teve um instante de dvida. Senhor Bentley atracara-se a ele. O homem conseguiu desprender-lhe as garras da roupa e acercou-se da campa. Leu: Elvira Guimares, filha adorada, 1890-1896.

    - Mulher?! uma criana que morreu aos seis anos no sculo XIX! vociferou e dirigiu o olhar enojado primeiro para ele e depois para os estragos no fato.

    - Voc doido! Doido! disse ao afastar-se e a limpar o ranho e a baba com o lencinho de bolso.

    O senhor Bentley encolheu os ombros e teve um sorriso satisfeito. Arranjou-se: desvincou a gabardina cinzenta, abotoada de cima abaixo, confirmou a firmeza do chapu de coco e abriu o guarda-chuva. O dia apresentava-se sem nuvens e no chovia h semanas, porm o senhor Bentley nunca saa de casa sem ele. Comeou a correr pelo cemitrio em direco sada, derrubando vasos, velas, flores, retratos, o que for que estivesse na passagem, dando impulso ao chapu aberto, para cima e para baixo, para cima e para baixo, allez-hop!, at atingir o porto gradeado e levantar voo.

    O senhor Bentley do mais ordinrio que h. A voar pela cidade, fora o ranho para a entrada da garganta, mesmo ali a tocar no sininho, faz pontaria a algum incauto transeunte e escarra certeiramente no alvo escolhido.

    - Trs quatro cinco! Trs, quatro, cinco! Semana proveitosa! Olha ali... um menino de bibe! Cinco anos, na certa! ! o trezentos e quarenta e seis! imita a voz de sorteio da Santa Casa de Misericrdia de Lisboa trs, quatro, seis. Trezentos e quareeeeeentaeseeeeeeeeiis!

    Acerta bem no nariz do fedelho. - Semana proveitosa! Trezentos e quarenta e seis! Contactarei o Guinness.Senhor Bentley, mais comummente conhecido por Enraba-Passarinhos, ganhou a

    alcunha aos quatro anos. Possua na poca uma pilinha muito pequenininha. To pequenininha que um tio maldoso lhe dizia: isso nunca mais cresce. S vai servir para enrabar passarinhos! A famlia escarneceu semanas a fio, meses inteiros, anos seguidos. Mesmo depois da tragdia, a alcunha continuava a produzir idnticas gargalhadas. Bentley, petiz de quatro anos, na noite da pblica humilhao, esperou que a famlia adormecesse e saiu do quarto. Foi buscar a garrafa de lcool casa-de-banho e serviu-se do isqueiro do tio quando penetrou no quarto. Mesmo em pequenininho, o Enraba-Passarinhos via to bem no escuro como os gatos e as corujas. Regou o bigode e o cabelo ao tio e alumiou-os com o isqueiro que repousava na mesinha de cabeceira ao lado dos cigarros e da dentadura. Foi uma festa!, recorda amide o senhor Bentley. Primeiro a cara dele alumiou-se e a chama movia-se erraticamente de um lado ao outro do quarto. O mido desviava-se. Depois a chama plantou chamazinhas no quarto e saiu para a sala. O mido foi atrs. A bola de lume ponteava o topo do corpo do tio parecendo ao Enraba-Passarinhos uma bola de futebol, um sol minsculo descido dos cus terra, filho bastardo do sol l de cima. Foi a primeira vez que visitou um cemitrio. A, aos quatro anos de idade, contemplou pela primeira vez a impermanncia da vida e da morte.

    Com o tempo veio a gostar da alcunha que o falecido tio lhe pusera.

    (No raramente o senhor Bentley veste-se como Ren Magritte e finge-se belga.)O senhor Bentley voa com o guarda-chuva e do cu grita, sem respeito nenhum:- Olha uma preta! Uma preeeeta! uma preeeeeeeeta!Racista do cabro.

  • O senhor Bentley uma vez seduziu um cavalo (pocot-pocot). Enrabou-o pelo nariz, recorda lacrimoso. O cavalo pensou tratar-se de um mosquito a entrar-lhe narina adentro. Seduziu-o em seguida, aps a cpula, com uma cenoura. (Pocot-pocot.) O Anglo-rabe afastou-se, lnguido e mais frente baixou a cabea para a erva verde. O senhor Bentley apanhou um desgosto , nem o primeiro nem o ltimo, mas no deixava de ser um desgosto.

    O senhor Bentley tem nome de carro dispendioso, porm personagem do mais ordinrio que h. Animal, besta de primeira. Usa sempre chapu-de-chuva, fato cinzento completo, colete, chapu de coco e gabardina abotoada at ao ltimo boto. Assemelha-se a cavalheiro ingls. A idade indeterminada, mas velho. Enraba o gato quando o apanha a dormir (purr-purr). O senhor Bentley bom porque no bate s criancinhas em pblico. Ao ver a puta de uma criancinha adopta a figura de lrio do campo e dirige-se criatura produzindo minsculos saltos e risos de cigarra, os bracinhos adejando como asas de pssaros.

    - Que querido! Tome um docinho diz minguada criatura babante. E um conselho gratuito: s velhas que te babam e beijam, morde-as no pescoo! Remdio santo.

    Afasta-se a imitar um avio vrum-vrum -, voltejando e bem no fim da rua consegue gritar ainda:

    - No pescoo, no pescoo, criatura!O senhor Bentley arranca o rabo a lagartixas para oferecer a passarinhos como dote. um santo homem, suspiram as beatas quando o descobrem de flores na mo (roubadas

    no cemitrio, de campa recente porque so novas e frescas e cheiram bem, o doce aroma esconde a futura corrupo a existir nelas em semente) para oferecer s namoradas dos outros: meninas de firmes carnes, firmes mamas, firmes nalgas, firme tudo, menos os escrpulos ou convices porque no estamos em tempo de t-los.

    O senhor Bentley gosta de coleccionar chapades de gajas boas. Tem l aquela mania, o que que se h-de fazer.

    No grama lsbicas (fufas do caralho! Fufas! A raa humana caminha para a extino por causa das fufas!), mas punheta-se no delrio de as imaginar esfregando-se, sininho rente a sininho, tlintlim, ai se eu fosse gaja! Ai se eu...! Le bordel!, diz-se em francs. (Por vezes sente nsias de possuir bigode s para ter o prazer de o enrolar.) Era uma galdria, putfia! Dava-me ao primeiro que aparecesse e lanasse modesto piropo, declara, exsudando luxria.

    muito mau para os vagabundos.Destrata-os de todas as maneiras em que consiga pensar. Finge-se compadecido, passa a

    mo esquerda pela cara e depois desabotoa, cerimonial, dois botes da gabardina, insere a mo e ressurge com a carteira. Compe largos, teatrais gestos a abri-la e retira uma nota de cinquenta euros ou, em ocasies raras, cem euros. A nota brilha. Vem sem vnculos nem rasges. O senhor Bentley mira-a, o rosto de sbito limpo, e torna a met-la na carteira e a guard-la no bolso do colete, seguindo em frente, sem olhar para o desalojado. Este atribuiu-lhe eptetos cuspidos entredentes: caaaa-bro. Saaaaaa-cana. Sefossesmasconadatuame.

    Ao chegar porta de casa descai as costas, usa o chapu como bengala, convence o lbio inferior a pender e o rosto a cavar profundas linhas na pele. Babando, na aparncia um idoso de oitenta anos, recolhe-se ao lar onde a mulher decrpita e paciente o espera com o lanche.

    - muito bom ser bonzinho diz-se o senhor Bentley caminhando pela rua da cidade. bom ser santo em vida, ajudar os pobrezinhos, praticar a caridadezinha porque assim morre-se e vai-se para o cu conversar com os anjinhos, ter dilogos iluminados com Deus, jogar gamo e strip-poker com os Santos e os Apstolos, mandar caroos de pssego tola dos pecadores que malharam com os cornos no inferno.

    Suspira, enche os pulmes de oxignio e finaliza:- bom ser bonzinho.

    Disponvel na Smashwords (2,99$)

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    18.SR. BENTLEY E OS PASSARES(Cap. 1)

    (Algures dcadas atrs, num passado horrorosamente distante, quando as galinhas exibiam ainda a sua bela dentola, passou-se isto...)

    - Orgias, orgias, orgias! i! Mudaram o local outra vez, filhos-da-puta.O senhor Bentley anda desconsolado. Trabalha num call-center e atende clientes que no

    querem pagar as facturas.- Mando-te um Encaminhamento Radial cu acima, canalha - diz com o sorriso na voz.Por acaso estava a ser avaliado. Chamaram-no ao Grupo Administrativo e despediram-no.- Virgil, ponha em Formao - disse a chefe.- No! - guinchou ao receber a notcia. - Tenho ratinhos para alimentar. Uma sogra. Uma

    cabra de uma enteada que me roubou o afecto do Meu Menino. Preciso destes oitenta contos! NoMeObriguemAIrParaAsObras!

    Com aqueles bracinhos de donzela esqulida?S havia um segurana a guardar a entrada. Entradote, quase to velho quanto Bentley.

    Foi um castigo p-lo na rua e retirar-lhe o carto. A PSP foi chamada ao local e aproveitou para multar viaturas mal-estacionadas.

    - Cabres... - rosnou e agarrou-se ao chapu-joaninha que bateu as asas cncavas.- E agora? - como ir um homem Reformado que Combateu os Pretos l nas matas

    coloniais (not) divertir-se?Abaixo v nos jardins reformados jogarem s damas e s cartas e arrepia-se. Aquilo pior

    que a morte. O olhinho amarelo desvenda um mido de goela aberta e tchan!, certeiro o escarro.

    Desta vez no canta em voz alta o sucesso por ir desolado.At se lembrar da Academia e dos Polticos (e os Curas, ai os Curas!) e a infinita alegria

    que lhe trazem. E afinal no era quarta-feira.- O Sanhudo-Sapo! Por Deus, hoje quinta-feira! Anda a foder putos!E allez-hop rumo ao Ribatejo, vruumm, vruumm, o chapu-antigo-de-coco a bater asas,

    vruum-vruumm, no som misto de um motor diminuto e gato a ronronar pacificamente. Era bom. Tirava a cera das orelhas.

    O PapaCatraios, faz jus ao nome. O rapazeco tem doze anos e trabalhado vigorosamente nos quartos traseiros. s vezes di. Joo geme devagar. Trouxeram-no da Academia. No tem pai e a me pobre, desempregada, j foi drogada e puta. Foi posto na Academia, retirado me, que o v de ms a ms. Na ltima vez que o visitou disse ter arranjado um biscate a fazer limpezas. Tem medo que lhe tirem o outro filho de quatro anos, Ricardo. Tem medo de ficar sozinha e no ter ningum para abraar. Chora um bocadinho quando o v e s o quer ver feliz. H um ano que Joo no v o mano.

    - O Ricardo?- Eu no o posso trazer! ficou com a vizinha, a Dona Marta.Joo estremece. No quer que Ricardo venha. Podem apanh-lo, fazer-lhe o mesmo,

    desgra-lo nas partes traseiras. E s tem quatro anos. J viu companheiros de oito anos a serem levados. J ouviu sobre meninos de seis anos que foram... no consegue pensar na palavra.

    - Que foram fodidos no Cu! - grita o senhor Bentley do outro lado da janela, um quarto andar, onde plana com as manpulas pintalgadas de manchas do fgado a segurar o rebordo do chapu-voador. Por vezes ele, homem Iluminado, banhado pela mesma luz que Buda recebeu, tem lampejos dos pensamentos alheios. Os mais fceis de captar so os das crianas e dos moribundos a dois suspiros do Jardim das Tabuletas (tambm conhecido por VaisComerErvaPelaRaz).

  • - Joozinho, no te queixes! No chores, no gemas! - grita Bentley alertando a populao ao redor que desconhece a orgia. Os Pederastas pem as mos cabea (depois de largarem certos penduricalhos, seus e alheios). Aquele gajo! Aquele gajo! Mas j no foi levado pela Pjota! Ele devia estar nos calabouos, o velho de merda! O velho de merda!

    O Sanhudo estremece as beiolas de dio. Na cara de sapo nasce uma borbulha, plop, emerge na face e fica branquinha a receber o hlito rpido do rapaz de catorze anos que se estava quase a vir. Cheirava a caf com leite e torradas de manteiga.

    O senhor Bentley pe-se a gritar a plenos pulmes l fora. Grita insanidades, palavres, incoerncias, e pelo meio descreve o que olhito amarelo remelento (nunca lava a cara de manh, detesta gua fria) viu a espreitar pelas janelas.

    - O velho PapaCatraios! Irra que aquilo ainda funciona! Bem lubrificado todas as manhs no cu de um garoto perptuo elixir da juventude! Venham ver, venham ver! - berra ao redor. - Estamos a vender bilhetes! Sesso lotada! Eu trago um a um c acima - e desce a pique, regressando ao poiso agarrando pela cintura uma velhota vestida de preto.

    - Largue-me! Largue-me! socorro! socorro!- Cala-te, estpida - sussurra - e pe a vista nesta produo teatral privada - empurra-lhe a

    cara contra os estores. Ela estrebucha. A mo de Bentley no diminui a presso. A velhota chora, o ranho mancha a blusa negra (acabadinha de passar). Enfim abre os olhos e v o comilo Rebordo (a.k.a. o Pataniscas ou o Papa-Iscas) nu da cintura para baixo, tentando desajeitadamente enfiar uma perna das calas enquanto um rapaz em pelota est sentado na cama desfeita a limpar a boca.

    A velhota pra logo de estrebuchar.- No lindo o espectculo? - sussurra sorridente ao ouvido da anci. Ao lado, impassvel aos desenvolvimentos, o HomoPata fode de quatro um rapaz dos

    seus dez anos, debruado sobre a cama. Tem os olhos fechados e fones nos ouvidos.A velha est boquiaberta e cessa de debater-se. Bentley deslarga-a e ela redopia para

    baixo. O loureiro atenua a queda. No partiu nada, fabuloso. No hospital tem um discurso desconexo.

    - Os midos... os garotos...! Os ga, ga...- Sim, sim. Veja l se descansa um bocadinho. J chammos a sua filha.A velha ergue em desespero o brao.- Os ga, garotos. Abusados...!- Ela deve estar a a vir - acalma o enfermeiro. - Durma um bocadinho. V, v, descanse.Entretanto Bentley buscava transeuntes ou arrancava pessoas da prpria casa, que tinham

    cometido o erro de abrir a janela, e levava-os para o quarto andar da orgia. J todos se tinham posto a andar, menos o HomoPata, que ningum avisara. Ao som de trance e trash-metal penetrava o rabo branquinho do Bruno, posto na Academia porque a me alcolica lhe batia e o pai s aparecia em casa de ms a ms para se embebedar juntamente com a companheira e apagar cigarros nos braos do filho.

    - Foi uma sorte - assentou a vizinhana. - Terem-no levado daqui. Ainda acabava como os pais. O destino do pobre rapaz. Ai. Desgraceiras

    Foi internado aos cinco anos e desde os sete que fazia as viagens ao Ribatejo. Ao menos havia alturas em que o deixavam ir ao mar. Mas doa-lhe tudo e cheio de vergonha na alma no tinha prazer nos banhos de praia. A primeira vez que viu o oceano grande e azul foi aos sete anos, num Inverno, na primeira viagem com os tios. O Bruno era sobrinho de muita gente.

    A populao juntou-se, meio dorida do tombo (Bentley levara em trinta minutos um total de trinta e uma almas ao Miradouro), arrebentou a porta e quase linchava o homem antes de ser detida pela GNR (chamada ao local por sua excelncia, o Sanhudo, que se queixou do sujeitinho). O HomoPata, empresrio talhante, comeou com dois talhos e hoje era dono de matadouros espalhados por Portugal e Espanha, no foi pego em flagrante. Estava vestido, composto, e recebeu os agentes com arrogncia depois destes terem apartado trs matules do seu escalpe. O menino de dez anos teve tempo de se vestir e fingiu que acabava de acordar, mas no olhou ningum de frente.

    - Ah - disse o Enraba-Passarinhos (o Pilinha-Esguia, o PapaMeAMaaroca) depois de ter avisado a TVI, - agora comea o bailinho. Ol!

  • Fez o gesto da sevilhana, deslargando as abas do chapu-joaninha e, catrapum, caiu estatelado no cho. No partiu nenhum osso, o raio do homem parece feito de borracha.

    (E foi assim que comeou o caso a Corte dos Nove...)

    Disponvel na Smashwords (2,99$)

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    19.SOBRE A AUTORA

    Colaborou na traduo japonesa das obras Todos os Nomes e A Caverna de Jos Saramago.

    Representada com trs poemas na colectnea de poesia contempornea portuguesa, Ventana A La Nueva Poesa Portuguesa, editada no Mxico pela Ediciones Desierto.

    Escreveu Lisboa singular, livro infanto-juvenil, publicado em portugus por uma editora francesa (ditions 00h00).

    Teve uma participao no Salo do Livro em Paris, entre os dias 16 e 21 de Maro de 2001, convidada pela editora ditions 00h00.

    Ganhou o 1 prmio no concurso literrio Antnio Mendes Moreira da Cmara Municipal de Paredes com a obra Procura de um Livro e ganhou igualmente o 1 prmio ex-aequo no concurso literrio Orlando Gonalves da Cmara Municipal da Amadora com o mesmo manuscrito.

    No princpio de 2006 foi publicada a obra "Sr. Bentley, o Enraba-Passarinhos" pela editora Sada de Emergncia.

    Participou no DN Jovem durante alguns anos.

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