da guerrilla ao estado

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16 Revista Electrónica de Psicología Política  Año 12, N°32 - Julio/Ag osto de 2014 Da guerrilha ao Estado: a Estratopolítica Domenico Uhng Hur Da guerrilha ao Estado: a Estratopolítica  Domenico Uhng Hur 2  Resumo Em 2002, o Partido dos Trabalhadores (PT) venceu as eleições para a presidência do país, alimentando a expectativa de uma série de mudanças sociais no Brasil. Contudo, as transformações sociais esperadas não ocorreram, colocando em questão a perspectiva de uma mudança levada pela esquerda no poder do Estado. Para refletir sobre esse impasse da transformação social, este artigo tem como objetivo investigar o discurso de um ex-guerrilheiro sobre a transição da luta armada ao atual momento político em que ocupa o cargo de Deputado. Com a análise da entrevista propomos uma modalidade de discurso que nomeamos de Estratopolítica. Concluímos que esse discurso opera numa fixação à Instituição-Estado, tendo um maior compromisso com a ocupação de lugares na estrutura institucional do que com o fazer político transformador. Palavras-chave:  ditadura, guerrilha, Psicologia política. Pesquisa financiada pelo CNPq e pela CAPES. Resumen En 2002, el Partido de los Trabajadores (PT) venció las elecciones para la presidencia del país, fomentando la expectativa de una serie de cambios sociales en Brasil. Pero, las transformaciones sociales esperadas no ocurrieron, poniendo en problemática la perspectiva de un cambio llevado por la Izquierda en el poder del Estado. Para reflexionar sobre ese problema de la transformación social, este artículo tiene como objetivo investigar el discurso de un exguerrillero sobre la transición de la lucha armada al actual momento político, en que él ocupa el puesto de Deputado. Con el análisis de la entrevista elaboramos una modalidad de discurso que llamamos de Estratopolítica. Concluimos que ese discurso opera en una fijación a la Institución-Estado, teniendo más compromiso con la ocupación de lugares en la estructura institucional, al revés del hacer político transformador. Palabras clave:  dictadura, guerrilla, Psicología Política. Abstract In 2002, the Workers’ Party (PT) won the elections for the country's presidency, inspiring the expectation of many social changes in Brazil. However, the expected social changes didn’t happen, putting in question the perspective of a transformation by Left in State's power. To reflect upon this problem, this article intends to investigate the discourse of one former-guerrilla fighter about the transition from the armed struggle to the current political moment. With the interview analysis we propose a modality of discourse named by Stratumpolitics. We concluded that this discourse acts in a fixation at the State-Institution, with more compromise to places' occupation in the institutional structure rather than a transformer political practice. Keywords:  dictatorship, guerrilla, Political Psychology. 1  Recibido: 05 de abril de 2013. Aceptado: 21 de febrero de 2014. 2  Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP, com estágio doutoral na Universitat Autònoma de Barcelona/Catalunya. Professor adjunto do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás - UFG. Membro do CRISE   Núcleo de Estudos e Pesquisas   Crítica, Insurgência, Subjetividade e Emancipação. Membro da Associação Brasileira de Psicologia Política   ABPP. 

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    Revista Electrnica de Psicologa Poltica

    Ao 12, N32 - Julio/Agosto de 2014

    Da guerrilha ao Estado: a Estratopoltica

    Domenico Uhng Hur

    Da guerrilha ao Estado: a Estratopoltica1

    Domenico Uhng Hur2

    Resumo

    Em 2002, o Partido dos Trabalhadores (PT) venceu as eleies para a presidncia do pas, alimentando a

    expectativa de uma srie de mudanas sociais no Brasil. Contudo, as transformaes sociais esperadas

    no ocorreram, colocando em questo a perspectiva de uma mudana levada pela esquerda no poder do

    Estado. Para refletir sobre esse impasse da transformao social, este artigo tem como objetivo investigar o

    discurso de um ex-guerrilheiro sobre a transio da luta armada ao atual momento poltico em que ocupa o

    cargo de Deputado. Com a anlise da entrevista propomos uma modalidade de discurso que nomeamos de

    Estratopoltica. Conclumos que esse discurso opera numa fixao Instituio-Estado, tendo um maior

    compromisso com a ocupao de lugares na estrutura institucional do que com o fazer poltico

    transformador.

    Palavras-chave: ditadura, guerrilha, Psicologia poltica.

    Pesquisa financiada pelo CNPq e pela CAPES.

    Resumen

    En 2002, el Partido de los Trabajadores (PT) venci las elecciones para la presidencia del pas, fomentando

    la expectativa de una serie de cambios sociales en Brasil. Pero, las transformaciones sociales esperadas no

    ocurrieron, poniendo en problemtica la perspectiva de un cambio llevado por la Izquierda en el poder del

    Estado. Para reflexionar sobre ese problema de la transformacin social, este artculo tiene como objetivo

    investigar el discurso de un exguerrillero sobre la transicin de la lucha armada al actual momento poltico,

    en que l ocupa el puesto de Deputado. Con el anlisis de la entrevista elaboramos una modalidad de

    discurso que llamamos de Estratopoltica. Concluimos que ese discurso opera en una fijacin a la

    Institucin-Estado, teniendo ms compromiso con la ocupacin de lugares en la estructura institucional, al

    revs del hacer poltico transformador.

    Palabras clave: dictadura, guerrilla, Psicologa Poltica.

    Abstract

    In 2002, the Workers Party (PT) won the elections for the country's presidency, inspiring the expectation of

    many social changes in Brazil. However, the expected social changes didnt happen, putting in question the

    perspective of a transformation by Left in State's power. To reflect upon this problem, this article intends to

    investigate the discourse of one former-guerrilla fighter about the transition from the armed struggle to the

    current political moment. With the interview analysis we propose a modality of discourse named by

    Stratumpolitics. We concluded that this discourse acts in a fixation at the State-Institution, with more

    compromise to places' occupation in the institutional structure rather than a transformer political practice.

    Keywords: dictatorship, guerrilla, Political Psychology.

    1 Recibido: 05 de abril de 2013. Aceptado: 21 de febrero de 2014.

    2 Psiclogo, mestre e doutor em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da USP, com estgio doutoral na

    Universitat Autnoma de Barcelona/Catalunya. Professor adjunto do curso de Psicologia da Universidade Federal de Gois - UFG. Membro do CRISE Ncleo de Estudos e Pesquisas Crtica, Insurgncia, Subjetividade e Emancipao. Membro da Associao Brasileira de Psicologia Poltica ABPP.

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    Nas eleies de 2002, quase trinta anos aps o fim dos conflitos da guerrilha armada

    contra a ditadura militar, acompanhou-se a vitria do ex-lder sindical Luis Incio Lula da Silva

    para a presidncia do Brasil e de inmeros polticos do Partido dos Trabalhadores PT para os

    assentos do Poder Legislativo. Dessa forma, constituiu-se um governo, nos lugares de ministros,

    secretrios, assessores, deputados, etc., composto por uma srie de lideranas de movimentos

    sociais, como dos trabalhadores, das mulheres, ecolgicos, raciais, ex-guerrilheiros da luta

    armada, etc. Em decorrncia da formao de um governo com representantes de uma gama de

    movimentos sociais, a expectativa de segmentos de esquerda3 poltica, dos prprios movimentos,

    da intelectualidade e de parte da populao foi de acompanhar a atualizao do potencial

    transformador de esquerda, socialista, e talvez revolucionrio, no Aparelho e nas prticas de

    Estado. Pois ter um partido de esquerda no Governo do pas instaurava um fato indito, em

    contraposio aos antigos governos que historicamente representavam as elites do pas, como os

    latifundirios, o empresariado, os militares, etc. e que implantaram o projeto neoliberal no Brasil. A

    transformao social era esperada, mesmo sabendo-se que a vitria de Lula deu-se por algumas

    alianas polticas que divergem da plataforma poltico-ideolgica do PT, como a unio com o

    Partido da Repblica PR que indicou como vice-presidente o empresrio Jos Alencar e a

    atual aliana com um partido tradicional de centro-direita, o PMDB Partido do Movimento

    Democrtico Brasileiro, que tem a maioria dos parlamentares da Federao e atualmente ocupa a

    presidncia do Senado.

    A crtica feita ao PT no poder a de que aps dez anos de gesto no governo no se viu

    uma transformao substantiva nas aes e na estrutura do Estado, no se efetuou o potencial

    transformador no Governo, e tampouco nas prticas polticas nos anos que se sucederam. Tal

    mudana social se configura como um desafio se colocarmos em foco a prpria problemtica da

    gesto do Estado brasileiro. Este se estrutura, no a partir de uma democracia direta, que abriria

    espao participao popular, mas sim no sistema democrtico representativo como forma de

    Governo, em que apenas a um corpo restrito de representantes eleitos (...) so reconhecidos

    direitos polticos (Bobbio, Mateucci & Pasquino, 1999, p.324). Portanto, mesmo com a mudana

    no poder executivo, manteve-se uma gama de representantes dos setores das elites tradicionais

    do pas no poder legislativo, fato que dificultaria politicamente a aprovao de mudanas mais

    drsticas na gesto poltica do pas.

    Dessa forma, uma gesto revolucionria do PT, do ponto de vista estrutural, dificilmente se

    efetuaria. Portanto, considera-se que o desafio da gesto do PT, de um governo de esquerda num

    horizonte neoliberal, era o de instaurar um novo perodo, uma social-democracia

    latinoamericana. Entretanto, Boito Jr. (2003) afirma que Lula manteve a mesma poltica

    econmica de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso - FHC, sendo um governo continusta

    3 Por esquerda poltica entendemos os posicionamentos e prticas de grupos polticos compromissados com

    movimentos instituintes de transformao e crtica frente lgica instituda e do Capital.

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    do anterior. Pois considera que o desenvolvimento das prticas neoliberais e assistencialistas no

    programa do governo Lula foram diretamente herdeiras do governo FHC. Citamos tambm os

    fatos de que manteve grande parte de seus apoios polticos e que um ponto crucial da plataforma

    poltica, a Reforma Agrria que o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MTST e o PT

    defendiam, no foi realizada, havendo os mesmos ndices de distribuio de terras do governo

    FHC.

    A transformao social ficou no discurso e nos ideais, no se concretizando nas prticas

    polticas. Prosseguiu-se com uma poltica neoliberal, que se distancia muito de um projeto

    socialista. O PT preferiu imprimir uma poltica pragmtica, com poucas modificaes estruturais e

    com o abandono de uma srie de bandeiras de luta socialistas. As crticas ao Governo PT se

    acirraram, pois se acompanhou a reproduo de uma srie de prticas reprovveis da tradicional

    direita poltica, como prticas de corrupo, caixa-dois, bem como a defesa de polticos que

    cometeram atos de improbidade administrativa4, contradizendo assim seu histrico discurso da

    tica.

    O que deu errado com a esquerda no poder? Por que no trouxe a almejada

    transformao social pela via institucional? Por que em posse do governo no imprimiu a linha

    poltica preconizada? Ser que as estratgias da esquerda se fixaram tanto na obteno do poder,

    que ao chegar ali no conseguiram apresentar alguma frmula alternativa de gesto? Houve uma

    mudana no posicionamento poltico para uma prtica conservadora? Suas prticas e concepes

    polticas mudaram quando chegaram ao poder? Houve um aburguesamento das minorias

    dirigentes, como sustentaria Michels (1982)? Por que a Revoluo, via institucional, no

    ocorreu? Como esta questo complexa e remete a inmeras variveis, escolhemos um

    subgrupo especfico para refletir sobre essa questo: os ex-guerrilheiros que combateram a

    ditadura militar brasileira.

    Aps o golpe de Estado perpetrado pelos militares e elites civis do pas em 1964, acabou-

    se com a democracia vigente instaurando-se um estado de exceo, uma ditadura civil-militar que

    durou vinte e um anos. Os inimigos polticos foram perseguidos e aprisionados, as manifestaes

    coletivas foram proibidas, os partidos opositores foram considerados ilegais e inclusive o

    Congresso foi fechado, fortalecendo-se assim o poder executivo. Os guerrilheiros foram os

    segmentos da esquerda poltica que tiveram uma experincia de ruptura com o Estado dominado

    pelo regime militar, numa luta radical em que colocaram suas vidas contra o governo. Como no

    havia mais dilogo com o poder institudo chegaram a um ponto de inflexo, em que a sada

    assumida foi pegar em armas e resolver os conflitos polticos pelo uso direto da fora. Foi sair das

    leis institudas e entrar numa luta em que os conflitos apenas poderiam ser resolvidos por relaes

    4 Como a defesa do PT em 2009, em nome da governabilidade do pas, ao atual presidente do Senado Renan

    Calheiros (PMDB) e ao ex-presidente, Jos Sarney (PMDB), ex-lder do antigo PDS Partido Democrtico Social, partido da ditadura, por uma srie de atos ilegais que praticaram.

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    de guerra e fora direta. A guerrilha armada foi derrotada pela ditadura militar na primeira metade

    da dcada de 1970 e esta apenas deixou o poder do Estado em 1985, quando houve a

    redemocratizao do pas.

    O objetivo desse artigo analisar a entrevista de um ex-guerrilheiro que hoje ocupa cargo

    legislativo no Estado, de Deputado Federal, para discutir a transio da luta armada participao

    poltica via institucional no perodo da democracia. Com a realizao da discusso propomos uma

    modalidade de agenciamento discursivo que nomeamos de Estratopoltica.

    Denominamos o entrevistado de Deputado, um militante poltico que transitou da guerrilha

    rural ao poder do Estado. Falamos poder do Estado em sentido amplo, pois ele no assume cargo

    executivo, e sim legislativo, mas conhecido como um dos principais quadros polticos e de

    articulao do PT. Uma informao adicional que sua imagem na opinio pblica ficou muito

    desgastada aps as denncias das supostas irregularidades do PT no primeiro governo Lula.

    Realizamos uma entrevista semi-diretiva no ano de 2008 separada em trs tpicos: a vida

    em famlia, a militncia na guerrilha, e como o sujeito analisa a conjuntura poltica atual.

    Procedemos por anlise de contedo (Bardin, 1977; Vzquez, 1997) para discriminar e catalogar

    as diferentes unidades de registro, que passamos a codific-las e agrup-las por analogia

    temtica (Vzquez, 1997, p.4). A partir da anlise constitumos dois eixos gerais: os discursos da

    transio da luta armada ao estado neoliberal e os discursos sobre o imaginrio da transformao

    social. Ao examinar os elementos emergentes hipotetizamos um tipo de configurao poltica que

    pode ser explicativo do funcionamento das prticas e convices polticas de nosso entrevistado:

    a Estratopoltica. Ressaltamos que nossa reflexo realizada a partir de conceitos de autores

    considerados ps-estruturalistas, como G. Deleuze, F. Guattari e R. Kas.

    No levantamento bibliogrfico sobre as memrias de ex-guerrilheiros que lutaram contra a

    ditadura, constata-se que a maioria da produo refere-se publicao de livros que mais buscam

    reconstituir o passado, de como se deu a luta contra a ditadura, ao invs de trabalhar a transio

    ao cenrio poltico atual (Gabeira, 1979; Polari, 1982; Betto, 1982; Reis Filho, 1990; Ridenti, 1993;

    Jos, 1997; Gorender, 1998; Tavares, 1999; Gaspari, 2002; Vianna, 2003; Coelho, 2007; Vieira,

    2008). A mesma tendncia percebida nos artigos acadmicos publicados sobre o tema da

    guerrilha e da ditadura (Martins Filho, 2003; Kushnir, 2007; Arantes, 2008; Arantes, 2012; Hur,

    2012). Entre as excees, citamos o artigo de Hur (2013a), que traa as transformaes da

    memria de acordo com as distintas temporalidades e outro (Hur, 2013b), que na transio das

    prticas polticas de ex-guerrilheiros postula a emergncia de uma razo governamental

    denominada de tecnopoltica, que se refere ao desenvolvimento de uma tecnologia da

    governabilidade alicerada gramtica capitalista.

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    Um discurso estruturado por estratos: a Estratopoltica

    Na narrativa de Deputado h um elevado nmero de respostas auto-referentes em que

    frisa seus feitos e realizaes, modalidade de resposta que foi muito mais intensa em sua fala do

    que de outros guerrilheiros que entrevistamos para outra pesquisa (Hur, 2009). Consideramos que

    seu discurso acerca de suas prticas polticas e desejantes est majoritariamente articulado pela

    determinncia dos estratos, estruturas, instituies e do Estado para fomentar as mudanas

    sociais. Todo o deslocamento citado em sua histria poltica est atravessado de uma leitura a

    partir do que F. Guattari (1987) chama de dimenso molar, em que se desloca por diferentes

    estratos: a Famlia, a Escola, a Igreja, a Universidade, o Centro Acadmico, o Diretrio Central

    dos Estudantes da Universidade Federal do Cear - DCE da UFC, equiparado a Unio Estadual

    dos Estudantes UEE, a Unio Nacional dos Estudantes - UNE, o Partido Comunista do Brasil -

    PCdoB, a Guerrilha do Araguaia, a Priso, o PT e cargos no Estado. Citamos como exemplo o

    lugar central que d aos estratos em seu deslocamento na sua trajetria na militncia estudantil:

    (...) eu fui escolhido para ser o presidente do Centro Acadmico numa eleio direta. E fui eleito.

    A j foi rpido, no ano seguinte eu j estava no DCE, (...) liderando as passeatas, as mobilizaes

    de Fortaleza. No perodo de 68, j estava participando dos encontros da UNE aqui em So Paulo,

    que o DCE no Cear se equiparava UEE, porque no tinha, s tinha uma Universidade. A eu j

    estava numa militncia engajada muito rapidamente. Foi um ano no Centro Acadmico, um ano no

    DCE e depois j na militncia estudantil na UNE, foi uma coisa relativamente rpida. Numa poca

    em que as coisas aconteciam com muita intensidade (Deputado, 142-1505).

    Percebe-se nesse trecho que a trajetria de Deputado desenvolve-se num campo estriado

    (Deleuze & Guattari, 1997), num campo em que se movimenta pelos estratos, numa estratgia de

    tomada de posies, tal como o jogo de xadrez. No exemplo citado foi a progresso do Centro

    Acadmico, associao local, para DCE Diretrio Central de Estudantes, comparada a uma

    associao estadual, e finalmente para a UNE, que a associao nacional. Algo que chama a

    ateno no relato de Deputado o uso repetidas vezes do particpio para falar que foi escolhido

    para ser candidato a presidente do Centro Acadmico, e no que se candidatou, como se fosse

    um agente subordinado do coletivo, uma produo da estrutura. Pode-se pensar tambm que

    essa forma de utilizao retrica pode ter como objetivo prover maior legitimidade a sua

    candidatura e escolha, porque diz que foi escolhido por um grupo ao invs de falar que escolheu,

    talvez por uma maior vontade individual, candidatar-se. De qualquer forma, tal organizao

    discursiva expressa como o elemento subordina-se estrutura, ao conjunto, mudando de valor

    conforme a posio que ocupa na estrutura institucional.

    5 Os nmeros entre parnteses referem-se s linhas em que a citao se localiza dentro da entrevista integral. Tal

    entrevista est na tese de Hur (2009).

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    Em seu discurso, os estratos, a dimenso molar, sempre so apresentados em sua

    positividade, sendo as superfcies que tornaram possveis o desenvolvimento das distintas

    prticas polticas. O elemento que ocupou esses estratos tambm denotado positivamente, em

    que teve uma ao intensa, considerada a melhor possvel, dentro da posio social ocupada.

    Movimento Estudantil, p! Fui at a UNE. Ditadura, fui para a clandestinidade, no fui para o

    exlio, no fui para a casa. Luta armada Vamos l!. Priso, P!. Tudo eu fiz com dedicao cem

    por cento e tudo eu paguei o preo com juros, correo monetria, mais a inflao acumulada, no

    bom sentido. E eu no me arrependo de nada e nem tenho conscincia pesada, nem nada, me

    sinto feliz com essa minha histria de luta que eu fiz (Deputado, 560-564).

    Talvez seja pelo fato da Instituio-Partido buscar na luta partidria institucional ganhar

    posies e eleger seus quadros polticos, que Deputado ao longo de seu relato sempre enaltea

    suas realizaes, trazendo tona sua positividade, de uma forma quase personalista, ou ento

    para fazer seu marketing poltico. Deste modo, hipotetizamos que no seu discurso h o desejo

    de ocupar os lugares com o concomitante movimento de exaltao das prprias caractersticas ao

    ocupar esse lugar. E tambm o inverso, fazendo com que essa posio social seja a expresso de

    suas caractersticas (por exemplo, no apenas o Lula presidente e sim o Presidente Lula).

    Consideramos que nessa relao conjugada entre instituio e sujeito se constitui uma fuso, uma

    incorporao, uma simbiose (Bleger, 1975), uma colagem imaginria (Kas, 1997) entre lugar

    social e indivduo, entre lugar na estrutura e elemento, o que resulta na produo de

    subjetividades e de determinadas imagens de pensamento (Deleuze, 2006) a partir da lgica

    institucional que se ocupa, seja do partido, da guerrilha, etc. As caractersticas da posio

    estrutural (e da prpria estrutura) passam a ser incorporadas como parte de si do elemento que a

    ocupa, numa evidente fixao, fuso e subordinao ao estrato. A posio estrutural ocupada pelo

    sujeito passa a ter uma funo de prtese psquica (Kas, 1979), como se fosse uma extenso do

    prprio ser, acoplando-se ao seu corpo, tornando-se parte dele. Dessa forma, a Instituio, o

    estrato, ao fazer parte do campo existencial do sujeito, passa a organizar seus pensamentos,

    afetos e comportamentos, enfim, sua subjetividade. Consideramos que em seu discurso h um

    protagonismo da instituio nos processos psicossociais.

    A partir dessas caractersticas e de outras que apresentaremos abaixo denominamos o

    discurso acerca das prticas polticas de Deputado de Estratopoltica. Consideramos que a

    Estratopoltica a modalidade discursiva que tem como primazia os processos de

    institucionalizao, em que a Instituio ocupa lugar central. Estratopoltica = estrato + poltica =

    exerccio da polis + estrutura. o agenciamento poltico que se baseia em estratos, lugares e

    posies que se ocupa dentro da estrutura institucional, numa prtica que valoriza mais o

    institudo e o cristalizado, ao invs do instituinte; os processos de fixao, ao invs do fluxo e do

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    movimento; os resultados ao invs do processo; mais a uma lgica do ser e do estado de coisas,

    do que pela lgica do devir. Portanto, a estrutura poltica ocupa papel central para as prticas

    polticas, como por exemplo, na constante referncia de Deputado organizao de uma

    associao, do papel de um partido, do lugar central do Estado, etc., que de certa forma o

    funcionamento majoritrio dos movimentos polticos no sculo XX. a forma de funcionamento

    poltico que as correntes majoritrias da esquerda historicamente esto implicadas, que na

    constituio de um partido revolucionrio, ou reformista, de uma pequena direo de vanguarda

    que vai operar a revoluo, ou a vitria eleitoral, para tomar e ocupar o poder do Estado.

    Como h o investimento e reconhecimento dos estratos, um agenciamento

    hierarquizado, que funciona atravs das relaes de domnio e submisso dependentes da

    posio social que se ocupa na estrutura, dependentes do estrato que se ocupa, em que o

    partido, o conjunto, tem predomnio sobre os elementos. E assim que entendemos a afirmao

    citada de Deputado sobre como se deu o processo de sua ida Guerrilha do Araguaia, quando

    diz (...) eu me coloquei discusso do PCdoB para ir para a preparao da guerrilha (...)

    (Deputado, 228-229). Deste modo, atribui Instituio-Partido a discusso e a deciso se deveria

    ou no compor o grupo de guerrilheiros que treinaria na regio do Araguaia, aderindo assim luta

    armada rural. Portanto, entendemos que a Estratopoltica um agenciamento hierarquizado, que

    preza as posies sociais, funciona numa lgica vertical e tende a movimentos de totalizao a

    partir de um rgo central, a partir de toda a Instituio. A relao entre elementos e estrutura se

    d como se os primeiros fossem incorporados pela estrutura, fundindo-se a ela e operando

    atravs da legitimao do seu funcionamento. Consideramos assim o Partido como a instituio

    expressiva da Estratopoltica, pois dotada de hierarquia piramidal e rgida, relaes de poderes

    estratificadas, regras institudas e tem como principal tarefa a luta pelo poder do Estado.

    Transio do perodo da luta armada democracia

    Neste tpico analisamos como este discurso apreende a transio da luta armada

    democracia. Abordamos alguns aspectos referentes de como esse agenciamento psicopoltico

    discorre sobre a luta armada e posteriormente como apreende a transio ao Estado democrtico.

    Da mesma forma que aborda positivamente os estratos transitados, consideramos que

    este agenciamento tambm busca trazer a positividade do estrato da experincia vivida na luta

    armada. Ao menos foram as consideraes que encontramos no relato de Deputado, que atribui

    ao momento da luta armada como uma etapa de vida rica e isenta de crticas. Citamos alguns

    trechos:

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    Da guerrilha ao Estado: a Estratopoltica

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    (...) a gente tinha uma vida coletiva com os guerrilheiros, muito intensa, muito solidria, porque era

    um projeto de luta coletiva, no era de um indivduo sozinho. Ento foi uma experincia, nesse

    ponto de vista, muito rica, muito forte, que mexeu muito com a vida da gente (Deputado, 257-260).

    At porque por uma necessidade, voc sabe que na guerrilha rural voc no sobrevive e nem se

    prepara sozinho, a tua vida depende do outro e vice-versa. Ento voc cria uma comunidade de

    ideais, de sonhos, muito forte, porque sua vida est na mo do outro e vice-versa. Ento era uma

    vida muito solidria, muito, vamos dizer assim, muito humana, porque a gente era tudo igual, o

    que um tinha o outro tinha, o que um fazia o outro fazia, no tinha diferena entre homem e

    mulher, tudo era igual, tudo! Ento era uma relao muito forte e depois se desdobrou nos

    enfrentamentos, nas torturas, nas mortes. Foi um processo muito violento, muito profundo, porque

    as relaes no eram relaes formais, eram relaes humanas, de vidas, de ideais, de

    compromissos, de uma gerao que trazia uma bagagem, vamos dizer assim, de muitos valores

    nesse sentido (Deputado, 273-282).

    Mas isso, quer dizer, todo mundo que vivia l, viveu intensamente. A gente no fez nada pela

    metade, tudo foi feito com toda a intensidade, se fazia cem por cento correndo todos os riscos.

    Todos os riscos se corriam, at o da morte, ento uma gerao que no tinha medo do risco,

    gostava do risco, gostava de viver perigosamente (Deputado, 348-351).

    E todo mundo vivia bem, no meu destacamento todo mundo vivia tranqilo, gostava da vida l.

    Que a gente tratava l com aquele sonho, com aquela idia de fazer a Revoluo a partir do

    Araguaia; era um sonho generoso e herico (Deputado, 372-375).

    Entendemos que seu discurso, estratopoltico, tende a trazer a positividade das vivncias

    nos estratos, antes dos percalos, visto que os relatos em grande parte enaltecem o sonho

    herico e as relaes de vida desenvolvidas pelo coletivo de guerrilheiros na regio do

    Araguaia6. H toda uma construo de figuras mticas e hericas, que tinham valores humanos e

    6 O maosmo foi o referencial de luta adotado pelo Partido Comunista do Brasil - PCdoB - que consistia na tentativa de

    ecloso da Guerra Popular Rural, pois considerava a guerrilha rural mais eficaz do que a guerrilha urbana. Desde 1966 deslocou guerrilheiros para a regio do Araguaia, para implantar uma guerrilha rural nessa regio, entre os estados de Par, Mato Grosso e o atual Tocantins, organizando dezenas de militantes nessa rea onde foi organizada a Guerrilha do Araguaia. Diferentemente da Guerrilha do Capara os militantes do PCdoB conseguiram ganhar a simpatia da comunidade, firmar bons laos com a populao local e, de certa forma, ganhar alguns adeptos para a causa revolucionria, pensando na consolidao do seu futuro Exrcito Popular. A partir de 1972, o Exrcito comeou a investir contra a Guerrilha do Araguaia, ocasionando conflitos e prises de militantes, como por exemplo, do nosso entrevistado Deputado. Contudo as duas operaes militares de 1972 no tiveram xito e a guerrilha conseguiu se reorganizar. Mas as investidas militares de 1973 e 1974, que foi a maior operao militar brasileira desde a Segunda

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    solidrios, uma vivncia coletiva e igualitria, que gostavam de viver sob o risco e lutavam a

    partir de um sonho generoso e herico de realizar a Revoluo contra a ditadura. Deputado traz

    em seu relato aspectos que heroicizam o coletivo de guerrilheiros que viveu, e morreu

    violentamente, na tentativa de construo do sonho da revoluo brasileira. Sua memria,

    agenciada de forma estratopoltica, opera um movimento de selecionar o que houve de

    positividade nessa experincia; sendo poucas as suas referncias aos eventos de conflito e

    sofrimento da Guerrilha do Araguaia. Em seu relato, diferente de outros guerrilheiros entrevistados

    para outra pesquisa (Hur, 2009), no apresenta nenhum tipo de autocrtica sobre as prticas

    polticas assumidas no perodo da luta armada. Deputado apenas realiza alguma crtica luta

    armada quando a compara com o atual perodo democrtico:

    A guerra isso, na guerra voc tenta eliminar o outro. A guerra e a ditadura eliminam a poltica. A

    democracia restabelece a poltica, aqui h confronto e negociao, voc no elimina o outro, voc

    ganha do outro. uma outra situao. E eu acho que a conquista da democracia foi fantstica,

    acho que com todos os defeitos, a melhor experincia da humanidade a democracia. No existe

    outra melhor que a democracia (Deputado, 540-544).

    Ento o que se constata nesse trecho como o estrato atual mais positivo que o estrato

    anterior, o qual adquire o sinal contrrio, tornando-se assim negativo em relao ao positivo; um

    estrato trocado e desvalorizado pelo outro. A crtica luta armada apenas aparece quando

    usada para enaltecer a democracia. O estrato da instituio democrtica considerado uma

    nova forma de atuao, uma nova forma organizativa, que favorece a democracia e a poltica,

    ao invs da ao da luta armada, que favorece as relaes de guerra e de violncia. Percebe-se

    tambm como nessa concepo no h a possibilidade de mediao, em que a guerra est

    separada da poltica, em que guerra e poltica so termos inconciliveis e contraditrios, dois

    aspectos (estratos) descontnuos.

    A transio da luta armada democracia no agenciamento estratopoltico justificada pela

    positividade do estabelecimento das instituies democrticas no pas, dos partidos, resultantes

    da abertura poltica e reorganizao dos movimentos sociais no fim da dcada de 1970:

    (...) A Histria te coloca escolhas, so escolhas polticas que voc faz. Na medida em que a

    guerrilha foi derrotada e a gente tinha que se reorganizar para trabalhar, para fazer poltica, a

    fazer poltica legal, que tambm o pas saiu da ditadura, ns no vivamos mais na ditadura, deixar

    isso claro. Quer dizer, em 64 havia uma ditadura, em 68 teve a ditadura dentro da ditadura.

    Quando ns samos da cadeia, voc estava num processo de abertura, depois teve a campanha

    Guerra Mundial, conseguiram destruir a Guerrilha do Araguaia. Contabiliza-se cerca de setenta guerrilheiros assassinados e dez presos pelas Foras Armadas (Pomar, 1980; Portela, 2004).

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    das Diretas, dos partidos, uma guerra com outras armas, com outros instrumentos e outros

    cenrios. como voc caminhar no fio da navalha, voc mudar a ordem por dentro da ordem

    caminhar no fio da navalha. Voc tem que mudar, mas por dentro da ordem. A nossa viso era

    quebrar a ordem para mudar, como a gente foi derrotado, a nossa escolha foi mudar a ordem por

    dentro dela (Deputado, 481-490).

    Deputado justifica a transio das prticas polticas da luta armada via institucional por

    dois fatores principais: a mudana no cenrio poltico do pas, em que houve o processo do fim da

    ditadura, e a derrota sofrida pelos movimentos guerrilheiros. Devido a essas contingncias sociais,

    para poder fazer poltica deveria fazer poltica legal, isto , a poltica via institucional. Ou seja,

    houve uma grande mudana do contexto poltico-social, que implicou na adoo de outras

    estratgias e tticas de se fazer poltica, outras armas, que no caso foi deixar o estrato

    guerrilheiro e seguir o estrato democrtico, a partir do trabalho institucional-partidrio. Nota-se que

    nesse fragmento ele utiliza a figurao da guerra, da via institucional ser uma guerra com outras

    armas, ou seja, aqui Deputado mantm a dimenso do conflito como relao de guerra que h na

    atuao poltica institucional pacfica. Dessa forma, entende-se que no discurso estratopoltico

    h a compreenso da existncia do conflito, das relaes de luta, mas relaes de embate que

    utilizam armas e ferramentas caractersticas do estrato que se est ocupando. Ento, na medida

    em que Deputado afirma o objetivo de mudar a ordem por dentro dela, assume uma viso

    institucional, que reconhece a existncia da estrutura e do estrato e a partir da tomada dessa

    estrutura organizada tenta transform-la. Portanto, a Estratopoltica no estrato estatal tenta mudar

    a ordem por dentro da ordem, mudar as condies sociais a partir das estruturas sociais

    institudas e organizadas e no mais atravs da ao direta e violenta do fuzil.

    No perodo da luta armada, Deputado considera que se objetivava quebrar o Estado, a

    ordem instituda, para transform-lo; todavia, agora na democracia, tem que se compactuar dos

    estratos pr-definidos e tentar alguma transformao a partir de suas formas institudas, em que a

    transformao se torna algo processual. Considera que essa atuao de transformar a partir do

    estrato estatal um trabalho complexo e arriscado como caminhar no fio da navalha. Essa

    figurao de caminhar no fio da navalha utilizada pelo Deputado expressiva por si s, pois

    conota a necessidade de manter um equilbrio e uma caminhada sem desvios (talvez seguir o

    ideal de esquerda) para que no cometa algum passo equivocado e se mutile pela ao da

    queda conjugada ao fio da navalha (talvez pelo efeito capturante do Estado). Ento, entendemos

    que Deputado justifica sua escolha poltica tendo em vista a consolidao do estrato institucional

    via Estado democrtico, ao qual aderiu e realiza sua militncia reproduzindo as normas do estrato

    via instituio partidria.

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    Ento no trnsito de prticas polticas, Deputado entende que se abandona a busca por

    uma ruptura com o Estado, para uma viso processualista da mudana social (Deputado, 527) em

    que se deve ocup-lo e transformar a sociedade a partir dele; deve-se buscar a transformao

    social a partir dos estratos constitudos. Nesse discurso justifica-se que na democracia h um

    processo de negociao que coloca na mesma mesa de negociao posies dspares e

    conflitantes, em que no precisam mais decidir o embate atravs do conflito direto e sim atravs

    do dilogo. Mas Deputado faz questo de salientar que h uma mudana de estratgia poltica,

    sem haver a mudana dos princpios polticos, ento: Eu costumo dizer que a gente mudou sem

    mudar de lado. Muda sem mudar de lado. Os lados dos ideais, das causas, os sonhos, so os

    mesmos, voc no mudou de lado, agora, voc muda porque as circunstncias histricas e as

    escolhas mudaram, nesse sentido (Deputado, 527-530). Muda-se a aparncia sem mudar a

    essncia. Mas ser que a mudana de estratgia e prticas no interfere nos princpios?

    O imaginrio de transformao social

    Aqui discutimos o que emergiu no discurso do entrevistado em relao ao agenciamento

    estratopoltico como estratgia para a transformao social. Pode-se dizer que a transformao

    social foi algo que sempre se ansiou e se lutou no pas, desde os conflitos coloniais contra a

    invaso ibrica at os dias de hoje. A transformao social que se lutou desde a criao desse

    continente, Amrica Latina, foi contra a opresso exercida pelos grupos dominantes.

    Mas o que transformao? Entendemos que trans-formar mudar a forma, ir alm da

    forma instituda, consolidada, mudar de um estado a outro, romper o estrato, fazer propagar o

    fluxo, dar maleabilidade linha de segmentaridade rgida, ou desarranjar a mquina, em que

    para isso funcionar, tem que se desarranjar (Deleuze & Guattari, 1976). A transformao uma

    maquinao em que se investe determinado quantum de energia para que um estado de coisas

    se transmute em outra coisa. Ento a transformao social o investimento de energia na busca

    da mudana da sociedade em seus diversos mbitos e, no caso dos militantes da guerrilha, o que

    se buscava transformar era a conjuntura poltica de opresso instituda pelo Golpe militar de 1964.

    Eles carregaram o imaginrio da transformao social frente s estruturas opressivas do Estado,

    em que esse imaginrio agiu como magma, efervescente, borbulhante, em ebulio, em que o ato

    de imaginar a transformao excedeu, transbordou a prpria imaginao produzindo ao social;

    uma atuao social de pegar em armas, de aderir luta armada, para conseguir levar suas lutas

    polticas contra a ditadura e por um outro projeto de sociedade.

    Seguir uma atuao estratopoltica para um militante de esquerda implica na conjugao

    do imaginrio de mudana com o estrato em que se transita. Por isso Deputado percebe

    diferenas nos resultados polticos entre o que idealizava antes, no perodo da luta armada, do

    que foi feito ao seguir a via institucional, as regras do jogo. Mas mesmo no tendo operado a

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    transformao social que idealizava no passado, exalta a positividade do papel transformador que

    a esquerda, representada pelo PT, cumpre atualmente no Brasil:

    E a fio da navalha tambm, fazer partido, disputar eleio, certas regras do jogo, enfim, todo o

    processo que a gente viveu, que eu avalio que foi um processo vitorioso, eu acho que hoje a

    esquerda brasileira est realizando seu projeto, de ter um pas mais justo, democrtico, mais

    soberano e melhorando a vida do povo. No era o que a gente idealizava, mas tambm ns

    estamos mudando o pas. Eu acho que esse processo que a gente viveu foi um processo muito

    rico, porque um processo histrico, porque o ser humano faz a Histria em determinadas

    condies. Tem a vontade e a conscincia, mas tem as determinaes da Histria e das escolhas

    (Deputado, 490-498).

    Deputado justifica sua atuao estratopoltica como sendo uma escolha que foi acertada,

    bem sucedida, que trouxe mudanas e bons resultados ao desenvolvimento de um pas mais

    justo e democrtico. Compreende que no foi a realizao da revoluo desejada do passado,

    mas sim a realizao de uma transformao social (melhorar a vida do povo) que se opera no

    Brasil no presente e que deixar boas marcas para o futuro, ou seja, trouxe tona a positividade

    de suas aes a partir dos estratos que transita. Deputado, como parte diretamente implicada com

    as prticas do Governo Lula, no faz nenhuma crtica ao governo, pois ele forma esse Governo,

    faz parte dessa mesma Instituio, desse mesmo estrato e do mesmo partido.

    O entrevistado afirma que a transformao est se dando com a esquerda no Estado e nos

    conta emocionadamente que a vitria do Lula foi a realizao do sonho da gerao da luta

    armada das dcadas de 1960 e 1970:

    Eu at fao uma imagem; quando eu estava preso e incomunicvel em Braslia, a gente brincava

    muito entre os presos nos intervalos de sofrimento, P, quando que a gente vai sair daqui?

    Vamos imaginar que no ano 2000 a gente sai daqui. Isso era 70, 72. Quando o Lula subiu a

    rampa era uma imagem daquele sonho que a gente imaginava, mas era outra coisa tambm, no

    era bem aquela Revoluo, da ruptura, do confronto, era uma outra maneira de fazer a Revoluo,

    que a Revoluo, voc tem que ter um entendimento processual e de contedo, no !? A

    Revoluo de 68, de 70, era muito o momento, o confronto, ns tivemos que ir para uma luta de

    idias, uma luta de disputa, uma luta mais complexa, mais difcil at. E eu acho que est valendo a

    pena esse processo, est valendo a pena. Eu sou otimista com o processo que a gente est

    construindo no Brasil, acho que tudo isso que a gente viveu valeu a pena e eu no me arrependo

    de nada, porque o Brasil est melhor e a nossa gerao, que somos sobreviventes de uma

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    gerao, ela se somou com uma gerao nova, que tambm est cumprindo seu papel, que no

    viveu o que a gente viveu (Deputado, 500-513).

    Entende-se nessa modalidade de discurso que o imaginrio de transformao social se

    fixa ao Estado, fixa-se vitria eleitoral de Lula, quando ele se torna a figura mais importante do

    cenrio poltico do pas. No entanto, Deputado busca conectar o imaginrio da transformao

    social da gerao da luta armada, do passado, ocupao das instituies do presente, mas

    numa outra modalidade de revoluo. No numa ruptura, no atravs das armas e subjugao

    do inimigo e sim atravs da via institucional, que tornou a transformao social processual e no

    imediata. O imaginrio da revoluo das dcadas de 1960 e 1970 se encarna na estrutura estatal

    da atualidade. Percebe-se ento que o lugar da transformao ocupar o estrato estatal,

    imaginrio tradicional dos projetos dos partidos comunistas em tomar o poder do Estado para

    transformar o mundo. Ento no discurso estratopoltico h um governo com valores de esquerda,

    a Instituio-Estado com os princpios de esquerda, numa conexo entre estrutura poltica

    existente e valores polticos defendidos. Na conjuno entre estrutura institucional poltica e

    valores de esquerda, no h mais o ideal da transformao imediata e sim uma transformao

    processual, que vai se construindo, estrato aps estrato.

    Quando perguntado sobre as crticas que o PT recebe dos partidos de extrema-esquerda,

    devido aliana com setores do empresariado e a manuteno de polticas neoliberais, Deputado

    retoma seu discurso da lgica de um Governo de esquerda que realiza uma transformao

    processual e que deve ser implicado:

    Eu acho que uma crtica, uma crtica estril, com todo respeito, estril do ponto de vista poltico.

    Ela uma crtica impotente, porque nas condies polticas do Brasil, ns estamos fazendo um

    governo com os valores de esquerda e estamos mudando o Brasil. Eu acho que a gente no pode

    fazer uma crtica nem de saudosista e nem uma crtica, vamos dizer assim, como espectador.

    Seria muito fcil eu me refugiar na minha vida fazendo uma crtica sem me comprometer. Mas eu

    tenho que, quando eu fao campanha, quando eu vou para a periferia, quando eu vou para as

    cidades, quando eu converso com as pessoas, quando eu vou num debate no sindicato, quando

    eu defendo uma proposta no parlamento, eu estou fazendo luta poltica, nas condies de hoje.

    Ento eu respeito essas crticas, mas no concordo com elas, porque o critrio, primeiro, o critrio

    para ser de esquerda voc lutar pela igualdade social. Ns estamos lutando, processualmente.

    Segundo, voc no pode ser espectador, voc tem que ser militante de um processo de

    transformao, eu acho que o Governo Lula est mudando o Brasil. Ns no podemos ser

    espectador dele, ns temos que participar, voc pode fazer crtica, voc pode fazer observaes,

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    mas esse o processo que est em curso, ento eu discordo da crtica da outra esquerda,

    respeito, mas discordo (Deputado, 579-593).

    O agenciamento estratopoltico naturaliza os estratos existentes, o debate poltico via

    institucional, legitimando-os como ponto de partida da prtica poltica. Ento em relao s crticas

    que o PT recebe da outra esquerda, Deputado contra-ataca afirmando que ela deve se engajar,

    participar e militar para o processo de transformao, portanto no deve ficar apenas num papel

    de espectador. Atribui aos grupos que criticam o papel de meros observadores, como se no

    participassem da vida poltica do pas. A sua noo de participao poltica tributria da

    concepo de participar da luta poltica no mesmo estrato em que est, no Estado, pois estar fora

    desse estrato, atuar de outra maneira, no participar, sustentar uma crtica estril e

    impotente.

    Quando questionado sobre o processo de negociao com alguns setores da direita que

    so continuidade da ditadura, mantm a mesma posio em defesa do estrato institucional

    democrtico; a democracia continua como justificativa, mas no caso, uma democracia

    estratopoltica: Na democracia voc convive com o outro lado, que voc tem que conviver. Voc

    pode sentar na mesma mesa, desde que voc saiba qual a cadeira e o lado que voc senta,

    voc no pode mudar de papel e eu nunca mudei de papel. Eu posso conversar e negociar com

    qualquer cara de direita, mas eu sei qual meu lado e a cadeira (Deputado, 571-575). Portanto,

    Deputado faz questo de afirmar que mesmo com a mudana do lugar do campo de batalha, da

    Instituio-Guerrilha para a Instituio-Estado, mantm os mesmos princpios polticos de outrora

    que aspiram o imaginrio da transformao social:

    (...) eu fao tudo em nome de causas e sonhos, eu no tenho nada, eu no tenho nenhuma busca

    de interesse, nem de riqueza, eu no tenho renda, eu no tenho riqueza, eu no me formei,

    entendeu. Quer dizer, a poltica para mim ela est fundamentada em sonhos e causas, est

    certo!? Eu continuo primeiro um lutador de sonhos. Segundo, as coisas mudaram, as

    circunstncias e as escolhas polticas mudaram, ento eu mantenho uma espcie, um cordo

    umbilical que no se quebra e nem se corta. E voc vai num processo de nova construo

    mantendo o cordo umbilical dos anos 60 e da guerrilha. Eu me vejo assim. At porque isso a

    gente guarda e leva com a gente para onde a gente vai. Porque quando se vive uma coisa

    intensamente ela no sai de dentro de voc, essas coisas esto muito vivas e presentes e por

    qu? Porque eu fiz cem por cento, eu no deixei de fazer, eu no fiz nada pela metade (Deputado,

    550-560).

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    A partir desse segmento constata-se que se mantm o imaginrio de transformao social,

    contudo um imaginrio que deve ser encarnado no estrato, na Instituio-Estado, uma instituio

    que promove mais a conservao do que a mudana, mais a reproduo dos estratos institudos,

    do que a produo de fluxos instituintes (Holloway, 2003; Deleuze & Guattari, 1997). Mas ser que

    essa conexo traz resultados para as demandas histricas da esquerda e da sociedade

    latinoamericana?

    Ainda no temos resposta para tal questo, visto que a experincia da esquerda no

    Estado, no Brasil e na Amrica Latina, bastante recente. Em sua fala, Deputado se escora na

    palavra processo repetidas vezes para falar sobre a mudana que a esquerda pode prover a

    partir da maquinaria estatal.

    O Governo Lula hoje tem uma aceitao muito grande, mas no primeiro ano fomos muito

    criticados, mas assim tambm se a gente tivesse feito uma Revoluo. Voc no atende

    materialmente todas as esperanas, todas as expectativas da noite para o dia, voc tem que ter

    noo de processo, eu acho que essa noo de processo que faz a gente avanar, por isso que

    eu me sinto realizado, eu no me sinto frustrado, eu me sinto realizado com esses sonhos que

    marcaram minha histria de 42 anos, eu tenho 42 anos de militncia poltica (Deputado, 643-649).

    A noo de processo, desse porvir da transformao, torna-se palavra-chave em seu

    discurso para pensar a esquerda no poder do Estado. Pensar e colocar a questo em termos de

    processo a predominncia da reforma na clssica discusso de esquerda entre reforma e

    revoluo. No s Deputado utiliza a palavra processo, como tambm utiliza imagens que j

    citamos de gerir o Estado sem quebrar (Deputado, 633-634) e mudar a ordem por dentro da

    ordem (Deputado, 490). Mantm assim a idia de uma transformao social processual, em que

    a reforma deve ser feita processualmente no dilogo e na negociao peculiares democracia na

    via institucional. Mesmo que Deputado repita que mantm os valores e princpios polticos de

    outrora, entendemos que estes valores acabam por ser aplainados pelas regras e normativas da

    Instituio-Estado e por sua burocracia, despotencializando assim os processos de

    transformao. Citamos um ltimo trecho de sua entrevista, em que nos parece emblemtico

    como a luta poltica pela transformao social acabe contingente e achatada pelos mecanismos

    da maquinaria estatal, em que o poltico no seria reduzido aos processos estatais, mas sim

    totalizado por este aparelho:

    (...) defendo que o processo de transformao se d pela via democrtica, disputando eleio,

    pressionando, com derrotas e vitrias. Eu tenho um compromisso militante com os mesmos

    valores que me orientaram no Movimento Estudantil e no Araguaia, os valores de uma sociedade

    sem explorao, sem discriminao. Para mim to radical estar numa plenria como eu estava

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    ontem do LGBT, como eu estava numa plenria do MST, como eu estava numa greve, eu acho

    que a luta poltica ela , a liberdade do ser humano tem que ser ampla e completa, no

    departamentalizada (Deputado, 686-693).

    No agenciamento estratopoltico o imaginrio da transformao social torna-se contingente

    aos estratos institudos, a partir de seus espaos tradicionais, como a plenria, seja do movimento

    de lsbicas, gays, bissexuais e transgneros LGBT, ou do Movimento Sem Terra MST.

    Portanto, dirigir o Estado para transformar a sociedade torna-se o grande objetivo, em que a

    prtica poltica transformadora deve ser realizada a partir desses estratos. Citamos outro exemplo,

    do final da dcada de 1980, em relao organizao das finanas do municpio de So Paulo

    realizada pela ex-prefeita Luza Erundina (PT), que na poca foi alvo de crtica mordaz de Lula:

    Essa mulher (a prefeita de So Paulo pelo PT, Luiza Erundina de Souza) s me fode; agora lhe

    ocorre decidir que vai colocar as finanas da prefeitura em ordem e vai suspender todas as obras

    pblicas. Essa mulher pior que o antigo governador (membro do PMDB) Franco Montoro, que

    disse que era contrrio s grandes obras, mas nem sequer fez pequenas obras. Contudo, ele teve

    todo um perodo de quatro anos para se recuperar; para mim s tenho os cinco meses de

    campanha que restam (Neumanne7 citado por Castaeda, 1995, p.179, traduo nossa).

    Contata-se que as duras crticas de Lula feitas sua ex-companheira de partido referem-

    se a uma questo eleitoreira, em que organizar as finanas do municpio seria secundrio em

    relao realizao de obras pblicas. Pois fazer obras traria maior visibilidade s gestes do PT

    nos municpios para a opinio pblica, o que poderia contribuir com a campanha eleitoral de Lula

    para a presidncia do pas no ano de 1989, resultando assim num maior ganho de votos, para que

    chegasse ao estrato do poder. Tal fala demonstra que mais importa aceder ao poder do aparelho

    estatal do que organizar a gesto, tal como Erundina estava fazendo. A crtica de Lula chegou a

    tal ponto, em que compara a ex-prefeita a um poltico de um partido adversrio, afirmando que ela

    chegava a ser pior que ele.

    Em sntese, compreendemos que na Estratopoltica h uma atuao pelas posies na

    estrutura, institucionais e no Estado, que prioriza o estrato e o investimento do desejo no estrato;

    investe-se nas estruturas, deseja-se as estruturas. Ento o que importa quem est no Partido e

    no Estado, quem tem algum cargo poltico importante, como presidente, governador, prefeito,

    deputado, etc., pois mover-se por estratos ocupar um espao e fixar-se nele; como se os

    estratos fossem degraus na hierarquia institucional. E nesse processo h o predomnio de

    movimentos de fixao, territorializao e sedentarizao. o famoso discurso dos grupos

    7 Jos Neumanne. Atrs do Palanque: Bastidores da eleio 1989. So Paulo: Ed. Siciliano, 1989, p.78.

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    polticos de ocupar os lugares institucionais. Ento, ao considerar que um agenciamento feito a

    partir dos estratos e da ocupao das instituies, entendemos que a lgica da

    representatividade, do um representando os outros, a que impera nesse agenciamento.

    Portanto, a democracia representativa expresso da Estratopoltica, pois o interesse se funda

    sobre quais elementos ocuparo os distintos lugares da estrutura, em quais elementos podero

    representar e decidir a vida dos outros.

    Tal agenciamento pode culminar numa espcie de culto personalidade ao elemento que

    ocupa posio destacada na estrutura, algo que os movimentos revolucionrios de esquerda

    sempre tentaram evitar em discurso, mas que raramente conseguiram rechaar na prtica,

    constituindo-se assim lideranas carismticas, irrefutveis e quase mitolgicas. Por isso pode

    haver um mecanismo de funcionamento prximo dos Estados Imperiais, por fixar suas atuaes a

    partir das posies ocupadas pelos elementos, e por sobrecodificar os processos sociais a partir

    do corpo do dspota (Deleuze & Guattari, 1976), do soberano, do imperador, como o que ocorreu

    com Stlin, Mao Ts-tung, Fidel Castro, etc. Contudo, h que se ressaltar que nessa vinculao

    ao estrato o sujeito no apenas goza de seus privilgios, mas tambm de uma servido a essa

    estrutura; beneficirio, mas submisso a ela, tem seu bnus, como tambm o nus, tal como o

    clssico personagem literrio Fausto de Goethe. No apenas usufrui do lugar social ocupado,

    como tambm tem que servir a tal lugar. Fausto pode ser visto como figura emblemtica da

    Estratopoltica.

    Consideraes finais

    A transio poltica de Deputado da luta armada poltica institucional se deu a partir de

    um funcionamento singular que denominamos de Estratopoltica. Este agenciamento deriva-se

    dos processos de conexo entre sujeito e instituio, da codificao das prticas polticas via

    lgica de Estado. A racionalidade de Estado tem primazia no funcionamento poltico e formadora

    de um determinado tipo de subjetividade. H um investimento desejante nos estratos, em que as

    estruturas e as instituies, conseqentemente o Estado, assumem posio central e fundamental

    para as prticas polticas do sujeito. Nesse agenciamento h um desejo de fixao e incorporao

    da estrutura institucional para a realizao de aes polticas, havendo uma espcie de simbiose

    com a instituio (Bleger, 1975), ou o que Kas (1997) chama de colagem imaginria, visto que

    os estratos so parte formadora do campo existencial do sujeito, em que as posies ocupadas

    so imprescindveis para o fazer poltico. Ento, nessa modalidade discursiva notamos uma

    institucionalizao das prticas polticas em que ela deve ser exercida e mediada a partir dos

    estratos, a partir do investimento desejante nas instituies, havendo assim uma captura-conexo

    do desejo pelo estrato.

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    Consideramos, a partir da entrevista de Deputado e da teorizao de Deleuze e Guattari

    (1997) sobre o Estado enquanto Aparelho de Captura8, que a prtica poltica, seja de Estado, de

    partidos e movimentos sociais, seja da direita ou da esquerda, tem a tendncia de funcionar de

    modo estratopoltico, com o investimento no estrato e prticas de conservao, ou seja, com o

    desejo de tomar e controlar o poder do Estado. Hipotetizamos que foi um agenciamento

    caracterstico de muitas organizaes polticas de esquerda no perodo da ditadura militar, visto

    que muitos coletivos ainda se estruturavam sob a forma de partido, na hierarquia e tinham como

    objetivo a tomada do poder do Estado; a conquista do estrato estatal. Vale ressaltar que a

    afirmao de que muitos partidos e movimentos sociais atuem de forma estratopoltica, no quer

    dizer que direita e esquerda polticas sejam a mesma coisa. Compreendemos que h a

    coexistncia das distines ideolgicas entre os distintos segmentos, com o funcionamento

    estratopoltico. Ou seja, o agenciamento estratopoltico refere-se a um tipo de funcionamento das

    prticas polticas, a uma modalidade de razo governamental, sendo independente em relao s

    ideologias.

    Nesse funcionamento de investimento nos estratos, h um movimento em direo s

    estruturas, num desejo de fixao e perpetuao nos lugares institucionais. Dessa forma, ocorre

    uma inverso, num processo de burocratizao (Michels, 1982; Bleger, 1980), em que os meios

    se tornam os fins, por exemplo; determinado grupo poltico estar mais preocupado em manter-se

    no poder do Estado do que realizar as prticas polticas de sua plataforma. Ento estar mais

    implicado nos meios para continuar na instituio, do que utilizar a instituio para ocasionar

    transformaes sociais na sociedade. A instituio deixa de ser a ferramenta de gesto para a

    transformao e se torna o objetivo final, ou seja, continuar na estrutura torna-se mais importante

    do que o que se pode fazer nela. Nessa lgica, o poder sobre (potestas) adquire primazia sobre o

    poder fazer (potentia).

    Dessa forma, esse desejo de perpetuao na Instituio, no Estado, pode gerar os

    fenmenos mais contraditrios, como por exemplo; ter uma plataforma poltica horizontalizada,

    mas prticas e hierarquia totalmente verticalizadas; defender a democracia, mas ter prticas

    autocrticas, ou seja, gerando uma contradio entre ideologia e prticas exercidas. Muitas vezes

    h uma ciso entre prticas e ideais, em que acreditar no discurso do ideal uma maneira de

    justificar as prticas contraditrias

    Um exemplo j citado foi a recente defesa do PT em 2009 ao senador Jos Sarney,

    acusado de praticar inmeros atos de improbidade administrativa. Em nome de sua aliana com o

    8 O Estado, que pode ser entendido como a Instituio maior de uma sociedade, formada por uma segmentaridade

    dura, muito rgida, molarizada, estratificada. No s est ligado questo da gesto poltica do territrio, das pessoas e da sociedade, como tem como maior funo a sobrecodificao dos fluxos sociais e das semiticas primitivas, reterritorializando as condutas e prticas, procurando codificar os fluxos sociais em estratos, freando o movimento, tendo essa funo de captura do desejo, criando identidades fixas e estticas, reduzindo a multiplicidade a uma lgica binria; para Deleuze e Guattari (1997) o Estado o Aparelho de Captura, que concretiza o movimento de codificao do social.

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    PMDB, o ex-Presidente Lula e o PT, arranhando suas imagens com a opinio pblica, salvaram

    da cassao o ex-presidente do Senado. Esse foi um caso explcito de como o PT, numa

    estratgia para garantir sua manuteno no poder, no se preocupou com os seus antigos

    discursos sobre tica no governo, defendendo um poltico que cometeu atos de infrao; nesse

    caso, o desejo pela manuteno da governabilidade do pas abandonou a tica. Ento,

    compreendemos que para a esquerda manter-se no poder estabelece alianas polticas com

    determinados segmentos sociais que tm uma plataforma poltico-ideolgica distinta. Reproduz

    assim as prticas clientelistas e capitalistas e no fomenta prticas polticas transformadoras, para

    manter assim a estrutura constituda e consolidada.

    Portanto, a partir do investimento nos estratos, consideramos que a conduta estratopoltica

    pode ser uma das explicaes para a manuteno do mesmo e de prticas conservadoras no

    Governo, mesmo quando o grupo dominante de esquerda e tem um projeto poltico

    transformador. Esse poderia ser um dos caminhos para pensar por que tantas revolues se

    fixaram no momento da ditadura do proletariado, criando regimes polticos, em muitos casos, mais

    autoritrios que os de outrora, com extrema centralizao do poder, hierarquias rgidas, culto

    personalidade dos lderes, sobrecodificao das condutas, etc. Ento, em muitos casos o ex-

    guerrilheiro no sofre uma captura lgica estratopoltica, mas sim, adere a ela, ou j est

    agenciado dessa forma.

    Como h o acoplamento ao Estado, nesse agenciamento todos os projetos de

    transformao social so imaginados a partir dessa instituio, numa transformao de cima para

    baixo, numa prtica reformista, processual como foi salientado por Deputado, em que se

    defende mudar a ordem dentro da ordem. Mas, ser que mudar a ordem dentro da ordem

    possvel? Ou melhor, ser que uma prtica estratopoltica tem potncia para fomentar

    transformaes sociais e polticas, seja na sociedade ou no Estado?

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