chasin, da razao do mundo ao mundo sem razao

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filo f- / cadernos ensaio SÉ«E GRANDE FORMATO HARX HIMU BC - FSA M0018931 10018931 J. Chasin (Organizador) Karl Marx István Mészáros Bert Andréas Florestan Fernandes Friedrich Engels Henrique Lima Vaz V. I. Lênin Jaime Labastida Georg Lukács Maurício Tragtenberg António Gramsci Ricardo Antunes CtNTOftAENSAK) 1987

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filo f-

/

cadernos ensaioSÉ«E GRANDE FORMATO

HARX HIMU

BC - FSA

M001893110018931

J. Chasin(Organizador)

Karl Marx István MészárosBert Andréas Florestan FernandesFriedrich Engels Henrique Lima VazV. I. Lênin Jaime LabastidaGeorg Lukács Maurício TragtenbergAntónio Gramsci Ricardo Antunes

CtNTOftAENSAK)

1987

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Marx - Da Razão do Mundoao Mundo Sem Razão

* J, Chasin

"Decerto, è muito difícil dizer: mudemosas coisas, busquemos novas possibilidades,tememos transformar os partidos, discutir,

fazer análises, tentemos compreender a novaestrutura social, elaborar novos programaseconómicos. Pode ser difícil: mas tudo isso énecessário, não há alternativa. Como tam-bém é necessário saber que há coisas quenão podem ser feitas do dia para a noite."

Para Mudar a VidaAgnes Heller

Introdução

Sem mito e sem mística, da morte de Marx aos diasatuais verte um século de inaudita complexificação: do ho-mem, da sociedade e da história em suma, do ser social

Sociabilidade implexa, por cujos gomos e condutos ex-pande a figura intelectual e política do filósofo alemão, aomesmo tempo que por diversos modos é contestada e com-batida com sutileza e ferocidade crescentes.

Marginando a centúria de 1883 a 1983: fins dos anos oi-tocentos, pouco mais de uma década após a erupção e der-rocada da Comuna de Paris, do nascimento de Lênín, daunificação nacional alemã e da conclusão do mesmo pro-cesso na Itália; cinco anos antes da abolição da escravaturae seis antes da proclamação da República no Brasil; mas de

Professor do Departamento de Filosofia da UFMG.

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três décadas antes da revolução bolchevique e quase um sé-culo depois da Revolução Francesa; cinquenta anos antesdo ascenso de Hitler e trinta e cinco depois do massacreoperário, em junho, nas barricadas de Paris; quase duas dé-cadas depois da Syllabus Errorum de Pio IX e nove antesda morte de Allende; dois anos antes do nascimento de Lu-kács e quase setenta depois da queda de Napoleao e setentae cinco depois da publicação do Fausto; mais de um séculodepois do aparecimento da Riqueza das Nações e menos deuma década antes da Rerum Novarum; cerca de setentaanos depois da publicação da Ciência da Lógica de Hegd,e mais de sessenta antes de Hiroshima e em torno de no-venta antes de Medellín e Puebla; cerca de vinte depois dacriação da I Internacional e quase cem antes do estupro daComuna de Gdansk.

Da morte de Marx ao presente, uma centena de anos ataa Comuna de Paris à Comuna de Gdansk. Ambas, semcondução marxista, prenunciam, nas suas derrotas, o ad-vento de novas histórias, nada estranhas à prospectiva mar-xiana.

De Paris a Gdansk vai um enredo histórico sem paralelo.Não só enquanto processo exuberante da universalizaçãodo capitalismo, e da ruptura de sua hegemonia sob a emer-gência de um sistema de acumulação pós-capitalista. O iti-nerário de uma Comuna u outra totaliza uma complexifica-Çao da sociabilidade posta em crise radical. No todo, ummundo em crise - pela crise geral de suas partes, eis a uni-versalidade em que se dá o transcurso do Centenário deMarx.

O exame hoje da herança marxiana, no atendimento pró-prio à sua posição crítica e metodológica, não se esgota nosaber e na prática revolucionária intrínsecas ao capitalismo.Compreende, de modo necessário e decisivo, a grave pro-blemática oriunda das formações que, simultaneamente,não efetivam nem o capitalismo, nem o socialismo, bemcomo o estudo urgente da razão social de um conjunto deposições teórico-politicas que propalam a chamada "crisedo marxismo". A certa altura, Lènin deparou com urnaquestão do mesmo talhe: por que alguns buscavam, porexemplo, "completar" Marx com as teorias de Mach? O fe-nómeno, na atualídade mais intrincado, esparrama-se porum leque maior e por uma gama que alcança a tonalidadeda pura negação de Marx. Por que "completar" ou "refun-dir" Marx com Sartre, Heiddegger, Husserl ou Kant, e até

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mesmo, no extremo, dá-lo ceticamente como moribundo eembebê-lo na cânfora "radical" de tisanas políticas e epistê-micas vencidas?

Ortodoxa e não dogmaticamente (a nenhuma má-íe sejalícito confundir estes termos), é genuíno resgatar e retraba-Ihar para a dialética marxiana tudo quanto haja sido, compertinência e validade, percebido e aflorado por correntesdistintas dela. E não foi outra a atitude de Mane ao instaurar elevar à frente sua própria concepção. Contudo, não é distoque se trata aqui. Remete-se ao que diz respeito aacréscimos e reordenações, a supressões e.remanejamenlosa vários níveis, de maneira que fica alterada a própria inte-gridade ontológica e lógica da propositura marxiana; porconsequência, sua expressão política. (Que seja inverso osentido da determinação, na raiz genética sotoposta às me-diações, não é aqui relevante). E tudo na admissão inde-monstráda de que o logos marxiano careça de fôlego intrín-seco para sua congénita expansão e desenvolvimento filosó-fico/cientifico. De um pólo a outro, para "acudi-lo" ousufocá-lo, a prática das "colagens" ou "composições", mul-tiplicável ao infinito,' tem sido engalanada acriticamentecom o cariz da renovação, da prática teórica livre eavançada, às custas em especial da corrosão e do tolhí-mento do próprio saber marxiano e de seu ilimitado poten-cial de ampliação e desdobramento marxista. Revelando na-tural e sintomática preferência pelos "rebentos ilegítimos",as "colagens", em gritante desmentido ao seu orgulhoso"vanguardismo", nutrem e engordam obstinadopreconceito, até mesmo contra os possíveis "filhos legíti-mos" do património marxiano, para não falar de outrosdescendentes.

Posto e reposto o drama do socialismo de acumulação(atual, real, ou como se queira), hoje toda a manifestaçãode desconfiança autêntica é legitima. Toda inquirição ge-nuína está na ordem do dia. Desconfiança e inquirição paraas quais nenhuma dimensão do teórico ou do político ficaexcluída ou interditada'. Tanto quanto, de outra parte, é im-perativo, com igual força, recusar toda negação banal, sub-reptícia ou "irritadiça" da herança intelectual marxiana,bem como de seu genuíno potencial de desenvolvimentomarxista.

Em suma, a corrosão da herança marxiana corre porconta, em especial, de dois agentes: 1) a crise global do mo-vimento comunista, resultante, em primeiríssimo lugar, da

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falência do socialismo de acumulação, com todas as suasmazelas, destacadas aqui, as suas muito justamente execra-das contrafações teóricas; 2) de uma postura intelectualrecrudescente, oriunda e alimentada pela dupla crise domundo contemporâneo. Atitude teórica que, na tessituradas "colagens" ou "composições" alcança, em alguns ca-sos, fino e elevado padrão reflexivo, cujos produtos, cm certonúmero, merecem verdadeiro respeito e exigem exame de-tido. Ademais, não são descartáveis com a simples miradade indignação displicente de quem, a contragosto, se vêobrigado a olhar para "flores do mal". Nem o fascínio e aarrogância destas são passíveis de legitimo e eficiente com-bate, a não ser por meio de fascínio maior c arrogânciaredobrada, que nascem do que possa ser a própria ultrapas-sagem da arrogância: a convicção da certeza, que aceita odesafio de se pôr e de se expor às provas da verificação.

Por outro lado, não cabe mais silenciar: hoje, a grandemoda filistina não é falar de Marx, mas contra Marx. Desdeo afetado "grand monde de fesprit", até ao círculo abafaoodos "pauvres d'esprit" a grande curtição é desvalíar o patri-mónio político e intelectual marxiano.

Há que desvelar que toda uma ironia de nervo à flor dapele, voltada hoje contra o marxismo (pense-se antes no efe-tíváveí do que no efetivado), provenha, pelo menos emparte, da alternativa tornada impossível de simplesmente ig-norar ou descartar, em qualquer área ou nível, o ideáriomarxiano. Erriça-se a contrapartida da simulação, em espe-cial o exasperante aparentar para si mesmo de que as "ge-nerosas" (ah! quanta piedade) teses de Marx são, no mí-nimo, problemáticas, ao menos insuficientes, em todo casocarentes de revitalizaçÕes híbridas. Tudo em clima develaturas do espírito, transpassadas pelo desfile em fibrila-çao das pretensas demandas de "rigor", (aliás, trata-se detema em declínio ...) que, em fastio, nunca se dão por aten-didas (em verdade nunca demasiadas, quando não preten-sas). A enevoar quase tudo, acre nostalgia pela "certeza",dada a um tempo como perdida e impossível. O requebrado,em suma, na ginga que vai do desdém ao mistificante, inde-pendentemente da nobreza de propósitos. Ideologia (no piorsentido) do rigor e da certeza, a levantar muralhas a maisao exercíco legitimo e necessário do próprio rigDr e da própriacerteza, sem os quais o marxismo insubsiste, (como já o tor-noi mais do que evidente a contrafaçàb stalianiana), razão pe-la qual é - e tem de ser - o mais radical de seus postulantes.

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Contudo, o sarcasmo, hoje, que ceticiza o marxismo, temcomo pré-juízo a depreciação de'toda certeza, antes da pró-pria desvaliação do marxismo. Ao tempo que corre, nãoapenas qualquer certeza traz algo ponderável da efetivaçãocognitiva desenhada pelo saber marxiano, como oindeterminado, nas condições da dupla crise contemporâ-nea, assumiu a qualidade de moldura e substância da "liber-dade". Donde, como é palpável em dadas praçus e círculos,um certo gosto, ora mundano ora raivoso, pelo "fracasso"ou pela "impossibilidade" do saber. Uma espécie de deleitecorrompido, que por si só traduz mais do que as meras con-jecturas sobre a opacidade intransponível das coisas, ou so-bre a igualmente insuperável limitação do entendimento.

Do útero apavorante da dupla crise contemporâneabrota o terror da certeza e a revolta do dessaber, perversãoda legenda socrática, como a exorcizar o devir pelo cancela-mento da razão.

Na bruma deste fim de século, quando è tão erudito eprestigioso fazer passar, sobre as passarelas filosóficocientificas, um novo ceticismo, que embora não nasça nemse destine, em linha rela, apenas e para a neutralização deMarx, contra estd lança todo seu poder de fogo, quandotantos apostam contra a letra e o espírito marxiano, seja-mepermitido, isto ao menos, - aposta por aposta - fazer a mi-nha em beneficio de Marx. Aqui fica: a favor do saber quefaculta e do gesto possível que ele reclama.

Agora, princípio.

I - A Dupla BarbárieA complexiScação da sociabilidade - nas formas emanadas

dos últimos cem anos, tal como demarcadas pelas erupçõese derrotas pressagas das Comunas de Paris e Gdansk -acabou por desbordar em crises sem precedentes - docapitalismo e do socialismo real, redundando numa entifi-cação da contemporaneidade tecida e involucrada por umacrise global e universal, que submete a generalidade das lati-tudes e longitudes - geográficas e ideológicas.

Quase a um só tempo, por roteiros diversos, porém cone-xos, os doís sistemas mundiais ultrapassaram os limites depossibilidade para prosseguir velando com credibilidadeseus impasses, e tem estreitadas as condições para conti-nuar, com resultados estáveis, os jogos de dilação e desloca-mento de suas contradições especificam. Postos em crise in-dísfarçável, exibem com brutalidade os perfis de uma duplabarbárie.

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A barbárie é, em primeiro lugar, a barbárie do capita-lismo, em especial a do capitalismo avançado, no geraTmaisantiga e um tanto melhor conhecida. É, em segundo lugar, abarbárie do socialismo atual, ou seja, a "miséria" do socia-lismo de acumulação.

Em delineamento sumário - à semelhança da fórmulamarxiana de "miséria alemã" (originariamente sintetizadapara designar processo e resultantes da objetívação capita-lista retardatária, conciliada a vetores sociais da formaçãoa ela precedente), e refundida para efeito de transposição aum quadro pós-capitalista -, miséria do socialismo de acu-mulação remete ao conjunto de eventos e problemas,, queredundam das tentativas de transição ao socialismo, quandoefetivadas, como todas o foram até hoje, a partir de paísesatrasados. Os chamados elos débeis da cadeia capitalista,condicionantes de largos processos imperativos de acumu-lação económica que, em países desenvolvidos, transcorremnormalmente sob dominação capitalista. Transições queevidenciam, à saturação, não apenas fracasso estrutural namontagem du formação socialista, como se manifestamtambém enquanto espaços históricos da produção e da rei-teração ampliada da ofensa social e da alienação. Ou seja,reajustando os tempos verbais de um vaticínio da IdeologiaAlemã: "Com a carência recomeça novamente a luta pelonecessário e toda imundície anterior é restabelecida".

Barbáries, em suma, gestadas ambas, em suas diversidades, pormomentos distintos da mesma lógica perversa "do capital.

l - No primeiro caso, na crise atual do capitalismo hiper-maduro, o desenho que se mostra, do tópico ao profundo, éa do colosso desgovernado/desgovernante. Complexo mo-vente/movido que, pelo seu próprio estatuto, roeu seus con-troles e devorou seu nexo./ No gigantismo de sua híper-maturidade perdeu a proporcionalidade interna, e com estaos recursos compensatórios que era capaz de engendrar emfases anteriores. Hoje, os vasos comunicantes, pelos quais osistema se repõe, co-exibem a simultaneidade de uma pertur-bação estrutural permanente e irreversível, a despeito deleconservar, ainda que essencialmente de forma manjpula-lória, ;i capacidade de recorrer a reciclagens periódicas, re-duzidas, por certo, à condição de atos da pura gerência con-tinuada de uma crise ininterrupta. A descompensaçãointrínseca já parece obrigar o próprio circuito imperialista aconfundir, em clima de 2001, as colunas do- Deve e do

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Haver, fazendo do sagrado Livro Caixa peça profana demuseu.

Tomo de Giannotti a tónica da medida (sem que istocompreenda de imediato, outras adesões, em especial porsua contextura fenomenológica) e com ela medeio:"Quando a medida deixa de funcionar, o sistema entra emcrise" (Trabalho e J?e/7exao/Entrevista ao Folhetim).

Mediação a Marx, para determinadas considerações dosGrundrísse, atinentes ao desenvolvimento das forças produ-tivas em fase avançada de acumulação capitalista.

A dado ponto, tendo em vista o enorme incremento qua-litativo/quantitativo dos meios de produção,'a contribuiçãodo 'trabalho vivo se tornaria inexpressiva. Então, vale dizerque estaria cancelada, por força do próprio desenvolvi-mento capitalista, a lógica do valor trabalho. A sociedadecapitalista como um todo - trocas mercantis, incluindo a re-lação capital/trabalho - não mais se mediria pela lei do va-lor. Nem a produtividade do trabalho, nem a distribuição dariqueza a teriam mais por parâmetro. O que viria a dar nopróprio cancelamento do sistema, pois, no que poderia con-sistir a valorização do capital, sem a presença ativa da ló-gica do valor? Ou seria a realização do sonho de ouro daspersonae do capital: a criação infinita de riqueza, sem a pre-sença incómoda e perigosa dos agentes do trabalho? Advi-ria, pois, o fim do capitalismo pela mediação de suas melho-res qualidades, não mais pela saturação de suas maiores de-ficiências? O fim do capitalismo seria, então, o fim do tra-balho, não mais o desestranhamento do trabalho e a suaconversão em "primeira necessidade"?

Se por mera derivação abstrata se chega à possibilidadedo "sonho de ouro", isolando e dando curso unilateral auma única determinação, o que importa è que ao se retomar,pelo talhe marxiano, a lógica do real, a embricação concre-tante das múltiplas determinações põe em evidência que aspersonae do capital não disporiam do tempo (aliás, dele jánão dispõem), nem da linearidade histórica (nunca existente) necessárias para a efetivação de seu mais caro desejo.E mesmo, ab absurdo, se destes viessem a dispor, só trans-formariam o "sonho" em realidade, dado o estatuto dodesenvolvimento desigual, sob a forma de uma única e res-trita associação das personae do capital, ou seja, sob aforma de um monopólio único, que não poderia ser outracoisa do que o próprio estado. De modo que o exercício rí-gido de uma ilação genérica, equivalência lógica de uma ilu-

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são de classe, pode "levar" o capital à beira da felicidademáxima; mas, em concomitância com o auge do delírio, o'̂ sonho .dourado" se converte, no "pior dos pesadelos", àmedida que só pode vir à luz sob uma encarnação que dis-solve o capital privado (o que não significa a dissolução dopróprio capitai).

Todavia, a superação não mais do trabalho desestra-nhado mas a supressão do próprio trabalho, como hipóteseextravagante que exagera a linha de tendência real, que vaireduzindo a contribuição do trabalho vivo, em face do ex-traordinário desenvolvimento dos meios de produção,conduziria, no resumo concreto de uma situação históricareal, não só à supressão do capital privado, mas teria tam-bém que arcar com o suposto objetivo de uma difusão uni-versal, ou seja, com a socialização dos meios de produção,que atingiram o mais alto grau de desenvolvimento. Isto, oua mais absurda e/ou sangrenta das escatologias.

Porém, as personae do capital são menos "temerárias" e"sonhadoras", e muito mais fiéis à sua "autenticidade".Muito mais estreitamente personae do capital, do quepersonae de alguma lógica inovadora.

-f> A contrapartida concreta, não sonhadora do capital é, ri-gorosamente, a que está a se desenrolar sob nossas vistas,na forma da maior e mais geral de suas crises.

Ao inverso de qualquer escandalosa difusão dos meios deprodução mais avançados, o capital, em sua lógica mais ge-nuina, os concentra e monopoliza.

Mas esta monopolização não é apenas a simples reitera-ção de um privilégio antigo, engendra um privilégio novo.Na atualídade, com a conversão dos resultados da atividadecientífica em força produtiva, a tendência aventada nosGrundrisse' ganha corpo. É a alta tecnologia (micro-eletrônica/automação/etc.) a contribuir de modo determi-.nante na criação da riqueza, reduzindo de forma drástica aparticipação do trabalho vivo. Desta vez, (arco com o pleo-nasmo) os monopólios monopolizam uma arma especial:um "escape relativo" à lei do valor. A monopolização'(certos setores e cenas empresas, privadas e estatais, sóestas e não mais outras) conquista um privilégio único, -menor sujeição à lógica do valor trabalho -, impossível deser partilhado, sob pena de desaparecer, não apenas en-quanto privilégio, o que seria o óbvio, mas, se dissolvido en-quanto privilégio e, portanto, expandido como lógica geraldo sistema, desapareceria com o irrecorrível desapareci-

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fer-

mento do próprio sistema.Porém, enquanto esta lógica de "exceção" opera e , para

que opere, todo restante do sistema continua e tem de conti-nuar "regularmente" sob a lógica do valor, sem o que todavalorização tenderia ao insignificante, e a realização do ca-pital monopolista seria impossível. Na forma do capitalismocontemporâneo, o aspecto mais avançado mostra seu ladode dependência da conservação do aspecto mais atrasado.Ou seja, a tendência ao "rompimento" monopolista da leido valor se dá no quadro da necessidade de sua conservação.Em outras palavras, o capitalismo adquire pela via de seusmelhores predicados — uma nova e fantástica contradição,sem eliminar nenhuma das antigas.

Basta, no entanto, a tendência ao rompimento para quefique convulsionada toda a regulação pela lei do valor, ouseja: o conjunto do sistema fica desgovernado em todas assuas faces, na medida em que estas perdem a proporcionali-dade contraditória que as integrava e as mantinha "soli-dárias".

Tome-se a questão por outro angulo. ,Tecnicamente, nada impediria, se não de imediato, pelo

menos em pouco tempo, que toda a demanda mundial devalores de uso fosse satisfeita. Todavia, assiste-se a um qua-dro completamente diverso: prossegue e se acentua o para-lelismo entre a produção cada vez mais fabulosa da riquezae da não menos fabulosa produção de pobreza e miséria. AsexcetuaçÕes, ainda assim desiguais, nos países centrais e astemporárias, em outras partes, integram e não alteram atendência global a médio e a longo prazo. É suficiente pen-sar na reprodução alargada da miséria nos países periféri-cos, em especial depois dos breves surtos de expansão quemarcam a sua processualidade económica.

Hoje, que desproporção (sustento mais um pleonasmo)gera e acentua tal desproporcionalidade?

Os recursos da nova tecnologia e o consequente "escaperelativo" da lei dq valor redobram a capacidade deprodução e sucção do capital monopolista centrado nospaíses hegemónicos, a uma taxa muito superior à capaci-dade de absorção e reprodução (dentro das regras do jogo)dos países periféricos. Tão maior que as reciclagensmodernizadoras se esgotam em tempo extremamente curto.

A descompensação monumental entre as partes, a desi-gualdade írremovivel entre os componentes é tal que, emqualquer dos momentos do ciclo, pelo menos uma das par-

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tes, ou ambas (centro e periferia) ao mesmo tempo (comona atualidade) são tomadas e atravessadas por crises de ca-ráter estrutural.

O circuito internacional do capitalismo è tomado pelasconsequências do super desenvolvimento e monopolizaçãodo incremento tecnológico, que desgovernam a lei do valor,de tal sorte que o fluxo entre os vasos comunicantes do sis-tema deixa de funcionar apenas em mão única, no desloca-mento das contradições do centro à periferia, passando aum trânsito de mão dupla, obviamente desigual. Bastante,porém, para recambiar ao centro, sob forma modificada,contradições que a periferia estava destinada, em fases ante-riores, a "assimilar" por completo. Nesse regorgitamento decontradições multiplicadas, o circuito inteiro apresenta aface de um sistema que parece ter perdido a capacidade dereter seu nexo, e cuja "mercadoria" mais abundante passa aser a própria crise.

Na desproporcionalidade estrutural alargada que se ins-taura, (agigantado de qualidade nova da desigualdade pró-pria e intrínseca ao sistema do capital), já não è possível adifusão da produtividade média do trabalho, o que vai invplodindo, por exacerbação, os laços contraditórios que an-tes coeriam o sistema, de maneira que de passa a ostentartoda sorte de desequilíbrios e instabilidades. Julgando ter"domesticado" a lei do valor e estar próximo da realizaçãodo "sonho dourado", a monopolização do incremento tec-nológico, de fato, pelo transtorno e constrangimento da ló-gica do valor, endoidece a todo o sistema. Supondo, talvez,ter encontrado a panaceia universal, o sistema só faz agudi-zar de modo vulcânico o conjunto de suas contradições.

Reencontra-se, talvez inesperadamente para alguns, a ta-cada essencial de Lênin no Imperialismo.

Aliás, guardadas as especificidades, a discussão, hoje, so-bre o; capitalismo avançado, reproduz as linhas de tendênciada polémica travada nas primeiras décadas do século, a res-peito da natureza do imperialismo. À época, não faltou aideia e um super imperialismo, que ultrapassaria o carátercontraditório do capitalismo, instaurando um modo racio-nal de produção. Da mesma maneira, hoje, independente-mente de continuidade ou descontinuidade a nivel das teses,não deixa de aparecer a teoria de que o monopólio da tecno-logia avançada ensina ao capital a maneira eficaz de "do-mar" :i Icj d(j valor.

Como uma diferença essencial: se os antigos adeptos do

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superimperialismo ainda podiam imaginar uma transfigura-ção racional do capitalismo, na atualidade não se manifestaqualquer perspectiva crítica que deixe de proclamar catego-ricamente que é - a barbárie, e não qualquer forma de con-versão do capital, que rebrota das melhores qualidades docapitalismo. Tudo em perfeita conformidade com a genuínalógica do capital, na moldura estupefaciente do capitalismoavançado. Concluindo com uma fórmula de Giannotti:"Cada ato que repõe o capital no universo dos objetos refie-xionantes è um ato de barbárie".

2 - A lógica do capital, que matriza a barbárie do capita-lismo contemporâneo, è responsável também pela barbáriedo socialismo de acumulação.

No fulcro da determinabilidade marxiana, retomada e ex-plicitada por I. Mészáros (Parte l do artigo integrado nestacoletãnea), capital e capitalismo não são idênticos, ou me-lhor, ciisiinguem-se.

O capital aparece e entra em rota de efetivação sobvárias formas particulares, no curso da sua processualidadehistórica. Comercial ou mercantil, monetário ou usurário,industrial ou básico são exemplos clássicos, que Irequcn-iam os textos marxiunos, ocupados em raslreur as especifi-cklades de cada um deles e das transições que conduzem deum a outro.

No que mais importava a Marx, tratava-se de determinaro itinerário que pode levar ao capital industrial, e com esteà objetívação do capitalismo verdadeiro.

Formas distintas, pois, de capital, em formações sociaisdiversas do capitalismo, antecedem e não coincidem com ocapital industrial e o capitalismo, tanto quanto estas duasúltimas categorias não se confundem.

Enquanto o capital comercial e o capital usurário sãoformas económicas pré-capitalistas, só atuantes no pro-cesso de circulação, onde realizam a captação do excedente,por meio de trocas não-equivalentes, o capital industrial, eapenas este, domina o processo de produção gerador de so-breproduto.

De um modo todo genérico, pois, o capital se põe comoforma de captação do excedente mercantil, e numa essencialobjetivação particularizadora - capital industrial - comoagente dominante da própria produção de mercadorias.

É "qualquer coisa" (Marx) que, a partir de um dado mo-mento, está diretamente envolvido com a apropriação e,

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momento subsequente, com a própria produçao da riqueza.Vale estampar, mais uma vez, a primeira frase de O Capi-tal: "A riqueza das sociedades em que domina o modo deprodução capitalista aparece como uma 'imensa coleçao demercadorias'".

De modo que há uma produção capitalista demercadorias (produtos) e uma produção de produtos(mercadorias), distinta da primeira, que a antecede. Geneti-camente: "Produção de mercadoiras e circulação de merca-dorias podem ocorrer embora a grande massa de produtos,orientada diretamente ao autoconsumo, não se transformeem mercadoria e portanto ò processo de produção socialainda esteja muito longe de estar dominado em toda a suaextensão e profundidade pelo valor de troca. A representa-ção do produto como mercadoria supõe uma divisão de tra-balho tão desenvolvida dentro da sociedade, que a separa-ção entre o valor de uso e o valor de troca, que apenas prin-cipia no escambo direto, já se tenha completado. Tal estágiode desenvolvimento é, porém, comum às formações sócio-econômicas historicamente as mais diversas" (O Capital,IV, 3).

Das formas "antediluvianas" (Marx) de capital(comercial, usuário) à sua forma básica (Marx) - indus-trial - vai um itinerário de avassalamento: da mera apro-priação dos produtos, na circulação, à apropriação da pró-pria energia que produz - força de trabalho (convertida emmercadoria).

Desfetichizada a nível crítico, no seu ponto de maturi-dade, a forma básica é desvelada como relação social deprodução, que subordina o trabalho assalariado ao trabalho

' acumulado, Em suma, na máxima generalidade da suaforma acabada, o capital é uma relação social de domina-ção fundamental e matrizadora.

Efetiva-se o capitalismo pela encarnação das personaedo capital: proprietários privados, postos em concorrência.

Pensando na transição para o socialismo, diz Mészároscom toda propriedade: "O capital e a produção de merca-dorias não só precedem, mas também necessariamentesobrevivem ao capitalismo" e isto como uma "questão da in-terioridade das determinações estruturais". De modo que"A dimensão histórica do capital e da produção de merca-dorias não está confinada ao passado, esclarecendo a tran-sição dinâmica das formações prc-capitalislas para o capi-talismo, mas manifesta sua necessárias implicações práticas

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para o presente e o futuro, preconfigurando os objetívoscompulsórios e as determinantes inevitáveis da fase pôs-capitalista de desenvolvimento".

Ou seja, no transcurso da fase pós-capítalista, mesmoquando compreendida no quadro mais favorável possívelpara a transição socialista, não se opera o desaparecimentorepentino e fulminante da lógica do capital. Com peso estru-tural - valor, mercadoria, mercado etc., etc. - continuam a inte-grar a composição do aparato econômico-social. Sua trans-figuração cabal não é empreendimento simples, nem linear,cujo sentido é precisamente a radical superação daregência do capital na tessitura da formação nascente, quevem à luz, na ímediaticídade, apenas do rompimento de li-nhas dominantes da entificação do capitalismo. E só a plenasuperação do capítalèoingresso na "nova forma histórica"de que falava Marx. Reíletindo sobre o "caráter fetichistada mercadoria", portanto dos valores que velam, pela re-gência do capital, as relações dos homens com as coisas edos homens entre si, Marx precisa no que consiste a efetivasuperação da regência do capital: "A figura do processo so-cial da vida, isto é, do processo da produção material, ape-nas se desprenderá do seu místico véu nebuloso quando,como produto de homens livremente socializados, ela ficarsob seu controle consciente e planejado. Para tanto, porém,se requer uma base material da sociedade ou uma série decondições materiais de existência, que, por sua vez, são oproduto natural de uma evolução histórica longa e penosa"(O Capital, I, 4).

No desenho a distinção é nítida: 1) sob a regência do ca-pital, temos "uma sociedade de produtores de mercadorias,cuja relação social geral de produção consiste emrelacionar-se com seus produtos como mercadorias, por-tanto como valores, e nessa forma reificada relacionar mu-tuamente seus trabalhos privados como trabalho humanoigual"; 2) ao passo que, superando o capital, pÕe-se "umaassociação de homens livres, que trabalham com meios deprodução comunais, e despendem suas numerosas forças detrabalho individuais conscientemente como uma única forçasocial de trabalho /.J O produto total da associação é um pro-duto social. Parte desse produto serve novamente comomeio de produção. Ela permanece social. Mas parte è con-sumida pelos sócios como meios de subsistência. Por issotem de ser distribuída entre eles. O modo dessa distribuiçãovariará com a espécie particular do próprio organismo so-

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cia? de produção e o correspondente nível de desenvolvi-mento histórico dos produtores. Só para fazer um paralelocom a produção de mercadorias, pressupomos que a panede cada produtor nos meios de subsistência seja determi-nada pelo seu tempo de trabalho. O tempo de trabalhodeempenharia, portanto, duplo papel. Sua distribuição so-cialmente planejada regula a proporção correia das diferen-tes funções de trabalho conforme as diversas necessidades.Por outro lado, o tempo de trabalíiO serve simultaneamentede medida de participação individual dos produtores no tra-balho comum e, por isso, também na parte a ser consumidaindividualmente do produto comum. As relações sociais doshomens com seus trabalhos e seus produtos de trabalhocontinuam aqui transparentemente simples, tanto na produ-ção quanto na distribuição" (O Capital, I, 4).

Vale o registro de que a opacidade e a transparência da"coisa" social são, um como o outro, determinações sociais,não coágulos extra-históricos, que demarcam a possibili-dade ou a impossibilidade perenes do acesso cognitivo.Além de ficar grifado que a presença ou não da regência docapitai è que faz a distinção essencial entre as "formas his-tóricas", da mesma maneira que consubstancia ou não apossibilidade objetiva de um desenvolvimento autêntico dohomem e da razão.

Posto que a regência do capitai ultrapassa a vigência docapitalismo, mesmo nas condições mais favoráveis para atransição socialista, ou seja, na moldura dos países capita-listas desenvolvidos, não è difícil convir que a problemáticase agiganta e agudiza com toda brutalidade quando entramem cena, como até agora entraram com exclusividade, ospaíses historicamente retardados e retardatários.

Tem sido descurado que transição socialista éessencialmente caminho, não ainda maneira de produzir já"cristalizada". Portanto, itinerário complexo e multifacètícoentre dois "pontos". Trânsito que se põe antes na dependên-cia compulsória de seu ponto de partida do que seu pontode chegada. Ponto de chegada, todavia, que é inconfundívelna expressão aparentemente vaga de Marx, quando indicaque a "nova forma histórica" è aquela que "supera o estadode coisas atual", pois a "forma" a ser ultrapassada é a que"cria capital, ou seja, aquele tipo de propriedade que ex-plora o trabalho assalariado e que só pode aumentar sob acondição de produzir novo trabalho assalariado, a fim deexplorá-lo novamente U O capital é um produto cdetivo e só

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pode ser posto em movimento pelos esforços combinadosde muitos membros da sociedade ou, em última instância,pelos esforços combinados de todos os seus membros. Ocapital é, portanto, uma força social e não pessoal. Por-tanto, quando se converte o capital em propriedade comum,em propriedade de todos os membros da sociedade, não épropriedade pessoal que se transforma em social Muda-seapenas o caráter social da propriedade, que perde a sua vin-culação de classe" (Manifesto, II).

A sobrevivência "petrificada" ou o surgimento, na fasepós-capitalista, de alguma forma de propriedade não co-mum (social) do capital é a irrealLação da "nova forma his-tórica". Pois, neste caso, o capital, força social que cria ri-queza é, de algum modo, sempre grave e decisivo, desviadoda posse e gestão de seus genuínos criadores e em prejuízo,voluntário ou involuntário, destes. "Na sociedade burguesa,o trabaJho vivo é apenas um meio de aumcntur o trabalhoacumulado. Na sociedade comunista, o trabalho acumuladoé apenas um meio de ampliar, de enriquecer, de promover aexistência do trabalhador. Por conseguinte, na sociedadeburguesa o passado domina o presente; na sociedade comu-nista, o presente domina o passado. Na sociedade burgue-sa o capital é independente e tem individualidade, enquantoa pessoa é dependente e não tem individualidade própria"(Manifesto, II).

O trânsito de um pólo a outro è, pois, um confronto entreo presente, não apenas no sentido alusivo e genérico, mas nadeterminação rigorosa de presente enquanto trabalho vivo, eQ passado enquanto trabalho acumulado. Ou seja, a tensãoentre o domínio sobrevivente da mercadoria e & potência dadominação do produtor, que principia a se converter em atona interioridade de uma contradição modificada, porémainda não resolvida. Presente e passado que se põem e re-põem na transição socialista através de um emaranhado es-petacular, mesmo quando o trânsito, e é deste que designa-damente se fala, diz respeito a paises de modo de produçãocapitalista desenvolvido.

Ora, o que não terá que ser visto e dito, quando a jor-nada principia e compulsoriamente fica na dependência deum quadro de atraso manifesto em todos os planos específi-cos da formação econômico-social?

Em tais condições, tanto mais pesa e determina o pas-sado, tanto menos pode e efetiva o presente. O guante dotrabalho morto jugula o trabalho vivo. "Lê mort saisit lê

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vi/J" (O morto se apodera do vivo!), diz Marx no Prefácio àprimeira edição de O Capital,

"O mono se apodera do vivo", eis a legenda profana esintética das transições "socialistas" do nosso século.

É fundamental aditar - aos fragmentos de O Capitule doManifesto, já estampados, que remetem à superação daregência do capital pela sua apropriação comum e controlesocial consciente, e às "condições materiais de existência"que os facultam, - a tão célebre quanto esquecida passagemda Ideologia A lema, que versa precisamente sobre os supos-tos concretos da revolução. São eles: a) "é necessário amassa da humanidade como massa totalmente 'destituídade propriedade*; e que se encontre, ao mesmo tempo, emcontradição com um mundo de riquezas e de cultura exis-tente de fato - coisas que pressupõem, em ambos os casos,um grande incremento da força produtiva, ou seja, um altograu de seu desenvolvimento; por outro lado, este desenvol-vimento das forças produtivas (que contém simultanea-mente uma verdadeira existência humana empírica, dadanum plano histórico-mundial e não na vida puramente localdos homens) é um pressuposto prático, absolutamente ne-cessário, porque, sem ele, apenas generalizar-se-ia a escas-sez e, portanto, com a carência, recomeçaria novamente aluta pelo necessário e toda a imundície anterior seria resta-belecida"; b) "apenas com este desenvolvimento universaldas forças produtivas dá-se um.intercâmbio universal doshomens, em virtude do qual, de um lado, o fenómeno damassa 'destituída de propriedade' se produz simultanea-

.mente em todos os povos (concorrência universal), fazendo, com que cada um deles dependa das revoluções dos outrosl-j Empiricamente, p comunismo é apenas possível comoato dos povos dominantes 'súbita' e simultaneamente, o quepressupõe o desenvolvimento universal da força produtiva eo intercâmbio mundial conectado com o comunismo"(Ideologia Alemã, A, 1).

Portanto, os pressupostos práticos são: 1) "amplo graude desenvolvimento das forças produtivas"/"mundo de ri-quezas (material e cultural)"; 2) "interdependência, simulta-neidade internacional" das revoluções; 3) "efetivaçao da re-•volução através da iniciativa dos povos dominantes". Emsuma, a possibilidade concreta da superação da regência docapital dar-se-ia por uma transição socialista mundial, de-sencadeada simultaneamente e sob hegemonia dos paísesricos e dominantes.

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x Caso contrário: a) "com a carência ocorreria o restabele-cimento da imundície anterior"; ademais de que b) "todaampliação do intercâmbio superaria o 'comunismo local"(Ideologia Alemã).

A história mundial do desenvolvimento do capital, pelodeslocamento das contradições do centro para a periferia,induziu a ruptura da hegemonia capitalista pelo lado menospromissor e mais problemático, redundando em duas gravesquestões: nenhuma transição socialista foi materializada atéhoje, e está criada uma linha de força, uma tendência his-tórica que sustenta e condiciona o prosseguimento da rup-tura com o capitalismo pela mesma via.

Via que rompe na periferia pela face atrasada do sistema,descende dos chamados elos débeis da cadeia capitalista.

Não importa, aqui, o inventário dos lances singularizan-tes dos processos reiterados ao longo de sete décadas, mas amatriz do ponto de partida, a linha compulsória de desdo-bramentos a que deu origem e o caráter da resultante cons-tituída.

Atraso, pobreza e solidão não conduzem ao socialismo.Nem se torna económica e politicamente resolutivo para talpropósito a conversão desses predicados desfavoráveis emlema moralista. Tal qual a palavra de ordem maoísta, (emnada contrária ao espírito mais profundo do stalinismo),que simplesmente exorta a "contar com as próprias for-ças". Nesta subversão voluntarista das palavras, todavia,está embutida a necessidade real e cruel que a anima e tornaimpostergável: criar riqueza - proceder a uma acumulação,que a formação econòmico-social anterior não realizara, eque, portanto, não poderia ser tomada como "dote" pelonovo estado de coisas que forceja por se afirmar. Lênin,numa de suas descrições da questão, assim se expressou:"Devido ao desenvolvimento dos acontecimentos militares,devido ao desenvolvimento dos acontecimentos políticos,devido' ao desenvolvimento do capitalismo no antigo Oci-dente culto e ao desenvolvimento das condições sociais epolíticas das colónias, tivemos que ser os primeiros a abriruma brecha no velho mundo burguês, num momento emque o nosso pais era economicamente, senão o mais atra-sado, pdo moios um dos países mais atrasados/.-./ Agorao povo e toda a massa de trabalhadores vêem que o essen-cial para eles consiste em serem ajudados praticamente emsua extrema miséria e fome, e que lhes mostrem que real-mente se verifica uma melhora necessária para o camponês,

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adequada a seus costumes. O camponês conhece o mercadoe conhece o comércio. Não pudemos implantar a distribui-ção comunista díreta. Faltavam para isso as fábricas e amaquinaria para elas". (Discurso, XI Congresso do PCRusso, março/22).

Afinal, do que é feito semelhante atraso e pobreza?Em essência, de retardamento no desenvolvimento do ca-

pital, designadamente do capital industrial. Na imediação,incipíéncia, fragilidade e distorção no crescimento das for-ças produtivas. Do que resulta uma posição pouco signifi-cativa e sempre subalterna no intercâmbio internacional.Donde, um diapasão localista da existência social, política ecultural. Em suma, sociabilidade estreita e acanhada, to-lhida e amesquinhada em todos os seus âmbitos.

Romper esta canga é acima de tudo desmantelar a estru-tura do atraso, é despertar e impulsionar as energias da acu-mulação material. Sem as quais, não passa de voto piedosoe tola mistificação, pretender uma entificaçao superior dasformas políticas e culturais da sociabilidade.

E isto - rompimento do atraso e criação de riqueza -num contexto especialissimo, pois, dentro dele eraimpossível, sob a forma do capitalismo, promover seme-lhante convulsão da estrutura económico-social; não fora opróprio retardo e a fraqueza da objetivação capitalista a ra-zão fundamental, (agregados os interesses capitalistas inter-nacionalmente hegemónicos), da sustentação e reproduçãodo atraso que se tratava e tinha de romper.

Paradoxalmente, mas paradoxo histórico, o que vale di-zer aparente, - isto é, situação nova e inesperada e só plena-mente inteligível bem mais tarde, - o imperativo concretoera desenvolver o capital básico, excluída a formação socialdo capitalismo. Incremento urgente e máximo possível docapital industrial, negada de antemão a formação social àqual ele tende a dar origem. Negação, porém, advinda pri-mariamente da própria realidade, só depois assumida e re-forçada pela teíeologia revolucionária.

Mas o que é passível de objetivação como forma de so-ciabilidade, quando para desenvolver o capital industrial épreciso recusar e ultrapassar o capitalismo?

Na polaridade conhecida, ao capital básico privado cor-responde o capitalismo, do mesmo modo que ao capitalbásico social corresponde o comunismo. Ou seja, o capital,força gerada socialmente, é apropriado no capitalismo poruma pluralidadae de personae do capital, enquanto no

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comunismo ele é apropriado pela universalidade de seusprodutores. Neste caso perde seu caráter de força de domi-nação, deixando, então, de reger aos homens e à sociedade,para passar a ser regido conscientemente pelos seus produ-tores. Em suma, no modo de produção comunista desapa-rece a regência do capital e advém a consciente regênciados trabalhadores, livremente associados.

De maneira que, irrecorrivelmente, a transição para o so-cialismo não pode ser outra coisa que o itinerário daregência do capital para a regência do 'trabalho. Um afasta-mento, de fato, mais ou menos rápido, da regência docapital, tanto quanto uma concreta aproximação, .mais oumenos rápida, da regência dos 'trabalhadores.

No capitalismo e, tanto mais, no comunismo verifica-se,pois, o pressuposto do "mundo de riquezas e de cultura" deque fala Marx. Exatamente o contrário do que se passa nascondições especificas do elo débil: aí o pressuposto inexiste.Ora, se a chave da questão é a forma da apropriação do ca-pital,|como ter a posse social dele,lse não está devidamentecriado - e o próprio imperativo é a sua criação? O que po-deria vir a ser a propriedade social do capital, nas condiçõesde atraso, se não a perversa subdivisão da miséria?Subdivisão ainda mais agudamente precária se considerado,como é preciso, que todo o esforço está 'condicionado pela ne-cessidade da criação urgente e ampliada da riqueza, o queimplica, sem alternativa, uma alta taxa de reaplicaçao -como meio de produção - do magro produto efetívado.

De maneira que, em situações de atraso, "generaliza-se aescassez e; portanto, com a carência,.recomeça novamentea luta pelo necessário e toda a imundície anterior é resta-belecida".

Conclusivamente, nas condições em que se entifica o elodébil, a propriedade social do capital é inútil e/ou impossí-vel.

i Nesta acumulação pós-capitalista, que é formação e ín-'cremento do capital industrial, interditadas as formasprivada e social da propriedade do capital, emerge uma"apropriação" Cóletiva/Não-Social. Esta tem seu ponto deinflexão, arranque e reiteração numa gestão igualmentecoleiiva/não-social, dado que uma gestão de caráter sociaisduplamente impossível nas condições próprias ao elo débil,pois o atraso è também miséria social, cultural e politica,além de que seja impensável uma gestão universal sem apossibilidade da propriedade universal do capital.

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Sui generis, essa gestão/1'apropriação" coleíiva/não-social tem por corpo um complexo dispositivopartidáriofestaíall administrativo, que funcionalmentemantém e reitera nesta formação pós-capitalísta a regênciado capital.

Grifo Q funcionalmente, pois, parece-me secundário, masnão insignificante, que no decurso do tempo tenha o refe-rido aparato desenvolvido interesses próprios. Porém, numaespecificidade que torna ingénuo pensar seus integrantescom os atributos, ainda que caricatos, das personae do ca-pital. Qualquer incursão por esta linha, na sua debilidadeanalógica, desvia da questão essencial e decisiva: - a lógicade uma formação pós-capitalista que, sem burgueses e semcapitalismo, reitera a regência do capital. Regência da qualo aparato, isto sim, é função mesmo que também (o que èapenas o outro lado da mesma moeda) seu fiel guardião, in-clusive ideológico. Há que lembrar que nem toda guarda éposse. Se assim não fosse, os eunucos nunca teriam existido.

Pode ser divertido chamar os burocratas em questão deeunucos da regência do capital. Mas, vale mais compreen-der que, na subsunçao a essa regência, as formações sociais(das quais eles são categoria privilegiada) mantêm e repro-duzem aspectos decisivos da estruturação social que tem novalor, no mercado, no trabalho assalariado etc. suas deter-minações essenciais. De tal modo e peso que o mundo dafeíichização da mercadoria impera e com ele toda a pletorade estranhamentos, dos quais os eunucos são apenas umadas expressões mais visíveis e detestáveis.

Não custa reiterar, para precisar um pouco mais.Na medida em que é flagrado, na processualidade his-

tórica do capital, um capital pré-capitalisía e, com a mesmapertinência, um capital pós-capitalista, determina-se o -capitalismo enquanto uma formação social especifica, quese põe e repõe sob a hegemonia do capital privado; O -comunismo como o sistema de relações sociais de produçãodo capital social, regido conscientemente pela universali-da.de de seus produtores; sendo a identidade do -"socialismo" de acumulação (autodenominado de socia-lismo real) a forma de uma sociabilidade do pós-capitalismo, que se objetiva sob a regência do capitalcoletivol'não-social ou estatal, ainda que esta última desig-nação possa, em certa medida, estreitar e indeterminar a es-pecificidade do fenómeno.

Nas discussões sobre o Capitalismo de Estado, no XI

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Congresso do PC Russo (março/abril-1922), Preobraz-henski afirmou que "o Capitalismo de Estado è o capita-lismo, e que só assim se o pode e deve compreender". Lèninretrucou que isto era.escolasticismo e argumentou: "o capi-talismo de Estado é um capitalismo inesperado ao extremo,absolutamente não previsto por ninguém; porque ninguémpodia prever que o proletariado chegaria ao poder num dospaíses menos desenvolvidos, que intentaria primeiro organi-zar a grande produção e a distribuição para os camponesese depois, ao não cumprir esta tarefa, em consequência dascondições culturais, incorporaria a ela o capitalismo. Ja-mais se havia previsto nada disso, porém é um fato absolu-tamente indiscutível" (Discurso, 28 de março).

Menos de dois anos depois (tempo durante o qual sua ati-vidade declinou acentuadamente), Lênin viria a falecerquando toda essa questão ainda mal havia se desdobrado.Contudo^parece,- me que teria sido mais feliz se,tiesde então,tivesse falado em capital estatal do que em Capitalismo deEstado. Todavia, isso teria sido praticamente impossível,pois, à época (NEP) principiavam a ser criadas as "socieda-des mistas", os "trustes do Estado", dos quais participavamcapitalistas privados - russos e estrangeiros - e comunistas.E o que designei por capital estatal (coletivo/não-social) es-tava apenas em germe, dificilmente (para não dizer que eraimpossível) poderia ser visualizado. De sorte que, para Lê-nin, a distinção entre capital e capitalismo só tínha]existên-cia histórica passada. Vale para ele, pois, quanto à questãodo capital estatal, o mesmo que ele disse com relação aMarx no que tange ao Capitalismo de Estado: "Nem sequera Marx ocorreu dizer uma única palavra sobre esse assuntoe morreu sem deixar nem uma citação precisa, nem indica-ções irrefutáveis. Por isso temos agora que nos esforçar porir adiante sozinhos" (Discurso, 27 de março).

Portanto, minha tematização não pretende, peto menosaqui, a polémica com a tese de Lênin, mesmo porque eleanalisa um evento, que entende necessariamente transitório,e que se encontrava em estado embrionário, enquanto tentoabordar um fenómeno de longa duração e obviamente esta-bilizado. Em outros termos, o Capitalismo de Estado podeser, e é, um momento importante na formação do capitalcoletivo/não-social, mas não é todo o problema. Vale dizerque o Capitalismo de Estado foi possível exatamente por-que, na configuração do elo débil que recusa e tem que recu-sar o capitalismo, e está literalmente impedido de transitar

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pa?a o capital social, a regência do capital, naturalmentepresente, principia a se especificar em capital coletivo/não-social.

Na vigência do capitalismo, o capital atende de modo ab-soluto a sua própria lógica de acumulação, quedando subju-gadas a ela as necessidades sociais em geral - "o trabalhovivo é apenas um meio de aumentar o trabalho acumu-lado". Donde a simultaneidade de um "mundo de riqueza"e a "massa da humanidade como massa totalmente 'desti-tuída de propriedade'". Conquanto, nas formações do pós-capitalismo, haja uma dimensão antícapítalista limitada,dado o desaparecimento das personae do capital e do .cará-ter concorrencial que as entrelaça, ao mesmo tempo quedeixa de ser necessária a produção da miséria, o sistema"permanece no interior dos parâmetros do capital" (Més-záros). Ou seja, na formação do pós-capitalismo o con-junto da sociabilidade, atacadas e superadas as forças do-minantes reais ou potenciais do capitalismo, permanece soba regência do capital, na exata medida que esta é precisa-mente a sustentação de uma relação social de produção emque o trabalho acumulado continua a reiterar e a dominar otrabalho assalariado.

De modo que o campo do pós-capitalismo(autodenominado de campo socialista) não é a concretiza-ção incompleta ou imperfeita de uma ideia, mas uma novaordem social, caracterizada por antagonismos, posta paraalém do capitalismo, mas no interior da regência do capital.Território dentro do qual, e com irradiação para multo alémdele, a ideia socialista foi pervertida em uma nova ideologiado poder.

Hoje, por consequência, é equivoco intolerável supor:- que esteja constituído um campo socialista; há, de fato,

um sistema mundial de países óopóse anticaplíalismo, quese debatem com enormes problemas internos e que confli-tam entre si por mais de um motivo;

- que a categoria de ditadura do proletariado è o motivopor excelência das aberrações manifestas pelos países re-feridos, e, assim, refutada pela história; ao contrário, jamaishouve, de fato, uma ditadura do proletariado; tal como oproletariado foi derrotado em 1848/9 e na Comuna de1871, o Soviet de 1917 também sucumbiu;

- que haja, na atualidade, de procedência clássica e pro-vado pela prática, um padrão de partido do trabalho; ao in-verso: os princípios e concepções de Marx e Lênin, quanto

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à organização partidária, foram soterrados e enxovalhadospela avalanche stalinista; o partido da razão do 'trqbaihodaqueles foi substituído pela parafernália manipuladora e,no mínimo, decadentemente a - proletária dos dias de hoje;

- que a vulgata stalinista e neo-stalinista (inclusive suavertente euro-liberal) seja o corpus (filosófico e cientifico) dosaber marxíano e marxista.

Não e a possibilidade de pinçar diferenciações de grau,ou até mesmo de qualidade em planos secundários, entre ospaíses do socialismo real, que desfaz a sua condição de enti-ficaçoes subsumidas.à universalidade das formações ao póse anticapitalismo e não do socialismo. Tais distinções reme-tem apenas às suas formas particularizadoras e às suas con-creções singulares. Não são tais diferenças que podem des-pertar esperança de imediato, quanto à superação da cangaque as rege. Sem dúvida, é básica a compreensão das espe-cificidades para a determinação das vias mais promissoras,através das quais há de se efetivar a superação de suas pro-fundas mazelas, sempre que isto suponha, essencialmente,que se trata da liquidação da regência do capital que as pre-side. .

Em paralelo, dado o número de paises sob esta figura,que tende a ser ainda maior, há que, afinal, compreender ainutilidade e a futilidade do anti-sovietismo (anti-sociiJismoreal) "nervoso" e epidérmico. À mesma hora em que se se-pulta qualquer tolerância ou conivência para com suas a-berraçÕcs.

Do mesmo modo que no caso do capitalismo ultra-avançado, guardadas as diversidades reais, cada ato quereitera esta gestão/"apropriação" coleliva!não-social do capi-tal é um ato de barbárie, cuja atrocidade menor não é, porcerto, a de ter se travestido em socialismo.

II - Barbárie e Consciência

A mercadoria, "à primeira vista trivial", diz Marx, "ècheia de sutileza metafísica e manhas teológicas". E seu"caráter enigmático" provém de sua própria forma: "o mis-tério da forma mercadoria consiste simplesmente no fato deque ela reflete aos homens as características sociais do seupróprio trabalho, como características objetivas dos pró-prios produtos de trabalho, como propriedades natu-rais sociais dessas coisas e, por isso, também refiete a re-lação social dos produtores com o trabalho total como umarelação social existente fora deles, entre objetos. /.../Porém,

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