catherine fisher - coroa de landes

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Catherine Fisher - Coroa de Landes

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CATHERINEFISHER

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CrownofAcornsCopyright©2010CatherineFisher

Copyright©2011byNovoSéculoEditoraProduçãoEditorial:EquipeNovoSéculoDiagramação:LucianaInhanCapa:CarlosEduardoGomesTradução:PedroH.F.Cruz

Preparaçãodetexto:EdilsonMouraRevisão:CátiadeAlmeida

Diagramaçãoparaebook:ClaudioTitoBraghiniJuniorTextodeacordocomasnormasdoNovoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesa(DecretoLegislativonº54,de1995)DadosInternacionaisdeCatalogaçãonaPublicação(CIP)(CâmaraBrasileiradoLivro,SP,Brasil)Fisher,CatherineCoroadelandes/CatherineFisher;[traduçãoPedroHenriqueFariaCruz].--Osasco,SP:NovoSéculoEditora,2011.

Títulooriginal:Crownofacorns.1.FicçãoinglesaI.Título.

11-09485-CDD-823Índicesparacatálogosistemático:1.Ficção:Literaturainglesa823

2011

IMPRESSONOBRASIL

PRINTEDINBRAZIL

DIREITOSCEDIDOSPARAESTAEDIÇÃOÀNOVOSÉCULOEDITORAAlamedaAraguaia,2.190–Conj.1111CEP:06455-000–Barueri–SP

Tel.(11)3699-7107–Fax(11)2321-5099www.novoseculo.com.br

[email protected]:978-85-7679-688-6

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InmemorianJohnWood.

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OPROJETO

Volteimeuspensamentosaodesenvolvimentodacidadepormeiodaconstrução.

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Bladud

Pare!Irmaislongeéperigoso.Ocírculoéamaisvelhamagia.Seadentrá-lo,eleoenvolverá.

Meu nome foi proibido de ser pronunciado.Ninguémmais, desde então, proferia as sílabas deleparamim.Ninguémmetocavaoumeabraçava.Vocêconsegueimaginartalcoisa,vocêquevivelonge,nociclodosanéisdosanos?Seumhomemestádoente,jáébastanteruim.Mas,seumreiadoece,seureinoéarruinado;elese

tornaoresponsávelportodaaruína.Inicialmente, senti febre e muita coceira. Recebi toda atenção e cuidado. Mas, quando a lua

minguou,ossinaisdadoençaficaramevidentes;furúnculosepústulasestouraramemminhapele.Sacrifíciosforamfeitos,videntesforamconsultados.Aspedrasmedisseramoquetinhadeserfeito.Escolhiumanoitesemluare,nomomentomaisintensodaescuridão,levantei-medeminhacamae

abandoneimeureino.Meupovosaiudecasaparaassistiràminhapartida.Fizeramduasfilasnascolinasesilenciaram

suasfacesdiantedomedo.Minhaesposaemeusfilhosmeevitaram,horrorizados.Eraumrejeitado.Umfantasmadebaixodalua.Longedospovosdocírculo,rastejei;nãomeaproximeimuitoparaquenãovissemadeformaçãodo

meurosto.Quantosmeseseudeiteiemfolhassecas,nãosaberiadizer.Semoscírculos,nãoexistetempo,nemhácomomedi-lo.Minhasvestestransformaram-seemtrapos.Minhapelefoirasgadapelosarranhões,dilaceradapelopus.Passeiaserumcontágio,umalepra

emminhaprópriaterra.Eueraumrei,umdruidae,mesmoassim,umhomemprestesamorrer.Precisavadeummilagre.Eeuoencontrei.

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Sulis

AmochilaliláscompradaporAlisonemSheffieldestavanocolodaquelaqueaacompanhava;tinhaoolharfixonacidadeperfeita,ondeseriacurada.Ajaneladotremestavaencardida,masatravésdelaobservavacomoasconstruçõessubiamacolina,

comoseusterraçosespiraladosecurvos,bemcomosuasruaslargas,tinhamsidotalhadosnomesmotipodepedracordemelamanteigada.Precisa.Maravilhosa.Doladooposto,noassentodocorredor,Alisonaobservava.–Écomovocêesperava?–Melhor,muitomelhor–respondeu.–Háruínassobalgumaspartesdacidade,nãohá?Concordou,emboraseusolhoscontemplassemseureflexonajaneladotrem.–Águastermais.Otemplodeumadeusa.Elahaviapassadoumatardeinteira,nabibliotecadeSheffield,desvendandoessesmistérios.Alisonsorriu:–Vocêfezsualiçãodecasa!Elafranziuatesta.Alisonfingiacomfrequênciaserdotipoignorante,tola,comoumaassistentesocial

quenãosabiadenada.Issoerasempreirritante.–OsromanoschamavamacidadedeAquaeSulis.AságuasdeSulis.Esseeraonomedadeusa.Suavozerafria;comumolharinexpressivo,encarouAlison.OsolhosdeAlisondilataram-se.–Entãofoidaíquevocêtirouseunome.Porissonuncatinhaouvidofalardeleantes.Avozdoguardaestalounoalto-falante.–BaldeaçãoparaaslinhasTemplodasPradariasdeBristoleTauntan.Certifiquem-sedepegartodos

osseuspertencesetenhamcuidadocomovãoentreotremeaplataformaaodesembarcar.Elaselevantousentindotensãoemseuestômagoe,emseguida,colocousuamochilasobreosombros.

Alisonseespremeuaopassarporumhomemlendoo jornal; tiroucommãos firmesasduasmalasdobagageiro,carregando-asestranhamentedeladopelocorredorestreitodovagão.Otremdiminuiuavelocidadeaochegaraumaplataformacomprida.Elapercebeuqueatémesmoa

estaçãoeradouradaeque,portrásdosanúnciosdefilmeselivros,haviaumacafeteria.Suabocaestavaseca.Suasmãoscoçavam.OperfumedeAlisoneradoceeenjoativo.Afilainteiradepessoasempé,naplataforma,observava

atentamenteotremenquantoparava.Asportassedestravaramcomumbarulhoqueafezpularefixarosolhosnovidroparaverseumapedra,porventura,haviasidoarremessada.Masajanelaestavainteira.Num instante, estavampercorrendoaplataformaemmeioàmultidão impacienteque, aopassarpor

ela,aempurravasemsequernotá-la.Haviaalgunsruídosnovosparaseusouvidos,eumabrisasuavesoprava.Respiravaprofundamenteo

cheiro de fumaça da estação, misturando-se com os aromas de café.Moças corriam para abraçar aspessoasqueasesperavam.Umhomemfalavaaltoemseucelularenquantopassava:–Éomáximodeharmoniaeequilíbrio.Alisonvirou,perguntando:–Tudobem?

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– Tudo. – Puxou a mochila por sobre seus ombros. Mantinha a alegria e o medo em segredo,escondidosdentrodesi.Desceramalgunsdegrauseentraramnosaguãodereservas.NãosecomparavaàagitaçãodeSheffield.

Poucaspessoasnasfilasembuscadepassagens.Contudo,quandoospassageirosdostrensiamembora,osilêncioeraquasetotal.–Nenhumsinaldeles–disseAlison,franzindoprofundamenteaslinhaspequenasdesuatesta.Largou

asmalaspertodaparede.–Elesdisseramqueestariamaquiparanosencontrar.Vouchecarseestãoláfora,meespere.QuandoAlisonsaiu,sentiu-seesquisitaempénaquelelugar.Seusolhosestavamemalerta, tentando

observar tudo,masvocênão consegue, consegue?Havia um turbilhãode coisas atraindo sua atenção.Percebeuqueavelhaansiedadehaviavoltadoeobservavaaspessoasparaverseestavamolhandoparaoseurosto,paraverseareconheciam.Besteira!Elavirou-se,respiroufundoefechouosolhos.–Elesnãoconhecemvocê–murmurou.–Ninguémestáolhandoparavocê.Vocêestásalva.Vidanova.

Vocêéumapessoanova.AvozdadoutoraMarloryerasuaveemsuacabeça.Elaabriuosolhoseleuoscartazesnaparede.Em

um deles havia um anúncio turístico de Stonehenge: VEJA O GRANDE CÍRCULO DE PEDRA DAINGLATERRA! Mostravam, no anúncio, os grandes megalíticos sob um imenso céu azul. Ela leu oanúnciotrêsvezes.Depois,pegouseusóculosescuroseoscolocou.–Eusabiaqueelesiriamatrasar!Eudisseclaramentequatroemeia!Alisonvoltavaparajuntodesuaacompanhante.Comosuorescorrendoporsuapelemorena,arrastava

asmalas.–Vamos.Vamosesperá-losláfora.Táxisseenfileiravamnapequenaentrada.Elapoderiaterseatiradoemumdeles.Poderiateridopara

qualquerlugar.Osmotoristasolharamparaela,masestavatudobem.Elesestavamapenasesperandoporumacorrida.Alisonobservavaumasenhoranegra,vestidacomum terno,eumestudantemolambento.Ambosnãoaviram.Elaeraimperceptível.Alisonestavacomocelularnamão,maseraóbvio,pelaexpressãodeseuolhar,queninguématendia.–Quesofrimento!Tenhodepegarotremdevoltadaquiavinteminutos...–Entãová!Vouficarbem–dissesuaacompanhante.Alisonaencarou:–Vocêsabequeeunãopossofazerisso.Eudevoficaraquicomvocêatéqueelescheguem.–Entregar-mepessoalmente.–Ouça,M...–conteve-se.–Devemeentregarcomoumpacote.GostavadeencherAlison.Atormentá-la.Alisonsabiadisso:–Vocêprecisamecutucar,né?Entãoseusolhosdilataram-se.Fechouotelefonenumapancadaesorriualiviada.–Chegaram.Vinham apressadamente entre os carros na rua. Eram exatamente os mesmos que conhecera na

entrevistaenopasseioaozoológico.OscabelosloirosdeHannahestavamamarradoscomumlençoazul.Usavaumvestidocasualeuma

jaquetadelãverde-clara.–Oh,meuDeus!–disseela.–Sintomuito!Foiotrânsito.Simonusavaumajaquetacomcapuzeumjeanscheiodeburacos,feitosdemodoproposital.Eleera

mais velho, comcabelos apresentando fios grisalhos.Umquarentão que tentava se passar por homemmaisjovem.–Oi–disseele.

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Elasorriu:–Oi.Alisonapertouasmãosdeles.Derepente, tudopareciamuitoformal,eficaramseolhandoemmeio

aostáxis,umpoucodesconcertados.EntãoSimonseaproximouebeijouosdoisladosdafacedeAlison.Ela sentiu o perfume amadeirado da sua loção pós-barba e o estranhou. Hannah procedeu damesmamaneira.Oslábiosdelaeramligeiramentefrios.–Vocêjásedecidiusobrealgumnome?Eladeuumpassoparatrás.Suaacompanhanteadiantou-se:–Sim.Alisonfezumacaretaecomentou:–Elapoderiaterescolhidoqualquernomedestemundo,masfoiescolherjustoumquechamaatenção

aumquilômetrodedistância.Aideiadeelaestaraquiéparaficarimperceptível.Segura.–Decidiporestenomeevocênãovaimeimpedir.–Voltou-separaseusnovospaistemporários:–De

agoraemdiante,vocêsdevemmechamardeSulis.Elesaceitaramonomemuitobem.Hannahdeuumarisadanervosa,claramentesurpreendida.Simon

balançouacabeçaparaoladoeponderou:–Porquenão?Talvezfosseo tipodenomequedaríamosaosnossosfilhos.Vocêsnãoacham?Um

poucoincomum,umpoucohippie.Sulistambémachou.Elaintuiuissoassimqueosviu,sabiaqueseunomenãopoderiaserenfadonho,

invisível.–Amelhormaneiradeseocultar–disseela–énãoseesconderabsolutamente.Vocênãoacha?–Vocêtemcerteza?–Alissonduvidava.–Eugosto!Agentepodeabreviá-loparaSu.Simonbalançouacabeçacomoseadecisãopertencesseaele.Disse:–Assimseja,Sulis.–E,voltando-separaAlisson,continuou:–Vocêvaificarparaumaxícaradechá,

senhoraWest?–Receioquenão.–Alisonaolhoucompesareconcluiu:–Tenhoque retornarnopróximo trem–

voltouseuolharpreocupadamenteaoredor.–Podemosirparaumlugarmaislongedavista?–Meucarroestálogoalivirandoaesquina–Simondisserapidamente.Pegouasmalasesaiuandando

semolharparatrás.Osoutrososeguiram.ParasurpresadeSulis,Hannahdeslizouseubraçofurtivamentesobreseusombros,apertando-a.–Estamostãofelizesportê-laconosco!–sussurrouenquantocaminhavamemdireçãoaocarro.–Nós

vamosnosdarmuitobem,jápossover.Sulissorriu.Elajáhaviaouvidoissooutrasvezes.Apertando-senobancodetrásdocarro,Alisonfuçoudentrodesuamaleta.Tirouumenvelopedela.– Está tudo aqui: passaporte, certidão de nascimento com o novo nome, seguro-saúde nacional e

históricomédico.Tudoquevocêprecisa.Simonperguntou:–Fotos?– De quando era bebê, com vocês dois. Os técnicos fizeram uma bela montagem, juntaram vocês

digitalmenteoualgoparecido.Históricoescolar...bem,vocêverá.Tambémexisteumnúmerodecontatotelefônicoemnossodepartamento,maséparaserusadoapenasemcasodeemergência.Oserviçosociallocaleapolíciapossuemagentesconectados.Ostelefonesdelesestãoaítambém.Vãomantercontato.Sulisfezcaradereprovação:–Vidanova,vocêdisse.Acheiqueissosignificavaquenãohaveriamaisassistentessociais.–Sim,masvocêprecisaentender...–Ah!Entendoperfeitamente.

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Virou-seeolhouparaforadajanela.Nacalçada,dooutroladodarua,haviaumhomemsentadojuntoàjaneladeumacafeteria,bebendoalgoemumaxícarabranca.Olhou-afixamente,oqueafezcolocardenovoseusóculosescurosapressadamente.–Vocêjápassouporissooutrasvezes,querida.AlisontrocouolharesdoloridoscomSimon.–Quandocompletar18anos,M...Sulis,poderáfazeroquequiser,sabedisso.Maistrêsmeses,issoé

tudo.Atélá,énossaresponsabilidade.–Tudobem.–Pensou sehaveria algum tipodevigilância sobre ela.Comosaberia?Talvez aquele

homemnocaféfosseumdeles.Maselejáhaviaficadoparatrás,pagopelasuarefeiçãonocaixaesaído.Alisonescorregouparaooutroladodoassentoaquecido.–Adeus,então,meuamor,eboasorte.Tenhaumaótimavida.Nãodeixeopassadoestragarisso.Abraçaram-se. Sulis sentiu o corpomacio deAlison apertá-la. Sentiu o cheiro doChannel que ela

sempre usava. Surpreendeu-se com o remorso repentino que a acometera. Dentre todas as assistentessociais que conhecera, e já houvera dúzias delas, nenhuma havia se tornado uma amiga verdadeira.Porém,quandoAlisondesceudocarro,arrumousua jaquetaeacenousedespedindo,Sulissabia,comumacertezagélida,queelaeramaisumadasquenuncamaisvoltariaaencontrar.Jádeveria ter-seacostumadocomisso.Suavidasemprefora repleta de estranhos, que permaneciam em seu convívio, até quase conhecê-los intimamente, edepoispartiam.Destavez,quandoacenoudevolta,umvazioesquisitosurgiudentrodesi.Logoapós,osilênciotomoucontadocarro.EntãoSimoninclinou-seemdireçãoaorádioeligouoCD

player.Umpoucodejazzsaiudosalto-falantes.Abaixouovolume.–Então,vamos.Virou-seeolhou,porsobreoencostodeseuassento,paraela.Seurostoestavabronzeado,resquício

defériasrecentes.–Deagoraemdiante,contaremosahistóriaquenossafilhavoltoudaescolaesomostodospartede

umafamíliafeliz–disseSimon.Sulissorriutimidamente.–Aspessoasnãovãoperguntar?–Nósmesmosestamosaquiháalgunsmesesapenas–continuouSimon–,ninguémnosconhecemuito

bem.Somosnovosnacidade.Finalmente,Hannahligouomotordocarro;Sulisdesejouqueelehouvesseditoalgodiferente,mais

confortante, e que lhe desse as boas-vindas,mostrando o quanto estava ciente de seumedo e de suaapreensão.Mas ele já havia se virado e agora apenas se preocupava com um cone, na rua, do qualHannahdesviara.Hannah dirigia e batia papo aomesmo tempo, mas Sulis mal conseguia ouvi-la. Haviam saído do

estacionamentoepassavampor ruasnasquaisprédios seerguiamdosdois ladosdemodomajestoso.Suas fachadas georgianas eramharmoniosas e ordenadas, comnomes entalhados, batentes demadeirabrancos,parapeitospintadosdepretoaoredordasáreasmaisbaixas,comjardineirasecestosdeflores.Enquanto o carro roncava atrás de um ônibus vermelho de dois andares repleto de turistas, Sulis

abraçou suamochila lilás contra seu peito e tentou não sorrir escancaradamente. Tinha visto fotos dacidade,masnãolhefaziamjus.Osolbrilhavaeasruasdouravam-serepletasdecompradores,decarrosedeumamultidãodevisitantes.Gaivotaseestorninhosbatiamasassobreostelhadosdascasas.Noaltoda estrada, o carro virou à esquerda e depois à direita em uma rua de grande extensão. As casasimponentes,enfileiradas,tinhamjanelasaltasebrilhantes.Sentiucomosefossemnobresacompanhantesenfileiradasdeumladoedeoutrocomointuitodeescoltá-lamorroacima.Construçõeslindaseantigasdavamaelaumasensaçãodecalma.Umacidadedispostademodoperfeito.Aodobraraúltimaesquina,deuumsuspiro,surpreendida.Hannahsorriuparaelapeloretrovisor.

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–Maravilhoso,nãoacha?Estelugartambémsempremeemociona–comentouHannah.Adentraramumcírculodecasas.Trêsruas,comoraiosdeumarodademotocicleta,conduziamaele.

EnquantoocarroronronavavagarosamenteaoredordoCírculo,Sulissentiaumprazertranquiloaoverafachadaerguer-seemdireçãoaocéuazul;elasesentiaprotegidaemseuinterior.Suportadasporpilares,comtrêspavimentosdejanelasaltas,ascasaseramgeminadas:faziampartedeummesmoterraço.Notelhado,pedrasemformadelandeseramdispostasemintervalossimétricos.Ascalçadaseramlargas,osparapeitos,pretosepolidos.Nocentrodoespaçocircular,cincoárvores

elevavam-seporsobreostelhados.–Bem-vindaaoCírculodoRei–disseSimon.–Vocêsmoramaqui?Balançouacabeçanumgestopositivo.–Acasanãoéinteiramentenossa,poisissonoscustariaumafortuna.Temosumapartamento,noandar

superior,comvistasmaravilhosas.Hannahestacionounomeio-fio.–Chegamos,Sulis.Aosairdocarroecolocar-seempénacalçada,Sulisteveumsentimentodiferente,comosehouvesse,

dealgummodo,chegadoàsuacasa.Mas,atéondeselembrava,nuncahaviaestadonaquelelugarantes.Desde aquele dia horrível, quando ainda tinha 7 anos de idade, vivera em uma dúzia de casas eapartamentosdiferentes.Algunsapertados,outrosmedianos,eatémesmoemumafazendanospântanosde Yorkshire.Mas nunca em um lugar como este. O degrau, a porta branca com aldrava dourada, ocorredorarejado,compisopretoebranco,eaescadariacurvadaeramlindos.DeixouSimontrazerasmalas.EstavaansiosaparasubircorrendoatrásdeHannaheconhecerseular.–AquinoporãomoraosenhorThomas,empresário.Voltouafalar,suasmãosescorregavampelocorrimãodemadeiraenquantosubiam.– A senhora Wilson, no primeiro andar. Uma idosa que mora aqui há muitos anos. Um casal de

Londres,nosegundoandar,queutilizaestelocalcomocasadeveraneio.Ambossóaparecemporaquinosfinaisdesemana.Nósmoramosnoterceiroandar.Enfiouachavenafechaduraeabriuaporta.Aoentrar,disseaSulis:–Seuquartoénosótão.ÉmelhordesceredarumamãoaoSimon.Suascostasestãopreguiçosas,algo

quenuncaadmitirá.Então,desceuasescadasruidosamente.Suliscolocousuamalasobreumacadeira.Perambulouemmeioaumespaçoalto,deumabrancura

perfeitaecomcortinaslevessobreasjanelaselevadas.Um sofá de couro com alguns livros jogados sobre ele, umaTV, umamesa e um pouco demúsica

enchiamasala.Haviaumsuavecheirodefumaçadevelas.Dooutrolado,umcorredorcomportaslaterais,cujofinal

terminava em uma pequena escada branca demadeira.Correu para subi-la e percebeu uma passagemestreita,provavelmenteprojetadaparaempregados,equeconduziaaumaportatodaarranhada.–Achou?–Simonbradoudoandarinferior.–Sim–respondeu.–Ótimo.Cháoucafé?–Chá,porfavor.Ficouempé,próximaàporta.Umquartocomtábuasdeassoalhopintadodebrancoeparedesforradas

depainéisbrancosdavamformaaumquartocompridoebaixo.Haviaumtapete,umaescrivaninha,umacadeira eumacama.Aúnica coisagrandedoquarto era a janeladevidro, plana e retangular, que seabriu.Para suasatisfação,percebeuquepoderia sairporelaemumaplataformacomumcorrimãodepedrafalsa.Umagaivotasaiuvoandoqueixosamente.Sulisabaixou-se,atravessouajanela,ficouempé

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naplataforma.Umdeseusbraçosseapoioufirmenosuportedeumdosgrandeslandes,cujapedraestavaquente.Peranteela,oCírculodoReierguia-seperfeitamenteeacontemplavacomoumaplateiaeducadaedistante.Carros circulavamvertiginosamente sob seuspés.Umamulher andavacomumcarrinhodebebêna

calçada.Dasárvores,umamultidãodegralhaslevantou-se.Crocitarame,voltaramapousarnelas.Sulis permaneceu naquele firmamento, refletindo sobre o porquê de sentir tanto medo, como se o

prazerfossecapazdeaterrorizaralguém.Pensavaemquetipodepessoaestenovoestilodevidaafariasereemqueelasetornaria.

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Zac

Doishomensacendiamlampiõesdoladodeforadeumatabernasombria.Quandopedi informaçõessobrequalcaminhodeveriaseguir,olharamparamimrevelando-mequãotoloseram.–Vocêédonorte,mestre?–Nãoédasuaconta.Riramumparaooutroprovavelmenteporcausadomeusotaque.Umdelesfalou:–Acasanovaénaqueladireção,noBecoGiles.–Obrigado.Enquantomeafastava, senti seusolhosemminhascostas.PegueiocabodemeubastãoqueForrest

haviapedidopara levar.Elemedisseraqueacidadeeraperigosaànoite.Umarisadaescarnecedora,baixinha,mediziaqueelesaindameobservavam.Umdelesbradou:–Cuidadoaoiràquelacaza,zenhor.Temfantasmaslá.Asclassesmaisbaixasdestelugarfalamcomumdialetozuaveeengrazado,trocamosomdospelo

doz.Levei semanasparacomeçar a entenderoquediziam.Fiqueimolhadoaopassarpeloscórregosimundosdaquelarua,piseiemummontedeestercoevireinoque,provavelmente,chamavamdeBecoGiles.Estava escuro. Por cima de minha cabeça, as casas se juntavam e, com seus beirais desgastados,

obstruíam a visão do céu. Algo parecido com um rato correu sobre minhas botas. Golpeei-o, masrapidamente ele se esquivou e meteu-se em um buraco. Ao continuar caminhando, percebi que meuspassosmeconduziamaumaaberturaestreita.Seriaesteolugar?Parei.Atineiqueaqueleshomenspoderiam termemandadoparacáparazombaremdemimoupor

teremalgumpropósitomaisobscuroainda.Roubo.Ouatémesmoassassinato!Meusdedosapertavamocabosuadodomeubastão.Olheiparatrás.Anoitefediaavegetaisemdecomposiçãoeesterco.EstaregiãodeAquaeSulisaindaeraumlocal

cheio de becos sujos e fétidos. Por ummomento, compreendi o motivo de meu novomestre Forrestpertur-bar-setantocomestelugar.E,principalmente,omotivodesuaobsessãodetornarestacidadegloriosa,construindo terraços iluminadospelo sol e ruas largas e arejadas.Ninguémestavavindocortarminhagarganta;entãoseguiapalpandoocaminhoàminha frente.Minhas luvassesujavamnaparede lodosa.Depois de um tempo, cheguei a uma estrutura arqueada, com uma lamparina apagada ao lado, aindafumegante,comosetivesseacabadodeserextinta.Aindanãotinhasinoparasertocado,nemportão.Inclinei-me,atravesseioarcoeencontreiumpátio.

Pudevervagamentepedrasdeconstruçãoamontoadas,decujapilhavinhaumapoeirasufocantequemefez espirrar demasiadamente alto. O som ecoou. A lua, num perfeito crescente, elevava-se sobre otelhadoaindanãoterminado.Limpeimeusolhoscomumlençoedisse:–MestreForrest?Vocêestáaí,senhor?Acartaqueeutraziaestavaamassadanobolsodomeucolete.–ÉoZac,senhor.

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Naturalmenteelenãoestavalá.Olugarestavadesertoeostrabalhadoresjátinhamidoparacasa.Atémesmoovigiaestariaemalgumatabernaàquelaaltura.Virei,aborrecido.Então,algobateunajanelaaomeulado.Confessoquegeleidemedo,poisnãohavianadalá,anãoserumajanelaescuracomcaixilhosque

refletiaminhaimagemfantasmagórica.Sobreajanela,emumaconstruçãodepedra,haviaumaesculturasemiacabada de um homem coroado, uma cópia óbvia da obsessão mais excêntrica de meu mestreForrest:Bladud,umreidruidadaAntiguidade.Poucotempodepois,aproximei-medajanelaecoloqueimeurostoparaolharoquehaviadentro,bloqueandoaluzdoluarcomminhasmãos.–Mestre!Chegouumamensagemparaosenhor.Ohomemsolicitavaumarespostaurgente.Ocômodoestavacompletamenteescuro.EstaeraumadascasasdoprojetodeForrestqueaequipede

Peter Bull estava construindo. Os homens da equipe de Bull eram preguiçosos. O trabalho estavaatrasado há semanas e, no dia anterior, Forrest tinha ficado furioso na oficina, pois descobrira quehaviammisturadopedrasruinscomboas,oquefariaaobracairaospedaçosdaliaalgunsanos.Batinajanelasuavemente.–Senhor?Vocêestáaí?Umapancada forte.Algumacoisabateuna janela, acertandoomeu rostoemcheio.Puleipara trás,

apavorado,comtodososmeusnervostremendo,enquantominhamãoseguravaalâminadobastão.Ugh!Preto.Pretoevoador,comoumdemônioalado.Retornou e deu outra pancada. Assim que gritei, meu medo diminuiu ao ver os olhos pequenos,

brilhanteseselvagensdaquelequemeassustara.Foiaíquecompreendi.Haviaumpássaropresonasala.Expireialiviado.Aquele lugarestavameassustando.Endireiteimeusombroseesboceiumaaparênciaconfiante.Então,andeiatéolugarondeaportadeveriaestare,atravésdesuafresta,espieiocorredorinterno.Acasa,semiconstruída,eraumamisturadesombrasefeixesbrilhantesdeluar.Faltavampainéisnas paredes internas e tábuas no assoalho.A ausência das tábuas funcionava como armadilhas negrasparaumincauto.Pensei em ir embora.Mas sabia que, se o fizesse, aquele pássaro voaria emmeus sonhos a noite

inteiraejáerabemdifícildormirsemele.Eraumaquestãodeminutostiraraquelacoisadelá.Sondandocommeubastão,introduzi-mecuidadosamenteemmeioaumaescuridãoespessapelopódeserra.Sentiumcheiropicantedepinheiroeaguarrás.Cavacosonduladosdemadeiraruíamsobmeucalcanhar.Atéonde consegui enxergar, percebi que o corredor tinha três portas. No final dele, o esqueleto de umaescada conduzia a uma escuridão espessa.Coleimeus ouvidos na primeira porta eme pus a escutar.Pancadas.Sussurros.Umsilênciotãodemoradoqueacheiqueopássarotinhamorrido.Depois,ouviumgritoáspero.Vireiamaçanetaeolheiparadentro.Estecômodoestavaquaseterminado.Ospainéisdemadeiraeramdeumcarvalhoescuro.Umagrande

lareirademármoreaparecianaparedeaolonge.Opássarodeveterentradoporali,imaginei.Nãoconseguivê-lo,mas,de repente, começouaziguezaguear emmeioà escuridão.E,destavez, a

pancadanovidrodajanelaforatãoviolentaqueopássaroiriaquebrarseupescoçotentandoatravessá-loseeunãofizessealgorapidamente.Entreinasala.Atrásdemim,aportasefechoucomumclique.Deixei escapar um palavrão, enquanto tateava desesperadamente procurando a maçaneta. Ela não

estavalá.Imediatamente,ummontedepenasassobiouaopassarpertodemeusouvidos.Tãopertoquesentiobafejodoaremminhaorelha.Abaixei-me.Apreocupaçãodeopássarodetestávelmeacertarouseenrolar emmeuscabelos,oupicarmeusolhosmeapavorou.Atirei-mede joelhoscomasmãosnochão, deixando cairmeu bastão, amaldiçoandoPeterBull e seus trabalhadores preguiçosos.Como eupoderiasairdelásemumamaçanetanaporta?Ficariapresoalianoiteinteira?ProvavelmenteForrestchegariaàcasaemquemoro,chamandopelomeunome,aomesmotempoemqueaSra.Hallsairiada

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cozinhaparadizer-lhequetinhachegadoumamensagemequeeuhaviasaídoparaoBecoGiles.Talvezviessemeprocurar.Outra arremetida. Lá estava o pássaro. Havia pousado na lareira. Percebi uma sombra pequena e

encurvada.Sonsdearranhõessuavesebatidasdeasasvinhamdoescuro.Umolhobrilhanterefletiaaluzdoluar.Estavameobservando.Saberondeeleestavafoioquemefezrecobraracoragem.Levan-

tei-me,olhandofixamenteparaeleeandandodecostasemdireçãoàjanela.Crack!!!Sombrasziguezaguearamaomeuderredor.Fuiaçoitadoporumbandoescuro.A sala estava cheia de pássaros.Gritei eme atirei no chão.Quantos pássaros havia ali e de onde

vinham? Estava preso com pássaros que comiam cadáveres e picavam os enforcados. Talvez o meucorpojásemolhosfosseencontradopelamanhã.PelomenosPeterBullficariaassustado.Esfregueimeurostocomminhamãocheiadeareiaedisseamimmesmoparanãoserumtolo.Tudoo

queprecisavafazererachegaràjanela,abri-laeas“coisas”sairiamvoando.Então,poderiaescalaropeitoril. Seria uma situação um tanto estúpida paramim.Ninguém jamais saberia disso, e amanhã eupoderiaatéachargraçadoocorrido.Cuidadosamente, mantendo minha cabeça abaixada, rastejei por sobre as tábuas ásperas. Alguns

pregos furaram as palmas dasminhasmãos. O carvalho rangia sobmeus joelhosmachucados. Agorapodiaverabagunçaqueospássaroshaviamfeito.Manchasbrancassujavamospainéisdecarvalhoealareira.Ospássarospareciamgralhas.Desúbito,umfeixedeluzdoluarsurgiuportrásdeumanuvemeosviempoleiradosnalareira,umafileiraescura.Algunspoderiamatéestarnapartesuperiordajanela.Um estava no canto da sala, em uma cadeira. Tentei não respirar. Estava quase conseguindo. Tateeiabaixoetoqueiumamãoquente.Fiqueihorrorizado.Gritei,estremecendo!Ospássarosentraramempânico,batendonasparedesenosvidros,esmagandoseusossosdelicados.

Algumacoisaseesfregouemmeuombro.Viderelanceomovimentorápidodeumvultoquemefezpulare me atirar contra a janela, tentando mover o peso dela para cima. Não se movia. Xinguei e forceinovamenteajanela,masopeitorilestavacobertocomfezesdepássaros.Umaasanegrabateuemcheionovidro.Penas irromperamapoucoscentímetrosdomeu rosto.Levanteimeubastãoegolpeei comalâmina o batente da janela. O suorme cegava. Pássaros, como uma chuva de suicidas, mergulhavamcontra o vidro. A madeira se fragmentava. Forcei com mais vigor. Atrás de mim, a porta abriu-seviolentamente.–Deixeessajanelaempaz,senhor!Avozeracalmaemecongeloucomoumaduchadeáguafria.Forrestestavaempénaportaolhandoospássarospretosquemergulhavamaoseuredor.Andoucom

passoslargosatravessandoocômodo.Empurrou-medeladoelevantouoscaixilhosnovosmalalinhadoscomambasasmãos,paraquepenetrasseumarajadadearchuvoso,quenosdispersouporcausadeseusrespingos.Cambaleei.Mesmoassimsofriparamantermeubraçosobremeusolhos,semeleperceber.–Váparaolado–falourispidamente.–Dêespaçoaeles.Trêspássarosmergulharampelajanelanaescuridão.Outrobateunachaminécomumruídoquemefez

estremecer.Forrestbatia,moviaebalançavasuasmãosdelicadamente.Oúltimopássaroagitava-se.Rodeou-nos,pousoueagarrouoencostodacadeirademododesajeitado.AsombradeForresteragigantescanaparede.–Váagora−disse,aproximando-sedele.–Voelivremente,espíritonegro.Masagralhanãosaiu.Pelocontrário,pulouemsuamão.Seráqueeleestavatãosurpresoquantoeu?Aquiloeraacoisamaisextraordinária.Opássaroemeu

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mestresesaudavam.Deumlado,olhospretos,grandeseredondos;dooutro,olhoscastanhostranquilos,como seumamensagemsilenciosapassasse entre eles.Vi unhas comescamas trespassaremapeledeForrest,umcorpocobertodepenasbrilhantesprocurandoequilibrar-se.Umsegundodequietude.Depois,bateuasasesefoi,adentrandoanoitechuvosa.–Surpreendente!–sussurrei.Forrestconcordoubalançandoacabeçavagarosamente.–Ummomentoverdadeiramentedruídico.Elepareceupermanecerporuminstantenaquelemomento

mágico.Então,sussurroueolhouparamim.Viainsensatezdaquelasituaçãoretornaraoseuolhar.–Zac,oquevocêfezconsigo,emnomedeDeus?De repente, tive consciência da poeira e da sujeira que cobriamminhasmãos emeu rosto.Minhas

roupas!Arruinadas!–Estavaprocurandopelosenhor.Entãopresumi...queospássarosestavampresos.–Quebagunça!Forrestandounovamentecompassoslargosatéalareira,curvou-sesobelaeolhoupelaaberturada

chaminé.–EssePeterBulldesajuizadonãotampouachaminé.Juroqueessehomemaindavaimemataralgum

diadesses...Entãoeudissesuavemente:–Senhor,temmaisalguémnocômodo.Elesevirou.Naluzdoluar,viseurostofinoeseusolhoscomaqueleolharfixoquefrequentemente

medesfalecia.Então,olhouparaondeeuestavaapontando.Elaestavaagachadanocanto,atrásdacadeira.Algumacoisacinza,parecidacomumsaco,moveu-sesobreela.Encolheu-sedebaixodelepensando

queassimestariaseescondendodenós.Porummomentopenseiqueelaerarealmenteumfantasmadetãopálidaemagra.Forrestmesurpreendeu.Agachou-se.Suavozeramuitosuave,comoaquelaqueusaracomopássaro.–Quemévocê?Elafezumbarulhobaixinho,comoumsoluçoouumsussurro.Forrestolhouparaoalto.–Pegueumaluz,Zac,rápido.Aosairdocômodo,euaouvidizer:–Sylvia.Demorei a encontrar umacendedor e uma candeia no escritório do capataz.Quandoos trouxe para

dentrodasala,ameninajáestavasentadanacadeira.Forrest estava empé ao ladoda lareira.Tive a impressãode que se afastara dela aoouvir que eu

estavachegando.Coloqueiacandeianastábuasásperasdoassoalho.Então,olheiparaagarota.Eramuitobonita.Seurostoeramagro,estavasujoecommarcasredondasdepústulasinflamadas,quecertamentetinha

porhábitocoçar.Seuscabeloseramdeumvermelhovivocomocobree tinhamsidopresos.Contudo,agoraestavamsesoltandoecaindosobreseusombros.Envolveu-secomamantacinza,oquenãomeimpediudeenxergarumsapato,maisparecidocomum

chinelo de seda branca bordado com floresmuito pequenas, em seu pé esquerdo. Provavelmente nãoeramcalçadosparaseremusadosforadecasa.Ela estava falandomuito rápido, tagarelando e sussurrando com soluços.Mas pude imediatamente

perceberqueelaconfiavanele.

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Entãoeledisse:–Comcertezavocênãopodeserforçadaa...–Senhor,vocêérespeitável,vocênãoconheceessaspessoas.Nãopossovoltar,senhor,nãoposso!–

diziaela.–Porfavor,nãomefaçavoltarparalá!Elahaviafugido.Eutinhaumaclaraideiadeonde.Estacidadefedeacovisdejogosdeazarecasade

mulheresdemáconduta.Elatambémcheiravaasuor,pomadaetambémabebida.JonathanForrestaobservavaatentamente.Suasombragrandemovia-se juntamentecomaminhaea

delapelaparede.Usavaseucasacopomposomarromcomcoletedamesmatonalidadeescura.Elenãoseesforçavaparasevestir.Suasbotasestavamrachadasecheiasdelama,diferentementedasdemeupaioudequalqueroutrocavalheiroqueconhecia.Raramenteseimportavaemusarumaperuca.Era,pois,filhodeumconstrutor,enãodeumcavalheiro.–Ondeéestelugar?–perguntou.Elaergueuacabeça.–Chama-seGibson’s,senhor.Ficapertodosbanhostermais.–Efazemvocê...– Obrigavam-me a atrair os cavalheiros jovens e ricos pela conversa e... coisas assim, para que

apostassem,bebessemeperdessemtodoodinheirodeles.Assimcomoperdiomeu.Seficasselá,nãoseioquemaispoderiaacontecercomigo.–Vocêfugiuestanoite?–Sim,senhor.–Paraondevocêvai?Ela deu de ombros. Percebi que usava um vestido de cetim azul, sujo e curto. Pegou seumanto e

enrolou-se.–MeusfamiliaresmoramemumavilanoaltodasColinas,masnãomequerem.Aindamaisagora.Eu

seriaumadesgraçaparaeles.EstavapensandoemviajarparaLondres.–Londres!–Forrestouviuassustado.–Menina,Londreséoinfernodosvícios!Vocênãodurariaumasemana.–Então,Bristol,senhor.Qualquerlugar.Seeutivessealgumdinheiro,poderiaacharumaresidência

temporáriaeumtrabalhohonesto.Esta conversa soava à mendicância. Estava certo de que ele lhe daria algumas moedas. Ele era

sensível.Atémesmoospedintesdaruapodiamvê-loseaproximando.Forrest virou-se e olhou para a lareira com faixa branca, como se estivesse pensando tão

profundamente a ponto de não a enxergar.Naquele instante, a garota lançou umolhar paramim.Umaolhadela com seus olhos azuis e, em seguida, voltou-se para meu mestre. Foi o suficiente para euperceberqueelaabsolutamentenãotinhagostadodemim.–Zac,tranqueajanelaecertifique-sedequeacasaestásegura.Elesevirou,estendeusuamãoparaelaealevantou.–Você,senhoritaSylvia,vaiparacasacomigo.Acheiqueoouviramal.Elatambémarregalouosolhosedisse:–Senhor,nãoachoque...– Você terá condições de tomar banho.Minha governanta irá alimentá-la e conseguir roupas mais

adequadasparavocê.Há láumquartodeempregadosondevocêpoderádormir.Amanhãdecidiremossobreseufuturo.Nãoseiquandosentidesgostotãograndeassim.Nãoconseguideixardememanifestar.–Senhor...suareputaçãonacidade...Elemedirigiuumolhartãoduroqueminhaspalavrassesecaram.Então,voltou-separaela.

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–Nãotenhomásintençõescomvocê,Sylvia.Nãotemnadaatemerameurespeito.Vocêmeentende?–Eu...eutenhocertezadissosenhor,mas...–elabalançouacabeça–nãoseriacerto.Ela só queria dinheiro. Tinha certeza disso agora. Perguntei-me se a história dela era mesmo

verdadeira.–Vamos.–Eleaconduziuemdireçãoàporta.Então,elesevoltourapidamenteparaondeeuestava.–Eumeesqueci.Acarta,ondeestá?Tirei-adobolsoe lhedei.Tão logoviuo selo,deuumgrande suspirode regozijoe saiuapassos

largos, rapidamente, com a candeia, deixando-me com a garota no escuro. Enquanto o observávamosabriroenvelope,eladissebaixinho:–Equemévocê,mestrePeacock1.?Olheifixamenteparaela.Acomiseraçãotinhasumidodesuavoze,porummomentopeculiar,suaface

refletiaumdivertimentozombeteiro.Lembreiqueelahaviacontempladomeupânicodiantedospássaros.Forrestbradou:–Enfim!–Senhor?Deialgunspassosemsuadireção,masele rapidamenteamassouacartae a colocouemseubolso,

apressando-seatéaporta.–Façaoquemandei,Zac.Fecheolocal.Ficouenrubescidopelarepentinaalegria,aquelecertoardeloucuraqueàsvezestomavacontadele.

Antesqueeupudessecontinuarafalar,osdoisjátinhampartido.Noescuro,fecheia janelaeo trinco,eolheiaoredordacasa.Masmeuspensamentosnãoestavam

nisso.Estavamimersosnaescuridão.Quefelicidadeaminha!Filhodeumhomemrico,subjugadopeladívida,apontodemetornaraprendizdeumlunáticoqueviviaasonharemconstruirumacidadeperfeitae,aindaassim,incapazdereconhecerumameretrizaovê-la.Enquantoandavaparacasapelosbecossujos,meditavacomoacidadereagiriaaofatodeForresttê-la

acolhido.Elaacabariaficando.Podiapreverisso,semelhantementeaumcachorroquetrouxeraparacasaeaostrêsgatosqueespalhavampelosportodaacasa.Comopoderiaviveremumlugarassim?Não souvirtuoso.Sou tão libertino comoqualquer outro.Mas eunão levoqualquer umapara casa

comigo.No momento em que cheguei à Praça Queen, já estava completamente irritado. Contudo, a vista

daquelascasasaltaseelegantes,bemcomosuaharmoniaeperfeição,sobaqueleluar,acalmarammeusnervos.APraçaQueenaindaeraomelhortrabalhodeForrest.Eleconseguiaacertaremalgumascoisas.Talvezdevesseentendersuasatitudescomoexcentricidadesdeumgênio.Afinal,todomundosabiaquetaishomenseramloucos.Entrei, subi as escadas, mas quando passava pela sala de trabalho vi seu casaco arremessado no

encostodacadeira.Parei.PelasuavozeavozdaSra.Hall,acriada,discutiamnoandardecima.Olhandorapidamenteaoredor,atravesseiasalaapressadamenteeenfieiosdedosnobolsodocasaco

dele.Opapelgrossoestalavaenquantoeuodesdobrava.Olheiparaele,maravilhado.Nãoeraumacarta,masumdesenho.Eraumaimagemdeduasfaces,JANUS,umafaceolhandopara

tráseoutraparaafrente.Ummasculinoeoutrofeminino,eaoderredorhaviaumgrandecírculoparaqueseurabopousasseemsuaboca.Eraumaserpenteestreita.Embaixo,alguémhaviaescritoumaúnicapalavraemumaescritapontiaguda.

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OROBOROS

Eunãofaziaamenorideiadoqueaquilosignificava.

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Bladud

Sonheicomafamíliaquehaviadeixadoparatrás.Perambuleiemmeioaobosquedecarvalhoseascolinasdesnudas,comoventovorazgritandoemmeusouvidos,enquantoeudeitavasobasfolhas.–Vocêaí,emsuacasaaquecida,comopodesabercomoumaalmaperdidasesente?Minhadoençaestourouempoçasecharcos,comoriosardendoemfebre.Eueraaterra,eela,um

mundo invernal.Asdoençassemanifestamdediversas formas.Podeserumaobsessão,umamania.Umhomempodetransmiti-lasatémesmoaseusmelhoresamigos.Umdia,demôniossaíramdobosquedecarvalhosparameatormentar.Elesgrunhiamebufavam.

Tinhamenormesfocinhoseseuscorposerampálidoscomofungos.Dormiamaomeuredorporcos,javaliseferaslendárias.Tornei-meumdelesseguindosuastrilhas,

comendoascastanhaseoscogumelosquedesenterravam.Brigavamcomigo,rugiamparamimeriam.Comeceiaverafrequênciacomquevagueavamnofundodeumvaleafastado.Quandoretornavam,

ascicatrizesdesuaspelespustulentastinhamclareadoesetornadosaudáveis.Aesperançaéalgotãofrágil!Umvislumbreemmeioàstrevas.Estavafracoeexaustodetãodesgastado.Talvezfosseomotivopeloqualopensamentosobretal

acontecimentotardaraachegar.Formou-sevagarosamenteemminhamente,comoaluznoOrienteantesdoalvorecer.Meupensamentomedizia:–Sevocêforaondeosdemôniosvão,serácuradotambém?Euossegui.Pordiasescurosrastejeicomoumabestadescendoparadentrodovalepantanoso.Vaporessubiamaomeuredor.Insetosminúsculoslamuriavamemepicavam.Coloqueiminhaspatasemeufocinhonochãoeosaspergicomaquelaáguaquente.Rastejeiparadentrodoconfortodocírculo.

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Sulis

Elahaviatiradotudodamala,menosumapastaazul.Estavanofundodesuamala,numcompartimentosecretocomzíper.Porummomento,olhoufixamente

paraapasta,enquanto,vestidaemseupijama,sentavadepernascruzadas.A luzdosolentravaquasehorizontalmentepelajanelaaberta.Gralhasoprimiam-senasárvoresdoCírculo.Então,elaabriuozíperetirouapasta.Porqueguardavaaquilo?Comtodasasmudanças,osquartos

diferentes,inúmerascasasqueaadotaram,apastahaviavindocomela.Sefosseparaelaterumanovavida,tinhadesedesfazerdaquelapasta.Aocontrário,elaaabriu,tirouosrecortesdosjornaiseosespalhousobreoedredom.Estavamsujosecomvincosnaspartesdadobradevidoàpassagemdotempo.Ninguémsabiaqueela

ostinha.Dozerecortesdejornaisdiferentes, todosexpunhamamesmafoto.Afamosaeúnicafotoquealguémderaum jeitodeconseguir.Umacriançade7anos,pequenae chocada, fotografada saindodocarro. Seus cabelos crespos e ruivos, seus olhos largos deslumbrados pelo flash da câmera, suamãopresafirmementeàdeumapolicial.Usavaumablusalistradacomcapuzeumacalçainfantilcomflorescor-de-rosa. Era tão pequena e magricela! Acima da foto, a manchete destacava: A MISTERIOSAMORTEDEUMACRIANÇA

OQUESERÁQUEELAVIU?TERRORNOPLAYGROUND

Sulislevantouumadaspáginasetrouxeafotoparapertodeseusolhos,paraqueaimagemsetornasseumamanchadetinta.Então,damesmaformavagarosa,elaaafastouatéficaremfoconovamente.Dosdoisjeitoselapermaneciaamesma.Agarotadafotonãoeramaisela.Ocarroprovavelmenteeraodeumpolicialnão identificado.Houvemuitoscarros,maselanão se

lembravadaquele.Porém,lembrava-sedacâmeraquetinhasidoempurradacontraoseurostoedoflashqueaaterrorizou.Apolicial,quedeveriaserJean,haviaficadofuriosaetentadoagarrarohomemquefugiuemumamoto.Deveterfeitoumafortunacomafoto.LevantousuacabeçaeolhounoespelhoonduladoqueHannahtinhatrazidoparasercolocadoemsua

parede.Viuumameninadiferentedafoto.Umamaismagra,comorostomaisfino.Umolharazulefirmeatravésdoqualnadapassavadespercebido.Seuscabelos,agora,eramtingidosdeloiroependiamlisosatéosombros.Parecia-secommilharesdeoutrasmeninasdasuaidade.Alturamedianaepesomediano.Suas roupas eram sempersonalidade.Ela as havia escolhido cuidadosamente, evitando brilhos, coresradiantes oumuito sensuais. Sem imagens ou propagandas.Assemelhava-se a uma estudante qualquer.Esteeraodisfarce.EstaeraSulis.Um pouco depois, ela dobrou os papéis e os empurrou de volta para o compartimento com zíper.

Enfiouamalano fundodoguarda-roupa, fechouaporta, trancou-aecolocouachavepequenaemseubolso.HannaheSimonerambemincisivosquantoàsuaprivacidade.Issofaziadiferença.Eladisse,refletindo:–Rosto,casaevidanova.Tudoquevocêprecisaagoraédeumpoucodedinheiro.Noandardebaixo,nocafédamanhã,emumacozinhapequenarepletacomervas,elalambiaoiogurte

dacolherediziabaixinho:–Eugostariadearrumarumemprego,sevocêsnãoacharemruim.Fazeraminhaparteparamanteracasa.

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Seus novos pais se entreolharam. Hannah derramou leite desnatado sobre seu cereal caseiro.Cuidadosamente,disse:–Sulis, issoémuitogentil,masdevemospensarnasuasegurança.Estaéumacidadecheiadeturistas.Elesvêmdetodososlugares,inclusivedonorte.Alguémpodereconhecê-la...–Elesnãomereconhecerão.Dezanossãobastantetempo.Nemeumereconheçomais.–Podeparecerumtempolongonasuaidade.–Simonabaixouojornal.–Masparaalgunsdenósé

como se fosse ontem. Além do mais, se for por causa de dinheiro, não há necessidade. Nós doistrabalhamos.OlhouparaHannahinquietamente.–Eoserviçosocialnospagaparapodermosmantê-la.Sulisbalançouacabeça.–Eunãoligo.–Nãoligaparaquê?–Paraqueelespaguemparavocêscuidaremdemim.Nãoesperavaquevocêsofizessemdegraça.Ela tinha sido áspera? Eles se surpreendiam facilmente. Eram diferentes dos casais com quem ela

haviamoradoanteriormente.Tãoabertos,tãoidealistas.PercebiaSimon,naquelemomento,embaraçadocomo se estivesse ouvindo uma suavemúsica clássica no rádio,mas, na verdade, aquelas palavras otinhamferido.Deveriasercuidadosa.Elejáestavaumpoucocautelosocomrelaçãoaela.Então,eladisse:–Nãoéapenaspelodinheiro.Emoutubrocomeçoauniversidade.Tenhodemeacostumarasair,estar

rodeadadepessoas;precisocomeçaraconstruirminhaprópriavida.Essaéarazãodeeutervindoparacá.Quandoeucompletar18anos,estareisozinhaetereideestarpreparada.Hannahveioesentou-seàmesa.–Vocêtemcertezadequeconsegueencarar?–Nãotenhomedo.–Quetipodetrabalho?Suliscolocouacolhernoprato.–Garçoneteoualgumacoisanumaloja.Somenteatéosemestrecomeçar...Algotranquilo.Devehaver

muitostrabalhosdefériasporaqui.Comovocêmesmadisse,hámuitosturistas.HannaholhouparaSimon.Porummomento,sóosomdopianoencheuasalaeozunidodeumcarro

quepassavaláfora.–Nósprecisamoschecarcom...asautoridades–disseSimon.Sulisencolheuosombros.–Bem,olhe!–Hannahdobrouseusdedos.–Seelesconcordarem,tenhoumaamigaquetrabalhanos

Banhos.Ela frequentaminha aula de ioga.Ontemelamedizia queumadas garotas que a ajudavanoverãoahaviadeixadoemapuros.Eupoderiadescobrir...–Banhos?–Sulisolhou.–Comoumtipodesalva-vidas?Houveumsegundoembaraçoso.EntãoSimondisse:–Não.Hannahriuumpouconervosa.–Não.Querodizerosbanhosromanos,Sulis.Omuseu.Astermasquentes.–Ah,sim.–AságuasdeSulis.–Simondobrouseujornal,foiatéaportaeparounametadedocaminho.Atrás

dele,naenormesalabranca,podiaverumalousadedesenhonajanelacobertaporumacortina.–VaidependerdaAlison.–Tudobem.–Sulislevantouseusolhoseoobservouporuminstante.Entãosorriu.–Nãogostaríamosqueelessesentissemdeixadosdelado,gostaríamos?

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Naverdade,mais tarde, pensou, ao ouvirHannah fazer algumas ligações, que não importava o queAlison ou qualquer outro pensasse.Eles haviamgovernado sua vida por anos,mas estava livre delesagora.Agora,estavaemsuacidadeideal.AsjanelasdasaladavamparaoCírculo.Estemomentodamanhãerabemtranquilo.Poucospedestresandavamali.Haviaumhomemsentado

em um banco solitário e uma van com a frase “Construtores Peter Bull” escrita nela. Esta se movialentamenteaoredor.Asfolhasdaárvorecentralaindaestavamverdes,comumoudoissombreadosnascoresruivasaparecendo.Nosolmatinal,aperfeitacurvaturadasfachadasdascasaserasuasatisfação.Nãosecansavadeolhá-

las.Eraumcírculodeouroeestavaseguradentrodele.Entãonotouentalhes,umafileiradeemblemassobreasportasemtodooCírculo.Inclinou-separamaisperto,tentandovê-losmaisclaramente.Porqueelanãohavianotadoanteriormente?Docorredor,avozdeHannahsemisturavacomaóperadorádio.–Ah,sim.Tudobem.Issopareceseramelhorcoisa.Ruth,émuitogentildasuaparte...Oapartamento

émaravilhoso,obrigada.Sulissorriuparasimesma.PorqueelahaviaescolhidoSimoneHannah?Elapoderiateridoparafora

dopaís.HaviapessoasnaFrançaqueseofereceramparacuidardela.AFrançateriasidorealmenteumavidanova.Maselasabiaoporquê.Eraporcausadacidade.Simonentrouepegoualgunslivrosdasprateleiras.Umaparedeinteiradoquartoeraformadaporeles.

Livrosgrandesecarossobrearquiteturaearte.Eladisse:–Quemprojetouestarua?Elesubiueolhoufixamenteparafora,refletindonospainéisdevidro.–OCírculo?UmhomemchamadoJonathanForrest.Umhomemlouco,masbrilhante.Obcecadopor

druidas emagia. Foi um dos primeiros a pesquisar Stonehenge.Quero dizer, a fundo, não apenas umdesenhoconfuso.DizemqueelebaseouseuprojetodoCírculoemvárioscírculosdepedras.Hátrintacasas no Círculo e trinta pedras no círculo exterior de Stonehenge. As dimensões são exatamente asmesmasdograndecírculodeStantonDrew,quenãoficamuitolongedaqui.Elefoiláemediuolugaremmeioaumatempestadedepedras.Algunsdizemqueestaruainteiraéumaconstruçãomágica.Seráqueeraporissoqueelasesentiaemcasaaqui?Eladisse:–Deveserumlugarmaravilhosoparaumarquitetomorar.Todavezemquevocêolhaparafora, lá

está.–Tchau–Hannahdisserindoaotelefone.–Vejovocênasexta.Simonbalançouacabeça.–Espaços são importantes, principalmente suas formas eonde se encontramnaTerra.Achoquehá

algonestelugarquenuncavamosrealmentecompreender.Vocêficapensandosobreoquepodeser,massedistanciacomocurvase,derepente,seaproximaatrásdevocê,surpreendendo-lhe,comoumsegredo.Novidro,encontrouoolhardela,queestavanele,eassimparoudefalar.–Desculpe-me,eunãoquis...–Estátudobem–dissesuavemente.Hannahentrou.Seurostolindoiluminou-se.–Bem, Sulis, se você realmente quer um emprego, aí está a oportunidade.Uma garota partiu para

Lanzarote semcontar aninguémeRuthestádesesperada.Elaperguntou sevocêpodedescer até lá, àtarde,paraconversarcomela.Possoircomvocê...–Não,obrigada–eladisse–,possoirsozinha.HannaholhouparaSimon:

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–Estamosfazendoacoisacerta?–Achoquesim,meuanjo.Sulisobservou-obeijarafacedeHannahesair.Aafeiçãoentreelesafascinava.Elaperguntou:–Quantoelesvãomepagar?Hannahpareciaconfusa.Elatirouoscabelosdosolhos.–Ah,sabe!Esqueci-medeperguntar.Vocêquerqueeuliguedevolta?–Não–Sulisbalançouacabeçaedirigiuaelaumsorrisopesaroso.–Voudescobrir.Por um momento, sentiu-se mais velha que Hannah, como se esta fosse uma irmã confusa e

incompetente.Talvezelafossemaisvelha,porqueHannahnuncatemeraporsuavidacomoelatemeu.Hannahnunca

havia ficado acordada durante a noite se perguntando se ele estava lá fora. Se ele ainda estavaprocurandoporela.Estavachovendoquandodesceuosdegraus,adentrandooCírculo,e issoeraótimo,porquepoderia

ergueroguarda-chuvaedeixá-lo sobre seu rosto.Acalçada largabrilhavaemmeioaoaguaceiro.Osparapeitos negros estavam manchados com grandes gotas. Andou ao redor da colina, descendo-a eobservandooesplendorgloriosodacidadeabaixodela.Sempreamaraconstruções.Outrascriançasbrincavamcombonecasearmas,mas,jánomaternal,só

brincava combloquinhos.Umconjunto de blocos demadeira amarelos, verdes e azuis.Essa deve tersidoamaneiracomoconheceraCaitlin,quetambémgostavadebrincarcomeles.Andou apressadamente pelos carros estacionados, esquivando-se do tráfego.A cidade estava ativa,

comas lojascheiasdepessoas.Passoupelosbancoseporalgumasbutiques,ouvindosotaquesnorte-americanos.Sobreostelhadosocéuestavaazule,mesmoassim,umanuvemfervilhavaporsobreaquelelugar.Umachuvatempestuosaencharcavaseuguarda-chuva.ElaeCaitlinhaviampassadohorasbrincandocomostijolos.Principalmentetorresquecaíamquando

algumacriançabatianamesaoucasascommurosamarelos,portasazuisetelhadosvermelhos.Elanuncafora capaz de colocar uma chaminé neles. Sorriu levemente, lembrandoquão perturbador aquilo tinhasido.Caitlinaajudavaeconversavamcomocriançaspequenasfazem.Demorouapenasalgunsdiasparaquesetornassemasmelhoresamigas.Nabasedacolina,aestradamudava.Asimetriaproporcionalelindadaslojasdesaparecia.Asruas

ficavammenoresemenosregulares.Elavirouàdireitaeseviuemmeioaumarededebecosedegrausquelevavammaisabaixo,comoseestapartedacidadehouvessesidoesquecidaporalguémmaisvelhoeconfuso, anteriormente a John Forrest e a pessoas que como ele se preocupavam com a ordem e aharmonia.Debaixo do guarda-chuva gotejante, ela sentiu como se de repente fosse levada ao seu passado

despedaçado,aotempoemqueerapequenaeomundoeraumlocalexageradamentegrande,comdegrausgigantes,cadeirasenormes,conversasadultastãosemsentidoquantoofarfalhardefolhasporsobresuacabeça.Melhornãopensarnisso,nememCaitlin.Muito tarde.Aansiedadeantiga tinhavoltado.Virou-se,movendo-separaolharatrásdesi: lojistas,

criançascorrendo,umhomem.Eleestavabematrásdela,notopodobecoestreito,olhandoatravésdajanelaointeriordeumaloja,

um homem com uma capa de chuva escura que pareceu se afastar dela. Ela, porém, o observavafirmemente, receando que pudesse ser o homem que lia jornal no banco naquela mesma manhã noCírculo.Não.Sim.

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Elanãosabia.Virou-se,respirouprofundamenteedisseasimesmaparadeixardeimaginarcoisas.Ninguémsabia

ondeelaseencontrava.Estavasegura.Forçouasimesmaaandardevagarefirmemente.Achuvahaviafeitoocalçamentoficarbrilhante.As

coresdasjanelasescorriameseesparramavamdebaixodeseuspés,comoatelamolhadadeumquadro.Alguns degraus abaixo, a porta de uma loja abriu-se, revelando um interior escuro, com móbilespendurados, sinosdeventoeestojosde joiasdeprata.Abaixou-seeentrou.Fechouoguarda-chuvaevirouascostasparaaporta,observandoseucontornoobscuroemumespelhonaparede.Depoisdeumminuto,ohomempassou.Agorausavaumbonéenterradonacabeça,porcausadachuva,eumcasacolongo.Traziaumjornal

enroladodebaixodobraço.Elaviuderelanceumrostopontudoecabelosescuros.Elenãoolhouparaolado.Elavagueoupelaloja,olhandofixamenteafileiradeanéisdeprata,porémsemnotá-los.Muitaspessoascarregamjornais.Issonãosignificavanada.Elacontinuouzanzandopordezminutos.–Obrigada–disseparaumamoçadesapontadaatrásdobalcão,esaiudespercebidamentedaloja.Achuvahaviaparado.Raiosdesolmolhadosbatiamsobreascasas.Correu rapidamente até o cemitério da Abadia. Como ela esperava, estava cheio de turistas que

tiravamfotose riamdacomédiaquese repetiadiariamente,assistindoaosartistasde ruaquepediamdinheiro.Sulis,semsernotada,passouporumafiladeestudantesjaponesesqueestavamdoladodeforadomuseu.Forçouseucaminhoporentreelese,derepente,tropeçouemumespaçovazioàsuafrente.Bateuemumporco.Eraenormeedeplástico.Florescor-de-rosa

forampintadasnele,assimcomogramaemsuaspatasepernas.Emseufo-cinho,cintilavaumaenormeargola.–Ingressos,porfavor.Ojovemtinhaporvoltadesuaidadeeusavaumacamisetaeumainsígniaquedizia“Segurança”.Sulisdisse:–Eunãotenhoingresso.EstouprocurandoasenhoraRuthMatthews,arespeitodeumemprego.–Oh.–Olhouimpacientementeascriançasdaescolaatrásdela.–Bom,émelhorvocêperguntarno

balcão.Elesachamarão.Naquelemomento,asportasseabrirameosestudantesmoveram-seemtorrentescomoumamaréforte.

Ela foi empurrada contra umgaroto e ambosbateramnoporco.Este cambaleou e ela agarrounele, ogarotofezomesmo.Eladisse:–Comoissoestáaqui?–Épartedainstalação–disseojovem,brevemente.–Algunsartistasofizeram.Porcosdetodasas

cores,portodaacidade.Elefezumacaretaeelasoltouumarisadinha.Entãosuafacecongelou.Portrásdosgarotos,porapenasumsegundo,viunacalçada,doladodeforadacafeteria,umhomem

tomandoumgoledecafé,olhandofixamenteparaelaporentreosmeninosfalantes.–Tudobem?–ogarotoperguntou.Elabalançouacabeça,entorpecida.

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Zac

Estavadevaneandonasaladetrabalho,quandopercebiqueelestinhamchegado.Olhandorapidamenteparabaixo,viquetinhadesenhadoumaserpentecomendoopróprioraboemvezdaplantaquedeveriaestarterminando.Rapidamentecoloqueiumpapelsobreodesenho.Então,fuiatéaportaeabriapenasumafresta.Havia três visitantes. Ralph Alleyn, que conheci certa vez, proprietário das pedreiras nas colinas

acimadacidade.EleeForresteramamigos.Forresttinhaatémesmoprojetadoumacasaparaele.Euahaviavisto,umagrandiosidade,umaextravagânciaflorida,grandedemaisparaseuespaço.Alleyn,umhomemalto e próspero, vestia um ternode seda azul elegante.Entrou conversando e rindo.Seu rostoaquilinoe suaperucaempoadacontrastavamcomaaparênciasombriadomeumestre.Forrestapertousuasmãoscomumcalorincomum.–Bomvê-lo,Ralph.–Vocêtambém,velhomago.Estáprontoparaencontrá-los?–Estou.Masreceioqueminhaplantainovadorapossaassustá-los.Alleynriuenãodissemaisnada.Osoutrosdoiseunãoconhecia,masacheiquefossemconselheirose,portanto, inimigosdeForrest.

Teriaeleserebaixadotanto,apontodepedir-lhesdinheiro?Mostrou-lhesasala,formalmente,depoissevirourapidamenteemeviuolhandopelafrestadaporta.Deiumpulopara trás.Eleestalouosdedos,dizendo:–Zac!Venhacáetomenotadisto.Pegueicanetaepapelemeapresseiasegui-lo.AsaladeestudosdeForresteraestreita,comlivros

alinhados.Haviaumaenormemesaparadesenharplantasnomeiodasala,ondeeleprojetavaeescreviaseus livros lunáticos. Algumas cadeiras, um tapete desgastado e manchado de tinta. Geralmentetrabalhavaempéouandandoimpacientementeparacimaeparabaixonocapachosurrado.Amelhorcoisadasalaeraoteto.Gostavadelepelofatodepossuirumagrandeclaraboia.Hoje,um

raioquentedeluzdeoutonohaviaentradonasala.Pegueiumbanquinhoeopussobele,nocantodasala,e me sentei. Os visitantes me olhavam inexpressivamente. Então me levantei e, inclinando-me,cumprimentei-os.Forrestdisse:–MestreZachariahStoke,meuassistente.–Elevaificar?–Eletomaránotassenãotiveremobjeção.Ohomempequeno,gordoesuadoencolheuosombros:–Sevocêinsiste.–Ralph–Forrestdisse–,possoapresentá-loohonorávelThomasGraye.Alleyninclinou-sediantedohomemgordo.–MestreGreyeéumvelhoconhecido.Forrest balançou a cabeça. Virou-se. O outro homem era mais jovem e, não mais velho que eu,

tremendamentebonitoepomposamentevestido.Rangimeusdentesaoverocortedeseuternoeomaciocouroespanholdesuasbotas.–EsteélordeCompton.Ralpholhousurpreso.–Émesmo?MaseutinhapensadoquelordeCompton...perdoe-me...fosseumhomemdeidadeavançada.

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–MeutiomorreuemRomanoanopassado.Orapazescolheuamelhorcadeirae se sentoucomaspernasestendidas.Preguiçosamentedeuuma

pancadinha de leve com sua bengala na pilha de livros com capas marrons, fazendo alguns delesescorregarem.–Herdeisuafortunainteira.Pretendoduplicá-laassimquepossível.AvozdeForresteramonótonaesardônica.–Bem,estacidadeéolugarcertoparafazerdinheiro,sedinheiroéoquevocêquer.Suadesaprovaçãoeraclaraparamim.MaslordeComptonsimplesmentecolocousuabengalasobrea

mesaeinclinou-separatrás,sorrindo.Eujáqueriabaternele.–Olugarestámuitocheio.Comestamultidãodevisitantesestásetornandoumacovaparaursos.ThomasGreyetirouopódeumacadeiraesesentou.–Janotas,meretrizes,trapaceirosnascartas,batedoresdecarteira,jogadoreseprostitutassãooque

estacidadeatrai.SomosumpotedemelparaamurmuranteralédaInglaterra.RalphAlleynriu:–Talvez.Maselesvêmpilharosricosque,comorebanho,banham-seemnossastermassaudáveis.E

homensricosprecisamdecasasfinas,cavalheiros.Daremostudoissoaeles.Ruasimponentes,praçasdignasdereis.OsprojetosdeJohnsãonossafortuna.Escreviaquilocomdesprezo.Naparede,oporta-retratosdaesposadeForrest,mortahádezanos,me

observavasuspeitosamente.Greye,ohomemgordo,eraquemfalava.Tinhaumanelemcadadedogordo.Eramtodosdeouro,eum

delesvaliametadedasdívidasdomeupai.Disse:–Casas,sim.APraçadaRainhaéumgrandesucesso.Concordocomvocê.Queplanotemparaocampomaisalto?Ouvirumores...–Deixe-memostrar-lhes–Forrestfalourapidamente.Percebi tensão em sua voz e senti que não conseguiria esperarmais.A noite passada não dormira,

ofegante,porcausadaasma.Suavozaindademonstravadificuldadepararespirar.Ralphveiodemaneiraimpacienteatéamesaqueestavacobertacompanobranco,embaixodoqual

algumacoisa alta eprotuberante aguardavapara ser revelada.EnquantoForrest se aproximava, a falapachorrentadelordeComptoncruzouasala:–Seuprojetovisaatrairhomensnobres,senhor.Acabeçadelesevirou.Seusolhoseramazuisefirmes.–Háum rumorgeneralizadonacidadedequevocêhospedaemsuacasaumagarota imoral.Estou

chocado,senhor.Minhacanetaparousobreapágina.Olheiparacima.Forrestestavadecostasparaelesemeencarava.Tinhaolhosescuroseagorapareciamnegros,com

umachamade raiva.Seus dedos enrijeceram-se sobre o panobranco.Elemeviu encarando-o.Entãoolheiparabaixo,maspensei:Comoumaserpente,eledesgastavasuaprópriapele...–Assuntosdaminhacasasãodaminhaconta.–Decerto–disseAlleynprontamente.–TenhocertezadequelordeComptonnãoquisinsinuarnada...–Oh,não.Comptonselevantou,sorrindofriamentenascostasdeForrest.–Nãoquisinsinuarnada.Peloespelho,levantouumasobrancelhaparamim.Encarei-odevolta.Estranhamente,nãoqueriamais

socá-lo.AfofocasobreSylviacirculavaportodaacidade.Forrestnãomantinhasegredodapermanênciadelaemsuacasa.Játinhaandadopublicamentecomelaelhecompradoroupas,botaseumasombrinha.Ele a tinha adotado? Era uma servente? Ninguém sabia. Nem eu sabia ao certo o que ele realmenteimaginava.

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–Oprojeto,senhor–Alleynseaproximoupor trásdeForrest.–Estamosansiososparavê-lo.Nãoestamos,senhorGreye?Ohomemgordoesfregouseurosto.–Nãofaçocontadequantasmulhereslevianasumhomempossateremsuacasa.Negócioénegócio.

Mostre-nosoprojeto,senhor.AlleynolhouparaForrest.Porummomento,perguntei-mesobreaamizadedeles.Eramtãodiferentes;

Alleyneraurbanoeansiosoparaseragradável,meumestreinconstantecomoomercúrio,convencidodasuaprópria genialidade.No entanto, freou seu temperamento e quase senti penadele.Virou-se para amesa,pôsopanodelado,comoseoprazerdaquelemomentoderepentehouvessedesaparecido.–Cavalheiros–disse,mal-humorado.–Meunovoprojeto.Chamo-odeCírculodoRei.Nãoeraumaplanta,masumamaquete,feitasoberbamentedemadeiranobre.Afinal,descobriporque

alamparinaqueimavahorasehorasduranteanoiteemseuquartoescuro.Ostrêshomensolharam-nofixamente.EfinalmenteGreyedisse:–Benditasejaminhaalmapecadora.Levantei-me.Aproximei-mesuavemente.Minhasanotaçõesescorregaramaochão.Amaquete era de uma rua que não era reta.Era um círculo de casas. A fachada contínua era um

projeto extraordinariamente lindo de colunas simétricas, como se não fossem casas individuais parapessoas simples, mas um enorme templo da Antiguidade, ou até mesmo uma arena de um imperadorromano.As colunas se erguiamem três estilos dogrego clássico, uma sobre a outra: dórica, iônica ecoríntia. Sou um estudante preguiçoso, confesso, mas já aprendi isso. A ousadia do projeto mesurpreendia.Umcírculodecasas!Tãosimples.Porqueninguémhaviapensadonissoantes?Nofinaldascontas,esseprojetodemonstravaagenialidadedeForrest?–Estritamentedepedrasregionais–Forrestfalouroucamenteemmeioaosilêncioquechocavaasala.–Trinta casas, cada umadelas construída de acordo comas exigências do dono.Umadiferente da

outra,mascomumaúnicafachadaunindotodaselas,comofizemosnaPraçadaRainha.Mas,destavez,seráumanfiteatroperfeito.Três ruas, como raios, partiam do meio dela. O coração do Círculo era um disco de pavimento

descoberto.Aproximei-me,fascinado,masninguémmenotou.Todosestavamadmiradose,estupefatos,olhavamfixamenteamaquete.Osilênciocontinuouporlongotempo.Alleynquebrouosilêncio.Disse:–Simplesmente...única!Perambulavaaoredordamaquete.Suasmãospálidastocavamchaminésetelhados.Percebiqueele

estavaprocurandoaspalavrasapropriadas:–John!Ésublime.Seráseumaiortriunfo.ObservandoochoquedeGreye,Comptonsorriumaliciosamente.Achoquenãoébemassim,pensei.–Umaruacircular–disseGreye.Forrestacenoucomacabeça.Estavainquieto,incapazdeficarparado.–OCírculo.Aformadouniverso.Perfeito,semfalha.Observadodequalquerpontodacircunferência,

sempreidêntico.AprópriaimagemdoSol.Dentrodele,umtriânguloequilátero,símbolodaTrindade.Viveraqui...–Viveraíseriainsuportável,senhor!–explodiuGreye.–Nãoháperspectiva,senhor.Nenhumavista!

Olhepelajanelaeportodaavolta.Amesmafachadainterminável.Opróprioarestariapresoeviciado.A poeira, senhor, seria incapaz de escapar. Os ecos barulhentos dos cavalos e das carruagensreverberariamemumgrandealvoroço.Seurostopequenocontorceu-secomescárnio.Balançouamãoemagitação.– Como você pode pedir a cavalheiros e damas elegantes para passearem em uma curva tão...

vertiginosa?Nãoháoutrolugarparair,senãorodarerodar,comoratosemumagaiola.Forrestenrubesceu.Senteirapidamenteefingiescrever,mesmosabendoqueelenãolerianadadeste

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lixo.Provavelmente,atirariatudoemminhacabeça.–Comcertezaessaafirmaçãoémuitodura–disseAlleyn.–Afinaldecontas,estaráacimadacidade.Aresdocesebrisassaudáveis,Greye.Nãohaverámiasmas

nocivosláemcima.Aspalavrasdelesoaramemumburacosilencioso;Greyelimpouagarganta.Esperavam, logicamente,porumamanifestaçãode lordeCompton,amaladedinheiro.Seuolharna

maqueteeradeumaadmirávelfascinação.Levantousuabengalaeporummomentopenseiquecausariaalgumdanoàestrutura.Forrestendureceu-se.Mastodaasuanobrezaerasuperioreelegante.–Suponhoquesejaumtipodetemplodosdruidas?ViRalphAlleyn estremecer.Ambos sabíamos reconhecer uma armadilha ao nos deparar com uma.

Masmeumestrecaminhoudiretamenteparaela.–Sim,acreditoqueostemplosdeleseramcirculares.–Evocêbaseouoprojetoemquê?–MinhapesquisadeStonehenge,senhor.OmaiortemplodruidadaTerra.–Stonehenge?–Apalavrasooucomoumazombariamórbida.Alleyntentouintervir,masjáeratardedemais.JohnForrestestavaperdidoemseuentusiasmo.– De verdade! Creio que certa vez os druidas tiveram uma grande cidade, em Aquae Sulis, antes

mesmo de os romanos terem vindo para estas ilhas. No Círculo de Stanton Drew, possuíam umauniversidade onde se dedicavam a estudar as estrelas e os feitos do Universo. Perto de Wells, emWookeyHole,rituaiserampraticados.Aqui,nastermassagradas,homenssábiosoperavammaravilhassobreacura.Descobriramossegredosdocorpo,suasproporçõeseharmonias,osespaçosdavida.Eraumgrandeedifíciode aprendizado, senhor.Seu rei chamava-seBladud,umsacerdotede alémdoventonorte.Escrevi tudo apressadamente,mais rápido do queminhamão conseguia rabiscar. As obsessões de

Forrest fluíam dele como se uma comporta houvesse sido aberta. Sua voz tinhamudado. Era rápida,radianteetotalmentemeditativa.Andavaemestadodeagitação.–Imaginem,cavalheiros!Podemosrecriartaislugaresdeaprendizadoemágica.Podemosdescobriro

que há embaixo desses becos imundos e dessas casas de apostas obscenas. Talvez haja paláciosdouradoseumtemploàdeusa.Pensemnaconstruçãodeumacidadecomruasgrandiosascomoformatodosoledalua.Asmelhoriasnasaúdedosmaispobresenosaneamento!Osjogosque...Comptonrespondeumostrandosuasgarras,comamalíciadeumgatolânguido.–Jogos?Pareideescrever.–Sim,certamente.Meucírculo,comooColiseudeRoma,poderiaabrigarjogos.Abelezadocorpo

humanoengajadaem...–Corridasdebigas,talvez?Forrestfranziuassobrancelhas.–Bem,euachoimprovável...–Gladiadores!AvozdoComptoneracheiadeescárnio.–Eu...–Cristãosjogadosaosleões?Lutadoresnusnalamaparatodasasdamasosobservarem?Forrest ficou em silêncio. Olhou para nós, ligeiramente entorpecido, como se somente naquele

momentosedessecontadoburaconoqualtinhaentrado.Aluzdosolquevinhadajanelapairavasobreeleefezcomqueamaquetedaruacircularsetornasseumpoçodesombras.Quelunáticoeleera!Sentiumcalore fiqueienvergonhadoporestarnamesmasalaqueele.Segureiacaneta tãofortequeminhamãodoeu.

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–AchoqueoqueJohnquerdizeré...–Alleyndissenervosamente.– O que ele quer dizer só Deus sabe. – Compton olhou a maquete arrogantemente. – Afinal, uma

construção circular é uma loucura.Qualquer umpode ver isso.Não vou investirmeu dinheiro nela esugiroavocê,MestreAlleyn,vendersuaspedrasparaalguémquevenhaaconstruirterraçosdecentes.–Virou-separairembora.Naquelemomento,aportaseabriu.Forrest sempre tomavaumaxícara de chocolate naquelamesmahora, todas asmanhãs.SeCook se

esqueceudequehaviavisitantes,nãoseidizer.QuandoForrestsevirouparaberrarcomacriadaportê-lo interrompido, viu que não era uma empregada,masSylvia.Ela ficou parada na porta, segurando abandeja com o bule de prata em que estava o chocolate, congelada demedo, aterrorizada. Todos oshomensolharam-na.Usava um vestido de seda nacarada que Forrest havia insistido em comprar-lhe. Era absurdamente

caro e, mesmo assim, caía-lhe perfeitamente. Sylvia estava arrumada, seus cabelos ruivos, bem-arranjados,eseurosto,enrubescido.Porummomento,acheiqueeladeixariaabandejacair.PuleitãologoForrestestalouosdedos.–Zac.Pegueiabandejadela.Elainclinou-seemumareverênciarápidaeteriafugidoselordeComptonnão

houvessedito:–Entãoestaéajovem...mulher.Elemeempurroudeladocomsuabengalaeolhouparaela.–Muitolinda.Seuolhareraatrevidoecalculista.Sylviaolhouparaseusolhoscompavor,efoiquandoopensamento

veioamimcomoumclarãodeluzprovenientedonada.Elaoconhece.Eladesviouoolharparalongedenósdois,intencionalmente,emdireçãoaForrest.–Desculpe-mepelainterrupção,senhor–disseela.–Eunãosabia...–Estátudobem.Obrigado,Sylvia.Seuvestidofezumbarulho,própriodaseda,quandosevirou.Esforçou-separaficarquieta.RalphAlleynsegurouaportaparaela.Poderianãoserumadama,mas

ele,certamente,eraumcavalheiro.Tireialgunspapéisdabancadadetrabalhoelanceiabandeja,masquandoolheidevolta,algohaviamudadonasala,comoseagarotativessedeixadoparatrás,noar,algomaisdoqueseuperfumelevederosas.Então,Greyedisse:–Tenhodepensarsobreisso.–OlhouparaCompton.–Vocêvem,senhor?Seusenhorioestavaolhandoparaaportafechadaeeunãogosteidaexpressãoemseurosto.Elebateu

emsuasbotascomsuabengalaelevantouseuolharopressivoparaForrest.–Tambémvoupensararespeito.Talvez...hajaalgoaquiquemeinteresse.Bomdia,cavalheiros.–Mostre-lhesasaída–Forrestestalouosdedosparamim.Maselesjáestavamnametadedocorredor,então,eumeapresseiemultrapassá-los.Chegueiàporta

dafrenteeaabriparaeles.O sacolejar das carruagens jogou uma onda de poeira em meu rosto. Greye dava passos com

dificuldade, mas seu senhorio parou onde eu estava e disse baixinho: – Forrest deve ser um homemdifícilcomquemtrabalhar.Meudesejodebaternelehaviavoltado.Sorriufriaemaldosamente.Tiroualgodeseubolsoemeentregou.–Encontre-mehojeànoite,àsdezhoras.Tenhoumaofertaalhefazer.Achoquevaiinteressaraum

homemambicioso.Pegueiocartão.Foimeumaiorerro.Virei-me.–Queoferta?

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Eleapenassorriu.Ficamoscaraacara.Éramosdamesmaidade,tínhamosamesmaalturae,semeupainãotivesseperdidotudonojogo,seríamosambosjovensricos.MaseleeramaisricoqueSatanás;eeu,aprendizdeumhomemlouco.Elevagueoupelarua.Fecheiaportaefiqueinohallescuro;liocartão.Dizia:SALÃODEFESTASGIBSON

Atividadeseiguariasparacavalheirosdebomgosto.RuadasTermasQuentes,AquaeSulis.

Batiocartãoemmeurosto,pensativo.OmesmolugardoqualSylviahaviafugido.Provavelmente,umcovildeapostas.LugarimprovávelparaqueComptonmeoferecesseumemprego.Aindaassim,qualquercoisaseriamelhorqueestehospício.Nasaladetrabalho,pudeouvirForrestenraivecidocomseudestino.–Tolos, arrogantes e ignorantes...Certamente podemos dar continuidade ao projeto semo dinheiro

fedorentodeles.Estilhaços da sua ira chamuscavam para fora da sala, mas ele havia sido o responsável por tudo

aquilo,comsua tolicesobredruidasesuabondade ingênua.Encostei-mecontraaportaeouvi.OtomsuavizantedeRalphAlleynescorriaporentreasfrestasdaporta.–Elesvãoreconsiderar.Fiquecalmo,John.Tudodarácerto.OuviForrestdarumarisadaofegante.Ficouemsilêncioporumtempo.Entãodisse:–Nãoseioque

fareisemvocê,meuvelhoamigo.–Vamosconseguir.Construímosnossohospitalelogofaremosdestacidadeumlugarondeatémesmo

ospobresterãocasaselegantes.Nãoéumsonho,John,vocêestáfazendoissoacontecer.Era profundo e sincero. Virei, incomodado. Então olhei para cima. No topo das escadas, a garota

estavasentadanodegraumaisaltomeobservando.–Nãoescuteàsescondidas,mestrePeacock–elafalou.–Vocêpodeescutaraverdadeaseurespeito.Encolhiosombros:–Vocêtambém.Eladeuumarisadainsolente.–Euseidetudo,masnãovoucontarparavocê.Enquantoelaselevantava,eudisse:–Vocêconheceorapazricotambém.Oquerealmentevocêfazaqui,Sylvia?Elaficouparalisadaporumminuto.Então,entrounasaladedesenhoefechouaporta.ElapodiaterenganadoForrest,masnãoamim.Elanãoeranemumpoucoinocente.Isso,talvez,estejacomeçandoaficarinteressante.

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Bladud

Nãopossodizerporquantotempovivipróximoàságuas.Seucaloreraumamaravilha,comoseo sol, emsegredo,houvesse seafundadona terra.Mesmo

sendo inverno, vivi em um buraco de vapor quente, onde plantas de verão floresciam na terraencharcada.Anevederretiatãologocaía.Bebidaágua,lavei-menelaeesfreguei-aemminhapeleferida.Aáguatornou-setudooquehaviaperdido:ocalorhumano,apalavrareconfortante.Sentia a água sussurrar emminhasmãos, deslizar emmeus braços, como algo vivo. Como uma

garota.E,algumasvezes,emdelírio,oumeioadormecido,penseitê-lavisto,comoumespíritodastermas,

levantando-sesobremimemeobservando.Vestidacomalgasverdesecomcabelosdeervas,rostofinoecheioderisosesegredos.Vagarosamente,apóssemanas,tivearevelação.Andeiereto.Comiasplantaseasbestasqueassombravamaquelelugar.Emumdiadecéuazul,tireiasalgaseosliquensdafontesagrada.Ajoelhei-me,prostrei-mee,por

entreasbolhas,vimeurosto.Porumlongotempo,observei-me.Lágrimascorriamaquecidasporsobreminhapele,depoiscaíamnastermas.Não haviamais feridas, pústulas emachucados lodosos.Estava curado e sentiminhas forças se

juntaremaosmeusossosenervos.Elaestavaempé,atrásdemim.Suasombraescureciaaágua.Entãoeudisse:–Qualopagamento

quedevodaraSulis?Arespostadelaborbulhoudasprofundezasdomundo.–Façaumcírculoaoredordeminhaselvageria.Confina-meemumcírculodepedras.

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Sulis

Olhou-se no espelho. O uniforme era simples – calça preta, moletom preto. As palavras BanhosRomanosestavamescritasnele.AimagemfamosadacabeçadeGórgona,queanteriormentehaviasidodescobertanaquelelocal,eraologotipodaloja.Aroupaeradesprovidade traçosdistintos,e issoaalegrava.Gostariade terumbonéoualgopara

cobrirseusolhos,maserabobagem.Enquantoestavanolavabo,gelado,parafuncionários,pensavasetodososempregoseramtãofáceis

deseremconseguidos.Eraassimqueomundofuncionava–vocêconhecealguémqueconhecealguém.Aentrevistalevoumenosdedezminutos.Amulher,Ruth,pareciaestressadaeapressada.Elachecoualgunsfatos, o nome, a idade, oRG falso e disse: –Bem, quantomais cedo você começar,melhor.Que talamanhã?Sulisrespondeu:–Prefirosegunda-feira.– Ótimo. Sete emeia, em ponto, por favor. Pedirei a alguém que leve você para dar uma volta e

conhecerolugar.Precisava do final de semana para certificar-se sobre aquele homem. Quando deixara o prédio na

sexta-feira,amesanacalçadaestavavazia.Elahaviaseinfiltradonamultidãodeturistasparasesentirumpoucomaissegura,andouporumbomtempoziguezagueando,rodeandoruas,enfiando-seembecosevielasatéchegaràsuacasa.Depois,subiuaoseuquartoesaiunotelhado,emseupeitorilsecreto,agachando-seesegurandofirme

napedragiganteemformade landes.FicouobservandooCírculo,pornomínimomeiahora, atentaacadaandarilhoeveículo.FezissoatéHannahestacionarseucarro,subirasescadasechamá-la.–Su?Vocêestáaídentro?Hannaha encontroudura egelada.Umde seusbraços já estava adormecido, e suamentevagueava

estranhamente.Nãohánenhumhomemocioso.Nadaincomum.Nadanosábado.Nadanodomingo.Eladevia terficadomuitoquieta,poisSimoninsistiuquetodossaíssemnodomingoà tarde,parao

queelechamavadepasseioemfamília.Acabousendoumavisitaaumacasadecamponaqualeleestavainteressado. Sulis, porém, curtiu o gramado verde imenso, o bosque com folhas que caíam e o chácremosoquetomarammaistardenasaladecháaconchegante.Agora, ao abrir a porta para o saguão domuseu repleto de eco, disse a simesma que o interesse

daquelehomemnelaeraalgoimaginário.Tinhadeselivrardaquelemedoantigo;maseradifícil.Estavapresodentrodela,umpavoremseupeito;emborapudesseconversar,rireaparentarnormalidade.Todavezqueficavasozinhaouaconversaesmorecia,ouumprogramanaTVdavalugaraumcomercial,láestavaomedo,comoumasombra.–VocêéSulis?Eraogarotocomainsígniadesegurança.–SouJosh.Disseram-meparalevá-laaumtourrápidopelomuseu.Pareciaencabuladocomasituação.–Bom–eladissetãofriamentequantopoderia.–Guie-me.Elenãoeraumbomguia. Iamuitorápidoenãoexplicavaascoisasapropriadamente,comosealgo

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maisimportanteocupassesuamente.Guiou-aporumcorredoraumterraçodepedranoladoexterno.–Aíestá–murmurou.Olhousurpresa.Embaixodela,umaenormepiscinadeáguaquente liberavavaporesemmeioaoar

frescodooutono.Pareciafunda,maseradifícildizer,porqueaáguaeradeumpálidoverde-esmeralda.Traçosdebolhasminúsculaslevantavamaquiealiemsuasuperfície.Olhouparasuasbordascalçadas,suascolunasclássicasesuasestátuas.–Sãotodasromanas?–Primeiraperguntamaluca.–Joshseapoiounoparapeito.–Abanheiraé.Orestoémaisrecente.Eraumapiscinaromanaaoarlivre.–Deondevemaágua?Comoficatãoquente?Derepente,percebeuquãopoucosabiasobretudoaquilo,apesardetodaapesquisaquehaviafeito

emSheffield.–Nosubterrâneo,ficaextremamentequente.Nãoseicomo.OnúcleodaTerraéquente,nãoé?Derepente,eleficousério,fezumaposedeconferencistaeimpostouavozdeumamaneiraridícula.–AtermadoBanhoRealéumafontedeáguanaturalquenascebemfundosobacidade;temvazãode

ummilhãoemeiodelitrospordia.Nuncasetevenotíciadeseuvolumeterminguado.Elariu.Eelecontinuou:–Silêncioaíatrás,porfavor.Atemperaturadaáguamantémumaconstantede49ºC.Aáguaquevocê

estáolhandoéantiga,caiucomoprecipitaçãodaschuvasnascolinasMendip,há6milanos...–Éverdade?–Bem, é o que o guia diz aos grupos visitantes. –A voz dele retornou ao normal. Ele se virou e

continuouaandar.–Vocêéguia?–Não,maseuqueroser,poisosalárioémelhor.Eaindaporcimarecebemgorjetas.–Achoquenãoconseguiriamelembrardetudoisso.Encolheuosombros,maselapôdeverqueeleestavarealizado.–Sevocêtivessederepetirdezvezesaodia,iriaselembraraoandaraquiembaixo.Agora estavam no subterrâneo. Ela o seguiu através de quartos escuros, cheios de objetos de

exposição, caixas com cerâmicas romanas, lápides, altares, maquetes e reconstruções, banhistas daAntiguidadecujasvidasforaminterrompidas.Joshvirou-seeperguntou:–Entediadaoumuitoentediada?–Naverdade,eugosto.–Estamosbemdebaixodapraçaagora.Todosaquelesturistas,artistasderuaelojasestãoaunsdez

metrosacimadenós.–Vocêpodemeesperaraquiporumminutinho?Enquantoelaesperava,opensamentosobreaquelesolhosnegrosolhandoparaeladamesanacalçada,

emmeioàmultidão,tomousuacabeça.Porummomento,sentiu-sesendoobservadanovamente.Olhouaoredor,masomuseuestavaescuroesombrio;nãohavianinguémalémdela.Umbarulhoveiodomeiodascaixas.–Josh?Haviaalguémaobservando.Podiasentirseusolhos,suaintençãoeseuexaminarsecreto.Suasmãos

repousavamsobreumquadrodeinformação.Elaoseguravatãofortequeseusdedosdoíam.–Quemestáaí?–elasussurrou.Coposbrilhavamemmeioàluz,reflexosdecálices,pedrasemineraisromanos.Umacalçadaplanade

pedra se estendia emmeio à escuridão.Então, olhou para cima e viu os olhos.Eramde um rosto depedra,eaolhavamfixamente.Orostoeracircular,comsobrancelhasfranzidas,epertenciaaumhomemcombigodeharmoniosoeumcírculoluminosodechamasaoseuredor.Ouseriamcobras?Naescuridão

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eradifícildizer.Mas,de repente, enquanto Joshacendia todasas luzes,holofotes iluminaramcomumfoco único, ela viu que o rosto que a encarava estava em meio a um frontão triangular. E por trás,timidamente, existiam duas asas enormes. Por um momento, algo se inquietou dentro dela, bemprofundamentenassombrasdesuamemória.Elaseabraçou.Queriagritar.Mas,emvezdisso,sussurrou,comsuavozfracanaquelacâmarasubterrânea.–Euseiquemévocê.DisseaCaitlinqueelapodiavoar.Porquevocêfezisso?Elaeraminhaamiga.

Vocêamatou.Luz.Umamúsicaeclodiu.Umavozressoou.“Bem-vindo ao Museu de Banho Romano. Nosso espetáculo interativo está aberto e convidamos

você...”–Sulis?Josh surgiu de um canto do cômodo, encarando-a curiosamente. A normalidade voltou como um

solavancoquepareciavibraratravésdeseusnervos.Expirousuavementeedisse:–Acabeidedeixarmeu relógio cair.Acho que não quebrou. Fingiu apertá-lo, seus dedos agora estavam controlados e otremorjáhaviaidoembora.Porummomento,eleaobservou,comosenãoestivessemuitoconvencido.Disse:–Estelugarpode

dararrepiosnoescuro.Elavirou-se:–Pode?Talvezsuavozestivessemaisfriadoqueintencionava,poiselepareceuofendido.Então,eledisse:–

Vamos.Abriremosemdezminutos.Mostrou-lheorestodoscômodos,masnadamaischamouaatençãodelaatéquechegaramaumlocal

ondeaáguavertiadeformaarqueadacomoumanascente.Umlocalcheiodevapor,barulhentoecomumagrade,atravésdaqualsepodiaolhar.Elaagarrouometalaquecidoepressionousuatestacontraele.–Olhetodasessasmoedas!–Aspessoasasjogamaí.Oferendas.–Eledeuumsorrisomalicioso.–Nofinaldatemporada,nós

limpamos e dividimos o lucro entre os funcionários. Imagine... nós encontramos todo tipo de tralha:moedasestrangeiras,botões.Deveriammostrarmaisrespeitoàdeusa.Ocaloreramaravilhoso.Sentiaumardorúmidoemseurostoelábios,comoimaginavaqueumasauna

deveria ser.Precisaram ir embora.Ao levá-la devolta parao saguãoprincipal, ele disse: –Ruthmefalouquevocêéumaestudante.Imediatamenteelasepôsemguarda.–Voucomeçarafaculdadeemoutubro.–Aqui?–Sim.–Amaioriadaspessoassemudadaqui.–Nósacabamosdenosmudarparacá.Eledisse:–Donorte,possoidentificarseusotaque.Eladeuumarisadinha:–Estátãoóbvioassim?–Bom,comparandocomodopessoalquemoraaqui...Ele ficou em silêncio depois disso. Enquanto ela o seguia pelo corredor, sentiu que deveria ser

amigáveltambém.Perguntou:–Vocêéestudante?Elenãorespondeu,elanãoconseguiaverseurosto.Respondeu:–Não.Estouprocurandoumemprego.

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Haviaumavisoqueelaidentificou.Dizia:“Nãomeperguntesobreisso”.Elasabiaexatamentecomoerasesentirassim.Quandoeleschegaramaosaguãodeentrada,eledisse:–Boasorte.–Esaiuparaabrirasportasaopúblico.Elafoiatéalojadepresentesparacomeçaratrabalhar.Não foi tãodifícil.Quasenahorado almoço, ela já sabiaonde tudo se localizava: apapelaria, as

toalhasdechá,ascópiascaríssimasdasestátuas romanaseas joias.Nãosabiamexernocaixaainda,masRuthdissequeaensinariamembreve.Deveriaapenasseconcentrar,nestedia,emaprendersobreoestoque,ospreços,comodeixartudoorganizado,observarascriançasdasescolasqueentravamnalojacomoumagrandeondaagitada,quebrandoapontadores,lápiseospequenossoldadosromanos.Nahoradoalmoço,elaprecisoudear fresco.LevouseussanduíchesparaaPraçadaRainha,onde

havia um espaço verde, alguns bancos para se sentar e pessoas que admiravam as construçõesmajestosas.Simonhavialheditoqueaquiloforaaprimeiraobra-primadeJonathanForrest.–EleafezantesdoCírculo.Trabalhofabuloso.Elasesentouemseucasacoeobservouas folhascaíremdasárvores. Jásesentiabemfelizcomo

emprego.Gostavadeverosturistasdetodasaspartesdomundoconfusoscomospreçosetentandosepassarporentendidoscomsentençasprovenientesdeumguia turístico.Adoravaomistériodas termasquentes.Porummomento,recordoualgoqueahaviapreocupadomaiscedo...Sim,aquelerostodepedra.Elaolhouologotipoemseumoletom.Nãoconseguiaselembrarporqueeleatinhaalarmado.Descartouopensamentoeseperguntousehaveria tempoaindadeiratéoengraxateedeconseguirumpoucodecremehidratanteantesdevoltar.Foiquandoqueelaoviu.Cadaossodeseucorpopareceusepetrificar.Estavaempé,dooutroladodapraça,decostasparaela.Reconheceuocasacoescuro,tãolongoque

cobriaosjoelhos.Eleestavaolhandoparaoutrodaquelesporcoscombolinhasqueestavampelacidade.Eradeacrílicotransparente,demodoquenãopareciaestarali.Elaselevantou,segurousuabolsaquecaíradeseucoloeengoliuaoutrametadedeseusanduíche.A

latadeCocacaiuederramouolíquido.Elenãosemoveu.Elaoviualcançaroporcoinvisível,tocá-losuavementeecorrerosdedossobre

suasuperfície.Porummomento,pôdesentiroplásticofrioelevementeúmido.Elelevantousuasmãoseasmanteveerguidas.OsdorsosdelasvoltadosparaSulis,comoemumcumprimento.Eledevesercapazdemever,–refletiu.Virou-seecorreuempurrandoaspessoasemseucaminho,cambaleandopeloportãoepela rua, tão

descuidada que ummotorista buzinou alto para ela e outro freoubruscamente.Ao ignorar as luzes nocruzamento,correuatodavelocidadepelacalçada,virouumaesquinaealcançouumatalhoqueencontrounopátioanexoaumalbergueantigo,atévoltaraumaruacomlojasdecaridade.Entrounamaispróxima,agarrouumasaiae,ofegante,disse:–Possoprovaresta,porfavor?Moveu-se rapidamente para dentro do provador, puxando a cortina tão bruscamente que quase a

derrubou.Seucoraçãoestavaacelerado.Semar,comascostasviradasparaoespelho,aguardouummomento.

Depoisdeumminutoangustiante,abriuumafrestanacortinaeespiouolocal.Haviapoucaspessoasnaloja.Ninguémestavanaportadeentrada.Nãosabiaoquefazer.LigarparaHannah!Tãologoopensamentoveioatéela,atirouasaiaantigana

cadeiraepegouseucelular,ficandocomelenamão.Não.Tola.Estavaempânico.ImaginouHannahgritandonocarro,correndoparadentrodaloja,todaamedrontada,easpessoasna

loja...

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Não.Respire.Controle-se.Ela sorrateiramente deu outra olhada para fora. Novamente, não viu ninguém na porta de entrada.

Sentou-seemumbanquinhocambaleantementeeesperou.Tinhadezminutosantesdeprecisarvoltaraomuseu;conseguiriachegaratéláemdois.Havia uma música no rádio. Uma música antiga do Bowie. Deixou a música fluir dentro de si,

concentrando-senelaedeixando-selevarparaoutrolugar.Amúsicasempreaajudou.Acortinafezumbarulho.Eladeuumpulo.–Vocêjáterminouaí,querida?Temoutrapessoa...–Sim,desculpe-me.–Abriuacortinacautelosamente.Amulheridosadocaixaestavaempéalicom

outrasenhoraaposentada.Ambasolharam-nacomosehouvessealgoerradocomela.Forçouumsorrisoradiante.–Nãocabeemmim,desculpe-me.Asaiaerahorrível,percebeu.Aocolocá-ladevoltanocabide,elaquaseriu.Sentiutamanhahisteria

quelheprovocoucalafrios.Foiparaaruaedeudecaracomele,quedisse:–Nãoéumalojamuitolegal.Sulisrespirou.–Josh.Deuumaolhadelanarua.Elecarregavaumpãocomlinguiçaenvoltoemumpapelengordurado,deu

umamordidanele:–Nãoaestouseguindo,seéoquevocêestápensando.–Eu...–Brincadeira.–Certo.Eleolhouparaeladeperto.–Vocêestábem?–Sim.Melhoreuvoltar.Andourapidamente.Elepassouaacompanhá-la.Eladeualgunspassosenãoseconteveemolharpara

trás.Fezissopormaisduasvezesatéchegaremàpraça.Enquantoandavamnomeiodamultidão,seusolhosmiravamrapidamenteorostodaspessoas.–Alguémestáseguindovocê?–perguntouJosh.Olhou-orapidamente.Emseguida,empurrouaporta,abriu-aecorreuparadentro.Lógico,pensoumaistarde,colocandoumlivroemumasacolaparaumcliente.Nãoestavaseguranem

dentrodomuseu.Nãohavianadaquepudesseimpedi-lodeentrar,compraralgo,viratéocaixa,ficarempéàsuafrenteeolhá-la.Eleerabemalto.Muitoalto.Mas,naquelaépoca,elaeraapenasumacriança.Elenãoapareceu.Passoua tarde inteiranervosae,quandochegouomomentodea loja fechar,não

podiaesperaratéosferrolhosserempostosnaportadarua.Ruthabaixouapersianaevirou-se,aliviada.–Deus.Que tarde agitada.As escolas voltaram em ritmo intenso.Acho que vou emigrar. –Ela se

aproximouedisse:–Bem,Sulis,comofoiseuprimeirodia?–Bem,obrigada–disseeforçouumsorriso.–Vocêfoimuitomelhorqueamaioria.Vejovocêamanhã.Foiparaa salados funcionáriosepegouseucasaco, tendocuidadoparanãoencontrar Josh.Havia

apenas alguns guias conversando. Então, saiu quieta pela entrada da sala de funcionários e olhou aoredor.Aruaestavavazia.Respiroufundoecorreu.Levoudezminutosparacorrerparalonge,porruasentrelaçadaseterraçosdacidade,certificando-se

de que estava segura. Finalmente, com dores no abdome, parou para respirar, segurando-se em um

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parapeitopretodeferrobatido.Queriaagachareseencolher.Semprefaziaissoquandoerapequena,depoisdepensarsobreaquele

homemeCaitlin.Àsvezes,arrastavaumcobertordacamaeseenrolavaneleporhoras,contando,cantando,desenhando

espiraisecírculosemumpapel,semsairdelá,ignorandotodasaspromessasquesuasmãesadotivaslhefaziam.Conselheirosjáhaviamconversadocomelasobreisso.–Vocêsesenteseguraassim,docinho?Possoespiaraíembaixoeconversarumminutinhocomvocê?Elareergueu-sedoparapeito.Elenãoadestruiria.Nãodeixariaissoacontecer.Seriaelemesmo?Andouorestodocaminhodeformavagarosaedecidida,semolharaoredor.ChegandoaoCírculo,seucoraçãosefortaleceuumpoucoaoadmiraraperfeiçãodoarcodecasas.

Andandoaoredor,percebeuquehaviacurvasàsuafrente,masnãodesejavapercorrê-las,poisqueriauma linha reta.Andou compassos largos diretamente pelo círculo ondulado de grama, no centro, porbaixodascincoárvoresgrandes.Folhasobstruíamagrama.Chutouomonteviçosocordecobre.Sobasárvores,agramaeraesparsa.

Bemnocentro,haviaumtelhadodeconcreto,dealgumaestruturasubterrânea,verdepálido.–Sulis–Simonachamou.Estavanosdegrausdaentradadacasacomsuachaveeumasacolacheiade

compras.Eleacenoue,quandoelaseaproximou,disse:–Teveumbomdianomundodotrabalho?–Foiótimo.Olhouparaelaeabriuaporta.Enquantoentravaseguindo-o,sentiualgocrepitarembaixodeseuspés.

Eramapenasalgumasfolhasqueoventotrouxeraparadentro.Enquantoobservava,umarajadadeventofezcairumafolhasuavementenopédaescada.Folhadecarvalho,apesardenãohavercarvalhosnoCírculo.

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Zac

Namanhãseguinte,enquantoeuestavacozinhandoparaCookaquelemingauhorroroso,Forrestentrouedisse:–Pegueumcasaco,Zac.Nósvamossair.Euoolhei.–Paraosítio?Eunãotinhainteressealgumnaquelelocal,poisaindaeraumcampoíngremeeenlameadoacimada

cidade.Trabalhadoresestavamdandoduroparatentar torná-loplano,construindoumaenormebasedeacessoàruacircular.Quemsabealgumdiaconseguiriam.–Paraosítio,não.Meumestre estava com as mãos próximas ao fogo da lareira. Suas mãos ficavam frias com certa

frequência,eunotava.Suaasmatambémpioravaduranteamanhã.–VamosparaStantonDrew.–Éalgumavila?Ele riu.AtéCooke a empregada sorrirammaliciosamente. Isso é exatamenteoque eudesprezona

casadeForrest.Umcavalheironãodeveriacomernacozinha,mas todosnós fazemosassim,pois suamesadejantaréumabagunça,cheiadeplantaselivros.–Umavila.Sim.Masessenãoéomotivodeirmoslá.Tenhoalgunsnegóciosafazerláeprecisoda

ajudademeuassistenteagrimensor.Seráumbomtreinamentoparavocê.Tive a certeza de que havia alguma casa elegante a ser inspecionada, e, seguindo a orientação de

Forrest, abandonei a colher domingaugelado.Quando saí, elemedisse: –Vocêvai precisar de umamala.Nãovamosvoltaratéamanhã.Corriatémeuquartopequenoemepergunteioqueohaviadeixadodebomhumor.DepoisdabagunçacomCompton,acheiqueeleestavaferozmentefrustrado.Eramutávelcomoovento.Pegueimeucamisãodedormir,umacamisanovadelinhoeumpoucodedinheiro,joguei-osemminha

bolsadecouro.Erausada,mascara.Adoravaocheiroeotoquedela,poishaviasidocompradaparaomeu pai, quando ainda jovem e de partida para a Europa a uma viagem turística para conhecer asmaravilhas deParis eRoma. Isso era algoque tambémhavia jurado fazer quando recuperasse todoodinheiroquemeupaijogaraforaapostando.Opensamentosobreminhaherançaperdidatrouxeumasensaçãoperturbadoraemminhamentequeeu

sabiaserde“ira”.Umairaimensurávelefortecontraaatitudeestúpidadomeupai.Então,paramandá-laembora,coloqueiminhasbotasepenseiemForrest.QualeraosignificadodapalavraOroboros?Porqueumaserpentecomeriaseuprópriorabo?PlanejeiesperaratéqueForresttivessesaído,para

entãoconsultarseuslivrossobredruidaseseusmuitospanfletosantigosemofados.Sehouvessealgumsignificadosecreto,estavadecididoadescobri-lo.Houveumbarulhonaescada.Parei,comumabotacolocadapelametade.Entãomelevantei,salteiatéaportaeaabricomímpeto.Aescadaestavavazia,mashaviarastrosdeumperfumederosasnoar.–Paredemeespiar–bradei.Nãohaviasinaldela,massabiaquepodiameouvir.–Sevocêtocaremqualquerdosmeuspertences,direiaForrestefareicomquesejajogadadevolta

àsruas...

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Ouviumarisadasuavenaescadariadosótão.Entreinovamenteemmeuquartoebatiaporta.Oqueeleestavapensandoaoacolhertalcriatura!O

rumortinhacorridotodaacidade.Seráqueelequeriadestruirseunegócio?Nãoqueeumeimportasse.O que era o negócio dele para mim? Foi quando me lembrei de um sonho que tive à noite, só umfragmentodele,deumcírculodecasasenorme,erguidoaosol,cheiodepessoas.Seucentroverdecomcincoárvoresgrandesnomeio.Mesmocommávontade,eusabiaquequeriaveroCírculoconstruído.Partimosàsdez,cavalgandoosdoisúnicoscavalosqueelemantinha.Jánaesquina,olheiparatráse

viSylviaacenandododegraudaporta.Usavaumxaleazulporcausadofrio.Haviaumsorrisoatrevidoemseuslábios.Forrestacenoudevolta.Olheiparalonge.Napartevelha,fedorentaesujadacidade,fiqueifelizporserumpoucosuperioràmultidão.Masfoi

nas ruaselegantesquemesentimelhor,porqueconseguiver cidadãoseminentesdesfilando,damasnaúltimamodaehomenscomsuascarruagensecalechesrápidas.Umacarruagemvistosadequatrorodas,puxadaporumpardeéguaspretaselustrosas,passoupornós

atodavelocidade,fazendoruídoaocruzarapontedepedra.Visualizeiumhomembonitonasrédeas.Deuumaolhadarápida,quandopassoupornós.–EralordeComptonapressado–eudisse.Lembrei-me do cartão que ele apressadamente havia me entregado. Ainda não havia decidido se

aceitariaoconvitedele.Forrestbufou.Esperavaquefizessealgumcomentário,masnãodissenada.Elelevasuasfrustrações,

amargamente,paraseucoração.Euoinstiguei.–Vocêachaqueelevaiinvestirnoprojeto?–Senão,vouconstruiroCírculodequalquerjeito.Encarei-o.–Comseuprópriodinheiro?–Porquenão?Possovenderescriturasdasconstruções.Zac,aminharuadosolseráamaiselegante

quevocêjáviu.Colocareiossegredosdosantigos,comosinaismágicosnaterra.Emtodaaminhavidaquiscriartalcidade.UmcachorrinhocomoComptonnãovaiatravessaromeucaminho.Permaneciemsilêncio.Seriaarriscadocontinuarseminvestidores.Seeleestivesseprestesaperder

tudo,euestaria“fora”doaprendizadoeretornariaàpobreza.Talveztenhapercebidominhadúvida,poisderaaquelesorrisoraro.–Estamosforadacidade,Zac.Agorapodemoscavalgar.Eraumdiamagnífico.Umpoucofrioparaoutono,demodoque

oventoarrancavalágrimasdemeusolhos.Océuestavaazul,easfolhasvoavamaonossoredor,comograndes tempestades douradas. Subimos a lugares íngremes até as colinas, dispersando os grandesrebanhos de ovelhas que pastavam. Perturbamos lebres que fugiam enquanto cavalgávamos. Dali,podíamos ver toda a cidade abaixo, amaneira como as casas se amontoavam à beira dosmontes, oentrelaçadodostelhadosedaschaminésaoredordasfontesquentesescondidasemseucoração.–VocêconheceahistóriadeBladud?–Forrestperguntoudesúbito.–Nuncaaouvi–disseentediado,sabendooqueestavaprestesaacontecer.– Ele era um rei e um druida. Sofria de uma doença terrível. Lepra talvez. Seu povo o expulsou.

Perambulouporestascolinasprofundamenteangustiado,nomeiodofrioedachuva.Oúnico trabalhoqueconseguiufoicomoguardadordeporcos.Porém,elepercebeuqueosporcosqueguardavaiamtodososdiasauma fontedentrodeumvale.Rolavamnaáguaquevinhada terraquente.Mantinhamapelebrancaepura.Então,eleosatraiuparaforacomalgumaslandeseentrounaágua.–Efoicurado.Ofimeraóbvio.Eumepergunteiseeleacreditavaemtamanhaconversafiadaeantiga.Olhoupara

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mimcomoseminhacurtarespostativesseestragadoahistória.Entãodisse:–Sim,foicurado.Virouocavaloecontinuouandando.Euosegui.Sentidó,efalei:–Achoquefoiassimqueafonte

virouumlugardecuras.Issofoiquandoosromanosestavamnestasterras?–Antes,bemantes–foiconciso.Sabendoqueelenãoconseguiriaquandosetratavadestetema.Logo

seuentusiasmoexplodiu.–Creioqueaquieraumlugarmágico.Bemantesdosromanos,foireinodosdruidas.Temosteoriasaesserespeito.Sepudéssemoscavarporbaixodasbanheiras,quemsabeoquepoderíamosachar.Enóscremos...–Nós?–eudisse.Ele se calou. Chegamos a um portão. Abaixou-se para abri-lo. Sua mão enluvada escorregava na

madeiracongelada;continuou:–Outrosantiquários,estudantesamigos.Ele se consideravaumapessoa estudada.Era fatoque tinha escrito livros semnunca ter ido auma

universidade, como meu pai ou como eu pretendia. Então, por maldade, disse: – Como o mestreStukeley?–Stukeley!–Suairaeraexplosiva.–Aqueletolonãosaberiaoqueéerudição,mesmoseestacaísse

comoumaárvoresobreele.EseudesenhodeStonehenge!?Umacriançafariamelhor.Nãomencioneonomedessesapoparamim,Zac.Nãosuportoessehomem.Iaàminhafrenteeconfessoquerinascostasdele.Olivrodemeumestresobredruidasfoizombado

poresseStukeley,quechamousuasideiasde“excentricidadesdeumaimaginaçãofalida”.Aindaassim,tantoForrestquantoStukeleyeramdoidosparamim.Demoroupoucomaisdeumahoraparaalcançarmosarodoviaexpressa.Trotamos por ela, por entre cercas vivas demasiadamente grandes, até que nos desviamos em um

pequenopedágiocônico,emqueopagamentodevidoeradeumquartodepêniporpessoa.Atrilhanoslevavaparaumavilacontornadaporcolinas.Atorredaigrejaseelevavasobreascopasdasárvores,eumriomorosoepequenoeraatravessadoporumapontedemadeira.Enquantonosmovíamossobreela,procureiporumacasagrande,masnãoconseguivernenhuma.Pareciaumlocalpobreecontagioso.Viramosentreduashumildescabanas.Ummenino,comonarizescorrendo,saiucorrendodeumadelas

enosencaroucomosenuncahouvessevistosereshumanosantes.–Aquiestamos–disseForreste,emseguida,opeoudocavalo.Confessoqueacheiqueestivessezombandodemim.Minhaexpressãodeveterreveladomeudesgosto,

pois olhou para mim e disse baixinho: – Você deve descer do seu cavalo, Zac, se quiser trabalharcomigo.Nãosounenhumfidalgoparaafetararesdenobreza.Quis lhe dizer algo com desprezo e ira, masmordi minha língua e pulei do cavalo.Minhas botas

patinaramnaimundície.Forrestincli-nou-separaomenino.–Lembra-sedemim,criatura?Acriançabalançouacabeçaesorriu.Tinhapoucosdentes.–Queremos acomodações como da outra vez. Leve nossos cavalos para a estalagem, ponha-os no

estábuloedepoisvenhapegarunstrocados.Estaremosnolocaldaspedras.Retirousuamalacominstrumentosdesobrevivência.Meucoraçãodesmoronou.–Pedras?Olhouparamimderabodeolho.–Vocêesperavaalgumamansão,senhor?Bem,voumostrar-lheuma.Levou-meporuma série dedegraus emmeio à sebe e, quando já a tínhamos atravessado, eu ainda

tiravaoscavacosdaminhamão.Vi-meemmeioaumcampogrumoso,cheiodefolhascaídaseestercoseco. Ovelhas levantaram-se e nos encararam. Algumas poucas se afastaram e baliram, inquietas. Obarulhofezcomqueumaglomeradodegralhasfizesseumaalgazarranasárvores.

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Forrestparou.–Lá,Zac.–Suavozpareciaatemorizada.–Porventuranãoéaobra-primadeumdaquelesarquitetos,

mortosháalgumtempo?Ocampo tinhapedrasespalhadaspor todo lado.Eramenormes.Algumasdeitadas,outrascaídas.A

maispróximademimeradeum tipodecompostovermelho, como liquens,mais altadoqueeue tãolarga que não conseguiria abraçá-la. Atentei para sua superfície esburacada, marcada e ferida compústulas.Disse:–Osantigosgostavamdemateriaisbrutos,inacabados.

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Forrestriu–Éverdade.AsdamaselegantesdeAquaeSulisnuncairiampermitirtalabsurdo–ironizouForrest.–

Contudo,essaspedrasnãosãomeramentebagunçadoacaso.Formamcírculos.Andouentreelaseobservouaoseuredor.Asuperfícieeraenorme,quasetãograndequantoocentro

doCírculodoReiviriaaser.Aspedraserguiam-se,suavemente,comocuboscinzanocampoinclinado.Eramsemsentido.Seriamnecessáriosguinchos,cordaseboispararemovê-las.Aindaassim,eleestavacerto.Elasformavamumcírculo.– Já inspecionei este local antes. Acho que fui o primeiro a fazê-lo de modo apropriado – disse

Forrest,jogandosuamalaemumapartesemgrama.–Ninguémmaisseimportacomestelocal.Issoaquijá foi importante um dia, Zac. Olhe estas proporções. Não pode ter sido construído para ser umahabitação.Nãofazsentido.LáestáoCírculo...Ograndecírculo.Dooutrolado,maispedras.Jádescobridois círculos menores, mais conservados. Um deles tem uma laje plana, como se fosse um altar.Cerimôniasimportantesdevemteracontecidonele.Assembleiasimensasdehomenssábiosetalvezdemulheres. Existem pedras do lado de fora deles; elas poderiam ter sido usadas como estradas paraprocissõesdruídicas.Láestavaeledenovo,emseudeleitefavorito.Eeu,comfome,almejandoumpoucodecomida.–Osdruidastinhamtavernas?–pergunteicuidadosamente.Ele se virou e, por ummomento, percebi que havia cutucado sua ira.Estranhamente, aquilome fez

sentirbem.Estalouosdedos.–Temostrabalhoafazer,senhor.Vamosprosseguircomele.Seelejáotinhainspecionado,porquefazertudodenovo?Passamosatardeinteiraconferindoasmedidas,desenrolandofitascompridaseandandoparatráscom

estacas.Caminhamostantoqueminhasbotasfediamaestrumedeovelhas.Estavaumpoucofriotambém.Oventolevantavameucasaco,chicoteavaasbordasdeleemminhaspernasebalançavameucolarinho.Forrest parecia não se dar conta do tempo. Trabalhava como um homem absorvido pela labuta,

andandoedesenhando.Algumasvezesapenascomsuamãoapoiadaemumadaspedras,comosesentissealgosemoverbemdentrodelas.Aopôrdosol,oventoviravaquaseumtemporal.Nuvensescurasseaglomeravamnohorizonte.Enquantoguardavameuequipamento,observava-asinquieto.–Émelhorirmos,vaihaverumatempestade.–Daquiapouco,Zac.Eleestavaengatinhandonalamacomumaespátula.Eumeagasalheicommeusbraçosecomeceiaandarparaláeparacá.Meuspésestavamdormentese

congelados.Entãoatravesseiolocalatéocírculomenor.Erabemmaisfácilversuaformaeaavenidaquelevavaatéele.Noveoudezpedrassobreviveram.Subiemumapedracaída,sentindoasuperfíciearenosamanchadadeliquenspulverulentos.Umaárvorehaviacrescidopertodela.Umcarvalhoenorme,forteeimponente.Ovendavalestavafazendocomquesuasfolhascordecobreedouradascaíssememabundância.Pegueiuma landedochãoe segureicomminhamãoenluvada.Pensandocomigosobreasdiferentesformasedesenhosprópriosdasárvores.–Viajandonotempo,Zac?Forrestmeobservava,comseuolharcalmoedireto.Jogueialandeparaoaltoeacoloqueiemmeubolso.–Sósefornotempoemquepegaremosalgumacoisaparacomer.Elebalançouacabeça,umpoucotriste.–Sim,desculpe-me.Euficopresopeloestímulodetaislugares.Eétãoprópriodestaárvoreestaraí,

poisocarvalhoéaárvoresagradadosdruidas.Vocêsabiadisso?Masestáchovendoevocêestábemmolhado.Vamos.Osprazeresdahospedarianosaguardam.Eu o segui, arrastando-me. Mais extraordinário que uma lande é o homem que consegue achar

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instigante estudar pedras em um lugar lamacento. Enquanto levava a sacola de ferramentas em meuombro, deixei a dor da comiseraçãome possuir. Algo que eu tentava evitar, por ela não ter nenhumpropósitoemsi.Aindaassim,existecertoprazernela.Penseiemminhacasa,noquartodeminhamãe,nocalor da lareira e emminhas duas irmãs sentadas ao lado dela, provavelmente lendo, costurando oufazendotodasascoisasinúteisquemeninasfazem.Na sala de estudos, na frente do corredor,meupai provavelmente estaria na janela olhandopara o

parquedebaixodechuva,talvezcomumcopodevinhonamão,lamentandoporsuaspinturasquehaviamsidovendidas,seuscavalosdecorridaleiloadoseseufilhoquedeveriaaprenderafazernegócios.Umfilhonãodevedesprezaropai.Talvezeuaindaoame.AssimcomoForrest,meudesapontamento

aindaeraamargo,porémnãotinhasonhosdeumacidadeperfeitaparameajudaraesquecê-lo.A hospedaria era outra tragédia. Esperava pelo menos uma casa de madeira com um pouco de

alvoroçoealgumascarruagens,maseraumacercadeporcos,desalinhada,comumtelhadodesapêqueescorregava pelos beirais.No quarto havia apenas alguns bancos, fedia a cerveja e coisas piores.Alareiraestalava.Fuidiretoparalá.Forrestaqueceusuasmãos também, tirandosuas luvaseseucasaco.Entãochamou:–Senhora,seus

hóspedesestãocomfome.Amulherqueseapresentoueravolumosa,comonuncaviraantes.Gordurosacomoseestivessecheia

decuspe.Colocouseusbraçosemvoltadeleegritoudealegria,oqueencabulouForrestaoextremo.–MestreForrest!Vocêparecetãosaudável!Esteéseufilho,senhor?Seuretrato.Nãoseiqualdenóssesentiumaisofendido.Provavelmenteeu,poisForrestsóriu.–Não,Luce,estenãoémeufilho.Jackestánoexterior,estudandoarquiteturanaItália.Esteémestre

Stoke,meuassistente.Eumeinclinei.Elameolhoufixamente.–Umcavalheiro,asseguro.Forrestsorriu.–Gostaríamosdeumquarto,Luce;algoquente.Sóporestanoite.Eleachamoudeladoeconversou

comelabaixinho.Vireieolheifixamenteparaalareira.Eraquaseimpossívelentenderomododefalardaquelaspessoas.Eujátinhavistoosuficiente.Eraumestranhoesempreoseria.Bem,podiaconvivercomaquilo.Subiatéoquartoparamelavareencontreiumsótãoembaixodobeiraldotelhado,comtrêscamas.

OreiparaquesomenteeueForresttivéssemosquedividi-lo.Outroimbecilroncadorseriademais.Masquemmaisavisitaria?Useiumpoucodeáguafria,tirandoasujeiramaisgrossademinhasmãosemeurosto. Então troquei de camisa e casaco. Queria ter outro par de botas, mas estas teriam de sersuficientes.Quandoterminei,fiqueipelomenosapresentável,nadaquealguémalipudessenotar.Fuiatéajanelaeabriapersiana.Umatempestadeestavaseformando.Oventoprostravatodasasárvoresesebesdiantedesi.Havia

umpequenopomardoladodefora,comalgunsgansosquealipastavam.Paraminhatristeza,percebiquehaviapedrasalitambém.Trêsdelasenormes,amontoadas.Poruminstante,fiqueicuriosocomomodocomo elas estariam relacionadas com os círculos e com o propósito delas ali. Então, um cansaçoprovenientedetudoaquilometomouefuimedeitarsobreaquelacamamofada.Achuvabatianotelhadodesapê.Penseicomigo,quãomaisbaixochegariaemminhavida.MeuaprendizadocomForresttinhasidoajeitadoporumamigodomeupai,talvezoúnicoquetenha

sobrado. Era para ser uma nova vida para mim, um novo começo para minha família. Deveriareconquistar a fortuna que havíamos perdido. Sentimeu interesse desfalecer ao ouvir sobre a supostagenialidade de Forrest. Conhecê-lo foi como uma frustração dolorida, e agora com a rameira quetrouxeraparamoraremcasadesejeinuncatervindoparaestelugar.Talvezdevesseescreveraosmeuspaisparaquerepensassemsobre tudo.Nãofazia ideiadas taxasquemeupaipagavaaForrest,porém

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sabiaquepoderiamsergastasdeumamaneiramelhor.Nuncaseriaumgrandearquiteto.Eumeenrolei.Fracasso e solidãomeatormentavam.Porum instante, senti-mecomoumexilado, comoo rei leprosonaquelaflorestaemmeioaosporcos,perdidoebuscandoapenasacharumlugarmágicoparacurar-se.EntãoForrestchamoudoandardebaixo.–Jantar,Zac!Acomidaestavasurpreendentementeboa,admiti.Umpernilcrocanteeumpurêderutabaga,naboeum

preparadoavapor,sabordecreme,quenãoconseguinomear.Expulsoutodoofriodaminhacabeçaatéaspontasdosdedos.Sentei-mecomumcopodevinhodoPortoefiqueiquasesatisfeito.–Então,Zac.–Forrestmeobservava.–Vocêpercebeualigaçãoentreestescírculosemeutrabalho?Encolhimeusombros.–Umcírculodruida,senhor,mas...–Haviatrintapedras.Eleselevantoueandouimpacientemente.–Vinteesetesobraram,mashavia trintanoanelexterno,comoemStonehenge;comose talnúmero

fossemágicoousignificasseharmonia,umaverdadegeométrica.Trêsvezesdez.Talveztivessemtrintadeusesoutrintaancestrais,outrintadiasemummês.Issodariaumanocomtrezemeses.Tenteinãosuspirar.–Então,vocêfarátrintacasasnocírculo.– Três avenidas que se direcionam para fora dele, cujos pontos formarão um triângulo equilátero

dentrodocírculo.Cadacasaterátrêspavimentos.Ofrontãotriangularserácoroadocomumcírculodelandes, fruto do carvalho. A coroa de Bladud. Isto é omeu projeto, Zac, uma reprodução do que osantigosfizeram.Vouconstruiromeuprópriocírculodepedra.Bebi.–OqueGreyedissesobreobarulho,omautempo...–Umtotalabsurdo.–Forrestmeolhou.–Vocêconsegueacreditaremtamanhaasneira?Amulheremformadebulehavianoscontadoumahistóriadequeaspedrasaquieramoquerestoude

convidadosdeumcasamento,quevirarampedraspordançaremaosdomingos.Eleriasobreaquilo.Eudisse:–Aspessoas têmmedodecoisasnovas.Talvezumterraçoretofossemelhor.Você teriaumgrande

lucro,edepois...Eleolhavaparamimcomoseeuotivesseapunhaladocomumafaca.Colocouaxícaranamesa.–Váparaacama.Tenhodesairporumahora.Nãomeespereacordado.Amanhãcavalgaremosde

volta,logocedo.Elesaiu,batendoaporta.Olheisurpreso.Quelugarhaveriaparairnestechiqueiro?Mesmoassim,pensei que a razãoverdadeirade termos ido lá estava relacionada àquele lugar.Um

flashdosímbolodaserpentedevorandoseurabopassouporminhamente.Emalgunsminutos,levantei-me,pegueimeucasacoesorrateiramentefuiatrásdele.Atempestaderugiaporsobreascolinas.Opomaruivava devido à ventania açoitando os galhos,masmesmo assim conseguia vê-lo. Ele não havia idolonge.Estavaempénoabrigodastrêspedras,levavaocavaloseladoecomarédeaposta.Pareciaquejáhaviapedidoparafazeremissomaiscedo.Amaldiçoeiaquelemomento.Meuanimaljáestavatodoencolhidoparapassaranoite.Nomomentoemquepenseiqueeudeveriacorreratéoestábulo,Forrestpulounaselaevi,emmeioà

escuridão, algumas luzes trêmulas se aproximando. Corri de volta. Homens cavalgavam. Contei dez,quatorze.Mais.Moviam-setãoquietosquantoerapossível.Sóseouviaumbarulhodearreioeumtropeldepatas.Atempestadeoscobria,açoitandoseuscasacos.Cadaumdelesestavabemagasalhado.Eram

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formasescuras.VieramatéForrest,palavrasforampronunciadas,umaperguntafoifeita,masnãopudeouvirdoquesetratava.Então,rastejeiatémaisperto,atrásdeumapedraenormemaispróxima.–Oroboros.A resposta foi clara, bradada contra a tempestadeque se levantava.Entãooshomens seviraram, e

Forrestestavacomeles.Movi-meportrásdapedraemeurostodeslizouemsuafrieza.Assobios.Umaexplosãodesalivaseumcacarejarnervosoemmeuspés!Deiumsaltoparatrás,praguejando.

Meu coração pulava desenfreadamente, enquanto gansos se aproximavam, com asas abertas, pescoçoserguidos.Trêsfantasmasbrancosfuriososnanoite.Forrestsevirou.Elemeviu.Nossosolhosseencontraramporummomento,emmeioàchuva.Ouvios

homenspertodelegritarem.–Alguémaquiestánosobservando!Eles me encontrariam e me arrastariam para fora. Alguém desembainhou uma espada. A lâmina

brilhavasuavementesobaluzdalanterna.Forrestdisse:–Nãoé“nada”,senãogansos.Nósosassustamos.Elevoltousuaatençãoparalongedemim.Ouviumdoscavaleirosdizer:–Vocêtemcerteza?–Claro.Vamosembora.Afastei-me dos pássaros que assobiavam para dentro da escuridão da pedra, enquanto os homens

moviam-seemminhadireção,umacavalgadadesombras.Depoisqueoúltimojátinhaidoembora,sóatempestaderestava.Volteiàportadahospedariaeaencontreiaberta.Amulhergordaestavarecostadaalicomumdeseus

braçosnaverga.–Umanoitemeioangustianteparaumrapazinhofinoestarperambulando,atrásdecoisasquenãolhe

dizemrespeito–faloulentamente.Forceiminhaentradaporela.Elasentiuocheiro.Riunasminhascostas.

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Bladud

Comeceiaconstrução.Oprimeiropassoera limparo terreno.Caveie labuteiemmeioaocalordoverão.Movipedras,

arranqueiasraízesdearbustosespinhosos,dejuncosedebambus.Avesaquáticasgrasnavamesaíamdomeucaminho.Tomeimuitocuidado.Oterrenoerasagradoe

oshabitanteseramdadeusa.Quandoosorifíciosforamalargados,águaquentebrotoudeseuolho.Ocalorprovenientedaágua,

muitasvezes,eradifícildesuportar,detalmodoquemeusdedosficavamqueimadoseeurespiravacomdificuldade.Semágicaéumapalavraparadescreverodesconhecido,entãoaquiloeramágica.Eu havia destrancado o calor do coração da terra, o terreno profundo abaixo de nós. Lugares

sonhados por homens à noite, quando se sacodem, viram-se e acordam com medo. Era um calordesumano.Umdia,quandomevirei,ummeninomeobservavadobosque.Porquatrohoraselemeobservara;

depois,quandojáestavamuitocansado,sentei-meparadescansar.Eleseaproximou,pegouapicaretaecomeçouatrabalharemmeulugar.–Mestre–disseele–,umdruidanãodevecavar.Assentei-meesorriexausto.No dia seguinte, meu povo veio com picaretas, alavancas e cordas de fibras torcidas, entoavam

cançõesespirituais,traziamflores,frutosecaveirasparaadeusa.Afontetornou-seumapiscina.Suasbordaseramdepedracortadaearqueada.Trintapedrasparareteremsuaturbulência.Opovorecuoueesperou.Planteilandesemvolta,paraacoroadeSulis.

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ASFUNDAÇÕES

Arquiteturaéumtermoamploquecompreendetodasascausaseregrasdaedificação.

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Sulis

–Tudobem?Virou-serapidamente.–Muitobem,obrigada.–Sóacheiquevocêpareciaumpouco...–Oquê?Joshencolheuosombrosedisse:–Commedo.Elavestiaumcasaco,usavaumcachecoleumchapéudelãquecobriaseusolhos.Chovialáfora.A

praçaeraaçoitadapelovento,easmesasempilhadasnacafeteriacorriamriscodedesmoronarem.Osturistastinhamidoparaseusabrigos.Aquelaspalavrasaperturbaram.–Nãosejaridículo.–Ok,tchau,então.Foiembora,andandopelocorredordemármore.Numímpeto,elaoseguiu.–Desculpe-me,Josh.Nãoquisdizeraquilo.Elesevirouevoltou.Eramaisaltodoqueela,magro,ossosprotuberantes,comosenãocomesseo

suficiente. Percebeu que sabia muito pouco sobre ele, mesmo assim, durante a semana em que tinhatrabalhadonomuseu,pareciaseroúnicoquerealmentehaviaconversadocomela.Eerafato.Estavaamedrontada.–Voupegarminhascoisas–disseele.–Vamostomarumcafé.Depoiseualevoparacasa.Eraaúltimacoisaqueelaqueria,mas,mesmoassim,respondeu:–Ok.Enquantoelesaía,elaficounajanelaeolhouparafora.Eraumanoitedeoutonoturbulenta.Aoredor

deSulis,haviasombrasdeconstruçõesenormescujaspontasgeorgianasebatenteseramiluminadosporgotas brilhantes das luzes dos postes da rua.Alguns trabalhadores apressavam-se debaixo de guarda-chuvas.Elaosobservavacuidadosamente.Otrabalhoestavasendomaisdifícildoqueimaginava.Falarconstantementecomestranhos,dar-lhes

troco,conversar...Foidivertidonocomeço,masdepoisdealgunsdiasotemordeestarsendoobservadahaviavoltado,eparaficar.Seumamulherolhasseparaelamuitodepertoousealgumhomemolhasseesorrisseparaela,ficavagelada,porqueeleestavaláforaemalgumlugar.Joshvoltou.–Ok?–Sim.Saírampelaportadafrente.Tom,ovigianoturno,resmungou:–Ei,ei,elenãoperdetempo,nãoé?–

disseaSulis,enquantodestrancavaaporta.Elariu,masJoshnãodissenada.Láfora,eleandouapressadopelapraçacomoseestivesseirritado.Apressou-seatrásdele.–Elenãoinsinuounada.–Eleéumchato.Vocênãoprecisatrabalharcomele.Parounachuva.–Qualocaminho?–Subindoacolina.–Bom,euprecisoiratéalivraria.–Vocêlê?Eledeuumsorriso.

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–Não,sóolhoasgravuras.Passaramporalgumaslojasfechadasepelaslonasagitadasdosboxesdomercado.Achuvabatianas

coberturasdeplásticodoscartões-postais.Sulisviuorostofranzidodagórgonenasgotasqueescorriamsobreoplástico.Joshpermaneciaemsilêncio.Naverdade,eramestranhos,elapensou.Não tinha ideiadoquefalar.

Eleandavarápidoesempreumpoucoàsuafrente.–Deveseresquisitosemudarparatãolonge–disseJosh.–Oquequerdizer?–Bom,Sheffieldéumacidadegrande...Elaquaseparoudeandar.–Comovocêsabe?–Ruthmedisse.–Elanãodeveriaterditonada.Sulisoalcançou.–Vocêstêmfaladosobremim?Arespiraçãodelaestavaofegante.Joshriu.–Fala-sedetodosnestelugar.Nãosepreocupe.Achuvaescorriapelosdedosdela.Enfiouasmãosnobolso.–Ésóque...–Sério,ninguémfalounadaruim.Parecianãomuitocalmoagora.Depoisdeumminuto,eladisse:–Nãofalecomninguém,podeser?–Oquê?–Deondeeuvim.Porfavor,nãoconte.Joshencolheuosombros.Aochegaremàlivraria,disse:–Nãovoudemorar.–Fiqueàvontade.Elaestavafelizporestarempé,debaixodarajadafortedecalordaentrada.–Éláemcima.Eleandourapidamenteporentreasmesasdosbest-sellers.Elaoseguiacomseuolhar.ApalavraSheffieldsoavacomoosomdeumdespertadoremsuacabeça,

masnãosignificavanada.Haviaalgumaspessoasfolheandolivros.Estudoucadaumdelescuidadosamente.Nenhumadelasera

ele.Andou em direção à prateleira sobre “Crimes”, levando suamão por sobre as cópias deAgathaChristie.JáhaviavistoalgunsdestesnaTV:AssassinatonoExpressoOriente,Corposnabiblioteca...Com desprezo, folheou um com os dedos. O que eles sabiam? Quantos destes escritores haviamtestemunhadoumassassinato,vistoumagarotacairnovaziodocéuazuldebraçosabertos,gritando?Parouaoladodeumespelhoenorme,olhando-se.Elá,atrásdela,emumaprateleira,haviaumafoto.Porummomento,elanãoconseguiusemover.O

choqueeramuitogrande.Oolharamedrontadodaquelagarota,pegopeloflashdacâmera,encontrou-acomonumdesafio.Então,virou-seeagarrouolivro.O títuloeraMortes esquisitas emistérios bizarros.Olhou ao seu redor.Ninguémestava perto.As

escadasestavamvazias.Olivroeragrosso,decapamole.Afotoeraempretoebrancoe,por isso,ameninapareciaartificialmentepálida.Amãodelaerabrancacomoadeumfantasmanamãodapolicial.Sulisatocou.Seusdedos,osmesmos,prolongaram-sepelorosto,bempróximodalateraldolivro.Quisroubarolivro, jogá-loemsuamalaparaqueninguémmaispudessevê-lo.Suascostassuavam

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frio,poiso livroeracomoumagranada,umexplosivo trêmuloquepoderiadetonareacabarcomsuavida.Cuidadosamente,elaofolheou.Umrelatóriofascinantedecasosrecentesdavidareal,nãosolucionados,incluindo...Seusolhosvoarampelalistaatéchegarem“Ameninavoadora:ocasomisteriosodeCaitlinMorgane

um...”–Nãosabiaquevocêgostavadessetipodeliteratura–disseJosh,descendoasescadascorrendo.Eladeixouolivrocair,fazendoumestrondonochão.Inclinou-seeoapanhou.Seucoraçãobatiacomoumtambor.Joshvirouolivroeolhouparaafoto.Sentiu como se todos os sons na loja desaparecessem, como se todas as pessoas tivessem virado

sombras,comosetodooUniversoobservasseoolhardelenaquelaimagemodiosa.Eleareconheceria.Acidadeperfeitaestavaprestesaseracharcomoumespelhoquebrado.Eledisse:–Coisahorrívelessesassassinatos!–Euoderrubeidaprateleiraporacidente.Estavaapenaspegando-odochão.–Lambeuseuslábios

secos, sabendo estar falando demais. – Não queria lê-lo ou coisa parecida. Eca! Você deve estarbrincando!–Hum!Osolhosdeleestavamfixosnorostodameninanafoto.Desesperada,perguntou:–Vocêconseguiuoquequeria?Haviaumasacolaplásticaembaixodobraçodele.–Sim,obrigado.ElelentamenteescorouolivroMortesesquisitasemistériosbizarrosdevoltanaprateleiraedisse:–

Temumacafeterianoandardecima.Podemosnossentaraoladodajanelaeapreciaravistadarua,sevocêquiser.–Tudobem.–Qualquercoisaouqualquerlugar,menosficaraqui.Subiucorrendoasescadaseentrounacafeteria,puxandosuabolsa.Seucoraçãoaindabatiacomoum

tamboremseupeito,seusouvidoszuniamcomoseumabombasilenciosativesseexplodidodoseulado.Seráqueeleareconheceu?Elenãopoderiatê-lareconhecido,poderia?Ambospediramchocolatequente, e Josh insistira emcolocarmais açúcarnodele,oqueela achou

nojento.Sentaram-seemumamesaredondacheiademanchascirculareseolharamparaosguarda-chuvasecarrosnaladeira.Sulistomouumgoledabebida,tãoquentequequeimousualíngua.O celular de Josh fez um barulho sutil. Ele o tirou do bolso, leu amensagem e o desligou. Então

perguntou:–Estámelhor?–Oquê?–Bem,estácalmoaquiemcima.Nãoháninguémalémdenós.Eladeuumaolhadelanagarotaqueliaumarevistaatrásdobalcão.–Então!–Entãomediga.Ele encolheu os ombros, impacientemente, e continuou: – Vai, Sulis, o que você acha que está

escondendo?Vocêestavabrancacomoumlençolláembaixoesubiuatéaquicomoumgatoassustado.Enotrabalhovocêestásempre...–Oquê?

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Ela,defato,ficounervosa.Eleesfregouotampodamesacomumdedoimundo.–Cautelosa.Semprevi você inspecionandoaspessoas, como se existisse alguémquenãoquisesse

encontrar.– Certo – ela disse asperamente. – E quem seria este, então?Meu ex-namorado? Um valentão da

escola?–Achoqueéaqueleesquisitão.Elaolhouparacima.–Esquisitão?–Aquilosaiucomoumsussurro.Joshencolheuosombrosecolocousuaxícaranopires.Nãoolhouparaela.–Vivocêmergulharnaquelalojanooutrodia.Penseiqueeraeuquemvocêqueriaevitar.Então,fiquei

rondando lá fora, espreitando pela janela, esperando por você. Só para deixá-la encabulada. Porém,haviaalguémmaisesperandotambém.Umsujeitomagroemumcasacoescuro.Viuqueolheiparaeleesaiuandando.Euoreconheci,edesdeentãoeuotenhovisto.Algumasvezesficazanzandoaoredordomuseu, observaos artistas de rua, lê o jornal e se senta àsmesas na calçada.Umavez entrou emumdaquelespasseiosturísticos.Elaestavatremendo.Suasmãosestavamcongeladassobreaxícaraquente.Colocou-anamesacomum

ruído.–Hojeeleestavaládenovo.–AvozdeJosherabaixa.Agora,olhandoparaelafixamente.– Lá fora, enquanto estávamos fechando, eu o vi em pé na porta da abadia. Por isso disse que a

acompanharia,levando-aatésuacasa.Eleficouemsilêncioporummomento.Entãofalou:–Nãoédaminhaconta,masseessehomemaestá

incomodando...–Elenãoestá–disseela,tãorispidamentequeamulhernobalcãoolhouporsobreolivroquelia.Joshfezumacareta.Tomouumgoledochocolatequenteenãodissemaisnada.Sulissentiu-semal.Derepente, ficousemsaída,comoumpássaroemumagaiolanaqualhábarras

paraondequerqueeletentesedirigir.Umamulherentrouepediuumcafé.Amáquinadeexpressoligoucomumassobioeumruídocausadopelovapor.–Tudobem.–Elasesentoueoencarou.–Talvezeleesteja,masissonãoétudo.Vocêmereconheceu,

nãofoi?Nacapadaquelelivro.Elemexeuochocolate.Porummomento,soubequeelatinhacometidoumterrívelengano.Então,eledissebaixinho:–Vocênãomudoutantoassim.Ele a tinha reconhecido?Ouestava acobertando seu espanto?Eladisse:–Escute, Josh.Nãoposso

conversar aqui. Não posso lhe contar aqui. Preciso que você faça algo para mim. Vá lá embaixo ecompreaquelelivro.Olhoufixamenteparaela.–Nãotenhodinheiroparacomprá-lo.–Querodizer,compre-oparamim.Fuçousuamala,tirouodinheiroeempurrouparaeledooutroladodamesa.–Eunãoqueroaquelelivrolá.Nãoqueroqueaspessoasovejam...Josh colocou a colher namesa.E, seja lá o que tenhavistono rostodela, assustou-se aoolhá-la e

disse:–Vocênãoquerqueaquelecaraoveja?–Ninguém.–Eleéalgumtipoderepórter?Policial?– Vou lhe contar! Prometo. Eu lhe explico tudo. Só vai lá, Josh, por favor! Agora, e tire-o da

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prateleira!Opânicocrescenteemsuavozeraclaro,mesmoparaela.Empurrouanotaparamaispertodele.Elea

pegou.Levantou-se.–Vocêvaimecontar?–Sim.Sim!–Tudobem.Espereaqui.Nãováalugaralgum.–Nãovou.Massejarápido.Quandoelepartiu,elaempurrouochocolateparalonge,arrepiada.Eseolivronãoestivessemaislá?

Sealguémotivessecomprado?Deveterficadolápordias,talvezsemanas.Eemoutraslojas,portodoopaís,haviamilharesdecópiasidênticas.Seurostofitavaprateleiraapósprateleira.Percebeuqueestavasebalançandolevementenacadeira.Agora,porquehaviafeitoaquilo,tinhadecontarparaele.Eseelaofizesse,alguémmaisviriaasaber

sobreCaitlin,elaeele.Anãoserqueelapartisse,deumavez.Esquecesseoempregoeapenassumissecompletamente.Levantou-se, segurando seu casaco, mas Josh já estava de volta com uma sacola plástica na mão.

Entregouaela,queoenfiouemsuamalasemmesmoolharparaseuinterior.–Aquiestáotroco.–Guarde-oparavocê.Passouporele,empurrando-o.–Tenhoqueir.–Euvoucomvocê.–Josh...–Euvoucomvocê.Vocêprecisamecontartudosobreisso.Vamos,Sulis.Nósfizemosumtrato.Ela não podia argumentar. Eles saíram da loja só depois que Josh olhou cuidadosamente toda a

extensãodarua;emseguidasubiramacolinaemsilênciodebaixodoguarda-chuvagrandedele.QuandoelesviraramnoCírculoepararamaoladodacasadela,eleficoupasmado.Olhouparaasjanelasacimaeassobiou.–Vocêmoraaqui?Elaencolheuosombros.–Sóumflat.Olhe,eunãopossoteconvidarparaentraragora,mas...Eleolhouaoredor,paraaperfeiçãodocírculodepedras,oaneldelandesqueocoroava.Entãodisse:

–Ok,ligareiparavocêamanhã.Nósvamosaalgumlugar.Dezhoras?–Onde?–elaperguntou,percebendoqueHannahespreitavapelavenezianadoandardecima.Elesevoltou,andandodecostaspelacalçadaecomseuguarda-chuvagotejandoaoredordele.–Espereevocêverá.Elaficouempé,parada,atéelesairdoCírculo.Então,subiuosdegrausetateouseubolso,procurandoachave.Aocolocá-lanoburacodafechadura,

asimagensentalhadassobreaportaprenderamseusolhos.Umaeraadeduasmãossegurandoumaro.Aoutra,deumacobraengolindosuacauda.

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Zac

Confessoquemedemoreiaoladodaportatentandopassarsemserpercebido.Masmeucoletelistradochamariaaatençãodemuitosolharesadmirados.Sou vaidoso, sei disso. É uma deficiência, confesso.Mas,mesmo assim, o escárnio de Sylviame

irritava.Naquelanoite,enquantoeusaíasorrateiramentedecasaepassavapelasalaondeForrestestavatrabalhando,elaestavalá,sentadanaescadameobservandodetidamente.Pôsumadasmãosemconchanocantodabocaesussurrou:–Divirta-se,mestrePeacock.Debocharademimcertamente.Meucolete.Opavãoéumacriaturatolaedesmiolada.Nãosoutolo.

Quaisquerquesejamossegredosdemeumestre,pretendoconhecertodoseles.OSALÃODEFESTASGIBSONPARACAVALHEIROSDEBOMGOSTOmostrou serumprédio

grande,florido,todoiluminadocomlamparinas.Entrei em meio a dois caldeirões cheios de brasas, onde carregadores de liteiras, uniformizados,

aqueciamasmãos.Algunspedintesmendigavammoedasdosbêbadoscambaleantes.Dentro do recinto, os cômodos eram quentes, abafados, e o bafo de tabaco e de álcool quase me

sufocava.Ossalõeseramlevementedecoradoscommuitosespelhosbrilhantes.Quandoocriadovoltou,foiumalívio.–AfestadelordeComptonénoSalãoDourado,senhor.Elepedeparaquesejunteaele.Levou-meporentreasmesas.Homensbem-vestidosquepassavamseusdiasbanhando-senaságuas,

por causa de seus problemas de gota, estavam pagando um preçomuito alto por aquilo ali, fumando,girandoosdadosouabolanaroleta,comgrandespilhasdemoedasàfrente.Parasitaseaproveitadoresos instigavam a apostar. Garotas carregavam bandejas com guloseimas. Seus vestidos eram tãoextravagantesquantoodeSylvia.Eramtodasrameiraspintadas,deolhosvigilantes,avaliandoariquezadecadahomem.–Esteéosalão,senhor.–Obrigado,senhor.Mirou a pequena moeda que passei para ele e inclinou-se com indiferença. A fragrância de seus

cabelosimpregnouminhasmangas.–Entãovocêveio,Zac.LordeComptonestavasentadoaumamesadecartascomoutrostrêsjogadores.Sorriuerecostou-se.–Sabiaqueviria.Inclinei-me.Ocachorroarroganteusoumeunomecomoseeufosseumdeseusempregados.–Comopoderiaresistir?Eraumsalãomelhorqueosoutros.Umcandelabrodecristalbrilhantecomdezenasdevelasestalava

acima.Umaparadorestavacarregadocompratosdefriosequeijo.Cântaroscomcervejapretaegarrafasdevinhotintofinovislumbravam.Algumasdassafrasreconhecicomosendodaadegademeupai,comcertezatodasvendidasrecentemente.Eramimensamentecaras.Comptonusavaumroupãoaveludadosobresuacamisaabertaesuabermudapreta.Tinhabebido,mas

atéondepodiadizer,nãoestavabêbado.Acenoucomumamão.–Vocêvaijogar,Zac.Nãoeraumpedido.Nãomemovi.–Nãojogo,meusenhor.

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Sooutotalmenteinflexível,atémesmoparamim.–Nãoestousurpreso.Observou-meatravésdaluzdasvelas.Umaloiraveioportrásdeleeinclinou-sesobreele,dobrando

seusombrosaoredordeseupescoço.Deutantaatençãoaelaquantodariaaumamosca.–Deduzoquefoiassimqueseupaiperdeutodaasuafortuna.Ele sabia. Será que eu vacilei? Talvez minha mão tremesse, pois meu bastão de madeira bateu

suavementenochão.Tenteiparecercalmo.–Nãoénenhumsegredo.–Jogaréumaespadadedoisgumes.Osolhosdeleeramazuiselímpidos.–Fezvocêperdertudo,masnuncapensouemganhartudodenovo?Talvezestesejaomomentoeo

lugar,Zac.–Penseiquevocêestivessemeoferecendoumemprego.Casocontrário,voudarboa-noite.Virei-me,maseleapenasriu.–Vocêéorgulhosodemaisparaserumconstrutor,garoto.Euvoltei-meaele,observando-o.–Oudeveriadizerassistentedearquiteto?Dequalquermaneira,nãoquerdizermuito.Especialmente

paraumpreguiçosocomoForrest.–Forrestéumgênio–faleirispidamente.Paraminhasurpresa,balançouacabeça.–Talvez,talvezeleseja.Ele já estava dando as cartas, e naquelamão deu cartas paramim também.Seus dedos batiamnas

cartasquadradashabilmente.Umdeseuscamaradasjáestavatãobêbadoqueacabeçaestavaafundadanos braços, e roncava. Outro cambaleava para fora do salão. O terceiro, um jovem gordo cheio deespinhas,levantou-seeperambulavaaoredordacomida.–Deixem-medefora,senhores–falou,engolindoaspalavras.–Estoutotalmentelimpo.Totalmente

limpo.LordeComptonsorriu.Juntouascartasdele,olhouparaelasedepoisparamim.–Joga,Zac,vocênãotemfortunasobrandoparaperder.Orostoatraenteelisodeletinhaumamanchabonitapintadaembaixodeumdosseusolhos.Avaidade

deleme irritava e aomesmo tempome fascinava. Pensei comigomesmo, brevemente, quanto custariaparaadquiriruma.Então,despi-medeminhasluvasepegueiascartas.Eraumamãomuitoboa.Comptonolhouparameurosto.–Bem,pareçoestarumpoucosemsorte.Mas...Inclinou-seedeslizoualgumasmoedasparaocentrodamesa.Atrásdele,aportabateuenquantoseu

amigo gordo abandonava o recinto e, em companhia dele, uma garota dava risadinhas. No salãoiluminadoequieto,somenteasvelasestalavameodorminhocoroncava.Sabiaqueaquelemomentoeraum ponto decisivo, uma virada emminha vida. Podiame levantar e ir embora, ou podia tirar aqueledinheiroquetinhaepagaraquelaaposta.Foicomoseumafendaabrissenocírculodeminhavida.Haviaumabrechapelaqualeupodiaescapar,seporventuraaescolhesse.Olheiparacima.Osorrisodelemeenfurecia.Tireiminhabolsa.Umahoradepois,tireimeucasaco.Meuscabelosestavamemaranhadosporondeminhamãopassara.

Olhei desesperadamente para a quadra de valetes emminhamão.Tentei focar nomontãode papéis emoedasàminhafrente.Quantoeuhaviaperdido?Quantolhehaviaprometido?Ascartasescureceram.Senticalor,minhacamisagrudavanoencostodacadeira.Tomeioutrogoledovinho tinto.Eradocee

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abrasador.Fez-mesentirousado.Compton tinhaumapernaporsobreobraçodacadeiraesuacabeçajogadaparatrás.Olhouparaoteto.–PeloamordeDeus,senhor,vocêestádentrooufora?Quatrovaletes.Umaboamão.Amelhormãodanoiteinteira.Masseeupegasseoutrovale...–Quantoeutedevo?Minhavozestavarouca.Eleencolheuosombros.–Cinquenta,oualgoassim.Cinquentamoedasdeouro.Eunãotinhaisso.Eununcaasteria.Aindaassim,essaeraminhachancede

quitartudo.Ganhar,sairenuncamaiscairnaquelaasneirainfelizdenovo.Eumeodiavacomumódioviolento.

Detestava-o,assimcomoseusorrisoesuasroupas.Pegueiumacanetaeescrevi.Cemmoedasdeouro.–Vocêvaipedi-lasaoseumestre?–Lógico.Eraumamentira.Ambossabíamosdisso.EununcapediriaaForrest.Nãopoderiaaguentarsuairae

suacompaixão.Compton encolheu os ombros. Estava espreguiçando tanto para trás que os pés da cadeira luxuosa

vacilaram.–Muitobem.Vamosversuamão.Émelhorquesejaboa,Zac.Minhacabeçaestavamartelando.Minhaboca,secacomogiz.Meusdedosinseguroscolocaramcada

umdosmeusvaletesnamesa,eobserveiafileirapequena,triunfante,queformavam.–Aíestãoeles,achoquenãoconsegueganhardeles,meusenhor.Eleolhouparamim.Seusolhoserammuitolímpidos.–Eseeupuder?Eleestavablefando.Tinhadeestar.Mesmoassim,umcalafriopassoupormim.–Então,estareiacabado.Balançouacabeça.Pegouumacartaeacolocounamesa.Eraumreidecopas.–Eusoumuitobomcomascartas,Zac.Jápratiqueibastante.Colocouoreidepausnamesa.– Passei amaior parte domeu tempo praticando emOxford. Na verdade, tenho um diploma neste

tópico.Aterceiracartafoivirada.Senteifirme,observandoaquilo.Eraoreideouro.Olhouparamimporcimadamesabagunçada.Asvelasestavamtotalmentederretidas.Gotasdecera

zumbiam,derretidasdasinúmerasvelasdecima,respingavamnodinheiro.–Devoviraraquartacarta,Zac?Devodestruí-lo?Suamãopairavaporsobreacartamanchada.–Oudevodizerqueperdi,edeixá-loirembora?–Vocêpodenãoteracarta.–Eutenho.Encarei-o.Suacadeiraestavanaposiçãocorretaagora.Estávamosfaceafaceatravésdocírculode

luz.Todoorestodomundoeraescuridão.Nãoconseguiamesegurar.Meuorgulhomequeimava.Perderparaeleseriainsuportável,masobter

suacompaixãoacabariacomigo.–Nãoacreditoemvocê–eudisse.Elepermaneceuemsilêncio.Osbarulhosdosalãoaoladopareciamdistanteseremotos.Sabiaqueeu

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o havia enfurecido. Eu queria isso. E enquanto ele encolhia os ombros, virou a quarta carta. Por ummomento, não senti nada. Então, um grande vazio, surdez e cegueira; como se o mundo tivesse seestreitadodianteaquelequadriculadoreideespadas,segurandosuaespada,firmemente.–Veja,então,Zac.Recostou-senacadeira.–Todasuaconversacorajosanãolevaalugarnenhum.Porummomento,quisassassiná-lo.Agarraropunhalemmeubastãoeatravessá-lo,fugirpelasruase

desaparecer.Maseuhaviasidovistopormuitos.Teriademematartambém.–Éummundoinjustoesteemquevivemos.Osdedosdelecomasunhasfeitaspegaramasnotasvagarosamenteeasmoedas,umaauma.–Lógicoquenãoprecisodoseulastimávelsaláriooudascemmoedasdeouroquevocêmedeve.Estavalimpo,eelesabiadisso.Enchiumcopodevinhoeovirei.Ovinhoqueimavaminhacabeça

dolorida.Oconfortodeletrouxecaloraomeurosto.–Meusbolsosestãovaziosenãotenhonadaparapagá-lo.Tenteiserrude.Naverdade,jogueimeusdedosdentrodemeucoletecomumdesprezoembriagado.

Encontreialgoredondoalojadonoforro.Retirei-o.Jogueinamesacomdesgosto.–Seupagamento,senhor.EraalandequehaviapegadonaStantonDrew.Roloudeencontroàscartasecaiusemsemexer.Compton não riu. Em vez disso, recostou-se e olhou para mim. Examinou-me duramente. Disse: –

Talvezestesejaopagamentoqueeuaceite.–Oquê?–Ocarvalhoéaárvoredosdruidas,creioeu.Seumestreatememseubrasão.–Forrest?–Forrest.Inclinou-separaafrente.–Pelopagamento,Zac,vocêpodemeentregarForrest.Rasgareisuasdívidasempedaçosperantesua

face.Senteiparalisado.Então,disse:–Nãoentendo.Oqueeletemquevocênãotenha?Comptonsorriu.Seuscabelosescurospermaneciamlisosenemumpoucodesarrumados,enquantoos

meusestavamumemaranhadotrágico.Eledisse:–Essenovoprojeto...–OCírculo.–Defatomeinteressa.–Masvocêriudele.Vocênãoinvestiria...– Não nos termos dele. Não para dividir com ele, Alleyn e aquele tolo Greye.Mas sozinho, sim.

Construiriaaquelecírculodepedra.Fariaomundosevirareadmirá-lo.OcírculodeCompton.Quandohouver construído um e o tornado o máximo da moda, construirei outros, em Londres, Edimburgo eNewcastle.Eosaluguéisquecobrarei,Zac?!Omundointeiropagariaabsurdosparamorarlá.Porque,assimcomovocê,reconheçoumaideiabrilhantequandovejouma.Nãoconseguiaacreditarnaquilo.Meucérebroembriagadovagueava.–Maseunãovejooqueeu...Parei.Balançouacabeça.–Sim,vocêvê.OCírculodeForrestdevefracassar.Apedratemdesermuitocara.Osconstrutores

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têmdedeixá-lonamão.Homenselegantesdevemdesprezá-lo.Tomouumgoledeseucopo.–Jácomeceiafazerissoaofalarsobreseularescandaloso.Sabiaqueelereceberiaagarota.Eleé

previsível.–Você...Elatrabalhaparavocê?–Vamos dizer que a querida Sylvia fará qualquer coisa que fale para ela fazer. Sem investidores,

Forrestficarápressionadoduramenteparaencontrardinheiro.Nãovaiconseguirarcarcomasdespesasdos problemas encontrados. E haverá problemas, Zac. Acidentes ínfimos no local da construção.Problemascustosos.Elelevantouseucopo.–Vocêsecertificarádisso.Levantei.Oupelomenostentei.Nãoeratãodignoquantoeudesejavaser.–Eleémeumestre.–Vamos.Vocêodespreza,nãoéverdade?–Euo...eunão...–Vocêodespreza.Estaésuachancedeficarlivre.Forrestnãoprecisasaberdenada.Vocêsabotao

trabalho,elesedesesperaevocêsugerequeelevendaoprojeto.Aívocêmeinformaquandoeleestiverpronto. Quando tudo terminar, você vem trabalhar comigo, como meu arquiteto. Dois homens jovensconstruindoseusnomes.Sorriudemodomalicioso.–Seupaiseráriconovamente.Osalãobalançou.Nãotenhopalavras.Tateeibuscandomeucasacoebastão.Coloquei-os.–Vocênãopodedizernão–dissetranquilamente.Detive-meporummomento.Entãocambaleeiatéaportaeaabribatendoemretirada,entreobarulho

eafumaçadossalõesdereunião.Suponhoqueandeiatéminhacasa.Nãotenhorecordaçãodofatoemsi,ouatémesmodetersubidoas

escadas.Masdevo ter feito isso,pois,quandoabrimeusolhos,estavaespreguiçandoemminhacama,comminhacamisa,bermudaeumadordecabeçaquemefezofegar.Meupescoçoestavaduro.Senti-metãodoentequantoumvira-latadepoisdeumanoiterevirandoolixodacidade.Ascortinaseramlargas,eosolbrilhavadiretamentenomeurosto.Achoquedevotergemido.–Nãomesurpreende!–umavozdissefriamente.Dei um jeito de virarminha cabeça. Forrest e Sylvia estavam empé na porta domeu quarto.Meu

mestreveioemminhadireçãoememenos-prezoucomseusbraçoscruzados.–Deus,Zac,olhaparaoseuestado!Quetipodeassistenteestouempregando?Tenteifalar.Umsussurrorachadosaiu.Forrestsuspirou.Depois,virouparaSylviaedisse:–Tenhodeir.Nestamanhã,começaremoscomotransportedaspedras.Façaopossívelparadeixá-lo

apresentável.Eleestavaameiocaminhodesair,quandofaleiemvozbaixaeáspera:–Espere!Elesevirou.–Apedra...Minhagargantaestavaseca.Engoli.–VocêquerdizerqueRalphAlleynaindaestá...–OmestreAlleynémeuamigodeverdade.Estámevendendoaspedras,esuascarroçascomeçarãoa

trazê-lascolinaabaixo,hoje.

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OsolhosnegrosdeForrestmeobservavam.Percebiqueeleestava trajadocomseucasacomarrommaisantigo,paratrabalhar.–EudissequevouconstruiroCírculo,Zac,epretendoassimfazê-lo.Agora,porfavor,ponha-sede

mododecenteemeencontrenolocaldaobra.Tenhoalgumascoisasparalhedizer.DeuumaolhadelaparaSylviaedepoissaiuandando.Ouviobarulhoquefaziaaodescercorrendoos

degrausdemadeiraacaminhodarua.Fechei meus olhos. Na escuridão da minha cabeça, faixas coloridas de luz brilhavam e me

apunhalavamcomofacasemumamasmorra.Quismeenrolaremorrer.Depoisdeumtempo,agarotadisse:–Bebaisto.Recuseiamemover.Disse:–Beba,mestrePeacock.Ourastejeláforaevomite.Éumacoisaououtra.Descolei meus olhos. Ela estava segurando uma caneca de estanho. Estava horrorizado: – Nunca,

nuncamais.–Nãoévinho.Vailhefazerbem.TodosnósusávamosnoGibson’s.Naverdade,estavasentadaemminhacama.Esforcei-meparasentar-me.–Nãoprecisodesuaajuda.Eraumamentiratãofajutaquenemmesurpreendicomarisadadela.Então,agarreiacanecaebebi.–MeuDeus!Passaramalgunsminutosantesquepudessefalar.–Quegostoestragadoéesse?Sylviaabraçavaseusprópriosjoelhosnolugaremqueestavaassentada.–Nãovoulhedizer.Vocêvomitaria.–Entãonãomediga.Estavatremendo.Enrolei-menoslençóis.–Bebatudo.Ela,obviamente,achavaqueeunãoconseguiria,masbebi.Eratotalmente,absolutamente,enlameado.

Então,deitei-meedeixeioquartoflutuarparadentroeparaforadaminhacabeça.–VocêfoiverCompton.Nãomemexi.Masaacusaçãodelaatravessouaneblinacomoumapunhaladadeluz.–Poderiatê-loavisadoparanãoir.Aquelesujeitoéimundo.Abrimeusolhos.Elaestavameobservandocomaqueleolharrecatadoquecomeceiareconhecernela.

Seu rosto estava mais saciado, como se aqueles poucos dias de boa alimentação começassem atransformá-la.Algumasdaserupçõesemseurostohaviamdesaparecido.Então,perguntei:–Comovocêsabia?–Vocênãoéoúnicoquelêanotaçõesdobolsodaspessoas.Sentei-meaprumado,rapidamente,sequermelembrandodador.–Oh,sim.Seitudosobrecomoandaespiandoseusenhor.Osolhosdelabrilhavamzombeteiramente.–OqueComptonqueria?Elepôssuasgarrasemvocê?Nãotinhaaintençãodecontarnadaaela.Massentia-metãodoentequetivedefalar.–Jogamoscartas.Termineilhedevendodinheiro.–Quanto?–Maisdoquejamaisconseguireipagar.Cemmoedasdeouro.Os olhos dela se dilataram. Compartilhamos de um momento assustador. Então, de algum modo,

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conseguiencolherosombros.–Bem,precisoconseguirdinheiro.–ConteaForrest.–Não!–Minhavozsoavaríspida.–Nunca.Levantou-seemmeioaobarulhodoseuvestidodeseda,caminhouatéajanelaeaabriu.Umarajada

fria de ar entrou no quarto, juntamente com um assobio do cantarolar dos pássaros. Rapidamentemeenroleinaroupadecama.Umpoucodepois,disse:–Ele lhepreparouumaarmadilha,porqueoobservoujuntodeForrest,omodocomoandamjuntos.

Elepensouprovavelmente:“Essegarotovaiobteroquequero”.Eoqueé,Zac?Oqueéqueelequer?Emmeioàescuridãodoscobertores,nãoconseguiresponder.Emvezdisso,disse:–ComptondissequedesprezoForrest.Elariu.–Entãovocêodespreza,ZacPeacock?–Paredemechamarassim!–Porquê?Éverdade.Elaseaproximou,tirouocobertordomeurosto.Viqueelaestavapálidaderaiva.–Dê uma boa olhada em simesmo.Ummandrião, preguiçoso, vaidoso, que tem certeza de que o

mundolhedeveumafortuna!Aindaassim,vocêousamenosprezarJonathanForrest,umhomemquevaledezdevocê.–Eunãoodesprezo.RespeitoForrest.–Então,mostre.Correuatéaportaevirou-se.–Você deve tudo a ele, assim como eu. Por que você acha que ele o emprega? Por causa de sua

habilidade?Vocênãotemnenhuma!Porqueseupailhepaga?Nadaépagoporvocê,Zac,nemmesmoumaquantiamínima!Cookmedissequeninguémmaisnacidadeaceitariaqualqueraprendizdegraça.Queoabandonopagueseusalário.MestreForrestaceitaanimaisepessoassemdonopelofatodeserumhomemgenerosoeporsaberoqueéserdesprezado.Umgênionuncaéamado,mesmoquandoseudesejoéapenascriarabeleza.Elaagarrouamaçanetadaportaerespirou.Numavozsuave,disse:–OquequerqueComptonqueira

devocê,tomecuidado.Orefinadolordeéumratodeesgoto.–Vocêjáoconhece.Conseguisentar-menocantodacama.Oquartoeradeumaquietudedesconfortável,maspercebicomo

elaolhavaparamim.Seuolhar,rápidoeferoz,eracomodeumaraposa.Ambosficamoscalados.Porummomento,viquepoderiacuspirvenenonela,insultá-laporserumacriaturadeCompton,tão

traidoraquantoeu.Nãoseiporqualmotivonãodissenada.Elaempurrouumcachodeseuscabelosdevoltaàposiçãonatural.– Levante-se. O trabalho começa hoje. Temos de ajudá-lo, Zac. O Círculo é mais do que uma

construçãoqualquer.Seráseutrabalhoperfeito.–Oqueéo trabalhodeleparavocê?Dequalquermaneira,quemévocê?Sylviaé realmenteoseu

nome?Miramo-nos.Então,eladisse:–Seeulhecontar,vocêmedesprezará.–Não.–Achoquesim.

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–Ponha-meàprova.Porummomento,acheiqueelaofaria.Então,aSra.Hallachamou.Gritou:–Estouindo.Virou-se.Semolharparamim,disse:–Amanhã,talvez.Quandojáhaviapartido,fiqueisó,embaixodobrilhodosolfrio,comminhadordecabeçaintensa,

comseuaromaderosas,amargurandominhaprópriarepugnância.

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Bladud

Serexiladoevoltaraserreiéalgoestranho.Olheiparaasterrascomnovosolhos.Visuasformasecurvas.Algunslugareserampoderososeoutros,amaldiçoados,comoseosdeusestivessemdeixadosuaspegadasparatrás.Observei meu povo. Vieram de muito longe, além do horizonte, a pé, carregando carros ou em

cavalosaltos.Vieramcomtodotipodedoençaeenfermidade:cegos,loucos,commembrosquebradoseenfeitiçados.TodosbuscavamacuradeSulis.Poralgumtempo,tivereceiodequeafontepudessenosdecepcionar.Emtemposquentes,estivecertodequesecaria.Maselanuncanostraiu.Aspessoasseesfregavamnasfontesquentesebebiamsuaáguasulfurosa.Fizeramumaestátuadela,deramoseflores,depoisdemadeirae,porfim,depedra.Maseunãoestavacontente.Fui tocadopormágicae tinhaderetribuí-la.Queriaesculpirminha

alegrianomundo.Entãofizcírculos.Nacolina,fizemosumqueeravastoepoderoso,aneldentrodeanel,dentrodeanel.Tambémcoloqueiumalandenaquelesolo,quealgumdiasetornariaumaárvoreimponente.Ao redorda fonte, construíumacidadededicadaaela, comcasas refinadas,um temploparasuaimagem,detalmodoqueovaleespinhososetornasseumlugarilustre.Acendiumafogueiraemsuahomenagem,quenuncaseapagaria.

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Sulis

SulisestavapreocupadacomavindadeJoshàsuacasa,eHannahdeveterpercebido,pois,depoisdocafédamanhã,perguntou:–Estátudobem?–Sim,obrigada.–Tenhoumdiadefolgatambém.Poderíamosiràscompras,sevocêquisesse.Sulis franziu as sobrancelhas. Estava encurvada no assento da janela, na sala de estar ensolarada,

virando como polegar as páginas de umdos livros de Simon que falava sobre a cidade.Uma figuraprendeuseusolhos.Voltouaspáginasparaencontrá-la.–Nãoposso.Querodizer,outrodia.Umamigovaimechamaremalgunsminutos.–Alguémqueeuconheça?–Josh.Trabalhanomuseu.Asperguntas eram intrusivas,mas ela tentounão se chatear. Pelo contrário, encontrou a página e a

abriu, alisando-a.Mostravauma figura de três homensqueusavamcasacos e calças do séculoXVIII.Estavamreunidosaoredordeumamesa.Umgrupoformal,enrijecido,olhandodiretamenteparaovisor.Diante deles, espalhavam-se engenhosamente canetas, pergaminhos, instrumentos de pesquisa e ummodelo do Sol e da Lua.Uma grande planta doCírculo coberta com um triângulo e outros símbolosestranhos.Umdoshomensna foto tinha seudedo indicador tocandoaplanta, apontandoparaocentrovaziodoCírculo.SeráqueeraJonathanForrest?Uma sombra na página do livro fez Sulis dar uma olhadela para cima. Hannah estava passando a

canecadechádeumamãoparaaoutra,ansiosamente.Seuscabelosestavammaisbagunçadosdoquenunca.Soprouumcachodeseusolhos.–Nãoqueromeintrometer,Su.Vocêsabeque,quandosedizamigo,vocêquerdizernamorado?Sulistentounãoseencolher.Manteveseusolhosfixosnapágina.–Não.Sóporqueeleéumgaroto...–Eusei,acredite.Odeioperguntar,ésó,vocêsabe,asituação.Simonentrou:–Quesituação?–Sulisfezumnovoamigo.Josh.Eleestávindoaqui.Umsilêncio tomouoquarto.Sulispercebeuqueseusdentesestavamrangendode tensão.Relaxoue

olhouparaSimon.Tudoaquiloeraridículo.–Sevocêsquiserem,possodesmarcar.Nãoétãoimportanteassim...Simontinhaseusbraçoscheiosdearquivosedesenhos.Colocou-osnamesacuidadosamente.–Talvezprecisemosconversarumpouquinhosobreisso.–Porquê?Vocêdisseparaeuviverumavidanormal...–Mas você deveria tê-lomencionado para nós, Sulis. Não quero ser durão,mas devemos que ter

cuidado.–Elenãosabenadasobremeupassado.Temaminha idade.Tenhode lhescontarsobre todoscom

quemconverso?Sabiaquesoaradefensiva,suavoztinhaseelevadocomumtomlamurioso,emumanotaaguda.Simonsentou-seemumassentopertodela.–Claroquenão.

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–Bom.Comointuitodequebraroembaraço,elalevantouolivropesadoemostrouaele.–Olhe!EsteaquiéForrest?SimonolhouparaHannah.Então,pegouolivroeolhouparaele.Sulispercebeuqueeleestavasendo

particularmentepaciente,todasuaposturaerarespeitosamentecautelosa.–Sim,éele.Creioseroúnicoretratoconhecidodele.Vocêvêqueeleestáapontandoparaocentrodo

Círculo?Háumahistóriasobreelequererumtipodesegredoesboçadoali.Masoquequerquetenhasido, nunca fora completado. Havia apenas um reservatório de água. Dá para ver o telhado doreservatórioali,entreasárvores.Elaolhou.Ochãoentreasdiferentessuperfíciesestavaespesso,cobertocomfolhasdouradas.Simon

seguiuseuolhar.– Talvez não dê para ver agora. No verão. Este homem de vermelho era Ralph Alleyn, um

mandachuva,donodaspedreiras.Muitorico.–Eele?ApontouparaumgarotoaoladodeForrest.–ZachariahStoke, assistente deForrest.Não consigo lembrar o que aconteceu com ele.Mas olhe,

Sulis,vocêestácertadequeestetaldeJoshnãosabenadasobrevocê?–Elesabequevocêssãomeuspais,quemoramosaqui,quevouparaauniversidadeanoquevemesó,

ponto-final.Estavaacostumadaamentir,masnãogostavadementirparaeles.Eramdealgumamaneirainocentes.

Pareciaqueelaeramaisvelhadoqueeles.Geraçõesmaisvelha.Dealgummodo,elaassimoera,poistinhavistoamorteeomalbemdeperto,enquantoelesnão.SimonolhouparaHannah.Eladisseinteligentemente:–Bem,seiquevaidartudocerto.Aondevocê

vai?–Nãosei.Deixei-odecidir.Sulisvoltouaolharparaolivro.PercebeuasacudideladecabeçaqueHannahdeuparaSimon.Ambos

foramparaacozinha;depoisdeumtempo,davaparaouvirossussurrosdaconversadeles.Sulis olhou fixamente para a pintura, como se esta pudesse impedi-la de ouvi-los. Zachariah Stoke

pareciatersuaidade.Tinhaumarorgulhosoeautoconfiante.Suacabeçapendiaparaumdoslados,comose estivesse ouvindo alguém também, naquele cômodo distante. Talvez fosse um cômodo no Círculo,talvezesteaqui.Erabonitoebemrefinado;masForrestlheinteressava.Oarquitetotinhaumrostocheiodeenergia,deumentusiasmoferoz.Olhavaparaelacomoseadesafiasse,comosehouvessealgoqueelepudessecompartilharcomela.Talvez,pensou, fossepelo fatodeambos teremumúnico retratoqueomundopudessever.Umafotoqueosdefiniriaparasempre.–Foiassimqueopegaram–cochichou.Havia certa tristeza que o rondava também, como se todas as coisas que amasse o houvessem

decepcionado.Acampainhatocou.Sulis olhou para cima. Sentiu uma repentina pontada em seus nervos, o que a irritou. Josh estava

adiantado.–Euatendo.Hannahsaiudacozinha.–Nãotemproblemaseelesubir?–Elevaiterdesubir,aindanãoestoupronta.Colocouolivronamesaesubiuparaseuquartoàspressas.Aoacharseucasacoedinheiro,ouviuvozesnoandardebaixo.CorreuatéláeviuJoshempéaolado

dajanela,conversandocomSimon,educadamente,sobreavistadoapartamento.

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–Pareceumpoucocomumrelógio–Joshdizia.–Umrelógiodepedra.–Bem,éverdade.Osolviajaaoredordele.Assombrasdasárvoressãocomoponteirosescuros–

Simonsoavaimpressionado.–Vocêéestudante?–Fui,masnãoagora.–UmtomtensotomouavozdeJosh.–Arquitetura?–Arqueologia.–Émesmo?Sevocêestiverinteressado,háumprojetoqueestáprestesacomeçaraquinoCírculo,e

vocêpoderiameajudar.Nãopossolheprometerdinheiro...Sulisdisse:–Vocênuncamecontouisso.Simonvirou-se.–Euiacontar-lhe,lógico.Nãoéexatamenteoquepoderíamoschamardefascinante.Umnovodreno

contratempestadesestáprogramadoparasercolocadolánogramado.Vaidenossoporão,apro-ximadamente, até o outro lado. Então mexi alguns pauzinhos, e os empreiteiros ofereceram àUniversidadeaoportunidadedetrabalharali,casoalgosurgisse.Joshentãoperguntou:–Quetipodecoisas?–Quemsabe?–Simonsorriuusandoseusorrisodepalestrante.–Sevocêestiverinteressado...Sulisficouirritada.–Estouinteressada.–Oh!Querodizervocêsdois,élógico.Hannahestavalimpandoamesadocafé.–Pareceumhomem.Sulismoveu-seatéaporta.TinhadetirarJoshdali.–Precisopegarmeutelefone.Puxouamangadacamisadele.–Vem.Voulhemostraravistaládecimadotelhado.Noquartodela,abriuajanela,saiuporelaeassobiou.–Éincrível.Vocêjáachouumcaminhonotelhado?–Não,evocê?Elepôsseubraçoaoredordalandedepedra.–Estascoisasparecemmenoresládebaixo.Dequalquermaneira,porquelandes?–AcoroadeBladud,assimdizSimon.–Elasorriuironicamente.–Simondiz.Joshriu.Pareciadiferentehoje,alinoalto.Menosabsorvidoemsimesmo.Maisfeliz.Sobreele,o

céueradeumazullímpidoefrio.Eracomoseelesestivessemseelevadoacimadesuasvidase,porummomento,estivessemlivres.Umavozecoouestranhamentedistorcida.Afalaeradeturpada,comsílabasásperas.–Umafaísca–dizia–nacombinaçãodotempo.–Oqueéisso?–Joshsevirou.Elasuspirou.–Oônibusdeturistas.Contornouaesquina,comofaziaacadahora,oônibusvermelhodedoisandaresroncavaseumotor

vagarosamentepelaruacircular.–Elesolhamparasuajanela?Joshsorriuironicamente.–Algumasvezes.

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Aexplicaçãochegouatéelesporumamulhercomomicrofone,encapotada,usandoumcachecoleumchapéu.Suavozrepercutianascasasopostasàdela.–...aobra-primadeJonathanForrest,construídacombaseemumateoriacomplexaesecreta.Trinta

casas,emtrêsseçõesdiferentes,usandoastrêsordensdaarquitetura.Foiiniciadaem1740.ApesquisadeForrestsobreStonehengeinspirouseu...Oônibusveioemdireçãoaeles,espantandoasgralhasdasárvores.Haviapoucaspessoasnoandar

inferiordele,todosturistasestrangeiros,mas,noandarsuperioraberto,haviaapenasumhomem.Estavasentadonoassentotraseiro.Cobria-sedofriocomumcasacoeumcachecolenroladobemapertadonopescoço.Sulisolhouparaele.Seráqueeraele?Opavoraparalisou.Joshestavafalandoalgo,maselanemconseguiaescutá-lo.O homem tinha cabelos escuros, olhava para as casas que passavam, atentamente, hipnoticamente

fascinado.Estavafazendoalgomais,discandoumnúmeronocelularquesegurava.–Sulis?Joshtevedesepôrempéemfrenteaela.–Soutãoenfadonhoassim?–Éele.Empurrou-odelado,oqueofezcambaleareagarrar-serapidamenteaumalande.–Tomecuidado.–Éele,eusei.Lá,olhe!Agarrou-oevirou-o.–Natraseiradoônibus,sozinho.Olhou.Oônibusseaproximou,vagarosamente,nomesmoníveldeles.Ohomemlevantouosolhose

olhoucalmamenteparaeles.– ... por favor, notem as imagens no friso sobre as colunas – a guia falava ao microfone em tom

monótono e sonolento –, são símbolos do oculto e imagens desconhecidas, como se Forrest tivessedeixandoumamensagemparaasgeraçõesposterioresequenuncafoidecifrada...Ohomemsorriuparaela.Sulis não conseguia semexer.Olharam-se.Estavano topoda torre, usando seu casacovermelho, e

Caitlinestavamuitopertodaborda,andandodeladoemdireçãoaela,umpassoporvez,dizendo:–Estátudobem.Ébemseguro,olhe.ECaitlin,derepente,eraummeninodizendo:–Vocêtemcertezadequeéomesmohomem?Achoquenãoé.–Lógico,estouabsolutamenteconvicta.Sonhocomele.Ohomempôsocelularemseuouvido.Inclinou-senoassento,olhandoparaela.Seutelefonetocou.Ochoquefoitãograndequedeixouseucelularcairnochão.Fezumbarulhoeparounabordaestreita

depedra,escorregandoatéabeirada.Suasvibraçõesfaziam-notremeremcírculos.Joshrastejou.–Eupego.–Não,porfavor.–Consigoalcançá-lo.Seusdedosapalparam.–Ésó…Inclinou-semaislonge.–Não.–Estátudobem.Éseguro,olhe.

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Colocou-seempéatrásdele.Ovento soprava, e asgralhascrocitavamevoavamao redordela.Ohomem tinha os olhos fixos nela.Estava tonta e tremia. Segurava firme o casaco de Josh, puxando-o.Queriagritar,masaspalavrasestavamengasgadasemsuagarganta.OsdedosdeJoshseaproximaramdotelefone.Arrastou-oparamaisperto.–Seeuconseguir,apenas...Estavasobreabeiradainclinadadotelhado,eabaixodelenãohavianada.–Caitlin.Respirou.–Não.Joshsecontorceueescaloudevoltaparacima.–QueméCaitlin?–Estámorta–sussurrou.Demodoesquisito,fezqueiaentregarotelefone.–Vocêdeveriaatendê-lo.–Não,ninguémconheceestenúmero,anãoserHannaheSimon.NãoconseguiupegarotelefonedasmãosdeJosh.Oônibuspassouporeleseiaemdireçãoàsaídado

Círculoe,pelovidrotraseiro,elaaindaconseguiaenxergá-lo,sentado.Nemmesmoviraraacabeça.–Oi.Joshtinhaotelefoneemseuouvidoeaolhava.–Quemé?Elasabiaquemera.Observou atentamente o rosto de Josh, enquanto uma nuvem de gralhas barulhentas pousava nos

telhadosenasárvores.Porumminuto,ficousemexpressãoalguma.Então,eleapertouobotãoedevolveu-lheotelefone.–Ninguémdooutrolado.Olhouparaapequenateladotelefonequedizia“NÚMEROCONFIDENCIAL”.Ficoutonta.Porum

instante,sentiuqueomundotodogiravaaoredordosol,emcírculos,tãorápidoqueninguémconseguiaperceber.Deualgunspassosdeladoebateuemumalande.Osolcegavaseusolhos.Nãoselembravadecomoentraranoquarto.Estavasentadanacama,eJosh,apoiadonacadeira.Olhavaparaela.Ambosestavamemsilêncio.Noquarto,persistiaosilêncio.Então,Joshdisse:–Achomelhoragentesair.–Não!Vamosficaraqui.Engoliuasaliva.–Voucontartudoavocê,masaqui.Não havia barulho no andar inferior. Simonprovavelmente tinha ido trabalhar, e seHannah tivesse

gritado para avisar que estava de saída, nenhum dos dois a teria escutado. O quarto pequeno estavaquietoeaquecido.Aluzdosolfluíaporseuinterior.Joshtirouocasacoeojogounacadeira.–Podiamatarumaxícaradechá!Elaprecisavafalar.Disse:–Aquelafotonacapadolivro...Inclinou-se,puxouumagaveta,abrindo-a.Pegouolivroejogouemcimadacama.Ambosolharam-no.

Joshnãootocou.Disse:–EssaCaitlin…–Elaestáaítambém.Ele inclinou-se para trás. Pegou um palhaço demadeira que estava em cima damesa e puxou sua

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cordinha,fazendo-odesmoronar.Nãodissenada.Derepente,osilêncioestavairritanteesabiaquesósuaspalavraspodiamquebrá-lo.–Sulisnãoémeunomeverdadeiro.NasciemSheffieldemoreilácomminhamãe,nãoaHannah,mas

minhamãeverdadeira,atéos7anos.Tínhamosumacasanointerior,foradasredondezasdacidade.Eraumtantopequenaesuja.Nãopensavaassimnaépoca,masachoissoagora.Curvou-senacamacomoseestivessecontandoahistóriaparasimesma.Nãoeradifícildefazê-lo,

poisjátinhaensaiadováriasvezesestemomento.Momentoqueestavaprestesaserexplicado.–Aminhavidaeramuitosimples,eeu,umacriançahumilde.Nãotivepai,masmuitosnãotêm.Não

tínhamosumafamíliacompleta.Queeumelembre,minhamãenuncamencionaraosparentes.FuiparaaescolaprimáriaedeveriaestarnaclassedeadmissãoquandoconheciCaitlin.Nãomerecordodeumtempoemqueelanãoestivessepresente.Naclasse,sentava-sefrequentementeaomeulado.Haviaumbandodecrianças,maselaeraminhaamiga.Vocêsabecomoasmeninassãonessaidade.Minhamelhoramiga.Fezobrinquedodesmoronardenovoebalançouacabeça.Sentiuqueelenãoqueriainterrompê-la.–Eraengraçadaeconversadeira.Falavaumpoucoalto.Estavasemprefazendoefalandocoisas...Se umabriga ou discussão estivesse acontecendo, certamente estaria envolvida. Sempremepuxava

parasegui-la.Eeuaseguia.Eramaisfortedoqueeu,sabiadisso.Encurvou-semaisainda.– Outras pessoas não gostavam dela. Minha mãe começou a dizer: “Aquela Caitlin...”. Minha

professoranosseparounasaladeaula,massemprebrincávamosjuntasnopátio.Elanãopodiamaisiràminhacasa.Sóaencontravanaescola.Éramoscriancinhascomuns.Ficávamosencrencadas,massóporcoisasbobas.Estávamosfadadasaseradolescentescomuns,seaquelediatrágiconãotivesseexistido.Josh estava escutando, seus dedos ocupados com o brinquedo. Ela disse: – Era uma manhã fria.

Ensolarada,mas fria.Devia ser outono, pois as escolas voltavam às aulas. Tínhamos uma professoranovaquenãogostavadaCaitlin.Houveumproblema,nãomerecordobem,umadiscussãocomalgumamenina.Caitlinlevouaculpa,perdeuacalmaebateunaoutracriança.Foilevadaàdiretoriaesuamãereceberiaumacartasobreoocorrido.Ficoumuitotriste.Naqueledia,nahoradoalmoço,estávamosnocantodoplayground. Suas costas estavamapoiadas na cerca de arame, seu rosto estava vermelho detanto chorar, seus joelhos, levantados. Estava furiosa. “Não vou ficar aqui para gritarem comigo denovo”,falouCaitlin.“Vouembora.Vocêvemcomigo?”–Achoquenãoqueriair.Continuou:–Nãooteriafeitosozinha,masassimeraCaitlin.Vocêtinhade

ir atrás dela. Obrigava todos a segui-la. Rastejamos, passamos pelas cozinheiras e contornamos oestacionamento.Haviaummurooqualpulamoscomfacilidade.Lembroqueestávamosaduasruasdedistância,emumbeco,quandoouvimososinaldaescola tocar.Penseiqueestavaperdendoaauladeeducaçãofísica,oquemefezficarbemcontente.Sulisolhouparacima.–Desculpe,tudoisso…–Estouinteressado,continue.Haviadeixadoobrinquedode lado.Agoranãoestavamexendoemnada.Seusolhos estavam fixos

nela.Olhouparaoutradireção.–Nuncatínhamossaídosozinhasantes.Pelomenoseu,nunca.Conhecíamosalgumasruas,mas,além

delas,tudoeranovo.Vimoscarros,umafaixadepedestresedepoisumpontodeônibus.Umônibusseaproximou,eCaitlindisseparasubirmosnele.Nãotínhamosdinheiro.Haviaumamultidãodemulheres.Subimos e sentamos juntamente com elas, inocentes. Acho que todas pensavam que éramos filhas dealguém do grupo.O ônibus andou pelo interior, por quilômetros. Passamos bosques, campos, e entãoentramosemoutracidade.Descemosdoônibusesaímoscorrendo.Nãoestávamosnemaí.Pelomenos,

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nãoainda.Descemosalgumasruaseachamosumparquegrande.Brincamosnosbalançosecorremosaoredordeumlagopequenoquehaviaali.Foimuitodivertidonocomeço.Nãoseiquantotempolevouparapercebermosqueestávamosperdidas.Estavafrio.Sentíamosfome.Sulisolhouparacimanovamente.–Aspessoasdizemparaascriançasnãoconversaremcomestranhos.Todoseramestranhosànossa

volta. De repente, percebemos isso. Não havia nenhum policial, bombeiro ou mulheres vestidas deenfermeiras,comonaqueleslivrosdeliteraturainfantil.Nenhumasenhoramaisvelhalevavaocachorropara passear. Já escurecia. Os galhos das árvores eram negros em relação ao céu, e as luzes da ruaestavamtodascordelaranja.Lembro-medisso.Estavaficandoescuro.Tambémmelembrodecomoospássarosme assustavam. Bandos delesmergulhavam nas árvores e grasnavam. Então eu o vi. Estavasentadoemumbancodoparque.Pareciaumapessoa legal.Achoqueestavaobservandoospássaros,pelomenosimaginei.Édifícildistinguirlembrançadeimaginação,ouatémesmooqueoutraspessoassussurramemseuouvido.Jálitodososrecortesdenotíciassobreoocorridoe,poressemotivo,todososcomentáriosdosjornaisestãonaminhacabeçatambém.–Vocêconversoucomele?–Caitlin, sim.Sempre foi amais corajosa.Recuei.Não sei oque eladisse,mas ele se levantou e

andouemnossadireção.Pareciabemalto.Eleseabaixouparafalarconosco.Deperto,estavabemsujo.Querodizer,fedido.Percebemosqueasroupasdeleeramvelhas.Carregavaumtipodedoençaconsigo.Foioquepensei.Provavelmente,eramferidas.Dequalquermaneira,gritamosecorremos.ElaficouemsilêncioporumtempotãolongoqueJoshouviuoônibusdeturistas,outravez,contornar

oCírculoinfindável.Quandofalounovamente,suavozestavamaisbaixa.–Elenosperseguiupelogramadoedepoisporumtipodeladeira.Estávamosaterrorizadas.Gritou,

mas não paramos.Havia um prédio à nossa frente, alto e redondo.Havia uma porta nele.Abrimos eentramos. Fechamos a porta com um empurrão e sentamos ali no escuro. Estávamos agarradas uma àoutra, ofegantes, sem fôlego e paralisadas de medo. Pensávamos que ele estava vindo atrás de nós.Demoramos horas para pararmos de soluçar e tremer e, finalmente, acharmos que estávamos seguras.Então,Caitlinsussurrouparamimquedeveríamosvoltar.Eunãoqueria,maselameforçou.Tentamosabriraporta.Nãoconseguimos.–Estavatrancada?–Acho que emperrada. Era uma porta demadeira grande e velha.Mal alcançávamos amaçaneta,

muitomenosconseguirvirá-la.Batemos,gritamos.Berramos.Esquecemosqueohomempoderiaestarláfora ainda. Não nos importávamosmais. Tudo que eu queria era minhamãe. Estar segura. Em casa.Aquecida.Masninguémapareceu.Joshbalançouacabeça.–Devetersidobemdifícil.–Tínhamos apenas 7 anos.Achávamos quemorreríamos ali. Pensei que nuncamais veria de novo

minha casa,meus brinquedos eminha escola.De certomodo, estava certa, pois nada foi como antesdepoisdoacontecido.Sulisrolounacamaesentou-se.Arrumouoscabelos.–Dequalquermodo,depoisdeumtempo,Caitlin teveuma ideia.“Vamossubirasescadas”,disse.

Subimos. Os degraus estavam molhados e escorregadios, formavam círculos, como degraus de umcastelo.Certavez,umdemeuspaisadotivosmelevouparaumcastelo,quasedesmaiei.Nãopodiasubi-los.Aescuridão,ocheiroúmido,olimonasparedeseramexatamenteosmesmosdaqueleprédio.Nossarespiração ecoava lá dentro. Estava escuro. Havia teias e aranhas horripilantes. Não havia janelas.Subimos os degraus até nossas pernas ficaremdoloridas. Encontramos outra porta dura.Conseguimosabri-la.Haviaumasala.Vazia,apenascomalgunssacosvelhoseumpoucodelixonocanto.Haviaumaportadeferropequenonaparede.Umtipodeportalevadiça.Oventopassavaatravésdele.Corremos,

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puxamoseoempurramoscomforça.Estavabrancodecocôdospassarinhos.Abrimos.Ovento,numarajada veloz, entrou nessemomento.Havia lá fora um telhado quadrado e pequeno comumparapeitoquebrado.Osjornaisposteriormenteodenominaraminútil.Inútil!Sorriubalançandoacabeça.–Brincadeira!Joshpermaneciaimóvel.–Sulis,vocênãoprecisa...– Quero lhe falar. Já consegui até aqui. Não quero que você leia a história em um desses livros

desprezíveis.Queroquevocêsaibaoquerealmenteaconteceu.Tinha de continuar falando. Se parasse, talvez nuncamais conseguisse chegar tão longe assim. Ela

mesmaprecisavasaberoquetinhaacontecido.Eraumahistóriaquenuncasepermitiralembraratéofim,anãoserquandonãoconseguiasecontrolar,emsonhos,quandoaumentavadetamanhoeseapresentavacomrostosgrotescosepalavrasdistorcidas.Falavarapidamenteagora.Monotonamente.–Nãosabíamosoquefazer.Estávamosemumlugartãoalto!Abaixodenóshaviaoparqueeolago.

Tudoeratãoescuroequieto!Asárvoreseomatoeramnegros.Eramcomoumaflorestaemumcontodefadas.Umlocalondebruxasmoram.Começouachovergranizo.Soluçávamosfortemente.Balançouacabeçaelimpouagarganta.–Pessoasdevemtersentidosuafalta.– Sim, sentiram. Quando nenhuma de nós duas apareceu em nossas casas, nossas mães ficaram

preocupadas.Depois,entraramempânico.Porvoltadascincodatarde,apolíciafoiacionadaecomeçouanosprocurar.Eraumanoitecongelante.Oqueninguémconseguiaimaginareraoquãolongetínhamosido. Imagina aquela viagem de ônibus que fizemos. Depois, soube que estávamos a dez milhas dedistânciadaminhacasa.Todosestavamnosprocurandonolugarerrado.–Oquevocêfez?–Permanecemosempéali.–Edepois?Ficouemsilêncioporummomento.Então,continuou:–Eleapareceu.Omendigo.Ouvimosseuspassosatrásdenós.Achoquesubiuasescadas.Passoupor

baixodagradedemetaledisse:“Nãohácomodescerdaqui,menininhas.Anãoserqueconsigamvoar”.

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Zac

OsvagõesdetrilhodeAlleynsãoumamaravilha.Aspedrassãotrazidasdaspedreirasdentrodeles,porumtrilhoíngremedemadeiraatéorio,impulsionadopornadaalémdagravidade.Osgritosdoshomensedaspessoasqueospuxampodemserouvidospelacidade.No cais, os blocos ainda brutos são movidos por forças humanas para a linha de vagões, que

constantementefazembarulhocomsuasrodaspelasruasatéchegaremaquinolocaldaconstrução.Nuncahavia visto uma indústria assim. Espanta-me e de certo modo até me humilha. Os trabalhadores sãocriaturasdefazendasevilasdaredondeza.Trabalhamtãodurocomoanimais.Comoseotrabalhofosseoâmagodesuasvidas:arrastar,levantar,moldar,esculpirecortarpedras.TalvezsejamdescendentesdosconstrutoresdeStonehenge.Forrestassimodiria,estoucertodisto.Seriaumapenaqueaindústriadelesfossedestruídapormim.Tinha um abrigo na construção em que trabalhava. Lógico que não somos construtores. Somos

arquitetos e cavalheiros.Os empreiteiros são homens tão brutos como seus trabalhadores.Cada um éresponsávelporumnúmerodeterminadodecasas.Ajustamointeriordelasdeacordocomodesejodeseuscompradores.Aquelasquesãovendidas.Oquesupervisionamoseramaisimportante:asfachadas,aprópriaformadoCírculo.Tenho uma bancada, um banquinho e um pouco de fogo em um braseiro para manter meus pés

aquecidos,aindaqueotempofiqueameno.Tenhoumfrascodevinhonagaveta.Aotomá-lo,observeiostrabalhadores e pensei em Sylvia. Ontem, contou-me sua história, titubeando, por meio de sentençasquebradas. Eu disse pouco. Não queria impedi-la. Mesmo assim, muitas coisas ela não mencionara.Soubequeseunomeerafalso,poisadmitiraisso,masnemumavezchegouacitaroverdadeiro.Eavilaquemencionaranonortepodeatémesmonãoexistir.Massuafugacomumamigo,suaaventuraaquiemAquaeSulis,seuenvolvimentocomosvícioseosjogosnoGilbert’s,ora,issosiméumahistóriaantiga.Perdeutodoseudinheiro,tevedetrabalharpeloseusustentoatéForrestresgatá-la.Estavanumasituaçãopiorqueasujeiradarua.Agora,negaentusiasticamentequetrabalheparaCompton.Detesta-o,raramentesaiàsruascomreceiodeencontrá-loouaqualquerumdosvagabundosdacidade.Certamente,meulordeémentiroso.Masimaginoseela,assimcomoeu,estejaservindocomoinstrumentodeleparadestruirosucessodoCírculo,atémesmosemsaberdisso.SuapresençanacasaprejudicaForrest.Forrestestavano localdaobra, seusprojetosespalhadosnamesa,expostosaovento.Observava-o

apontando,gesticulandoedandoordenscuidadosamente.Poderiaeleestarapaixonadoporela?Eletemidadeparaserseupai.Poderiaserapenasgentileza?Algotãosimples?GeorgeFisher,umcarpinteiro,entrou.–Omestrequervê-lo.Nessesdias,elesnemmaismechamam“senhor”.Levantei-me,batiopódeminharoupaefuiatéele.O local da obra era uma confusão de barulhos.De escavação, do bater demartelos, do ranger de

dentesprovenientesdometalarranhandoaspedras.Apesardomeulenço,apoeiraerasopradaemmeurostoeemminhasnarinas.Forrestsevirouconformemeaproximei.

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– Zac.Morris relatoumais roubos durante a noite. Ferramentas foram levadas, e uma armação demadeira,queimada.Forjeiumolharespantado.Maspensei:ParaissoComptonprecisademim,paraconseguirgerarseu

caos.–Eosvigiasdanoite?–Nãoviramnada.Masaqui,entremimevocê,achoqueelessãopagosparanãoveremnada.Golpeouamesacomseupunho,epudeveraraivatomá-lo.–Porquefazemissocomigo?Nãoconseguemveramaravilhadestelugar?Abelezadesuaforma?–Talveztenhamouvidorumoresdejogosegladiadores.Senti-meculpadoe,porisso,minhavoztalveztenhasaídosedosaeafiadacomoumaagulha.Olhou-mefixamente.–Tudofoiesquecidoevocêsabedisso.JásofrizombariassuficientesdapartedelordeComptonsem

vocêprecisarmelembrardelas.Nãopossomaisarcarcomessasperdas,Zac.Estouabsolutamentesemdinheiro.Pareciacansado.Haviamanchasescurassobseusolhos.Trabalhouporduasnoitesseguidase,mesmo

assim,tardedanoiteanterior,nashorasmaisnegras,saiudecasaacompanhadodedoisdesconhecidos,nãoregressandoatéoamanhecer.MaisdaquelemistériodeOroboros.Então,sugeri:–Podemoseconomizar.–Nãovou.Estaestruturavaipermanecerempépormuitotempo,depoisdeambosmorrermos.Não

sereilembradocomoumapessoasovina.Encolhimeusombros.–As colunas de pedra devem sermantidas, sim,mas existem alguns aspectos do projeto que você

poderia omitir sem comprometê-lo.As landes de pedras, por exemplo.Não há propósito nelas.Nemtenhocertezadequenãovãoprejudicarapurezadaconstrução.Eaindaháessasmétopes.Em alta voz, fez um juramento enfurecido de um lado para o outro, ignorando os olhares dos

trabalhadores.–Asmétopes sãopartedeum todo!As landes importam, sim.Não irei comprometermeu trabalho,

senhor,mesmoquetenhadevendertudoquepossuo.Essas métopes são esquisitas, meros emblemas e figuras em pedra. Selecionou algumas de livros

estrangeiros e outras desenhou pessoalmente. São símbolos alquímicos, planos secretos: um rosto deJanus, comum ladomasculino e feminino; um carvalho; colmeias e duasmãos quebrando um anel.Apinturadelesseestenderáportodooredordocírculo,emfrisos.Masoqueoscompradoresdascasasfarãocomtaisimagensemsuaspropriedades?Easlandes?Friamentemeafasteidesuaira.–Bem,senhor,talvezvocêpossapediraajudaaseusamigossecretos.Parou.Algumasvezes,elepareciacomoumamarioneteemminhasmãos.Sabiaexatamenteoqueiria

dizer.–Queamigossecretos?–AsociedadeOroboros,ouqualquerquesejaonomecomoqualseintitulem.Euoconheço?Olhoufixamenteparamimporumtempotãolongoquequasemeassustei,entãosorriu.

Umsilênciosefezentrenósemmeioaobarulhodocortardepedraseodosvagões.–Bem,Zac.Vigiecuidadosamente.Senti-medesajeitado.Eu os vi em Stanton Drew, como já se sabe. Sei que existem muitas ordens secretas. Maçons,

sociedadesdruídicas,clubesdehomenseruditos.Seusolhosescurosaindameagarravam.

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–Entãovocêsaberáqueseusmembrosnãopodemdiscutirseussegredos.–Defato,senhor,masestoucertodeque,seumdeseusmembrosprecisadeajuda,sejaelaqualfor,

seuscodruídas,oucomoquerquesedenominem,irãoassisti-lo.Veioamimqueosemblemasnofrisopertenciamaessegrupo,entãopermaneciemsilêncio.Quandovoltouafalar,surpreendeu-me,dizendo:–Vocêsemostraumhomembomaopensaremmeubem-estar,Zac.Agradeço.–Eu!Maseu...–Você podemanter seusmodos altivos,mas consigo ver seu verdadeiro eu.Machuca-me emmeu

âmagosugerir-mequecorteaslandesdemeuprojetoe,agora,tentaoferecer-meconforto!Aproximou-sedemimepôssuasduasmãossobremeusombros.– Você é leal, Zac, apesar de sua fanfarrice, sei que, assim como eu, sonha com o Círculo.

Superaremosessesproblemas.OCírculoseráseumemorial,assimcomoomeu.Umdoshomensochamouparalonge;foi.Olheiparasuascostas.Elenãoforasarcástico.Nemsabiao

significado da palavra! Por um momento, fiquei em meio ao barulho, então deixei o local da obrafuriosamente.Porquetevededizeraquilo?Lealdade?Oquesabiasobreminhalealdade?Nuncafuilealaninguém,

anãoseramimmesmo.Desciandandoatéacidade.Vergonhaeiraenchiam-me.AdívidacomComptoneracomoumfardoem

minhascostas.Cemguinéus!Naverdade,poderiaatésermil,estavaarruinado,sabiadisso.EracomForrestqueestavanervoso,enquantoandavaapassos largospelosbecosestreitosesujos.

Elepodiaserumgênio,mastalhomemnãopoderiasertãoingênuo.Tãotolo!Afinaldecontas,eunãodevianadaaele.AspalavraszombeteirasdeSylviaeramtolicedegarotas.Qualquerumteriameaceitocomoaprendiz,

com salário ou sem. Fui escolarizado e sou filho de um cavalheiro. Em todos os lugares, arquitetosagarrariamestachance.NãomeimportariacomForrest.Eragentilapenasquandolheinteressava,umcegopeloestrelatode

suas obsessões. Sua tolice druídica nos fazia a todos de tolos.Acabei saindo no terreno ao redor daAbadia. Àminha direita, o prédio gótico se erguia imponentemente com sua fachada enegrecida quemostrava as escadas duplicadas de pedra que levavam ao céu, onde anjos as escalavam. Parei pararecobrarmeufôlegoeatentei-meparaelas.Quemquerqueastenhaprojetadotambémeraumhomemgenial,masquemserecordavadeleagora?

Senhorasesenhorespasseavamsobsuaabóbodadeventilação,janelasgrandes,emaravilhavam-secomasobrasdepedra.Nuncapensavamemquemashaviaconstruído.Pedraspermanecem,homensmorrem.Éassimqueascoisassão.IssoéoqueoCírculosignificava.–Bomdia,mestreStoke.Vireiapressadamente.Doishomenseumasenhoraestavamempéali.Elausavaumvestidodesedavermelhoquedeveriater

custadomundosefundos.UmdoshomenseraRalphAlleyn.–MestreAlleyn–disseeu.–Permita-meapresentá-loosenhorJohnDouglas.SenhoraDouglas,esteéoassistentedemeuamigo

Forrest,mestreZachariahStoke.Todosnoscurvamoselegantemente.AssistentedeForrest,pensei.Nãomaisdoqueisso.–Vocêdeveestarbemocupadonolocaldaobra.Alleynveio,tomoumeubraçoeandamosemdireçãoaosbanhos.–Desde que o chão foi nivelado, as coisas têm semovido rapidamente.A primeira terça parte da

fachadajáestácomeçada.–Johnvaiconstruí-laporseções?

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–Estaéaideia.Balançouacabeçaepermaneceuempécomumaposeeleganteemmeioàluzdosol.Ouvioassobio

deseucasacobrocado.Pensei:eleérico,tentecomele.Eudisse:– As coisas não estão bem, senhor. Houve roubos, destruições deliberadas. Pequenas, mas

desagradáveis.Elefranziuassobrancelhas,sinalizandoparaqueseusamigoscontinuassemacaminhar.Vimoverem-

serapidamenteparadentrodaAbadia.–Sim,escutei,masnãohádesernada,Zac.Sempreexistemladrõesdeobras.Johnsabedisso.Balançouacabeçadetalmodoqueaperucaprateadarefinadaespalhouumpoucodetalco.–Falareicomele,mascreionãohavernenhumproblemacomaspedras,presumo?–Aspedrasestãoperfeitas–suspirei.–MestreAlleyn,semepermite,éque,porminhaprópriaconta,

estoucomumapequenadificuldade.Nãogosteidoolharquemedeu.Erabemdireto,eseusolhoserampesados.–Dificuldade?Ri.Umatentativaineficaz.– Dinheiro, senhor. O senhor sabe que um cavalheiro tem obrigações. Cogito se poderia

possivelmente...Segurou-mepelasmangasemearrastouparaacoberturadacasadebanho.Porsobreomuro,ouviam-

seosesguichosdeáguaquenteeosberrosdosaflitosparecendomiados.Eledisse:–Nãofalecomigocomoemalgumlivrodeetiqueta,rapaz.Vocêquermedizerqueandouapostandoe

queagoraestácomumadívida?Puxeimeubraçoemesoltei.Nuncaohaviaouvidofalardemodotãoáspero.Levanteimeuqueixo.–Umavez.Apenasumavez.Infelizmenteeu...–Quanto?–Senhor?–Nãofinjaserumtolo,garoto,quantovocêestádevendo?Abriminhaboca,masaspalavrassaíramcomoemummurmúriotaciturno.–Cemguinéus.Pensavaqueelefosseumhomembrando.Agorapercebiaqueestavaerrado.Olhou-mecomumolhar

fixo,capazdedespedaçarpedras.–AlerteiJohnparanãocontratá-lo,vocêsabiadisso?Maseleriuedisse:“Vamosdarumachanceao

garoto,Ralph”.Eé assimquevocê retribui a ele?!Digo, senhor,vocêmeenchededesgosto.Forresttrabalha até exaurir-se, sua genialidade é zombada por tolos e atémesmo seu aprendiz semostra umpatife.Seeuouvirquefoidadofaltadedinheironacasadele,euvou...Movi-merapidamenteparatrás.–Jamaisfariaisso,jamais!–Achoquevocêpoderiafazerbemmaisdoqueisso.Olhamo-nos.Transeuntesviraramsuascabeças,curiosos.Alleyndisse:–Paraquemvocêestádevendo?–Nãopossolhedizerisso.Enãoofaria,estavafervendoderaiva.Olhei-oedisse:–Esqueçaquepediavocê.Conseguireiodinheiroporcontaprópria.–Johnsabedisso?–Nãoconteparaele,senhor.Eulhepeço.–Nãocontareiparaele,ainda.Voulhedaristo.Rabiscoualgoemumcartão,entregou-oamimedisse:

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–Oendereçodeumempresáriodeboareputação.Nãodeumhomemdesprezível.Elelheemprestaráodinheirocomumaporcentagemmínimadejurosemmeunome.Empurrou-oemminhamãoecontinuou.–Maseujuro,Zac,nuncamaisfareiissonovamente.Enãofaçoporvocê,masparameubomamigo,

queteveoazardesergentilcomdesonestosingratos.Nãosecurvou.Sósevirouepartiu.Fiqueiempésegurandomeubastãonomeiodapraça,opapelquemederaamassou-seemminhamão.

Meurostoardia.Estavacertodequetodosnaruameolhavam,masnãoconseguiamemover.Uma fúria bruta fez minhas mãos tremerem. Pouco depois, levantei minha cabeça, andei com um

equilíbrioexageradoatéomuro,olheisobreeleparaosbanhistas.Malpodiavê-los.Ovapordastermasquentes subia no ar deoutono.Olhei fixamentepara umamulher obesa e o homemque sofria degotacomo se fossematá-los.Que tipo demundo era este? Lá, na banheira descoberta, pedintes,mulheresvulgarese tolospustulentosagachavam-se juntamentenumasujeira, esperandoacuradasdoençasquetrouxeramsobresimesmos,merecidamente.Odiavaatodos.Odiavaomundointeiro.Comopoderiapagarjuros?Elenãoconseguiaverqueeuestavadesesperado?Estreiteimeusolhose

conjureisuavemente.Naquelemomento,percebioqueiriafazer.Olheiparaonomenopapel,amasseieatirei-onobanhoquente.QueSulisorecebacomoumaoferta.Vireieandeirapidamente,movendo-meporentreosbecos.Depois,corri.Subia ladeiradacidade,passandoporcasas inclinadas,obrasde terraçosnovoseelegantes, lojas,

salõesdejogos,salasdereuniões,barracasdomercado,porestruturasantigasentrelaçadaseprestesacair,por ruasgraciosasdopresente,por liteirasecarruagens,entreosbalaústresnegrosde ferro,porempregadasesfregandoosdegraus,bebidasfermentadadeumcarrinhodecargaedoisgalosbrigandonaestrada.Corriparaomeular,paraacasadeForrest,abriaporta,entreisorrateiramenteeescutei.Dacozinha,

a voz da Sra. Hall soava monotonamente. Deveria estar conversando com Sylvia. Arrastei-me pelasescadas,entreimatreiramentenasaladetrabalhodeForrestefecheiaportasemfazerbarulho.Cuidadosamente, sobreas tábuasque rangiam, tireimeussapatose,compassossurdos,passeipelo

grandemodelo doCírculo. Por ummomento de fúria e ardor, fiquei tentado esmagá-lo e deixá-lo emestilhaços,masissonãoserianada.Fariaalgomuitopior.Veriaaquelapromissóriarasgadanafrentedemeusolhos,vingar-me-iadogentilapadrinhamentodeForrestedeseuamigopresunçosoqueousoumeolharcomdesprezo.Suaescrivaninhaestavacheiadelixo,papéisamassadosdeplantas,diagramas,anotaçõesdeumnovo

manuscrito,livrosdegeometriaealquimia,ferramentas,linhas,canetasetintas.Encontrei os projetos domestre para oCírculo.Acendendo a lamparina, olhei para a luz do céu e

percebiquealuzdatardejáestavaminguando.Logoestariaescuro.Nãotinhamuitotempo.Escolhiumacanetaesentei-me,puxandoasplantasemminhadireção.Fiz uma cópia,mas não perfeita. Suasmudanças seriammínimas, ninguém as perceberia.Medidas

imprecisas,colunasumpouco longe,àesquerda,ombreirasdasportasdesalinhadas.Coisaspequenas.Talvez nem Forrest viesse a notá-las, a não ser quando estivessem terminadas,mas ali elas estariamdisformes.Seassimfossemconstruídas,acabariamcomaharmoniaeaperfeiçãodoCírculo.Balanceiacabeça,severamente,enquantominhacanetaafundavanatinta.Aproporçãoeratudo.Esta

era amágica, e eu a distorceria. E sempre, daquele dia em diante, os olhos dos espectadores não seagradariam, mas incansavelmente pairariam ao redor do círculo de casas, sem saber ao certo o queestariaerrado.Oqueestariaassimétricoeforadolugar.Deixariaminhaprópriamarcaparaomundover.Comoumanjodastrevas,trariadiscórdiaaoparaíso.

FariaForrest,Compton,Alleynetodososoutrosseenforcarem.Trabalheiporumahora.Quando,porfim,meassentei,olheiaomeuredoreviqueanoitechegara.

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Oquartoestavaescuro, luziaapenasofachode luzsobreaescrivaninha.Aúltimacoisaquefiz foiredesenharumadasmétopes.Emvezdaárvoreerguendo-seproeminente,desenhei-acaída,destruídaporumraio.Maistarde,emmeuquartonosótão,deitei-meemminhacamaeouviossonsdacasa,Forrestentrando

egritandoeSylviadando-lheboas-vindas.Doladodeforademinhajanela,gralhasperturbavameriam.Lembrei-me dos pássaros presos naquele cômodo, como haviam se arremessado tolamente contra asjanelas,comoquebravamseusprópriospescoçosempânico,medoeestupidez.Desúbito,sentiumterrívelpavor,umasensaçãodequeestavafazendoamesmacoisaoucaindode

umaalturaenorme.

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Bladud

Paraconstruirumaobra-prima,ohomemprimeirodeveaprendersobreaterra.Devedescobrirossegredosdecomocercarespaços,porque issocontrolaocomportamentodaspessoas.Pássarossãolivres,vivememumaatmosferasemlimites,masoshomenssãoregidospormuros,corredores,ruaseestradas.Seforemprojetadosemharmonia,assimtambémestarãoaspessoas.Oarquitetoéummágicoeumrei.Porisso,viajeieestudei.ViTroia,JerusalémeAvalon.Prostrei-meperanteApolo.MediotemplodeSalomão.VelejeiparaalémdoVentodoNorte.Sempre

procureiaformaperfeita,oconhecimentoeopoderdesuasproporções.TudoeufizporestardeterminadoaconstruiromaioredifícioemtodaaLogria.Umedifícioque

seriaconhecidoparatodosempre.Umaondanapiscinadotempo.

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Sulis

A chaleira ferveu e assobiou, desligando-se automaticamente. Josh a levantou e colocou a águafervendodentrodobuledechá.Mexeueocolocouemumabandeja,acompanhadodeaçúcarededuascanecaslistradas.Carregoutudocuidadosamenteatéoquarto.–Suacozinhaémaluca!Sulisbalançouacabeça.–ÉHannah.Elaestánessaondadeervas,esmagaseuspróprioscondimentosecultivaessascoisas

esquisitasemvasos.Simonapenascome.Dizquenuncasedeveperguntaroqueé.Elaoobservousentar-senoassentopertodajanela.–Emminhaúltimacasa,haviaapenascomidapronta,entãoissofazumadiferençaenorme.Tiveram de descer para fazer um chá, pois lá em cima o tom da conversa era demasiado pesado.

Agora,segurandoacanecaeretorcendoseusjoelhossobreosofá,Sulispercebeuquecontarsuahistóriaeraumaimensaprovaçãoparasi,masnãoparaele.ParaJosh,eraapenasavidadeoutrapessoa,comaquelasutilezadesentimentodeque“realmentenãoémeuproblema”.Nuncaimportariaparaelecomoimportavaparaela.Haveriaminutosehoras,atémesmoeste,emque

seesqueceriacompletamentedesteacontecimento.Entãoeledisse:–Devemossair.Émaisfácilconversardandoumavolta.Jogarminigolfe.Alimentarospatos.Sulisbalançouacabeça.Porummomento,osilênciodacasapermaneceuentreeles.Atrásdele,pela

janela,elaviaaperfeiçãorítmicadafachadaoposta.Disse:–Caitlinsempreteveatraçãoporpássaros.Corriaaoredordoplaygroundcomseusbraçosabertos,fingindoserumaáguiaouumavião.Achoqueelaacreditavaque,seumapessoabatessesuasasas,bemvelozmente,poderiavoar.Elanãodeveriater...Éramosapenascrianças.Tenteselembrardequandovocêeracriança.Tudoeradiferente.Ojeitodepensar...–Deuumgoleemseucháepôsacanecadevoltanamesadevidro.–Ohomemsubiueseaproximoudenós.Elaestavaapavorada.Andouparatrásefalou:“Sevocêchegarmaisperto,euvoupular”.Istoofezpararedizer:“Não.Nãovoumachucarvocê”.Estavachovendo–contavaSulis–,euchorava,etudoeraobscuroehorrível.Haviaaquelarajadadevento.Ela...elameioquecambaleou.–Porquevocênãocorreu?– E passar por ele? Este era o único modo de descer dali. Mas... Não podíamos correr, Josh.

Estávamoscongeladas.Tinhaseusbraçosenvoltosemsimesma,balançava-seepermaneciaquieta.–Caitlinhaviameseguradoeestavamuitopertodabeira.Derepente,percebiqueseelacaísseme

levariacomela.Euestavaapavorada.Griteicomela.Maselaseguravaminhamãoenãoasoltava.Nãoiriasoltá-la.Nãoconseguiaficarparada.Saiudosofáeandouatéaporta,edepoisvoltou.–Sulis,olhe...–Não,euprecisoterminardecontar.Euestavagritandoesoluçando.Entreiempânicoeconseguime

soltar.Ohomemlhedisse:“Vocêconseguevoar,garotinha.Estátudobem.Éseguro”.Elasevirou.Viamãodele.Euestavaatrásdela.Abriuseusbraços.Eentão…caminhoupelaabeirada.Josholhou-afixamente.–Eleaempurrou?

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–Euavicair,indoparabaixoemaisparabaixo.Vi-aaterrissar.Alguémrianarua.Umaportadecarrofoibatida,eseumotor,ligado.Nósoouvimosdistanciar-se.FinalmenteJoshdisse:–Ela...?–Estavamorta.Sulissesentou.Sentia-setotalmentecalmaagora,controlada.–Virei-me,masohomemhaviadesaparecido.Achoquedesmaiei,poisnãomelembrodenadamais.

Acordeicomfrioedura,envoltanaspalhasnaquelecômodomaluco.Jáeramanhãdodiaseguinte.Estavacompletamentesozinha.Desciosdegraus,eláforaelapermaneciadeitada,completamentedobrada.Olhei-aepercebiquetudoaquilonão era pesadelo. Foi a última vez em que a vi,mas fiquei contente de tê-la visto.Não foi horrível.Estava tãopálida.Linda, comoumabonecadeporcelanaquebrada.Malhavia sangue.Então,pessoasgritavamecorriamemminhadireção.Eraumcaos.Apolíciamelevou.Masele…–elaparou,olhoupara cima. –Nunca o pegaram, Josh.Esta é a causa de tudo isso. Sou a única que sabe como ele separece,enuncaopegaram.No parque, andavam contra o vento. Um ônibus de turistas cruzou, vagarosamente, debaixo do

Crescente Real. Todas as lentes das câmeras voltaram-se para um lado do ônibus. Ela os observavacuidadosamente.Pagaramos tacos de golfe e passaramumahoramaluca batendo a bolinha pelos túneis pequenos e

pelas curvas do campo. A grama artificial era de um verde lúrico que se opunha ao vermelho dasbandeirolaseaoazuldocéudeoutono.Depois,chutandograndesmontesdefolhascaídas,contou-lhesobreasinvestigações,osjornaiseacaçadadeâmbitonacionalaoassassino.–Eraparaeuestarprotegida,masaquelafototerrívelfoidivulgadaaoredordomundo.Foiaíqueas

ameaçascomeçaram.Umajanelaforaquebradaemnossacasa.Coisaschegaramparanóspelocorreio.Nãosei,nuncamedisseramoqueera.Masnosmudamos.Econtinuamosamudar.Chegandoaolago,Josholhoufixamenteparaospatossilvestreseosgaleirões.–Esuamãe?–Morreuumanodepois.Ataquecardíaco.Tinhaapenas40anos.Avozdelaeratãogélidaquantoaáguacinzenta.–Disseramnãoternadaavercomoquetinhaacontecido,masnãosei.Nuncaforaamesmadepois

daquilo.Desdeentão,játivemaisdedezparesdepaisadotivos.Eportrêsvezesacheitê-lovisto.Masnuncacomoagora.Elerealmentemeachoudestavez.Virou-seeinsistentementedisse:–Euseiquemeachou.–Entãovocêdeveriacontaràpolícia–disseele.–Não!–Vocêachaquejánãotenteiissoantes?Nãoadiantou.Elesapenasacham...naúltimavez,deixaram

bemclaroqueachavamqueeuestavaimaginandocoisas.Ruborizou-seaoselembrardoinspetorenfurecidoqueveioatéoescritóriodeAlison,olhandopara

seurelógioefazendorabiscosemvezdeanotações.–Achamquesouumaaluninhahistérica.Nãoachamqueestouemperigo.Nãoentendem.Estehomem

estáláfora,esóeuconheçosuaaparênciaequemeleé.Ospatosseaglomeravamagora.Osmachosemsuascoresbrilhantesdeinverno.Elatirouumpãoe

algumassementeseatirouumpunhadonolago.Observavacomoospatosmaioresmordiamseualimento.–Aquele–apontouJosh.Umpequenogaleirãomergulhouatrásdeumasementeeseomolhara.Sulisjogoumais,concentrando-

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se em dividi-las igualmente.Gostava de observar a rapidez dos pássaros e seus golpes rápidos paraabocanharoalimento.Os pássaros não eram complicados. Espíritos livres. Alimentá-los significava fazer algo generoso,

semenvolver emoções conflitantes. Sentiu-se feliz por um segundo, como se contar a velha história ativesselibertadotambém,aindaqueporumtempo.Joshestavaquieto,comoseestivessetentandodigerirtudoaquilo.Andaram ao redor do Crescente e depois desceram à cidade, passando pelo mercado, indo até a

galeriadearte,ondevaguearamsemrumoaoredordasexposiçõesdedesenhoseplantasarquitetônicas.UmadelaseradeJonathanForrest.Assemelhava-seàplantadoCírculo.EntãoSulisolhouparaela

poruminstante.Eracomplexa,comlinhaseângulos,deixando-aimpaciente,comoseseusolhosfossemlevadosconstantementepelomovimentodaquelasformas.–Deveriavoltarparacasa–disseelanacalçada.Josharrastouseuspéspeloesgoto.–Sulis,escute.Precisamosresolverisso.Temosdedescobrirseessehomemérealmenteele.–Vocêquerdizerquenãoacreditaemmim?Balançouacabeça.–Nãoéisso.QuestioneiTomsobreoestranho.Parecequeeleéapenasummendigolocal.Jáestáaqui

háanos.Todosoconhecemeeleéinofensivo.Jáestavaaquibemantesdevocêchegar.Então,vocêpercebe.Nãopodeserele!Eohomemnoônibuspodetersidoqualquerum.Encarou-o.Eeledisse:–Nãofiquetãoapavorada.–Nãoestouapavorada.–Vocêestá.Paramim,parecequeestáapavoradadesdeaquele trágicodia.Senãoparardecorrer,

ficaráolhandoparatrásdeseusombrosparaorestodesuavida.Saiuaospulosdafrentedeumcarro,eelanotouqueeleficaraensopadopelojatodeáguaquenem

havianotado.Estavamuitointeressadaparaficarnervosa.–Éissooquevocêacharealmente?Puxou-adevoltaàentradadagaleria.–Nósnoscertificaremos.Faremosumaarmadilha.–Umaoquê?– Armadilha. Filmaremos esse homem com a câmera, no circuito fechado de monitores. Fico no

escritórioalgumashorastodososdias.Possoarmaralgumacoisa.Deixecomigo.–Nosbanhos?–Ondemais?Aideiaarrepiou-a.Tudobem,aterrorizou-a.Eleestavaconvictodaquilo.Olhou-oatravésdachuva

repentina,doscarrosquealicirculavameporentreamultidãodecompradores.–Não–disseela.–Oquê?Virou-seesaiuandando,maselecorreuatrásdela.–Sulis,porquenão?–Nãoquero.Enãoousefazerisso,Josh.Estoufalandosério.Enemousearmaralgumacoisasemme

dizer.Elaestavatremendodefrio.Opavorantigohaviaprovocadoatranspiração.Atravessouaruaeandou

rapidamente sobre a ponte, não olhando para trás para ver se ele estava lá ou não.Mas ele disse: –Fugindodenovo,Sulis?

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Ela parou. Então, deliberadamente, saiu da ponte em uma rua reta e perfeita, chamada rua GreatPulkneyporsuabelezadourada,irregular,comosefosseumlocalemquepudesserespirar.Comoseainsistênciapelaordemacalmasseomartelardeseucoração.Joshnãoaseguiu.Ficouempénaesquinaedisse:–Ligoparavocêamanhã.Pense.Poderíamosdarumfimnisso,deumjeitooudeoutro.Quandoelasevirou,elejánãoestavamais.Andouatéacasa,emmeioàsnuvenspassageirasquea lua iluminava,assimcomoos telhadoseas

chaminés.Umamultidãosaiudamatinêdoteatroeaenvolveracomoumamaréquenteetagarela.Simonestavanohallcomamulhermaisvelhadoflatdebaixo.–Obrigado,Joan.Cuidareidisso.Virando-se,eleaviu.–Então,vocêvoltou.Querverosporões?–Oquê?Eleseguravaumachave.–AsfundaçõesdeJonathanForrest?Penseiemdarumaolhadanolugarantesqueopessoaldoesgoto

tomecontadele.Seguiu-odevoltaàcalçada,eentão,poralgunsdegraus,desceuatéumaárea,umpátioabertoembaixo

doníveldarua,quealgumdia tinhaservidodeentradadosserventes.O flatdosubsoloestavavazio,poisseudonoficavaemLondresamaiorpartedo tempo.MasSimonseafastoudacasa,encarandoomuro abaixo da calçada. Havia duas portas pequenas ali. Escolhendo uma chave, abriu uma delas eambosespiaramoquehaviadentro,curiosamente.Umcubículosujocheirandoacarvão.Algunsmontesescurosbrilhavamemumdoscantos.–Estáclaroparaqueistoservia.Fechou-aecolocouachavenafechaduradaoutraporta.–Deus,estáemperrada.Chuvacorriapelosseusdedos.–Seráquedevíamostertrazidoumguarda-chuva?Segureparamim,Su.Eraumalanterna.Pegou-aeobservou-olutarcomafechadura,masnaverdadeestavaescutando.Isso

porque,naruaacima,alguémestavaandandoaoredordoCírculo.Passossuavesefirmes,vagarosos,comoseprocurassemumacasaespecífica.–Ah,consegui!Achavegirouruidosamente.Ospassospararam.Alguémestavaempébemacimadela,nacalçada,noladodeforadacasa.Seeladessealgunspassos

paratrás,poderiavê-lo.–Aquivamosnós.Simon empurrou a porta, abrindo-a. Estava emperrada, a madeira raspava nas pedras. Entrou e

estendeuamãoparapegaralanterna.–Vocêvem?Seela somentedesseumpassopara trás, ficariamcaraa cara.Ohomemestaria empéali, emseu

casacoescuro,seurostomarcadoporcicatrizeseasmarcasdeixadaspelavaríola.Tambémpoderiaseroutra pessoa. Apenas um homem com um cachorro, ou Josh, que a havia seguido até sua casa paracertificar-sedequeestavabem.DeualanternaaSimon,quealigou.Viramumporãolargocomparedesdepedrasdecoresapagadase

queseestendiamnaescuridão.–Fabuloso.Vamosdarumaolhada.Deuumpassocuidadososobreochãoarenoso.

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Elaoseguiurapidamente.O porão era maior do que imaginara. O telhado tinha uma abóbada simples, e o cômodo estava

bagunçado.Metadedapartedetrásdeletinhaumapilhadecolchõesvelhos,mobíliaquebradaeumalatadelixocheiadesucata.Cheiravaapóemofo.Simon tateouo localembuscadeuminterruptorde luz,masquandoa lâmpadafinalmenteacendeu,

estavafracaeprovocousombrasprofundasnoscantosdocômodo.–Bem.Realmenteconstruíramolugarparadurarparasempre.Correusuasmãospelasparedesabaixo.–Nemhátantaumidadeassim.Jálhedisse,Su,quetiveramdenivelarolocalantesdecomeçarema

obra?Estacolinaeraenviesada,naverdade,aindaoéalémdoCírculo.Elabalançouacabeça.Tudoemqueconseguiapensareraqueestavaempésobacalçada,etalvezaté

sobarua.Estarembaixodosoloeraopostoaestartãoaltonocéuedopensamentodesercapazdevoar.Simonempurrouumamesaque,carregadaparaolado,fezumgrunhido.Examinouochão.–Aquiéatéondeavalachega.Bempequena,entãonãohámuitoquever.TalvezseuamigoJoshfique

umpoucodesapontado.Dequalquermodo,porquenãoestáestudando?Parecebeminteligente.Elanãofaziaideia.PercebeuqueestavatãopreocupadaemcontaraJoshsuaprópriahistóriaquenão

sabiaquasenadasobreele.–Talvezsejaporcausadedinheiro.–Bom,dinheiroestáemtodaanossavolta,sevocêsouberondeprocurar.Simonalcançaraaparedetraseira.Suavozsoouesquisitaeduplicadaporcausadaabóbada.–Forrestusoumateriaismuitobons.Centenasdespiders.Oh...Ficouemsilêncio,entãoeladisse:–Oquê?–Umaportatrancada.Venhaver.Elaseaproximoueparouaoseulado.Naparededetrásdoporãohaviaumaportatãovelhaqueseus

painéisdemadeiraenegrecidaestavamemperradoseapodrecidos.Simonpuxou-oscomforça.–Diriaqueétãovelhoquantoestacasa.Adorariaabri-la.Puxou-osnovamente.Portrásdaporta,algoescorregouefezumgrandeestrondo.–Deixeparalá–disseSulis,edeuumpassoparatrás.Porummomentorápido,aportapareceuser

ameaçadora,comoumforteaviso.–Estamosembaixodarua?–Mais longe. Embaixo da grama, eu diria. Algumas raízes das árvores quebraram em partes este

porão.Voltoucommanchassujasemseurosto.Elaviuseusorrisolargodeentusiasmo.–Pensenisto,Su,umcírculodecômodosdebaixodosolo,secreto.Forrestdevetervistovestígiosdo

ColiseudeRoma,ondeexistemcômodossoboespaçocentral.Tinhaumaideiamalucasobrejogosemarenas,comovocêdevesaber,antesdospresunçososdoconselhodacidadeopegarem.Tirouumlençoelimpousuatesta.–Estounojento.Hannahvaimematar.–Não,nãovai.Sulisacendeualanterna,iluminandoaoseuredor.Simonriu-sedesconfortável.–Não,elanãovai.Tolo...–Terminamos?–Ah,sim.Achoquesim.Desligoualuz,sobrandosó,daclaridadedalanterna,umfachofinodoséculoXXI.Imediatamente, o cômodo além da porta parecia aprofundar-se em um tempo antigo, com paredes

brilhanteseotetoabaixadoemumaprojeçãoescura.

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Sulismoveualanternapelasparedes.Entãoparouefocouemalgo.–Olheaquilo.Elevoltou.–Bem.Émaravilhoso.Algumasiniciaisestavamesculpidasprofundamentenapedraprincipal,porsobreocaminhodaquela

portatrancada.ZS1754.E,aoredordelas,algorústicoecircular.Simonasalcançou,tocandonelascomaspontasdosdedos.–IssodevesignificarZachariahStoke.Fantásticoenuncaantesrelatado,atéondeeusei.Tirareiuma

foto disto e depois vamos definitivamente abrir esta porta. Devia ser jovem nessa época. Ainda umaprendiz.Achoqueprojetoualgumascoisasboasdepois,masnãotenhocerteza.Ela olhou as letras novamente, diagonalmente pela luz da lanterna. Suas sombras eram profundas.

Depois,seguiuSimon,cuidadosamente,enquantosubiaosdegraus;masacalçadaestavavazia.Não havia ninguémnoCírculo.O pequeno círculo de janelas brilhantes tranquilizou-a, trazendo de

voltaomesmosentimentoquetevequandoestevealipelaprimeiravez,desegurança,deestarprotegida,depessoascomunsquesesentamparatomarchá.Mas,quandosevirounodegrauparafecharaporta,viuqueogramadocentralestavaescuro.Debaixo

dasárvores,sombrassemovimentavam,sussurrando,comoseasluzesdaruaapenasasinquietassem.

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Zac

EudeveriaestarviajandopelaEuropa.Bem,naUniversidade,primeiro,élógico–emOxford,comomeupaieopaidele.LetrasClássicaseFilosofia,ouDireito.Provavelmentenão importariaoqueeucursasse, porque Oxford é muito mais do que apenas aprendizado. Lá eu teria conhecido homensimportantes,futurospolíticoseclérigos,doadoresdepatronatos,amigosnotáveisquepodemconstruiracarreiradeumhomemnomundo.Lordes,nobrescomcasasgrandeselatifundiários.Depoisdisso,teriaviajadoemumgiropelaEuropa:Paris,VenezaeRoma.Nesteexatomomentoestariaespreguiçando-meem alguma gôndola no Grande Canal, ou bebendo champanhe em um salão com alguma bela dasociedade,noquarteirão latino.Emvezdisso,estouaqui,molhado,cansadoeaterrorizado,penduradoemumaescadabambadevintepésdealtura.–Vaimaizdevagar,meztre.Zuaveedevagar.George Fisher estava bem abaixo demim. O tolo, por um acaso, achava que eu estava apostando

corridaatéotopoearriscando-meacairemorrer?–Nãosepreocupe–disse,apertandomeusdentes.–Fareiisso.OquefaztudoissopioraréofatodeForrest,comodobrodeminhaidade,aterescaladofacilmente.

Ele jáestava láemcima,naplataforma,conversandocomospedreiros,mesmoque,agora, tossindoerespirandocomdificuldade.Forceiminhasubida.Meusbraçosestavamdoendo,meussapatosescorregavamnamadeiraúmida.Os

degrauseramextremamenteestreitos.Bem, lógico que o filho de Forrest é quem estava no exterior. Jack está estudando o trabalho de

PalladionaItália.Umdiavoltaráparacasa,seráobraçodireitodeseupai,eoqueacontecerácomigo?–Ande,Zac!Oqueoestásegurando?Odeioquandoeleficarosnandoparamim,masachoqueoodeiomaisquandoestárindo.Aochegarao

topocomdificuldade,semconseguirrespirar,piseinastábuasepenseicomigomesmoquaisteriamsidoosdemôniosinterioresquemelevaramlá,poistudoestavadandoerradonestaobra,eelesabiadisso.Mesmoassimestavamuitoanimadonessedia,mais tranquilodoquenunca, comosea alegriadeveraqueleedifícioemconstruçãootomasseinteiramente.Confessoquemetomoutambém,mesmotendodemeagarrarnoparapeitoeolharparabaixocomoumhomemqueestáprestesaserenforcado.Aobrasedesenvolviaemumagrandeconfusão,commuitobarulhodeserrasenumadensaneblinade

pó de pedra. Todas as pedras eram trazidas ainda brutas das pedreiras, ornadas ali e encaixadas noslocaisondeeramnecessárias.Assim,oestrondodosmartelosdemadeiraedemetalera interminável.Todohomemtrabalhavacomumapedra,cortava-a,moldava-aoucerrava-a.Aneblinadepóatingiaacidadecomoumatempestadedeneve.Asruas,osdegrausdasportas,ostelhadosficavamdouradosporcausadela.Homens,burrosecachorrossufocavam-senela.Comosefôssemososresponsáveis,nãosópelaconstruçãocircular,mastambémpeloclima.Algumasvezesbloqueávamosatémesmoaluzsolar.–Zac,olheaqui!Forrestolhavaabasedeumdospilaresqueestavasendocolocadonolugar.–Tomenotadamaneiracomoelesocolocamnolugar.Osmétodosnãomudarammuitodesdeaépoca

dosgregos.A pedra era erguida por um guindaste de madeira e içada por um molinete. Balançava de modo

ameaçador ao passar por nossas cabeças.Homens as puxavamcom força e as arrastavam até o local

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planejadodeinstalação.Olíderdaequipegritava,dandoordenscomgírias,quedetãovelhaspareciamtersidoutilizadaspelosantigosbanhistasdastermas.Forrestsevirou.–Estaseçãoestáemritmoacelerado.Umavezqueasbasesdascolunasestejamcolocadas,oprojeto

vaicomeçaraganharforma.–Pareceumcaosparamim.–Entãovocêtemdefazercomoeu.Subaaquiànoite,sobaluzdoluar,quandoolocalestáquieto.

Entãoveráolocalcrescendo,Zac,brotandodochãocomoárvoresdepedra.Tinhaalgunspapéisemsuasmãos.Derepente,quiscontar-lheoquehaviafeito.–Mestre...–DevemosirverHarris.Essehomemestátrabalhandomuitorápido,masoscortesdelesãodebaixa

qualidade.–Sim,entendo.Mas...Umpedaçodeesmerilporpouconãoatingiuminhaorelha.Vendo-mepular,riuedeuumtapinhaemmeubraço.–Umlocaldeobraécheiodeperigos,Zac.Talvezdevêssemosdescer.–Queria...Tenhodelhedizer…Virou-separamim,comseusolhoscastanhosbrilhantes.–Oquê?Engoliemseco.–Coisastêmandadoerradas...–Nãomaisquedecostume.–Aspedraspolidasquesumiram,cadaumadelasvaliaquatroguinéus.–Sempreháladrões,Zac.–Masvocêjápensou...?–Engoliemseconovamente,amaldiçoeiamimmesmoebalbuciei.–Nestas

últimassemanasvocênãopensounahipótesedealguémquererestragaroprojetoeatémesmotirá-lodosnegócios?Porquedisseisso?Olhamo-nosfixamente.Eledisse:–Porquedeveriapensaremtalcoisa?Écertoquenãopossopagarpelasperdas.Estamossubsistindo

pormeiodeempréstimos, financiamentosedaboavontadedeRalph.Eécertoqueeleénossoúnicofinanciadorcomdinheiroreal.SeiquemestreGreyeestáespalhandofofocasdesmioladaspelacidade.Mas, Zac, quando a construção estiver pronta, eles farão fila para comprar as casas, especularem einvestiremnelas.SeráoatrativomaiselegantedeAquaeSulis...–Eusei.Eusei.Masesevocênãoconseguirterminaraobra?Esealguémmais...Assobrancelhasdelelevantaram-se.–PorDeus,Zac.Eununcaavenderia.Esteémeumonumento,meutúmulo.Nunca...–Seutúmulo?Riu.Agoraeraelequepareciainquieto.– Eu disse isso? Uma coisa tola para se dizer. Você já leu Aubrey? Aubrey escreveu que os

construtores dos grandes círculos projetaram aquela estrutura como seus próprios túmulos.Continhamdruidasdegrandepoder, seusbens emouro, âmbar e azeviche.Mas,olhe,precisover aquelepiso láembaixo.Cuidedenossosconvidados,Zac!Partira, balançando a si mesmo para baixo, cuidadosamente. Observei-o, fiquei tonto. Gostaria de

sentar-me,mas não havia onde. Homens passaram pormim, empurrando-me. Estava terrivelmente nocaminhodeles.Apoiando-menoparapeito,fecheimeusolhos.Tenteilhecontar.Teriasidotolodeminhaparte,poissecontasseteriasidodemitido.Oqueacontecia

comminha raiva feroz emeu orgulho?Onde andavam? Todomundo é tão complicado, ou só eu sou

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assim?–Zac!Meusolhosseabriram.Sylviaestavaláembaixo,comumguarda-solparaproteger-sedapoeira.Acenou.–Desçaaquiemostre-meolocal!Porummomentoolheiparaela,entãomebalanceiabaixo,estranhamente.Algunshomensmederamum

afável impulso e uma mãozinha. Alcancei o chão, já sem ar e desalinhado. Sylvia olhava ao redor,encantada.–Olhe,émaravilhoso!Tantaspessoasetodastrabalhandocomomesmoobjetivotraçadopelasideias

demestreForrest.Estavavestidacomumconjuntodesedaazuldesbotado,masaparentava-semuitobem.Seuaspecto

estavamuitomelhoragora,seuscabelosruivosbrilhavam.Erabonitaantes,masocuidadodeForrestarestaurouemquaseumaperfeição.–Paredeolharparamim.–Nãoestou.Só…Encolhiosombros.Girouoguarda-sol.–NãoécaladocomoomestrePeacock–disse,entãoseafastouepareciaumpoucoenrubescida.–Ou

vocêestácomvergonhadeservistocomigoforadecasa?–Claroquenão.Aspessoasestavamolhando.Ofereci-lhemeubraço.–Venha.Voumostrar-lheolocal.Andamosjuntospelaseçãoqueestavameioacabada.Acurvasutildafachadaasurpreendeu.Mirou-a,

olhandoparacimaedissebaixinho:–Eleéumgênio,nãoé?–Provavelmente.–Vocêémuitosortudo,Zac!–Sou?–Depodertrabalharcomelenisto.Aprendersobreprojetos,arquiteturaehistória.Dariatudoparaser

ummeninoetertodoesseaprendizado.Piseiemummontedetijolos.–Éumtrabalhoduro.Ealgumasvezesescurocomoáguasuja.Elaencolheuosombros.–Umdiaasmulheresestudarãoeserãocapazesdeconstruir.–Duvido.Mulheresnãotêminteligênciaparaisso.Olhouparamime,quandopercebeuqueeuaestavaprovocando,riu.Rijuntamentecomela.Seubraço

eradelicadonomeu.Porummomentofiqueifeliz,orgulhosodepodermostrar-lheolocal,comosefosseminhaobra.– Estas são as pedras. Ali. Serão usadas nos primeiros andares. Estes são os alojamentos dos

marceneiros.Creioestaremcortandooscaixilhosdasmoldurasdasjanelasagora.Ládooutrolado,vocêveráWill,oferreiro,martelandoasdobradiças.–Evocêestáencarregadodetudoisso?Nãoestava,masporumsegundohesiteiemcontá-la.Riucomosemprefazia,maliciosamente.Então,

virou-se bem rapidamente. Dei uma olhadela atrás de mim, e um dos trabalhadores estava apoiado,observando-nos.Nãoestavabemcerto,mastiveasensaçãodetê-lovistoantes,vagandopeloladodefora do Gibson’s.Meu astral ensolarado tornou-se ácido. Disse: – Isto tudo realmente lhe interessa,Sylvia,ouestásomentedescobrindoomáximoquepodeparaCompton?Minha língua sempre foi minha pior inimiga. Afastou-se de mim, dando uma sacudida, misturando

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desgostoeira.–Seéistoquepensa,entãoadeus,Zac.Possodarumavoltaaquisozinha.Deixei-a ir por um momento, agachei-me em um abrigo e permaneci ali aquecendo minhas mãos,

meditando.Ovãodaportaatrásdemimescureceu.Virei.Otrabalhadorquereconheciestavaempéali.Deperto,

tinhaumpescoçogrosso,umassassinopustulento.Disse:–Menzagem,zenhor,deumcavalheiroquenósdoisconhecemos.Nãofariampoucodemim.–Comptonoenviou?Comoousa?–Zópara lembrá-lodezuadívida,zenhor.Epara lembrá-lodenãocontarparaForrest.Estámuito

envolvidoagora.Olheiparaotratante,incrédulo.–Ecomoomeztredisse,zenhor,olocaldaobraéperigoso.Pedrasezcorregamdosandaimes.Perigos

imprevistosecoizasdezagradáveiseztãoemtodososlugares.Tudopodeacontecer.Porummomento,então,sentiumapunhaladademedo,comonuncasentiraantes.Empurrei-odelado,

passandoporelediretoparaopóeobarulho,segurandoobraçodeumpedreiro.–Vocêviuumadama?Jovem,deazul,comumguarda-sol?Vocêviuaondeelafoi?Piscouparamim.–Euavi,zim.Nãodavaparanãovê-la.–Então,paraondeelafoi?Sacudiuacabeça.–Ozporõez,zenhor.Corriparalá.Osporõeseramcômodosconstruídosnonívelnaturaldaconstrução,masquandoaobra

estivesse terminada, ficariam no subsolo, com terra amontoada e nivelada sobre eles. Agora erammontõesperigososdepedras.Oqueelaestavafazendoali?Quando me aproximei, vi uma carruagem esperando, as janelas erguidas, o cocheiro fumando um

cachimbo e olhando acabrunhado o espaço vazio. Muitos ociosos vinham olhar a construção. Haviamuitas carruagens, liteiras por ali, mas a anormalidade obscura desta me preocupava. Corri até oprimeirocômodoquetinhapedrasamarelo-douradas.–Sylvia?Ondevocêestá?Podiaouvi-laconversando.Suavozerabaixaeinsistente.Abrimeucaminho,àsapalpadelas,pelos

montes irregulares até o outro porão que tinha seu telhado aberto para o céu.Apertando-me entre umcarrinhodemãoeumaparede,aproximei-me.Paraserhonesto,rastejei.Pois,agoranãoqueriaqueelameescutasse.Eladisse:–Nuncamaisqueria

vê-lo.–Seissofosseverdade,vocêteriadeixadoacidade.AvozeradeCompton.Fecheiminhamão,empunhando-acontraotrabalhodepedra,gelado.–Setivesseoutrolugarparair...– Você não me engana, Sylvie. Seguro você por um fio invisível, não é verdade? Chama-se “seu

passado”.Estavampertodemim,dooutroladodaparede.Mastinhademeesforçarparaouvi-losporcausado

barulhodaspedras sendocortadasedoestrondocontínuodas rodas.Andeiparamaispróximodeles.Agora,eleestavarindo.–Devolhedizerqueestáaparentementemuitobem.SeraamantedeForrestcombinacomvocê.–Nãosouamantedele!

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Visuasombraencolher-setranquilamente.–Nãosousóeuquepensaassim.HámuitasfofocasemAquaeSulis.Hámuitaslínguastratantes,de

senhorasricasquenãotêmnadamelhorparafazerequeadorammuitoumescândalo.Masvocêestámedizendoqueapenastrabalhaparaele?–Ele...Eucuidodacasadele.ComptonbufoueSylviafalourispidamente.–ComopossoexplicaroForrestparaalguémcomovocê!Cuidademimcomosuafilha.É tãoraro

encontrartamanhagentileza?–Sim.Ninguémfazalgosemquerernadaemtroca.Talvezqueiraumsacrifíciodruídicoesquisitopara

asfundaçõesdeseutemplocircular.Cuidado,Sylvia.Vocêeeusabemosquãoperigosaéaobsessão.Podiavê-losagora.Tinhasuamãosobreobraçodela.Segurava-abempróximodesi.Xingou-odeum

nomequemesurpreendiaoouvi-loproferidoporumagarota.Elaoempurrouparalonge.Andouatrásdela,entãosurgiportrásdaparede,imediatamente,emepusempédiantedele.Seeleficousurpreso,pensoquedisfarçoumuitobem.–MestreZac.Semprevalente.–Deixe-air–disse.–DifícilpensarqueSylvieprecisedevocêparadefendê-la.Euavi lutarnasarjetaedeixarolhos

roxosempelomenosdoishomens.Aquilomedeixouconfuso,emborafingissequenão.–Achomelhorquevocêadeixeir.Porummomento,permaneceuparado.Então,tirousuamãodobraçodelavagarosamente.–Vocêsabeoqueelafazia,logicamente!–Nãosei.–Importa?Achoquenão.Eraumagarotaqueseduziahomensjovensericosparaacasadejogo.Até

mesmoeufuiseduzido,quandoaindaeraingênuo.Trabalhavaparaumamulherquecuidavadolugar.Osoutrosserviçosqueofereciasópossomesmoimaginá-los.Ela deu-lhe um tapa, um bem duro, atípico para uma dama. Teria me derrubado, mas Compton

permaneceuempé;emboratenhaficadopálidocomoleite,suairaeracomoogeloemsuavoz.–PorDeus,Sylvia.Destruireivocêporisso.Entreolharam-se.Senti-mecomoseestivessememetendoemrixaantiga.Conheciam-sehámaistempo

doqueeuprovavelmenteimaginava.Saídeladoparadeixá-lopassar.–Vocêpartiráagora.Subiu.Atéentãoeunão tinhanotadoseucasacocomcolarinhodeveludopreto.Abengaladeprata

faziaopresentequemeupaimederaparecerumfósforo.Nãopartiu.Disse:–Vocêestáfazendooquelhepedi?Sentimeusdentesapertarem.OlheiparaSylvia.–Oquevocêfez?–falourispidamente.Algomesufocou.Talvezfossevergonha.Talvezapenasraivadequeelaestivesseempéaliouvindo

isso.EntãoComptondisse:–Nada.ConvencerForrestadesistir apenas.ElenuncadesistirádoCírculo. Jurou.Entãoémelhor

esquecerseuesquema–eudisse.Encolheuosombros,preguiçosamente.–Masvocêtemumadívidacomigo,Zac.Cemguinéus.Jáseesqueceu?–Vocêprometeu...Seeufizesseoquevocêmepediu.Eeuassimofiz.–Euprometi?Suaempáfiaeramaiornestedia,deummodoqueabrangiatodasassuasexpressões.

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–Masvocêpercebe,nãovoucontinuaralémdisso–disse-lhe.–Elenuncavaivendê-loavocê.–Então, terei demudarmeu esquema.Construirei umCírculo rival. E você roubará uma cópia do

projetodele.Olheiparaele.–Oquê?–Vocêtemduassemanas.Depoisdisso,apresentareiapromissóriaevocêapodreceránaprisão.Poderiater-lheditoquetinhamudadoasplantas,queintroduziradefeitossutisnoprojetooriginal,mas

enquantooolhava,percebiqueririademim.Oqueeraaquiloparaele?Oquesabiasobrenuancesdaharmonia?QueriaverForrestarruinadoenadamais.OlheiparaSylvia.Precisavadetempoparapensar.Talvez

pudesseusarasmudançasdasplantas.–Tudobem–disse baixinho. –Oquevocêquiser.Masnão apresente a dívida.Minhamãe... isso

acabariacomela.Respirouesorriu.–Tãobomencontrarumfilholeal.Sylvia me observava.Mal conseguia suportar seu olhar.Mas antes que pudesse dizer algo, outras

vozesnosincomodaram.Parameuhorror,RalphAlleynapareceudetrásdaparede,olhandoparanós.Porummomento,paralisamos.Então,virou-serapidamenteparaafastarForrestdali.Masjáeratarde

demais.Meumestre acompanhava um grupo de senhoras e senhores ao redor da pedreira. Todos nosentreolhamossurpresosporuminstante.Aquelesdeveriamserosconvidados.Nãotinhaideiadequemeram.Comptonserecobrouprimeiramente.Prostrou-se,elegantemente,entãotodosassimofizemos,comose

umgrupodeestátuastivesseestranhamentevoltadoàvida.OsolhosescurosdeForrestfixaram-senele,depoisemSylviaedepoisemmim.–LordeCompton.–MestreForrest.Comptonvoltou-sesuavementeparaogrupo.–Senhorasesenhores.Permita-meapresentá-losmestreStokeesenhorita...Sylvia.Fezumacareta,desculpando-secomicamente,econtinuou falando:–Receionunca terdescobertoo

sobrenomedela.Juroque,mesmocomobarulhodolocaldaobra,conseguiperceberosilêncioqueseseguiu.Eratão

afiadoquantofacas.E,emmeioaisso,Comptonprostrou-senovamenteesaiuandando.Asmulheresdogrupoestavamcomseusrostosvermelhos.Umaabanavaseulequeemseurosto.Alleynolhouparamim.Olheiparalongemuitoencabulado.Nadahaviasidodito,masnãoerapreciso.ComptontinhasidomuitoclaroquantoaotipodegarotaqueSylviaera.Essasfêmeasrespeitáveisegordassentiam-seultrajadassóporestaremnapresençadela.Nãopodianemolharparaela.MasForrestolhou.Deuumpassoparaforadogrupoe,paraminhasurpresa,tomouamãodelaeabeijousuavemente.–Sylviaéminhatutelada–disse.–Vouadotá-la.Olheiparaele,assimtambémofezAlleyn.Sylviapareciasurpreendida,massorriucomreverência.

Forrestvoltou-separaseusconvidados,gentilmentesoltandoosdedosdela.Seucasacomarromestavamanchadodelama,esuasbotas,muitosujas.Afaixaqueprendiaocabelodeleparatrásestavafrouxa.Pareciamaisumdosempreiteirosdoqueumgênioestudado.Desferiu-meumolharedisse:–Tomecontadela.Liderouogrupoparaooutrolado.–Agora,permitam-memostrar-lhesasplantascompletasparaoCírculodoRei.Estasserãocasasque

todosansiarãoadquirir.Avozdelesumiu,enquantoacompanhavaseusconvidadosemdireçãoaoescritório.

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RalphAlleynficoucomigoeSylvia.Disseamimasperamente:–Leve-aparacasa.Evocê,garota,peloamordeDeus,fiquelongedavista.Vocêquerdestruir-nos!Elavirou-se.Corriatrásdela.Andamosdemodotensoparaforadaobra.Descemosaalamedaatéa

cidade.Nomeiodocaminho,parou,pálida.Sabiaqueestavachorando.Silenciosamente,entreguei-lhemeulenço.Agarrou-oevirou-seemdireçãoaumjardimpequeno.Sentou-seemumbanco,esfregouseusolhos,tinhasuasmãosfechadas.–Voumatá-lo!–Nãosejaboba.–Nãovoudeixá-loarruinarForrest.Olhouparamim.–Evocê!Comseusim,senhor,porfavor,senhor.Sevocêdeixar,Comptonvaimontaremvocê,Zac.Olheiparalongedela.Então,disse:– Você percebeu que aquelas pessoas eram possíveis investidores, Zac. Não vão mais querer se

envolvercomoprojetoagora.Estavaescritonosrostosdeles.–Nãoprecisamefalar.Avozdelaeratensa.–Forrestnãovaimeresponsabilizar,maséminhaculpa.Devoirembora.–Sabiaqueelefalariaaquilo?Sobreadotá-la?–perguntei.Riu,raivosamente.–Claroquenão!Eleéummistérioparamim.Comoumhomempodesertãobrilhante,difícil,genioso

egentilaomesmotempo?Seráqueéumatendência,vocêacha,verofuturo?Veroqueninguémmaisconseguever,comoseráomundoseodeixaremconstruiroCírculo?Comopossodeixá-lomeadotar?!Oqueofilhodeleirádizer?!Ficamosemsilêncio,olhandoparaacidadeabaixodenós.Então,movimeubastão.–Posso ter parecido fraco lá atrás,mas lhe asseguro,Sylvia, nãoo sou.Foi umartifício queusei.

QueroderrubarComptonpessoalmente.Achoquevoutramarumplano.Olhouparacima,comáguaemseusolhosazuis.–Umplano?–Oplanomaisengenhosoecuidadosodequeeuforcapaz.Sorrilargamenteecontinueidizendo:–Afinaldecontas,nãoéparaissoquenósarquitetossomosorientados?

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Bladud

Escolhiocírculo.Pense nisso. Não há nenhuma outra forma tão pura. A partir do seu centro, cada ponto da

circunferênciaésempreigualmente.ÉaformadoSol.Cercaaquelesqueestãodentrodeleerejeitaosdefora.Éamágicamaisantigaqueexiste.E,mesmoassim,emtodaanatureza,nãohánadatãoexcelentecomoumcírculoperfeito.Demosestruturaàspedras.Nósasencontramosbemlonge,aoeste,pedrascurativas.Umdruida

poderoso daquele lugar transportou-as ao local para mim. Um homem que existe nas margens dalenda,umhomemcomnomedepássaro.Quandoestavapartindo,suasúltimaspalavrasdeclararam:–Espalhesuasasas,óRei!Esse conselho intrigou-me. Mas, primeiro, construímos. E como trabalhamos! Dia após dia, no

calor, no gelo, na chuva, edificamos as pedras, formando o Círculo que se estenderia para aeternidade.Nãoestavacontentecomumcírculorígido,nãoagora.Esseeraumedifício,umtemploeumlocal

de cura. Então, moldei as pedras juntamente com os outros e nós as entalhamos com símbolossecretos.Esteserammeurelógio.Marcariaosanos,osmeseseosdias;amudançadoSol.Nuncamaishaveriaumaconstruçãocomoesta.

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Sulis

OplanodeJosherasimples.Naquarta-feira,Sulistinhadeficarnotrabalhoatémaistarde.EraanoiteemqueoMuseudosBanhos

romanos ficavaabertoatéasnove.Esta seriaaprimeiravezemquecumpririaaquelehorárioemseuturno. De alguma maneira, Josh tinha conseguido um jeitinho de entrar na lista das pessoas quetrabalhariamnasaladesegurançanaquelamesmanoite.Aparentemente,ograndeTomteriadeirparaafestadesuafilhaemumbar,entãoJoshteriaasalade

segurançasóparasi.Ele lhecontou issonanoiteanterior,enquantoelaassistiaaumshow,naTV,deperguntasàsquaisSimonrespondiaemvozalta.Hannahpediaaseuanjinhoparacalar-se,enquantoogatopesadoevelhochamadoMousycavavacomsuaspatasseujoelho.MasaomesmotempoemqueSuliscontavaodinheirodocaixanaquarta-feiraàtarde,pensavanoque

valeriatudoaquilo.Certamente,ohomemquenãotinhanome,ohomemqueacaçavacomoumasombranuncaousariaentrarali.Aocontaro troco, tentou lembrar-sedo rostodeledenovo.Eraclaroemseus sonhos,masquando

acordavapareciaqueaimagemsedistorcia.Como saberiaque ela estaria lá até tão tardedanoite?Mas certamente, se ele a esperasse lá fora,

perceberiaquenãopartiraàscincohoras.Tremeu.Aoentregarotroco,olhouparaorelógioacimaeviuquejáeraquatroemeia.–Respire,Su–disseRuth.–Agora,enquantoestátranquilo.Asaladosfuncionárioseraumescritóriocinzaesombrio,nofundodeumcorredorcheiodecolunas.

Josheraoúnicolá,mexendoumacanecadecháefazendopalavrascruzadasemumjornal.Olhouparacima.–Acheiquevocênuncamaischegariaaqui!–Tivemosumgrupoescolarnaloja.Compraramporvoltadedezmilhõesdelápiseborrachas.Ligandoachaleira,encostou-seàmesa.–Josh,istonuncavaifuncionar.Aloja...–Vocênãoestánaloja.–Oquê?Preencheuarespostaesesentou,parecendosatisfeitoconsigomesmo.–Emnoitesmaislongas,oquadrodefuncionáriosdiminuiparaseisealistamuda.Jenestaránaloja.

Colocarãovocêláembaixo.–Nomuseu?Elebalançouacabeça.–Fazendoumaronda,ficandodeolhonascoisas.–Olhou-a.Logoestaráescuroequieto,semmuitas

pessoas.Seeleentrar,seráestanoite.Ficaramemsilêncio.Achaleiraferveu.Colocouáguaquente,enchendoacanecapesadaquetremiaem

suamão.Sentou-seaoladodele.–Nãosei...–Jáconversamossobreisso.–Empurrouumpapel,entregando-oaela.–Nãopodecontinuarfugindo.Temdeencará-loeverquemeleé.Seéeleohomem.Vocêdeveissoa

Caitlin.

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Essenomefezseucoraçãopular.–Oquenãoentendoéamaneiracomomeencontrouaqui.Fomos tãocautelosos.Nomenovo,pais

novos,tudo.Nãofazsentido.Joshficouemsilêncioporummomento.Entãodisse:–Nãosabemosseéele.Ohomemnaruaeaqueledoônibuspodemserpessoasdiferentes.Pessoas

comuns.Estácertadequeeraamesmapessoa?Olhou-o.–Sim.–Seforele,deveestartentandoamedrontá-la.Apolícia...–Nãoatétercerteza.Querocertificar-me,Josh.Tomouumgoledechá.Estavatremendo,enãoeradefrio.–Oquefaço?–Sópermaneçaemlocaisiluminados,ondeascâmerasestão.Seguireivocêdasaladecontrole.Eua

estareiobservandootempotodoe,tãologooaviste,balanceacabeçaeofilmarei.–Eseelemeavistarprimeiro?–Soareicadaalarmeque temos.Esãomuitos.Masnãovaiavistá-laprimeiro:estamospreparados

paraele.Olhou-aeperguntou:–Vocêserácapazdefazerisso?Elanãofaziaideia.Estavacerta.Queriaquetudoistoterminasse:asucessãodecasasdiferenteseas

mudançasdepessoasemseuconvívio.Queriaumlugarquepudessechamardelar.Umacidadequefosseperfeita.–Euconsigo!Eleaobservava,maselanãofaziaideianoqueeleestavapensando.Então,eladisse:–Esqueci-me

delhedizer.Ontem,SimoneeuentramosnosporõesembaixodoCírculo.Haviaumaportaemperrada,queescondiaalgobeminteressante.Amanhãvenhacomigoeajude-meaabri-la.–Ótimo.Nenhum deles mencionou que o mundo dela poderia ser abalado no dia seguinte. Para manter a

segurança,naquelemomento,elafalouqueSimonhaviafeitoalgumasperguntassobreele,masqueelanãohaviaconseguidorealmenterespondê-las.–PorquevocênãoestavanaUniversidade?Josh a olhou surpreso, depois irritado. Algumas vezes tinha um olhar distante e ácido, como se

pensassesermelhorqueosoutros.Agora,essaimpressãoestavaestampadaemseurosto.–Talvezeunãoqueiraestaremuma.–Talveznãosejatãoestúpidaassim.Eleencolheuosombros.–Entãonãomepergunte.–Porquenão?Contei-lheminhahistória.Nãodevesertãoruimquantoàminha.–Nãoé.Fizoprimeiroano,masentãoalarguei,ok?Osnegóciosdomeupaicaíramacentuadamente.

Elepartiu,eminhamãeprecisavadedinheiro.Éisso,sóisso.Nadademais.Voltareiacursá-la.Nãopretendopassarorestodaminhavidaemumempregosemsaídacomoeste.–Bem,agoraeusei.Ficouemsilêncio,preenchendoasletrasdaspalavrascruzadas,implacavelmente.Elaqueriachacoalhá-lo.Seráqueelenãofaziaideiadomedoqueelaestavasentindo,queperguntara

aquilosimplesmenteporquequeriapensaremalgodiferente?Escreveuaúltimapalavraelevantou-se.Foiapenasquandosaiupelaportaqueelanotouquãotriste

eleestava,mesmoemmeioàqueleseujeitoorgulhoso.Eledisseainda:–Lembre-se.Fiquenofocodas

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câmeras,principalmentepertodafontesagrada,pertodovapor.EntãoSulissaiudasala.Aportafechouvagarosamentesobresuasdobradiças.Deumaisumgolenocháescaldantesemnotarcomoqueimousualíngua.Apartesubterrâneadomuseuestavaestranhamentequente,comoseascamadasdaterraisolassemo

calordali.Sulisandouaoredorsilenciosamente,contenteporhaverpessoasali.Umturistaperguntousepodiatirarfotos,doisnorte-americanosperguntaramaelasobreamáscaradeGorgonesobreseurostoembigodadoolhandoparabaixo.Elesconversaram.–Eraparaestamáscaraestarnofrontãotriangulardotemplo–explicou.–Entendo,masondeexatamenteeraotemplo?Levou-ospelassalasatéosdegrausplanosdepedraqueconduziamàpartedecima,atéumaparede

branca.–Aqui.Esta era a entrada.Maso templo, se aindaexistir, estará sobumdosedifícios embaixoda

praça, ou da cafeteria do outro lado, ou das lojas ou até mesmo da Rua Stall. Acho que nunca foiescavado.–Vocêquerdizerqueeleaindaestáporaí?Espetacular.Quando eles partiram, permaneceu ainda por ummomento empé nos degraus romanos, imaginando

comoaspessoasemtogasseesfregavamnopassado,entravamesaíam,pessoasantigasedistantes,comdeuseseconversasdiferentes.Comoaquiloqueagoraestavanosubterrâneodeviasersobaluzdosol.ViroueencontrouoolharestampadonorostodeumGorgon.Olhou-acomreprovação.SeriaSulis?Sulisseriamasculinooufeminino?Todomundoachamavadedeusa,masaquelerostoera

masculino.TalvezfosseBladud,poisabaixohaviaumdosporcosesquisitosrepresentadospeloartista.Este era de madeira, tão polido quanto uma semente. Balançou a cabeça. Arte e arqueologia sãodesconcertantes.Sóserevelampormeiodefragmentos.AconversaalevouapensaremJosh,oqueafezolharparacima,paraacâmera,percebendoqueelea

estariaobservandopormeiodela.Fezumacareta.Acâmerasemoveuefezumestalosuaveemcimadeseusuportetriangular.Umahoradepois,jáestavaentediadaecansada.Jáhaviapatrulhadoomuseu,eninguémestavalá.O

lugartodoestavavazio.De que serve uma noite prolongada se ninguém aparece? Ela se apoiou na proteção de vidro dos

pedaços de estanho que lançavamumamaldição.Estas eram seu atrativo favorito lá embaixo. Ficavafascinadacomelas,mensagenseoraçõesqueforamcolocadasemummetalmacioejogadasnaáguaparaoespíritodaterma.Estavamescritasemlatim,masastraduçõesestavamàvistapertodelas.“ParaadeusaSulisMinerva...Entregoàsuadivindadeodinheiroqueperdi,eaquelequeoroubou

sejaforçadoaque......umamaldiçãosobreele,cristãooupagão,homemoumulher,garotoougarota,escravooulivre,

quetenharoubadodemim,Annianus,demanhã,seismoedasdepratadaminhabolsa...”Deve ter havido muito roubo naqueles tempos antigos. Algumas coisas não mudaram. Ela gostava

daquelesquetinhamsededesangue.“...EstessãoosnomesdaquelesquejuraramnafontedadeusaSulisnodia12deabril...Quemquerquetenhamentidoparavocê,pagueporistoàdeusaSuliscomseuprópriosangue...Aquiloaderaumaideia.Sentiu-setola,mastirouumacanetaeumpedaçodepapel,ondeescreveusua

própriamensagem.“ParaadeusaSulisMinerva.Háalguémmeseguindo.ElematouCaitlin.Queroqueopunapor

aquiloquefez.Queroqueacabecomestasombraemminhavida...”

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Tola.Masfezumabolacomopapel,caminhoupelomuseuatéa fontesagradaondeaságuascombolhas

evaporavamsuavemente.Então,viuacâmeraseguindo-a.NãoqueriaqueJoshvisseaquilo.Então,andouao redorda foz,umcorredorescuroeestreitopeloqualaáguacorriaeassobiavaaovirarvaporemmeioaumdrenoaté abanheira externa.Aorladaspedras eradeumamarelo-mostardapor causadoferrodaáguaelisocomomármoremolhado.Atirou aquelaminúscula bola de papel dentro da água, que a engoliu instantaneamente,movendo-a

rapidamenteparabaixodasuperfície,canalizando-aparaaescuridão.Tãologodesapareceu,sentiuumpavorterrível.Teveumdesejobobodepegá-ladevolta,poisohaviaamaldiçoa-doagora,eoqueissopoderiasignificar?Expirou.Porcimadorugidodovapordaágua,forçouumsorriso.Nãohavianenhumadeusanafonte.

Issoforahámuitotempoeomundohaviamudado.Assimmesmo,tirouumamoedadecincocentavoseatirou-anafontecomoumaoferenda,nãoporqueacreditavanaquilo,masporquehaviaoutrasmoedasali,cintilandocírculossobressalentesbemaofundodasuperfície.Movimento.Chamavasuaatenção,embaixodaágua,umpequenoreflexo.Alguémestavaempéatrásdela.Nãovirou.Nãopodiasemexer.Massabiaqueeleestavaali,atrás

dela,escurocomosuasombra,altoeescuronovaporquentedaterma.Disse“Sulis”oueraapenasozumbidodoar-condicionado,ouoassobiodaágua?–Quemévocê?Seusussurroseperdeuemmeioaovapor.–Vocêsabequemsou.Vocêprecisamelibertar,Sulis.Precisamedeixarvoarcomoumpássaro.Pedaçosdeum rosto.Umolho,umossomalar,uma testa franzidaquebradaemmeioàáguaque se

batia.Seráqueovia,oueraasimesmaquepercebiaali;ouseriaamáscaradoGorgonqueestavaatrásdelesdois?EondeestavaJosh?Disse:–Vocêamatou.–Minhamãonascostasdela.–Vocêaempurrou.–Tinhadeescapardela.–Vocêamatou.–Eualibertei.Onde estava Josh?Virou-se,mas o homem se afastava dela emmeio à escuridão da sala.Disse: –

Espere,nãoseise...évocê.Nãoparou,apenasdisse:–Siga-me,Sulis.Ovaporseabriueelejánãoestavamais.Gritou:–JOSH!Correuparaasalaondeosdegrausdotemploelevavam-seatéaparedequenãohaviasidoescavada.

Porummomentoelaoviu,ali,escalandoosdegrausqueconduziamaonada.Masaparedeestavavazia.Então,correupelasvitrines, altares,maquetesdosbanhos,diretoporumapartiçãoqueaconduziuatéJosh,cujasmãosaagarrarame,comvozaflita,ofegou:–Onde?Ondeestáele?–Estavalá.Látrás.–Elenãopodetersaído.Tranqueiaporta.Olhou-o fixamente, assustada,masaqueleeraumJoshdiferente.Tinhauma lanternagrandenamão.

Ligou-anapotênciamáxima.

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–Bem.Suavozeracalmaelhelançouumolharqueadeixouencabulada.Entãochamouemaltavoz:–Olá!

Seháalguémaqui,vocêpodesairagora,porfavor!Omuseuestáencerrandosuasatividades.Ascabeçasdosdeusesromanoseosrostosnaspedrasolharam-noimpacientemente.Nadasemoveu

nassalasescuras.–Eleconseguiupassarpornós–disseSulisrapidamente.–Semchance.–Mas...–Vamos,Sulis,vamosdarumaolhada.Manteveseusolhosnela,desafiando-a.–Vocênãoestácommedodeprocurar,está?–Não,masese...Joshsegurousuamão.Conduziu-aaoredordasmobíliasdosespaçossubterrâneose,mesmoestando

escuroesombrio,investigoucadapolegada,atémesmoofundocheiodevapordafozeanascente.Porfim, já estava quase arrastando-a. Soltou suamão e permaneceu empé, irritada e tentando entender asituação.–Nãoacreditaemmim,acredita?Nãoachaqueeleesteveaqui?Virou-seesuasombramostrava-senaparede.–Elenãoestava.Olugarestavavazio.Tenhotudonascâmeras.–Não,vocênãotem.Euestavanafoz.Nãohácâmeraquepossibiliteavocêenxergarlá.– Certo. Consegui filmar apenas uma parte de lá.Mas, Sulis, pude ver todo o restante. O hall de

entrada,asoutrassalas,osbanhos.Nãohavianinguémaquialémdevocê.Por ummomento, ela só olhou para ele. Depois, virou-se e correu, pelas salas vazias, subindo as

escadasparaobanhoexterno,cujaságuasmágicasproduziamumaneblinananoitecongelada.Aoredordela,acolunataestavaescura.Asfigurasdosimperadoresromanosadesprezavam.Ouviu

Joshviratrásdela.–Olhe,nãofiquechateada.–Nãoestouchateada.Elaestavatremendo.Correupelacalçadarachada,pelaportaqueopúbliconãoutilizava,atéofundo

docorredor,emumhalldeentradadeummármoreesplendoroso.UmamulherchamadaMarthaestavanarecepçãofazendoofechamento.Sulisdissejásemar:–Umhomementrouagoraànoite?Tarde?Oúltimoaentrar?Interrompidanametadedesuacontagemdasmoedas,amulherolhouparacima,preocupada.–Desculpe-me,masnão.Comoeleera?Sulisfranziuassobrancelhas.SabiaqueJoshestavaatrásdela,esperandoaresposta.Ouviualanterna,

namãodele,sendodesligada.–Alto.Escuro.Parecianãoadiantarnadaaquilotudo.–Magro.Comumrostomarcadoporvaríola.Marthacolocouasmoedasnasacola.Desligouacalculadora.–Não,ninguémcomessadescrição.Asúltimaspessoasqueentraramhojeforamumcasalmaisvelho

comosnetos, isso foiháumahora. Jádevem ter saído.Nenhumdesconhecidoescuroebonito entrouduranteanoite,Sulis.Teriapercebido!Sulis se virou. Empurrando, abriu caminho, passando por Josh, andou até a porta assinalada

“SEGURANÇA”e,umavezdentro,olhouparaumbandodetelasinconstantes.Cadaumaestavaacesafocandoemumcantosombriodomuseu.

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Joshentrouatrásdela.–Voulhemostrar–disseele.Levou cerca de meia hora. Correu a imagem em velocidade dobrada e triplicada. Viu visitantes

sumiremcomofantasmasnoenquadramentodascâmeras,lá,nãomaislá,filmadodemodorecortado.Viuassalasvazias,assombrasseajuntaremeosnúmerosdorelógiosaltarem.Viuasimesma,olhandoasvitrines,sentandonacadeira,emumcanto,nooutro,naporta,conversandosozinha.Viutudoisso,masnãoviuohomem.Finalmenteaúltimacâmera.–Istoéoqueeuestavavendoquandovocêestavanafoz.Joshmanteveseuolhardeliberadamentelongedodela.–Umânguloumpoucoestranho,masvocêpodeverporsimesma.Uma forma obscura estava empé diante da arcada de águas que escorriam.Apoiou-se e atirou um

objetopequenopelagrade.Assuasmãosestavamlimpas,umaideiafracaquediminuíaaomesmotempoemqueJoshdiminuíaavelocidadedoplayback.Viusuamangaeumladodeseurosto.Viuasimesmavirandoefalando.Teriadito:–Quemévocê?Masacâmeramostravaapenasescuridão,ummistérioincapazdeserresolvido.–Pareaí!Elepressionouopause.Juntosolharamparaaimagemgranulada.Sulisagachou-setãopertodatela

quesuarespiraçãoaembaçou.–Lá.Seusdedostocaramovidro.–Lá.Aquilonãoénada?Amangadeseucasaco?Bemnaponta?Olhou para cima. Josh estava sentado na mesa com o controle remoto solto em suas mãos. Disse

tranquilamente:–Encare,Sulis.Elenãoestavalá.Ninguémestavalá.Olhou-aduramente.–Nãoseisevocêestámeenganando,ousóasimesma.Masdireioquepensoagora.Achoque,desde

oinício,nuncahouvealguém.

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OCÍRCULO

AlgopoderepresentaraimagemdoSoltãobemquantoumaparedecircular,notopodacolina,repletadeouro?

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Zac

Naquelanoite,aceiafoiumacontecimentoquietoe triste.Forrestsentou-senacabeceiradamesaecomeurapidamente.Parecianuncanotarmuitobemoquecomia.ASra.Hallpoderiaterservidofrangocruecenourasujaqueteriacomidosemperceber,imaginandodepoisoqueofizeraficardoente.Sylviacutucousuacomidaolhando-meporentreoscastiçais.Tenteinãoolharparaela.–Vinho,Zac?Forrestsegurouagarrafa.Levanteimeucopoedeixeiqueelecolocasseumpouco.Então,disse:–Aquelaspessoas,senhor,na

obra...Encolheuosombros.–Tolos,medrosos,semvisão.Oquesepodefazer?Nãoconseguiremosdinheirodeles.Houvesilêncionovamente.Elesabia,nóssabíamos,quearelutânciadelescontaminaraosoutros.Derepente,bateuafacaeacolher,deuumsaltoesaiuandandopelasala,furioso.–Às vezes, acho que estou sozinho nestemundo, você sabia disso?Que sou o único homemdesta

cidadedesprezível capazdevero seu futuro?!Olheparaela. Infestadadepedintes e cachorros!Umacabananomonte,precipitando-separaabasedele,quandopoderiaserlarga,imponenteecheiadeluz.Abriuacortinarapidamente, revelandoasruas iluminadasagáseaneblinadefumaçaquecingiaa

graciosapraça.–Quemaravilhosoestelugarjáfoi.Cheiodepoderedemágica!Epoderásê-lodenovo.Ruaslargas

e limpas, ar fresco, salas altas e generosas, e água corrente. Como não podemos fazer nada contra apobreza?Contraadoença!–Vocêrealmenteacreditaquehouveumtemplomajestosoporaqui?–Sylviaperguntouemvozbaixa.–Sim,creio.Virou-se.Seurostoseiluminou.–Desdequeoshomensacharamaságuaspelaprimeiravez,fizeramdesteumlocalsagrado.Acredito

teremexistidodoistemplos,Sylvia,umparaoSoleoutroparaaLua.Estruturasantigas.Devemestarnapartemaisbaixadacidade,pertodosbanhos.Olhoudevoltapelajanela,continuandoadizerque,quandoestavatrabalhandonoHospitalMineral,

acharamuitas coisas no chão que provaram haver construtores por aqui. Tijolos quebrados e pedrasesculpidas.–Achamosfragmentosdemetaisretorcidosestranhamente.Atémesmotelhas.Devoltaàmesa,apóssesentareseinclinarnadireçãodela,continuoucontandosobreasdescobertas.–Queria projetar uma construção circular naquele local,mas o proprietário daquela terra opôs-se.

Parecequepasseiminhavidainteiratentandocriarisso.Mas,pelomenosagora,seráconstruída,mesmoqueeumedestruaporcausadisso.–Vocênãoserádestruído.Entregou-lheataçadevinho.Porummomento,olhouparaela,depoisparamim.–Não.Creioqueeunãooserei.Poisofuturoprecisademim.Deuumgolenovinhoeumpoucodocalordesapareceudele.Aluzsumiudeseusolhos.Setodoomundoodesapontava,pensei,oqueeledeviapensardemim?

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Dirigi-meaele:–Senhor,possolheperguntaralgo?–Pergunte,Zac.–Ésó...sobreaplantadoCírculo.Vocêdissequeaáreacentralserácalçada?–Sime...–Entãonãohaveránadalá.Mesmoembaixodaterra?Olhouparamim.Seusolhoseramfirmeseescuroscomopedra.–Nada,Zac.Nadaimportante.Mentiu.Mentiunaminhacara.Naqueleinstante,nãomaismepreo-

cupavacomseusprojetos,comsuaconstruçãograndiosa.Tudoquesabiaeraqueverdadeiramentenãoconfiava em mim. Pensava em mim como uma criança mimada, um vagabundo superficial. Esteconhecimentome atingiou comouma seta.Dei um jeito de esboçar um sorriso.Enquanto ele eSylviaajudavamatiraramesa,saíemesenteiemumbanconojardim.Asestrelasestavambrilhandonotopodascolinas.AquaeSulisnãoeramaisdoqueumadesordemnebulosaassentadaemumpedaçodeterra,comoseacidadeantiga,dealgumamaneira,repousasseemmeioaonevoeiro.Cruzeiosbraçosparameprotegerdofrio,recostei-me.Meufôlegoestavabloqueadopelaumidade.DeveriahaveralgosecretonocoraçãodoCírculo.Algoaver comogrupodeOroborosque frequentava.Senãomecontasse sobreisso, investigariaatésaber.Poiseusalvariaaele,amimmesmoeaSylvia,mesmoquenenhumdelesmerecesse.Sorrifriamente.Estariamemdívidacomigo.Elafalou:–Todopomposodenovo,mestrePeacock.Abordou-metãosilenciosamentequepulei,irritado.–Vocêprecisafazerisso!Elanãoestavasorrindo,sentou-senobancopertodemimcomseuspéslevantadosporcausadalama.– Desculpe-me, Zac. Mas às vezes você é tão cheio de si com seus planos e segredos. Todo

ensimesmadoepretensioso.–Nãosoupretensioso.Nãosounadanestacidade,Sylvia.MasnãosereipisoteadoporCompton.–Então,vocêtemumplano?–Jáoiniciei.Estaera,tenhodeconfessar,apartequetemia.Masrespireifundoecontei-lheoquehaviafeito.–Nestatarde,envieiumacartaaCompton.Estavamalredigidaesoletrada.Tivemuitadificuldadeem

criá-la.Eraumacartasua.Pulou,comousemlama.–Não!Vocênãotinhaodireito!Nãoacreditoquevocêteveoatrevimentode…Levantei-metambém.–VocêdissequefariadetudoporForrest.Gostariadesaberseissoéverdade.Olhou-me.Afúriadelamefezficargelado.Haviaumapequenacasadeverãonofundodojardim,um

localagradávelnessaépoca,masúmidoagoraecheiodeinsetosrastejantes.Agarreiseubraçoealeveiatélá,poisestavacommedodeForrestescutar-nosdacasa.Umavezdentrodacasa,virou-separamim.–Diga-meoqueescreveu.Ergui-me.Nãoseriaenvergonhadodiantedela,mesmosentindo-meculpado.–Eu...você...dissealordeComptonqueeuagicomoelemandou.Deveencontrá-laamanhãporvolta

dasoitonosbanhos.VocêlhelevaráasplantasdoCírculo...–Respireicomdificuldade,mascontinueiinabalável.–Emtroca,eledevelheentregaranotapromissóriadecemguinéus.Estareiláobservandovocê.Naverdade,ireicomvocê.Masmecertificareidequenãoirámever.–Verasuavergonha,vocêquerdizer.

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Saiudepertodemimepermaneceuempéemmeioaosarbustos.–Comovocêpôdefazerisso,Zac,comseumestre.Vocêconsegueodiá-lotantoassim?–Nãooodeio.NãoqueriaconversarsobreForrest.–Façoissopormimmesmo.Deixe-metranquilizá-la,Sylvia,jáquevocêpensaopiorsobremim.O

projeto que vendo a Compton não é o do Círculo de Forrest. Será um falsificado. Será impossívelconstruí-lo.Olhouparamim.Calmamente,expliquei-lhesobreacópiadoCírculoemmeumomentoderaiva,as

sutisalteraçõeseosdefeitos.Ouviutudooquelhecontava.Seudedoempurravaasfolhasmortasdeumpilarcobertoporumavinhanogazebo.Quandoterminei,permaneceuemsilêncio,olhandoparamimporumbomtempo.Tremicomaumidade.Meuprópriosuoreragelado.–Porquevocêfezisso?–sussurrou.–Issonãoimporta.Foiumaideiaselvagem.Algumasvezes,achoqueomundotodoestácontramim.

TalveztenhafeitoissoporquequisesseacabarcomForrest.Introduzirumamanchaemseuparaíso.Sercomo Lúcifer para com seu Deus. Não sei. Mas, Sylvia, escute-me. Você TEM de pegar a nota deCompton. Tenha certeza de que é aquela que eu mesmo escrevi e que tenha minha assinatura. Docontrário,estareiarruinado.–Masequandoeledescobrir?–Elaolhavanadireçãodacasa.–NãopoderáfazernadasemoE.D.V.Eeunãolhedevereimaisnenhumcentavo.– Não falo de Compton, seu tolo! – Seu rosto estava pálido. – Falo de Forrest. E quando ele

descobrir?Encolhiosombros.–Se temalgum juízo, vocêmeagradecerá.Porque até láoCírculo será construído, as casas serão

vendidaseoqueCompton teránofinaldascontas?Desenhosdefeituososdeumprojetoperfeitamentefeitoporoutrapessoa.Não,Forrestnãomeculparáporisso.Nojardimsilencioso,asfolhasgotejavam.Umagaroa,comochuvafina,deveriaestarcaindo,poisa

lamparinadajaneladacasaestavacheiadeflocoseembaçada.Arrepiei.–Então,Sylvia,vocêirá?Porfavor,digaquesim.Éaminhaúnicachance.Enrolou seu xale bem apertado. Por um momento achei que recusaria, então se virou e tirou os

espinhos de sua saia.Quando olhou para cima, seu rosto tinha aquele olhar atrevido, afiado, que nosúltimosdiasficaraapagado.Masagoravoltara.Afastou-sedoexameminuciosodemeusolhos.–Lógicoqueofarei–disse.

***Nodiaseguinte,meunervosismofoiconstante.Cometierros,perdicoisas,sonheiacordadonaquele

escritóriominúsculoeabafado.Doladodefora,acacofoniadaconstruçãocontinuouaomeuredor.Afachada do primeiro arco do Círculo estava erguida quase até o segundo andar,mas as entradas dasportasaindaeramretângulosbrutosevazios...Gralhasvoavamparadentroeparaforapelosburacosdasfuturasjanelas.NãoseiseForrestsuspeitoudemim,masnãohavianemsinaldasplantas.Provavelmenteastrancara

em um cofre da casa. Só as folhas de trabalho estavam ali, a instrução diária para os pedreiros. E,embaixo,seulivroderascunho.Sentei-me,abriacapadecourodesgastadapelouso.Asmétopes.Aliestavamtodosossímbolosmisteriososeaspinturas.Seriamesculpidasnaspedrasqueligariama

construção ao seu término. Que segredo possuíam aqueles símbolos? Um telescópio. Duas mãoscompartilhando um aro. Uma árvore com o que deveria ser uma pedra erguida atrás dela. Será que

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contavamumahistória?Significavamalgumacoisa?Seriaumamensagemdomestreparaofuturo,ouumazombariadele?Olheinovamenteparaamétopededuasmãos.Euahaviadesenhadocomumanelquepareciaseruma

nuvem, ou flores. Havia um par? Ou seriam as mãos de duas pessoas diferentes, encontrando-se emoposição,cadaumasegurandometadedocírculo?Amãodeleeaminha?MinhaedeSylvia?Vireiaspáginas,tentandodecifrarocarvalho,ascobrasaoredordaespada,oespelhoeumafoice.

Em um canto, um crânio de um cavalo com flores ou sinos pendurados. Todo o mistério de suamentalidadeestavaali.Umsegredoque,sepudessedecifrar,seria...–Meztre,precizamosdevocê.Otrabalhadorolhoucuriosamenteparaolivro.Fechei-ocomumestalo.–Oquê?–Nacâmara!–Quecâmara?–Gireiemminhacadeiraedeixeiminha irritação transparecer.–Doquevocêestá

falando,homem?Esseshomensnemmesmonotavamirritação.Disse:–OquartozecretodemeztreForrezt.–Olhou-mecomumacenoastutodecabeça.–Vocêsabequalé.Nãotinhaideia.Masrespondivagarosamente:–Ah,sim.Aquele...Sim,atrásdosporões.Aquelequetemminhaequipetrabalhando,secretamente.–

Sentei-me.–Certamente,oqueaconteceu?–Algoeztranho,zenhor.Nozfundamentoz.Zomenteomeztresubiuatéamina,então...Deiumpulo.Meucoraçãoestavaacelerado.–Mostre-me.OnomedomestredeobraseraFisher.FrequentementeviaForrestconversandocomele.Umhomem

confiável, evidentemente. Levou-me pela construção até os porões semiacabados. Apressei-me atrásdele,tropeçando,tentandomanterminhasbotinaslongedoestrumeeaparentandosaberexatamenteaondeíamos.Contudo,minhaimaginaçãocorriaàminhafrente.SeriaistoqueForrestescondiademim?Acâmara.Subiempedrasnãocortadas.Guindastesdemadeirabalançavamblocosdepedraspolidasobreminha

cabeça.Levou-meatéumporãoemqueforapostoumtelhado.Ochãoeradepópisado,easabóbadas,frescas e douradas. No final dele, havia um grande monte de madeiras, tábuas de andaime, talvez,empilhadasatéotelhado,longedaaçãodotempo.Parei,maseleolhouparatrásemmeioàescuridão.–Maizalém,zenhor.Esteszãoapenasparaesconderotrabalho.Esperavanãolhetermostradominhaignorância.Balanceiacabeçasoberbamenteeabripassagempor

ele.Atrásdasmadeiras, naparedede tijolos, haviaumaarcada semiconstruída, as pedrasde esquinaapoiadas no chão como peças de um quebra-cabeça infantil pronto para sermontado. Além do arco,haviaumapassagem.Descemosporelaatéacâmara.–Hámuitaáguazubindo.Fisher acenou para o local onde havia uma pá no chão. Atravessei. Britas e pedaços de tijolos

estalavamsobmeuspés.Umacâmaracircular.Bem,issojáeraesperado.Otelhadotinhaformadecúpula,comoumacolmeia.

Paredes curvas douradas chegavam ao solo desnudo. No ápice do domo, havia escuridão. Senti umasequidão.Umaentradadear,emalgumlugar.Ohomemmeobservavaenquantoandávamosemdireçãoaocentro.Meucoraçãobatiatãoaltoqueestavacertoqueeleoescutaria.EsteeraocentrodoCírculo.Masqualeraopropósitodele?–Vocêvê?–apontouohomem.

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–Vejo.Águabrotavadochão.Estavasendocolhidaporumpequenopoço.Olheiparacima.–Vocêestácertodequenãoestávazandodotelhado?Riu,comumsomcurtoeáspero.–Eztáquente,zenhor.Alcancei-aemergulheimeudedonela.Quente.Pequenasbolhaslevantavam-separafazercarinhona

minhapele.Sentiumvaporlevenoar.–Outrafonte?–Nãovejocomo.Tãoaprofundadonovale.Não fazia ideia se aquilo importava. Certamente havia outra terma quente embaixo. Endireitei-me,

pensando se Forrest sabia que ela estaria ali, se adivinhava por meio de um tipo de alquimia.Mascertamenteescolheraolocalporseraltoeporseuproprietárioconsentircomaconstrução.–Oquefaremos,meztre?MeztreForreztnãofalounadazobreiztoetemozdeterminarhoje.Balanceiacabeça.–Asinstruçõesdeleerampara...?–Limparasalaetrancá-la.–Seurostoásperotornou-seesperto.–Paraamanhãànoite.Olheiparaeleeindaguei:–Oquevocêsabesobreisso?MestreForrestnãoquerqueseunegócioparticularsejaalvodefofocas

nacidade.–Nãoozerá.Zózeiqueeztarãoaquiamanhãànoite.Eagora,háumpoçodeágua.DevemserosOroboros.Estavaardendoparasabermais,porémprecisavadisfarçarminhaignorância,

comosejásoubessedetudo.Entãodisse:–Sim,sugiroquetragaoshomenseconstruamumpequenoreservatórioparasegurarainfiltração.Nãopareceserumavazãogrande.UmapiscinacircularnocentronãoestragaráacerimôniadeMestreForrest.Olhouparamim.Porummomento,ambosficamosemsilêncionaescuridão.Entãomedisse:–Deixe

comigo,zenhor.Virei-meesai,tentandoveromáximoqueconseguiadasala,comumsóolhar.Masnãoretivemuita

coisaemminhamente.Pareinoporão.–Maisumacoisa,Fisher.Nãovoucontaraomestrequevocêmetrouxeaqui.Elepodeficarirritado

comvocêporcausadisso.Diga-lhequeapiscinafoiideiasuaseeleperguntar.Omestredeobrassorriulargamente.Nãoeratolo,estavacertodequesuspeitavademimagora.Mas

apenastocousuatestaedisse:–Zenhor.Não consegui ficar parado.Pegueimeu chapéu,minhabengala e desci a colina, rapidamente, pelas

passagens estreitas da cidade, pensando e planejando. Fui a uma cafeteria na Rua Quiet e pedi umchocolate.Mexi-oaté ficargelado,pensandonoque faria.Observaria atéForrestdeixar a casa.Euoseguiria até o local da construção eme esconderia atrás da pilha demadeira.Veria os segredos dosOroboros.Talvez,entenderia,afinaldecontas,opropósitodoCírculodepedra.

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Bladud

Oqueháalémdaperfeição?Ondepodemosirdepoisdealcançá-la?Construíminhacidade,eelameprotegeu.Océueaspedrastornaram-seminhaobsessão.Easpalavrasquetinhaouvidoprofundamentenosilênciodeminhamentecomeçaramaecoarali

comosenãopudessemescapar.–Abraassuasasas,óRei.Ouvi-asouimaginei-as.Comeceiaponderareafazerexperimentos.Tentei váriasmadeiras,a fimdeencontraramais levee flexível.Transformei-as emasas.Então

subiaosmontesmaisaltosechameiospássarosparameofereceremajuda.Pelamagia,trouxe-osemminhasmãos,aáguia,opardal,ocorvoealgunsalcedinídeos.Cadaumdelesmedeuumresgateempenas.Uni-asemplumagens,colei-ascompicheeresina.Costurei-ascomagulhasdeossos.Tinhasidoreiporvinteanosenãohaviamaistrabalhoparafazeraqui.Masocéuéilimitado,eeu

melançarianeleevoaria.Detodososhomens,seriaoprimeiroaplanarnoquequerqueexistaalémdoalém.Ninguémacreditavaemmim.Chamavam-medetoloiludido.Zombavamdemeutrabalho.Algumas

vezes,enquantoestavadeitadoemminhacama,nasnoitesescuras,semasestrelaseaLua,sentiaofriodopavoremmimesabiaqueestavalouco.Umdia, fuiàpiscinaquenteeolhei suaprofundeza.Sua faceolhouparamimedisse:–Nãohá

outrocaminhoparadescer,senhorrei,anãoserquevocêvoe.

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Sulis

Oquartoestavaescuro.Gostavadeleassim.Hannahbateuàportanovamente,pelaquartavez.–Temcertezadequevocênãoquertomarcafédamanhã?–Sim.–Vocêprecisacomeralgumacoisa,Sulis.Nãorespondeu.–Gostariaquevocêseabrissecomigo,querida.Suavozpodiaserouvidapertodaporta.–Possosemdúvidaficarse...–Não,estoubem.Podeir.Hesitação.Podiasenti-laatravésdospainéisbrancosdaparede.Cochichosnotelefone.Depoisdeuns

poucosminutos,passos.Aportadafrenteabrindoefechando.Sulisestavadeitadacomasroupasdecamasobresuacabeça.Estavaescuroequenteali,semninguém

para perturbá-la. Percebia o silêncio da casa, o zunido da geladeira, o clique do aquecedor. Pombosarrulhavamdo ladode forada janela.Umaperuadesorveteiro,emalgum lugar,ao longe,emitiaumamelodia natalina... Fazia Sulis recordar de quando era pequenina, faltando à escola por causa de umresfriadooucoisaparecida.Suamãetraziaalgonabandejaedizia:–Comovocêestásesentindo?Essepensamentofezcomquesevirasse,puxasseoslençóis,descobrindoseurosto.Respiroufundo.Otetosobreelaerabranco.AsluzesrefletidaspeloscarrosnoCírculopassavamvagarosamenteao

redordoseuquarto.OdesprezodeJoshvoltouàsuamente,masvinhaseenfraquecendoàmedidaqueosdiaspassavam.Achoquenuncahouvealguém.Seráqueeleestavacerto?Nocomeço,ficoufuriosacomele,vermelhaderaiva.Mas,nosúltimosdias,nãoconseguiapararde

pensar,derepassaracenaváriasvezesemsuamemória.Ohomemnobanco,ohomemnacafeteria,ohomemnoônibus.Lembravadecadaumdeles,obscuramente,esóumavagalembrançadaformadeles,dosseuscasacosescuros,dojornal,eraoquerestava.Masoúltimo,nomuseu.Esteelatinhacertezadetê-lovistolá,certezadeterfaladocomele.Balançouseuspésparaforadacama,colocouumroupãoesaiu.Nasaladeestar,encontrouoslivrosdeSimonespalhados.Olhou-ospreguiçosamente,entãofoiàcozinhaecolocouumpoucodecerealnatigela.OúnicoleitequehaviaeraodesojadeHannah.Odiava-o,masderramouumpoucoebuscouumacolher.Então,sentou-senosofá.Hannahpartiraapressadamente,poisospapéiseamaquiagemdasuabolsaficaramemcadapontopor

qualpassara.Comosehouvesseperdidoaschavesetivessecorridoafimdeencontrá-las.EraocasalmaismalucocomquemSulisjáhaviamorado.Aocomerocereal,olhouocantodoenvelopeprimeiro.Estavadeponta-cabeçanochão.Emetadedeleembaixodosofá.Tirou-ointeiramentedesobosofácomopé.Descobriuqualeraoendereçodoremetente,eonome,enquantocomia.SenhoritaAlisonWest,ServiçoSocialdeSheffield.Deliberadamente,terminoudecomerocerealeatémesmolambeuacolherantesdecolocaratigelade

lado.Prostou-seepegouoenvelope.Segurou-oporummomento.Então, levou-opara seuquarto,abriua janela,paraqueoar frescoda

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manhãentrasse,sentou-senamesaeescorregouseusdedossobreapontaaindacolada.Opapelrasgou.Dentrodoenvelopehaviaumacartaeumformulário.CONFIDENCIAL.AvaliaçãoePerfilPsicológico.Por favor, preencha qualquer seção que você achar relevante. Todas as informações são

estritamenteconfidenciais.Assunto...eentãoseunome.Pressionouseuslábiosumcontraooutro.Lógicoquesabiaqueelestinhamdepreenchercoisascomo

essas.Algunsdosseuspaisadotivos tinhammostradoparaela, lamentandopelo trabalhodepreenchê-los.

Esse procedimento era igual ao de outros anteriores: comportamento, interesses, habilidades sociais...eraprecisoticartodososquadrinhos.A carta era recente. Enquanto a abria e lia, seus dedos balançaram e seu sentimento vago de

condenaçãotransformou-seemraiva.AsanotaçõesdeHannaheramefusivaseagitadas.QueridaAlison,Sóparafornecerumrelatóriosobreoandamento,vocêsabe,dosproblemasquediscutimosontemà

noiteaotelefone.Nãoseibemoqueaconteceu,masachoqueonamorado,Josh,podeterdescobertosobreopassadodeSu.Estáagindodemodomuitoestranhoconosco.Maistemperamentaldoqueonormal.Nãorespondeàsnossasperguntas.Ànoite, levantaevaià janela, talvezumasseteouoitovezes, verificando para a rua. Tudo aquilo que você havia nos pedido para observar.Não faz nemideia de que esteja fazendo isso, mas disse coisas que deixaram claro que contou a Josh sobreSheffield.Achoquetalvezestasejaarazãodeelerejeitá-la.Certamentesesepararam,nãotemidotrabalharemalconseguiucomernosúltimostrêsdias.Paraserhonesta,estouumpoucosemchão.Sulisolhavaparaopapelincredulamente.Qualabsurdoeladissera?Nuncaficaratemperamental!Um

pavoratomou,comoseelanãomaisconhecesseasimesma.ComoseaSulisqueelaeraeaqueviuhojefossempessoastotalmentediferentes.Umabatidana janela.Olhouparacima, seucoraçãobatia rapidamente,maseraapenasumagralha,

pulandona soleirada janela.Fezumgestocomamãoeagralhavoou,deixandoumapenaminúsculapairandonovento.Éumapenaaquestãodeseuemprego.Comeceiapensarqueaestavaajudando.Nãoseiseelesvão

manteravagaabertaparaela.Dissequeestavagripada.Naverdade,émaisumcolapsonervoso.Malconsegue sair da cama.Estamos preocupados.Quero dizer, sei que, quando era adolescente, haviaessaquestãodonamoradoecoisae tal,masahistóriadeSulisécomplicada.Outracoisa,quandoveio aqui pela primeira vez, adorou a cidade, mas parece que sua vontade de não sair mais sóaumenta.Pareceumpoucocomoquevocêmedissequeaconteceudasoutrasvezes,quandoafirmoutervistooassaltante.Eestamoscertosdequeninguémsabequemelaéaqui.Sulisjogouacartaparalonge.Nãoqueriamaislê-la.Afirmoutervistooassaltante!Issosignificava

queosassistentessociaiseapolícianuncaacreditaramnelatambém.Seráqueissosignificavaqueaficavamobservando,analisando-a,ticandoquadrinhosaseurespeitoe

nuncaacreditavamnumasópalavraqueproferia?Foiatéajanelaeolhouparafora.Quandofoiquetudocomeçouadarerrado,suacidadeperfeita?Quandoasimperfeiçõescomeçarama

aparecer?Rachadurasnafachada,comosehouvesseerrosescondidos,quaseimperceptíveis.Proporçõeserradas,comoseomundonãofosseconstruídodireito?Voltouapegaracarta.Leuorestodelarapidamente.

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... Eu realmente tenho pena dela, porque isso tudo está dentro dela e não permite que saia.Decidimosqueprecisamos terumapalavrinhacomogaroto,mas,paraserhonesta,voudeixarqueSimonfaçaamaiorparte.Eleémuitomelhordoqueeunessetipodeassunto.Ligueparamim,Alison,eassimpoderemosconversarmelhor.Nomeucelular,comodecostume.Saudações,

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HannahObs:Opsiquiatraestavacertosobreaquestãodaarquitetura.Dobrou a carta e colocou-a em sua perna. Sentiu que tudo aquilo debaixo dela, e que lhe dava

segurança,desúbito,desmoronara.SimonconversandocomJosh?Pelassuascostas?Equecoisaéessadearquitetura,pelofatodeAquaeSulistersidosuaescolhaedeninguémmais?Ouseráqueelahaviaseentregadomuitofacilmente?Levouacartaatéajanela,rasgou-aemmaisdecemminúsculospedaçoseosespalhounovento.Então

sevestiu, fezsuacama,pegousuabolsaesaiu.Estavacommedo?Vamosversevão ficarcommedoquando voltarem e perceberem que ela partira. Andou pelo Círculo, passou os olhos pelas lojas epasseou ao redor doCrescenteReal. Teimosamente, parou olhando para trás.Os turistas estavam emtodososlugares.PessoasfotografavamacurvadoarcodoCrescente,seuformatodeluacoroandootopodacolina.Comproualgunssanduíchesedeitoudebruçosnagramadoparque,observando-o.Forrestcomeçaraseusonho,umtemploparaoSol,eoutro,seufilhoouseuaprendiz,oterminara.O

Sol e aLua, empedras.Sonhos revelavam-senapaisagem, sonhos se tornavamconcretos, fazendo aspessoasviveremesemoveremdemaneirascomooarquitetonuncaimaginara.Derepente,sabiaqueumdiafariaisso.Projetariaconstruções.Essepensamentoaencheudeprazer.

Rolounagramaeriuparaocéuazul.Porquenuncasouberadissoantes?Oconhecimentosempreesteveali,sóesperando.Sempreesteve

dentrodela,desdeasbrincadeirascomtorresdeblocosazuisevermelhosqueelaeCaitlinlevantavamnamesaenochãodasaladeaula.Oprazerdaquilo,desonharsobrecomooseufuturoseria,trouxeraaelanovoânimo.Eracomouma

revelaçãodentrodela.Deitou-sesobosolatardeinteira,ignorandoosturistas,ospássarosealgumascriançasquejogavamfutebol;ficoualiatéocéuescurecereperceberqueestavamortadefome.Rolandosobreagrama,olhouao seu redor.Ogramado largoestavaquasedesnudo.Ninguémsentou-seao seulado,nemolhouparaela.Estavasozinha.Pegousuabolsa,fezumabuscaminuciosaeachouseucelular.HaviaumamensagemdeHannah.Su,ondevocêestá?Devia ser por volta das seis.Ao oeste, o sol espalhava sua luz para longe.Um azulmanchado de

laranja.Tremeu,sentiuumsuavecalafrioeoentusiasmodatardeapagara-secomoumavelaseextingue,comoumapartiturademúsica,emsuacabeça,parandoaosinaldepausa.Foiparacasa.EnquantoseaproximavadoCírculo,viualguémsentadonobancodogramado,inclinando-separatrás

aobservarsuaporta.Parouatordoadadesusto.Umcasacoescuro.Afigurasombriaquaseseperdianaescuridãodaruaedasárvoressalientes.Ia virar-se para sair dali, mas parou. Onde mais poderia ir? Não suportaria mais isso. Andou

firmementeaoredordaruacircularnadireçãodele.Ao se aproximar, ele deu conta dela. Virou a cabeça e se levantou. Seu coração batia fortemente.

Andoudiretoparaeleeentreolharam-seporummomento.AtéqueJoshdisse:–Euaestavaesperando.Ficousemar.Conseguiuapenasacenarcomacabeça.–Elesconversaramcomvocê?–perguntouaJosh.–Quem?–HannaheSimon.–Não.Olhava para a grama.Mas acreditou nele, pois levantou sua cabeça e disse: –Sulis, sobre a outra

noite...–Deixaparalá,esqueça.Conversaremossobreelamaistarde.

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Encolheuosombros.–Entreparaumaxícaradechá.Vaidarumsustoneles.Realmentedera.ElaeJosh fingiram,muitopolidamente,quenadaacontecera,eaconfusão,queem

vãoHannahtentavaesconder,eraengraçadadesever.Simon sorriu largamente e não disse nada. Sulis fez o melhor que podia para se comportar

normalmente,porém,mais tarde, ao tirarospratosdamesa,questionava-se sobreoque serianormal.Poissempreachouquejamaisagiradeformaestranha.Hannahlevouabandeja.–Você...pegou...uhm...Acarta.Sulislevantouumasobrancelha.–Oquê?–Nada.ÉbomverJoshaquidenovo.Uhm,Sulis,possolheperguntarumacoisa?Sorriuradiantemente.–Temosqueir.Simonpegouaschavesdosporões.Finalmentevamosexplorarasalatrancada.Hannahmexiaemumamechadeseucabelocomseudedo.–Oh.Issomelembrou,Sulis,queligueiparavocêoutrodiadotelefonedoescritório,maspareceque

haviaumbloqueiodesegurançanele.Esqueci-medelhedizer.Esperoquenãoatenhapreocupado!ElaolhoufixamenteparaHannah.Lembrou-sedeseucelularvibrandonoparapeitodotelhado.–Quando?–Outrodia.Nãoseiaocerto.Vocêestábem?–Sim.Estavaentorpecida.Joshestavacerto.Ohomemnaqueleônibusdeturistanãoeraninguém.Àporta,avozdeHannahprendeusuaatenção.–Esperoquevocêsdescubramoquehánaquelasalasecreta–dissebaixinho.Sulisparou.Olhouparatrás,suamãeadotivaestavaempé,encostadanapia.Ocontornodeseucorpo

era iluminado pela luz da janela. O cabelo claro era como uma nuvem crespa ao redor de seu rostopequeno.Noandardebaixo,Simontinhaumalanternanamãoeusavacasacoebotasvelhas.–Vaiestarbemsujolá–disse.Joshencolheuosombros.–Possocarregaralgumacoisa?–Sim.Aluzsobressalente,porfavor.Simoncarregavaumacâmeracomumtripé.Suspendeu-aaoatravessarohall,desceuasescadasesaiu

pelaportadafrente.Sulisoseguiapensativamente.OlhouparacimaeviuHannahespiandopelacortina.Pelomenosacartanuncaseráenviada.Hannahdevesuspeitardequeelaatenhapegado.Masnãoligava.Combastantedificuldade,conseguiramlevaracâmera,descendo-apelosdegrausdopátio.Anoiteera

deumafumaçaobscura;océu,crepusculareroxo,borradopelaslâmpadasdarua.Osporõesexalavamumasensaçãodecalafrioembolorado.–Bem.–Simonolhouoarcoacima.–Primeirovoutirarumasfotosdaconstruçãodepedraedaquelas

iniciais.Fiquematrásdemim.Passouumtempãoacertandoacâmera.JosheSulisobservavam-no,aoladodele,semconversarem.

Osporõeseramsombriosegelados.Tinhaaestranhasensaçãodequehaviaalguémmaisali,alémdeelestrês.Maissombrasnasparedes.Quandoacâmerafinalmenteclicaraezuniraportrêsvezes,Simondisse:–Ok,fabuloso.Agoravamosabri-la.JoshsorriuparaSulis.A chave não parecia uma chave. Era algo que se articulava estranhamente, com pedaços demetal

grudadosportodaparte.MasSimonpareciasabercomousá-la.

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–Chamamosdeabridormultifuncional.Afechaduraestábemenferrujada.Nemgira.Jateou-acomumspraydeWD402.etentounovamente.Abarrademetalmoveu-seeescorregou,então,aoforçá-laparaquegirasse,puderamouvirogemido

relutantedomecanismo.–Achoqueistonuncafoiaberto.–ComoatumbadeTutankamon–disseJosh.–Talvezacharemostesouros.Elaficouempéatrásdeles,observando.Umtipodepânicocresciadentrodela.Queriavoltar,sair,

subirparaseuquarto.Masficouparada.–Ok.Agoraconseguimos.Simonpuxouaporta,entãoaempurrou.Nãosemovia.–Emperrada.Dáumaajudinhaaqui,Josh!Josh se apertou perto dele e ambos colocaramos ombros nela. Sulis podia sentir o esforço. Podia

sentirasvigasantigas,teimosaseempenadas,fixadasháanosnobatente.Sentiaaescuridãoportrás,aprofundaeintocávelescuridão,osilêncioqueninguémjamaisquebrara,desdequeaportaforatrancada,talvezháséculos.–Esperem!Sulissuspirou.Aindaempurrandoaporta,Joshvirousuacabeçanadireçãodela.–Porquê?Nãosabiaporquê.Nãohaviaporquê.Empurrarammaisforte,easdobradiçascomeçaramaranger,tremendonaparteinterior.Enquantoera

aberta,elaolhoufascinadaeaterrorizadapelanegridãodafendaquesealargava.Enrugandoonariznadireçãodomofodoarenvelhecidoquesopravaparafora,imaginava-ocomoumaondanegra,tomando-aporcompleto.–Quase,sóumpouquinhomais!–Simongemerapeloesforçofeito.EleshaviamfaladocomJosh?PensavaSulisdurantealutaparaabriraporta.Seráquetodoshaviam

discutido sobre ela, suas obsessões, o que devia ter visto quando criança?A beleza terrível daquelameninacaindonoarazul.–Sómaisumsolavanco,Josh,destelado.Seráquehaviaumaconspiraçãosilenciosacontraela?–Obrigado.Fantástico.Simondeuumaúltimalevantadanaportaeasacudiuatéabri-lacompletamente.Limpouasujeirade

suasmãos.–Entramos!Certo.Bem.Aquivamosnós.Dê-mealanterna,Sulis,ouvocêquerterahonra?Olhouparaele,enãohaviamaisnadaemseu rostoalémdeexcitação.Então,elapassouporelee

ligoualanterna.Virouofachodeluzemdireçãoàescuridão.

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Zac

Andamosatéosbanhosjuntos.Eu,nomeucasacoescuro,eSylvia,comumacapaverdeaoseuredor.NosespaçosgraciososdaPraçaQueen,algunsgarotosquecarregavamtochasguiavamgruposdehomensemdireção às casas de jogos.Uma carruagem com escolta desfilou solenemente por nós.O calor dovapordastraseirasdoscavalostocoumeurosto.Descemos por becos insalubres, a cidade fedia. Como Forrest esperava mudar um mundo assim?

Pulandoummontedeesterco,guieiSylviasobostelhadossuspensos,pelastravessasnocivas,ondeumporconojentocheiravaumavala.Então,elameperguntou:–Vocêestácertodisto,Zac?–Tenhoquepegardevoltaaquelanotapromissória.Seráqueelanãopercebiaisso?–Nãotenhodinheiroparapagaraquelasdívidas,Sylvia.Meupaiestáfalido.Sealgumdiafizeralgo

útilcomminhavidamiserável...–Sim,sim.Jápercebi.Seubraçoerasuavenomeu.Então,empurrou-oparalonge,apertandosuacapa.–Vocêestácommedo?–pergunteiaela.–DeCompton,não.–Não?Atéondevocêoconhece?Não estava olhando para mim. Pensamentos obscuros me tomaram. Será que ela o encontrou,

secretamente?Seráquefalaramsobremim?Luteicontraopânicoquesurgiadentrodemim.–Conheci-oquandotrabalhavanoGibson’s.Umpouquinho.–Vocênuncafalamuitodaquelelugar.Encolheuosombros.–Eraumburacodoinferno.Pessoasperderamtudoali.Eramroubadasfrequentemente.Umavez,uma

dasmeninasmorreu.Olheifixamenteparaela.–Como?–Caiu.Euestavaláevi.Ascoisasficaramperigosasparamimdepoisdisso.Porissofugi.–Alguémaempurrou?Seusolhosmoveram-serapidamenteatéosmeus,depoisolhouparalonge.–Porfavor,Zac.Nãoqueroconversarsobreisso.Aindaeraumagarotamisteriosa,então.Estávamospertodosbanhos,foiquandocoloqueiapastade

couroembaixodoseubraço.–Agoravocêtemasplantas.Sabeoquefazer.Tinhalhedadomeusdesenhosfalsos.Poruminstante,entrarasorrateiramentenasaladetrabalhode

Forrest com eles e saíra de lá com esta pasta velha e os desenhos colocados ordenadamente em seuinterior.Estavasurpreso.Masdissepareceremserautênticos,comoseelaostivesseroubado.Agora,olhando

abordadopapelquepulouparaforadapasta,rezavaparaComptonnãodesconfiardenossosubterfúgio.Percebendomeuolhar,enfiouopedaçodepapeldevolta,apressadamente.

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–Querqueeuvácomvocê?–perguntei.–Não.Colocouocapuzlargosobreseurosto.–Observe-nos sevocêdesejar,masseeleperceber suapresença,estará tudoacabado.Então fique

bemlonge.–Tomecuidado–disse.Eraridículo,pelomenossoavaassim.Sorriuparamim,osolhosdelaacesosdemedo.Entãoentrouapressadamente.Espereicincominutosbemfriosantesdesegui-la.Os banhos, mesmo à noite, eram barulhentos. Forrest frequentemente os desprezava, lastimava a

vulgaridadedaquelelugar.Quandoovaporquentesejuntouaomeuredor,entendioqueelesentia.As piscinas antigas e as fontes sagradas eram buracos nocivos de imundice. A sujeira cobria os

degrauseobarulhoeraensurdecedor.Haviaaindaalgunsmúsicosarranhandoviolinosenferrujadosemtroca de moedas. Homens e mulheres trajavam vestes voluptuosas, vadiavam e banhavam-se. Servoserampagosparaajudarem-nosaentrareasair.Nãomeatreviaapensarnotipodedoençasquecarregavam.AfontemágicadeBladudagoraestava

imprestável, de fato. Outros servos esperavam na bomba que era comum a todos, pegando garrafasvazias,enchendo-aselevando-asdevoltaparaseusmestres,quesofriamdegota,ouparasuassenhorasquesofriamdeinflamaçãonasglândulaslinfáticas.Ocheirodesuordoscorposeratantoquetivequelutarcontraodesejodetirarmeulençoecolocá-lo

sobremeunariz.Emvezdisso,procureiporSylvia.Estava em pé perto da bomba, a pasta embaixo de seu braço. Vi que a seda de sua capa estava

respingadaeescuraporcausadaágua.Enquantoesperavaporela,vaporacumulou-seentrenós.Umapedinteaborreceu-meparacomprarumabugigangadeumabandejacheiadetranqueiras.Disse-lheparadeixar-meempaz.Quandoolheiparacimadenovo,Comptonestavalá.Respirei. O lorde usava um casaco elegante e uma espada com cabo de prata. Tirou seu chapéu e

inclinou-seperanteela,zombandoevidentemente.Perdia-meemumdevaneiodebaterneleatéderrubá-loemmeuspés.Foiumpensamentobemprazeroso.Haviaumacolunaantigapertodali,verdeporcausadolimo.Fiqueiempéatrásdelaeosobservei.Conversavam.Estavamsorrindo,dandorisadas.Elaerarápida,

quietaeagitada.Olhouaoredorumaouduasvezes.Porummomento,pareciaestarquaseimplorando.Osorrisodeledesapareceuelhedisseraalgoprovavelmenteásperoesevero.Então,segurouseubraço.Estremeci.Fiqueiimóvel.Queriacorreratéláejogá-loaochão.Masdisseamimmesmoparaficar

parado,porqueambosobteríamosnossavingançadestemodo.Ela tirouapastadecourode sob seubraço,vio rostodele iluminar-se.Tentoupegá-la,masela a

segurou.Sabiaqueestavalhepedindominhanotapromissória,poisComptonriueolhouemvolta,comosetivesseadivinhadoqueeuestarialá.Aatmosferaentrenósondulou-secomovapordastermas.Umgrandeesguichodeáguadabanheira

ensopou-mecomrespingosquentes.Tocarammeurostocomoaspontasdosdedosdeumamão.Enquantomelimpava,viComptonpegaralgumacoisadeseubolsoeofereceraSylvia.Maliciosamentetiroudoalcancedosdedosdela,balançando-oemsuafrente,comooshomensfazemaoofereceremguloseimasaosseuscães.Sentimeusdentesfriccionarem.Mas,comumrápidomovimento,pegouopapeldasmãosdeleeleu-o.

Colocou em seu bolso e lhe entregou as plantas. Segurei minha respiração, pois ele desamarrou acarteira.Eseeutivessejulgadomalseuconhecimento?Eseelereconhecesseoserros,asproporçõesimpossíveis?Meusdesenhoserambons,minhaletraorganizada.Podiafazê-losdomesmomodoquemeu

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mestre.Comcerteza,nãoconseguiriaperceber.Nãopercebeu.Fechouapasta,dissealgoeelarespondeurispidamente.Entãoandouparalongedele,comacabeça

abaixada, tirandoaspessoasda frente, forçandoseucaminhodentreamultidão.Comptonviroue saiupelaportaprincipal.Instantaneamente,abricaminhocommeusombrosatrásdeSylvia,escorregandonosdegraustraiçoeiros,quentesemmeioaoarúmidodaspiscinassulfurosas.Correuosdegrausacimaatéoníveldarua.–Sylvia!Chamei-a,masprovavelmentenãomeescutara.Entãocorriatrásdela.A rua estava fria depois daquele calor do vapor, a escuridão era total,mas pude escutar seus pés,

correndoàminhafrente.EuaseguiatéaRuaBath,passeiohospital,paradentrodasconfusõesdaslojaseacadeiausadaparacarpinteiros,–Sylvia!Espere!Estouaqui.Àminhafrente,naruavazia,parou.Nãosevirou,masesperouatéqueaalcançasse.Quandoalcancei

seulado,nãoolhouparamim,masjogouopapelemminhasmãos.Uma lâmpada pequena oscilou onde o vigia noturno se sentava. Corri, segurei o papel e gritei de

alegria.Era minha nota promissória. Tinha minha própria assinatura rabiscada em desespero sobre a

quantidadededinheiroenvolvida.Cemguinéus,pagáveisalordeCompton.–Vocêfez!Conseguiu!Queriatirá-ladosseuspésebalançá-la,masquandovirei,estavaafastadademimeseurostoparecia

umtúmulo.–Sim–disse.–Consegui.Suafriezamedeuarrepios.Então,prostrei-meformalmente.–Obrigado,minhasenhora.–Nãofoinada–disse.Haviaumbrilhodeáguaemseu rosto,comoseovaporhouvesseseajuntadoaliemformadeuma

gota.Não consigo dizer o porquê de ela ter sido tão áspera, quase nervosa comigo. Mas a nota era

suficiente, zunindo em minhas mãos. Então, segurei-a em uma de suas pontas, cuidadosamente, e acoloqueinachamadalamparinacheiadefuligem.Observei-aqueimar,opapelescurecendonocantoe,de repente, enrugando no fogo. Virei-me, cuidadosamente, e observeiminha dívida queimar até virarcinzasecairemmeuspés.Pormedidadesegurança,coloqueimeuspéssobreospedaçoseaterrei-osnosolo.Depoisdeissotersidofeito,elafoiembora.Fuiatrásdela.– Sinto-me tão livre, Sylvia.Você não pode nem imaginar o quanto aquela dívida pesava emmeus

ombros!Lógico,sóeusabiaoquanto,umavezquejánãomaisexistia.–Ascoisasvãoserdiferentesagora.Voutrabalhartanto!Forrestmalmereconhecerá.Meupai.Vou

lheenviardinheiro.Todososmeses.Metadedomeusalário.Elapermaneciaemsilêncio,andandoaomeulado.–Elenãofaziaideia?Compton?Ficousatisfeitocomasplantas?Quetolo!–Sim.Avozdelaerabaixa.–Quetoloeleé!Seráqueela sentiupesardedefraudá-lo?Nãoconseguia imaginar.Andamosdevolta, rapidamente.

Não parecia inclinada a falar, como se a tarefa de enganar Compton houvesse sugado todas as suasenergias.Receio teragidocomocriançanaquele instante,pois,naminhaalegria, lheconteisobrealgo

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quenãopretendia.Contei-lhesobreacâmarasecretanocoraçãodoCírculo.Ouviu-meatentamente.Nomomentoemquechegamosàcasa,elajásabiadetudo,atémesmodemeus

planosdeobservarareuniãodoOroboros.–Voucomvocê.Tenteiescondermeudesânimo.–Sylvia...Virouparamimcomoumavíbora.–Voucomvocêenempenseemmeimpedir!Vocêtemasuanotapreciosa.Vocêmedeveporisso!

Estáseguroeissoétudoqueimportaparavocê!Subiuosdegrausdacasacorrendoebateuaportanaminhacara.Fixeimeuolharnospainéispretostremulantes,desnorteado.–Oquetinhafeitoagora?Nodiaseguinte,nãoavi.Nãoestavanocafédamanhã,nemnaceia.ASra.Halldissequeelatinhase

retiradoparaseuquarto,poisnãosesentiabem.Forrestfranziuorosto.–Seráqueexistealgoquepossafazer?–Não,zenhor.Nãosepreocupecomazenhorita.Aempregadalavouaslouças.–Umaquestãodemelancolia,comobemconheço.Amanhã,tudopassará!Estavameevitando.Sabia.Masnãofaziaideiadoporquê.Asmulheressãodifíceisdeentender.Forrestsesentouporummomento,pensativo.Euoobservava.Haviacaídoemumdeseusmomentos

esquisitosdesonharacordado.Imagineinoqueestavapensando,girandoataçadevinhoentreumdosdedosededão.Quemistériodruidaestavacausandoperplexidadenele?Ouseriaalgoprático,comoosmateriaisparaoandaimequebradoqueopreocupavam?Quemisturaqueera?Tenteiminhasorte.–Ireiatéacidadeestanoite,senhor,sevocêmepermitir.Olhouparamim.–Oquê?–Acidade.–Acreditoquenãovájogar,Zac?Sorricomplacentemente.–Nãojogo,senhor.–Bom.Éumagrandetolice.Colocouataçasobreamesa.–Comovocêachaqueotrabalhoestácaminhando,Zac?Vocêgostadoquevê?–Vaicoroarseuesforçonavidacertamente.–Umacoroadelandes.Sorriu.–Vocêtemcerteza?Olhoufixamenteparamimcomaquelesolhosnegros,semprerápidos.–Ouvocêsóestásatisfazendoavaidadedeseumestre?Nãosabiaoquedizer.Entãoaspalavrassaíramemesurpreenderam.–Creio que oCírculo será comentado em dias futuros como grande exemplo de arquitetura. Estou

honradodeestarenvolvidonele.Eeraverdade.Olhouparamimporcimadamesa.–Somosamigos,Zac?Agoraeraeuquemviravaataça.

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–Sim–disse.Balançouacabeça.–Istomeagrada.Algumasvezespensei...Seiquenãosouumhomemdefácilconvívio.Ideiasvêma

minhamentecomobolhasnastermas.Quemsabedeondevêm?Masestoufelizqueestejatrabalhandocomigo.Vejoumgrandefuturoparavocê,algumdia,Zac.Apesardeserfeioesemgraça.Ri,apesardaúltimasentençatermepreocupadoumpouco.Masamençãodeleàsbolhasdafonteme

lembrou a câmara escondia. Quanto valia então sua amizade comigo? Pois me recordo que ele nãodividiraesseassuntocomigo.Levantou-se.–Tenhoquesairtambém.Maistarde.Divirta-seànoite,Zac.VamosesperarqueSylviaestejaconosco

amanhã.–Observei-osairesubirasescadas.Sylvie?EstaeraamaneiracomoComptonachamava.Passeiashorasquerestavamemmeuquarto,todoenvolvidocomminhasroupas.Tenteiestudar,mas

umpoucoantesdasonzeaportadafrentesefechousuavemente.Corriatéajanelaeolheiparafora.AsombraescuradeForrestmovia-sepelarua.Peguei meu casaco, passei rastejando em frente à porta do quarto da Sylvia, que se abriu

inesperadamente.Elasaiucomoseestivessesentadaemsuacamaapenasesperandoumaoportunidade.Destavez,suacapaerapreta.–Acaboudesair–disse.Balançouacabeça.–Vocêestárealmentedoente?Olhouparamimdemodoestranho.–Nãoseiainda.Descemosaescadanapontadosdedos.Sra.Halltinhaidoparacasa,oqueerabom.Nãomeatrevoa

pensaroqueelaachariadetudoisso.Então,pelasegundanoiteseguida,Sylviaeeuandamospelasruasdacidade,masalgumacoisahavia

mudadoentrenósagora.Nãomedeuseubraço,malconversamosatéchegaràextremidadedolocaldaconstruçãoevermosForrestnãomuitoànossafrente,altoesombrioemseucasacovelho.Afachadasemiconstruídaestendiaumasombracompridasobreascabanas,construçõesdealvenaria,

osandaimeseestacasdepedra.OlheiparacimaeviqueaLuaestavacheia,brilhandonaspoçasdeágua, nas extremidades dosmetais e no canto dos esteios.O centro doCírculo era de uma escuridãodensa e, enquanto Sylvia se movia à minha frente, tropecei e quase caí. Ela segurou meu punho,apertando-o.Forrestparou.Olhouaoredor.Ficamosimóveis.Porummomento,penseiqueelefossechamaremvoz

alta.–Évocê,Zac?Teriaqueresponder.Masvirou-seedesapareceuporentreosporões.OslábiosdeSylviaeramquentesemminhasorelhas.–Fiquepertodemim.Pretendia.Pareciavernoescurocomoumagata.Conduziu-mepelospedregulhosdaconstrução.Não havia nem sinal do vigia, e os outrosmembros do Oroboros deviam ter chegado em segredo

também.Nãohaviacarruagens,nemcavalosnaruasemiacabada.Titubeamosàentradadoporão.Sylviaretirousuamãoedisse:–Bem,vocêrealmentequerfazeristo?–Émuitotardeparavoltarmos–respondi.Olhouparaaentradacomaportaescura.

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–Não,nãoétarde.–Vocênãoprecisair.Pareceusorrirdemodotristenoescuro.–Não,nãopreciso.Masnãofoiembora.Emvezdisso,ouviseususpiro.Sussurrou:–Estamosrealmenteosalvando,Zac?

Ouotraindo?Nãotinharespostaparaisso.Então,passeiporelaemovi-merapidamenteparadentrodosporões.Estavacommuitofrio,eosporões,enquantodescíamos,pareciamsermaisprofundosànoitedoque

duranteodia,comoseestivéssemosdescendoatravésdotempo.As paredes nuas exalavam um cheiro úmido nocivo. Vi meu fôlego produzir vapor enquanto

avançávamos pela escuridão.A pilha demadeira ergueu-se em nossa frente como um biombo. Parei,tentandoprocuraransiosamenteouvirvozes,masasombraànossafrenteerasilenciosa.Nãomeatreviaconversar com Sylvia naquelemomento. A sala teria ecoado nossos sussurros. A noite, com neblina,despejou-separadentrodosporões,juntamenteconosco,eporissomalpodiavê-la.Estendiminhamãoetoqueinamadeira.Estavafriaeasfarpasentravamemmeusdedos.Movi-mevagarosamenteatéofinaldaquele cômodo e espiei ao redor. O arco e a passagem estavam escuros. Então, quando olhei, umachamaestalouacesanasalasecreta.Nãovinadaalémdachama.Estavasendocarregadaporumamãoinvisívelquetocouumpavio.Achamacresceuuniformemente.Umaluzamarelatremulounacâmara.Viparedes gastas revestidas de sombras. Vi a poça. Um vapor tímido saía dela. Uma bolha veio até asuperfícieeestourousilenciosamente.Achamasemoveu,develaemvela,atéformarumcírculodefogoemtornodaágua.Ondasdesombrasenormesdesciampelasparedes.Aescuridãoestalavaesussurrava.Já devem estar lá.Os homens dosOroboros, o culto secreto do qual não sabia nada. Será que eramhomenspoderososdacidade:lordes,conselheiros,comerciantes,osgrandeseosbons?SeráqueRalphAlleynestavaentreeles?OuGreye?OueramantigoscomoForrest,homensquesonhavamcomdruidasedeusesperdidos,queelaboraramteoriastolasemlivrosqueninguémlia?Nãoconseguiaver.Estavanaextremidadedobiombodemadeiraemesmoassimnãoconseguiaver.A mão de Sylvia me apertava, mas consegui soltá-la. Andei através da abóbada, por um instante

pequenonaluz,esgueirei-mepelapassagememeencolhiatrásdaspedras.Meucoraçãobatiafortementeemmeupeito.Então,respireieespieiacâmara.

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Bladud

Alémdaórbita terrestre,estáaescuridão.Vivemospormeioda luzdaLuaedoSol,de tochasevelas.Tememosoqueestádoladodeforadenossocírculoaquecido.Masosdruidasehomenssábiosprecisamsaber.Precisamossabercomoaescuridãoàsvezessemovedentrodenós,comoadeixamosentrar.Medo,traiçãoepavor.Essessãoosmistériosdotempo,acobraquecomeseuprópriorabo.Lembro-mede que escaleiminha torre demadrugada e olhei de seu topo.Pude ver um caminho

comprido,tãolongequantoosmontespermitiam.Conseguiverodiacomeçandoe,aooeste,pudeverolocalondeterminaria.Poisodiaéumcírculotambém.Encaixeiasasasemminhascostaseasabrilargamente.Meucoraçãopuloudemedoenquantoabrisamelambia.Meuspésestavamnabordadotrabalhodepedra.Aspenasfaziambarulhoesemovimentavamcomaenergiaquepossuíam.Estavamaisumavezemumlugarentreavidaeamorte.Puleinocéuazul,gritei.

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Sulis

Havia uma passagem e, no final dela, uma câmara que não tinha nada dentro, a não ser um pontosalientecircularnocentro.Asparedeseramdepedrasgastas.Simondisse:–Bom,semtesouro!Continuaramolhandoàsuavolta.Sulis estava desapontada, como se estivesse esperando algumamensagem de Forrest ali ou algum

objetoquetivessedeixado.Otelhadoacimadelaeraobscuro.Virouatochaparaeleeviramacuidadosamísuladeanéisdepedra.–Paraqueserviam?–resmungouJosh.–Boapergunta.Simonfoipegaracâmeraeatrouxeparadentro.–Nãohánadaparanosfalar.Suasvozessoavamcomoseestivessembemfundo,emumpoço,oucomoseagrandefachadasobreo

chãooscercassem,mesmoaliembaixo.Sulisagachou-sesobreocírculocentral.–Háisto,umpoço,oumelhor,jáfoium.Mesmoagora,aterrapareciaestarúmida,colocousuamãosobreelaeasentiu.Haviaumcalorfraco,

masreal.Seusdedosafundaramemumalamamacia,enfeitadacomgrãosdepedrasminúsculos.Simoninclinou-seeolhou.–Umaterma?Istoéextraordinário.Sulissentiuocalornaspontasdeseusdedos.Algoafezcavarmaisfundo,enfiouseusdedosedeixou

cincoburacosqueforampreenchidos,vagarosamente,poráguasquesubiamdasprofundezasdaterra.–Forrestdeviaterconhecimentodequeistoestavaaqui.Simonestavaexcitadoagora.–TalvezsejaaverdadeirarazãodeeleterescolhidoestelocalparaconstruiroCírculo.Tenhocerteza

dequeninguémmaissabesobreistoaqui.Olhouaoredor.–Sabe!Deveríamosrealmentetrazerumgeólogoaquiembaixo.Miroualanternanaescuridão,aluzpassouporalgoopaco.–Lá!–disseJosh.–Oqueéaquilo?Alanternafocounovamentetentandoacharalgo.Sulisvirouasuaparalátambém.Ambososfachos

convergiramepararam.Iluminaramumapedraquadrada.Estavaalisozinha.Tinhasidocolocadaintencionalmentealinochão

desnudo. Tinha sido polida e, ao lado dela, uma imagem havia sido esculpida, sem estar desgastada,comoseaindafossefrescaouretiradadoformãodostrabalhadores.Simonrespiroufundo.EntãoolhouparaSulis.Elaestavaquieta,incapazdemover-se.–Oqueéisto?–Joshmurmurou.–Umamétope.AvozdeSimonerabaixinha.–Parecequeéumaextra.UmaquenãousaramnoCírculo.Sulisdeualgunspassosparaafrente.Trouxeofachodalanternaparapertodaimagem,agachouàsua

frente,correualuzsobreasextremidadesquesedesintegravamsobreasuperfíciepolida.Mostravaumafiguraalada,braçosabertos,mergulhandonadireçãodaterra.

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–Ícaro–disseJosh.Simonencolheuosombros.–EstámaisparecidocomBladud.Forresterafascinadopelalendalocal.Algunsatéfalavamqueele

se imaginava como Bladud, de algummodo bem estranho. Bladud fez asas para si. Atirou-se de umtemploqualqueretentouvoar.Sulis tocou a pedra. Estava mais perto dela do que deles. Seus olhos estavam próximos à pedra

granuladadourada,apedradacidade,cortadadascolinas,dapedreiradeRalphAlleyn,trazidaaquieesculpidacomaquelaimagem.Podiaverqueafiguraaladatinhacabeloscompridos.Eraumhomem?Ouumagarota?Joshestavapertodela.Dizia:–Vocêestábem,Sulis?Nãoconseguiuresponder.Emvezdisso,falou:–Oqueaconteceucomele?Odruida?Simonlevantou-se,seusjoelhosestalaram.–Foifeitoempedaços,dizolivro.De algummodo sabia disso. E nas sombras atrás dela, nos lugares escuros da câmara, sabia que

alguémmaisestavaempéali.NãoeraSimonouJosh.Sabiaquemera.Ocheiromostrouquemera.Issoadeixouofeganteporcausadesuaslembranças.Ocheirodasfolhas

mortas,dosolo,domofo,ouderoupasencharcadaspelachuva.Virousuacabeçavagarosamenteeoviupertodaporta,mas já tinha suas costas voltadas para ela.Andou atrás de Josh eSimon, não fazendobarulho,enenhumdosdoisovira.Andoupelaabóbadadepedraenãoolhouparatrás.Elaselevantou.–Tenhodeir.Pegarumpoucodearfresco.–Sulis...Passou por eles, abrindo caminho. Jogou a lanterna para Josh, que a pegou antes que caísse e

quebrasse.Saiucorrendopelacâmara,sobaabóbada,voltandoatéoporão.Umasombrasemoviaàsuafrente,talvezasuaprópria,talvezadeoutramenina,correndoerindo.Nafrentedelas,umdesconhecidoandava.Enquanto corria para o pátio encharcado, a noite se apresentava com uma neblina em forma de

redemoinho.ALua,umdiscoprateado,giravasobrealgumlugaracima.Correuosdegrauseparounomeiodocaminho.Eleestavalá.Tateavaaportadacasa,acasadeSulis.Aopararnaescuridão,viuquetiraraumachaveeaenfiarana

fechadura.Entãoavirou.Aportaabriueeleentrou.Olhou para os painéis negros fechados, incrédula. Então, subiu os degraus e o seguiu. O corredor

parecianormal,apesardeumpoucodeneblinaterentrado.Ohomemsubiaasescadascorrendo,passospesadoserespiraçãoofegante.Jánãomaissefaziavisívelaoredordoparapeito.–Espere.Assobiou.–Nãosubaaí!Hannahestavasozinhalá.Sulissubiuàspressas,omaisquietaqueconseguiu.Estavaumpoucoàfrente!Masquandoviroupara

asplataformasno finaldos lancesdeescada,pareciaqueosdegrausestavamcadavezmais longe.Asombradeleeraenormeedistorcidanaparededecima,correuatéchegaràportadoflateencontrá-laentreaberta.Andousilenciosamentepelocorredor.–Hannah?Asalaestavavazia,orádiocantavatimidamenteparasimesmo.ConseguiaouviravozdeHannahno

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quarto,conversandoaotelefone.TalvezcomAlison.Sulisolhouaoseuredor.Aportapequenadosótãoestavaaberta.Subiucorrendoeparoudoladodeforadoseuquarto.Dava

paraseouvirumbarulho ládentro.Esperou,pôssua testanaportae tentou identificá-lo.Umestalidomacio.Umapancada.OlhouparatrásesperançosadequeJoshativesseseguido.Masnãohavianinguémlá.Sabiaqueestavamuitosozinhaali,comoestiveradesdeaquelediaemque,juntamentecomCaitlin,fugiudaescolaetomouoônibusparaoparque.Virouamaçaneta.Seuquartoestavaopacoequieto.Acamafeitaimpecavelmente.Suasroupasemumapilhaemcimada

cadeira.Não havia sinal de que alguém tivesse estado ali.Mas enquanto observava, uma pancada najanelaafezdarumpulo.Então,umflashvívidodeescuridãopassouporelaeafezsuspirarepularparatrás,deixandoqueaportabatessecomseuchoque.Haviaumpássaronoquarto.Voavanoscantosdoseuolhar,sobaolhadeladaLua.Batiaasascontrao

espelho,emsuacornija.Fezcomqueocasacoqueestavapenduradonaportabalançasseecaísse.Bateucontraajanela,comoumapedra.Elatinhadedeixá-losair.Cuidadosamente,commedodequeopássaroenroscasseemseucabelooubicasseseusolhos,andouatéaextremidadedoquarto,passandoporsuacamaatéchegaràjanela.Estavadestrancada.Forçouajanelaparatráse,quandoofez,opássaropassouporela,grasnando.Olhouparaele,preto,emumvoorecortado,loucodemedo.Agarrounobatenteeabriuajanela.Oargeladodanoitebateuemseurosto.Virou-se.–Estáaberta!Vá!Saia!A janelaabriu-secompletamente.De repente,oquarto ficouemsilêncio.Ficouesbaforida.Oarda

noitesopravaseuscabelosemseusolhos.Haviaumpássaroali?Poisoquartoestavaemsilêncioejánãotinhacertezademaisnada.Então,comoumaflecha,saiudoespelhoevoouporela,adentrandoaescuridãodanoite.Elaoviu

ziguezaguearporsobreotelhadolargo.Escalou-odepoisdisso,pelajanela,atéabasedagrandepedraemformadelandequeseerguiapara

océu.EmbaixoestavaoCírculo,quieto.Seuspostesdeluzobscuros,asárvoresnocentroeramcomomassasdesombrasinquietas.–Sulis.Virou-se.Eleestavasentadonas telhas.Seucasacoestavaatrásdelecomoasas.Disse:–Lembra-sedemim,

Sulis?Ocoraçãodeladisparou.Disse:–Vocêmeencontrou.–Encontrei você hámuito tempo.Mas você nuncame escutou, Sulis.Você continuou fugindo de

mim. Pessoas diferentes, cidades diferentes. Foi apenas quando você veio para cá, que soube queconseguiriafalarcomvocê.Esteéomeulugar.Orostodeleestavamarcadocomcicatrizes,sinaisdelepraesujeira.Arespiraçãodeleeraofegante

noar.Seusolhoseramdeumcastanhofirme.Eladisse:–Joshnãoacreditaquevocêexiste.Dissequevocênãoestavalá,nomuseu,naruaenoônibus.–Talvezestejacerto.Elabalançouacabeça.–Vocêvaimeempurrar,comofezcomCaitlin?Elesorriu.–NãoempurreiCaitlin.Sabedisso.–Vivocê.Virou-seeoencarou.Aspalavrascresceramdentrodelaesaíram.

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–Vocêsempreesteveemminhavida,desdeaqueledia.Arruinouminhavida.Tudoeramuitodiferenteantesdevocê.–Caitlinarruinousuavida.Olhou-osurpresa.–Caitlineraminhaamiga.–Era?Temcerteza?Lógicoquetinhacerteza.Mas,assimqueelefalou,jánãoestavatãocerta.Pareciaquetinhailuminado

algoqueelanuncahaviaparadoparaatentar,algoquesempreassumiracomocerto.–Vocêserecorda.Levantouseubraçoaladoeapontou.–Láestáela.Umfantasmademenininha,comsuascostasvoltadasparaSulis,inclinando-seprecariamentesobreo

parapeito.Umcontornofraconanoite.Sulisestavacomfrio.Seusdedosestavamtremendo.–Seésuaamiga,chame-a.Elavaisevirar.Vocêaveránovamente.Nãoconseguiasemexer.Seuslábiosestavamsecos.Nãoqueriaproferirseunome.Nãoqueriaveragarotavirar-se.Nãoqueriaverorostodela.Umavozdisse:–Sulis?Ondeestávocê?Hannah e Josh.Sulis rapidamente entrounoquarto, correu até a porta e a trancou, girando a chave

segundosantesdealguémbaterduramente.–Su,vocêestábem?Andouparatrás,semfôlego.–Estou.–Simondissequevocêsaiucorrendotãorápido...–Estoubem.Sóestou...metrocando.–Joshestáaqui.–Eusei.Cincominutos.Étudo.Voltoueescalouajanelanovamente.Anévoaestavasubindocomogaroafina,obscurecendoasluzes.Elenãotinhaidoembora.Suasmangasestavamcobrindosuasmãos,comoseestivessecomfrio.Virou

suacabeça,seusolhoseramatentoscomoosdasgralhas.–Conte-mesobreCaitlin–disse.Sulissesentounasoleira.–Brincávamosjuntas,construíamostorresecasas.–Juntas?–Quasejuntas.–Vocêquerdizerquevocêasconstruía.–SimSulisbalançouacabeçaeselembrava.–Eu as construía.Semprequeria brincar comaqueles blocos,mas ela não.Dizia que eramchatos.

Umavez,construíumatorremuitoaltaqueeladerrubou.Porqueelahaviaseesquecidodisso?–Elamefaziaandaratésuacasa, todasasnoites,depoisdaescola.Ficavaquilômetrosdistanteda

minha,masnãoseimportava.Apenasria.Eleolhouasárvores.–Vocêpoderiaterditonão?

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–Nãoconseguia.Elaeramaisfortedoqueeu.Faziaoqueelamandava.Agora havia se permitido lembrar e o fantasma da garota sentada no parapeito parecia ficar mais

sólido,comabrisabalançandoseucabelo.–Quandoelaestavapresente,euerasempremaisquietaeinferior.Eupareciaasombradela.Eleatirouumapenanaescuridão.–Somostodossombras.Sulisestavachocada.Queportadeveriadestrancarparadeixartudoissosair?Poistodosessesanos,

depoisdamortedeCaitlin,nuncasepermitirapensar.–Afuga–sussurrou.–Foiideiadela.Nãoqueriair.Elamearrastou.Lembrou-se da mão de Caitlin na dela. O cochicho assobiado, ferozmente, em seu ouvido. “Fica!

Nuncamaisfalareicomvocêdenovo”.Apressão,asúplica.Aspalavraseramquentesehumilhantes.–Su?AvozdeJoshsefezescutar.Houveumruídonaportadobanheiroqueelaignorou.Odesconhecidodesceuescorregandopelo telhadonadireçãodela.Sua faceestavacuradaagora, a

lepradesapareciaenquantoolhavaparaele.Osolhosdeleeramdeumcastanhoprofundo.Disse:–Masvocêfoi.Noônibusenoparque.–Mas chorei. O tempo todo.Queria ir para casa. Estava commedo.Mas ela continuava dizendo:

“Caleaboca.Tudovaidarcerto.Nóslhesmostraremos...”,euaodiava.–Su,porfavor,abraaporta!Elasevirou,masavozdeleaparalisou.–Eodesconhecido?Estavaempécomseusbraçosaoredordesimesmaepodiadizer.–Ninguémsubiuàtorrecomagente.Nenhummendigo.Nemvocê.Ninguém.Elesorriu,satisfeito.–Escalara torre foi ideiadela.Empurrou-meàsuafrente.Chegamosao topoeelaestavarindode

mim,fazendoalgazarra,dizendoquepodiafazerqualquercoisa.Quepodiavoar.Sentou-senabeirada,seuspésbalançavam.Eudisseparaelalevantar-seesairdepertodabeirada.Implorei-lhe,maselanãomeouvia.Ofantasmadameninaerarealagora,suajaquetacor-de-rosaacolchoadaeàprovad’água,ochapéu

delãesuasduastrançasloiras.Sulisolhoufixamenteparaela.–Caitlinselevantou,abriuosbraços.Olhe,elaestáfazendoissoagora.Vocêpodevê-la?–Posso.Elaseguravameupulso.Tinhademesoltar.Empurrava-me.Euestavagritando.–Vocêlutou?–Lutamos.–Vocêbateu...Euachutei.Vocêaempurrou.–Gritei.Eleestavaaoseulado.Haviasomdepancadasbemaltasvindodealgumlugar,vozesnoparqueeuma

lanternailuminando-a.Eladisse:–Todosestavamgritando.Eelaestavaempénabeirada.

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–Sóparalhemostrar......queconseguia.Sóparamemostrar...Eraamaisforte.Amenininhafantasmasubiueseequilibrou.Cambaleou.Aoladodela,umpássarobateuasasnaescuridãocomumgrasnadoríspido.Sulistentoualcançá-la.–Minhamão.Olhe,aquiestá.Eufizisso?Euaempurrei?Euamatei?Eueraadesconhecida?Nãohouveresposta.Amãodelaseaproximoudocasacoacolchoa-

docor-de-rosa,poisestavacomreceiodequeCaitlinsevirasse,quevisseseurostonovamente,depoisdessesanostodos.Massuamãomoveu-seincontrolavelmente,paraafrente,estendidacontraotecidodesedaqueestavaentreosombros.AtéqueSimondestrancouaportaedissejásemfôlego:–Su,estátudobem?

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Zac

Oquehaviaesperadover?Umcírculo de homens usando trajes druidas?Cerimônias profanas e secretas?O sacrifício de uma

garotadavilacomumafoicedourada?Algumacoisaparecida.Talvezalgoassimtenhaacontecido,poisacâmaraestavaobscurecidaporumanévoaleve,comose

homenstivessemestadoláhápoucotempoepartidoemdireçãoàssombras,aonada.Forrestestavasozinho.Sentou-seeesperouaoladodafonte,comseucasacocoladoaochão.Disse:–Zac!Sylvia!Entrem.Porummomento,tiveaestúpidaideiadevoltaràspressasparaminhacama,fingirquenãoestivera

emlugaralgumpertodestelocal.Sylvia passou pormim. Seu vestido roçava em simesma emitindo ruídos. Então, tive de segui-la,

sentindo-metãoenvergonhadoetoloquemalpodiarespirar.Tinhaacendidoumcírculodevelasquesequeimavam.Sobsualuz,vianascenterodeandooutroscírculosovoidespequenosemarronsespalhadospelaterra.Piseiemum,acidentalmente,quesequebrouembaixodosmeuspés.Inclinei-meeosolhei.Eramlandes.Forrestdisse:–Receioqueperderanossapequenacerimônia,Zac.Nãoconseguiadizeroquantoestavachateado.Haviaumagrandeexpressãopesarosanele,parecendo

serumamisturadetristezaeira.Aomeulado,Sylviatremia.Disse:–Senhor,estávamos...–Curiosos?–Simenadamais.Riu.Umsomsecoemelancólico.Disse:–Nãomeoponhoàcuriosidade.Maspenseiquemerecessemaisdoqueissodevocê,Zac.Inicialmentenãoentendi.Então,levantouumadasvelas,movendo-aparapertodesi.Aluziluminouo

quepareciaumaplantadaobra,espalhadanochão.Sobresuaspontashaviapedrasdouradasprendendo-aaochão.Olhou-meporcimadela.–Quegozaçãoéesta,Zac?–sussurrou.Porummomento,minhamenteficoutãoescuraquantoaquelacâmara.Então,Sylviafezumsombaixo,

típicodeumdesmaio.Foracomoseum feixede luz tivesseentradoemminhaescuridão.De repente,compreenditudo.Entendiqueaplantaqueestavaàfrenteeraaquelaqueeudesenhara,acópiaempenadaegrotescadotrabalhodele.ElahaviadadoacópiaverdadeiraaCompton.Nãoconseguimemover.Respirareraimpossível.Olhei-a.Apenasumaolhadela.Seusolhosestavam

fixosemmim.Seurostoestavabrancocomogiz.Nossoolhardurouumafraçãodetempo.Mesmoassim,vi toda minha vida passando em minha mente, os anos de aprendizado, os edifícios que nunca iriaprojetar.Domesmomodo,viavidadeSylvia,mendigandoemumaruadeLondres,perdendo-senaquelacidadesujaeemtrevas.Elanostinhatraído.Porquedeveriasalvá-la?Aindaassim,endireiteiminhapostura,arrumeiminhasmangasenãodissenada.

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Forresttocouaplanta.–Ondeestáaoriginal?–Vendida–sussurrei.–ParaCompton?Inclinei-me.Palavrassómereprovariam.Balançouacabeça,querendomuitofalar.Suavozestavasufocadapelaamargura.–Vocêtinhadívidasdejogocomele?–OmestreAlleynlhecontou?–Elesugeriu.Mas,Zac,porquevocênãomeprocurou?Estavaempé,encarando-me.Suaspalavrasásperasebrutaslhetiravampedaçosaosaírem.–Seráquefuiummestretãoproibitivo?Seráquemereciaisso?Aomeulado,Sylviapareciaumasombranacâmara.Nãofalavacomigo,nemmeolhava.Queriagritar

comelanafrentedele.Elafezisso!Estagarotamentirosaquevocêacolhera,preferindo-aamim.Masapenasbalanceiacabeça.Pegouaplantaejogou-aemminhacara.–Vocêmeinsultacomisto!Poderiater-lheperdoadoasdívidas,Zac,atémesmoentregarossegredos

demeu trabalho,mas destruí-la! Fazer o homem construir esta ruína aleijada... parame destruir. Issonuncaconseguireientender.Estavaempé,pertodemim.Seusolhosestavamnegros.–Construiréumamágica,Zac.Éanossaartemaiselevada.Nuncadevesertraída.Sylviadeuumsuspirosufocante.Porumpequenomomentodealegria,acheiqueelalhecontaria,queconfessaria,masnãoofez.Virou-

seepassoupormim,fugindonaescuridãodotúnel.Forrest andou para trás. Aproximou suamão do rosto e empurrou os cabelos enrolados para trás.

Então,virou-separalongedemim.–Nãosuportonemolharparavocê.Váagora,senhor.Váparacasa,arrumesuascoisaseváembora.

Nãoestejaláquandoeuchegar.Nossasociedadeterminou.Haviamuitascoisasquepoderiaterdito.Meurostoestavavermelhodetãohumilhado.Mesmoassim,

continuava arrogante. A arrogância queimava dentro demim como veneno. Levantei a cabeça e vireiabruptamente,omais friamenteque consegui.Enquanto saíada suapresença, andandopela escuridão,sentiumgranderemorso.Eratudooqueconseguirafazer;nãolhedizeroqueagarotafizera.Poiseleaestavadeixandoemsuacasa,comoumavíbora,enroladaaoseuredor.Parei.–Senhor,porfavor...–Váembora,Zac–explodiucomoumchorodentrodele.Então,fuiembora.Láfora,anoiteapresentavaumanévoafriaefantasmagórica.Pareciahavermais

luzesdoqueonormalnolocaldaconstrução,maserammerasnebulosaspálidas.Meufôlegoesfumaçavaaomeuredor.Andeipelosmontesdepedraolhandoparadireitaeesquerda.Oqueseriademim?Porqueestava

jogandoaminhavidaforaporumagarotaqueeracapazdefazeralgoassimcontranós?Porumavadiadasruasquenãotinhaamenorpreocupaçãocomigo?Parei.Voltariaeofariameescutar.Seelafossemandadaembora,porquedeverialigar?–Zac.Elaestavaempénaentradadeumadascasasquejátinhamsidoterminadas.Olhei-aatravésdaescuridão.Disse:

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–Oquevocêfez?Confieiemvocê,Sylvia!Eu…–Vocêlhecontou?Contou?Balanceiminhacabeçanegativamente.Eladeuumpequenogemido.–Vocêdeve.Vocêtemde...–Nãovou–dissealtivamente.Todas as minhas decisões de alguns minutos atrás tinham desaparecido. Era um senhor Peacock

novamente.Colocousuasmãosnorosto.–Então,eudirei.–Não.Aproximei-medelarapidamente,porentreosmontesdepedras.–Vocêacabaránasruas.–Eumereçoisso.Nãoqueriadiscordar.Aocontrário,perguntei:–OqueaprendeaCompton?–Amesmacoisaqueprendeuvocê.Balançouacabeçaedesabafou.– Você acha que as mulheres no Gibson’s não podem apostar? Devia-lhe mais do que você. Ele

planejaratudo,umavezquesoubeondeestava.Nãotiveescolha.Nãoestavachorando.Seurostoestavabrancoecansado.–Sim,vocêteve.–Pessoascomonósnãosãolivres,Zac.Tenteifugir,muitasvezes.Tinhamedo.EagoratraíForrest.

Dariaminhavidaporele,sabia?Eaindaassimfizisso.Fiqueiemsilêncio.Por ummomento, toda a cidade ao nosso redor parecia quieta. Os ombros escuros das colinas, a

desordemdascasasaglomeradasabaixo.Então,umcachorrolatiuemalgumlugar.Sylviadisse:–Nãováembora.Volteparacasae,quandoelechegarlá,conte-lheaverdade.Conte-lhetudo.–Evocê?–Não se preocupe comigo.Continuareiminha vida.Tenhominhas roupas e umpouco de dinheiro.

Estareibem.Riu,comumaalegriafrágil.– Sempre haverá outra cidade. Pode não ser a perfeita que Forrest quer construir,mas terá de ser

suficienteparamim.Adeus,ZacPeacock.Nãoconseguiasorrir.Emvezdisso,balanceiminhacabeçaparaa frente.Queriadizermaiscoisas,

masvirou-seeentrounaconstrução.Esperei.Elanãovoltou.Quandomevireiparairembora,houveuminstanteemquemesentiperdido.Ocaosdolocaldaobra,

comum para mim, subitamente desorientador, a fachada circular perfeita, como se as trinta casas doCírculo tivessemcrescidopara fora de nossas imaginações; erguiam-se comopedras enormesde umaformaçãocircular,testemunhandominhaestupidez.Estavaempé,incerto,pensandoporummomentonasárvores à minha frente. Cinco imponentes árvores erguiam-se no coração da obra. Seus galhosatrapalhavamavisãodalua.Umpássaropassoupormimbatendosuasasas.Olheiparaoaltoparavê-lo.Euavi.Tinha escalado as escadas em um andaime de uma das casas, diretamente para o parapeito de um

telhado.Seuvestidoeraopacoebrilhavaaoluar.Estavainclinadasobreotrabalhodepedra,suasmãosseguravamalajerecém-cortada.Olhouparabaixoemdireçãoaoslocaisbagunçadosdaobra.Meufôlegoparounagarganta.Forrestsaiudoporão.Gritei:–Mestre!Virou-serapidamenteeolhouparaolugarqueapontei.Houveummomentodesilêncio.Então,ambos

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corremos. Alcançou a casa primeiro. Ouvi-o subir as escadas como trovão, pulando os degraus quelevavamaosandaressuperiores.Subiatrásdele.Minhasmãosescorregavamnagraxa.Nuvensdepódepedracaíramsobremimcomo

nevedourada.Osestandartesterminavamemumpontoculminantenocéu.Acheiaescadaeatirei-meemseusdegraus,semfôlego,comocoraçãobatendoforte.Notopo,porummomento,tudoerapretodiantedosmeusolhos,pontosesquisitosmedeixaramtonto.

Andeipelapontadoandaimeatéchegaraotelhado,cambaleante.–Sylvie.Forrestestavaàminhafrente,noescuro.Suarespiraçãonãopassavadeumchiado.–Porfavor,nãofaçaisso!Pareiatrásdele.Estava sentada com as pernas no vazio. Em alguns lugares, o telhado era apenas um esqueleto de

treliça, fileiras ordenadas de ardósias estavam empilhadas, prontas para serem utilizadas. Espaços,através dos quais homens poderiam cair facilmente se apenas bocejassem no escuro. Forrest malconseguiarespirar.Ouviaarespiraçãoofeganteedificultosaemseupeito.–Sylvia?Avozdelavinhadelonge.–NãoculpeZac.Fuieu.Lutavapararespirar.Tenteiultrapassá-lo,masnãohaviaporondenaplataformaestreita.Eladisse:–Comptonqueriaasplantas.Disseparaeupegá-las.Devia-lhedinheiro.Haviamaiscoisas.Conheci-

onoGibson’s…–Vocêoamou?–sussurrouForrest.Virou-se.Seusolhoseramescurosemseurostofantasmagórico.–Acheiquesim,certavez.Erarefinado,bonitoedissecoisas...,maslogopercebioqueeleera.Sua

crueldade,seuescárnio.Nuncaconseguiamelivrardele.Estavasempreatrásdemim.Encolheuosombrosemummovimentodesesperado.–Euoodeioenãoconsigome livrardele.Parece sermais fortedoqueeu,precisandoapenasme

olharoumedizeralgoparaqueeulheobedeça.Olhouanoitenevoada.–Zacqueriadar-lheasplantasfalsas.Massabiaquedescobririaoqueeram,maiscedooumaistarde,

eviriaatrásdemim.Forrestdisse:–Nãoimporta...–Lógicoqueimporta–respondeufuriosa.–Vocêmedeuumavida,eeuotraí.Avozdeleerarouca.–Sim,mas,sevocêpulardaí,metrairánovamente,sóqueparasempre,Sylvia.Nuncaconseguiremos

mudar isso. Por toda nossa vida, a de Zac e aminha. Sua imagem, pulando, estará sempre conosco.Vamosvê-laaodormirmos.Aproximou-se.–Emeutrabalhoeminhaedificaçãoserãodestruídos.Vocêosarruinará.Seráquesabiaqueissoafariasorrir?Poissorriu.Umsorrisomolhadoepesaroso.–Serásempresuaconstrução.–Sempre.Ajoelhou-se, esticando suamão para ela.Asmadeiras estalaram.Ela percebeu que eu estava atrás

dele.Disse:–Jánãolheentregueiaplanta?

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–Não.Oprojetoémeu.DeixeComptoncopiareficarfamosoporisso.Nãoimporta.Soltouumarisadaofegante.–OCírculovai sererguido. Istoéoque realmente importa.Projetei-oparanós três;pontosdeum

triângulo.Tossiu.Seucorpointeirotremiaembuscadeumpoucodear.Agachei-me,rapidamente.Sabiaqueera

seu plano, um ataque falso de asma para trazê-la às pressas ao seu socorro. Segurei seus braços einclinei-me.–Elavirá,seidisso!Seuvestidoseprendeunamadeira.Rasgou-ocomraivaeveioemsuadireção.Forresttinhaorosto

baixo,longedemim.Senti sua lutaviolentapara respirar.Seusdedosarrancavamamadeira, seupeito inchava.Entãose

curvou,encostando-seemmim.Olhei-a.Aprimeirapancadademedomeatingiu.–Éreal.Eleestárealmente...Elaseguravaseusbraços.Tentávamosmantê-lonaposiçãovertical.Elerespirouofegante,lutandopor

ar,comosebrigassecomumdemônio,comoseopróprioarfosseseuinimigo.Seurostoenrubesceu-se,seus olhos encaravam uma escuridão que não conseguíamos ver. Ele estava certo, pois nunca meesqueceriadaquela lutapelavida,aquelarespiraçãoofegante,oapertodesuamãonaminha, tãofortequememachucava.Suasunhascortavamapalmadaminhamão.Percebiaperdarepentinadaforçadeseusdedos.Silêncio.Segurei-oatétercertezadequenãohaviamaisforçanele,nadamaisparaacontecer,atéquenaquele

coração exaurido pelo trabalho excessivo não restasse nem mais uma batida. Sylvia soluçavaincontrolavelmente.Eunãoconseguiachorarousentirnada.Quandoocoloqueideitadosobreastábuasdemadeira,senticomoseminhasforçastivessemsaídodemim.Tremia.Estendiminhasmãosparaela.Segurou-as.Emalgumlugaracimadenós,umpássarobateuasasedesapareceunanoite.

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Bladud

Comopossolhecontarsobreoêxtasedevoar?Serlivredoempuxodaterra,ficarlivreebemaltonocéuazul.Nuncaserempurradoparabaixoou

termedodecair.Haverámuitashistóriasameurespeito.Aquelesquegostamdehistóriasterríveiserealistasdirão

quemergulheiverticalmenteemdireçãoàterraequefuidespedaçadopelaspedras.ComoÍcaro,voeinas alturas. Como Lúcifer, rebelei-me e permaneci orgulhoso. Mas os sonhadores e poetas farãoversõesdiferentes.Dirãoquevoeiparaterrasdistantes,quemetorneiumpássaroeassombroparaacidadeainda,quevoltoàsvezesemformahumana.Vocêterádedecidiroqueéverdadeeseurealsignificado.AlémdoCírculo,estãooscéuseasestrelas,segredosquesóosdruidasconhecem...Vocênãopoderáirmaislongeainda.Devepararagora,olharaoseuredoreentender.OCírculooajudará.OCírculoéamagiamaisantiga.

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Sulis

Estavam no carro. Simon dirigia.Hannah sentara no banco do passageiro, usando um lenço e seusóculosescuros,tentandoseparecercomumaatrizdeumfilmedosanos1950.Haviamsaídodacidadeeatravessadoas colinas emmeioaumsolgloriosonocéu, e árvoresquecompartilhavamsuasúltimasfolhasdouradas.SuliseJoshsentavam-senobanco traseiro.Nenhumdosdoishavia trazidomúsicaparaouviremou

algoparafazerem.AmbossósesentarameouviramHannahpapeando.Olhavamoscamposverdejantespelasjanelasopostase,devezemquando,seentreolhavam.Hannahdisse:–Vocêsdoisestãomuitoquietos.–Estamosbem!–disseJosh.Eestavam.Sulis olhou o seu reflexo através da luz do sol. A tintura de seu cabelo estava começando a

desaparecer,asraízesestavamcordecobre.Haviaparadodealisá-lo.Voltouaficarondulado,oqueafezparecerdiferente.Usavaumacamisetasimples,verdeeazul,eumajaquetanovaqueHannahlhecomprara.Sentiu-secomoumatransformadoradeaparência.–Nãoestálongeagora.Simonmudouamarchaesaiudaestradaprincipal.– Estou lhe dizendo, você vai adorar. Um local estranho. Forrest veio aqui e pesquisou o lugar

minuciosamente.–Esenãoadorarmos–disseHannahsuavemente.–Achamosumbar.Joshdisse:–Parecebom.Aruaeraestreita,comcercasaltasdoslados.Gralhassubiamdegalhosdesnudosdeolmeiros.Depoisdecruzaremumaponteestreitaepassaremumpedágio,atra-

vessaramumavilaminúsculaeencostaramemumestacionamentoatrásdealgumascasas.Quandoomotorparou,osilênciovoltou.Hannahabaixouovidro.–Apenasouçamisto!Ovelhas.Baliamepastavamnocampo.Sulisabriuaportaesaiu.–Então,ondeéolugar?–Bemaqui.Simonestavapegandosuacâmeranoporta-malas.Tiroualgumascaixas,umtripé,algunslivroseum

tapete.SuliseHannahentreolharam-se.Então,Hannahsorriu.–Vocês dois vão à frente. Carregarei todas estas bugigangas com Simon.Você achou que era uma

viagemaoSaaraenãoaStantonDrew,hein?Joshabriuoportãoe,juntamentecomSulis,entraram.Andaramladoaladoporumatrilhaatéumaescadaqueescalaram,usadaparapassarsobreacerca.

DeixaramSimonparatrás,poisqueriampegarumpanfletonacabinedeinformaçõesturísticas.

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Elasesentounotopodoportãoeolhouparaoscírculos.Eramincrivelmenteantigos.Ocírculomaiorestendia-se pelo campo. Ovelhas pastavam e cochilavam ao redor das pedras. Parecia um rebanhodebandado. Mas, quando desceu e andou em direção a elas, subindo em uma pequena rampa, viu ocírculoque se erguia ao redordela com lajesgrandes epedras arredondadas.Algumas caídas, outrasdistorcidaseoutrasfaltando.–NãoésóumCírculo–Joshliaopanfleto.– Na verdade, são três. Aquele lá é o menor. O círculo tinha pedras que pareciam uma avenida

conduzindoparaoladoexterno.Dizaqui...–Nãoleiasobreoscírculos,contemple-os.Ficavamemumvalebaixo.Colinasemontesoscercavamportodososlados.Enfiouopanfletonobolsoeandousilenciosamenteentreaspedras.Ovelhasmoviam-separaforado

caminhoouparavameosolhavam,ruminando.Umagrandepedrahaviacaídonolocaldopequenocírculo.Sulissesentounela.Joshpôsseupéna

pedra,asmãosnobolsoeolhouemvolta.–Então,oquehádetãomaravilhoso?–Nãomepergunte.FoiideiadeSimon–Sulissorriulargamente.–Eledissequeeuprecisavasair,

verumpoucodointeriorepegararfresco.Joshbalançouacabeça.ObservavamSimoneHannahcarregaremacâmeraatéoportãoevoltarem

paraocarroparapegaremmaiscoisas.Então,Joshdisse:–Vocênãoiapulardaqueletelhado,ia?–Claroquenão.Tirouosdedosdaluvadelã.–Então,porque...–Haviaumpássaropresoemmeuquarto.Tinhadetirá-lodelá.Nãotinhaintençãodecontar-lhetudooqueacontecera,pois

nãosabiamaisoquetinhaacontecidoconsigomesma.Nosúltimosdias,quantomaispensavanoassunto,maisvago tudoparecia ficar.Pareciaqueasvozeseramdesuacabeça.Odesconhecidonotelhadoerasóumasombra,eagarota,umamanchaemsuaimaginação.Tudoquesabiaeraqueestavalivre.PelaprimeiravezdesdeaquedadeCaitlin,estavalivre.–Quetipodepássaro?Nãorespondeu.Emvezdisso,falou:–Ouça,Josh.Lembrei-medetudooqueaconteceu.Eleaguardou.Disse:–Você estava certo. Nunca houve um desconhecido. Consigo ver isso agora. Não sei por que não

conseguia ver isso antes… parece que a minha mente criou um tipo de cicatriz dura sobre o queaconteceu,etocá-laeradolorido.LembreioqueaconteceucomCaitlin.Dooutroladodocampo,Simonmontavaacâmera.–Nãoerarealmenteumaamiga,era?–perguntouJosh.Sulisolhouparaele,surpresa.–Não,nãoera.Comovocêadivinhou?Eraumameninaameaçadoraemalvada.Eradominadaporela.Ficouemsilêncioporalgunsinstantes,olhandoparaaspedras.Entãodisse:–Creioquenãoqueria

pensar nela desse jeito depois quemorreu.Naminhamente, tornou-se a amiga que sempre desejara,inteligente,entusiasmadaecheiadeideias.Euahaviamudado.–Su...senãohaviaumdesconhecido...–Oqueaconteceunatorre?–disse,balançandoacabeça.–Issotambémestavaescondidodentrodemim.Dentroeoculto.Olhouparacima.

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–Masachoqueseiagora.Respiroufundo,poisaquiloeramuitodifícilparaela.–SubimosnatorreporqueCaitlinqueria.Eunão.Estavaapavoradaequeriaapenasvoltarparacasa.

Elamepuxoupormetadedocaminho,aoutrametade,fuiporminhaconta,poistinhadelheobedecerefazeroqueelaqueria.Parecebobo,mas...–Não,nãoparece.Sulisbalançouacabeça.–Bem, no telhado, ela ficou empé na beirada.Muito perto da beirada. Sempre estava procurando

desafios,brincandocomasorteesemostrando.Obrigou-meaficarlátambém.Então,cambaleou.Nós…minhamão…Demoroupararesponder.Joshsussurrou.–Vocêaempurrou?Seráqueelaaempurrara?Poralgunsminutos,todososanosdemedovoltaramemsuamente.Mas,disse:–Não,nãoaempurrei.

Só que tudo era… muito assustador. Eu gritava e ela cambaleava. Estava com medo que nós duascaíssemos.Entãomearrasteiparalongedali.Nãoaempurrei.Tenhocertezadissoagora.Mas,pormuitotempo,poranos,nãotivecertezadisso.Então,deixeiodesconhecidolevaraculpa.–Mastodoessetempo,Sulis.Todosaqueleslaresadotivos,todasasmudançasde...Olhoufixamenteparaele.–Sim,masvocênãovê.Acrediteinaexistênciadele,Josh.Eera realparamim.Estavacommuito

medodequemeencontrasse.Ambossentaramnocampotranquilo.PensounoqueJoshachavadela,masestavamuitoaliviadapara

sepreocupar.ObservaramSimontirarsuasfotografias,cuidadosamente,alinhandoaspedrascomohorizonteecom

asárvores.–Fiquemempélá,vocêsdois.Esorria,Su!Elatitubeou.Emsuavida,haviaapenasumafoto,deumacriançacongeladanoflashdacâmera.MasJoshpegousuamãoeambosficaramempé,estranhamente,fazendoposes.Simonapertouobotão

dacâmeraedisse:–Legal!Riramdele.Olhoua imagemnovisor.UmaSulismaisvelha, calma, aolhavadevolta comJosh sorrindoperto

dela.Atrásdeles,aspedrasosrodeavam.Simontirouseukitdesobrevivência:fitas,computadoreumteodolito.–Bom.Horadetrabalhar.Ei,dois!Vocêspodemmedarumamãozinha?Levouquaseumahoraparaexploraremolocal.Nocomeçoestavamdandorisadinhaseseenrolando

nas fitasmétricas,mas, com o passar do tempo, Sulis ficou entediada e tinha certeza de queHannahtambém.Então,pegaramacomidanocarro,umtapeteesentaram-seembaixodeumcarvalhocaído,aoladodolocaldeexploração.–Olheisto.Hannahapontou.–Devetersidoumaárvoreenormeumdia.Elaémuitoantiga.O tronco branco estavamanchado emarcado como se tivesse sido umamadeira flutuante.Um dos

ladosestava inteiro,mascortadoemumdeterminadoponto,deitadocontraosolo,comoseumraiootivesseatingidohádécadas.Sulisapoiava-seemumgalhoquebradoecomiaumsanduíche.Sobreela,océuestavaazulevazio.Hannahdisse:–Estátudobem,Sulis?

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–Tudoestámuitobem.–Então,vocêvaificarconosco?–Porquenãodeveria?–Sópenseique,comaUniversidade...ascoisas têmandadoumpoucoconfusas.Vocêsemudando,

querodizer...Sulissorriu,lembrando-sedacartaqueHannahenviariaparaAlison.Dissefirmemente:–AdoroficarcomvocêeSimon.AdorooCírculo,honestamente.Hannahpareceualiviadaesatisfeita.–Sabia.Estamosnostornandoumafamília.Sulisriu,rolouedeitounotapete,observandoJosheSimoncaminhando.Simonsejogounochão.–Quelugar!Quepaisagem!Olheisto!Virouolaptopparaqueelespudessemver.–AexploraçãodeJonathanForrestcomparadacomasleiturasmodernas.Asmedidassãoexatas,com

umerrodetrêscentímetros.Ohomemeraumgênio.–Comamumpedaçodosanduíche.Hannahempurrouospacotesparaeles.–Estessãodeovoeosoutros,dequeijo.Odehomusémeu.Maistarde,quandoSimoneHannahsaíramparacaminhar,demãosdadas,Joshdeuumgolenalatade

Cocaedisse,distraidamente:–Adivinhe!VouparaaUniversidade.Sulisolhou-osurpresa.–Oquê?–Nãoestácontente?–Lógicoqueestou,tolinho.Maspensei…–Simonarrumouparamim.Eleéumcaralegal,nãoacha?Possomecandidatarparaumasubvenção.

Pegouosformuláriosparamim.Temquasecertezadequevaidarcerto.Nãoétantodinheiroassim,masachaqueésuficienteparasobreviver.TalvezmedeixemtrabalharpormeioperíodonosBanhos.Ficoudejoelhoseolhouparaaspedras.– Você sabia que houve uma exploração com um radar geológico aqui nos anos 1990 e que

encontraramtodotipodeartefatos?Existem buracos de postes em forma circular sob a grama. Nove círculos concêntricos. Talvez

quatrocentascolunasdecarvalho,comoseumaconstruçãoenormedemadeirativesseexistidoaqui.Seucentrovoltadoparaocéu.–Quantotempoatrás?–Neolítico.Foiumlugarbemimportante.Agora,cobertoeesquecido.–Achoquevocêvaiserumgrandearqueólogo,Josh.–Eachoquevocêvaiserumagrandearquiteta.Riram.–Sulis!Horadeirmos.Hannahvoltavacorrendopelocampo.Sulisenrolouo tapeteeopegou,derrubandoJoshnagramabarrenta.Eleabaixousuamãoepegou

algonoestercodasovelhasruminantes.–Oqueéisto?Jogouumanela.–Landes.Apanhou-a.

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–Masestaárvoreestámortaháséculos.Aslandeseramverdesefrescas.Aproximando-se,Hannaholhou-asedisse:–Achoquedeveríamos

levarumaeplantá-la.Nuncasesabe.Seriabomsecrescesse.Manteríamosaárvoreviva.Joshriu,masSulispegouumadassementeseagachou.Fezumburacocomodedo,cutucandoosolo

macioecolocoualandedentro.–Cresça!–disse.No caminho de volta, Simon sentou-se no banco de passageiro e logo caiu no sono, roncando

suavemente.Hannahcantavacomoslábiosfechadosenquantodirigia.Aumentouovolumedorádio.Joshliaopanfleto,concentrado.Sulisolhoupelajanela.Enquantoocarropassavapelosmontes,viuacidadeabaixorepousadaemum

buracosecreto,iluminadapelasluzesesuasruasenvolvendoafontesagradacomoguardiãs.EstavasentidaqueCaitlintivessemorrido.Masnuncaolhariaparatrásnovamente.Podiaatécontar

paraJoshseuverdadeironome.

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Zac

Oenterrodemeumestreaconteceuemumdiafrioedeventoforte.Naigrejaemquehaviasecasado.Foi uma cerimônia religiosa sombria. Todos os dignitários do conselho da cidade enviaram suascarruagens.Algunsprestaramhonrapessoalmente.RalphAlleynfeztodosospreparativos.Eraumamigoverdadeiro.Nuncaviraumhomemtãodevastado.Pareciamaisvelho,sentadonobancodaigreja,comoqueperdidoemsuasrecordações.AIgrejaestavacheiadesenhoraselegantesecavalheirosinfluentes.Aomesentar,blasfemeicontracadaumdeles,umaum,comumvenenoamargo,poisacidadedelesiriasebeneficiarcomotrabalhodeForreste,mesmoassim,sempreohaviamdesprezado.Sylvia não apareceu. Ficou em seu quarto. Sra. Hall comprou-lhe um vestido preto. Receei que

partisseduranteanoite,quefugisse,vistosergrandesuatristeza.Sabianoqueestavapensando.Quesuaprópriaimprudênciaohaviamatado.Eratolice,lógico.Subianosandaimestodososdias.Suaasmaestavapiorando,diaapósdia,háanos.Conseguia entender a agonia de Sylvia. Ela o amou muito, de muitas maneiras que nunca havia

experimentado.Comrelaçãoamim, senti ira evergonha.Euodesprezaraeagora sóconseguiapensarnabondade

dele,noseuhumorenassuasobsessões.Seráqueprecisoumorrerparaqueeusoubessequeoamava?Seráqueeratãoentorpecidoassimparanãoatentarparaissoantes?Haviaumacoisaquepoderiafazer,algoquepoderiaconsertaroquefiz:trabalhararduamentenanoite

depoisdo funeral.Asplantas seespalharamdiantedemimna suamesade trabalho.Cuidadosamente,traçoapóstraço,restaureisuaobra-prima.Compton poderia ter os originais, mas estes seriam idênticos. Removi todas as minhas estúpidas

irregularidadesemudançasnasmedidas,quepensavaseremsutis.Gradualmente,osdesenhosdoCírculoganharamnovamentesuasproporçõescorretas.Acandeiairradiavaumfeixedeluzenquantotrabalhava.Aomeu redor, a casadormiaeosquartosestavamvazios.SónoquartodeSylvia,noandardecima,ouvia-seumbarulhodetábuaestalando,comoseestivesseacordadaesemovimentadopelolocal...Devoterdormidodepoisdisso.Fuiacordadocomumpuxãoemmeubraço.–Zac,acorde.Osolhavianascido.Seusraioslacrimososentravampelajanela.Meupescoçoestavaduro.Percebi

queestavadeitadoemmeusbraçoscomasplantasdebaixodeminhacabeça.Gemi,tonto.–Quehorassão?–Sete.Sra.Halllogoestaráláembaixo.Prepareiistoparavocê.Eraumcopodechocolatefervendoedoce.Engoli-oesentisuadoçurameacordarinstantaneamente.Enquantobebia,elaolhouparaasplantas.–Terminou?–Sim.Limpeiminhaboca.–Comosoubequeestavaaqui?Deuumsorriso,seurostoestavafantasmagórico.–Euoouvi.Desciatéaquieespieialgumasvezes,masvocêestavaconcentradoemseutrabalho.Coloqueiocoponamesa.

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–Ninguémjamaissaberá.Umdia,estespapéisestarãoemummuseu.OsprojetosdeJonathanForrestparaoCírculodoRei.Aspessoasficarãomaravilhadascomsuabelezaehabilidade.–Nemtodos.Olhei para cima enquanto enrolava os papéis. O vestido preto a fazia parecer pálida. Seu cabelo

estavapresoatrás.Avermelhidãodeseusolhosdesaparecera,massabiaquetinhacomidomuitopouconosúltimosdias.–Oquevocêquerdizer?–Haviaumamensagem.OfilhodoSr.Forrestvoltaráparacasa.OnaviodeleaportouemBristoleele

estáacaminhodaqui,nestemomento.Olhei-a.Entãoelaperguntou-me:–Elenosentregará?Nãofazianemideia.–Nunca o conheci. Pode acabar commeu aprendizado ou podememanter aqui, até que oCírculo

estejaterminado.Nãoqueriapensarnoquepoderiaacontecercomela.Nãoimportavaquetipodehomemfosse,nãoera

Forrest.–Sylvia...Temalgomais.Estavaolhandoparaasplantascomabocarígida.–Asmétopes.–Oquetêmelas?Eunãoachoque...–Temosdeadicioná-las.Indicarondeserãocolocadas,ouoprojetonãoserácomoelequeria.Elapegouosdesenhosdasmétopeseespalhou-ossobreamesa,olhando-os.Eramummistériopara

mim.Seessesemblemaseimagensfossemaspalavrasdeumahistória,estariamemumalinguagemquenãoconseguiriacompreenderdomesmomodo.–Nãoseioquesignificamequalaordemqueseguem.–Nãoimporta.Pegouumlápis.–Numere-os. Ponha-os na planta. Antes que alguém diga que custammuito ou que são inúteis. Se

foremumcódigo,alguémterádedecifrá-lo.Então,numerei-os.Inclusiveincluíumquetinhadesenhado,deumaárvoreatingidaporumraioecom

um grande galho quebrado no chão.O brasão de Forrest era um carvalho e agora estavamorto.Quememorialpoderiasemelhordoqueesse?Nomomento em que estávamos terminando, houve um barulho do lado de fora da casa. Sra. Hall

desceu.Ouvimosvozeseseugritodereconhecimento.–Rápido!–Sylviasussurrou.Enfiamosospapéisemumapilhaorganizadaearrumeiaescrivaninhadamaneiracomodeveriaestar,

comoForrestahaviadeixado.Depoisviramo-nos.Umhomemestavaempénapassagemdaporta.Porummomento,confessoquemeucoraçãodeuum

pulo,comoseForresttivessevoltadodosmortos,sóquevinteanosmaisjovem.Eraele.Osmesmosolhosescuros,omesmoolharquetudovia.Sylviaacenouumgestopequenodereverência.Inclinei-me.Disse:–VocêdeveserZac.–Sim,senhor.Bem-vindoaolar.Balançouacabeça.–Nãoeramasboas-vindasqueeuesperavareceberporaqui.Pareciacansadodaviagem.Olhouaoredor,comoseaindaesperasseverseupaiporalinoseuantigo

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quarto.Então,sorriuparaSylvia.–Meupaimeescreveusobrevocê.Naqueleinstantesabiaqueelaestariasegura.Sylviaadiantou-se:–MestreForrestfoiomelhorhomemqueconheci.JohnForrestJuniorsorriusuavemente.–Realmenteoera.Achoquenóstodostivemosmuitasortedeconhecê-lo.Jackerajovem,mastrabalhavaduro.Nosdiasseguintes,foiatodososlugaresdacidade,encontrou

RalphAlleyn,conversoucomostrabalhadoreseencorajouosempreiteiros.Nãoerapermitidoserpreguiçosono trabalhodoCírculo.Todososdias,euviaaspedrasdouradas

seremcortadas, enquadradas,moldadas emcasas a seremerguidas.Trabalhei ao seu lado, semminhajaqueta,comminhasmangasdelinhoenroladasparanãosesujarem;euestavamuitodiferentedoqueeuera.Todasasnoites,quandoíamosparacasa,SylviaeSra.Hallpreparavamumarefeiçãoenormeparanós.Trabalhavaomáximodehorasqueconseguia.Trabalhavacomoumanimal,sempensar.Nãoqueriapensar,senãolembrar-medeForrest.Masumanoite,quandoostrabalhadoreshaviampartidoeacheiqueestivessesozinho,alguémtossiu

atrásdemeusombros.VireieviGeorgeFisher.Disse:–MeztreForreztdezejavê-lo,zenhor.Haviaalgoerradonojeitoqueelefalouonomedele.Perguntei:–Ondeeleestá?–Nacâmara.Ficamosemsilêncionomeiodascasasiluminadaspeloluar.Então,levantei-meeosegui.NãohaviaestadoládesdeanoiteemqueForresthaviamorrido.Penseiquenuncamaisaveria.Para

minhasurpresa,Sylviaestavalátambém,enroladaemsuacapa,parecendoumpoucoassustada.–Zac...oqueestáacontecendo?–Nãofaçoideia–disse.Olocalestavavazio.Umavelabrilhavanoescuro.Sóafontenochãoborbulhava.Masnochão,ao

ladodela,umasepulturahaviasidoabertaeumapedracolocadaaoseulado...Umamétope.MostravaBladudvoando,suasasasabertas.–Sóhámaisuma,dealgumaforma.Fisherolhouparamim,inexpressivo.–Éparaeztaraqui.Paraele.Aproximei-meeolheiparabaixo.Sylviaagarrou-seemmeubraço.Vimosocaixãodelelánofundo,

comumaserpenteesculpidanamadeiraecomumcírculoeumtriângulosobreela,sóporumsegundo,nachamadavela.Aovirar-me,JackForrestentroupelapassagemdaportacomRalphAlleynatrásdele.Ambosolharam

parabaixo,pelaaberturaescura.Algunstrabalhadoresesperavamdoladodefora,comferramentasnasmãos.–Comoelequeria–disseAlleynbaixinho.–Ninguémsaberá,excetonós.JackForrestolhouparanós.–Estamanhã,liotestamentodemeupai.Seusdesejoseramclarosepretendohonrá-los.Gostariaque

oaprendizadodemestreStokefossecompletado,oquesignifica,sevocêconcordar,quevai trabalharcomigodeagoraemdiante.Balanceiacabeça.Nãoconseguifalar,pornãoacreditarnoqueouvia.OlhouparaSylvia.

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–Meu pai tambémme instruiu dizendo que uma casa do Círculo tem de ser comprada para você.Deixou-lheumapequenaherançatambém.Elaolhavaparaochão.–Nãomereço.–Eleachouquesim.–Escreveuissoantesdesabersobremim,oqueeurealmenteera.Seelanão tomassecuidado,entregariaanósdois.Disse rapidamente:–Sylvia,não importa.Subiu

aquelasescadascorrendoquenemloucoparasalvá-la.Sabiaque...sabiadetudo.Masnãofoisuficienteparadetê-lo.Aindasepreocupavacomvocê.Seeleestivesseaquiagora,ririadevocêediriaparaquefizesseoqueestavafalando.Nãodiria?Sabiaqueeuestavacerto.Vipelasuaexpressãoqueaceitariaseupresente,quefariadesuacasaalgo

lindo,poishaviasidodeleeapresenteara.Quantoamim,meussentimentosestavamconfusos.SeráquegostavadesteForrestmorenoesério?Parecianãoternenhumdossonhosedasvisõesdoseupai.Certavezhaviam,osdois,meirritado.Agora,porém,nãoconseguiaviversemeles.RalphAlleyndisse:–Vamosselarestacâmara.Então,deemumaúltimaolhadaao redor.Achoquenuncamaisninguém

entraráaqui.Olheiparaasparedes,otetocommodilhões.Nãoeraumlugardoqualquisessemanterrecordações

oupensarfacilmente.Todaminhavidaestariaaqui,obscuraesilenciosa,nocoraçãodemeupassado.Sylviadeualgunspassosemdireçãoàfonte.Inclinou-seeolhouparaapequenapoçadeáguaatravés

dovapor.Viseureflexoconfusoeobscuro.Então,ajoelhou-se.–Oqueéisto?Colocou seus dedos na lama quente e cavou, tirando um minúsculo pedaço de papel, dobrado,

quebrado e antigo. Parecia ter sido empurrado de algum lugar do fundo daquela trinca d’água.Nós arodeamosenquantoodesdobrava,masopapelsequebrouempedaçosemseusdedos.–Tragaumalanterna.QuandoFishertrouxealanterna,vimosaspalavrasescritasnosfragmentosdepapel.Leu-asemvozalta.Queroquevocêterminecomasombrademinhavida.Porummomento,ocômodoecoouaspalavras.Alleyndisse:–Comoestaspalavrasvierampararaqui?Olhei-o.SeelefosseumdosOroboros,certamentesaberia.–Éumvotivo,atiradonafonte.Quemsabeondeeháquantotempo.Meupaidiziaquedeveriateruma

sériedecaminhosdeáguasobacidade–JackForrestrespondeu.–Guardeparavocê,Sylvia;mas,agora,oshomensestãoesperando.Fizeram o chão ficar liso e construíram uma abóbada enquanto observávamos. Construíam-na

eficazmente de modo que a escuridão interior ia desaparecendo lentamente. Uma escuridão cheia devapor se tornoupequena,do tamanhodaúltimapedraa serposta, apedraprincipal.QuandoFisher alevantou,Zacoimpediu.–Deixe-me!OlhouparaForrest,quebalançouacabeça,surpreso.Fui um trabalhador estranho. Deslizei a pedra cuidadosamente no vão, demodo que um pouco de

argamassaescorresseparaforaecaísseemminhacamisa.Pegandoacolherdepedreiro,raspeiapedraatéficarlimpaemeafastei.–Écostumeirofazermozumamarca.Fisherdeu-meumformãoeummartelo.Porummomento,nãofazia ideiadoquefalara.Oshomens

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sorriram.Então,levanteiasferramentaseentalheiZS1754napedra.Pareciaumtrabalhodeamador.Maistarde,enquantoobservavaAlleynlevarSylviaparacasa,JackForrestseaproximouportrásde

mimedisse:–Háumacoisaquequerolhemostrar,Zac.Atravessamos o local da obra para oeste. O Sol já havia se posto, as primeiras estrelas estavam

acabandodeaparecernocéu,tímidasemmeioàsnuvens.ALuacrescenteerguia-sesobreacolina.Emalgumlugar,ovelhasbaliam,porém,nãoconseguiavê-lasainda.NoladomaisdistantedoCírculo,haviaumatrilhaqueconduziaaoscampos.Sabiaquevirariaumaruaembreve,umadastrêsqueconduziriaparao ladode foradoCírculo.Nofinaldela,haviauma ladeirade inclinaçãosuaveondeasovelhasestavam,juntamentecomporcos,vivendoacimadoscarvalhaisquecresciam.Forrestparoueapoiou-senoportão.–Éaqui.–Umcampo?–Meucampo.–Olhouparacima.–Vocêtrabalhoucommeupai.Eraumhomembrilhante,umhomem

defaíscaefogo...VocêjápensoucomodevetersidoparamimserfilhodeJohnForrest?Difícil,pensei,masnãodissenada.Acenou.–OCírculoéaobra-primademeupai,maspretendoconstruiraminha,bemaqui.AdeleéoSol.A

minhaseráaLua.Umgrandecrescentedepedra.Vocêeeuoconstruiremos,Zac.Símbolosdruídicoserguendo-seemumacidadeperfeita.Respondi a eleque ficariahonrado.Masmeuolhar estava fixo emsuamão.Ao redorde seudedo

mindinho,usavaumaneldeouro.Eradaformadeumacobraquedevoravaseuprópriorabo.Talveztenhapercebidoqueeuoestavaobservando,poisemvozbaixadisse:–Deixou-oparamim.

Você não precisava ter se preocupado com as métopes. Certificar-me-ia de que fossem incluídas noprojeto.Olhamo-nos.Abaixodenós,ondeestavamasárvores,todasasgralhaslevantaram-se,grasnaramepuseram-seem

ordemnovamente,comoseaindanãoestivessemprontasparadormir.

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NOTADAAUTORA

Sempre fui fascinada pelo Círculo do Rei, em Bath. A cidade inteira tem uma atmosfera douradapeculiar,ummistérioemcadaesquina,masestaruacircularintrigaseuespectador,comsuaperfeiçãoeseussímbolosesculpidos,desconhecidos.Nãomesurpreendiqueseuarquiteto,JohnWood–oAncião–,fosseinfluenciadoporteoriasdruídicaseideiassobremediçõessagradas.Quis experimentar um pouco disso neste romance, entrelaçar três fios de história, de talmodo que

nuncarealmentesetocassem,masecoassemdiferentestemaseimagens.Useialgunsfatosreaisdavidade JohnWood,masmudandoalgunsdeles e inventandooutros,paraque JohnForrest se tornasseumacriação ficcional e parcialmente baseada na realidade.Bladud é um sermítico. Sua história pode serencontradaemcrônicasantigas;Suliséumahistóriaquecriei.Mito,ficçãoefato.Trêspontasdeumtriângulo.Umterminanooutro,detalmodoqueaverdadenunca

étotalmentepontual.Esperoqueesteromancetenhacapturadoumpoucodesteenigma,estecírculoaoredor de acontecimentos e localidades. E espero que um dia o leitor visite as Águas de Sulispessoalmente.

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CatherineFisher

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INFORMAÇÕESSOBRENOSSASPUBLICAÇÕESEÚLTIMOSLANÇAMENTOS

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www.novoseculo.com.br

erecebamensalmentenossoboletimeletrônico.

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1Pavão−Peacock,nooriginal,usadodemodozombeteiroporSylvia,poisZacsevestiademodoesnobe,apavonado.Mauricinho(N.T.).2Óleoemsprayvendidonomundointeiro,utilizadoprincipalmentecomolubrificante(N.R.).

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SumárioCapaRostoCréditosDedicatóriaOprojetoBladudSulisZacBladudSulisZacBladudSulisZacBladud

AsfundaçõesSulisZacBladudSulisZacBladudSulisZacBladudSulis

OcírculoZacBladudSulisZacBladudSulisZacBladudSulisZac

NotadaautoraInformações