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AS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS DECORRENTES DO USO DAS TÉCNICAS DE MANIPULAÇÃO GENÉTICA PARA FINS EUGÊNICOS
THE LEGAL IMPLICATION ARISING FROM THE USE OF GENETICS MANIPULATION TECHNIQUES FOR EUGENIC PURPOUSES
Camila Amanda Telles – graduanda em direito - [email protected] -UNISALESIANO – Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium – Lins/SP
Prof. Me. Cristian de Sales Von Rondow - [email protected] UNISALESIANO – Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium – Lins/SP
RESUMOO presente artigo tem o objetivo de analisar as implicações jurídicas decorrentes do uso das técnicas de manipulação genética como instrumento para a prática da ciência eugênica, conhecida pela busca incessante do aperfeiçoamento da raça humana. Buscou-se comprovar a inconstitucionalidade do emprego das referidas técnicas para estes fins com base nas fontes normativas disponíveis que preservam, em suma, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida, à igualdade, à liberdade de investigação científica e, principalmente, o direito à identidade, à diversidade, à privacidade, à integridade e à inalterabilidade genética. Considerando a probabilidade de danos irreversíveis e a violação de direitos fundamentais, vislumbra-se a necessidade de rígidas restrições à utilização da manipulação genética para garantia de proteção do ser humano e, notadamente, do seu patrimônio genético.
Palavras-chave: Manipulação genética. Neoeugenia. Patrimônio genético. Discriminação genética.
ABSTRACTThe present article has the goal to analyze the legal implications arising from the use of genetic manipulation techniques as an instrument for the practice of eugenic science, which is a science known as the incessant search for the perfectioning of the human race. This article pursued to prove the unconstitutionally of the use of these techniques for these purposes, based on available normative sources, which preserve, in summary, the dignity of the human being, the right to life, equality, freedom of scientific research and, mainly, the right to identity, diversity, privacy and genetic inalterability. Considering the probability of irreversible damage and violation of fundamental rights, the use of genetic manipulation must be restricted in order to guarantee the protection of the human being and, particularly, its genetic patrimony.
Keywords: Genetic Manipulation. Neoeugenic. Genetic Patrimony. Genetic Discrimination.
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INTRODUÇÃO
As técnicas de manipulação genética representam grande avanço científico, visto
que permitem, através da manipulação do patrimônio genético, a prevenção e até
mesmo a cura de doenças e/ou deficiências de origem genética. Ocorre, entretanto,
que estas técnicas também podem ser empregadas para a seleção de genes a fim
de predeterminar características humanas.
Devido a isso, os críticos relatam o surgimento da neoeugenia e argumentam a
possibilidade de prosseguimento da aplicação da ciência eugênica na atualidade de
forma mais eficaz, pois, com o auxílio das técnicas de manipulação genética, é
possível o acesso mais preciso à fonte determinante das características humanas: o
patrimônio genético.
Ressalta-se que, embora dotada de eficácia, a intervenção genética é uma prática
muito discutida devido os possíveis efeitos colaterais causados não só ao indivíduo
submetido ao procedimento, mas também a sua descendência e toda espécie
humana, dependendo da célula objeto de modificação. Ademais, considerando-se a
ideologia discriminatória e sem humanidade da eugenia clássica,discute-se os fins
almejados com referida prática que, hodiernamente, recebe mais destaque como
instrumento do poder familiar, do que como política pública.
1 A CIÊNICIA EUGÊNICA
A ciência eugênica existe há muito tempo. Entretanto, o termo “eugenia” só
apareceu com a publicação da obra “Inquiry into Human Faculty and its
development” de Francis Galton, publicada em 1883, referindo-se à “ciência que
trata de todos os fatores que melhoram as qualidades próprias da raça, incluídas as
que se desenvolvem de forma perfeita” (CASABONA, 1999, p. 170).
Galton entendia que o ser humano portador de “sangue ruim” estaria fadado a ser
degenerado, uma vez que seu sangue seria um veneno a entranhar em toda sua
cadeia hereditária (VIEIRA, 2012, p. 05). Com base nisso, passou a pregar a
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melhoria da raça humana através do controle da reprodução dos indivíduos,
impedindo a perpetuação da descendência dos “indesejáveis” e estimulando a dos
“desejáveis”, o que deu origem à divisão da eugenia em negativa e positiva,
respectivamente (OLIVEIRA, 2011, p. 124 e 126).
Na atualidade não é diferente. “A eugenia passou a ser associada ao progresso
técnico-científico, adquirindo status de “Neoeugenia” ou “eugenia liberal”” (RAMOS,
2015, p. 125) e também foi dividida em positiva e negativa de acordo com o objetivo
de selecionar características desejadas ou eliminar as indesejadas (RAMOS, 2015,
p. 126).
Sobre a nova aparição da ciência eugênica, Diniz leciona que:
desse modo, surge o espectro do eugenismo, ou de um biopoder que, na verdade, ao buscar o ser humano perfeito, coisificando-o, constitui um Jano de duas faces, ressuscitando uma medicina sem humanidade, como aquela que, na época do nazismo, propugnava as práticas eugenistas em busca da pureza da raça ariana (2010, p. 494).
Nota-se a crítica da autora ao novo movimento eugênico que coisifica o ser humano,
comparando-se à medicina sem humanidade praticada durante período nazista.
Com base nisso, a autora impõe a imprescindibilidade de rejeição do eugenismo
enquanto instrumento de discriminação dos “defeituosos” e de intervenção não
terapêutica no patrimônio genético em busca da seleção e aperfeiçoamento da raça
humana (2010, p. 495).
Convém ressaltar que a forma de intervenção sobre a raça humana deixou de recair
apenas sobre os homens, já nascidos, podendo, hoje, recair sobre aqueles que
estão por nascer e aqueles que ainda nem foram implantados no útero materno.
Para Ramos, um dos pontos que difere a neoeugenia da eugenia clássica é a
quantidade de pessoas de pessoas atingidas pela prática. Enquanto a eugenia
clássica é destinada a determinado grupo de indivíduos em geral, a neoeugenia, que
possui um viés genético, é destinada a um indivíduo específico, ou a um casal e
seus descendentes (2015, p. 126).
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Dessa forma, considerando-se o viés genético da neoeugenia e sua aplicabilidade
individual, conforme afirmado pela autora supracitada, a probabilidade de se obter
resultados satisfatórios é maior, devido ao fato de a intervenção recair diretamente
sobre o gene e de acordo com cada caso concreto.
Adverte-se, no entanto, que “apesar do caráter individual da Neoeugenia, há que se
ressaltar que por ser uma prática que lida diretamente com o genoma humano,
existe uma preocupação evidente com os reflexos que ela pode apresentar para as
gerações futuras” (RAMOS, 2015, p. 126).
Vieira também apresenta diferenças entre a eugenia clássica e a eugenia liberal,
sendo elas a tentativa de inclusão de critérios científicos no aperfeiçoamento da
população e a suposta passagem da titularidade da prática eugênica do Estado para
os pais (2012, p. 27). Acerca desta última peculiaridade, discute-se a conduta dos
casais que se utilizam das técnicas de manipulação genética para “moldar” o(a)
filho(a) pretendido(a), tendo a autora oferecido uma crítica ao apontar a ideia de “ir
às compras do supermercado genético” (VIEIRA, 2012, p. 28).
A neoeugenia positiva almeja a seleção de caracteres, como sexo, cor dos olhos,
cabelo e estatura, ou da potencialização de competências humanas, como
inteligência, memória, criatividade artística e traços de caráter e, em decorrência
disso possui um aspecto discriminatório acentuado (RAMOS, 2015, p. 132-133).
A neoeugenia negativa, no entanto, “ao menos em princípio, não teria a intenção de
segregar uma parcela da população, mas tão somente de evitar a ocorrência de
doenças graves”, sendo, portanto, uma forma de exercício do direito garantido
constitucionalmente (RAMOS, 2015, p. 129).
2 CONTEÚDO NORMATIVO
Embora a eugenia seja uma ciência antiga, a legislação não foi criada e aplicada
desde o início. Somente depois da repercussão da tragédia ocorrida na Alemanha é
que começou a discussão sobre a ética que rondava a experimentação humana.
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O Código de Nuremberg, datado de 1947, estabeleceu o marco inicial da luta pela
regulamentação da biotecnologia. Após, várias normas foram editadas nos planos
nacional e internacional com vistas a regular a situação da eugenia e demais
inferências do uso da biotecnologia, instituindo direitos fundamentais e proibindo
condutas discriminatórias.
No âmbito internacional merece destaque a Declaração Universal sobre o Genoma
Humano e os Direitos Humanos, adotada pela Conferência Geral da Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) que ocorreu
no ano de 1997. Referida Declaração é tratada como o instrumento normativo mais
significativo, devido seu caráter internacional universal, sua abordagem específica
sobre o genoma humano e a adoção de uma forma jurídica típica do Direito
Internacional que garante maior agilidade na sua aprovação formal final
(CASABONA, 1999, p. 38-39).
Dentre as matérias protegidas pela referida declaração estão:
o respeito à dignidade da pessoa humana, princípio da autonomia individual (pela exigência do consentimento do interessado), a não discriminação baseada nas características genéticas, a confidencialidade, a liberdade de investigação, a investigação responsável, a solidariedade entre os povos, a proclamação do genoma humano como patrimônio comum da humanidade, a salvaguarda da espécie humana, etc. (CASABONA, 1999, p. 39).
Petterle ratifica o rol apresentado por Casabona e acrescenta o estabelecimento de
princípios básicos para pesquisa genética e aplicação de resultados, a proibição de
redução do ser humano às suas características genéticas e o respeito à diversidade
e à singularidade genética (2007, p. 44-45).
Por outro lado, no âmbito nacional deve ser destacado o texto constitucional por
conferir especial proteção ao patrimônio genético. De acordo com o artigo 225, caput
c.c. parágrafo primeiro, inciso II da Constituição Federal (CF), o patrimônio genético
pertence à coletividade, devendo esta, juntamente com o Poder Público, zelar pela
sua proteção configurando-se desse modo como um bem jurídico-constitucional de
enorme relevância social que integra a atual consciência comunitária.
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O mencionado dispositivo impõe a preservação da diversidade e da integridade do
patrimônio genético, bem como a fiscalização das entidades que empreendem
esforços para realização de pesquisas e manipulações sobre o material genético, as
quais deverão, nos termos do inciso IV, elaborar um estudo prévio quanto ao
possível impacto ambiental que poderá ocorrer e dar publicidade a informação
obtida.
A partir da proteção conferida à diversidade e à integridade do patrimônio genético,
discute-se o surgimento de novos direitos fundamentais correlatos ao problema
deste artigo, como o direito à identidade, à diversidade, à privacidade, à integridade
e, principalmente, à inalterabilidade do patrimônio genético que, embora não
positivados na Carta Magna, possuem conteúdo materialmente relevante e estão
estritamente vinculados à vida e à dignidade da pessoa humana (PETTERLE, 2007,
p. 89-91).
A Lei Federal n° 11.105, de 24 de março de 2005(Lei de Biossegurança),
regulamentada pelo Decreto n° 5.591, de 22 de novembro de 2005, apresenta
relevantes restrições ao emprego da engenharia genética. De acordo com o artigo
6°, inciso II, é vedada a prática de engenharia genética em organismo vivo ou o
manejo in vitro de ADN/ARN natural ou recombinante. Ademais, conforme inciso III,
do mesmo artigo, também é vedada a prática de engenharia genética em célula
germinal humana.
A proibição é imposta, ainda, pelo artigo 2°, I, da Instrução Normativa n° 08, de 09
de julho de 1997,da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que
dispõe sobre a manipulação genética e clonagem.
As células germinais são as que definem a descendência do indivíduo e, portanto,
alterando-as, estar-se-ia comprometendo a integralidade do patrimônio genético da
geração futura.
Este é o entendimento compartilhado por Diniz ao dispor que, como o genoma
humano pertence a toda a humanidade, “é esta que se coloca em risco quando o
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altera, mesmo para atender a fins terapêuticos, com o escopo de interferir na linha
germinal” (2010, p. 488).
A proibição é rigorosa e, caso violada, constituirá crime, nos termos do artigo 25 da
Lei de Biossegurança, punível com pena de reclusão de um a quatro anos, além de
multa.
A Instrução Normativa da CTNBio n° 09, de 10 de outubro de 1997, por sua vez,
regula a intervenção genética em seres humanos, vedando a intervenção em
material genético humano, ressalvada, porém, a aplicação do procedimento para,
apenas, tratamento de defeitos genéticos. Ou seja, é permitida a intervenção
genética apenas com fins terapêuticos. Ressalta-se, entretanto, que, ainda com essa
possibilidade, conforme proibição expressa na Lei de Biossegurança e na Instrução
Normativa n° 08, de 09 de julho de 1997,da CTNBio, a intervenção só poderá
ocorrer em células somáticas.
Ao final, no item 4, a Instrução Normativa traz um extenso rol de quesitos
específicos para análise das propostas de intervenção e manipulação genética
humana, o que demonstra o inexorável controle destas práticas.
A Resolução n° 2.121, de 16 de julho de 2015, ofereceu importância à área da
biotecnologia ao impor normas éticas para as técnicas de reprodução assistida (RA),
principalmente no que diz respeito à geração, preservação e manipulação de
embriões. Sua redação é clara ao restringir a aplicação das técnicas de reprodução
assistida aos casais que têm dificuldade no processo de procriação e ao vedar sua
utilização com intuito de apenas selecionar o sexo ou outra característica biológica
do futuro filho, ressalvado os casos em que o objetivo seja evitar o surgimento de
doenças ligadas ao sexo.
Nota-se, portanto, a permissão para realização da intervenção genética através da
escolha de características com o objetivo, único e exclusivamente, de impedir a
manifestação de uma doença, ou seja, de cunho terapêutico. Mesmo nesta situação,
deve-se respeitar o disposto na Lei de Biossegurança e na Instrução Normativa da
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CTNBio n° 08, de 09 de julho de 1997 no que diz respeito à proibição de alteração
das células germinais humanas.
No Capítulo VI (Diagnóstico Genético Pré-Implantação de Embriões), a Resolução
permite a utilização das técnicas de reprodução assistida para “seleção de embriões
submetidos a diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças”, os quais
poderão ser doados para realização de pesquisas ou descartados, e para “tipagem
do sistema HLA do embrião, no intuito de selecionar embriões HLA-compatíveis com
algum(a) filho(a) do casal já afetado pela doença e cujo tratamento efetivo seja o
transplante de células-tronco”. Esta última hipótese é um exemplo de neoeugenia
positiva praticada com fins terapêuticos.
Na prática, o Poder Judiciário já decidiu casos semelhantes, posicionando-se a favor
do procedimento intervencionista sob o fundamento de promoção e preservação da
vida, da saúde e da dignidade da pessoa humana, assim como ocorreu no Estado
do Piauí, onde um casal precisava se submeter ao procedimento de fertilização in
vitro para seleção do embrião saudável e compatível para posterior doação de
medula óssea à filha, adolescente, que sofria com anemia falciforme. A alternativa
era a única cabível para preservar a vida da menina com o mínimo de dignidade e
os pais não tinham condições de arcar com as custas do procedimento que era
realizado somente pelo sistema particular de saúde, o que motivou o mandado de
segurança em face do Estado. A medida liminar pleiteada no mandado de
segurança foi concedida sob os fundamentos da proteção e promoção da dignidade
da pessoa humana, do direito à vida e à saúde. O impetrado interpôs agravo
regimental. Contudo, em 10 de março de 2016 foi proferido acórdão, negando, por
unanimidade, provimento ao agravo e mantendo, na íntegra, a decisão concessiva
de liminar, de acordo com a ementa a seguir exposta in verbis:
AGRAVO REGIMENTAL. DECISÃO CONCESSIVA DE LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA. FERTILIZAÇÃO IN VITRO. PROCEDIMENTO QUE OBJETIVA A SELEÇÃO DE EMBRIÃO SADIO E GENETICAMENTE COMPATÍVEL PARA FINS DE TRANSPLANTE DE MEDULA ÓSSEA. MEDIDA CURATIVA DE PACIENTE PORTADORA DE ANEMIA FALCIFORME. PLAUSIBILIDADE DO PEDIDO. PROTEÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E, DE FORMA MEDIATA, À SAÚDE DA FILHA DOS IMPETRANTES. PERICULUM IN MORA DEMONSTRADO. RELATIVIZAÇÃO DA REGRA CONTIDA NO ART. 273, § 2º, DO CPC. ALEGAÇÕES DE INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA
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JUSTIÇA ESTADUAL, ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO DO PIAUÍ, NECESSIDADE DE CITAÇÃO DOS LITISCONSORTES PASSIVOS NECESSÁRIOS (UNIÃO E MUNICÍPIO DE TERESINA), OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DA RESERVA DO POSSÍVEL. QUESTÕES PACIFICADAS PELAS SÚMULAS 01, 02 E 06 E PELA ROBUSTA JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE DE JUSTIÇA. REJEIÇÃO. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO IMPROVIDO (TJ-PI, AgRg no MS nº 2015.0001.002738-0, rel. Des. Erivan José da Silva Lopes, j. 10.03.2016, v.u.).
Outra fonte normativa importante é a Resolução n° 1.931, de 17 de setembro de
2009, do Conselho Federal de Medicina(CFM), que institui o Código de Ética
Médica. Referido Código veda ao médico o descumprimento da legislação
específica, como, por exemplo, a Lei de Biossegurança (artigo 15, caput).
De acordo com o artigo 15, §2°, I a III, do Código de Ética Médica, o profissional está
proibido de realizar o procedimento de reprodução humana assistida visando a
criação de ser humano geneticamente modificado, de embriões para fins de
investigação, para seleção de sexo, para fins de eugenia ou, ainda, para dar origem
à híbridos ou quimeras.
Por fim, o artigo 16 impõe a vedação da intervenção sobre o genoma humano que
vise sua alteração, excetuando, entretanto, a possibilidade da intervenção
terapêutica. Na parte final do mencionado dispositivo, proíbe-se qualquer ação sobre
células da linha germinal que resulte na modificação genética da descendência.
3 PAIS PROJETISTAS
Como já mencionado neste artigo, a manipulação genética ganhou espaço no seio
familiar, cativando casais notam a possibilidade de ter sua prole conforme
idealizado.
A terapia genética realizada para curar ou prevenir doenças e/ou deficiências se
mostra perfeitamente aceitável. O problema surge com a possibilidade de
intervenção no patrimônio genético para sua alteração e, consequentemente,
melhoramento de capacidades humanas. “Ainda que nenhum prejuízo esteja
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envolvido, não existe algo de inquietante no fato de encomendar uma criança com
traços genéticos específicos?” (SANDEL, 2013, p. 12).
Para Sandel, eugenia liberal é apenas “uma forma de pais privilegiados terem o tipo
de filho que desejam e armá-los para o sucesso numa sociedade competitiva”
(SANDEL, 2013, p. 57).
Sandel dispõe de uma visão diferenciada, questionando a moralidade da conduta
destes pais. Neste contexto, critica a falta de valorização dos filhos como dádivas e
o não atendimento do princípio do amor incondicional (2013, p. 38 e 40).
Os pais devem amar incondicionalmente seus filhos e isso não quer dizer que
devam deixar os filhos fazerem o que quiserem, do modo e no momento que
desejarem. Longe disso, os pais devem nortear os filhos, auxiliando-os nas
descobertas e na construção de seu caráter. No entanto, hodiernamente, os pais
estão ultrapassando os limites do admissível, interferindo bruscamente nas decisões
ou modo de ser de sua prole, planejando e predeterminando suas características, o
que recebe o nome de hiperempenho parental (SANDEL, 2013, p. 46).
Ocorre, entretanto, que as implicações decorrentes do emprego da manipulação
genética para a obtenção do(a) filho(a) desejado(a) são variáveis, de acordo com a
visão de cada um. Para quem valoriza virtudes como a humildade, a
responsabilidade e a solidariedade, a utilização da engenharia genética traz
possíveis efeitos sobre estes e, por isso, se mostram contrárias ao procedimento. De
outro modo, para aqueles que almejam atingir as exigências do mercado
competitivo, o melhoramento genético se mostra necessário, independentemente da
suposta divergência com instituições sociais e sentimentos morais (SANDEL, 2013,
p. 66).
Particularmente, Sandel dispõe que:
É tentador pensar que projetar nossos filhos e nós mesmos para o sucesso por meio da bioengenharia é um exercício de liberdade numa sociedade competitiva. Porém modificar nossa natureza para nos encaixar no mundo, e não o contrário, é, na verdade, a forma mais profunda de enfraquecimento
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da autonomia. Em vez de empregar nossos novos conhecimentos genéticos para endireitar “a madeira torta da humanidade”, deveríamos fazer o possível para criar arranjos políticos e sociais mais tolerantes com as dádivas e limitações dos seres humanos imperfeitos (2013, p. 67).
Seria fascinante o ser humano poder se projetar ou projetar sua prole para as
exigências de uma sociedade competitiva. A bioengenharia trouxe altíssimas
chances para que o mesmo consiga isso. Todavia, deve-se recordar da dignidade da
pessoa humana no sentido de que o ser humano é fim em si mesmo e não
instrumento. Logo, não se pode se mudar para algo, mas sim mudar algo para si, e é
exatamente a primeira opção que a sociedade está preferindo.
Mudar-se para o alcance de algo representa, conforme afirmação do autor, a perda
da autonomia, ou seja, nunca será o ser humano que quer e sim o que o mundo
exige. Da parte final da citação, vislumbra-se a referência ao dever de respeito e
tolerância ao diferente e, ademais, a obrigação do Estado de disponibilizar
mecanismos para acolhimento e tratamento dos indivíduos imperfeitos, ao invés de
simplesmente aplicar os conhecimentos técnico-científicos para modificação e
padronização da sociedade.
CONCLUSÃO
O presente trabalho objetivou demonstrar ser inconstitucional o emprego das
técnicas de manipulação genética com vistas ao desenvolvimento da ciência
eugênica negativa.
Com o avanço técnico-científico, em especial com o surgimento das técnicas de
manipulação genética, a possibilidade de concretização da ideologia eugênica se
mostrou mais eficaz, visto a alta probabilidade de eficiência do procedimento
intervencionista que age diretamente sobre o gene. Estima-se que a neoeugenia
seja mais perigosa que a eugenia clássica, observado que seus efeitos não ficam
restritos ao indivíduo que se submete à intervenção genética, mas sim, a ele
transcende, podendo afetar a descendência e, inclusive, a raça humana.
Devido à periculosidade da prática, diversas fontes normativas foram implantadas a
fim de destinar a proteção devida ao patrimônio genético. Em síntese, limitou-se a
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prática da manipulação genética somente para intervenções terapêuticas e proibiu-
se a alteração de células germinativas.
Desta forma, sob o ponto de vista dogmático, conclui-se pela ilicitude de toda forma
de intervenção genética que recaia sobre células germinativas, ainda que se trate de
intervenção terapêutica, e, também, toda intervenção não terapêutica, ainda que
realizada sobre células somáticas.
No tocante especial destinação da manipulação genética durante o planejamento
familiar, percebe-se igual violação dos direitos à identidade, à diversidade, à
privacidade, à integridade e à inalterabilidade do patrimônio genético. Isto porque o
ato de projetar a prole não está restrito ao cuidado de promoção da saúde. Longe
disso, na maioria dos casos os casais querem se valer de tais técnicas para a
concretização do(a) filho(a) idealizado(a). Sendo assim, considerando a proibição de
qualquer intervenção não terapêutica e o desrespeito aos direitos fundamentais
específicos, resta clara a inconstitucionalidade desta prática.
Ainda assim, através da análise da obra de Sandel, observou-se uma intrigante
posição: a de que as implicações decorrentes da conduta destes pais devem ser de
ordem moral e não legal. O posicionamento é possível sob o ponto de vista zetético.
A teoria zetética, ao contrário da dogmática, não se fundamenta em dogmas, mas
sim na incerteza, uma realidade para o Direito, ciência mutável de acordo com a
evolução da sociedade e aplicável conforme cada caso concreto.
Entretanto, ainda que se considere as indagações sobre a moralidade da conduta
destes pais, destaca-se que os pontos majoritários concluem pelo direito da futura
criança à inalterabilidade genética. Talvez seja direito dos pais de ter o filho
desejado, assim como aqueles que encaram longo período de espera para adoção
da criança desejada ou escolhem o material genético conforme o biótipo do(a)
doador(a) nos casos de inseminação artificial heteróloga. Mas talvez seja dever dos
pais de amar incondicionalmente seus filhos, acolhendo-os como dádivas e não
como encomendas.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Decreto n° 5.591, de 22 de novembro de 2005. Regulamenta dispositivos da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição, e dá outras providências. Portal do Palácio do Planalto, Brasília, 22 de novembro de 2005.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5591.htm>. Acesso em: 14 abr. 2018.
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13
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