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AS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS DECORRENTES DO USO DAS TÉCNICAS DE MANIPULAÇÃO GENÉTICA PARA FINS EUGÊNICOS THE LEGAL IMPLICATION ARISING FROM THE USE OF GENETICS MANIPULATION TECHNIQUES FOR EUGENIC PURPOUSES Camila Amanda Telles – graduanda em direito - [email protected] -UNISALESIANO – Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium – Lins/SP Prof. Me. Cristian de Sales Von Rondow - [email protected] UNISALESIANO – Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium – Lins/SP RESUMO O presente artigo tem o objetivo de analisar as implicações jurídicas decorrentes do uso das técnicas de manipulação genética como instrumento para a prática da ciência eugênica, conhecida pela busca incessante do aperfeiçoamento da raça humana. Buscou-se comprovar a inconstitucionalidade do emprego das referidas técnicas para estes fins com base nas fontes normativas disponíveis que preservam, em suma, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida, à igualdade, à liberdade de investigação científica e, principalmente, o direito à identidade, à diversidade, à privacidade, à integridade e à inalterabilidade genética. Considerando a probabilidade de danos irreversíveis e a violação de direitos fundamentais, vislumbra-se a necessidade de rígidas restrições à utilização da manipulação genética para garantia de proteção do ser humano e, notadamente, do seu patrimônio genético. Palavras-chave: Manipulação genética. Neoeugenia. Patrimônio genético. Discriminação genética. ABSTRACT The present article has the goal to analyze the legal implications arising from the use of genetic manipulation techniques as an instrument for the practice of eugenic science, which is a science known as the incessant search for the perfectioning of the human race. This article pursued to prove the unconstitutionally of the use of these techniques for these purposes, based on available normative sources, which 1

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AS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS DECORRENTES DO USO DAS TÉCNICAS DE MANIPULAÇÃO GENÉTICA PARA FINS EUGÊNICOS

THE LEGAL IMPLICATION ARISING FROM THE USE OF GENETICS MANIPULATION TECHNIQUES FOR EUGENIC PURPOUSES

Camila Amanda Telles – graduanda em direito - [email protected] -UNISALESIANO – Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium – Lins/SP

Prof. Me. Cristian de Sales Von Rondow - [email protected] UNISALESIANO – Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium – Lins/SP

RESUMOO presente artigo tem o objetivo de analisar as implicações jurídicas decorrentes do uso das técnicas de manipulação genética como instrumento para a prática da ciência eugênica, conhecida pela busca incessante do aperfeiçoamento da raça humana. Buscou-se comprovar a inconstitucionalidade do emprego das referidas técnicas para estes fins com base nas fontes normativas disponíveis que preservam, em suma, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida, à igualdade, à liberdade de investigação científica e, principalmente, o direito à identidade, à diversidade, à privacidade, à integridade e à inalterabilidade genética. Considerando a probabilidade de danos irreversíveis e a violação de direitos fundamentais, vislumbra-se a necessidade de rígidas restrições à utilização da manipulação genética para garantia de proteção do ser humano e, notadamente, do seu patrimônio genético.

Palavras-chave: Manipulação genética. Neoeugenia. Patrimônio genético. Discriminação genética.

ABSTRACTThe present article has the goal to analyze the legal implications arising from the use of genetic manipulation techniques as an instrument for the practice of eugenic science, which is a science known as the incessant search for the perfectioning of the human race. This article pursued to prove the unconstitutionally of the use of these techniques for these purposes, based on available normative sources, which preserve, in summary, the dignity of the human being, the right to life, equality, freedom of scientific research and, mainly, the right to identity, diversity, privacy and genetic inalterability. Considering the probability of irreversible damage and violation of fundamental rights, the use of genetic manipulation must be restricted in order to guarantee the protection of the human being and, particularly, its genetic patrimony.

Keywords: Genetic Manipulation. Neoeugenic. Genetic Patrimony. Genetic Discrimination.

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INTRODUÇÃO

As técnicas de manipulação genética representam grande avanço científico, visto

que permitem, através da manipulação do patrimônio genético, a prevenção e até

mesmo a cura de doenças e/ou deficiências de origem genética. Ocorre, entretanto,

que estas técnicas também podem ser empregadas para a seleção de genes a fim

de predeterminar características humanas.

Devido a isso, os críticos relatam o surgimento da neoeugenia e argumentam a

possibilidade de prosseguimento da aplicação da ciência eugênica na atualidade de

forma mais eficaz, pois, com o auxílio das técnicas de manipulação genética, é

possível o acesso mais preciso à fonte determinante das características humanas: o

patrimônio genético.

Ressalta-se que, embora dotada de eficácia, a intervenção genética é uma prática

muito discutida devido os possíveis efeitos colaterais causados não só ao indivíduo

submetido ao procedimento, mas também a sua descendência e toda espécie

humana, dependendo da célula objeto de modificação. Ademais, considerando-se a

ideologia discriminatória e sem humanidade da eugenia clássica,discute-se os fins

almejados com referida prática que, hodiernamente, recebe mais destaque como

instrumento do poder familiar, do que como política pública.

1 A CIÊNICIA EUGÊNICA

A ciência eugênica existe há muito tempo. Entretanto, o termo “eugenia” só

apareceu com a publicação da obra “Inquiry into Human Faculty and its

development” de Francis Galton, publicada em 1883, referindo-se à “ciência que

trata de todos os fatores que melhoram as qualidades próprias da raça, incluídas as

que se desenvolvem de forma perfeita” (CASABONA, 1999, p. 170).

Galton entendia que o ser humano portador de “sangue ruim” estaria fadado a ser

degenerado, uma vez que seu sangue seria um veneno a entranhar em toda sua

cadeia hereditária (VIEIRA, 2012, p. 05). Com base nisso, passou a pregar a

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melhoria da raça humana através do controle da reprodução dos indivíduos,

impedindo a perpetuação da descendência dos “indesejáveis” e estimulando a dos

“desejáveis”, o que deu origem à divisão da eugenia em negativa e positiva,

respectivamente (OLIVEIRA, 2011, p. 124 e 126).

Na atualidade não é diferente. “A eugenia passou a ser associada ao progresso

técnico-científico, adquirindo status de “Neoeugenia” ou “eugenia liberal”” (RAMOS,

2015, p. 125) e também foi dividida em positiva e negativa de acordo com o objetivo

de selecionar características desejadas ou eliminar as indesejadas (RAMOS, 2015,

p. 126).

Sobre a nova aparição da ciência eugênica, Diniz leciona que:

desse modo, surge o espectro do eugenismo, ou de um biopoder que, na verdade, ao buscar o ser humano perfeito, coisificando-o, constitui um Jano de duas faces, ressuscitando uma medicina sem humanidade, como aquela que, na época do nazismo, propugnava as práticas eugenistas em busca da pureza da raça ariana (2010, p. 494).

Nota-se a crítica da autora ao novo movimento eugênico que coisifica o ser humano,

comparando-se à medicina sem humanidade praticada durante período nazista.

Com base nisso, a autora impõe a imprescindibilidade de rejeição do eugenismo

enquanto instrumento de discriminação dos “defeituosos” e de intervenção não

terapêutica no patrimônio genético em busca da seleção e aperfeiçoamento da raça

humana (2010, p. 495).

Convém ressaltar que a forma de intervenção sobre a raça humana deixou de recair

apenas sobre os homens, já nascidos, podendo, hoje, recair sobre aqueles que

estão por nascer e aqueles que ainda nem foram implantados no útero materno.

Para Ramos, um dos pontos que difere a neoeugenia da eugenia clássica é a

quantidade de pessoas de pessoas atingidas pela prática. Enquanto a eugenia

clássica é destinada a determinado grupo de indivíduos em geral, a neoeugenia, que

possui um viés genético, é destinada a um indivíduo específico, ou a um casal e

seus descendentes (2015, p. 126).

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Dessa forma, considerando-se o viés genético da neoeugenia e sua aplicabilidade

individual, conforme afirmado pela autora supracitada, a probabilidade de se obter

resultados satisfatórios é maior, devido ao fato de a intervenção recair diretamente

sobre o gene e de acordo com cada caso concreto.

Adverte-se, no entanto, que “apesar do caráter individual da Neoeugenia, há que se

ressaltar que por ser uma prática que lida diretamente com o genoma humano,

existe uma preocupação evidente com os reflexos que ela pode apresentar para as

gerações futuras” (RAMOS, 2015, p. 126).

Vieira também apresenta diferenças entre a eugenia clássica e a eugenia liberal,

sendo elas a tentativa de inclusão de critérios científicos no aperfeiçoamento da

população e a suposta passagem da titularidade da prática eugênica do Estado para

os pais (2012, p. 27). Acerca desta última peculiaridade, discute-se a conduta dos

casais que se utilizam das técnicas de manipulação genética para “moldar” o(a)

filho(a) pretendido(a), tendo a autora oferecido uma crítica ao apontar a ideia de “ir

às compras do supermercado genético” (VIEIRA, 2012, p. 28).

A neoeugenia positiva almeja a seleção de caracteres, como sexo, cor dos olhos,

cabelo e estatura, ou da potencialização de competências humanas, como

inteligência, memória, criatividade artística e traços de caráter e, em decorrência

disso possui um aspecto discriminatório acentuado (RAMOS, 2015, p. 132-133).

A neoeugenia negativa, no entanto, “ao menos em princípio, não teria a intenção de

segregar uma parcela da população, mas tão somente de evitar a ocorrência de

doenças graves”, sendo, portanto, uma forma de exercício do direito garantido

constitucionalmente (RAMOS, 2015, p. 129).

2 CONTEÚDO NORMATIVO

Embora a eugenia seja uma ciência antiga, a legislação não foi criada e aplicada

desde o início. Somente depois da repercussão da tragédia ocorrida na Alemanha é

que começou a discussão sobre a ética que rondava a experimentação humana.

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O Código de Nuremberg, datado de 1947, estabeleceu o marco inicial da luta pela

regulamentação da biotecnologia. Após, várias normas foram editadas nos planos

nacional e internacional com vistas a regular a situação da eugenia e demais

inferências do uso da biotecnologia, instituindo direitos fundamentais e proibindo

condutas discriminatórias.

No âmbito internacional merece destaque a Declaração Universal sobre o Genoma

Humano e os Direitos Humanos, adotada pela Conferência Geral da Organização

das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) que ocorreu

no ano de 1997. Referida Declaração é tratada como o instrumento normativo mais

significativo, devido seu caráter internacional universal, sua abordagem específica

sobre o genoma humano e a adoção de uma forma jurídica típica do Direito

Internacional que garante maior agilidade na sua aprovação formal final

(CASABONA, 1999, p. 38-39).

Dentre as matérias protegidas pela referida declaração estão:

o respeito à dignidade da pessoa humana, princípio da autonomia individual (pela exigência do consentimento do interessado), a não discriminação baseada nas características genéticas, a confidencialidade, a liberdade de investigação, a investigação responsável, a solidariedade entre os povos, a proclamação do genoma humano como patrimônio comum da humanidade, a salvaguarda da espécie humana, etc. (CASABONA, 1999, p. 39).

Petterle ratifica o rol apresentado por Casabona e acrescenta o estabelecimento de

princípios básicos para pesquisa genética e aplicação de resultados, a proibição de

redução do ser humano às suas características genéticas e o respeito à diversidade

e à singularidade genética (2007, p. 44-45).

Por outro lado, no âmbito nacional deve ser destacado o texto constitucional por

conferir especial proteção ao patrimônio genético. De acordo com o artigo 225, caput

c.c. parágrafo primeiro, inciso II da Constituição Federal (CF), o patrimônio genético

pertence à coletividade, devendo esta, juntamente com o Poder Público, zelar pela

sua proteção configurando-se desse modo como um bem jurídico-constitucional de

enorme relevância social que integra a atual consciência comunitária.

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O mencionado dispositivo impõe a preservação da diversidade e da integridade do

patrimônio genético, bem como a fiscalização das entidades que empreendem

esforços para realização de pesquisas e manipulações sobre o material genético, as

quais deverão, nos termos do inciso IV, elaborar um estudo prévio quanto ao

possível impacto ambiental que poderá ocorrer e dar publicidade a informação

obtida.

A partir da proteção conferida à diversidade e à integridade do patrimônio genético,

discute-se o surgimento de novos direitos fundamentais correlatos ao problema

deste artigo, como o direito à identidade, à diversidade, à privacidade, à integridade

e, principalmente, à inalterabilidade do patrimônio genético que, embora não

positivados na Carta Magna, possuem conteúdo materialmente relevante e estão

estritamente vinculados à vida e à dignidade da pessoa humana (PETTERLE, 2007,

p. 89-91).

A Lei Federal n° 11.105, de 24 de março de 2005(Lei de Biossegurança),

regulamentada pelo Decreto n° 5.591, de 22 de novembro de 2005, apresenta

relevantes restrições ao emprego da engenharia genética. De acordo com o artigo

6°, inciso II, é vedada a prática de engenharia genética em organismo vivo ou o

manejo in vitro de ADN/ARN natural ou recombinante. Ademais, conforme inciso III,

do mesmo artigo, também é vedada a prática de engenharia genética em célula

germinal humana.

A proibição é imposta, ainda, pelo artigo 2°, I, da Instrução Normativa n° 08, de 09

de julho de 1997,da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que

dispõe sobre a manipulação genética e clonagem.

As células germinais são as que definem a descendência do indivíduo e, portanto,

alterando-as, estar-se-ia comprometendo a integralidade do patrimônio genético da

geração futura.

Este é o entendimento compartilhado por Diniz ao dispor que, como o genoma

humano pertence a toda a humanidade, “é esta que se coloca em risco quando o

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altera, mesmo para atender a fins terapêuticos, com o escopo de interferir na linha

germinal” (2010, p. 488).

A proibição é rigorosa e, caso violada, constituirá crime, nos termos do artigo 25 da

Lei de Biossegurança, punível com pena de reclusão de um a quatro anos, além de

multa.

A Instrução Normativa da CTNBio n° 09, de 10 de outubro de 1997, por sua vez,

regula a intervenção genética em seres humanos, vedando a intervenção em

material genético humano, ressalvada, porém, a aplicação do procedimento para,

apenas, tratamento de defeitos genéticos. Ou seja, é permitida a intervenção

genética apenas com fins terapêuticos. Ressalta-se, entretanto, que, ainda com essa

possibilidade, conforme proibição expressa na Lei de Biossegurança e na Instrução

Normativa n° 08, de 09 de julho de 1997,da CTNBio, a intervenção só poderá

ocorrer em células somáticas.

Ao final, no item 4, a Instrução Normativa traz um extenso rol de quesitos

específicos para análise das propostas de intervenção e manipulação genética

humana, o que demonstra o inexorável controle destas práticas.

A Resolução n° 2.121, de 16 de julho de 2015, ofereceu importância à área da

biotecnologia ao impor normas éticas para as técnicas de reprodução assistida (RA),

principalmente no que diz respeito à geração, preservação e manipulação de

embriões. Sua redação é clara ao restringir a aplicação das técnicas de reprodução

assistida aos casais que têm dificuldade no processo de procriação e ao vedar sua

utilização com intuito de apenas selecionar o sexo ou outra característica biológica

do futuro filho, ressalvado os casos em que o objetivo seja evitar o surgimento de

doenças ligadas ao sexo.

Nota-se, portanto, a permissão para realização da intervenção genética através da

escolha de características com o objetivo, único e exclusivamente, de impedir a

manifestação de uma doença, ou seja, de cunho terapêutico. Mesmo nesta situação,

deve-se respeitar o disposto na Lei de Biossegurança e na Instrução Normativa da

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CTNBio n° 08, de 09 de julho de 1997 no que diz respeito à proibição de alteração

das células germinais humanas.

No Capítulo VI (Diagnóstico Genético Pré-Implantação de Embriões), a Resolução

permite a utilização das técnicas de reprodução assistida para “seleção de embriões

submetidos a diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças”, os quais

poderão ser doados para realização de pesquisas ou descartados, e para “tipagem

do sistema HLA do embrião, no intuito de selecionar embriões HLA-compatíveis com

algum(a) filho(a) do casal já afetado pela doença e cujo tratamento efetivo seja o

transplante de células-tronco”. Esta última hipótese é um exemplo de neoeugenia

positiva praticada com fins terapêuticos.

Na prática, o Poder Judiciário já decidiu casos semelhantes, posicionando-se a favor

do procedimento intervencionista sob o fundamento de promoção e preservação da

vida, da saúde e da dignidade da pessoa humana, assim como ocorreu no Estado

do Piauí, onde um casal precisava se submeter ao procedimento de fertilização in

vitro para seleção do embrião saudável e compatível para posterior doação de

medula óssea à filha, adolescente, que sofria com anemia falciforme. A alternativa

era a única cabível para preservar a vida da menina com o mínimo de dignidade e

os pais não tinham condições de arcar com as custas do procedimento que era

realizado somente pelo sistema particular de saúde, o que motivou o mandado de

segurança em face do Estado. A medida liminar pleiteada no mandado de

segurança foi concedida sob os fundamentos da proteção e promoção da dignidade

da pessoa humana, do direito à vida e à saúde. O impetrado interpôs agravo

regimental. Contudo, em 10 de março de 2016 foi proferido acórdão, negando, por

unanimidade, provimento ao agravo e mantendo, na íntegra, a decisão concessiva

de liminar, de acordo com a ementa a seguir exposta in verbis:

AGRAVO REGIMENTAL. DECISÃO CONCESSIVA DE LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA. FERTILIZAÇÃO IN VITRO. PROCEDIMENTO QUE OBJETIVA A SELEÇÃO DE EMBRIÃO SADIO E GENETICAMENTE COMPATÍVEL PARA FINS DE TRANSPLANTE DE MEDULA ÓSSEA. MEDIDA CURATIVA DE PACIENTE PORTADORA DE ANEMIA FALCIFORME. PLAUSIBILIDADE DO PEDIDO. PROTEÇÃO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E, DE FORMA MEDIATA, À SAÚDE DA FILHA DOS IMPETRANTES. PERICULUM IN MORA DEMONSTRADO. RELATIVIZAÇÃO DA REGRA CONTIDA NO ART. 273, § 2º, DO CPC. ALEGAÇÕES DE INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DA

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JUSTIÇA ESTADUAL, ILEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO DO PIAUÍ, NECESSIDADE DE CITAÇÃO DOS LITISCONSORTES PASSIVOS NECESSÁRIOS (UNIÃO E MUNICÍPIO DE TERESINA), OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E DA RESERVA DO POSSÍVEL. QUESTÕES PACIFICADAS PELAS SÚMULAS 01, 02 E 06 E PELA ROBUSTA JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE DE JUSTIÇA. REJEIÇÃO. DECISÃO MANTIDA. AGRAVO IMPROVIDO (TJ-PI, AgRg no MS nº 2015.0001.002738-0, rel. Des. Erivan José da Silva Lopes, j. 10.03.2016, v.u.).

Outra fonte normativa importante é a Resolução n° 1.931, de 17 de setembro de

2009, do Conselho Federal de Medicina(CFM), que institui o Código de Ética

Médica. Referido Código veda ao médico o descumprimento da legislação

específica, como, por exemplo, a Lei de Biossegurança (artigo 15, caput).

De acordo com o artigo 15, §2°, I a III, do Código de Ética Médica, o profissional está

proibido de realizar o procedimento de reprodução humana assistida visando a

criação de ser humano geneticamente modificado, de embriões para fins de

investigação, para seleção de sexo, para fins de eugenia ou, ainda, para dar origem

à híbridos ou quimeras.

Por fim, o artigo 16 impõe a vedação da intervenção sobre o genoma humano que

vise sua alteração, excetuando, entretanto, a possibilidade da intervenção

terapêutica. Na parte final do mencionado dispositivo, proíbe-se qualquer ação sobre

células da linha germinal que resulte na modificação genética da descendência.

3 PAIS PROJETISTAS

Como já mencionado neste artigo, a manipulação genética ganhou espaço no seio

familiar, cativando casais notam a possibilidade de ter sua prole conforme

idealizado.

A terapia genética realizada para curar ou prevenir doenças e/ou deficiências se

mostra perfeitamente aceitável. O problema surge com a possibilidade de

intervenção no patrimônio genético para sua alteração e, consequentemente,

melhoramento de capacidades humanas. “Ainda que nenhum prejuízo esteja

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envolvido, não existe algo de inquietante no fato de encomendar uma criança com

traços genéticos específicos?” (SANDEL, 2013, p. 12).

Para Sandel, eugenia liberal é apenas “uma forma de pais privilegiados terem o tipo

de filho que desejam e armá-los para o sucesso numa sociedade competitiva”

(SANDEL, 2013, p. 57).

Sandel dispõe de uma visão diferenciada, questionando a moralidade da conduta

destes pais. Neste contexto, critica a falta de valorização dos filhos como dádivas e

o não atendimento do princípio do amor incondicional (2013, p. 38 e 40).

Os pais devem amar incondicionalmente seus filhos e isso não quer dizer que

devam deixar os filhos fazerem o que quiserem, do modo e no momento que

desejarem. Longe disso, os pais devem nortear os filhos, auxiliando-os nas

descobertas e na construção de seu caráter. No entanto, hodiernamente, os pais

estão ultrapassando os limites do admissível, interferindo bruscamente nas decisões

ou modo de ser de sua prole, planejando e predeterminando suas características, o

que recebe o nome de hiperempenho parental (SANDEL, 2013, p. 46).

Ocorre, entretanto, que as implicações decorrentes do emprego da manipulação

genética para a obtenção do(a) filho(a) desejado(a) são variáveis, de acordo com a

visão de cada um. Para quem valoriza virtudes como a humildade, a

responsabilidade e a solidariedade, a utilização da engenharia genética traz

possíveis efeitos sobre estes e, por isso, se mostram contrárias ao procedimento. De

outro modo, para aqueles que almejam atingir as exigências do mercado

competitivo, o melhoramento genético se mostra necessário, independentemente da

suposta divergência com instituições sociais e sentimentos morais (SANDEL, 2013,

p. 66).

Particularmente, Sandel dispõe que:

É tentador pensar que projetar nossos filhos e nós mesmos para o sucesso por meio da bioengenharia é um exercício de liberdade numa sociedade competitiva. Porém modificar nossa natureza para nos encaixar no mundo, e não o contrário, é, na verdade, a forma mais profunda de enfraquecimento

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da autonomia. Em vez de empregar nossos novos conhecimentos genéticos para endireitar “a madeira torta da humanidade”, deveríamos fazer o possível para criar arranjos políticos e sociais mais tolerantes com as dádivas e limitações dos seres humanos imperfeitos (2013, p. 67).

Seria fascinante o ser humano poder se projetar ou projetar sua prole para as

exigências de uma sociedade competitiva. A bioengenharia trouxe altíssimas

chances para que o mesmo consiga isso. Todavia, deve-se recordar da dignidade da

pessoa humana no sentido de que o ser humano é fim em si mesmo e não

instrumento. Logo, não se pode se mudar para algo, mas sim mudar algo para si, e é

exatamente a primeira opção que a sociedade está preferindo.

Mudar-se para o alcance de algo representa, conforme afirmação do autor, a perda

da autonomia, ou seja, nunca será o ser humano que quer e sim o que o mundo

exige. Da parte final da citação, vislumbra-se a referência ao dever de respeito e

tolerância ao diferente e, ademais, a obrigação do Estado de disponibilizar

mecanismos para acolhimento e tratamento dos indivíduos imperfeitos, ao invés de

simplesmente aplicar os conhecimentos técnico-científicos para modificação e

padronização da sociedade.

CONCLUSÃO

O presente trabalho objetivou demonstrar ser inconstitucional o emprego das

técnicas de manipulação genética com vistas ao desenvolvimento da ciência

eugênica negativa.

Com o avanço técnico-científico, em especial com o surgimento das técnicas de

manipulação genética, a possibilidade de concretização da ideologia eugênica se

mostrou mais eficaz, visto a alta probabilidade de eficiência do procedimento

intervencionista que age diretamente sobre o gene. Estima-se que a neoeugenia

seja mais perigosa que a eugenia clássica, observado que seus efeitos não ficam

restritos ao indivíduo que se submete à intervenção genética, mas sim, a ele

transcende, podendo afetar a descendência e, inclusive, a raça humana.

Devido à periculosidade da prática, diversas fontes normativas foram implantadas a

fim de destinar a proteção devida ao patrimônio genético. Em síntese, limitou-se a

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prática da manipulação genética somente para intervenções terapêuticas e proibiu-

se a alteração de células germinativas.

Desta forma, sob o ponto de vista dogmático, conclui-se pela ilicitude de toda forma

de intervenção genética que recaia sobre células germinativas, ainda que se trate de

intervenção terapêutica, e, também, toda intervenção não terapêutica, ainda que

realizada sobre células somáticas.

No tocante especial destinação da manipulação genética durante o planejamento

familiar, percebe-se igual violação dos direitos à identidade, à diversidade, à

privacidade, à integridade e à inalterabilidade do patrimônio genético. Isto porque o

ato de projetar a prole não está restrito ao cuidado de promoção da saúde. Longe

disso, na maioria dos casos os casais querem se valer de tais técnicas para a

concretização do(a) filho(a) idealizado(a). Sendo assim, considerando a proibição de

qualquer intervenção não terapêutica e o desrespeito aos direitos fundamentais

específicos, resta clara a inconstitucionalidade desta prática.

Ainda assim, através da análise da obra de Sandel, observou-se uma intrigante

posição: a de que as implicações decorrentes da conduta destes pais devem ser de

ordem moral e não legal. O posicionamento é possível sob o ponto de vista zetético.

A teoria zetética, ao contrário da dogmática, não se fundamenta em dogmas, mas

sim na incerteza, uma realidade para o Direito, ciência mutável de acordo com a

evolução da sociedade e aplicável conforme cada caso concreto.

Entretanto, ainda que se considere as indagações sobre a moralidade da conduta

destes pais, destaca-se que os pontos majoritários concluem pelo direito da futura

criança à inalterabilidade genética. Talvez seja direito dos pais de ter o filho

desejado, assim como aqueles que encaram longo período de espera para adoção

da criança desejada ou escolhem o material genético conforme o biótipo do(a)

doador(a) nos casos de inseminação artificial heteróloga. Mas talvez seja dever dos

pais de amar incondicionalmente seus filhos, acolhendo-os como dádivas e não

como encomendas.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Portal do Palácio do Planalto, Brasília, 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 14 abr. 2018.

BRASIL. Lei n° 11.105, de 24 de março de 2005. Regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição Federal, estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, cria o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, reestrutura a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio, dispõe sobre a Política Nacional de Biossegurança – PNB, revoga a Lei no 8.974, de 5 de janeiro de 1995, e a Medida Provisória no 2.191-9, de 23 de agosto de 2001, e os arts. 5o, 6o, 7o, 8o, 9o, 10 e 16 da Lei no 10.814, de 15 de dezembro de 2003, e dá outras providências. Portal do Palácio do Planalto, Brasília, 24 de março de 2005. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11105.htm>. Acesso em: 14 abr. 2018.

BRASIL. Decreto n° 5.591, de 22 de novembro de 2005. Regulamenta dispositivos da Lei no 11.105, de 24 de março de 2005, que regulamenta os incisos II, IV e V do § 1o do art. 225 da Constituição, e dá outras providências. Portal do Palácio do Planalto, Brasília, 22 de novembro de 2005.Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5591.htm>. Acesso em: 14 abr. 2018.

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